The Metaphysics of Truth – EDWARDS (SY)

EDWARDS, D. The Metaphysics of Truth. New York:  Oxford University Press, 2018. Resenha de: PACHECO, Gionatan Carlos. Synesis, Petrópolis, v. 10, n. 2, p. 251-254, ago./dez., 2019.

Em The Metaphysics of Truth (2018), Douglas Edwards traz uma defesa de uma metafísica da verdade e um amplo ataque aos seus algozes, nomeadamente, os deflacionistas e primitivistas. Por um lado, os deflacionistas concedem à verdade um papel lógico e de forma de expressão, mas, para além disso, pouco teríamos a falar sobre a verdade. Por outro lado, os primitivistas, com efeito, afirmam que a verdade não é um conceito aberto para definição, de modo que não caberia investigá-la. Não obstante, Edwards defende uma teoria acerca da natureza da verdade que a caracteriza como substantiva, pluralista e fundamentada em propriedades.

Os desafios para uma metafísica da verdade são postos de tal modo pelas teorias deflacionárias, que os três primeiros capítulos deste livro se ocupam de uma resposta a elas. O primeiro capítulo trata de três visões “ultra deflacionárias”, a saber, teoria da redundância, teoria performativa e prosentencialismo. Com efeito, teorias da verdade geralmente estão interessados na relação entre os domínios da linguagem (conceitos e palavras) e da realidade (objetos, propriedades e eventos). Essas três visões negam que a verdade seja um propriedade, da seguinte forma. Há um argumento, na “visão padrão”, que relaciona predicados com propriedades que, quando formulado acerca das teorias da verdade, se expressa como se segue: (1) predicados referem a propriedades, se (2) “ser verdadeiro” é um predicado, então (3) “ser verdadeiro” se refere a uma propriedade (verdade). Sem embargo, estas visões negam que a segundo premissa  (2) seja válida (p. 8), ou seja, que ser verdadeiro/verdade não é um predicado, mas uma simples redundância que só afirma o que foi dito, ou que só performa uma ênfase, ou ainda uma prosentença, que meramente substitui o que foi dito antes. Deste modo, ao longo do capítulo Edwards apresenta objeções para cada uma das três teorias, se valendo de argumentos de Kunne e Strawson, e na sequência expõem as concepções de verdade como objeto (Frege) e como evento (William James), concluindo que mesmo nessas acepções “é difícil evitar” conceber a verdade como uma propriedade (p. 18).

O segundo e terceiro capítulos são dedicados às teses deflacionistas menos radicais e mais amplamente aceitas. De acordo com este espectro do deflacionismo a verdade é uma propriedade, no entanto, não é uma propriedade substancial. Aqui entra uma distinção entre propriedades esparsas e propriedades abundantes, a qual Edwards utilizará ao longo do livro. Propriedades abundantes seriam extensões dos predicados, ao passo que propriedades esparsas seriam análogas à universais objetivos que estabelecem similitudes explicativas acerca do estado de coisas. Essa distinção, além disso, é o centro do argumento contra o deflacionismo, apresentado no terceiro capítulo. Neste passo ao autor argumentará que assumir uma posição deflacionista sobre a verdade implica em assumir um deflacionismo sobre propriedades metafísicas. Contra deflacionistas como Horwich (1998) e  Damnjanovic (2010), Edwards sustenta que a verdade não é uma propriedade abundante, mas sim uma propriedade esparsa que possui um papel explicativo acerca da constituição causal acerca das coisas no mundo. Nesse sentido, o deflacionismo esvazia a relação entre a linguagem e realidade (mundo).

O quarto capítulo trata em especial sobre as conexões entre linguagem e mundo, em especial, a relação dos predicados com as propriedades. A ideia é que existem diferentes tipos de predicados (morais, científicos, estéticos, sociais, etc) que desempenham papéis distintos. Sobre cada predicado podemos constatar diferentes tipos de propriedades. Ainda neste capítulo, Edwards define o que entende por domínio. Cada domínio, com efeito, possui um componente semântico (linguagem) e um componente metafísico (realidade), dos quais o primeiro é “composto pelos termos e predicados singulares” e o segundo é “composto pelos objetos e propriedades aos quais os termos e predicados singulares se referem no aspecto semântico” (p. 77, traduções nossas). Não apenas termos e predicados singulares, mas também sentenças pertenceriam a domínios particulares. Isso também abre precedente para definirmos eventos ou estados de coisas como pertencentes a domínios particulares, no entanto, segundo o autor, “é o predicado que determina o domínio” (p. 78). Este capítulo acentua que a leitura de Edwards vai para além da teoria da verdade.

No quinto capítulo a verdade volta à pauta. O discurso acerca de diversos domínios no capítulo anterior fornece terreno para estabelecer o que Edwards chama de pluralismo sobre a verdade. No sexto capítulo esse pluralismo se desenvolve como pluralismo ontológico, isto é,  “a tese de que as coisas existem de maneiras diferentes” (p. 105). Aqui, o autor caracteriza uma espécie de paralelismo entre os debates acerca da verdade e acerca da existência. A concepção pluralista acerca desses dois temas se direciona a um pluralismo unificado entre realidade e linguagem, o “pluralismo global”. O capítulo sete discute uma variedade de modelos alternativos de pluralismo sobre a verdade o que, como que de forma paralela, é feito no capítulo oito, mas especificamente sobre pluralismos de existência. O pluralismo de Edwards, com efeito, é moldado em sua distinção entre propriedades abundantes e escassas.

Nos últimos capítulos, nono e décimo, é dado atenção às abordagens primitivistas que concedem poder explicativo a noção de verdade, mas negam que qualquer teoria da verdade seja de fato informativa. Os primitivistas afirmam que a verdade é uma noção primitiva e indefinível, alguns deles trabalham com a noção de veritadores (truthmakers). Com efeito, são duas as “ameaças” (p. 159) ao pluralismo da verdade que emergem da leitura primitivista. A primeira é que existem verdades para as quais não existem veritadores (cap. 9). A segunda é o compromisso com a existência de veritadores, pois uma vez que assumimos esse compromisso não precisamos nos questionar acerca da natureza da verdade (cap. 10). A primeira ameaça ao pluralismo vem de Trenton Merricks (2007), um primitivista que rejeita a teoria dos veritadores. Nesse passo, Edwards desenvolve uma argumentação onde mostra que a leitura pluralista possui recursos para evitar essa ameaça e, mais do que isso, na qual até outros partidários da teoria dos veritadores podem encontrar embasamento. Por outro lado, sobre a segunda ameaça do primitivismo, o autor afirma que os primitivistas partidários dos veritadores não podem falar de veritadores sem falar sobre a verdade, demonstrando assim a “peculiaridade da posição sustentada, na qual veritadores são doadores de papéis teóricos substanciais em um panorama no qual não há natureza substancial da verdade” (p. 176).

Em suma, o livro The Metaphysics of Truth é um livro de metafísica e epistemologia contemporânea que se esforça por resgatar um conceito de verdade que fique em pé por si só. O livro é beligerante, sempre expondo seu ponto enquanto troca golpes. Os alvos são muitos e o objetivo é original. Para além de uma teoria metafísica sobre a natureza da verdade, Edwards pretendeu estabelecer uma visão pluralista global acerca da relação entre realidade e linguagem. O autor leva a discussão sobre domínios metafísicos para diversas áreas, como moral, matemática, institucional, etc., e não se demora em áreas que muitos esperariam, devido a temática, mais atenção, como no caso da lógica e epistemologia. A brevidade da obra talvez justifique, ou talvez seu caráter de proposta monográfica a ser ainda escrutinada pela crítica.

Referências

DAMNJANOVIC, N. New Wave Deflationism. In PEDERSEN & WRIGHT (eds), New Waves in Truth. New York: Palgrave Macmillan,  2010. (pp. 45-58).

EDWARDS, D. The Metaphysics of Truth. New York:  Oxford University Press, 2018.

HORWICH, P. Truth. Oxford: Oxford University Press, 1998.

MERRICKS, T. Truth and Ontology. New York: Oxford University Press. 2007.

Gionatan Carlos Pacheco – Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5505634981032665. E-mail: [email protected]

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The Bloomsbury Encyclopedia of Utilitarianism – CRIMMINS (SY)

CRIMMINS, James E. (Ed.). The Bloomsbury Encyclopedia of Utilitarianism. London: Bloomsbury Academic, 2013. Resenha de: TRINDAD, Gabriel Garmendia da. Synesis, Petrópolis, v. 10, n. 2, p. 244-250, ago./dez., 2019.

A filósofa espanhola María Esperanza Guisán (1940–2015) celebremente observou que a doutrina utilitarista é “uma das teorias ético-políticas pior estudadas e compreendidas ao longo do tempo”.1 Podemos elencar entre as principais causas de incompreensões e dúvidas sobre tal abordagem a constante confusão acerca do que vem a ser, de fato, o utilitarismo. Frequentemente, é possível encontrar comentadores na literatura filosófica os quais descrevem “o utilitarismo” como um sistema moral único e definido. Tais caracterizações são, todavia, bastante problemáticas. Em realidade, poder-se-ia dizer que há tantos utilitarismos quanto utilitaristas – talvez até mais, pois não é incomum pensadores revisarem e proporem variações de suas próprias perspectivas ético-utilitárias no decorrer de suas carreiras.2 A Bloomsbury Encyclopedia of Utilitarianism (doravante, ‘BEU’) surge justamente para retificar este e muitos outros equívocos interpretativos acerca da tradição utilitarista e seus representantes.

Editada pelo cientista político inglês James E. Crimmins, a BEU é um monumento filosófico ímpar.3 As mais de seiscentas páginas desse formidável manuscrito configuram o que pode ser prontamente classificado – ao menos até o presente momento – como o compêndio definitivo sobre os estudos utilitaristas. Os leitores da obra em pauta dificilmente poderão concluir outra coisa. A razão disso é a riqueza e excelência de tal publicação. Como Crimmins faz questão de anunciar ao introduzir a BEU ao seu público alvo, esta é composta por mais de 220 verbetes elaborados por cerca de 120 pesquisadores do mais alto calibre acadêmico-científico. Tais verbetes abrangem os seguintes tópicos: figuras históricas e progenitores tardios do que viria a se tornar a filosofia utilitarista, utilitaristas clássicos e contribuintes recentes da literatura em voga, economistas políticos, scholars legais e juristas, objetores da ideologia ético-utilitária, historiadores e comentadores da tradição utilitarista, escolas de pensamento e teorias relacionadas aos frameworks utilitaristas, elementos significantes dos debates utilitaristas contemporâneos, diferentes tipos de utilitarismo, conceitos-chave, bem como problemas específicos da doutrina utilitarista – em especial, as dificuldades atinentes à avaliação e agregação das distintas manifestações da ideia de ‘utilidade’.4

Uma vez enumerados os conteúdos da BEU, Crimmins é rápido ao destacar que, a despeito da vasta constelação de assuntos ponderados, os possíveis críticos em vigília certamente questionarão a não inclusão de outras temáticas referentes ao utilitarismo. À vista disso, Crimmins esforça-se para justificar quaisquer ausências em termos de limitações de espaço – o que é compreensível. Decisões editoriais acerca daquilo que será abarcado ou deixado de lado em obras dessa magnitude são extremamente comuns. Ainda assim, levantar esse tipo de questionamento jamais poderia ser tomado como algo atípico ou desimportante. Afinal de contas, escritores utilitaristas são tradicionalmente conhecidos por empregar as suas abordagens e princípios na reflexão e tratamento filosófico das mais variadas problemáticas imagináveis. Limitar literariamente o dinamismo e versatilidade da doutrina utilitarista por intermédio de uma abundância de supressões textuais somente empobreceria o volume discutido. A construção de indagações dessa natureza deveria ser, então, fortemente encorajada – sobretudo se tivermos em mente a possibilidade de uma futura reedição do manuscrito. É precisamente por isso que a presente análise não hesitará em assinalar alguns dos temas mais relevantes que não foram incorporados nessa primeira versão da BEU. Comecemos, no entanto, pelo mais evidente acerto da publicação sob escrutínio, qual seja, o seu hábil detalhamento de múltiplas propostas morais utilitaristas.

Como mencionado há pouco, aquilo que é descrito como “o utilitarismo” deveria ser pensado, em realidade, como um vasto conjunto de abordagens ético-políticas de cunho consequencialista.5 A BEU reforça essa concepção ao trazer análises de mais de trinta subtipos diferentes de posturas utilitaristas desenvolvidas nos últimos dois séculos. Dentre as entradas com o maior número de informações e esclarecimentos, sobressaem-se as discussões sobre o utilitarismo do ato e da regra, utilitarismo ideal, utilitarismo de preferências (‘preferencialismo’), utilitarismo análogo e binário, utilitarismo expectabilista e ‘number-dampened utilitarianism’. Boa parte desses verbetes incluem investigações sobre as vantagens das vertentes utilitaristas comentadas em comparação direta a outras formas de utilitarismo e sistemas morais rivais – o que facilita significativamente a posterior construção de paralelos ainda mais aprofundados por pesquisadores. Além disso, são também consideradas variantes utilitaristas pouquíssimas vezes tratadas na literatura filosófica em pauta. Esse é o caso, por exemplo, do utilitarismo dos motivos, uma proposta esboçada, em meados da década de setenta, pelo filósofo norte-americano Robert Merrihew Adams. Tal teoria, como o seu próprio nome sugere, diz respeito à avaliação dos motivos segundo os quais as pessoas agem e como eles influenciam na determinação das condições da utilidade. Notavelmente, Gwen Bradford, autora do verbete em foco, complementa o seu exame do utilitarismo dos motivos ao abranger como essa perspectiva poderia ser retomada no cenário filosófico atual – o que demonstra, novamente, a quantidade de tópicos dignos de estudo contida nas páginas da enciclopédia.

Embora o grupo de correntes utilitaristas perscrutado na BEU seja bastante amplo, ele ainda assim acaba por não incluir diversos tipos e famílias de utilitarismos. Uma ausência particularmente questionável é a do chamado ‘utilitarismo negativo’. Utilitaristas negativos dão prioridade absoluta à minimização de experiências aversivas em contraposição à costumeira maximização de experiências agradáveis. Tal teoria foi originalmente delineada por Karl Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1945) e duramente criticada por J. J. C. Smart.6 A despeito dos ataques de Smart, a popularidade do utilitarismo negativo e suas variações cresceu consideravelmente no decorrer das duas últimas décadas. Muito disso se deve aos esforços de autores como o filósofo britânico David Pearce que, em seu livro The Hedonistic Imperative (1995), defende uma variedade da teoria a qual toma como propósito central da moralidade a abolição do sofrimento em toda a vida senciente.7 Além de ser retratado nos escritos de Pearce, o utilitarismo negativo tem sido utilizado ao longo dos anos no tratamento de uma multiplicidade de problemas no campo da ética prática e ética populacional. Dado à contínua aplicação do utilitarismo negativo na literatura filosófica atual, a falta de uma nota específica dedicada a essa perspectiva dificilmente poderia ser vista com bons olhos.

Outro ponto nitidamente forte da BEU é a apresentação e problematização dos indivíduos que auxiliaram a moldar a doutrina utilitarista ao longo do tempo. A obra contém mais de cento e trinta entradas dedicadas, como assinalado anteriormente, a defensores, objetores, comentadores, revisores e influenciadores do pensamento e abordagens utilitaristas. Tendo observado isso, é simplesmente impraticável destacar de modo apropriado a grandeza e pluralidade desses verbetes em especial. Como os possíveis leitores da enciclopédia podem imaginar, o tratamento dispensado pela BEU aos principais representantes do utilitarismo é incomparável. Discussões acerca de pensadores clássicos e expoentes iniciais das teses utilitaristas tais como Jeremy Bentham, James Mill, John Stuart Mill, William Paley e Henry Sidgwick se encontram entre as mais aprofundadas e extensas do volume inteiro. O detalhamento de contribuintes historicamente menos prestigiados também é digno de nota. Comentador algum é pequeno demais para ser ignorado por Crimmins. Mesmo John Rickards Mozley – matemático e educador inglês, cuja única contribuição aos estudos utilitaristas foi a publicação de uma breve resenha crítica de Os Métodos da Ética (1874) de Sidgwick – recebeu o seu devido lugar nas páginas da BEU. O impacto das ideias de Platão, Aristóteles, Epicuro, Hobbes, Locke e Kant sobre os valores utilitaristas é igualmente averiguado – o que resulta em uma apreciação histórica ainda mais rigorosa dessas visões na tradição filosófica ocidental.

Embora ocupem um espaço significativamente menor do que as entradas destinadas aos primeiros proponentes e opositores dos fundamentos utilitaristas, as considerações referentes a apologistas e arguidores contemporâneos (i.e., nascidos no século XX em diante) possuem grande relevância e merecem uma reflexão à parte. Os verbetes dedicados a contendedores das propostas utilitaristas são particularmente bons. Dentre esse grupo, evidenciam-se os apontamentos sobre H. L. A. Hart, John Rawls, Bernard Williams, Robert Nozick e Michel Foucault. É apenas quando examinamos o material concernente a utilitaristas contemporâneos que as coisas ficam mais complicadas.

A enciclopédia contém entradas sobre autores esperados, tais como R. M. Hare, Peter Singer, John Harsanyi e Brad Hooker. Porém, uma vez que o número de intelectuais que se identificam com as ideias utilitaristas hoje em dia é assombroso, muitos acabaram ficando fora da obra em pauta. Duas ausências em especial são simplesmente imperdoáveis. A primeira diz respeito a R. G. Frey (1941–2012). Uma figura polêmica no campo da ética aplicada, Frey foi conhecido por suas declarações incendiárias, ataques mordazes à considerabilidade moral dos animais não-humanos e por uma defesa do utilitarismo de preferências.8 A segunda tange ao filósofo sueco Torbjörn Tännsjö. Um escritor prolífico, Tännsjö tem feito importantes contribuições aos debates sobre o utilitarismo hedonista e empregado suas teorias para lidar com uma multiplicidade de temas difíceis da bioética e ética médica.9 Por enquanto, somente podemos esperar que essas e as demais ausências sejam reparadas em edições futuras da BEU.

Aqueles que optarem por consultar a BEU para alcançar uma compreensão mais diversificada do modelo utilitarista, e não apenas do seu impacto geral na literatura filosófica ocidental, não ficarão nem um pouco desapontados. Isso porque o livro é um verdadeiro poço de curiosidades acerca da doutrina estabelecida por Bentham. O volume editado por Crimmins traz, por exemplo, dados pormenorizados acerca da criação do famigerado ‘autoicon’ – o esqueleto de Bentham preservado, anexado a uma cabeça feita de cera e vestido em suas próprias roupas – que atualmente se encontra em uma pequena cabine exposta ao público na University College London. Há também comentários sobre os pensadores e publicações utilitaristas originalmente incluídos no index papal – i.e., a lista de livros proibidos pela Igreja Católica. Em suma, todo o tipo de informação acerca daquilo que Bentham se referia como “a seita dos utilitaristas”.10 É importante frisar, aliás, que todos os verbetes da BEU estão conectados uns aos outros por meio de um vasto índice, sugestões de leitura, bem como referências bibliográficas adicionais. Desse modo, é bastante interessante comparar, por exemplo, a entrada ‘Panopticon’ com a nota sobre Michel Foucault – autor que tomava o panóptico benthamiano como a manifestação última da sociedade de controle.11 Essa organização cuidadosa dos verbetes só vem para fortalecer ainda mais a sensação de estar lidando com uma obra dificilmente superável.

Para concluir, um breve apontamento de ordem monetária. Até muito recentemente, o maior problema da BEU era o seu custo abusivo – algo igualmente criticado por outros resenhistas do livro.12 Os atuais valores da versão em capa dura (‘Hardcover’) da antologia giram em torno de trezentas libras esterlinas (quase 1.300,00 Reais na cotação corrente). Felizmente, em 2017, a tão esperada edição em brochura do manuscrito foi enfim publicada. Esta, por sua vez, conta com um preço muito mais acessível, cerca de GBP45,00 – o equivalente a pouco mais de R$200,00. Uma transação que, muito possivelmente, paga a si mesma. Pois, aqueles que forem financeiramente afortunados para adquirir alguma das versões da BEU não levarão para casa uma mera compilação de verbetes acadêmicos, mas sim a mais completa e competente obra já publicada sobre a doutrina utilitarista desde os tempos de Bentham – o que é seguramente suficiente para estimular e nortear longos anos de pesquisa no campo da filosofia prática.

Notas

1 GUISÁN, E. Utilitarismo, justiça e felicidade. In: PELUSO, Luis Alberto (ed.). Ética & Utilitarismo. Campinas: Editora Alínea, 1998, p. 131.

2 Peter Singer, por exemplo, celebrado pela sua defesa do utilitarismo de preferências durante décadas, recentemente abandonou tal posição em prol de uma versão modificada do utilitarismo hedonista clássico de Henry Sidgwick. Tal mudança é explorada em: LAZARI-RADEK, K.; SINGER, P. The Point of View of the Universe: Sidgwick and Contemporary Ethics. Oxford: Oxford University Press, 2014.

3 Crimmins é especialista no pensamento benthamiano e atualmente ocupa a posição de Professor of Political Theory no Huron University College, University of Western Ontario. Dentre as suas principais publicações, destacam-se: Secular Utilitarianism: Social Science and the Critique of Religion in the Thought of Jeremy Bentham (1990), On Bentham (2004) e Utilitarian Philosophy and Politics: Bentham’s Later Years (2011). Para uma lista detalhada dos escritos de Crimmins, visite: <https://works.bepress.com/james_e_crimmins/>. Acesso em: 04 fev. 2019.

4 CRIMMINS, James E. Preface. In: CRIMMINS, James E. (ed.). The Bloomsbury Encyclopedia of Utilitarianism. London: Bloomsbury Academic, 2013, p. x.

5 O filósofo Harlan B. Miller relata que provavelmente existe mais de uma centena de variantes distintas de perspectivas utilitaristas. Como ele salienta, “o utilitarismo possui muitas formas, o que depende de se o princípio é aplicado a escolhas de fatos ou escolhas de regras, se ‘prazer’ e ‘dor’ são compreendidos em sentido abrangente ou estritamente, se aquilo a ser maximizado é prazer ou satisfação de preferências, quão amplo é o escopo de ‘todos os seres afetados’, se trata-se de consequências atuais ou esperadas, e assim por diante. Utilitarismo em todas as suas formas é uma teoria consequencialista: o que torna um ato correto é as suas consequências.” MILLER, Harlan B. On Utilitarianism and Utilitarian Attitudes. Between the Species, v. 6, n. 3, 1990, p. 128. Traduzido livremente do inglês pelo autor.

6 Para as críticas de Smart, veja: SMART, J. J. C. Negative Utilitarianism. Mind, v. 67, n. 268, p. 542-543, 1958. SMART, J. J. C. An Outline of a System of Utilitarian Ethics. In: SMART, J. J. C.; WILLIAMS, Bernard. Utilitarianism: For & Against. Cambridge: Cambridge University Press, p. 1-74, 1973. 7 Para o manifesto escrito por Pearce, visite: https://www.hedweb.com/hedethic/tabconhi.htm. Acesso em: 04 fev. 2019.

8 O filósofo norte-americano David DeGrazia chega a declarar que Frey é um dos dois mais puros e dominantes utilitaristas contemporâneos no debate acerca do tratamento ético a ser concedido aos demais animais, o outro sendo Singer. DEGRAZIA, D. The Moral Status of Animals and Their Use in Research: A Philosophical Review. Kennedy Institute of Ethics Journal, v. 1, n. 1, 1991, p. 48.

9 Recentemente, Tännsjö esteve envolvido em uma bizarra controvérsia online. O famoso portal de notícias Vox.com decidiu por não publicar um artigo escrito pelo sueco acerca da chamada “conclusão repugnante” – a ideia de que teríamos uma obrigação moral de procriarmos, pois, supostamente, um maior número de humanos implicaria em um aumento no montante de felicidade total – devido aos seus argumentos serem demasiado provocativos. Para maiores detalhes do ocorrido, assim como o texto rejeitado, visite: <https://gawker.com/heres-the-philosophy-essay-vox-found-too-upsetting-to-p-1727243459>. Acesso em: 04 fev. 2019.

10 Certa vez, em conversa com o político britânico William Petty, 1º Marquês de Lansdowne, Bentham comentou sobre um sonho que tivera no qual se via como “um fundador de uma seita; naturalmente, uma personagem de grande santidade e importância. Chamava-se seita dos utilitaristas”. MSS disponível na ‘Bentham Collection’ (University College London, Box 169/79, “Dream”) apud Crimmins, James E. Bentham on Religion: Atheism and Secular Society. Journal of the History of Ideas, v. 47, n. 1, 1986, p. 103. Traduzido livremente do inglês pelo autor.

11 Para uma excelente avaliação sobre o panóptico benthamiano, assim como da oposição foucaultiana a este, veja: GONÇALVES, Davidson Sepini. O Panóptico de Jeremy Bentham: Por uma Leitura Utilitarista. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2008. 12 SCHOFIELD, P. James E. Crimmins, ed., The Bloomsbury Encyclopedia of Utilitarianism. Journal of Bentham Studies, v. 16, n. 1, 2014, p. 3.

Referências

CRIMMINS, James E. Bentham on Religion: Atheism and Secular Society. Journal of the History of Ideas, v. 47, n. 1, p. 95-110, 1986.

CRIMMINS, James E. (ed.). The Bloomsbury Encyclopedia of Utilitarianism. London: Bloomsbury Academic, 2013.

DEGRAZIA, D. The Moral Status of Animals and Their Use in Research: A Philosophical Review. Kennedy Institute of Ethics Journal, v. 1, n. 1, p. 48-70, 1991. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/245599. Acesso em: 04 fev. 2019.

GUISÁN, E. Utilitarismo, Justiça e Felicidade. In: PELUSO, Luis Alberto (ed.). Ética & Utilitarismo. Campinas: Editora Alínea, p. 131-143, 1998.

MILLER, Harlan B. On Utilitarianism and Utilitarian Attitudes. Between the Species, v. 6, n. 3, p. 128-129, 1990. Disponível em: https://digitalcommons.calpoly.edu/bts/vol6/iss3/10/. Acesso em: 04 fev. 2019.

SCHOFIELD, P. James E. Crimmins, ed., The Bloomsbury Encyclopedia of Utilitarianism. Journal of Bentham Studies, v. 16, n. 1, p. 1-3, 2014. Disponível em: https://www.ucl.ac.uk/ucl-press/browse-books/journal-of-bentham-studies. Acesso em: 04 fev. 2019.

Gabriel Garmendia da Trindad– University of Birmingham, United Kingdom. Doutorando em Global Ethics no Centre for the Study of Global Ethics, Department of Philosophy, University of Birmingham. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6770358458457650. E-mail: [email protected]

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O aberto: o homem e o animal – AGAMBEN (SY)

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2 ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Synesis, Petrópolis, v.10, n.2, p.181-187, ago./dez., 2018.

As obras de Giorgio Agamben (1942) vêm ganhando espaço na academia brasileira não só a partir da tradução das mesmas, mas também a partir da publicação de trabalhos, da realização de eventos e da organização de grupos de pesquisa que se propõem a debater as temáticas suscitadas por este autor. Pode-se afirmar, na verdade, que as obras de Agamben estão sendo lidas sob diferentes matizes, tais como o da filosofia, da política, do direito, da economia, da teologia e das ciências da religião. O conteúdo trazido por Agamben permite essas diferentes abordagens porque está intimamente associado à interpretação dos problemas presentes na contemporaneidade. O diferencial das obras de Agamben, no entanto, está na capacidade de realizar uma arqueologia da contemporaneidade, de modo que sua análise não fica somente na superfície do problema: o que lhe interessa, de fato, é buscar o cerne do problema, ou seja, sua intenção está muito mais direcionada à compreensão do próprio problema do que propriamente buscar uma resposta para o mesmo. Essa é uma característica fundamental para se compreender as obras de Agamben de maneira geral, à qual se associam os múltiplos matizes de interpretação: eles se justificam porque os problemas da contemporaneidade estão fundados, basicamente, sob o eixo filosofia, teologia, direito, isto é, sob o pensar (razão), crer (religião) e legislar (lei).

A obra O aberto: o homem e o animal não está cindida dessa dinâmica. Ela está assim estruturada: vinte capítulos, seguidos da bibliografia utilizada pelo autor. O principal objetivo da obra: compreender como é possível distinguir o homem do animal, a humanidade da animalidade. Note-se: seu propósito está muito mais direcionado à compreensão de como é possível afirmar tal distinção do que propor um parâmetro para que ela seja realizada. Nesse sentido, o método arqueológico de investigação permite ao autor um regresso às fontes da distinção. Contudo, o olhar de Agamben não está no passado, mas no contemporâneo: trata-se de uma arqueologia da contemporaneidade. O que isso significa? A princípio: o problema da distinção homem-animal não é algo superado, de modo que buscar compreendê-lo já é um exercício válido para se compreender o homem contemporâneo. Esse é o principal pressuposto de qual parte Agamben: a distinção entre homem e animal não é algo de todo resolvida.

Nesse sentido, a obra pode ser dividida em quatro partes: a primeira abarca o trecho entre os capítulos um e três, a segunda se dá entre os capítulos quatro e onze, a terceira entre o doze e o dezesseis, a quarta entre o dezessete e o vinte. Pode-se dizer, na verdade, que tal reorganização da obra pode ser realizada mediante quatro objetivos específicos propostos por seu autor: 1) expor seu pressuposto principal, a saber, a distinção entre humanidade e animalidade não é algo de todo resolvido; 2) a dificuldade de se afirmar algo como o ser humano; 3) investigar como é possível distinguir o homem do animal; 4) mostrar de maneira crítica os desdobramentos da afirmação da distinção entre homem e animal.

Interessa ainda perceber que as quatro partes possuem interlocutores diferentes: a primeira está em interlocução com uma iluminura presente em uma Bíblia hebraica do século XIII, na qual se “representa o banquete messiânico dos justos no último dia” (AGAMBEN, 2017, p. 10)1. A segunda parte está em interlocução com a possibilidade de distinguir o homem do animal: aqui se percebe com maior nitidez o uso do método arqueológico. Nessa segunda parte ainda se vê que, pelo fato de a discussão de Agamben estar direcionada à dificuldade de se fixar uma definição, há uma interlocução com vários autores, dos quais se destaca a figura de Aristóteles. A terceira parte se põe em interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual Agamben foi aluno em 1966 e 1968, nos seminários sobre Heráclito e Hegel. A interlocução com Heidegger se dá a partir da problemática da linguagem. Ela é trazida por Agamben ao final da segunda parte da obra como o ponto nevrálgico da distinção entre o homem e o animal. A quarta parte se inicia com o levantamento de alguns resultados da obra e conclui apontando para o fato de ainda se continuar pensando o homem como um ato de separação.

Atenta-se aqui para o fato de que essa divisão em quatro partes é assumida por essa resenha como uma chave de leitura para a obra O aberto: o homem e o animal. Abaixo, então, seguem alguns apontamentos a respeito dessas quatro partes, mostrando suas principais abordagens e como elas estão interligadas, perfazendo, assim, a obra como um todo.

Como dito acima, o principal objetivo da primeira parte da obra é apresentar a discussão a respeito da cisão entre animalidade e humanidade como um ponto nada pacífico. À interlocução com a iluminura do século XIII se soma a pergunta: como pensar o problema da cisão humanidade-animalidade nos dias atuais? A iluminura destacada pelo autor traz animais em formas humanas como sendo os justos que participam do banquete messiânico. A hipótese levantada por Agamben a partir disso: o artista tenta retratar uma reconciliação entre o homem e sua natureza animal (AGAMBEN, 2017, p. 12). Aqui se realiza um salto: Agamben traz, mesmo que brevemente, as figuras de Georges Bataille (1897-1962) e Alexander Kojève (1902-1968), mostrando diferentes modos de compreender (e, talvez, responder) a questão sobre o que resta do homem após o fim da história. O que é e como se dá o fim da história, porém, não é algo com o qual Agamben se ocupa aqui. Na verdade, o leitor não irá encontrar nada explícito a respeito disso; há somente indicações indiretas, tal como se pode ver mais adiante no capítulo dezesseis – Animalização (AGAMBEN, 2017, p. 119-122).

Note-se: a primeira parte da obra não busca esclarecer a cisão entre homem e animal, mas mostrar que, enquanto problemática, ela ainda é vigente. Dessa maneira, a primeira afirmação a respeito do homem é que ele existe de maneira histórica somente enquanto mantém essa tensão entre a humanidade que pretende afirmar e a animalidade que pretende negar. Leia-se: “ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2017, p. 24). Aqui se dá a passagem da primeira para a segunda parte da obra. Ela acontece quando se nota nas entrelinhas do texto a presença de uma pergunta: o que torna possível a afirmação da humanidade mediante a negação da animalidade?

A segunda parte do texto se inicia com uma constatação fundamental: o conceito de “vida” é aquilo que permanece como indeterminado na história do Ocidente, devendo, pois, ser sempre de novo articulado. Agamben destaca o texto De anima de Aristóteles como um momento decisivo: nele acontece a divisão entre os seres animados e inanimados. A partir de tal divisão se fazem outras: vida vegetal, animal, humana. O que é “vida”, porém, permanece sem definição. Define-se a vida humana mediante a divisão. Aí está o interesse de Agamben: pensar a afirmação do humano a partir da divisão, isto é, da separação com o animal. Pensar a separação permite, pois, pensar também a proximidade. Nesse sentido, se a noção de “vida” deve ser constantemente conquistada –definida sempre de novo, na verdade –, então, a arqueologia como método coincide com uma antropogênese. Em outras palavras: fazer uma arqueologia da vida é compreender o advento do homem se afirmando humano, logo, negando a animalidade. A arqueologia da vida é antropogênese.

Os capítulos cinco e seis se propõem a discutir a noção de identidade a partir de tratados medievais: há aí nas entrelinhas a tentativa de mostrar que a decisão a respeito do humano e do inumano – palavra que aparece pela primeira vez no texto – se aproxima, e muito, do conhecimento experimental de um campo de concentração. Esse ponto é decisivo para que no interior da segunda parte da obra apareça a dificuldade de uma classificação do que é o homem: “Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2017, p. 48). O que é o humano, então? É um animal que, para ser humano, precisa se reconhecer em um não-humano. A pergunta ganha nova forma: o que distingue o humano do não-humano? A linguagem. Ela é a marca do humano (AGAMBEN, 2017, p. 55-63).

Decisivo, no entanto, é o modo como Agamben compreende a linguagem: não um dado natural, mas uma produção histórica. A linguagem, portanto, não pode ser associada nem à natureza animal, nem à natureza humana, dado que é uma construção. Suspender a linguagem significa, pois, suspender a diferença entre homem e animal. Pensar um homem pré-linguístico é pensar o animal, ou seja, a afirmação do humano implica em ter o próprio humano mesmo como pressuposto. Essa “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2017, p. 61) funciona necessariamente por meio de uma inclusão e exclusão. A distinção entre humano e animal possui uma “zona de indiferença”. A segunda parte da obra caminha para seu fechamento afirmando que o animal é aquele que consegue sobreviver em um mundo ambiente (Umwelt), mas não se decide por ele.

O humano, assim, é aquele capaz da decisão, sempre rearticulada e atualizada. Aqui se faz a passagem para a terceira parte da obra, na qual o principal interlocutor será Heidegger. De antemão se adverte: Agamben não faz comentários à filosofia de Heidegger. Trata-se, na verdade, de perceber que Agamben está desenvolvendo sua obra de maneira autônoma, permitindo-se encontrar com Heidegger. A partir disso, pode-se dizer que há diálogo, confronto, tessitura de críticas, concordâncias e discordâncias. Querer encontrar em O aberto: o homem e o animalum comentário a Heidegger é reduzir a amplitude e a originalidade da obra.

Interessa ainda perceber o seguinte a respeito dessa terceira parte: o encontro com Heidegger se dá n]ao só a partir da noção de linguagem como uma construção histórica, mas também a partir da noção de tédio como uma disposição afetiva (Stimmung) própria do homem. Dessa maneira, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão – preleções ministradas por Heidegger em 1929-1930 – é a principal obra do filósofo alemão mencionada, sendo decisiva para Agamben porque a partir dela o autor pode afirmar, de fato, que o aberto diferencia homem e animal: “o aberto nomeia o desvelamento do ente, somente o homem, e mais, apenas o olhar essencial do pensamento autêntico, o pode ver” (AGAMBEN, 2017, p. 92). E mais adiante: “o lugar dessa operação é o tédio” (AGAMBEN, 2017, p. 99).

O capítulo catorze – Tédio profundo – permite perceber que Agamben dá especial atenção à esfera da decisão, justamente porque nela está implicada a possibilidade. Disso se pode concluir que o aberto é o local da possibilidade. A possibilidade de escolha é o que diferencia homem e animal. Ter a possibilidade de escolha é estar no aberto. Estar aberto a quê, porém? A um fechamento, pois o animal não está no aberto: “aquele que observa no aberto vê apenas um fechar-se, apenas um não-ver” (AGAMBEN, 2017, p. 109). Essa abertura a um fechamento mostra, de acordo com Agamben, a luta entre o homem e o animal. Dessa maneira, estar no aberto não significa ser na condição humana de maneira decisiva: estar no aberto é ter a possibilidade da decisão.

Agamben pretende mostrar, assim, que algo como o humano só pode advir na medida em que pode ser escolhido. Erradicar a animalidade é, pois, um fechar-se ao fechamento. O mesmo vale para a tentativa de uma humanização integral do animal que é o homem. A tensão entre animal e homem precisa ser mantida para que o aberto seja, de fato, o lócus do humano. A partir desse ponto a obra caminha para seu fechamento.

O capítulo dezessete inicia a quarta parte da obra fazendo um levantamento de alguns resultados até aqui alcançados. Percebe-se que esses resultados estão aí postos muito a partir da interlocução com Heidegger, o que leva a concluir que o filósofo alemão é uma peça decisiva para se compreender a obra O aberto: o homem e o animal como um todo. O capítulo dezoito – Entre – entra numa breve interlocução com Walter Benjamin (1892-1940) e está intimamente associado ao capítulo subsequente, no qual Agamben traz a imagem de duas pinturas –Ninfa e pastor e As três idades–para discutir, também de modo breve, a sexualidade. O último capítulo aponta que deixar ser o animal significa deixá-lo ser fora do ser, ou seja, deixar ser o animal significa estar em uma zona de não-conhecimento, que, por sua vez, “está para além tanto do conhecer quanto do não-conhecer […]. Mas aquilo que é deixado, assim, ser fora do ser não é, por isto, negado ou removido, não é, por isto, inexistente. É um existente, um real, que está para além da diferença entre ser e ente” (AGAMBEN, 2017, p. 743). Agamben retorna, ao fim, à iluminura com a qual se iniciou a obra: ela talvez aponte para a superação da máquina antropológica.

Afirma-se, então: a divisão aqui apresentada da obra O aberto: o homem e o animal em quatro partes pretende ser justamente uma chave de leitura, uma vez que, como se percebe pela leitura da obra, é difícil querer lê-la a partir de outro ponto específico que não o seu início. A divisão aqui apresentada não pretende tornar a obra mais “fácil” de se compreender, mas tão somente situar o leitor que se sinta mais próximo de algum capítulo específico. Por fim, recomenda-se a leitura dessa obra, pois somente assim o leitor irá se deparar com a profundidade da discussão trazida por Agamben, bem como irá perceber porque este pensador italiano suscita discussões em diferentes áreas. As obras de Agamben trazem, de fato, uma riqueza epistemológica que também pode ser percebida em O aberto: o homem e o animal seja respeito ao método de investigação, seja respeito ao conteúdo aí abordado. Além disso, O aberto: o homem e o animal pode servir como porta de entrada para a leitura e investigação das demais obras desse autor que vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas brasileiras.

Nota

1 A presente edição revista da tradução brasileira traz a iluminura destacada por Agamben no verso da capa. A iluminura foi impressa em cores, o que facilita ao leitor perceber algumas características destacadas por Agamben em seu texto.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2ª ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. 162p.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8472704203242937. E-mail: [email protected]

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Variations on embodied cognition – GALLAGHER (SY)

GALLAGHER, Shaun. Variations on embodied cognition (p. 26-47). In: GALLAGHER, S. Enactivist interventions: rethinking the mind. New York/Oxford: Oxford University Press, 2017. Resenha de:  MEURER, César Fernando. Embodied cognition: quatro variações teóricas. Synesis, Petrópolis, v.10, n.1, p.214-221, jan./jul., 2018.

Shaun Gallagher, professor no departamento de filosofia da Universidade de Memphis, no Tennessee (USA), recentemente publicou um volume com nove capítulos em torno do enativismo (Gallagher, 2017). A presente resenha, que tem um caráter de divulgação, foca o capítulo dois. Nele encontramos uma visão panorâmica muito interessante do paradigma da embodied cognition [doravante EC].

Gallagher inicia o capítulo constatando que “uma variedade de abordagens no estudo da cognição têm sido estreitamente associadas à noção de embodiment […] Dadas essas diferentes perspectivas, não há um consenso forte acerca de qual peso dar a esse conceito” (p. 26).1 Por conta disso, ele prossegue, é importante mapear os vários sentidos de EC, “começando com uma concepção mínima ou fraca, que equipara embodiment com representação do corpo no cérebro, e terminando com uma concepção de embodimentradical” (p. 27). O resultado é um quadro composto por quatro posições teóricas: EC mínima, EC funcionalista, EC biológica e EC enativista. Para caracterizar essas posições, Gallagher serve-se de questões originalmente propostas por Goldman e Vignemont (2009, p. 158).

A Fig. 1 é uma versão ampliada da tabela “Diferentes teorias da embodied cognition” (Gallagher, 2017, p. 43). As duas últimas linhas são acréscimo meu (autor da resenha):

  1. A EC mínima [Weak EC]

Com o intuito de entender o lugar e o papel do corpo humano na cognição, Goldman e Vignemont (2009) lançaram mão da noção de representações em formato B [B-formatted representations], sugerindo que esse é um conceito central para levar adiante o programa da EC. Trata-se fundamentalmente, Goldman explicaria em publicação posterior (2012, p. 73), de “representar estados do próprio corpo e, de fato, representá-los desde uma perspectiva interna”. Por isso, formato B (do inglês Body). Com efeito, um leque amplo de estados corporais – condições fisiológicas tais como dor, temperatura, coceiras, sensações musculares e viscerais, batimentos cardíacos, respiração, sede, fome etc. –, bem como estados de humor, sentimentos e estados interoceptivos podem, em tese, ser representados nesse sentido.

A primeira ideia central da EC mínima é que as representações B são mentais ou, se preferir, internas ao cérebro. Segundo Goldman (2014, p. 104), isso não implica qualquer concessão ao ceticismo, uma vez que o conteúdo dessas representações requer, ele argumenta, que o cérebro esteja em uma conexão causal com o corpo.

Para os proponentes da EC mínima, representações em formato B estão na base de múltiplos processos cognitivos, incluindo a cognição social e processos cognitivos superiores. O raciocínio que leva a essa conclusão pode ser esquematizado assim: (1) Originalmente, essas representações diziam respeito ao próprio corpo; (2) Na natureza, vigora o princípio da reutilização, isto é, “circuitos neurais originalmente estabelecidos para um uso podem ser reutilizados ou redistribuídos para outros fins, mantendo sua função original” (Gallagher, 2017, p. 31); (3) A capacidade de produzir representações em formato B foi cooptada para representar outras coisas. Tais representações adicionais ou derivadas “também contam como embodied cognitions” (Goldman 2012, 74). Gallagher (p. 32) considera questionável esse raciocínio de reutilização: ele envolve o conceito evolucionário de exaptação, que funciona para explicar processos em uma escala evolucionária, mas não para explicar mudanças ontogenéticas.

Para Gallagher, a EC mínima deixa a desejar em vários aspectos: “ela defende uma visão internalista que não é inconsistente com a concepção de cognição de um cérebro sem corpo em uma cuba” (p. 34); e a redução do corpo a um conjunto de representações é em nada inconsistente com o modelo computacional clássico (p. 34).

  1. A EC funcionalista [Functionalist EC]

Gallagher inicia a descrição dessa posição com um comentário provocativo: por um lado, “a noção de um funcionalismo incorporado é trivial, uma vez que sistemas funcionalistas precisam ser fisicamente incorporados”; por outro lado, a ideia resulta ser “levemente contraditória, já que o funcionalismo se caracteriza por certa indiferença em relação à fisicalidade que sustenta o sistema (neutralidade em relação ao corpo; capacidade de realização múltipla)” (p. 35). Não obstante, a ideia de uma EC funcionalista ganha importância no âmbito das discussões da hipótese da mente estendida.

Clark é o principal proponente da EC funcionalista, segundo a qual “o corpo tem um papel importante como parte dos mecanismos estendidos da cognição” (p. 35). A ideia pode ser parafraseada assim: a cognição humana serve-se de estruturas neuronais e de estruturas não-neuronais. Assim, “o corpo físico, bem como aspectos e objetos no ambiente, podem funcionar como veículos não-neurais para processos cognitivos, desempenhando uma função semelhante aos processos dos neurônios, os principais veículos de cognição na visão clássica. O corpo é parte de um sistema cognitivo alargado que começa com o cérebro e inclui corpo e meio ambiente” (p. 35).

Para a EC funcionalista, as peculiaridades sensório-motoras do corpo humano não são componentes essenciais para a cognição. Em tese, animais de outras espécies (i.e., outras contingências sensoriais e motoras) podem experimentar aspectos do ambiente da mesma maneira que os humanos.

  1. A EC biológica [Biological EC]

Essa posição ganha o adjetivo ‘biológica’ em virtude da importância que atribui à anatomia e aos movimentos corporais. Embodiment biológico significa que “as características estruturais extra-neurais do corpo moldam [shape] a nossa experiência cognitiva” (p. 37). Nas palavras de Shapiro (2004, p. 190), “a questão não é simplesmente [ou trivialmente] que processos perceptivos se moldam à estrutura corporal. Processos perceptivos dependem e incluem estruturas corporais”.

Na apresentação da EC biológica, Gallagher dedica vários parágrafos à revisão de literatura que mostra que as características estruturais do nosso corpo são determinantes para a nossa cognição. Cabe destacar i) o fato de termos dois olhos, em determinada posição, permite visão em profundidade; ii) a posição e estrutura dos nossos ouvidos externos permite, por exemplo, identificar a direção de sons; iii) fazemos diversos ajustes proprioceptivos em situações nas quais há conflitos perceptivos; iv) alteração da postura leva a alterações na percepção do espaço e a mudanças relativas às noções de horizontal e vertical, v) mudanças hormonais – questões da regulação química do corpo – influenciam diversos processos perceptivos, a memória, a atenção, e a tomada de decisões, iv) corpo cansado ou faminto influencia os processos cognitivos, vi) hipoglicemia modula o cérebro, ocasionando em certos casos o “desligamento” de certas funções cerebrais.

Segundo a EC biológica, nosso cérebro “leva em consideração as contribuições dos processos físicos em sistemas periféricos e autônomos” (p. 39). Essa é uma resposta interessante à hipótese do cérebro em uma cuba. Em síntese: sem as contribuições de sistemas periféricos autônomos (i.e., sem um corpo, com todas as suas contingências), um cérebro em uma cuba jamais pode ter experiências e processos cognitivos similares aos humanos. “Para replicar a experiência humana, ou algo similar a ela [em uma cuba], precisaria replicar tudo o que o corpo biológico entrega em termos de pré e pós-processamento, bem como a química hormonal e neurotransmissora e a vida afetiva” (p. 39-40). Em termos mais gerais, não é tão simples compatibilizar a EC biológica com o computacionalismo clássico.

  1. A EC enativista [Enactivist EC]

Ao enfatizar “a ideia de que a percepção é para a ação, e que essa orientação para a ação molda a maioria dos processos cognitivos” (p. 40), a EC enativista resulta ser a mais radical das quatro posições. Em termos simples, essa posição considera que a cognição humana não está inteiramente “dentro da cabeça”, mas encontra-se distribuída entre cérebro, corpo e ambiente. Por conta disso, entende-se que i) a teoria dos sistemas dinâmicos não-lineares é apropriada para compreender essa complexa interação; ii) as tradicionais noções de representação e computação são inadequadas; iii) a decomposição da cognição em subsistemas internos (módulos) é enganosa e pode ser substituída com vantagem pela ideia de sistemas dinâmicos acoplados uns aos outros.

Para a EC enativista, o cérebro ele mesmo é um sistema dinâmico. Ele faz o que faz por estar acoplado a outro sistema dinâmico, o corpo. Este, por sua vez, também é um sistema dinâmico e faz o que faz por estar acoplado ao cérebro, por um lado, e ao ambiente, por outro lado. No final das contas, tem-se um sistema dinâmico maior que abrange cérebro, corpo e ambiente. Com outras palavras: para compreender o cérebro, é preciso considerar as interações dinâmicas deste com o corpo e com o ambiente.

Sob esse prisma, tanto “os aspectos biológicos da vida corporal, incluindo a regulação orgânica e emocional de todo o corpo” quanto “os processos de acoplamento sensório-motor entre o organismo e o ambiente” têm um “efeito penetrante na cognição” (p. 41). Outro modo de dizê-lo (tentativa minha, autor da resenha): um sistema dinâmico é um sistema de relações causais recíprocas múltiplas entre corpo, cérebro e ambiente. É cientificamente possível delimitar o foco, isto é, dedicar-se ao exame de algumas dessas relações. No entanto, tal estudo não pode ser feito de modo cartesiano, visto que as relações em exame repercutem de modo não-linear um complexo conjunto de outras relações.

Para a EC enativista, já mencionei na abertura da presente seção, a percepção é orientada para a ação. À luz dos trabalhos de Alva Noë (2004), a percepção é uma atividade pragmática e exploratória. Trata-se de uma orientação pragmática não apenas para o ambiente físico, mas também para o ambiente social e cultural (Gallagher, 2017, p. 42).

  1. Considerações finais

A visão panorâmica de Gallagher é interessante por diversos motivos. Primeiro, ela mostra que é falsa (ou ao menos imprecisa) a ideia segundo a qual a EC é antirrepresentacionalista. De fato, três versões da EC admitem representações mentais. Segundo, é falso o entendimento de que a EC é incompatível com o computacionalismo clássico. Como vimos, apenas a EC enativista é oposta ao computacionalismo. Terceiro, o quadro panorâmico é útil para situar debates internos à EC, como por exemplo as disputas entre funcionalistas e enativistas.

Concluo sugerindo uma estratégia de leitura: leia o capítulo 2, aqui resenhado, e em seguida passe para qualquer um dos demais capítulos, conforme o seu interesse. O capítulo 3 posiciona a EC funcionalista e a EC enativista em relação ao pragmatismo. O capítulo 4 apresenta uma discussão aprofundada do conceito de intencionalidade, tanto à luz do enativismo, como também do behaviorismo e do neopragmatismo. O capítulo 5 examina criticamente o nexo da ação com representações mentais. O capítulo 6 trata de modelos inferenciais no âmbito da filosofia da percepção. O capítulo 7 examina o conceito de livre-arbítrio, tal como ele aparece na filosofia e nas neurociências do nosso tempo. O capítulo 8 tece considerações enativistas sobre estados de humor [moods], sentimentos e intersubjetividade. O capítulo 9 versa sobre possíveis explanações enativistas de processos cognitivos superiores, isto é, processos que envolvem memória, imaginação, reflexão e abstração.

Nota

1 A tradução dessa e de todas as demais citações diretas é minha (tradução livre).

Referências

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CLARK, A. Pressing the flesh: a tension on the study of the embodied, embedded mind. Philosophy and Phenomenological Research, v. 76, n. 1, p. 37-59, 2008. (2008b) https://doi.org/10.1111/j.1933-1592.2007.00114.x

DAMASIO, A. Descartes’ error: emotion, reason, and the human brain. New York: Putnam Publishing, 1994.

GALLAGHER, S. How the body shapes the mind. New York; Oxford: Oxford University Press, 2005. (2005a) https://doi.org/10.1093/0199271941.001.0001

GALLAGHER, S. Metzinger’s matrix: living the virtual life with a real body. Psyche, v. 11, n. 5, p. 01-09, 2005. (2005b) http://journalpsyche.org/files/0xaadb.pdf

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GOLDMAN, A.; VIGNEMONT, F. Is social cognition embodied? Trends in Cognitive Sciences, v. 13, n. 4, 154-159, 2009. https://doi.org/10.1016/j.tics.2009.01.007

GOLDMAN, A moderate approach to embodied cognitive science. Review of Philosophy and Psychology, v. 3, n. 1, p. 71-88, 2012. https://doi.org/10.1007/s13164-012-0089-0

GOLDMAN, A. The bodily formats approach to embodied cognition. In: KRIEGEL, U. (Ed.) Current controversies in philosophy of mind. New York; London: Routledge, 2014. p. 91-108.

HUTTO, D.; MYIN, E., Radicalizing enactivism: basic minds without content. Cambridge, MA: MIT Press, 2013. https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262018548.001.0001

HUTTO, D.; MYIN, E. Evolving enactivism: basic minds meet content. Cambridge, MA: The MIT Press, 2017. https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262036115.001.0001

SHAPIRO, L. The mind incarnate. Cambridge, MA: MIT Press, 2004. https://mitpress.mit.edu/books/mind-incarnate

César Fernando Meurer – Universidade Federal de Uberlândia, Brasil. Doutor em Filosofia. Postdoctoral Visiting Scholar no Departamento de Filosofia da Università Degli Studi di Milano, Milão, Itália (2017-2018). Pós-doutorando no Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1092880964040421. E-mail: [email protected]

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A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente – YOUNG (SY)

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, 3ª reimpressão, 2015. Resenha de:  CORDAZZO, Karine; PREUSSLE, Gustavo. Synesis, Petrópolis, v.9, n.2, p.112-124, ago./dez., 2017.

Jock Young, sociólogo e criminologista, aborda na obra “Sociedade excludente: Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente”, primordialmente os aspectos fundantes da transição da sociedade inclusiva para a sociedade excludente.

A sociedade inclusiva remonta ao período dos “anos dourados” na Europa, e na América do Norte do pós-guerra. Tratava-se de um mundo de pleno emprego, incorporação gradual da classe trabalhadora, entrada mais plena das mulheres na vida pública e no mercado de trabalho, bem como à tentativa dos Estados Unidos em criar uma igualdade para os afro-americanos.

Nesta sociedade inclusiva, o trabalho e a família eram os pilares centrais, encaixando-se como num sonho funcionalista. Em parte alguma desenvolveu-se uma sociedade tão inclusiva, cingindo o cidadão do berço ao túmulo, insistindo na cidadania social plena. (YOUNG, 2002, p. 21)

No tocante à criminalização, a sociedade inclusiva não excluía o “outro”, não o catalogava como um inimigo, mas o enxergava como alguém que devesse ser reabilitado, socializado, curado até ficar como “nós” (YONG, 2002, p. 21). Em verdade, na visão modernista, o outro aquele a quem faltava os atributos do observador.

Entretanto, o sonho de uma sociedade inclusiva e tradicional da família e da comunidade começou a desmoronar. Ao longo dos anos 1980 e 1990, no bojo daquela sociedade utópica, figurou um período de extremo declínio, culminando em um processo de exclusão social. Notadamente, trata-se da transição da modernidade para a modernidade recente, ou seja, a transição de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente.

Segundo Young, alguns fatores contribuíram para que esta exclusão fosse implementada, como por exemplo, a economia de mercado, que trouxe um salto qualitativo nos níveis de exclusão. O downsizing da economia acarretou a redução do mercado de trabalho primário, expansão do mercado de trabalho secundário e a criação de uma subclasse de desempregados estruturais. (YOUNG, 2002, p. 24)

O trabalho seguro e qualificado foi reduzido, dando lugar à força de trabalho terceirizada, mediante contratos curtos, sem qualquer estabilidade ou vínculo empregatício. O grande efeito deste processo de exclusão, foi, inevitavelmente, gerar um sentimento de precariedade em todos os trabalhadores.

Essas frustrações, afirma o autor, conscientemente são expressas sob forma de privação relativa. Trata-se da frustração daqueles a quem a igualdade no mercado de trabalho foi recusada face àqueles com mérito e dedicação iguais. Eis aqui o paradoxo do novo individualismo para Young. A insatisfação face à situação social pode dar lugar a uma variedade de respostas políticas, religiosas e culturais e, frequentemente, fechar e restringir as possibilidades criando respostas criminais. (YOUNG, p. 30)

Nesse contexto, o aumento da criminalidade é evidenciado, afinal a criminalidade emerge da inflamável combinação de privação relativa e individualismo. Ocorre que este aumento rápido da taxa de criminalidade refletiu nas transformações dos comportamentos e atitudes públicos no desenvolvimento do aparato de controle do crime e da criminologia, alimentou o medo público do crime e gerou padrões elaborados de comportamento de evitação. E, consequentemente, resultou num aumento da população encarcerada.

Young expõe alguns dados. Nos Estados Unidos, por exemplo, os presos constituem uma população excluída significativa, cerca de 1,6 milhões de pessoas estão presas – uma cidade do tamanho de Filadélfia, se fossem todas reunidas no mesmo lugar –. Além disso, 5,1 milhões de pessoas estão em regime de supervisão correcional (prisão, condicional ou sursis), um em cada 37 adultos da população adulta residente. Young compara dramaticamente a situação prisional norte americana com o gulag1, em que este gulag americano seria agora do mesmo tamanho do gulag russo, e ambos contrastariam com a situação da Europa Ocidental, em que a população carcerária total seria de 200 mil pessoas.

Após estas reflexões iniciais, Young indaga aos seus leitores a respeito da existência de uma possível distopia de exclusão, onde as divisões e desigualdades ocorreriam não apenas entre nações, mas no interior das próprias nações.

A modernidade recente, ou sociedade excludente, pode ser identificada através de um núcleo, de um cordão sanitário e pelas pessoas que estão de fora.

O núcleo corresponde aos que pertencem ao mercado de trabalho primário, aqueles que trabalham em tempo integral, com estruturas de carreiras seguras e sólidas. Aqui é o reino da meritocracia. No entanto, trata-se de um núcleo que encolhe sem parar. A parte que mais cresce do mercado de trabalho é a do mercado secundário, em que a segurança no emprego é muito menor, em que as estruturas de carreira estão ausentes e a vida é experimentada como precária. (YOUNG, 2002, p. 40)

Também é possível visualizar o chamado cordão sanitário, uma fronteira criada entre o grupo nuclear e os que estão fora deste grupo, através de uma série de medidas, pelo planejamento urbano e, principalmente, pelo dinheiro. Já os que estão fora, são grupos que viram bodes expiatórios para os problemas da sociedade mais ampla. Eles são a subclasse, onde todos os problemas da sociedade lhes são imputados.

Neste contexto, é destacado pelo autor a dualidade do Sonho Americano e do Sonho Europeu. Para Young, é evidente a natureza excludente do Sonho Americano, onde a noção de cidadania enfatiza fortemente a ideia de igualdade legal e política, e muito menos a de igualdade social. Em verdade, o foco está sobre os bens sucedidos. Por outro lado, no sonho Europeu há uma menção à igualdade social, aos direitos de inclusão.

Em que pese a suposta utopia de alcançar o Sonho Americano ou o Sonho Europeu, Young demonstra que o cordão sanitário, que busca diferenciar, afastar e excluir os segmentos mais vulneráveis da população, tem conseguido cada vez menos proteger separar o cidadão “honesto” contra o crime e a desordem em ambas visões. Afinal, a noção de que o criminoso é um inimigo externo está fundamentalmente equivocada. Privação relativa e individualismo ocorrem através de toda a estrutura social e em todos os lugares, a existência de crimes de colarinho branco disseminados e de crimes entre membros “respeitáveis” das classes trabalhadoras mal nos permitem separar os criminosos dos não criminosos. (YOUNG, 2002, p. 45-46)

Para o autor, há relação inequívoca entre as mudanças na criminalidade e desordem com as mudanças na base material. A solução estaria na criação e implementação de políticas que partam da margem e vão tão longe quanto seja aceitável em vez de políticas que partam do centro e vão tão longe quanto seja caridoso.

Encerrando o primeiro capítulo, Young é enfático, a nostalgia social-democrata do mundo inclusivo dos anos 1950, com pleno emprego masculino, família nuclear e comunidade orgânica, é um sonho impossível. (YOUNG, 2002, p. 50)

No segundo capítulo, Young explicita como ocorreu a transformação nos últimos vinte anos no âmbito do crime, do controle da criminalidade e da própria criminologia. Para o autor, existe uma relação linear entre a crise da criminologia com a crise da modernidade. As velhas certezas sobre a natureza óbvia do crime e o papel central do sistema de justiça criminal em seu controle já não são tão obvias assim.

Young aborda cinco fatores, que em sua visão, contribuíram para que a modernidade fosse repensada.

O primeiro fator refere-se ao rápido crescimento das taxas de criminalidade, sustentado no positivismo social de que o crime seria causado por más condições sociais e que foi claramente contradito, afinal, a criminalidade aumentou à medida que o Ocidente enriqueceu.

O segundo fator remonta à existência de uma cifra oculta de crimes não notificados. Com efeito, a taxa de criminalidade seria pelo menos três vezes maior do que os números oficiais apresentam. Esta distinção entre crimes visíveis e crimes invisíveis quase vira de cabeça para baixo o paradigma modernista. Pois sugere que a imagem da criminalidade apresentada nas cifras oficiais seja fundamentalmente defeituosa (YOUNG, 2002, p. 66).

Sob a ótica da problematização do crime – terceiro fator –, Young demonstra como é construída a noção de crime. Em verdade, a quantidade de crime, o tipo de pessoa e de infração selecionados para serem criminalizados, e as categorias usadas para descrever e explicar o desviante são construções sociais, que podem variar de acordo com o tempo e espaço, ou seja, emergem da pura discricionariedade e conveniência do homem em um dado momento histórico. (YOUNG, 2002, p. 67)

Quanto ao quarto fator – que notadamente culminou na desintegração da modernidade –, diz respeito à universalidade do crime e a seletividade da justiça. Tradicionalmente a criminologia vê a criminalidade como se estivesse concentrada na parte mais baixa da estrutura de classes e como se fosse maior entre adolescentes do sexo masculino. No entanto, os crimes de colarinho branco desiquilibraram esta ortodoxia. A seletividade da justiça criminal, por seu turno, ocasiona toda uma série de ações espetaculares de discriminação e preconceito gerando um descontentamento público disseminado quanto à imparcialidade do sistema de justiça criminal.

Isso nos leva à problematização da punição e da culpabilidade – quinto e último fator –. À medida que aumentam os crimes, problemas por trás do processo de criminalização devem ser analisados, como por exemplo, como operar um sistema punitivo com recursos limitados em termos de detecção e isolamento. A reação à isto, como em qualquer outra burocracia, é tentar pegar atalhos. Consequentemente, a polícia deixou de suspeitar de indivíduos e passou a suspeitar de categorias sociais. (YOUNG, 2002, p. 74)

Corrupção, transação penal e seletividade sobre o infrator refletem na problematização da justiça. A justiça que o suposto infrator recebe torna-se resultado, não de uma culpa individual e uma punição proporcional, mas de um processo negociado, resultante de pressões políticas ou burocráticas, e não de obediência a padrões absolutos. (YOUNG, 2002, p. 75)

A partir destas análises Young volta à noção de privação relativa, que surge do fato das pessoas compararem-se umas às outras.  Para o autor, quando os diferenciais se aproximam, as diferenças se tornam ainda mais evidentes. A privação relativa não desapareceu com o crescimento da riqueza, não melhorou com o avanço disseminado da cidadania – ao contrário, foi exacerbada. Mas a privação relativa não explica sozinha o aumento da criminalidade e da desordem a partir dos anos 1960. Ela origina um mal-estar que pode se manifestar de muitas maneiras, e o crime é somente uma delas. (YOUNG, 2002, p. 80)

Há um pensamento predominante, compartilhado pela esquerda e pela direita do espectro político, de que o último terço do século XX foi um período de declínio. No entanto, este declínio nada mais é do que o reflexo do triunfo do mercado.

Young alerta que a sociedade de mercado engendra uma cultura de individualismo que mina as relações e os valores necessários a uma ordem social estável, fazendo aumentar, consequentemente a criminalidade e desordem.

O sistema capitalista exige ordem política e estabilidade econômica, mas a criminalidade não representa grande ameaça, para o autor, sem dúvida alguma, a criminalidade representa uma consequência inevitável de um sistema de mercado livre bem-sucedido.

Superado o segundo capítulo, o autor traz à tona as categorias de inclusão e exclusão elaboradas por Claude Lévi-Strauss. Para Lévi-Strauss, as sociedades primitivas engolem os desviantes e adquirem sua força de trabalho – são antropofágicos –, ao passo que as sociedades modernas – antropoêmicas –, lidam com desviantes vomitando-os, conservando-os fora da sociedade ou inserindo-os em espaços determinados, mantendo-os sob constante supervisão.

Neste contexto, surgem dois termos muito utilizados por Young em toda obra, a dificuldade e a diferença. A combinação do aumento da dificuldade (crime, desordem e incivilidades) com o aumento da diferença (diversidade) resulta em uma mudança qualitativa na sociedade, como também numa mudança no sistema de controle, particularmente pelo crescimento de um sistema atuarial de justiça.

Destarte, haveria um declínio a longo prazo na tolerância, afinal, as sociedades modernas recentes consomem diversidade, elas não recuam diante da diferença, elas reciclam e a vendem no supermercado, o que estão menos inclinadas a suportar é a dificuldade (crime).

Em sentido diametralmente oposto, na modernidade, a ênfase era antropofágica. Criminosos eram reabilitados, viciados em drogas eram tratados, imigrantes assimilados, adolescentes eram ajustados e famílias disfuncionais recebiam aconselhamento para voltarem à normalidade. A modernidade não tinha medo do indivíduo difícil, não era a dificuldade que ameaçava a modernidade, era a diversidade. Sua tarefa foi transformar a diversidade em desvio (YOUNG, 2002, p. 98), ou seja, transformar o diferente em criminoso.

O mundo excludente da modernidade recente começa a mudar tudo isto. A diferença adquire valor supremo, a diferença é livremente reconhecida, aceita e, muitas vezes, certamente exagerada, é a dificuldade que é mais problemática. (YOUNG, 2002, p. 102)

O atuarialismo emerge desse contexto, como o motivo principal do controle social na sociedade moderna recente. A postura atuarial reflete o fato da criminalidade ter se tornado uma parte normalizada da vida cotidiana, onde tanto os crimes como as pequenas incivilidades geram um sentimento de desconforto e insegurança.

Com relação à esta insegurança, Young traz à tona o termo Umwelt, que representa uma proteção que os indivíduos e grupos criam e cercam a si mesmos. Pensemos, exemplificativamente, em uma bolha, e dentro desta bolha estaria inserido o homem, que evitaria ao máximo o contato com o mundo externo. Desta forma, o Umwelt teria duas dimensões, a área em que o indivíduo se sente seguro e confortável e a área em que ele está em guarda, a área de apreensão.

A natureza do Umwelt varia segundo a categoria social, é fortemente baseada no gênero, é marcada pela questão racial e pelas classes. A título de exemplo, o Umwelt representaria como a cultura dominante vê as culturas minoritárias como sinônimo de perigo, criando uma espécie de proteção ou barreira entre elas. Com efeito, o que é visto na modernidade recente, é nada mais que uma diminuição da área de segurança dos indivíduos ao passo que a área de apreensão se expande sem precedentes.

O autor aborda também a existência de uma linha de pensadores que identificam o “medo” do crime como um problema autônomo em relação à criminalidade. (YOUNG, 2002, p. 115). Contudo, o crime é parte e faz um continuum com outras formas de comportamento antissocial. (YOUNG, 2002, p. 116)

Neste contexto, Young acredita que o processo de inclusão e exclusão é que seriam as verdadeiras causas da criminalidade. Com efeito, o crime ocorre quando há inclusão social e exclusão estrutural.

Ao inverter a máxima do positivismo individual, percebe-se que o crime não é resultado de uma falta de cultura, mas da adesão a uma cultura de sucesso e individualismo. Consequentemente, ao recontextualizar o positivismo social, demonstra-se que não é a privação material, nem a falta de oportunidade que dá lugar ao crime, mas a privação no contexto da cultura do “Sonho Americano”, em que se exorta a meritocracia aberta a todos. (YOUNG, 2002, p. 125)

Tudo isso leva de volta a Lévi-Strauss e suas metáforas do antropofágico e do antropoêmico, as sociedades canibais e as sociedades que vomitam os desviantes. Como paradigma de sociedade descontente é a que faça as duas coisas, devora pessoas vorazmente e depois invariavelmente as expele. A ordem social do mundo industrial avançado é uma ordem que engole seus membros. Ela consome e assimila culturalmente massas de pessoas através da educação, da mídia e da participação no mercado. (YOUNG, 2002, p. 125)

No entanto, a crise da modernidade recente não é apenas um reflexo de uma simples exclusão. Em verdade, há um verdadeiro processo bulímico de inclusão e exclusão, onde determinados grupos sociais são incentivados à participarem do sistema capitalista, da sociedade de consumo, dos tênis de marcas, dos carros de luxos, mas, diante da impossibilidade de adentrarem neste círculo de consumo, são excluídos, estigmatizados. Consequentemente, a subclasse reage a essa superidentificação pelo crime, pela criação de gangues e de subculturas criminais. (YOUNG, 2002, p.132)

Sob esta perspectiva, o autor destaca que as diferenças culturais estão diminuindo e não aumentando. Pelo bem ou pelo mal, só uma cultura viceja, a cultura do negócio, do trabalho e do consumo. (YOUNG, 2002, p. 134)

Encerrando o terceiro capítulo, Young afirma que é um erro que a sociedade multicultural seja vista como portadora de uma série de culturas independentes umas das outras. Estes argumentos encontram-se intimamente ligados ao processo de globalização, de que está ocorrendo um processo de imperialismo cultural.

No quarto capítulo, Young aborda o problema da diferença, ou seja, como o indivíduo e a sociedade como um todo lidam com os problemas gerados por uma ordem social mais diversificada.

Segundo Young, o multiculturalismo possibilitaria a diversidade, permitiria que as pessoas fossem elas mesmas e ao mesmo tempo tolerassem o desvio.

No entanto, a retórica progressista que enfatiza a igualdade entre os diversos grupos multiculturais, por exemplo, se transformou na noção de que as pessoas são essencialmente diferentes, de que a diferença deve ser reconhecida e respeitada sob forma de igualdade de tratamento. No entanto, isto se combinou com uma forma de essencialismo, tais diferenças baseavam-se em essências aparentemente fixas e atemporais. (YOUNG, 2002, p. 154)

Para o autor, o essencialismo nada mais é do que uma forma extremada de exclusão, afinal, separa grupos humanos com base na sua cultura ou na sua natureza. (YOUNG, 2002, p.156)

Eis, portanto, a crítica do essencialismo por Young. A noção de que cultura não envolve essências atemporais. As culturas podem mudar rapidamente no tempo se as circunstâncias mudarem. Para o autor, esta hibridação torna-se cada vez mais evidente no período atual de globalização. Portanto, se rejeitarmos esse essencialismo, decorre que teremos que descartar a noção de multiculturalismo que propõe um mosaico de essências fixas, coladas ao seu passado histórico. (YOUNG, 2002, p. 161) Brilhantemente, Young demonstra como a exclusão baseada no essencialismo é requisito necessário para a demonização de parte da sociedade. Notadamente porque permite que os problemas da sociedade sejam colocados nos ombros dos “outros”, em geral percebidos como situados na “margem” da sociedade. Assim, o crime é a moeda forte desta demonização. (YOUNG, 2002, p. 165)

Sendo assim, na modernidade recente, delinquentes escolhem voluntariamente a criminalidade, sem qualquer influência de circunstancias sociais, ou seja, são vistos como a causa de todos os problemas da sociedade, quando na verdade os seus problemas é que são causados pela própria sociedade, que desampara, criminaliza e estigmatiza grupos vulneráveis.

No próximo capítulo, Young adentra na seara da exclusão social proveniente do sistema de justiça criminal, que na modernidade recente, em razão do aumento da criminalidade e da desordem, demandam a criação de soluções rápidas. Neste contexto, Young expõe algumas falácias sobre a diminuição da criminalidade na cidade de Nova Iorque que teria ocorrido entre os anos de 1993 e 1996.

De fato, entre 1993 e 1996, a taxa de criminalidade em 12 de 17 países industriais avançados caiu e várias agências de controle da criminalidade começaram a reivindicá-la para si. Em nenhum lugar tanto quanto na cidade de Nova Iorque a taxa da criminalidade desabou em 36% em três anos.

Um dos motivos atribuídos a este sucesso, seria pela aplicação da política da tolerância zero. No âmbito do policiamento, trata-se de sinalizar intolerância para com incivilidades, de varrer os desvios e a desordem das ruas, lidar com pedintes agressivos, lavadores de para-brisas de sinal, vadios, bêbados e prostitutas. (YOUNG, 2002, p. 182)

Young então desmarcara as afirmações falaciosas acerca da tolerância zero e do sucesso da Polícia de Nova Iorque para com a redução da criminalidade, afinal, afirmava-se que a tolerância zero se baseava na filosofia de “janelas quebradas”, testada em Nova Iorque e que teria levado a uma redução da criminalidade.

Em suma, a única parte verdadeira da equação é redução da criminalidade em Nova Iorque no período de 1993 a 1996. No entanto, Young esclarece que a redução não ocorreu em virtude da implementação de práticas policiais inovadoras do Departamento de Polícia de Nova Iorque, pois, o declínio da criminalidade ocorreu em cidades industrializadas de todo o mundo, muito antes de a expressão tolerância zero tornar-se um chavão internacional. Ademais, o próprio comissário do Departamento de Polícia de Nova Iorque negou explicitamente a implantação de uma política de tolerância zero. Em verdade, a grande mudança foi alterar o foco, de modo a dar mais recursos de polícia a crimes de desordem.

Esta realocação da polícia de um papel central a um mais periférico no controle da criminalidade, produziu uma concordância imediata entre criminólogos de todas as tendências teóricas. Os autores, Wilson e Kelling – da obra “Teoria das janelas quebradas” – perceberam que o controle de pequenos infratores e de comportamentos desordeiros não criminosos era tão importante para a comunidade quanto o controle da criminalidade e que este era, como efeito, o papel original da polícia. Em verdade, o controle das incivilidades seria, por assim dizer, uma partida rápida no sentido da superação da desesperança e da desintegração da comunidade. (YOUNG, 2002, p. 188)

Posteriormente, Young adentra na ideia da falácia cosmética, que concebe a criminalidade como um problema superficial da sociedade, que pode ser tratado, e não como uma doença crônica da sociedade como um todo. A ideia é de que a criminalidade causaria problemas para a sociedade, quando na verdade é a sociedade que causaria o problema da criminalidade.

Young afirma categoricamente que não se pode mais conceber a ideia de manchas cosméticas isoladas, a criminalidade já se espalhou por todo o tecido social, devendo ser abandonada a noção modernista do criminoso distinto, pois, a obviedade quanto ao infrator, como da própria infração, já não se sustentam mais na modernidade recente.

Em verdade, são os problemas estruturais do sistema que produzem as taxas de criminalidade. É necessário não apenas punir os infratores por quebrarem janelas, mas na verdade consertar as janelas. Isto é, empreender um programa de reconstrução social abrangente nas nossas cidades. Tolerância zero à criminalidade deve ser tolerância zero à desigualdade. (YOUNG, 2002, p. 205)

Neste contexto a experiência prisional norte-americana permite evidenciar outro pilar da criminologia da tolerância zero, qual seja, o aumento do uso do encarceramento. Young afirma que se a solução da criminalidade fosse o encarceramento, seria difícil imaginar o tamanho que a população carcerária teria que atingir para realizar o sonho de baixar a taxa Norte-americana a níveis Europeus. (YOUNG, 2002, p. 211)

A única lição a ser aprendida, afirma o autor, é desviar desta linha de punição desvairada, é compreender que se for necessário um gulag para manter a sociedade do vencedor leva tudo, então é a sociedade que precisa ser mudada, e não as prisões expandidas. (YOUNG, 2002, p. 214)

No sexto capítulo, Young demonstra que tanto a sociedade inclusiva dos anos 1960 quanto o mundo excludente dos anos recentes fracassaram. Com efeito, o autor acredita na superação destes modelos através de um novo inclusivismo, ou seja, um mundo que reúna as pessoas, distribuindo a riqueza de maneira justa e nivelada, garantindo, ao mesmo tempo, liberdade e diversidade. O sistema de justiça criminal isolado não consegue manter a coesão social. É para a sociedade civil que temos que nos voltar se quisermos localizar as fontes tanto da coesão como da ruptura na vida social. (YOUNG, 2002, p. 217)

Construir uma sociedade nova, justa e inclusiva demanda duas coisas: distribuição meritocrática das recompensas e uma sociedade que veja a si própria como uma unidade, respeitando ao mesmo tempo a diversidade. (YOUNG, 2002, p. 218)

A partir destas reflexões, Young adentra no sétimo capítulo, destacando como a cidade pode ser um lugar de possibilidades e estímulos intermináveis, mas também um lugar onde as pessoas se preocupam tão pouco umas com as outras que não há por que proibir a diversidade. (YOUNG, 2002, p. 246-247)

A cidade facilita uma variedade de subculturas, pois possibilita a coexistência de diferenças sociais sem exclusão. No entanto, essa diversidade só é possível diante deste cenário de impessoalidade e anonimidade.

A imagem de um mosaico de pequenos mundos que se tocam mas não se interpenetram não corresponde ao mundo moderno recente comum de transposição, globalização, hibridação, em que fronteiras se diluem e transformações ocorrem em todas as direções. (YOUNG, 2002, p. 264)

Nesse ponto, Young volta à noção de privação relativa. Porém, enfatiza o autor, que as pessoas não se sentem relativamente privadas às pessoas do mais alto escalão, mas sim com o homem da porta ao lado. Há uma comparação da posição material do indivíduo com a de outros que, espera-se, deveriam ganhar salários parecidos e ter estilos de vida semelhantes. (YOUNG, 2002, p. 270-271)

Destarte, Young defende a ideia de propagar uma política de meritocracia radical, através da qual, com a abertura do mercado de trabalho para todos, da distribuição equitativa da riqueza refletida no mérito, iniciar-se-ia, finalmente, uma efetiva transformação da sociedade.

No oitavo e último capítulo, Young caminha para o desfecho de sua obra destacando a contradição existente na modernidade recente.

Inicialmente, o autor compara o grande gulag penal construído nos Estados Unidos ao gulag russo. Segundo o autor, não só a violência é moeda corrente na cultura americana, mas também o sistema de justiça criminal, em forma de prisão, condicional e sursis. Com efeito, o gulag prisional americano representa a crise da modernidade recente na mesma medida em que o gulag russo representou um sinal para o mundo da crise da modernidade soviética.

Evidentemente, por trás de toda a frustação fomentada pelo individualismo está o motor do mercado. A globalização contribui com esse sentimento, pois, estimula diuturnamente os indivíduos à compararem uns aos outros, tornando suas vidas uma eterna disputa. De outro lado, há uma demanda de autoexpressão individual, onde o desejo de realização pessoal é obstruído pela real natureza do trabalho e das possibilidades de realização.

Para o autor, a luta por uma nova sociedade inclusiva, pautada em um novo contrato social parece ser a medida mais razoável. Este novo contrato social da modernidade recente não deve apenas prover empregos, mas insistir na meritocracia, deve buscar não apenas prover facilidades de lazer, mas voltar sua atenção para trabalho e lazer significantes, que deem à pessoa um sentido de propósito e identidade. (YOUNG, 2002, p. 288)

Sendo assim, criminalidade e intolerância ocorrem justamente quando a cidadania é anulada. A causa primeira da criminalidade reside na injustiça, e seu efeito inevitável é produzir mais injustiça e violação da cidadania. A solução deve ser encontrada não na ressureição de estabilidades passadas, mas numa nova cidadania, uma modernidade reflexiva capaz de manejar os problemas da justiça e da comunidade, da recompensa e do individualismo. (YOUNG, 2002, p. 290)

Notas

1 Gulag era um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos e qualquer cidadão em geral que se opusesse ao regime na União Soviética.

Referência

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. (Pensamento criminológico; 7), 3ª reimpressão, 2015.

Karine Cordazzo – Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Mestranda da Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8385110584658796. E-mail: [email protected]

Gustavo Preussle– Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7966792380099410. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

The age of empathy: nature’s lessons for a kinder society – DE WAAL (SY)

DE WAAL, Frans. The age of empathy: nature’s lessons for a kinder society. London: Souvenir Press, 2011. Resenha de: TRINDAD, Gabriel Garmendia da; MARIN, Ana Paula Foletto. Synesis, Petrópolis, v.9, n.1, p.180-195, jan./jul., 2017.

De produções cinematográficas1 a discursos políticos2, ‘empatia’ está se tornando um termo cada vez mais comum no vocabulário popular. O termo em questão tem sido igualmente empregado e discutido em uma miríade de estudos filosóficos e do campo da psicologia. Porém, a despeito de seu uso contínuo e popularização, tanto por acadêmicos quanto por profissionais de outras áreas, ainda não existe um acordo acerca de como, precisamente, a noção de ‘empatia’ deveria ser entendida e definida – o que tem resultado em um número ainda maior de publicações. Em sua obra The Age of Empathy: Nature’s Lessons for a Kinder Society, o primatólogo e antropólogo holandês Frans de Waal3 convida os leitores a refletirem sobre a ideia de ‘empatia’, bem como o seu papel e importância nas vidas de humanos e não-humanos.

No primeiro capítulo de The Age of Empathy, de Waal articula uma ideia que será constante até o final do livro, a de que é preciso perceber e compreender as relações sociais, enquanto alvo de problematização da biologia, de modo diferente do habitual. Há de se abandonar as costumeiras suposições de caráter negativista sobre a biologia e adotar uma visão mais positiva quanto aos seres humanos. Por exemplo, um pensamento ainda bastante comum no campo das ciências humanas é o conhecido Homo homini lupus (“O homem é o lobo do homem”). Para de Waal, tal máxima hobbesiana não poderia estar mais longe da verdade. Isso porque ela não passa de uma afirmação enganosa sobre os seres humanos a qual se fundamenta em falsas suposições acerca de outra espécie. Em realidade, lobos são seres que mantêm profundos laços sociais. A sua sobrevivência não depende da eliminação de competidores ou do ato de manter os alimentos obtidos individualmente para si mesmos, mas sim de cooperação e partilha. Tais comportamentos são próprios de diversas espécies predadoras que caçam em bando, o que inclui primatas e, por consequência, seres humanos.

Humanos são animais de grupo. Por um lado, revelam-se como altamente cooperativos, sensíveis a ações injustas e, na maioria das vezes, amantes da paz. Por outro lado, agem por incentivo, de maneira a atentar, por exemplo, para o status pessoal, limites do território e a segurança de suas fontes de alimento. Ou seja, há tanto um aspecto social quanto um aspecto egoísta na espécie humana. Uma sociedade que ignora essas tendências, assevera de Waal, não pode ser tomada como ideal. Assim, se “o homem é o lobo do homem”, ele o é em todos os sentidos, e não apenas no negativo. A humanidade não teria sobrevivido até os dias de hoje se os seus ancestrais fossem seres socialmente indiferentes e distantes.

Ainda no capítulo inicial, de Waal propõe-se a discutir e refutar três mitos referentes aos seres humanos e suas relações sociais em geral. O primeiro deles é o de que os ancestrais dos atuais seres humanos governavam abertamente a savana africana. Conforme esclarece de Waal, embora os antepassados da espécie humana se encontrassem em uma posição bem mais elevada do que a maioria dos outros primatas na cadeia alimentar, eles estavam muito longe do topo. Eles provavelmente deveriam ter vivido em contínuo terror de outros animais predadores, como hienas gigantes ou tigres-dente-de-sabre. Em decorrência disso, os ancestrais humanos tinham de se contentar com horários de caça secundários.

O segundo mito debatido por de Waal está intimamente ligado à questão da segurança – a primeira e principal razão para a vida social. O mito em pauta concerne à ideia de que a sociedade humana foi erigida voluntariamente por seres humanos autônomos. Em outros termos, os seres humanos são animais inteligentes que decidiram abrir mão de algumas de suas liberdades individuais para adotar uma vida em comunidade. De acordo com essa perspectiva, os ancestrais humanos levavam vidas descompromissadas de modo a não precisar uns dos outros. Porém, por serem criaturas altamente competitivas, o custo dos sucessivos conflitos entre si se tornou insustentável. Assim, a vida em sociedade se revelou como uma solução sensata.

Para de Waal, essa forma de perceber as relações sociais entre seres humanos é um mero resquício de um pensamento pré-darwiniano, o qual está assentado sobre uma visão completamente equivocada da espécie humana. Do mesmo modo que ocorre para muitos outros mamíferos, os diferentes ciclos da vida humana abrangem estágios nos quais os seres humanos dependem uns dos outros. A espécie humana descende de uma longa linhagem de primatas que viviam em grupos e que apresentavam um elevado grau de interdependência. A necessidade de segurança moldou tanto a vida social de humanos quanto a dos demais primatas. A predação, por exemplo, é um fenômeno que força os indivíduos a se unirem. Deveras, pode-se dizer que quanto mais vulnerável é uma espécie, maiores são as agregações entre seus integrantes. Esse, segundo de Waal, é o real ponto de partida para problematizações acerca da sociedade humana; e não abordagens fundamentalmente desvinculadas da realidade biológica e evolutiva, as quais retratam os seres humanos como criaturas exageradamente livres e destituídas de quaisquer obrigações sociais.

O terceiro mito a ser explorado é o de que a espécie humana tem travado guerras desde os seus primórdios. Ou seja, a agressão é compreendida como a marca registrada da humanidade – a belicosidade estaria escrita no DNA humano. Como expõe de Waal, essa perspectiva se tornou bastante popular após as devastações resultantes da Segunda Guerra Mundial. Os seres humanos passaram a ser tomados como “símios assassinos” quando comparados a outros primatas – que eram vistos como “pacifistas”. O estadista britânico Winston Churchill (1874 – 1965), por exemplo, acreditava que, salvo alguns breves momentos de paz, a guerra é ininterrupta nesse mundo. Segundo de Waal, essa é outra visão que se afasta enormemente da realidade humana.

Embora existam evidências arqueológicas de que os primeiros assassinatos individuais entre membros da espécie humana tenham sucedido há centenas de milhares de anos, o mesmo não é válido para quaisquer possíveis morticínios em larga escala ocorridos antes da revolução agrícola. Como argumenta de Waal, em decorrência das interdependências entre grupos, os ancestrais da espécie humana provavelmente nunca entrariam em uma guerra de grandes proporções até terem acumulado uma considerável soma de valores por meio da agricultura. Tal estratégia resultaria em mais espólios após ofensivas a grupos rivais. Em última instância, de Waal sugere que, para os ancestrais humanos, a guerra sempre se apresentou como uma opção. Muito possivelmente, eles seguiam um modelo similar aos das atuais tribos caçador-coletoras, i.e., intercalar longos períodos de paz com breves momentos de disputa violenta – uma abordagem que visivelmente contradiz o pensamento churchilliano.

No segundo capítulo, de Waal concentra seus esforços na construção de uma crítica ao darwinismo social. Este se caracteriza por ser uma tentativa de aplicar certos conceitos e princípios de ordem biológica para explicar e justificar a superioridade de determinados indivíduos em contextos sociais ou políticos. A vida é descrita como uma contínua batalha. Aqueles que podem perseverar não deveriam ser obstruídos por outros que não possuem o que é necessário para sobreviver. A gênese de tal posicionamento pode ser traçada, mais notavelmente, aos escritos do filósofo inglês Herbert Spencer (1820 – 1903). Ele foi o formulador original da ideia de “sobrevivência do mais apto”, a qual ainda hoje permanece sendo erroneamente referida a Charles Darwin (1809 – 1882).

No tocante ao darwinismo social, sentimentos como a compaixão, ou outras demonstrações empáticas não são bem vistos. Isso porque comportamentos altruístas supostamente impedem que a natureza siga o seu curso. A caridade, bem como qualquer tentativa de buscar a igualdade social, por exemplo, são tidos como atos despropositados e/ou contraprodutivos. Nesse sentido, a pobreza é tomada como uma prova da preguiça daqueles que são afligidos por ela, e a justiça nada mais é do que uma marca da fraqueza de outrem. Assim, no entender de Spencer, o real intuito da natureza é extinguir aqueles que são percebidos como retardatários ou socialmente ineficientes e dar lugar a algo ou alguém melhor.

Para de Waal, no entanto, o darwinismo social é fundamentalmente problemático, pois é inviável deduzir os objetivos da sociedade a partir dos objetivos da natureza. Em outras palavras, o darwinismo social incorre na chamada falácia naturalista, a qual denuncia a impossibilidade de extrair do atual estado das coisas como elas deveriam ser. Por exemplo, animais não-humanos comumente eliminam uns aos outros em larga escala, porém não é possível extrair disso a conclusão de que os seres humanos também devem fazê-lo. Da mesma forma, se os membros de outras espécies vivessem em plena harmonia, disso também não se seguiria que os seres humanos teriam uma obrigação de agir de modo igual. A natureza, afirma de Waal, pode oferecer informação, assim como inspiração, porém não prescrição.

Ainda no segundo capítulo, e seguindo na esteira de objeções ao darwinismo social, de Waal passa a criticar a teoria do “gene egoísta”. Esta foi popularizada pelo etólogo e biólogo evolutivo Richard Dawkins. De acordo com a visão da evolução centrada nos genes pleiteada por Dawkins, os organismos devem ser entendidos como “veículos”, ao passo que os “condutores” seriam os genes. Em outras palavras, uma vez que a evolução adaptativa ocorre através da competição e propagação dos genes, estes constroem organismos que agem como “máquinas de sobrevivência”, cuja função é possibilitar a perpetuação dos genes nas futuras gerações. Dawkins cunhou a metáfora do “gene egoísta” para explicar a ideia de que os genes que serão replicados nas gerações seguintes são aqueles cujos efeitos concernem aos seus interesses implícitos – i.e., serem replicados e permanecerem no pool gênico. Isso significa que a evolução não estaria centrada em indivíduos específicos ou grupos, mas sim nos genes. Todavia, na opinião de de Waal, a metáfora criada por Dawkins para explicar a teoria da seleção genética acabou gerando mais mal do que bem para o campo da biologia.

Como de Waal faz questão de esclarecer, genes são simplesmente pedaços de DNA que não podem ser mais “egoístas” do que um rio pode ser “furioso”. É preciso ficar entendido que quando os genes são descritos como “egoístas”, isso não diz absolutamente nada acerca das reais motivações de humanos ou não-humanos. Há uma separação entre aquilo que guia a evolução e aquilo que norteia o verdadeiro comportamento dos indivíduos. Deveras, alguns comportamentos – os quais incluem a realização de ações notavelmente compassivas ou altruístas – podem ser produzidos por genes selecionados para salvaguardar os seus portadores (vulgo “veículos”). Ademais, é necessário salientar que a contínua discussão de biólogos sobre a temática da competição não implica que esses pesquisadores advoguem em prol dela como um norteador aceitável do comportamento em sociedade. Similarmente, quando esses mesmos biólogos descrevem os genes como “egoístas”, isso não significa que eles, de fato, o sejam. Nesse sentido, a metáfora elaborada por Dawkins mostrase bastante problemática. Isso porque ao adicionar um termo de ordem psicológica a uma discussão sobre evolução genética, dois níveis distintos que os biólogos constantemente lutam para manter separados acabam chocando-se. Tal colisão forçada resulta no obscurecimento da distinção entre genes e motivação, o que leva a posturas cínicas acerca dos comportamentos de humanos e não-humanos.

Como sugere de Waal, mesmo que uma dada característica biológica tenha evoluído por determinada razão, isso não significa que ela não possa ser utilizada diariamente para outras finalidades. Por exemplo, o ato de oferecer ajuda a outros evoluiu para satisfazer interesses pessoais – o que, de fato, é realizado quando o alvo do auxílio é um familiar ou um membro do grupo que possa reciprocar o favor futuramente. Todavia, isso não quer dizer que humanos e não-humanos somente prestam ajuda por motivos egoístas. As razões para a evolução desse modo de agir não restringem, necessariamente, as ações do agente. Embora esse indivíduo siga dada tendência, certas vezes ele pode fazê-lo sem receber nada em troca. Alguns exemplos disso são o comportamento sexual humano que, em incontáveis situações, não tem como objetivo a reprodução; o mesmo pode ser dito da adoção de outros indivíduos que não fazem parte da própria prole – algo observado em diversas espécies.

No terceiro capítulo, de Waal trata do surgimento da empatia. Segundo ele, esta primeiramente se apresenta na forma de sincronização de corpos. Por ‘sincronia’ entende-se a imitação de certos movimentos corporais como rir, chorar, bocejar, etc. O riso, por exemplo, é uma expressão humana universal e inata que frequentemente indica bem-estar. As primeiras risadas acontecem entre mãe e filho e simbolizam apreciação mútua. Em outros primatas, por sua vez, o riso ocorre como uma reação à surpresa ou incongruência – como quando a mãe cutuca a barriga de seu filhote com seus dedos compridos. O riso, por ser contagiante, reflete a sensibilidade do indivíduo aos demais. De acordo com de Waal, sincronia é a forma mais antiga de ajustamento aos outros. Sincronizar-se implica ser capaz de reconhecer o próprio corpo no corpo do outro e fazer dos movimentos deste os seus movimentos. Isso explica o fato de que o riso ou o bocejo de alguém é capaz de fazer outros rirem ou bocejar. Além disso, ser capaz de se conectar aos demais e se ajustar aos seus movimentos é vantajoso em termos de sobrevivência – e.g., um pássaro que foge de um possível perigo ao levantar voo quando outros pássaros voam em disparada.

Reconhecer o próprio corpo no corpo do outro (body-mapping) é algo que inicia bastante cedo e continua se mostrando como um fenômeno profundamente enigmático. Quando um adulto mostra a língua para um bebê, por exemplo, este tende a responder fazendo o mesmo. O enigma é: como o bebê sabe que sua língua, a qual ele nem consegue ver, corresponde ao músculo carnudo que se encontra entre os lábios do adulto? Mais misteriosos ainda são os casos de body-mapping entre diferentes espécies. Em um estudo, golfinhos sem nenhum tipo de treinamento imitavam pessoas perto de uma piscina: quando um homem abanava os braços, o golfinho respondia abanando suas nadadeiras; quando o homem levantava uma perna, o golfinho levantava a calda acima da água. A questão de como o cérebro corretamente reconhece as partes do corpo de outra pessoa como partes do seu próprio corpo é conhecido como o ‘problema da correspondência’. Segundo de Waal, identificação é o que atrai um indivíduo e o faz adotar as emoções e comportamentos daqueles que se encontram próximos. Em outras palavras, quando há identificação entre um corpo e outro, há empatia e, consequentemente, imitação. Essa, por sua vez, possui um papel fundamental no fortalecimento de vínculos. Estudos indicam que, em situações românticas, imitar os movimentos do parceiro, como cruzar as pernas quando o outro cruza ou segurar o copo quando o outro o faz, gera conexão, o que aumenta as chances de o encontro prosperar. Além disso, pesquisas mostram que garçons que repetem o pedido do cliente recebem duas vezes mais gorjetas do que aqueles que apenas exclamam “É pra já!”

Como relembra de Waal, humanos adoram o som do seu próprio eco. Ainda assim, o modo como o corpo de um indivíduo – seja sua voz, seu humor, sua postura, etc. – é influenciado por aqueles corpos que o cercam permanece um mistério. Interessantemente, tal enigma é justamente o que mantém sociedades inteiras conectadas. O psicólogo alemão Theodor Lipps (1851 – 1914) foi o primeiro a reconhecer que há algo como um canal que conecta as pessoas entre si. As experiências de um indivíduo podem ecoar dentro de outra pessoa de modo que essa as sinta como se fossem suas. Como quando ela observa em suspense um acrobata caminhando sobre um cabo de aço e reage com apreensão a cada deslize. Tal conexão involuntária de emoções começou a ser pesquisada em 1990 pelo psicólogo sueco Ulf Dimberg. A fim de registrar os movimentos musculares mais sutis, Dimberg colocou eletrodos na face de seus voluntários e exibiu fotos de rostos raivosos e felizes na tela de um computador. Os participantes franziam as sobrancelhas em resposta às imagens de rostos raivosos e esticavam o canto da boca em resposta a rostos felizes. Um resultado similar foi obtido em outro teste, onde as mesmas fotos foram apresentadas em alta velocidade, de modo que os participantes não pudessem percebê-las conscientemente. Aqueles que foram expostos a rostos felizes relataram ter se sentido melhor do que aqueles que observaram rostos raivosos. Como a pesquisa de Dimberg sugere, humanos não decidem, necessariamente, ser empáticos; eles simplesmente o são.

A descoberta dos neurônios-espelho, em 1992, impulsionou a perspectiva acima mencionada. Um experimento realizado em macacos revelou que esses possuem células cerebrais especiais, as quais disparam quando o macaco agarra um objeto e também quando ele vê outro fazendo o mesmo. Em outras palavras, tais neurônios não diferenciam o ato “macaco faz” do ato “macaco vê”. Por conseguinte, também não fazem distinção entre ‘si mesmo’ e o ‘outro’. Como destaca de Waal, tal descoberta fornece um primeiro indício do papel do cérebro no reconhecimento das emoções e do comportamento alheio. Ademais, ela igualmente fragiliza as afirmações de que a empatia concerne unicamente aos seres humanos. De acordo com de Waal, ‘empatia’, entendida como o ato de projetar-se no outro, pode ser regulada através de atenção seletiva e identificação. Ou seja, um indivíduo pode optar por ignorar o que lhe causa desconforto e se identificar apenas com aqueles que lhe são semelhantes – familiares, amigos, pessoas do mesmo sexo, da mesma religião, etc. de Waal salienta que identificação é tão fundamental para que haja empatia que até mesmo ratos de laboratório compartilham a dor de seus companheiros de jaula. Em termos gerais, enquanto a presença de identificação abre a porta para a empatia, sua ausência a fecha.

Ainda no terceiro capítulo, de Waal apresenta as duas principais respostas ao problema de como as emoções alheias afetam um indivíduo. Uma primeira sugestão é a de que o corpo afeta as emoções. Estudos revelam que o humor de um indivíduo pode ser melhorado pelo simples ato de esticar os cantos da boca. Em contraste, pessoas que assistem a desenhos animados com as sobrancelhas franzidas, por exemplo, tendem a julgá-los menos engraçados do que aquelas que assistem forçando um sorriso (mordendo um lápis horizontalmente sem encostar nos lábios). Outra sugestão é a de que o corpo é afetado pelas emoções. Ao observar a linguagem corporal de uma pessoa, um indivíduo é capaz de deduzir o estado emocional dela, o que, por seu turno, acaba por afetar as suas próprias emoções. Apesar da linguagem corporal ser um fator crucial para que haja contágio emocional, é o rosto que possibilita a conexão mais rápida com o outro. Pesquisas revelam que pessoas tendem a se afastar de indivíduos que apresentam paralisia facial, ao passo que esses, muitas vezes, se sentem profundamente sozinhos e depressivos, podendo chegar a beira do suicídio. Como de Waal faz questão de enfatizar, a empatia precisa de um rosto. Pode-se dizer, então, que expressões faciais pobres geram um entendimento empático pobre.

No quarto capítulo, de Waal fornece uma distinção entre ‘empatia’ e ‘simpatia’. Segundo ele, ‘empatia’ é um processo através do qual um indivíduo é capaz de apreender informações a respeito do estado emocional de outros seres. ‘Simpatia’, por sua vez, envolve preocupação com o outro, geralmente acompanhada do desejo de melhorar a sua situação. de Waal ressalta que ‘simpatia’ é comum não apenas a humanos, mas também a não-humanos. Outros primatas, em especial, são muito sensíveis ao sofrimento alheio e tendem a oferecer ajuda àqueles que precisam. Uma demonstração de simpatia comum em grupos de chimpanzés se dá na forma de consolo. Após brigas entre chimpanzés, é comum que a vítima de uma agressão receba a visita de algum amigo ou familiar que irá oferecer abraços, inspecionar cuidadosamente os seus ferimentos ou praticar catação (social grooming) – i.e., o ato de remover piolhos e outros parasitas do pelo. De acordo com de Waal, oferecer conforto através de contato físico faz parte da biologia dos mamíferos. No entanto, a motivação por trás de tal ato não está inteiramente clara. Uma hipótese é a de que ao consolar outros busca-se, em realidade, o próprio conforto. Por exemplo, uma pessoa que, por sentir-se aflita com o choro de alguém, oferece consolo para tranquilizar a si mesma. Crianças pequenas e alguns não-humanos também são frequentemente atraídos a indivíduos cuja a agonia os afeta – de Waal chama essa atração cega de ‘preconcern’. Outras demonstrações de simpatia ocorrem na forma de “ajuda direcionada” (targeted helping) – i.e., quando a ajuda é voltada à situação específica de outros. de Waal oferece o exemplo da bonobo Kuni que, ao encontrar um pássaro preso em sua jaula no zoológico, levou-o ao ponto mais alto de uma árvore, abriu suas asas e o soltou no ar. de Waal também distingue empatia e simpatia do que ele chama de perspective-taking: tomar a perspectiva de alguém, o que envolve buscar saber e entender o que o outro pensa, acredita ou sente. Tal capacidade é altamente desenvolvida em animais com cérebros grandes, mas também pode ser encontrada em animais com cérebros menores.

Ainda no quarto capítulo, de Waal trata da questão do altruísmo, comportamento esse que, segundo ele, não existiria sem a capacidade de empatia.  Embora haja incontáveis histórias e casos de sacrifício humano, o heroísmo, por exemplo, não é uma característica exclusivamente humana. Há numerosas evidências acerca dessa forma de altruísmo em outras espécies de primatas. Casos comuns são os de chimpanzés que, apesar de hidrófobos, arriscam a própria vida ao tentar socorrer companheiros se afogando. Como explica de Waal, altruísmo, em geral, exige esforço. Porém, há também o chamado ‘altruísmo de baixo custo’ – i.e., quando é possível ajudar outros sem muito esforço (e.g., dar carona ou segurar a porta aberta para alguém). Ser atencioso com outros indivíduos implica entender como o próprio comportamento afeta os dos demais, o que, por sua vez, requer empatia e perspective-taking. Tal assistência de baixo custo pode ser igualmente observada em distintas espécies de primatas e se dá na forma de catação e social scratching – i.e., o ato de coçar vigorosamente as costas de outros indivíduos.

No quinto capítulo, de Waal aborda a relação entre empatia e a capacidade de um indivíduo de se reconhecer no espelho. Segundo de Waal, não se pode conceber a ideia de empatia em sua forma mais avançada sem uma noção de ‘si mesmo’. Sem essa noção em particular não seria possível distinguir o próprio sofrimento do sofrimento dos demais. Uma maneira de testar se um indivíduo possui uma noção de si mesmo é observar o seu comportamento diante de um espelho. Tal teste consiste em marcar um lado da face do participante com tinta ou maquiagem colorida e observar as suas reações. Crianças a partir de dois anos de idade, outros primatas, elefantes e golfinhos respondem ao teste inspecionando cuidadosamente a marca em seus corpos e tentando removê-la quando possível. O teste do espelho é relevante, pois expõe como um indivíduo se posiciona no mundo, o seu jeito de se relacionar com os outros, e sua capacidade para tratar situações alheias como distintas da sua. A hipótese de que há uma relação entre se reconhecer no espelho e ser capaz de empatia e ajuda direcionada é chamada por de Waal de ‘hipótese da co-emergência’.

Para de Waal, indivíduos que se identificam no espelho apresentam a tendência em ajudar tanto aqueles que pertencem a sua própria espécie quanto a membros de outras. Há inúmeros casos de assistência interespécie. Um exemplo bastante popular é o de nadadores humanos salvos por golfinhos ou baleias. Interessantemente, embora entendam e utilizem espelhos para encontrar comida, macacos tendem a reprovar no teste do espelho. A partir disso, de Waal sugere a existência de diferentes níveis de entendimento de um espelho. O fato de macacos nunca confundirem o seu próprio reflexo com o reflexo de outros macacos sugere que a imagem deles mesmos no espelho não lhes é estranha. Além disso, embora macacos pareçam não serem capazes de tomar a perspectiva de outros indivíduos e identificar as suas necessidades, eles compartilham da aflição alheia e, em raras ocasiões, ajudam uns aos outros.

O ato de apontar para objetos como forma de compartilhar informação é outra temática discutida por de Waal no quinto capítulo. Tal gesto depende da capacidade de tomar a perspectiva alheia e reconhecer que o outro não possui a mesma perspectiva nem a informação que se está querendo passar. Humanos não são os únicos animais que esticam o braço e apontam com o dedo para objetos aos quais se quer chamar a atenção. Outros primatas também são especialistas em suscitar a atenção alheia, muitas vezes sem nem precisar apontar – de Waal conta como o chimpanzé Nikkie mantendo apenas contato visual e movimentando a cabeça comunicou que ele queria os frutos que se encontravam atrás de de Waal. Tal exemplo contraria a ideia de que apenas indivíduos dotados de uma linguagem sofisticada são capazes de compartilhar informação e expressar as suas necessidades.

No sexto capítulo, de Waal investiga as origens e principais características do senso de justiça (fairness) comum aos seres humanos. Ele nota um aspecto bastante curioso da espécie humana como um todo; embora erijam e tomem parte de complexas estruturas sociais, humanos tendem a renegá-las sempre que seus interesses e bem-estar próprios estão em risco. Diferenças de status e hierarquias sociais são toleradas apenas até certo ponto. Quando determinado limite é cruzado, humanos frequentemente abdicam de tais construtos e se rebelam contra aqueles que os prejudicam sem uma boa causa. Segundo de Waal, esse senso de justiça – de receber o que lhe é devido – está fortemente arraigado num igualitarismo que perpassa a história da espécie humana inteira. Estudos antropológicos conduzidos pelo pesquisador norte-americano Christopher Boehm revelam como comunidades tribais regulam os seus níveis de hierarquia internos. Perda de respeito e apoio são as principais reações comunais a líderes que optam por não cumprir as suas funções adequadamente – e.g., ao engradecerem a si mesmos em detrimento dos integrantes de seus grupos, distribuírem bens materiais de forma inapropriada, governarem por meio de intimidação e medo, etc. O apreço e anseio dos seres humanos por um tratamento justo pode ser observado em todos os tipos de sociedades. Porém, a despeito do que tem sido tradicionalmente tomado como fato entre intelectuais, humanos não são os únicos animais que demonstram um senso de justiça. Em realidade, esse traço social possui profundas raízes evolutivas, as quais são partilhadas com uma variedade de outras espécies. No intuito de construir uma defesa convincente dessa visão, de Waal passa a examinar o tema da confiança entre indivíduos – o que ele entende como sendo um dos elementos fundamentais do senso de justiça comum a humanos e não-humanos.

Confiança é um fator-chave para relações sociais. Como descreve de Waal, confiar em alguém implica, primeiramente, em contar com a sua fidelidade ou cooperação e, num sentido ainda mais básico, na simples expectativa de que esse indivíduo não irá agir de má-fé e lhe passar a perna ou deixar na mão. O cultivo e estabelecimento de confiança ajuda a expandir o círculo de atuação dos indivíduos, o que, por sua vez, os prepara para múltiplos tipos de colaboração. Para que isso possa ocorrer, no entanto, experiências passadas são comumente empregadas em considerações acerca de quem é confiável ou não – experiências essas que podem ser generalizadas dependendo do alvo da reflexão. Isso não significa, necessariamente, que todo e qualquer indivíduo deva ser testado antes de uma ação conjunta. Se assim fosse, conjectura de Waal, jamais alguém seria capaz de alcançar qualquer coisa. Confiança é o elemento que mantém diferentes sociedades unidas – sejam essas altamente complexas ou rústicas. Aborígenes, por exemplo, constantemente espalham veneno em suas flechas e as escondem nas árvores mais altas, longe do alcance de crianças. As suas armas são tratadas com bastante seriedade. Uma comunidade na qual os seus integrantes estão sempre dispostos a utilizá-las dificilmente encontraria qualquer coesão social duradoura. A importância da confiança para a construção e manutenção de vínculos cooperativos não está restrita a relações humanas. O ato de confiar no outro é fundamental para inúmeras espécies sociais.

Há uma profusão de cenários retratando relações de confiança entre não-humanos, sejam esses de uma mesma espécie ou de espécies distintas. Um dos exemplos mais conhecidos na literatura científica é o dos “peixes limpadores” que mantêm uma relação de perfeito mutualismo com outros não-humanos. Peixes limpadores mordiscam ectoparasitas e tecidos mortos da superfície do corpo e, algumas vezes, do interior da cavidade bucal de peixes maiores. Eles confiam que os indivíduos para os quais prestam esse serviço não irão devorá-los vivos. Por sua vez, os “peixes clientes” igualmente confiam que a criatura nadando dentro de sua boca não irá abocanhar mais do que o devido e se alimentar de tecidos saudáveis. Quando isso ocorre, todavia, alguns peixes limpadores tentam restaurar a confiança de seus clientes fazendo cócegas ao massageá-los com suas barbatanas dorsais. Isso geralmente tranquiliza os peixes maiores, o que permite a continuidade e conclusão da limpeza. Certos peixes limpadores acabam se ocupando tanto com os seus clientes que esses chegam a formar filas para serem atendidos.

Outro componente basilar do senso de justiça comum a humanos e não-humanos é reciprocidade. Retornar favores e demonstrar gratidão são engrenagens cuja atuação silenciosa torna possível diversos aspectos da vida em comunidade. Quem exibe uma tendência a não retribuir a gentileza ou não reconhecer a ajuda de outrem acaba sendo mal visto em agregados sociais. Em situações nas quais é possível escolher entre colaborar com uma pessoa que apresenta um histórico de correspondência ou alguém que tem o costume de tirar vantagem da generosidade alheia, o último é frequentemente rejeitado. Quando se trata de cooperação, penalizações sociais sérias raramente são aplicadas àqueles que ficam aquém do desejado. Entretanto, esses indivíduos tendem a ser “punidos” por seus pares em estudos psicológicos conduzidos em laboratório. Tal apreço pelo ato de reciprocar é igualmente partilhado com outras espécies de animais. Morcegos-vampiros, por exemplo, adotam um sistema de companheirismo centrado em parcerias mutualmente vantajosas. Uma vez que não podem ficar nem um único dia sem se alimentar, morcegos-vampiros dividem o risco trabalhando em pares. Se por alguma razão um dos membros do par não conseguir encontrar uma presa, o outro irá lhe regurgitar um pouco de sangue na boca ao final da noite. Sempre que o cenário inverte, o gesto é reciprocado. Chimpanzés, por sua vez, demostram comportamentos ainda mais conscientes e propositados acerca de atos recíprocos. Por exemplo, chimpanzés machos geralmente não gostam de lidar com filhotes. Porém, eles irão acariciá-los e coçá-los caso isso os ajude a conquistar o apoio de um maior número de fêmeas e manter e/ou adquirir poder em sua comunidade. de Waal compara esse comportamento com a prática de candidatos políticos que, no intuito de angariar votos, levantam bebês acima da cabeça em frente de seus pais e outros possíveis eleitores.

Quando alguém se revela indigno de confiança e apresenta uma tendência a não retornar favores ou demonstrar gratidão, ele passa a ser alvo do ressentimento alheio. Porém, esse indivíduo também é mal visto quando recebe mais do que lhe é devido no que seria considerada uma divisão justa; essa “aversão à iniquidade” tem sido tradicionalmente tomada como outro comportamento exclusivo dos seres humanos. Para de Waal, entretanto, ela é igualmente comum a múltiplas espécies não-humanas. Chimpanzés novamente, por exemplo. Após uma caçada bem-sucedida, membros de um grupo de chimpanzés garantem o seu quinhão a partir de seu papel na empreitada. Aqueles que não tiveram grande participação ganham apenas porções pequenas. Nem mesmo os machos mais dominantes fogem à regra. Caso não tenham ajudado ativamente, eles receberão o mínimo, ou sequer coisa alguma. Embolsar mais do que o merecido é sempre uma manobra arriscada, pois pode resultar em agressões – especialmente se o ato for realizado em frente aos demais. de Waal relata o caso de uma bonobo fêmea que, ao ser testada em um laboratório de cognição, recebeu uma recompensa muito maior de leite e passas de uva do que os seus companheiros. Após perceber os olhares dos outros bonobos à distância, ela recusou a comida e gesticulou em direção aos demais até que boa parte dos petiscos fosse dividida com eles. Somente após isso ela consumiu a sua porção. Caso tivesse agido de outra maneira e mantido todos os alimentos para si, a bonobo certamente iria correr um grande perigo quando retornasse ao seu grupo mais tarde.

Confiança, reciprocidade, igualdade; são os principais elementos do senso de justiça comum a humanos e não-humanos. Naturalmente, seres humanos tratam questões de justiça de uma forma muito mais sofisticada e ampla que os outros animais. Reflexões acerca daquilo que é justo em sociedades humanas quase sempre vão além de meros interesses pessoais e ressentimento. Interesses alheios também são levados em consideração. de Waal está ciente disso. Porém, como ele faz questão de enfatizar, o senso de justiça humano não se origina em pretensões de imparcialidade ou numa preocupação com o outro, a qual transcende interesses pessoais. As suas reais raízes são partilhadas, em maior ou menor grau, com inúmeras outras espécies animais – o que tem ficado cada vez mais claro a partir das contínuas descobertas dos atuais estudos etológicos.

No sétimo e último capítulo, de Waal oferece uma abordagem da empatia. Segundo ele, empatia é uma capacidade inata que se manifesta em áreas do cérebro as quais possuem centenas de milhões de anos. de Waal propõe que a empatia pode ser melhor entendida como uma boneca russa, i.e., formada por diferentes camadas. No núcleo encontram-se processos automáticos, como a tendência de imitar a linguagem corporal e o estado emocional dos outros. Ao redor desse núcleo, a evolução foi adicionando camadas cada vez mais sofisticadas, tal como a capacidade de se preocupar com os demais, tomar a sua perspectiva e entender o que buscam e/ou precisam. As reações emocionais humanas mais complexas partilham dos mesmos processos básicos que as reações presentes em uma grande variedade de espécies. Ao tomar ‘empatia’ como uma capacidade antiga, inata e composta de diferentes níveis de complexidade, de Waal reconhece que animais não-humanos também são capazes de empatizar. Porém, ainda há uma grande resistência por parte de cientistas em aceitar que a empatia não é uma característica exclusivamente humana. Tal relutância, de Waal acredita, está mais relacionada a crenças religiosas do que com dogmatismo científico per se –  sobretudo religiões que surgiram em comunidades sem qualquer contato com outras espécies de primatas. de Waal nota ainda que mesmo aqueles que reconhecem seres humanos como simples produtos da evolução persistem em procurar por alguma anormalidade, i.e., uma característica especial que vá diferenciar humanos dos demais animais. Quando se trata de apontar para características humanas indesejáveis, todavia, continuidade nunca é um problema; os genes humanos são logo culpados e a espécie inteira é rapidamente comparada a outras que demonstram traços similares.

Embora a empatia seja uma capacidade inata, de Waal observa que é possível escolher não empatizar. Empatia ocorre facilmente quando há identificação, i.e., quando se trata de indivíduos que fazem parte do mesmo círculo, sejam eles familiares, amigos, parceiros, ou quaisquer outros que partilhem dos mesmos gostos, crenças, etc. Fora desse círculo, a empatia é opcional. Como explica de Waal, tal fenômeno ocorre da seguinte maneira. Primeiramente, suprime-se a identificação com grupos de indivíduos desconhecidos ou inimigos ao desconsiderar a individualidade dos participantes do grupo. Após isso, esses indivíduos são classificados como “inferiores” – e.g., nazistas referiam-se a judeus como “ratos” ou “pestes”. Ademais, enquanto não empatizar com aqueles que são considerados inimigos ou competidores possa resultar em diferentes formas de discriminação, manipulação e agressão, a capacidade de tomar a perspectiva alheia também pode ter fins destrutivos. O ato de torturar alguém, por exemplo, requer saber em certa medida o que os outros pensam e sentem. Psicopatas são particularmente hábeis em apreender as intenções e interesses alheios – ainda que sejam incapazes de compartilhar do sofrimento de outrem.

A investigação de de Waal sobre a empatia é enriquecida com comentários sobre Mencius (372 a.C. – 289 a. C.), o sábio chinês que há mais de dois milênios refletiu sobre a origem do ato de empatizar. Mencius foi o primeiro a notar que a empatia depende de conexões corporais. Em uma de suas histórias, um rei observou um boi com aparência amedrontada passar por seu palácio. Ao descobrir que o boi estava a caminho de ser morto em uma cerimônia, o rei ordena que ele seja poupado e uma ovelha seja sacrificada em seu lugar. Mais precisamente, o rei partilhou do sofrimento do boi que estava em sua frente e, por essa razão, optou que outro ser, com o qual ele jamais teve qualquer contato, fosse abatido e ofertado. Essas conexões corporais que pressupõem contágio emocional explicam a dificuldade de empatizar com desconhecidos ou aqueles que estão ausentes. Como de Waal explica, a empatia é uma capacidade construída sobre proximidade, similaridade e familiaridade, uma vez que evoluiu para promover a cooperação entre indivíduos do mesmo grupo.

Por último, de Waal faz questão de pontuar que embora a maioria dos seres humanos viva em grandes sociedades, onde é difícil manter igualdade e solidariedade, eles ainda assim possuem uma psicologia que os motiva a buscar tais princípios. de Waal alude à noção de “mão invisível do mercado” de Adam Smith (1723 – 1790) para defender que uma sociedade puramente baseada em motivos egoístas e forças do mercado não é capaz de produzir unidade e confiança entre seus cidadãos. A sociedade igualmente depende de uma “segunda mão invisível”, i.e., uma que aproxime os indivíduos. Para de Waal, o sentimento de que humanos não deveriam ser indiferentes uns aos outros (caso realmente queiram construir uma comunidade verdadeira) é a força que subjaz a sua conduta para com os demais. Ele acredita que é preciso confiar no intelecto humano para descobrir novas maneiras de equilibrar interesses coletivos e individuais. Além disso, há de se fazer uso de uma ferramenta adicional para enriquecer e engrandecer a forma como humanos pensam e agem. Tal instrumento foi selecionado pela evolução ao longo dos anos e testado repetidas vezes no que diz respeito ao seu valor de sobrevivência. Trata-se da empatia: a capacidade de se conectar e entender os outros e fazer da situação deles a sua própria. A partir disso tudo, de Waal reitera, conclusivamente, que recorrer a essa capacidade inata seria vantajoso a qualquer sociedade.

Para encerrar, algumas considerações estilísticas acerca de The Age of Empathy como um todo. Os leitores com uma formação analítica tradicional podem achar, ao menos por vezes, a escrita de de Waal incômoda. Embora de Waal consiga expor cenários e ocorrências de maneira detalhada e vívida, ele frequentemente passa de um assunto a outro sem finalizar argumentos e racionalizações prévias. Isso acaba por forçar os leitores a ponderar sobre o real propósito de alguns dos casos introduzidos, o que interrompe o fluxo da leitura desnecessariamente. Em contrapartida, de Waal oferece uma ferramenta interpretativa adicional. No decorrer dos sete capítulos do livro, é possível encontrar diversas ilustrações que remetem às múltiplas situações e temáticas discutidas. Todas as ilustrações foram feitas pelo próprio de Waal, o que torna a experiência de percorrer o texto muito mais íntima e agradável. Em certa medida, por meio desses desenhos, os leitores acabam por experienciar as impressões de de Waal sobre os tópicos tratados de uma maneira bastante peculiar – i.e., através dos olhos do autor. Por razões óbvias, essa é uma abordagem muito oportuna para uma obra que considera o tema ‘empatia’.

Notas

1 O tópico ‘empatia’ vem sendo tão abordado (seja direta ou indiretamente) em grandes filmes internacionais que alguns críticos de cinema têm se referido a 2016 como “um ano de empatia”: <http://www.craveonline.com/entertainment/1178765-year-empathy-16-best-movies-2016>. Acesso em: 04/05/2017. Tal tema também é analisado de maneira ainda mais aprofundada em Empatía: Una historia sobre el respecto animal contada por un escéptico, documentário recém-lançado do diretor e escritor espanhol Ed Antoja: <http://documentalempatia.com/>. Acesso em: 04/05/2017.

2 O ex-presidente norte-americano Barack Obama, por exemplo, continuamente reforçou em suas falas a importância e necessidade de ações empáticas para a construção de um mundo mais tolerante e compassivo. Uma compilação de discursos e entrevistas em que Obama aborda a questão da empatia pode ser encontrada em: <http://cultureofempathy.com/Obama/VideoClips.htm>. Acesso em: 04/05/2017.

3 Frans de Waal ocupa os cargos de Charles Howard Candler Professor of Primate Behavior no Departamento de Psicologia de Emory University e Diretor do Living Links Center – Center for the Advanced Study of Ape and Human Evolution. Além de ter publicado inúmeros artigos em periódicos científicos, de Waal é autor/editor de mais de uma dúzia de livros. Maiores informações sobre de Waal e suas publicações podem ser encontradas em: <http://www.yerkes.emory.edu/research/divisions/developmental_cognitive_neuroscience/dewaal_frans.ht ml>. Acesso em: 04/05/2017.

Gabriel Garmendia da Trindad – University of BIrmingha, Grã-Bretanha.  Doutorando em Global Ethics no Centre for the Study of Global Ethics, Department of Philosophy, University of Birmingham. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6770358458457650.  E-mail: [email protected]

Ana Paula Foletto Marin – Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Mestre em Philosophy of Health and Happiness pelo Department of Philosophy, University of Birmingham. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8155173813323590.  E-mail: [email protected]

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Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino – AQUINO (SY)

AQUINO, Santo Tomás de. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Tradução e introdução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. Resenha de: BELLO, Joathas Soares. Synesis, Petrópolis, v. 7, n.1, p.155-158, jan./jun., 2015.

Os Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino, publicados pela Editora Vozes, trazem dois textos fundamentais para a compreensão da questão política no Aquinate: as “Questões sobre a lei na Suma Teológica” e o Do reino ou do governo dos príncipes ao rei de Chipre. A tradução dos dois textos, feita por Francisco Benjamin de Souza Neto, está baseada no texto crítico da edição leonina sob sua forma mais recente. O tradutor nos brindou, ainda, com uma introdução, na qual apresenta uma síntese dos textos.

Para Tomás de Aquino, as reflexão e prática política e jurídica são inseparáveis da ética: o exercício do governo, as relações sociais, as leis, o bem comum, devem estar em harmonia com o que é considerado bom e justo para o indivíduo – ao contrário da ciência política moderna, inaugurada por Maquiavel, em que a prática política é considerada autônoma, independente da ética individual. A ética tomasiana, por sua vez, enquanto fundamentação do agir formalmente ético, é inseparável da moral, enquanto conteúdo concreto em que a forma da ética se realiza – ao contrário da concepção formalista inaugurada por Kant, que acabou por estabelecer uma dicotomia entre a forma do agir ético e a moral como conjunto de costumes ou leis que variam de povo para povo e que, portanto, é múltipla e não universal. De outra parte, ética/moral têm uma fundamentação metafísica, estão ancoradas no ser mesmo da pessoa humana, na sua natureza ou essência, naquilo que a tradição clássica chamou de Lei (moral) natural, que não deve ser entendida como alguma espécie de dado “espontâneo” ou meramente biológico, mas como a leitura ou interpretação que a razão humana faz das inclinações naturais e consequente promulgação dos deveres/direitos daí decorrentes –“natureza” aqui tem o sentido clássico  anterior à separação entre natureza e espírito ou natureza e história ou natureza e cultura, etc.; também ou principalmente a razão constitui a natureza da pessoa humana. Deve-se dizer, ainda, que tal Lei natural é um reflexo do que Santo Tomás chamou de Lei Eterna, isto é, a Sabedoria eterna de Deus, pela qual este pensou e criou suas criaturas –a qual não deve ser confundida com os dez mandamentos ou Lei divina positiva ou revelada para auxiliar o homem a conhecer seus deveres morais–, Sabedoria esta que está espelhada no próprio âmago da criação. Em síntese, pode-se dizer que, ao estudarmos política em Santo Tomás, estudamos conjuntamente o direito, a ética, a moral, a metafísica (antropologia filosófica e teologia natural), e aludimos à teologia moral. Como é característico no pensamento tomasiano, a realidade –no caso, a realidade política– é compreendida nas suas múltiplas relações ou conexões com outros âmbitos do real, sem os quais não chegaria a ser entendida de modo mais pleno.

O homem é um “animal sociável e político”: desprovido de instrumentos que lhe garantam automaticamente a sobrevivência, mas dotado de razão para buscar os meios da existência, não pode, sozinho, encontrar tudo o que necessita, sendo-lhe natural, portanto, a vida social –ao contrário do que diria a filosofia política de Thomas Hobbes, segundo o qual o homem, no “estado de natureza”, é “o lobo do homem”, e o Estado é um artifício, o “Leviatã” que, por meio da força, impõe a “paz”. E se o homem não pode viver sua vida a não ser em sociedade, é preciso sobrepor aos bens particulares o bem comum de todos. A política é a arte de dirigir a multidão à consecução do bem comum –e não meramente um jogo de luta pelo poder, como a modernidade passaria a considerar–, para a qual é imprescindível a presença de um governante, que saiba harmonizar os interesses presentes na sociedade, subordinando-os aos interesses mais gerais.

Quando o governante busca seu bem privado, é injusto e perverso o governo: tirania (governo injusto de um só), oligarquia (governo injusto de alguns poucos ricos) e “democracia” (governo injusto de muitos) –não há que se entender, aqui, a palavra no sentido moderno, mas como oposição à politeia, como “demagogia”. Os governos justos são: a politia(transliteração latina de politeia) ou governo da multidão, a aristocracia ou governo de poucos, porém virtuosos (os “melhores”), e a realeza ou monarquia, isto é, o governo de um só, o rei. No De Regno, Tomás diz preferir o governo do rei para realizar o objetivo primordial da sociedade, que é a unidade da paz, precisamente porque considera que um só tem mais condições de evitar a dissensão; mas no Tratado da Lei se inclina a um governo misto, que combina os três regimes justos: “Esta é a organização política mais perfeita, bem mesclada do reino, enquanto um preside; da aristocracia, enquanto muitos exercem o principado segundo a virtude; e da democracia, isto é, do poder do povo, porque dentre os populares podem ser eleitos os príncipes e ao povo pertence a eleição dos príncipes” (S.Th I-II, q105, a2).

O fundamental, no governo, é a orientação da sociedade ao bem comum; o governante não pode deliberar sobre este bem comum, mas tão somente sobre os meios para alcançá-lo. Nesse sentido, Tomás não veria com bons olhos uma democracia que se entendesse, não como método que faz a multidão participar da eleição dos meios ou estratégias políticas, mas como fim do próprio processo político, como se a noção do bem comum pudesse ser constantemente refeita por novas demandas.

Entre os regimes injustos, a “democracia” é o menos pior, porque os muitos governantes se atrapalham, o que minimiza os estragos do regime; o pior é a tirania, pois se busca somente o bem de um. Os tiranos se esmeram para que seus súditos não sejam virtuosos ou magnânimos, perdendo assim a capacidade de reagir a seu regime; semeiam discórdias entre os súditos, para que não haja entendimento entre eles e assim sua tirania possa se exercer mais facilmente. Tomás reconhece à sociedade o direito de destituir o governante instituído ou lhe refrear o poder, caso dele abuse tiranicamente. Ao tirano, cujo governo só se sustenta pelo temor, Deus não permite que reine por muito tempo.

Cabe destacar, aqui, dois princípios estabelecidos no Tratado da Lei, para compreender este “princípio da rebelião”: o primeiro, de que uma lei humana é injusta, se contradiz a Lei natural (S.Th I-II, q95, a2); e o segundo, de que a autoridade política pertence ao povo (ou a seus representantes): “Ora, ordenar algo para o bem comum compete a toda a multidão ou a alguém a quem cabe gerir fazendo as vezes de toda a multidão. Portanto, estabelecer a lei pertence a toda a multidão ou à pessoa pública à qual compete cuidar de toda a multidão” (S.Th I-II, q90, a3) –vale à pena mencionar o seguinte comentário de Domingo de Soto, tomista da Escola de Salamanca: “os reis e os príncipes são criados pelo povo, aos quais [(reis e príncipes), o povo] transpassa seu império e potestade” (Sobre a justiça e o direito). Este segundo princípio não implica menoscabo da ideia bíblica de que “todo poder vem de Deus”, precisamente porque a Lei natural é uma participação na Lei eterna, e a autoridade humana é uma participação no domínio de Deus sobre os homens. A política não significa uma ordem humana independente da ordem cósmica, mas inserida na mesma, e com isso podemos entender melhor a relação entre a vida política e o sentido religioso da vida humana segundo Santo Tomás.

O fim da sociedade humana é a vida virtuosa, mas o fim último do homem é a fruição divina, assim o fim último da multidão também é chegar à fruição divina; daí que os governantes humanos devam estar sujeitos à Igreja, que realiza a obra de Cristo, de conduzir os homens à bem-aventurança eterna –trata-se, não de confusão entre Estado e Igreja (teocracia), mas de uma distinção sem separação, com uma subordinação do Estado, não nos assuntos eminentemente políticos, mas naquilo que toca à salvação dos homens.

Para finalizar, são três as condições exigidas para uma boa vida da multidão: a unidade da paz, o procedimento virtuoso dos cidadãos (isto é, a ação em conformidade com o bem moral que se expressa na Lei natural), e abundância do necessário para o viver bem.

Temos aqui uma teoria política inexequível nos dias atuais? Talvez… Mas se trata de uma teoria necessária para mitigar os danos do “realismo” político maquiaveliano, evidenciando que a prática política deve se fazer na busca do bem comum, ainda que o conteúdo do mesmo já não seja tão evidente para nós como fora para Tomás, desde a perspectiva clássica e cristã por ele assumida.

Referências

TOMÁS DE AQUINO (SANTO). Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Tradução e introdução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Editora Vozes, 2011 (Coleção Textos Filosóficos).

Joathas Soares Bello – Faculdade São Bento do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra, Espanha. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0908316222954469.  E-mail: [email protected]

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Testimony: a philosophical study – COADY (SY)

COADY, C. A. J. Testimony: a philosophical study. Oxford: Clarendon Press, 1992. Resenha de: SILVA, Robson de Oliveira. Synesis, Petrópolis, v. 6, n. 1, p. 245-247, jan./jun., 2014.

Um dos méritos da filosofia praticada na segunda metade do século XX é a retomada de questões importantes na história do pensamento, sob luz nova. Alguns autores proporcionaram uma renovação da abordagem acerca da filosofia prática, por meio da colaboração significativa de Manfred Riedel. Igualmente foi reabilitada a perspectiva acerca do papel dos preconceitos no edifício do saber, graças à reflexão de Hans-Georg Gadamer. Com esse mesmo espírito, o conceito de testemunho, que tem sido objeto de reflexões desde a crítica de David Hume, tornou-se tema de disputa de parte da comunidade científica especializada. Por este motivo, é pertinente esclarecer a amplitude da crítica que o pensamento moderno levantou contra esse conceito, além de averiguar se ainda é possível sustentá-la.

O livro de C. A. J. Coady, Testimony: a philosophical study, ainda inédito no Brasil, é importante para o movimento de reabilitação do valor epistêmico do testemunho. O problema destacado pelo autor, que percorre os últimos decênios de disputas epistêmicas, poderia ser bem resumido na seguinte questão: o conhecimento humano possui outras fontes para sua constituição, além de sensibilidade, memória e razão? A tradição moderna, capitaneada por Hume, tende a diminuir a importância do testemunho na produção do conhecimento, privilegiando as fontes epistêmicas internas ao sujeito. Nesta obra, o autor quer ocupar-se do papel fundamental que o testemunho possui enquanto fonte confiável de conteúdos epistêmicos.

A obra está dividida, materialmente, em cinco seções, cada qual com suas subseções. No entanto, o conjunto revela, formalmente, duas grandes partes. Na primeira, que reúne as quatro primeiras seções, o autor apresenta a problemática do testemunho, definindo-a e introduzindo o leitor na história do conceito, com suas armadilhas e possíveis soluções. Coady não deixa de lado nem pequenos, nem grandes autores que trataram do assunto. Vai desde os clássicos, passando pelos medievais e dedica-se especialmente ao que chamou “fundamentalismo escocês” (Scottish Fundamentalism), indicação evidente a David Hume. Ele introduz também a referência a um autor menos conhecido, mas de importância na discussão: Thomas Reid. A segunda parte do livro possui uma abordagem mais prática e trata de demonstrar como a noção de testemunho é utilizada em quatro disciplinas, desmitificando o discurso sobre a incapacidade de o conceito de testemunho fundamentar qualquer tipo de conhecimento científico: história, matemática, psicologia e ciências jurídicas são, ainda hoje, lugares próprios para o testemunho e seus conceitos derivados, como a autoridade.

No que concerne às questões teóricas, a obra de Coady pode ser apresentada como uma recente grande tentativa de defesa da comunidade científica, por meio da crítica ao individualismo epistêmico. Segundo o autor, a rejeição do conhecimento que se alcança a partir do trabalho de outros favorece a postura individualista em relação à epistemologia, o que seria uma posição equivocada, maximamente em se tratando das ciências da natureza. A importância dada à liberdade de pesquisa e ao ensino de conteúdos científicos (noção de autonomous knower), citada por Coady, superestima o aspecto autônomo da prática científica, além de minimizar os condicionamentos que a experiência revela. As ciências da natureza apontam reiteradamente para a necessidade da busca em comunidade, o que vai de encontro ao espírito moderno, que privilegia o sujeito. A expressão conceitual autonomous knower aponta para a atitude de absoluta independência epistêmica do pesquisador em relação a qualquer ponto referencial, seja ele uma instituição ou outro pesquisador. Independência que, segundo Coady, jamais acontece concretamente na ciência.

Sob esta perspectiva míope quanto à ciência in fieri, Coady sugere a reabilitação da noção de testemunho como fonte de conhecimento, destacando que esse conceito em nada diminui a importância da autonomia na busca científica. Com efeito, a autonomia cognitiva nada perde com a aceitação de que o processo epistêmico apoia-se, em muito, na labuta de outros que vieram antes. Além disso, o autor lembra que o aspecto mais importante da autonomia não é seu viés epistêmico, praticamente impossível de ser erradicado. No que concerne à autonomia, o que não se pode perder de vista, segundo o autor, é sua abordagem ética. A falta de autonomia e isenção ética do cientista é o que coloca a prática científica sob olhar de suspeição e não a consciência de que seus trabalhos e estudos dependem de conhecimentos anteriores aos que ele pretende defender.

O livro de C. A. J. Coady evidencia os limites do pensamento de inspiração moderna. A aplicação dos princípios da filosofia moderna nas ciências naturais – especialmente a ideia de autonomia – promove um paulatino enclausuramento do pesquisador, em detrimento da comunidade científica. Por outro lado, é evidente, a reflexão acerca do papel do testemunho expande suas influências para além das ciências naturais. Outras disciplinas se beneficiam com a valorização do testemunho como fonte de conhecimento epistêmico. Um ponto controverso do livro talvez seja a fundamentação do testemunho. O que dá justificação e garante a capacidade epistêmica do testemunho é a autoridade, que empresta sua confiabilidade aos conhecimentos transmitidos por ele. No entanto, a justificação epistêmica não pode ter outro fundamento que a metafísica, com o risco de cometer petição de princípio. É o ser quem garante os conteúdos testemunhados pela autoridade e não ela mesma. Embora se possa discutir esse ponto ou outro, o livro é interessante para quem pretende compreender como acontece a prática científica.

Referência

COADY, C. A. J. Testimony: a philosophical study. Oxford: Clarendon Press, 1992.

Robson de Oliveira Silva – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutorando na Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/7150038239237488. E-mail: [email protected]

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La nouvelle Héloïse – ROUSSEAU (SY)

ROUSSEAU, Jean-Jacques. La nouvelle Héloïse. Paris: Librairie Générale Française, 2008. Resenha de: GONÇALVES2, Marcos Fernandes. A concepção do espetáculo como supérfluo1. Synesis, Petrópolis, v.3, n.1, p. 86-98, jan./jun., 2011.

Em A nova Heloísa, Rousseau desenvolve uma crítica à função do teatro na sociedade. Saint Preux, em suas idas a Paris, pôde observar o teor de seus espetáculos enquanto formadores de consciência e indicadores de luxo e ociosidade. A análise do filósofo no presente romance é muito semelhante à desenvolvida em seu escrito intitulado Carta a d’Alembert sobre os espetáculos, que versa constantemente sobre o assunto que tanto ocupava o tempo do genebrino. Desta forma, poder-se-á constatar no presente escrito que até a concepção do filósofo acerca da arte em questão sofre a influência de seus estudos críticos sobre o luxo e supérfluo cultivados pelo homem social. Além disso, existe uma analogia à questão de o homem civilizado estar sempre encenando sua vida social, como num constante espetáculo3, ao invés de manifestar seus verdadeiros sentimentos aos seus semelhantes. Desta forma, o teatro assume na ótica rousseauniana o estatuto de um reflexo da falsidade e das relações de interesse presentes na sociedade. Em suma, o que se pretende estabelecer são os parâmetros da crítica ao luxo, ao inútil e à ociosidade que se manifesta no artifício do homem social em tentar representar a si mesmo e o meio em que vive.

Poder-se-ia afirmar que os espetáculos conseguem desempenhar uma função pedagógica na sociedade em que residem, ou não passam de mero fruto da ociosidade dos homens com a finalidade de preencher mais um dos caprichos humanos? Da mesma forma que os indivíduos engendram um número incontável de novas necessidades para ocuparem seu tempo e satisfazerem suas paixões, o teatro surge como um novo meio de se buscar a felicidade em algo efêmero. O espectador vai ao teatro não apenas para assistir, mas também para se sentir como aquela personagem que admira e que passa a constituir um paradigma a ser imitado. Rousseau assinala em sua crítica ao luxo a fundamental importância de se priorizar aquilo que pode trazer um bem estar ao ser humano. De outra forma, se a arte de encenar se apresenta como algo de pouco préstimo ao gênero humano, fatalmente será classificada como mais uma invenção humana supérflua. Há que se desenvolver uma plena expressão da realidade, em que o dito em cena possa condizer com a realidade daqueles assistem o espetáculo. A expressão inútil4 do espetáculo pode ser definida como uma inação no sentido de não se conseguir obter uma transcendência das palavras ditas no palco à realidade a que se dirigem:

Conhecem-se assim as conversas que aqui se mantêm, mas nada do que pode servir para apreciá-las. Digo o mesmo quanto à maioria dos novos escritos, digo o mesmo da própria Cena que, desde Molière, é bem mais um lugar em que se declamam bonitas conversas do que a representação da vida civil. (ROUSSEAU, 1994, p.227).

A razão da crítica se dá pelo papel que assume a representação na vida dos citadinos, se situando mais como um espetáculo com o objetivo de gerar distração do que propriamente despertar a consciência para a realidade circundante. Com qual objetivo se declamam bonitas conversas senão o de distanciar o olhar do espectador das questões concernentes ao contexto em que vive5? Rousseau cobra um compromisso com a realidade que possa conferir à arte um distanciamento daquilo que considera supérfluo. Os bens desejados pelo homem do estado civil se constituem em luxo pernicioso à medida que roubam-lhe seu tempo e retiram-lhe sua independência, pois não lhe dão a oportunidade de viver sem eles. Com isso, de um estado de liberdade primitiva, em sociedade, o indivíduo adquire necessidades e paixões que ao mesmo tempo lhe causam prazer e tormento. Todo prazer gerado pelo luxo se caracteriza como algo efêmero que se findará no próximo anseio. É justamente no próprio desfrute do prazer que surge o tormento por conta de uma consciência de sua finitude. Nada pode garantir ao ser humano a felicidade peremptória e, desta forma, é preciso estar sempre em busca de novas distrações. Esse ato de buscar constantemente distrações futuras, que na maioria das vezes não são necessárias, usurpa o tempo das pessoas e as escraviza às suas paixões. A esse respeito, Rousseau argumenta a d’Alembert o porquê de sua reprovação aos espetáculos:

[…] vejo, de início, que um espetáculo é uma distração e, caso na verdade necessite o homem de distrações, concordareis ao menos que sejam elas permitidas na medida em que são necessárias e que qualquer distração inútil constitui um mal para um ser cuja vida é tão curta e o tempo tão preciso. (ROUSSEAU, 1958, p. 346).

Como visto, a não ser que haja uma preocupação que vá além do âmbito da distração, o espetáculo está fadado a se restringir a algo dispensável da vida em sociedade com relação à consolidação do bem-estar de todos. Nesse ponto, é possível constatar que há uma inevitável associação do espetáculo à presença da ociosidade na sociedade. Homens que possuem tempo para frequentar encenações públicas6 são ociosos e gastam seu tempo com vãs necessidades para preencher as lacunas de sua inação. Podem ser caracterizados como aqueles que não têm uma consciência madura do valor que se deve dar ao seu tempo, isto é, do quão precioso é saber utilizar de maneira correta um bem tão escasso em sociedade: “O bom emprego do tempo torna o tempo mais precioso ainda, e, quanto mais se aproveita, menos se quer perdê-lo.” (ROUSSEAU, 1958, p. 346). O indivíduo absorvido por suas inúmeras paixões e necessidades recentes não consegue encontrar uma ocasião oportuna para poder gozar dos bens que adquire mediante seu trabalho. Pelo fato de estar sempre à procura de novas realizações e distrações, o homem civilizado nunca tem o tempo adequado para vivê-las com a intensidade requerida. É esse, em grande parte, o problema do luxo: propicia ao seu possuidor toda a ostentação desejada aos olhos alheios, contudo retira ao próprio dono o momento de quietude para gozá-los.

As peças teatrais parisienses, segundo a observação de Saint-Preux, embora possam possuir certa ligação com o coração humano, não conseguem compor um quadro que retrate a sociedade plena que as acolhe. Embora a encenação seja nada mais que um reflexo da sociedade excludente e desigual da qual faz parte, possui uma forte tendência a disfarçar através de uma conveniente máscara os problemas sociais. Sua finalidade em vista disso, na maioria das vezes, se resume ao divertimento alienante que pode proporcionar às pessoas. Eis então uma utilidade inegável do espetáculo: divertir e distrair as pessoas, ocupar seu tempo ocioso. E desta forma, corre-se um grande risco de se criar uma sociedade de homens pacientes e telespectadores de sua realidade, de sujeitos egoístas e sem noção de seus costumes por conta de uma formação que não tem interesse na instrução de pessoas conscientes. O amigo de Júlia especifica bem essa faceta ao descrever-lhe com qual intenção se desenvolvem as peças parisienses:

Várias dessas (peças) são trágicas mas pouco emocionantes e, se nelas encontramos alguns sentimentos naturais e alguma verdadeira ligação com o coração humano, não oferecem elas nenhuma espécie de instrução sobre os costumes particulares do povo que divertem. (ROUSSEAU, 1958, p. 227).

Há na proposta de frugalidade rousseauniana a tentativa de afastar gradualmente do convívio humano toda espécie de superfluidade que possa corromper e gerar desigualdade no meio social. Desta forma, a sua reprovação ocorre em decorrência dos divertimentos oferecidos pelos espetáculos, que se dão sob a forma de inação de alguns em detrimento do trabalho de outros. Nem todos têm tempo e condições financeiras para freqüentarem um teatro. Aquele que trabalha para o desenvolvimento da sociedade em que vive não possui a ociosidade para se deleitar com prazeres que em nada acrescentariam ao bem estar comum a não ser uma diversão passageira: “Do mesmo modo, vê-se constantemente o hábito do trabalho tornar insuportável a inação e uma consciência sadia extinguir o gosto dos prazeres frívolos”. (ROUSSEAU, 1958, p. 346). Rousseau ressalta a d’Alembert que existe uma incompatibilidade entre o gosto por frivolidades e a consciência que almeja a edificação da realidade e da ação pelo trabalho. O homem não foi feito para permanecer ocioso assistindo passivamente a construção de uma realidade utópica à sua volta, como propõe a fantasia teatral. Ele possui a função de afirmarse a si mesmo enquanto indivíduo autêntico sem a necessidade de nenhuma espécie de ornamento ou máscara para viver socialmente. Todavia, o espetáculo tem a errônea preocupação em dar aos homens a falsa noção de escolha do caminho a se seguir. Ao assistir uma peça, o homem parisiense vê-se imerso em uma outra realidade que não corresponde à sua e, por efêmeros instantes, pode converter-se naquilo que sempre almejara ser. Desta forma, a representação conduz o indivíduo a uma fuga da realidade e faz com esta se perpetue ao exercer seu fascínio sobre sua consciência. Fica bem explícita essa questão ao Saint-Preux analisar de maneira eficiente o aspecto seletivo da cena parisiense: “Há nesta grande cidade quinhentas ou seiscentas mil almas de que nunca se fala no Palco”. (ROUSSEAU, 1994, p. 228). Ora, é obvio que se o espetáculo tem o intuito de apresentar ao público algo que lhe provoque momentos prazerosos de fuga, é de suma importância levar-lhes personagens ilustres que estejam acima de sua categoria. Com isso, o espetáculo pode ser conceituado como duplamente discriminatório: seleciona tanto os que assistem quanto os que são assistidos. Ninguém manifesta o interesse em ver histórias de pessoas comuns de uma condição social baixa; a vida dos ilustres é mais interessante de ser apreciada. O espetáculo se afirma assim como uma genuína extensão da realidade exterior que apenas preza pelo esteticamente aceitável. É justamente com a pretensão de se criar o belo, que não se tem no mundo real, que o espetáculo multiplica ainda mais os preconceitos tentando disfarçá-los. O que se pode notar é que os autores, sob o engodo de distração e divertimento, trazem para dentro da cena os prejuízos que causam a infelicidade fora dela. Apenas há interesse na contemplação de pessoas distintas e bonitas, como se a sociedade real fosse formada unicamente por tais indivíduos. Contudo, o fato de se omitir as mazelas sociais na cena, revela sob o pretexto da fantasia a real indiferença e o contragosto em perceber o lado feio que impregna toda a sociedade. Nesse ponto, o palco se constitui um refúgio, uma ilha em que o espectador tem a ilusão de se isentar de toda a mácula e corrupção do mundo. Em reprovação à mentalidade preconceituosa, Saint-Preux lembra Júlia sobre dois exemplos: “Molière ousou pintar burgueses e artesãos tanto quanto marqueses; Sócrates fazia falar cocheiros, marceneiros, sapateiros e operários”. (ROUSSEAU, 1994, p.228).

Uma vez que fica explícita a intenção de se buscar uma identidade fora de si mesmo, pode-se corroborar a existência de um descontentamento com seu próprio eu que não atende suas exigências. A opção pelo que é simples e natural não traz a satisfação adequada ao grau de ociosidade a que chegou o homem moderno. Destarte, é necessário fantasiar ser aquilo que não se é e engendrar novas paixões que não seriam suas se não assumisse uma outra identidade. Rousseau responde a d’Alembert que é com base em uma necessidade de negar a si mesmo que o homem recorre às distrações dos espetáculos: “É, porém, o descontentamento consigo mesmo, é o peso da ociosidade, é o esquecimento dos gostos simples e naturais que tornam tão necessária uma distração exótica”. (ROUSSEAU, 1958, p.346). Ao definir o teatro como uma distração exótica, na Carta sobre aos espetáculos, o genebrino tenta descrever o fato de espectador encontrar prazer unicamente fora de si. Ou seja, é no palco que o observador se sente plenamente realizado e autêntico com sua falsa identidade. Contudo, o gozo não se dá num processo de representação, mas na própria encarnação da identidade da personagem que passa a se constituir o espectador7. Essa fusão entre personagem e observador constitui um aspecto indesejável, pois anula a autonomia do indivíduo que põe-se a viver fora de si sem uma consciência e valores próprios: “De modo algum aprecio a possibilidade de constantemente ter-se de levar o coração à cena, como se não tivesse bem dentro de nós”. (ROUSSEAU, 1958, p. 346). É interessante notar que não é apenas o espectador que leva seu coração à cena, mas igualmente, o próprio ator que compõe a personagem sacrifica seu eu para dar vida ao seu rebento8. Qual é o reflexo de tudo isso para a vida em sociedade? Ora, os espetáculos são criados para alimentar os gostos das pessoas, para entretê-las e retratá-las com a melhor aparência possível. Mesmo que o retrato apresente pouca similaridade com o modelo original, o mais importante é fazer com que cada um se manifeste o mais satisfeito possível com seu aspecto, conforme expressa Rousseau a d’Alembert:

Em geral, a cena é um quadro das paixões humanas, cujo original está em todos os corações, mas, se o pintor não tivesse o cuidado de acariciar suas paixões, os espectadores logo ficariam desgostosos e não desejariam mais ver-se sob um aspecto que fizesse com que desprezassem a si próprios. (ROUSSEAU, 1958, p. 348).

Em outros termos, poder-se-ia afirmar que o espetáculo, assim como a polidez, constitui uma arte de agradar as pessoas, mostrando-lhes, para satisfação de seu narcisismo, um reflexo que as agrade. Desta forma, como a maioria das relações estabelecidas na sociedade, a arte adquire também um caráter de conveniência social e passa a se identificar com os anseios de quem a assiste, para cumprir apenas seu papel de distração e não de crítica.

Rousseau reconhece que a principal utilidade do espetáculo se resume a agradar gerando, de certa maneira, uma dissimulada harmonia social9:

Quanto à espécie dos espetáculos, é ela certamente determinada pelo prazer que proporcionam, não pela sua utilidade. Talvez se possa encontrar alguma utilidade neles, mas o objetivo principal é agradar e, divertindo-se o povo, alcança-se suficientemente o objetivo. (ROUSSEAU, 1958, p. 347).

Existe uma grande periculosidade sob o véu de uma suposta harmonia que começa e termina com o abrir e cerrar de cortinas. Cada indivíduo que se compraz diante da cena parisiense vê apenas sua própria fortuna e felicidade, sua satisfação plena não possui nenhuma relação com o benefício comum, diz respeito tão somente ao êxito ou fracasso daquele que o representa no palco10. Todos querem obter o sucesso em detrimento da derrocada do outro. Todavia, é muito interessante analisar que o espetáculo possui a função de maquiar a realidade desigual que se estende para além dos palcos e das platéias. À medida que só se vê representar pessoas de condições sociais respeitáveis, fica clara a tentativa de se criar uma suposta sociedade seletiva11 em que os paradigmas de virtude e dignidade são atribuídos apenas a uma pequena aristocracia. A cena moderna esconde atrás de suas cortinas a desigualdade entre ricos e miseráveis presente nas ruas parisienses e dá lugar à representação de uma sociedade épica em que nunca se ouviu falar em pobreza. Com base nisso, Saint-Preux revela a Júlia que o espetáculo já não se preocupa em mostrar os homens como verdadeiramente são, e sim apresenta-os sob adornos na tentativa de criar um outra realidade:

[…] é assim que a cena moderna não abandona mais sua entediante dignidade. Nela não se sabe mais mostrar os homens senão em trajes dourados. Parece até que a França somente é povoada de condes e cavaleiros e que mais o povo é miserável e mendigo mais a representação do povo é brilhante e magnífica. (ROUSSEAU, 1994, p. 228).

A função social do teatro, então, é cumprida de acordo o esperado uma vez é preciso disfarçar o lado desagradável da sociedade com a intenção de torná-la, ao menos aparentemente, mais harmoniosa. E qual o melhor lugar para se fazer isso, a não ser em um palco onde não se vê indivíduos miseráveis e degradados? Enquanto durar a encenação, será nutrida a falsa sensação da existência de uma sociedade mais justa e igualitária cujos problemas apresentados são solucionados até o fim do espetáculo.

Dificilmente pode-se extrair uma eficiente faceta pedagógica e benéfica aos costumes e à virtude das peças teatrais. Tanto em A nova Heloísa quanto na Carta sobre os espetáculos, Rousseau assinala que a exígua tentativa em se instruir o povo nas representações fracassa, ou por uma interpretação errônea de quem assiste ou por um método de ensinar inadequado do assistido12. A comédia, por exemplo, tem por objetivo primeiro gerar divertimento, contudo no seu próprio ofício desenvolve um método de retratação caricatural com a finalidade de provocar risos através do ridículo. O interessante, segundo Saint-Preux relata a Júlia, é que ao invés do ridículo gerar repugnância àqueles dele caçoam, acaba surtindo um efeito contrário de imitação de vícios e corrupções: “O resultado é que, ao pintar o ridículo das condições que servem de exemplo aos outros, ele é antes difundido do que eliminado”. (ROUSSEAU, 1994, p. 228-229). Mas qual a causa dessa difusão ilógica do que se apresenta como ridículo em cena? Por que há a imitação13 do que se configura como algo aparentemente ruim? O próprio amigo de Júlia trata de responder a questão dando sequência à sua arguição:

[…] o povo, sempre imitador dos ricos, vai menos ao teatro para rir de suas loucuras do que para estudá-las e tornar-se ainda mais louco do que eles ao imitá-los. Eis do que o próprio Molière foi causa, corrigiu a corte infectando a cidade e seus ridículos marqueses foram o primeiro modelo dos janotas burgueses que os sucederam. (ROUSSEAU, 1994, p. 229).

Eis um outro problema que surge em virtude da índole seletiva das peças parisienses: a forte tendência em se criar uma espécie de etiqueta. O âmbito teatral adquiriu um significado de lugar de referência, em que se ensina às pessoas como se deve portar em sociedade. Desta forma, sua predileção pela representação de personalidades de alta estirpe, despertou uma errônea consciência de que suas atitudes demonstradas no palco seriam as mais plausíveis socialmente. As personagens em trajes dourados e com suas vidas fictícias tornaram-se paradigmas para pessoas que não possuíam um modelo de verdadeira virtude na vida real. Obviamente, o problema da imitação se configura como o ponto central que permite afirmar o teatro como um propagador do luxo:

Além desses efeitos do teatro relacionados com as coisas representadas, existem outros, não menos inevitáveis, que se ligam diretamente à cena e às personagens representadas, e a esses os genebrinos já citados atribuem o gosto pelo luxo, pela vestimenta e pela dissipação, que, com razão, temem introduzir entre nós, não é somente a frequentação dos comediantes, mas o teatro, que pode despertar esse gosto pelo aparato e vestuário dos atores. (ROUSSEAU, 1958, p.377).

Surge com isso um grande problema com relação ao espetáculo: como divertir o povo sem permitir que ele imite aquilo que assiste? Ora, a gênese da comédia, por exemplo, consiste na ridicularização dos vícios latentes de cada pessoa. Desta forma, isentar as pessoas do contato com a difusão de vícios, mentiras e corrupções deve caminhar necessariamente no sentido de privá-las do contato com o espetáculo. Não há um outro meio, pois o próprio genebrino

define a d’Alembert a boa comédia como aquela capaz de causar os maiores danos possíveis aos costumes:

Tudo, nela, é mau e pernicioso, tudo permite inferências aos espectadores e, baseando-se o próprio prazer do cômico num vício do coração humano, desse princípio se segue que, quanto mais agradável e perfeita é a comédia, mais funesta aos costumes é seu efeito. (ROUSSEAU, 1958, p. 359).

Desta maneira, sem adentrar ao estudo de um outro gênero, a crítica rousseauniana ao teatro de costumes se estrutura com base na análise do efeito nocivo que este causa nos espectadores. Dificilmente o gosto do público se volta às pessoas de bem que são representadas, pois faz parte da própria alma da peça tornar as más índoles mais interessantes que as boas. Há propositalmente a inclinação em dar uma maior altivez de iniciativas aos indivíduos corrompidos, enquanto às pessoas de bem é reservada uma apatia que não desperta nenhum interesse no público.  A esse respeito, Rousseau, apesar de admirar Molière, critica suas peças por conduzirem os espectadores à contemplação dos maus exemplos de sua sociedade representada:

[…] quem negará ser o teatro desse mesmo Molière, cujo talento admiro mais do que qualquer outra pessoa, uma escola de vícios e de maus costumes, mais perigoso do que os próprios livros em que se faz questão de ensiná-los? Seu maior cuidado está em pôr no ridículo a bondade e a simplicidade, e de colocar a astúcia e a mentira no lado que se tem interesse; suas pessoas de bem são somente pessoas que falam, seus corruptos são pessoas que agem e a quem os mais brilhantes sucessos favorecem com mais frequência; finalmente, a honra dos aplausos muito raramente cabe ao mais estimável e quase sempre cabe ao mais esperto. (ROUSSEAU, 1958, pp. 359-360).

Como fica claro, Rousseau reitera na Carta a d’Alembert sobre os espetáculos, através de uma critíca à obra de Molière, o caráter de distorção de valores exercido pelo representação. Há, indubitavelmente, uma forte tendência em se promover a distração pública com base na ridicularização de valores e exaltação de defeitos. Se, em determinadas ocasiões, os defeitos são postos à mostra com o intuito de serem eliminados, o que se dá efetivamente, amiúde, é o oposto do supostamente pretendido pelo autor.

Nas obras que foram trabalhadas, os espetáculos são vistos por Rousseau como uma forma de distração cujos benefícios compreendem elementos insignificantes se comparados aos vícios e maus exemplos que incitam em seus apreciadores. Quando se retoma a questão da própria utilidade enquanto um fator fundamental para a determinação consciente do que pode ser denominado de supérfluo, a arte de representar analisada por Saint-Preux não foge a essa classificação. O espetáculo, sob o pretexto de divertir, é um produto com o objetivo de satisfazer mais uma paixão engendrada socialmente e, ao mesmo tempo, é um meio de sugerir e induzir à invenção de outras.

Notas

1 Resenha submetida em 21/04/2011 e aprovada em 28/06/2011.

2 Mestre em Filosofia pela da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e atua como professor adjunto de Filosofia Política, Sociologia e Hermenêutica na Faculdade João Paulo II e Filosofia Geral, História e Ensino Religioso no Ensino Médio e Fundamental do Colégio Estadual Léo Pizzato. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3014358631184052. E-mail: [email protected]

3 “Toda sociedade desempenha uma espécie de teatro implícito e difuso que a institucionalização do teatro desperta, purifica e torna, por assim dizer, hiperbólico.” (PRADO Jr., 1975, p. 18).

4 Há que se ficar bem que claro que o espetáculo não é completamente inútil, todavia sua utilidade para Rousseau é insignificante diante de seus malefícios. A respeito do embate entre utilidade e divertimento, Bento Prado assevera: “O que o gênio, em sua solidão, não pode transformar é o destino, o conjunto de condições sociais psicológicas de delimitam, na série contínua dos possíveis, o grau ótimo de combinações entre divertimento e utilidade exigido pelo público real do teatro; ignorando tais restrições impostas por seu público real, o gênio instala sua obra no ar, e não marca um caminho viável para a cultura. É assim que Rousseau contesta a idéia de perfectibilidade contínua das artes e a substitui por aquela de uma perfeição máxima, segundo a forma histórica que serve de horizonte ao autor e ao público”. (PRADO Jr., 1975, p. 8).

5 Sobre a corrupção que se dá por vãs palavras diante da inação, Bento reflete o seguinte: “[…] aqui também essa corrupção é obra de uma humanidade separada do trabalho e da natureza, fechada no universo artificial dos salões, presa da retórica vã do galanteio. Porque o espectador ignora toda linguagem que não seja ornamento”. (PRADO Jr., 1975, p. 10).

6 É de suma importância compreender que aqui quando se utiliza do termo pública faz-se referência a uma dimensão coletiva. As peças são frequentadas por várias pessoas, desta forma pode-se dizer que possuem um caráter público. Contudo há um outro significado para o emprego do termo que não utilizamos neste capítulo. Este diz respeito aos espetáculos que se dão ao ar livre como, por exemplo, as encenações que ocorriam a céu aberto na Grécia Antiga.

7 Quanto à questão da relação entre ator e espectador, Bento tece algumas considerações: “Mas esse lugar, que, por sua forma, decide a natureza do encontro entre ator e espectador, é determinado ele próprio pela forma política da sociedade em que sem manifesta. Se o teatro só se estrutura, então, nos espaços que a sociedade lhe oferece, se as diferenças entre as formas de espetáculos remetem às diferentes formas de poder, esta tipologia dos espetáculos será necessariamente política”. (PRADO Jr., 1975, p. 13).

8 “Um comediante em cena, mostrando sentimentos que não são seus, dizendo o que lhe fazem dizer, representando amiúde um ser quimérico, aniquila-se, por assim dizer, anula-se com seu herói; e nesse esquecimento do homem, se algo dele resta, é para tornar-se o brinquedo dos espectadores. A situação do comediante é assim definida como alienação, perda de ser em proveito de outro imaginário. Mas essa anulação do homem em proveito do imaginário – o jogo da representação como desdobramento, mas, sobretudo, como supressão da presença – só tem virulência moral e prática porque pode imbricar-se imediatamente na prática social dada que a precede.” (PRADO Jr., 1975, pp. 17-18).

9 Contudo, é preciso deixar bem claro que na afirmação do divertimento, enquanto função principal do espetáculo, reside uma contribuição útil para a sociedade apontada pelo genebrino na Carta a d’Alembert: “A razão deseja que se favoreçam as distrações das pessoas cujas ocupações são prejudiciais e que se desvie dessas mesmas distrações aqueles cujas ocupações são úteis”. (ROUSSEAU, 1958, p. 377). Desta forma, o espetáculo adquire uma função paliativa impedindo os maus de praticarem seus atos reprováveis.

10 “[…] a alma do espectador se distancia da vontade moral e cívica, e reflete, à sua maneira, em suas paixões,o estilo do déspota cruel: as paixões não mais convergem na direção da constituição de um corpo coletivo e fecham cada espectador numa ilusória soberania.” (PRADO Jr., 1975, pp. 13-14).

11 “Na Nouvelle Héloise, descrição do teatro em Paris implica numa análise sociológica do teatro clássico: na cumplicidade entre a cena e seu público, é a pretensa universalidade do mundo de uma classe social que se afirma, suprimindo a representação (e reprimindo a realidade) das outras classes e das outras formas de humanidade.” (PRADO Jr., 1975, p. 14).

12 No concerne à função moral e pedagógica da cena, Rousseau adverte a preponderância de seus inconvenientes com a relação àquilo que poderia ofertar de benéfico: “[…] o efeito moral do espetáculo e do teatro nunca poderia ser bom e salutar em si mesmo, pois a considerar-lhe apenas as vantagens, nele não se encontra qualquer utilidade real que não seja superada pelos inconvenientes”. (ROUSSEAU, 1958, p. 377). Desta forma, vê-se decreta a face do espetáculo enquanto algo inútil e sem nenhum poder corrigir os costumes errôneos: “Ora, devido a uma conseqüência de sua própria inutilidade, o teatro, que influência alguma tem no sentido de corrigir os costumes, muito pode alterá-los”. (ROUSSEAU, 1958, p. 377)

13 “É, assim, com o mesmo tom virtuoso que Rousseau e Diderot definem os limites naturais arte e insistem na eficácia corruptora das formas desviantes da imitação, a representação do vício (ou da contra-natureza), passando a aparecer como causa necessária de falta de moral.” (PRADO Jr., 1975, p. 9).

Referências

GARCIA, Cláudio Boeira. As cidades e suas cenas: a crítica de Rousseau ao teatro. Ijuí/RS: Editora Unijuí, 1999. (Coleção “Ensaios políticos e filosofia”).

GOULEMOT, Jean M. “Présentation et Notes”. La nouvelle Héloïse. Paris: Librairie Générale Française, 2008.

GUYON, Bernad. “Notes”. Julie ou La nouvelle Heloise. Paris: Plêiade, 1964. (Oeuvres Complètes)

PRADO JUNIOR, Bento. “Gênese e Estrutura dos Espetáculos”. Estudos Cebrap, núm.14, outdez/1975. São Paulo, 1975.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a d’Alembert sobre os espetáculos. Tradução de Lourdes Santos Machado. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1958.

________. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção “Os Pensadores”).

_________. Júlia ou a nova Heloísa. Tradução de Fúlvia Moretto. Campinas:   Hucitec/Ed. Unicamp, 1994.

________. Julie ou La nouvelle Héloise. Paris: Garnier-Flammarion, 1967.

________. La nouvelle Héloïse. Paris: Librairie Générale Française, 2008.

Marcos Fernandes Gonçalves – Mestre em Filosofia pela da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e atua como professor adjunto de Filosofia Política, Sociologia e Hermenêutica na Faculdade João Paulo II e Filosofia Geral, História e Ensino Religioso no Ensino Médio e Fundamental do Colégio Estadual Léo Pizzato. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3014358631184052. E-mail: [email protected]

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