A reprodução do racismo: fazendeiros/negros e imigrantes no oeste paulista/1880-1914 | Karl Monsma

Domingo de carnaval de 1894. Na Fazenda Sant’Anna, município de São Carlos, no Oeste paulista, cinco colonos italianos festejavam no terreiro da fazenda a folia de momo, embalados pela música, dança e bebida. Num determinado momento, o grupo decidiu ir para uma estação ferroviária, onde, em frente a uma venda, continuou a pândega em meio a transeuntes que circulavam pelo local. O “crioulo” Narciso, de aproximadamente 30 anos, fazia uma visita de cortesia ao proprietário da venda, o brasileiro branco Guilherme Hopp. Por volta das seis horas da tarde, Guilherme, com a ajuda de Narciso, começou a fechar a venda. Os italianos pediram mais vinho, e Narciso transmitiu o pedido a Guilherme, mas este se negou, dizendo que a venda estava fechada. Quando o “crioulo” comunicou a recusa aos italianos, obstruindo a porta do estabelecimento, pelo menos quatro deles o atacaram, dando-lhe “tapas e ponta-pés”. Guilherme socorreu Narciso para dentro da casa e fechou a porta. No entanto, os italianos arrombaram a porta e novamente agrediram o “crioulo” com socos e facadas, “sendo que duas foram bem visíveis, pois que a faca entrando enroscou-se, demorando o assassino em tirá-la’’. Guilherme conseguiu puxar Narciso para o interior da casa novamente e o aconselhou que se escondesse na roça de milho, afim de que pudesse escapar da fúria dos italianos. Narciso não resistiu. No dia seguinte, foi encontrado morto no milharal. Os italianos sabiam que Guilherme era quem não queria lhes vender mais vinho, mas atacaram o mensageiro “crioulo”. Algumas semanas depois, Antonio Augusto, um jovem branco brasileiro, deu pancadas num “preto” porque faltou ao trabalho na fazenda onde Antonio atuava como mestre. Em resposta, o “preto” matou Antonio com uma facada. Leia Mais

Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição – MACHADO; CASTILHO (DSSC)

MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo; CASTILHO, Celso Thomas (Orgs). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição. São Paulo: EDUSP, 2015, 480 pp. Resenha de: DOMINGUES, Petrônio. Diacronie Studi di Storia Contemporanea, v. 28 n. 4, 2016.

Come si realizzò il processo che portò alla fine della schiavitù in Brasile? Soprattutto a partire dal protagonismo degli schiavi e dei liberti, oppure, genericamente, per merito dei brasiliani? Quali furono i meccanismi per la conquista della liberta e quali i limiti di tali conquiste nel contesto della schiavitù e in quello successivo? In altri termini, come si svolse il processo emancipazionista nella principale nazione dell’America Latina? E, in quest’ambito, come si sviluppò il periodo successivo all’abolizione della schiavitù, in uno scenario caratterizzato dalle lotte per i diritti e la cittadinanza? Domande a cui non è facile dare risposta, ma è attorno a queste e ad altre questioni legate al mondo della schiavitù e della libertà che si articola Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição, un libro curato dagli storici Maria Helena P. T. Machado, dell’Universidade de São Paulo (USP), e Celso Thomas Castilho, della Vanderbilt University.

Il libro è stato concepito a seguito di un convegno – realizzato nel 2010 – in partenariato tra la USP e la Vanderbilt University, sul tema della storia atlantica. Da questa collaborazione nacquero due seminari, che riunirono importanti ricercatori delle due istituzioni. Da questo dialogo sorse anche il simposio tematico Da abolição à emancipação: raça, gênero e identidade, coordinato da Maria Helena Machado e Celso Castilho e realizzato in occasione del XXVI Simpósio Nacional della Associação Nacional dos Pesquisadores Universitários de História (ANPUH), tenutosi nell’Universidade de São Paulo nel 2011. Dalle discussioni che ebbero luogo nel simposio nacque la prima bozza del libro. Con l’intento di arricchire la discussione, al complesso iniziale dei testi vennero aggiunti i lavori di altri ricercatori, invitati per l’occasione a prendervi parte.

Il libro consiste perciò in un’opera collettanea che riunisce ventuno capitoli scritti da diversi storici, provenienti da università brasiliane e straniere (dell’Europa e degli Stati Uniti). Come è comune in questo tipo di miscellanea, gli autori affrontano diverse questioni, fanno ricorso a diversi tipi di fonti per documentare l’esperienza storica, complessa e sfaccettata, vissuta dai discendenti degli africani, nel processo attraverso cui dalla schiavitù divennero uomini liberi. Dal punto di vista della struttura testuale, il libro è diviso in quattro parti. Nella prima, intitolata «Disputando Liberdades», composta dai saggi di Maria Helena P. T. Machado e Flávio Gomes (Da Abolição ao pós-emancipação: ensaiando alguns caminhos para outros percursos), di Maíra Chinelatto Alves (Crimes de escravos e caminhos da autonomia. Campinas, 1876), di Marília Bueno de Araújo Ariza (Comparando brigas e liberdade: contratos de locação de serviços e ações de liberdade na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão, 1874-1884), di Thiago Leitão de Araújo (Nem escravos, nem libertos: os contratos de prestações de serviços nos últimos anos da escravidão na província de São Pedro) e di Edson Holanda Lima Barboza (Ela diz ser cearense: escravos e retirantes contra as correntes do tráfico interprovincial entre fronteiras do Norte, 1877-1880), il volume affronta le lotte degli schiavi e dei liberti in cerca di autonomia e libertà. I saggi problematizzano i significati di questa tanto agognata libertà nel contesto della schiavitù, specialmente nel periodo del suo sgretolamento, nella seconda metà del XIX secolo. Esplorando un nuovo (o rivisitando un’antico) canovaccio di ricerca sul processo di emancipazione, i testi evidenziano il protagonismo degli schiavi e dei liberti che, benché ancora in cattività, lottavano per la realizzazione di una via che li conducesse verso la libertà.

La seconda parte del libro, «Disputando liberdades: histórias de mulheres com seus filhos», costituita dai saggi di Enidelce Bertin (Uma ‘preta de caráter feroz’ e a resistência ao projeto de emancipação), di Camillia Cowling (‘Como escrava e como mãe’: mulheres e abolição em Havana e no Rio de Janeiro), di Lorena Féres da Silva Telles (Libertas entre contratos e aluguéis: trabalho doméstico em São Paulo às vésperas da Abolição) e di Ione Celeste J. de Sousa (‘Porque um menor não deve ficar exposto à ociosidade, origem de todos os vícios’: tutelas e soldadas e o trabalho de ingênuos na Bahia, 1870 a 1900), affronta il tema dell’agire storico dei liberti nella costruzione o nel consolidamento della conquista dell’autonomia e della libertà, a partire soprattutto dal ruolo giocato dalle schiave e dalle liberte come donne e madri. Questi saggi contribuiscono all’ampliamento degli studi incentrati sulle relazioni di genere nella schiavitù, aspetto ancora poco esplorato dagli specialisti di questo campo tematico.

Nella terza parte del libro, chiamata «Mobilização: dimensões e prática» e composta dai saggi di Ligia Fonseca Ferreira (De escravo a cidadão: Luiz Gama, voz negra no abolicionismo), di Renata Ribeiro Francisco (Pacto de tolerância e cidadania na cidade de São Paulo, 1850-1871), di José Maia Bezerra Neto (Se bom cativo, liberto melhor ainda: escravos, senhores e visões emancipadoras, 1850-1888), di Celso Thomas Castilho (‘Propõem-se a qualquer consignação, menos de escravos’: o problema da emancipação em Recife, c. 1870), di Ricardo Tadeu Caires Silva (A Sociedade Libertadora Sete Setembro e o encaminhamento da questão servil na província da Bahia, 1869-1878), di Renata Figueiredo Moraes (A Abolição no Brasil além do parlamento: as festas de maio de 1888), di Cláudia Regina Andrade dos Santos (Na rua, nos jornais e na tribuna: a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro, antes e depois da Abolição), di Clícea Maria Augusto de Miranda (Memórias e histórias da Guarda Negra: verso e reverso de uma combativa organização de libertos) e di Wlamyra Ribeiro de Albuquerque (O que pode haver em comum entre navalhistas, capangas e secretas? Rui Barbosa e outros sujeitos no tabuleiro da política do pós-abolição, 1889-1919), gli autori indirizzano il loro sguardo sulla questione dell’organizzazione dei differenti movimenti emancipazionisti e abolizionisti sorti nella seconda metà del XIX secolo e nel periodo successivo all’abolizione della schiavitù. L’obiettivo di questi saggi nella raccolta collettanea è quello di offrire al lettore un quadro ampio della mobilitazione sociale intorno alla lotta abolizionista, lotta che unì schiavi, liberti e uomini liberi; arruolò settori popolari, intermedi e delle élites, oltre ad avere articolato una rete di legami che coinvolgevano la città e la campagna – e le zone urbane e quelle rurali. Non sempre il movimento degli schiavi stabiliva punti comuni – quanto ai metodi di lotta, alle strategie di azione collettiva e al vocabolario politico – con altri movimenti sociali abolizionisti, tuttavia non si può negare che la mobilitazione in favore della “libertà” deve essere considerata nel suo «legame profondo con la realtà dei senzalas1 e degli sforzi degli schiavi e, più genericamente, dei poveri, per liberarsi dalla prigionia e dalle sue piaghe».

Nella quarta e ultima parte del libro, «Abolição em dimensão transnacional», costituita dai saggi di Maria Clara Sales Carneiro Sampaio (Negros sonhos: os projetos de colonização de afro-americanos no Brasil e na América Central durante a Guerra da Secessão), di Luciana Cruz Brito (Abolicionistas afro-americanos e suas interpretações sobre escravidão, liberdade e relações raciais no Brasil no século XIX) e di Ana Lucia Araujo (Memória Pública comparada da emancipação e da abolição da escravidão: Abraham Lincoln e Princesa Isabel), sono riuniti testi che schiudono una riflessione su una tematica ancora poco esplorata nella storiografia brasiliana che è la dimensione internazionale e atlantica del processo di abolizione della schiavitù in Brasile. Proponendosi di affrontare un contesto di circolazione delle idee, di narrazioni, interlocuzioni e “giochi di specchi interpretativi tra regioni”, i saggi contribuiscono ad una comprensione dell’abolizione della schiavitù come ad una questione propria di un emisfero, di vasta portata e di lungo periodo, che proiettava le domande, i sogni e le aspettative di diversi attori e segmenti sociali in Brasile e nelle Americhe.

Tra le molte novità prodotte negli ultimi tempi dalla storiografia brasiliana, una delle più importanti è stata l’emergere di un approccio rinnovato quanto alle esperienze della libertà e dei suoi limiti nel contesto della schiavitù e del periodo successivo all’abolizione; libertà molte volte provvisoria, costantemente minacciata e, soprattutto, limitata, il che imponeva ai liberti i problemi dell’autonomia e del vivere contando su loro stessi, passi necessari che dovevano essere intrapresi in seguito all’acquisizione giuridica e formale della libertà. Tornando-se livre riflette, pertanto, i progressi negli studi, tanto della storia sociale della schiavitù quanto della storia politica e sociale della sua abolizione. Il libro costituisce, anche un modello dell’integrazione in questo campo di studi di una storia del periodo successivo all’abolizione che, benché ancora sia soggetto a una definizione concettuale più solida, viene considerato come un «campo di studi derivato dalla schiavitù, senza che ci si limiti a questa». Il periodo post-abolizionista, in questa prospettiva, è inteso come il periodo che prende avvio con la soluzione abolizionista conservatrice e termina solamente nel momento in cui il debito sociale accumulato nel corso di questi anni venne finalmente superato.

Come la maggior parte delle opere collettanee, il risultato non è uniforme per quel che riguarda le riflessioni degli autori, la forma espositiva e lo stile rivela in alcuni casi riflessioni originali, in altre occasioni riassunti (o note) di ricerche presentate per i corsi di laurea o critiche storiografiche, benché i testi siano sempre interessanti. Si nota la reiterazione di idee e di analisi da parte degli autori, che restituisce l’impressione di un “vai e vieni”; questo emerge soprattutto nel complesso dei testi, ma a volte anche all’interno di uno stesso testo. Ciò non compromette in alcun modo la qualità della raccolta, che condensa alcune delle principali tendenze di studio riguardo alla schiavitù e al periodo successivo alla sua abolizione, un campo tematico emergente e promettente della storiografia brasiliana. Il divenire liberi – un’evidente allusione al processo di rendersi liberi dei protagonisti di questa storia – è stata una condizione influenzata dall’esperienza della schiavitù, anche se l’impatto sociale, politico, culturale e propriamente storico di questa impresa superò grandemente l’esperienza della cattività nella misura in cui proiettò uomini e donne sottomessi alla schiavitù di fronte a nuovi dilemmi, situazioni difficili e sfide date dalla vita nell’ambigua “libertà” della società brasiliana, marcata dal complesso retaggio delle lotte per i diritti e la cittadinanza.

Nota

1 Il termine senzala indicava sia la popolazione di schiavi neri, sia le loro abitazioni. Sul tema del senzala si rimanda al capolavoro Casa-Grande & Senzala di Gilberto Freyre, tradotto in italiano come Case e catapecchie. La decadenza del patriarcato rurale brasiliano e lo sviluppo della famiglia urbana, Torino, Einaudi, 1972 [N.d.T.].

Petrônio Domingues si è addottorato in Storia presso l’USP (Universidade de São Paulo). Dal 2006 è professore dell’Universidade Federal de Sergipe e membro permanente del corpo docente del corso di Laurea specialistica in Storia (PROHIS) della stessa istituzione. Visiting Scholar della Rutgers – The State University of New Jersey (Stati Uniti), presso il Department of African Studies (2012-2013), è autore del libro, insieme a Flávio dos Santos Gomes, Da nitidez e invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil, Belo Horizonte, Fino Traço Editora, 2013 e curatore – sempre assieme a Flávio Gomes – della raccolta Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação, São Paulo, Selo Negro Edições, 2014.

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Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca | Marcelo Badaró Mattos

Durante décadas, os pesquisadores avaliaram que o nascimento da classe trabalhadora brasileira foi epifenômeno mecânico das determinações estruturais: o florescimento do capitalismo industrial e a expansão do trabalho assalariado, após o fim do sistema escravista. Essas duas determinações estruturais teriam exacerbado a luta de classes ou, antes, engendrado a própria classe trabalhadora, que, nesse processo, adquiriu consciência de seu papel histórico, fundando sindicatos e partidos classistas na transição do século XIX para o século XX. Portanto, a formação da classe trabalhadora brasileira estava inextricavelmente ligada ao trabalho industrial-fabril e operário. O trabalhador livre e o trabalhador escravo no Brasil eram abordados, quase que invariavelmente, numa relação de dicotomia fixa, como duas categorias antagônicas e dissociadas, que jamais se aproximavam ou entrecruzavam em termos de vivências e experiências político-culturais.

Talvez, por isso, durante um longo tempo os especialistas da história social do trabalho ficaram apartados dos especialistas da história da escravidão. Os primeiros, quando investigavam a formação da classe trabalhadora brasileira, costumavam negligenciar a participação dos escravizados e ex-escravizados no processo. Já os segundos não davam a devida importância às experiências escravas no processo social do trabalho. Felizmente, esse panorama vem mudando, e as falsas dicotomias sendo superadas. Os historiadores estão cada vez mais se convencendo de que essas duas áreas de estudos e pesquisas são confluentes, entrelaçam-se, tecem interconexões, devendo, portanto, ser tematizadas de forma dialógica. Leia Mais

História: a arte de inventar o passado – Durval M. Albuquerque Jr

Os historiadores brasileiros não têm a tradição de publicar obras que versem sobre discussões teórico-metodológicas. Nas últimas décadas, o número de pesquisas históricas cresceu vertiginosamente, em todas as regiões do país, porém, esse crescimento não foi acompanhado na mesma proporção pelas pesquisas focadas em torno das questões atinentes ao processo de produção do conhecimento da disciplina. Isto é, no mínimo, preocupante, pois o ofício do historiador jamais pode prescindir da dimensão epistemológica. O fazer histórico engloba a etapa empírica (que consiste no trabalho de coleta e cotejamento das fontes) e a etapa epistemológica (que consiste na interpretação das fontes coligidas, a partir do diálogo com a historiografia especializada e à luz dos instrumentos conceituais e pressupostos teóricos). Não basta descrever e narrar os fatos; deve-se interpretá-los, explicá-los, a partir de problemas e hipóteses de pesquisa e tendo em vista categorias analíticas e correntes historiográficas. São justamente as questões epistemológicas da historiografia contemporânea o tema central do livro História: a arte de inventar o passado, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Leia Mais

Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004. Resenha de: DOMINGUES, Petrônio. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.37, p. 241-244, jan./jun., 2007

Como o racismo à brasileira deve ser enfrentado?

Célia Maria Marinho de Azevedo é professora de História aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp). Seu campo de especialização é a história do negro e das “relações raciais”. Depois de ter publicado o importante trabalho, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites, século XX, em 1987, foi a vez de Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), em 2003, e Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo, um ano depois. É justamente esta última publicação o objeto da presente resenha. O livro é uma coleção de sete artigos que Célia de Azevedo escreveu entre 1997 e 2003.

No primeiro capítulo (Cota racial e Estado: abolição do racismo ou direitos de ‘raça’?), a autora sustenta a tese de que seria mais eficaz a adoção de medidas universalistas (de cunho social) para a abolição do racismo do que medidas diferencialistas (ou específicas), em que o Estado tem que reconhecer a existência de raças. No entendimento de Célia de Azevedo, o “combate ao racismo significa lutar pela desracialização dos espíritos e das práticas sociais. Para isso é preciso rechaçar qualquer medida de classificação racial pelo Estado com vistas a estabelecer um tratamento diferencial por raça, ou, para sermos mais claros, os direitos de ‘raça’” (p. 50).

Já no segundo capítulo (Cota racial e universidade pública brasileira: uma reflexão à luz da experiência dos Estados Unidos), a autora analisa basicamente duas questões: o debate em torno da validade ou não da política de cotas para minorias discriminadas nos Estados Unidos e como a experiência estadunidense pode servir de inspiração para os brasileiros engajados na luta anti-racista e até que ponto ela pode ser importada para nosso país.

O terceiro capítulo (Entre o universalismo e o diferencialismo: as políticas anti-racistas e seus paradoxos) trata do espinhoso dilema: afinal, as propostas mais adequadas para se combater o racismo são as de cunho universalista ou diferencialista. Para Célia de Azevedo, faz-se necessária a “criação de oportunidade para os segmentos da população historicamente discriminada – sem no entanto perder o sentido universal de humanidade” (p. 73).

No quarto capítulo (A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça), a autora esquadrinha, primeiramente, alguns postulados do historiador Dominick LaCapra acerca da Nova História Intelectual e, em um segundo momento, analisa como LaCapra e outros autores vêm criticando o uso da noção essencialista de raça na produção do conhecimento histórico.

O quinto capítulo (13 de Maio e anti-racismo) problematiza a substituição, nas últimas décadas, do 13 de Maio – data em que se comemora o aniversário da Lei de Abolição, assinada pela Princesa Isabel – pelo 20 de novembro, presumível data da morte do “herói” negro Zumbi dos Palmares. Célia de Azevedo defende a idéia de que a Abolição foi resultado da luta de um amplo movimento contestatório (protagonizado por escravos, libertos e seus aliados progressistas). Por isso, entende que não se podem distorcer os fatos: a liberdade foi uma conquista dos negros e não uma dádiva das elites brancas (ou da Princesa Isabel); logo, o 13 de Maio “dos escravos” tem que ser tão revalorizado quanto o 20 de novembro de Zumbi dos Palmares.

No sexto capítulo (Quem precisa de São Nabuco), Célia de Azevedo questiona um dos personagens mais “santificados” da História do Brasil, Joaquim Nabuco (1849-1910), daí o porquê do “São Nabuco” do título. A autora demonstra que seu personagem pensava como as pessoas ilustradas de seu tempo. Se do ponto de vista racial as teorias que apregoavam a superioridade biológica, intelectual e cultural do homem branco sobre o negro estavam em voga na Europa e no Brasil no final do século XIX, Nabuco não ficou imune e bebeu em tais postulados. Para além de abolicionista, Nabuco – como um bom proprietário, senhor de escravos e político de sua época – seria defensor de seus interesses de “raça e classe”, isto é, para a Célia de Azevedo, Nabuco concebia a Abolição em dupla perspectiva: como uma medida que garantiria a manutenção da ordem (e da grande propriedade) e como um mecanismo que facilitaria a entrada massiva de imigrantes brancos europeus a fim de promover a purificação racial da população brasileira.

Por fim, no sétimo capítulo (“Para além das ‘relações raciais’: por uma história do racismo”) a autora preconiza a necessidade de superar a noção de “raça”, bem como a de “relações raciais”, para eliminar “o racismo no dia-a-dia”. Em lugar de “raça”, a autora entende que deveria existir apenas a noção universalista de “humanidade”.

A despeito de o livro abordar temas correlatos, o escopo central é escrutinar a proposta de ações afirmativas para negro, especialmente em sua versão mais conhecida (e polêmica), as cotas raciais. Célia de Azevedo deixa patente que tal proposta não é a melhor solução para atacar as desigualdades raciais no Brasil. Primeiro, porque a “política de preferência racial esteve longe de ser um sucesso” nos EUA; segundo, porque existiriam programas mais eficazes para se combater o “racismo institucional” e o estado de penúria de boa parte da população negra. Esses programas não teriam um recorte racial e, sim, social, como o da reforma agrária, o da recuperação da qualidade das escolas públicas de ensino fundamental e médio; o Projeto de Renda Básica Universal e o Programa Bolsa-Escola. Que se sabe, os defensores das cotas raciais não são contrários à reforma agrária ou à melhoria da escola pública. Porém, o mais paradoxal é que alguns dos programas preconizados por Célia de Azevedo (como renda básica e bolsa-escola) estão no bojo das chamadas políticas compensatórias, e tais políticas seguem o mesmo princípio das ações afirmativas (do qual as cotas raciais fazem parte): reparar as injustiças do passado (e do presente) para os grupos que são discriminados negativamente, por motivo de cor, gênero, classe social ou orientação sexual.

Um dos motivos pelos quais Célia de Azevedo se opõe à política de cotas raciais é que ela consiste numa política pública específica (ou diferencialista). Em sua opinião, não são as políticas específicas e sim as universalistas as mais apropriadas para garantir a promoção dos negros. No entanto, não é isso o que as pesquisas apontam. A implementação de políticas públicas universalistas, quais sejam, programas governamentais que atacariam as causas sociais da desigualdade não sinalizam para a erradicação do racismo no país. Conforme apurado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2001, todas as políticas públicas universalistas empreendidas pelo governo, desde 1929, não conseguiram eliminar a taxa de desigualdade racial no progresso educacional do brasileiro. Os brancos estudam em média 6,6 anos e os negros 4,4 anos. Esta distância, de 2,2 anos, é praticamente a mesma do início do século XX. A conclusão é reveladora: apesar de ter acontecido uma elevação do nível de escolarização do brasileiro, de 1929 para os dias atuais, a diferença de anos de estudos dos negros frente aos brancos permanece inalterada.

Isso significa que programas sociais ou políticas públicas universalistas, por si só, não evitam as desvantagens que os negros levam em relação aos brancos no acesso às oportunidades educacionais. Para se corrigir esta deficiência do sistema racial, são necessárias também políticas públicas específicas em benefício da população negra, ou seja, programas sociais que adotem um recorte racial na sua aplicação. Os problemas específicos dos grupos que historicamente sofreram (e sofrem) discriminação (como negros, mulheres, gays, entre outros) se resolvem, combinando medidas gerais e específicas. Portanto, a discriminação contra o negro deve ser enfrentada, igualmente, com ações anti-racistas.

Um outro motivo pelo qual Célia de Azevedo rejeita a política de cotas raciais é que ela exige que o Estado classifique racialmente a população. E, segundo a autora, enfrentar o racismo significa lutar pela “desracialização dos espíritos e das práticas sociais”. Se a “raça” foi uma invenção nociva aos destinos da humanidade, afirma Célia de Azevedo, “por que reivindicar a racialização pelo Estado?”. Ora, é sabido que “raça” é uma construção social, com pouca ou nenhuma base biológica, mas não adianta o Estado negligenciá-la, porque as pessoas classificam e tratam o “outro” de acordo com as idéias socialmente aceitas. Ademais, o Estado brasileiro nunca teve a tradição de desenvolver políticas de identidade racial junto à população (haja vista a decisão do governo federal de retirar o quesito “cor” ou “raça” do censo oficial em 1970), mas nem por isso o racismo deu sinais de subtração ou perecimento.

Como é de praxe nas coletâneas, o livro peca pela redundância das idéias e, em casos extremos, pela repetição literal de trechos, como o que acontece no primeiro parágrafo da página 72 e no terceiro da página 81. De toda sorte, o livro é uma equilibrada contribuição teórica para o importante debate que está pautando a agenda nacional no momento: como o racismo à brasileira deve ser enfrentado? Ninguém tem mais dúvidas que o Brasil é um país marcado pela desigualdade de oportunidades entre negros e brancos, seja no mercado de trabalho, na esfera educacional, na vida pública, etc.; entretanto, não há consenso acerca das medidas a serem tomadas para se atacar um mal que penaliza quase metade da população brasileira e a impede do pleno exercício da cidadania. Só existe um consenso: não dá mais para ficar de braço cruzado e aceitar a falácia de que o Brasil é o país do paraíso racial.

Petrônio Domingues – Doutor em História/USP. Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail:  [email protected]

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[DR]

 

Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica | Edward Telles

Edward Telles nasceu nos Estados Unidos, onde atualmente é professor de Sociologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Viveu no Brasil alguns anos, lecionando como professor-visitante na Unicamp e, posteriormente (1997-2000), trabalhando como Assistente do Programa de Direitos Humanos da Fundação Ford, no Rio de Janeiro. Após publicar diversos artigos em periódicos nacionais e internacionais acerca das relações raciais no Brasil, publica o livro Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica.

A obra está dividida em dez capítulos (Da supremacia branca à democracia racial; Da democracia racial à ação afirmativa; Classificação racial; Casamentos inter-raciais; Segregação residencial; A persistência da desigualdade racial; Discriminação racial; Formulando políticas adequadas; Repensando as relações no Brasil). Seu objetivo é reexaminar os argumentos apresentados na história dos estudos das relações raciais no Brasil; elucidar a lógica interna de funcionamento do sistema racial brasileiro e fazer uma análise comparativa do modelo racial daqui com o dos Estados Unidos (e, em menor escala, com o da África do Sul), por intermédio, sobretudo, do método quantitativo. O livro é fartamente amparado por tabelas e dados estatísticos. Leia Mais