Teoria do drone – CHAMAYOU (V-RIF)

CHAMAYOU Gregoire mutacoes.com .br Teoria do drone
Grégoire Chamayou. https://mutacoes.com.br/

CHAMAYOU G Teoria do Drone2 Teoria do droneCHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Resenha de: KRITSKI, Pedro Mateo Bàez; AYMORÉ, Débora de Sá Ribeiro. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.11, n.23. p. 1-6, jul. 2020.

À onisciência corresponde a onipotência1

Doutor em filosofia, pesquisador do CNRS – Centre Nacionale de Recherche Scientifique – desde 2010, especialista das obras de Michel Foucault (1926 – 1984) e de Immanuel Kant (1724 – 1804), o filósofo francês Grégoire Chamayou (1976 – presente) parece ter uma preferência pela análise das estratégias que os agentes políticos utilizam para administrar aqueles que estão sob sua tutela. Se na sua tese de doutorado, intitulada Les corps vils: Éxpérimenter sur les êtres humains aux XVIIIe et XIXe siècles (La Découverte, 2008), o autor se concentra na busca do conhecimento como justificativa para o uso desses corpos, em Les chasses à l’homme (La Fabrique, 2010) Chamayou conta a história da transformação e do uso do conceito de “caça” como teoria e prática do uso da força violenta para a dominação de indivíduos.

Os dois primeiros livros nos permitem traçar certa continuidade em relação ao seu terceiro trabalho, intitulado “Teoria do drone” (2015 [2013]), como o resultado da fusão de dois elementos de análise: a relação entre os conceitos de conhecimento e força violenta, que nortearam o seu estudo sobre os modos com os quais os agentes políticos submeteram os indivíduos em dois casos particulares da história. Podemos dizer que em “Teoria do drone” esses conceitos tomam a forma de um objeto real, material. O drone é definido por Chamayou como “[…] câmeras de vídeo voadoras, de alta resolução, armadas de mísseis”2. Em outras palavras, um “olho-que-tudo-vê” e que também é capaz de projetar força remotamente. A vigilância e a projeção de força materializadas em um objeto que prescinde de um homem embarcado (UCAV – unmanned combat air vehicule) são o mote do livro. O advento de uma tecnologia com tais características traz novos problemas que são explorados pelo autor, dentre os quais destacamos dois: (1) quais são os limites éticos e epistêmicos diante da grande enxurrada de informação gerada pela vigilância, teoricamente ilimitada, que esses objetos voadores oferecem? E, (2) como ficam a legitimação das guerras modernas e o Estado com essa nova forma de projeção de poder? Os Estados Unidos, segundo Chamayou, possuem mais de 6.000 drones de diferentes modelos e 160 Predators para uso da Força Aérea. A obra também estima que 2.640 a 3.474 pessoas foram mortas entre os anos de 2004 e 2012, no Paquistão. Segundo o autor, a superioridade tecnológica pode transformar a guerra numa prática unilateral, pois ela inibe o risco de morrer enquanto se mata3. O prólogo do livro suscita claramente essa imagem no leitor, ao narrar e transcrever partes de diálogos travados entre um operador e um piloto de drone durante uma missão no Afeganistão.

Mas antes mesmo de entrar nos efeitos do uso do drone, é preciso conhecer essa matéria estranha. Ao fazer uma genealogia desse objeto técnico, o autor nos leva para uma breve história do drone, tomando como origem dessa tecnologia a ideia do engenheiro John W. Clark. Segundo Chamayou, em 1965, ao refletir sobre as tecnologias para o enfrentamento de ambientes hostis, Clark apresenta três estratégias: o envio de uma máquina para sofrer a hostilidade, o envio de um homem superprotegido ou a utilização de veículo apropriado ao ambiente hostil. Nesta última opção, o comando do veículo seria feito por um indivíduo em ambiente seguro. A terceira opção, chamada tecnologia telequírica (de manipulação à distância) possui um ganho evidente: retirar do ambiente hostil o corpo biológico vulnerável4.

A história avança até a Segunda Guerra Mundial, na qual os drones são utilizados como alvo de treinamento, sendo chamados “drones-alvo” (target drones) pelo exército americano. No final dos anos 1970, os Estados Unidos cessam o desenvolvimento de drones, que foi continuado em outros locais. Como em Israel, que utiliza drones em 1973 no Yom Kippur (no combate contra as forças egípcias) para confundir a defesa inimiga; mesma tática utilizada, em 1982, na guerra contra os sírios, adicionando-se, no entanto, máquinas fotográficas aos aviões aeromodelo como modo de obter informações privilegiadas. Após o 11 de setembro de 2001, o exército dos Estados Unidos começa o uso massivo de drones após armá-los, com sucesso, com de mísseis anticarro5.

O resultado dessa história é que a adição de sensores e de atuadores no que antes era tido como um aeromodelo transforma substancialmente o objeto técnico: o drone amplia capacidades humanas. Com o poder de vigiar por meio da captação de imagens em instantes contínuos ou descontínuos, as câmeras embarcadas de um drone levam àqueles que os possuem mais perto da onisciência. Apesar de serem uma realização limitada do “olho-quetudo-vê”, o drone é capaz de estender o poder de vigilância e de monitoramento. Detalhando a dimensão desse poder ao leitor, Chamayou divide-o em seis princípios.

O primeiro princípio consiste no que ele chama de princípio do olhar persistente ou de vigília permanente6. O drone é capaz de se manter de um modo permanente em uma missão, pois tanto o piloto como o operador podem se revezar em turnos sem que a aeronave precise voltar à base. Aliada a essa persistência, temos o segundo princípio, o princípio da totalização das perspectivas ou de vista sinóptica7. Trata-se do poder que esses objetos possuem de ver tudo, uma vez que o drone carrega consigo dezenas de microcâmeras que permitem a extensão do campo de visão, cuja resolução apresenta uma escala variável.

O terceiro princípio importante para entender a capacidade de vigilância do drone, segundo o nosso autor, é o que diz sobre a capacidade de memória e de interpretação de dados. Descrito por Chamayou como princípio de arquivamento total ou do filme de todas as vidas8 esse princípio de vigilância traz a componente do tempo para a onisciência que surge através do uso do drone. Pela possibilidade de arquivar todos os dados de monitoramento remoto, temos, então, o poder de identificação e de controle da vida de indivíduos pela estocagem, indexação e análise das informações coletadas.

Toda tecnologia traz uma nova capacidade aos seres humanos, tais capacidades podem conduzi-los aos seus limites. Um problema relacionado ao grande poder de levantamento de dados é, justamente, quem irá interpretá-los. Como dar sentido aos dados brutos? Chamayou considera que a investigação desse tipo de problema já está em curso, na direção de construir “[…] sistemas cognitivos integrados para a vigilância automatizada”9. Isto é, há pesquisas direcionadas para a produção de “máquinas escribas”, que façam esse trabalho cognitivo de um modo automatizado. No futuro, segundo o autor, teríamos sistemas capazes de interpretar, filtrar e indexar dados, antecipando e mesmo facilitando o trabalho de pesquisa sobre as vidas registradas nesses extensos bancos de dados coletados pelos drones.

Sobre a vigilância permitida pelo uso do drone, ainda precisamos detalhar o quarto e o quinto princípios. No quarto princípio, a imagem é apenas um modo de obter informação. Dado que o drone é capaz de embarcar sensores que emulam os outros sentidos humanos, temos o princípio da fusão de dados10. O poder de onisciência do drone é composto por ouvidos e muitos outros órgãos análogos aos sentidos humanos. Isso leva ao problema da relação entre dados de naturezas distintas. Pois, enquanto os seres humanos muitas vezes esquecem boa parte das informações que obtém por meio dos sentidos, as informações coletadas pelos drones não perecem e, com isso, permitem a sua fusão com informações de outras fontes. Essa fusão de dados constitui a base para a composição dos padrões de comportamento e dos desvios realizados pelos vigiados, seja um indivíduo ou uma coletividade.

Naturalmente, ao princípio da fusão de dados, adiciona-se o princípio da esquematização das formas de vida11 que visa, basicamente, construir patterns of life com os dados coletados dos alvos da vigilância. A relação de dados espaço-temporais – com cronogramas que contém a localização, o deslocamento, os itinerários e os acidentes – é fundamental para o desenvolvimento de uma cartografia das vidas humanas. Com essa combinação de “onde” e “quando” os bancos de dados seriam úteis não somente para perseguir suspeitos, mas também para identificar novos elementos através de comportamentos fora do comum. Isto é, levantam-se dados para formar padrões e formamse padrões para detectar mais facilmente as anomalias e os desvios de comportamento.

Finalmente, a detecção de anomalias compõe o sexto e último princípio da vigilância do drone. O chamado princípio de detecção das anomalias e de antecipação preventiva12, que mostra o grau de vigilância permitido por esse objeto. A padronização de comportamentos por meio do levantamento de dados permite uma categorização entre o que é normal e do que é anormal. Com o conhecimento do passado comportamental dos indivíduos, é possível agir a partir do que se entende como o futuro das suas ações. E, assim, esse tipo de vigilância traz consigo uma vontade de antecipação, uma ação preventiva guiada por padrões referenciados em grandes bancos de dados. Ao invés de decisões humanas, transferem-se, ao que parece, a decisão ao “olho-que-tudo-vê” e que passa a ser tratado também como o que tudo sabe.

Invulnerabilidade? Efeitos na guerra e no Estado

Segundo Chamayou, na guerra tradicional, ou seja, sem uso de drones, há relação de reciprocidade: as duas partes envolvidas estimam perdas de efetivo. O drone, no entanto, projeta poder sem projetar necessariamente vulnerabilidade. Mesmo distante de suas fronteiras, é possível aumentar o poder de alcance das armas de telecomando, ao mesmo tempo em que se mantém o operador e o piloto em local protegido, distantes do local das operações. O telecomando possibilita a distância segura, que garante a invulnerabilidade.

Uma questão incontornável que é posta ao leitor do livro é a seguinte: se a guerra pressupõe a projeção de poder e de vulnerabilidade das partes envolvidas, que tipo de relação se estabelece quando se projeta apenas o poder, e não a vulnerabilidade? A resposta inicial de Chamayou é chamar esta situação de guerra unilateral. Porém, ao longo da obra a sua resposta se radicaliza ao ponto de denominar o uso de drones como meio para um homicídio fora de combate13.

Como dispositivo tecnológico, o drone altera não somente as relações entre os combatentes, mas também, e ao mesmo tempo, as relações entre a sociedade e o Estado. Tradicionalmente, a relação que o Estado entretém com os seus cidadãos muda conforme se encontre em estado de paz ou de guerra. Em estado de paz, a vida dos cidadãos depende do Estado. E, no estado de guerra, considerado como meio para retomar o estado de paz, o Estado expõe a vida dos cidadãos14. E é nesse ponto que a invulnerabilidade do indivíduo transferida para o coletivo gera efeitos surpreendentes.

Com o drone, Chamayou nos lembra, temos uma resposta possível ou ao menos uma alternativa para essa antiga questão que se coloca com a inversão do protego ergo obligo, dos tempos de paz, para o obligo ergo protegor, do estado de guerra: “[…] sabendo que quando o soberano expõe a vida de seus súditos na guerra não os protege mais, em que base ainda pode fundar o dever de obediência de seus súditos?”15. A tendência da “dronização” atribui segurança ao Estado liberal, ou seja, a capacidade de “[…] conciliar a restrição liberalsecuritária das finalidades da soberania do Estado com a manutenção de suas prerrogativas guerreiras. Fazer a guerra, mas sem sacrifício”16.

No entanto, no século XXI, a necessidade de preservação do combatente é reforçada pela criação dos dispositivos telecomandados. Se na Inglaterra do século XIX o pacifismo democrático encontrou no alistamento de indianos como novo meio para fazer a guerra sem custos para o cidadão inglês, evitando assim “[…] sacrificar vidas nacionais no altar do império”17, o drone, nos tempos contemporâneos, permite o militarismo democrático em outro patamar, ou seja, a guerra com os seus custos virtualmente eliminados pelo advento da máquina de guerra capaz de projetar invulnerabilidade.

Com os riscos sócio-políticos transferidos para o drone, toma-se em conta o impacto dele nas “[…] ferramentas da teoria econômica da decisão. Se o comandante-chefe democrático for por hipótese um agente racional, quais serão os efeitos dessa arma low cost em seu cálculo?”18. Segundo o autor, há uma tripla redução de custos no uso dos drones: a redução dos custos políticos, econômicos e éticos ou políticos, considerando os efeitos sentidos pela violência comedida19. Em certo sentido, com o drone, é mais barato ir à guerra.

A redução dos custos de guerra, por sua vez, acaba por fundir ambições de Estado e as ambições de mercado. E com essa fusão do “preservar o capital eleitoral” com o “vender novas armas”20, o poder de barganha que os trabalhadores possuíam no começo do século XX e durante a guerra fria vê-se solapado juntamente com muitas das vantagens econômicas e sociais obtidas pela independência do Estado em relação aos corpos humanos.

Deste modo, o drone é objeto central em um momento em que, segundo Chamayou, “[…] a história do Welfare State articula-se à do Warfare State”21. No caso dos Estados Unidos, em que parte significativa de sua população jovem permanece inapta para o serviço militar, o conflito armado passa por duas soluções: um reinvestimento do exército em material humano ou uma independência maior do exército com relação à mão de obra humana. O drone aparece como via para a segunda opção, tornando-se um: “Fazer a guerra sem pôr em risco a vida de seus próprios indivíduos. Conservar sem perder. Proteger, sempre”22.

As consequências políticas do uso desses objetos técnicos, para Chamayou, o fazem parte de uma das etapas de um sonho maior, ou de um desejo prático e real, de fabricação de “autômatos políticos”. O autor entende que a crença é de que, com a automatização, há perda da subjetividade humana pela distância do agente político possível pela máquina “Nesse modo de dominação, que procede pela conversão de suas ordens em programas e de seus agentes autômatos, o poder, que já era distante, passa a ser inapreensível. Onde está o sujeito no poder?”23. Para o autor, o sonho é de um poder sem corpo, concretizado pela imagem do robô. “O sonho é construir uma força sem corpo, um corpo político sem órgãos humanos – em que os antigos corpos arregimentados dos sujeitos teriam sido substituídos por instrumentos mecânicos que seriam, em rigor, seus únicos agentes”24.

Questões Finais

Ao ler a obra “Teoria do drone” não se percebe somente a história de um objeto técnico-militar, que aos poucos se torna financeiramente acessível para além das situações de guerra. A obra retrata muito bem as histórias de ideias e de vontades humanas que se cruzam ao serem veiculadas e potencializadas por esse meio técnico-militar de ação. No limite, o drone representa o desejo de concretização, pela via da técnica, de uma vontade de poder. Com origem na própria sociedade, esse ser criado tende a se diferenciar dela e a afetar sensivelmente as suas características essenciais. Uma via tecnológica para o antigo desejo humano da onisciência e da onipotência.

Finalmente, é possível pensar a atualidade da obra. As declarações de guerra contra um “inimigo invisível”, recorrentes nos discursos jornalísticos e políticos desde a declaração da pandemia gerada pela SARS COVID-19, denotam a vontade da sociedade pela adoção de meios de ação eficientes, orientadas pela tecnociência. Diante de uma doença que ameaça a espécie humana, expondo a vulnerabilidade, encontramo-nos talvez em mais um dos limiares entre a tecnologia de vigilância, seus usos e as suas consequências

Notas

1 CHAMAYOU, Teoria do drone, p. 47

2 Idem, p. 20

3 Idem, p. 21

4 Idem, p. 29

5 Idem, p. 36 – 37

6 Idem, p. 48

7 Idem, p. 48 – 49

8 Idem, p. 49

9 Idem, p. 51

10 Idem, ibidem

11 Idem, p. 52

12 Idem, p. 53

13 Idem, p. 174

14 Idem, p. 195

15 Idem, p. 196 – 197

16 Idem, p. 198

17 Idem, p. 204 – 206

18 Idem, p. 207

19 Idem, p. 207 – 208

20 Idem, p. 212

21 Idem, p. 213

22 Idem, p. 213 – 214

23 Idem, p. 228

24 Idem, p. 242

Pedro Mateo Bàez Kritski – Doutorando em Filosofia na Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3603-2624

Débora de Sá Ribeiro Aymoré – Professora Substituta de Filosofia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1384-6681

Acessar publicação original

[DR]

 

K.: relato de uma busca | Bernardo Kucinsk

A obra K. configura-se como trabalho histórico e memorialístico na medida em que expõe, denuncia e recupera o relato de dor e sofrimento2 do pai de Ana Rosa Kucinski Silva, desaparecida política brasileira. Durante o regime militar no Brasil (1964-1985), a agonia do pai e dos sobreviventes, vítimas da ditadura, intensificou-se com o silenciamento instaurado na sociedade, pelos detentores do poder, em relação ao paradeiro dos desaparecidos políticos. Nota-se que em 1974, ano em que ocorreu o desaparecimento de Ana Rosa e de seu marido, Wilson Silva, o regime ainda sentia os reflexos da concentração de poder nas mãos dos militares, fruto da instalação do Ato Institucional nº 5 (AI-5, de 13 de dezembro de 1968), que enrijeceu o sistema autoritário e levou vários dissidentes à morte.

Durante a ditadura, cidadãos que se opunham ao regime, como Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva, foram violentados, massacrados (expressão que carrega o sentido de humilhação)[3] e “desapareceram”. Para Bernardo Kucinski, trataram-se de crimes contra a humanidade, uma vez que, independentemente da posição política de esquerda comungada pelo casal – eram integrantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), que combateu o regime militar no Brasil –, os crimes contra a vida não se justificam, situação que se agrava ao avaliar a atrocidade dos acontecimentos e a existência, desde 1948, em âmbito internacional, da Declaração Universal dos Direitos Humanos [4].

As pistas e os vestígios [5] referentes ao casal e demais perseguidos políticos que compunham a organização clandestina de resistência ao regime foram destruídos pelos militares e por outros agentes, que endureceram o rigor do regime autoritário. Dessa forma, o jornalista Bernardo Kucinski, filho de Majer Kucinski e irmão de Ana Rosa Kucinski, utilizando-se da narrativa ficcional [6], oferece-nos a oportunidade de reconstruirmos o passado que se esconde pelas vias silenciosas das ações dos detentores do poder, que impuseram sua vontade através do apagamento dos rastros, de violências, atentados e humilhações contra a vida humana.

Além de militante política, Ana Rosa ocupou o cargo de professora doutora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), onde cumpriu com suas funções de forma assídua até o dia 23 de abril de 1974, quando, segundo suas colegas de trabalho, ela não retornou à universidade. Wilson Silva, seu marido, era físico e trabalhava em uma empresa. Já seu pai, o senhor Majer Kucinski, foi resistente judeu na Polônia e se dedicou integralmente, no Brasil, ao iídiche [7].

Amparado neste enredo, o jornalista Bernardo Kucinski amarrou os fios que estabelecem a intriga por meio da vivência familiar e ocupou, dessa maneira, o papel de testemunha [8], mesmo vivendo grande parte da sua vida no exterior. O autor alerta: “Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu” (p. 8), ou seja, a reunião das informações esfaceladas, seja através do registro sobre o caso de desaparecidos políticos encontrado nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), seja através do depoimento da escritora Maria Victoria Benevides – que rememora a aflição de Majer Kucinski na Comissão de Justiça e Paz, quando este estreitou laços de amizade com Dom Paulo Evaristo Arns –, ajuda-nos a situar este relato nos debates acerca da história, do trauma e da memória.

A tensão entre testemunho, denúncia, literatura, trauma e memória converge, no trabalho historiográfico, no labor com a realidade e a ficção. Na constituição da narrativa de Bernardo Kucinski, ao invés de se oporem, existe integração entre o par realidade e ficção [9], que se evidencia como um dos pontos centrais explorado no livro por meio dos sentimentos de agonia e dor alimentados por Majer na busca por sua filha. Indubitável que o livro, ao retratar o sofrimento angustiante de Majer Kucinski no resgate memorialístico de sua filha Ana Rosa (vinculada à história do regime militar no Brasil), vem assinalar um marco problematizador nos debates historiográficos referentes à ditadura brasileira, uma vez que revela uma atenção por parte de Bernardo em investigar as incertezas, o medo, a indignação, as mentiras e outras facetas decorrentes de regimes autoritários pela América Latina.

O desespero de Majer Kucinski diante do sumiço de sua filha, ao mesmo tempo que recupera sua singular trajetória de vida como militante político na Polônia, no pré-Holocausto – período em que foi reconhecido como prestigioso escritor do iídiche, com destaque para a literatura –, revela os meandros da política autoritária brasileira. Este sistema, regido especificamente pelo autoritarismo, guarda sua especificidade nacional diante de regimes totalitário-autoritários ocorridos na Itália e na Alemanha, na medida em que os militares, a mando dos detentores do poder no Brasil, desapareciam com as figuras oponentes ao regime sem deixar vestígios, tornando-as, portanto, desaparecidos políticos.

Além da incerteza do que realmente aconteceu com o casal, a experiência de dor visualizada no pai de Ana Rosa permite o paralelismo com os sentimentos de Primo Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial (1939- 1945) [10]. Se a preocupação sobre o paradeiro de Ana Rosa e Wilson Silva é central para o autor, o sofrimento do pai, dos irmãos, o vazio, a humilhação e “a supressão dos sentidos ordinários comuns da vida” (p. 186), escancarado pelas vias do silêncio e perpetrado em suas veias pelos detentores do poder, desabrocha nos sentimentos da nossa indignação e ira diante da ditadura militar no Brasil.

É, portanto, diante o retrato de sentimentos como a culpa, a impunidade, o trauma, alimentados pela família Kucinski devido o desaparecimento de Ana Rosa que, não podemos perder de vista o quanto a obra de Bernardo Kucinski se constitui como se Bernardo assumisse a voz do seu pai na narrativa de desaparecimento de Ana Rosa. Interessante que, neste aspecto, as contribuições de Sigmund Freud (1856-1939) vêm ao encontro da problemática deste livro. Porque, por meio da A Interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001) apreende-se que o autor ao retratar acerca da “psicologia dos processos oníricos” e da “função dos sonhos – sonhos de angústia” descreve que “no inconsciente, nada pode ser encerrado, nada é passado ou está esquecido”. O que Freud quer explorar com essa passagem é que no estudo das histórias humanas “a via inconsciente de pensamentos que conduz à descarga no ataque histérico volta imediatamente a tornar-se transitável quando se acumula excitação suficiente”. E continua Freud, “uma humilhação experimentada trinta anos antes atua exatamente como uma nova humilhação ao longo desses trinta anos, assim que obtém acesso às fontes inconscientes de afeto” [11]. Nesse sentido, Bernardo Kucinski se constitui personagem paciente deste retrato apresentado por Freud. E, Kucinski, ao trazer suas inquietações a público por meio deste livro nos conduz automaticamente ao desdobramento de Freud, supracitado.

Por outro lado, foi possível notar ainda que a estrutura de K. é bastante sugestiva no que tange à maneira como vamos ler a obra, pois, diante de uma leitura rápida, é difícil encontrar uma linearidade que conduza a história de forma objetiva. O leitor desavisado só conseguirá configurar o enredo após a leitura do posfácio de Renato Lessa. Nesse sentido, percebe-se que Lessa se volta às problemáticas e considerações a respeito dos estudos sobre as vítimas do regime militar no Brasil, apresentadas também por Maria Victoria Benevides na orelha do livro, em que a autora analisa os usos da ficção e da literatura no escopo do discurso do autor.

Bernardo Kucinski traz informações sobre a chegada da sua família ao Brasil e enriquece o retrato sobre a vida de Majer e Ana Rosa Kucinski Silva. Além de usar a letra K, sugerindo correlação com a trajetória de vida do escritor Franz Kafka (1883-1924) – escritor tcheco, que sofreu por ser judeu; escreveu para revistas literárias e mantinha grande simpatia pelo socialismo e sionismo –, Bernardo evidencia a perseguição política que Majer Kucinski sofreu na Polônia, sendo obrigado a fugir para o Brasil em 1935. Por escrever em iídiche, passou a ser reconhecido pelos judeus do bairro de Bom Retiro, em São Paulo. Além disso, escreveu em jornais de São Paulo, Buenos Aires e Nova Iorque. Logo, angariou um sócio com grande capital para abrir uma loja de tecidos.

Como alguém que carrega um trauma do que viveu [12], Majer não contou aos filhos a dor que sofreu no passado para não influenciar a formação psíquica e ética deles. Majer Kucinski tinha 30 anos quando foi arrastado pelas ruas de Wloclawek, uma pequena cidade polonesa, onde se deu o primeiro massacre organizado da população judaica pelas tropas alemãs na invasão da Polônia. Neste episódio, em que sua irmã mais nova morreu sua outra irmã, mais velha, Guita – militante de esquerda que ajudou a fundar o Linke Poalei Tzion (Partido dos Trabalhadores de Sion de Esquerda) –, foi presa e veio a falecer de frio. Já a mãe de Ana Rosa Kucinski, Ester, perdeu toda sua família. Ester veio para o Brasil um ano depois da chegada do marido. Ela desenvolveu câncer no seio direito na mesma época em que engravidou de Ana Rosa, que nasceu em 1942. A mãe de Ana Rosa veio a falecer, e Majer casou-se com sua segunda mulher. Porém, reclamava desta devido à vida pacata que levava, uma vez que sempre foi um homem ativo na sociedade.

Bernardo retrata a agonia de Majer diante das pistas incertas e seu cansaço ao seguir as indicações de informantes – dentre eles, o decorador de vitrines (Caio), o dono da padaria (o português Amadeu) e o farmacêutico (reconhecido como excelente informante dos judeus em São Paulo, que indicou a Majer um rabino em São Paulo e um dirigente da comunidade no Rio de Janeiro que mantinham contatos com os generais). Em busca de respostas, Majer viajou para Nova York ao escritório American Jewish Committee – ambiente que o recebera no passado para lhe conceder o prêmio pelo poema “Haguibor”, publicado na revista Tzukunft (revista literária iídiche publicada em Nova York). Foi a Londres, na Anistia Internacional, e antes esteve em Genebra, onde apelou à Cruz Vermelha. Bernardo Kucinski retrata o desgosto de Majer com a Comissão de Direitos Humanos, que rejeitou sua petição. Por fim, todas as buscas foram em vão. Ademais, muitas pessoas que Majer procurou não lhe ajudaram por medo do sistema, que perseguia pessoas e desaparecia com os opositores ao regime sem deixar rastros.

A insistência de Majer na busca por Ana Rosa levou-o a descobrir a vida clandestina da filha tanto em relação à política como em relação a sua própria família, já que, procurando protegê-los, Ana Rosa omitiu diversos fatos de sua vida, como o casamento com Wilson Silva. Sua luta política foi cultivada no anonimato e, com o casamento, Ana Rosa aproximouse ainda mais do marido, que mantinha maior vínculo com as ideologias incentivadas pelos grupos de esquerda no Brasil.

O desespero de Majer intensificou-se ao tomar conhecimento de outras famílias que procuravam por seus desaparecidos. Muitos queriam apenas enterrar seus mortos, uma vez que o tempo dera provas de que já não havia mais esperanças. Dessa maneira, o que se pode notar é que Majer estava ante uma especificidade do Estado autoritário brasileiro, que conseguia escamotear, acabar com as pistas, vestígios, rastros que levassem aos autores dos crimes encomendados.

A forma com que os militares desapareciam com os corpos no Brasil é comparada por Bernardo ao que fizeram os nazistas com seus prisioneiros: antes de serem reduzidos a cinzas, era dado baixa do número que cada um tinha tatuado no braço num livro. Depois, eram enterrados em vala comum. Dessa forma, era possível saber que os judeus e as vítimas de outra ordem se encontravam enterrados em determinado local. Já no Brasil, como Bernardo afirma, o luto referente às vítimas da ditadura continua em aberto devido à ausência e ao sumiço dos cadáveres. Neste encalço e na suposição de que este assunto ainda deva atormentar os sonhos de Bernardo Kucinski vale atentarmo-nos ao que Freud nos assegura “a interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da mente” [13]. Ou seja, por meio das dúvidas e “certezas” que cercearam os sonhos e a mente de Majer, estes, agora, passaram a atormentar os sonhos e mente de Bernardo. Nesse sentido, o ato do sepultamento tanto para Bernardo quanto às famílias vítimas de narrativas de mesma natureza simboliza o fim do trabalho de dor e luto pelo desaparecido político.

Outra análise motivada por Bernardo Kucinski é: diante dos acontecimentos com sua irmã e seu pai, como ficam os torturadores em relação às manifestações de sobreviventes e presos políticos, como o “dossiê das torturas” e o “relatório prometido à Anistia Internacional”, citados no livro? Se, para ele, a punição aos mentores dos crimes está longe de se tornar realidade, em contrapartida, ela ainda persiste em relação às vítimas. Este assunto remete aos debates e catalogações dos historiadores e se vincula aos estudos sobre os crimes cometidos contra a humanidade [14], em que se configuram atrocidades inimagináveis quanto à vida humana.

Se, por um lado, o livro de Bernardo denuncia a realidade cruel sofrida por seu pai, por outro, tece pontos estratégicos ao retratar como funcionou o sistema político no Brasil, que desapareceu com as pessoas sem deixar vestígios, humilhando-as e levando-as à morte. Nos capítulos “A Cadela” e “A Abertura”, os diálogos sugeridos por Bernardo entre os mandantes do governo e os sujeitos nomeados pelo autor como Lima, Mineirinho, Fogaça e Fleury revelam a tortura psicológica que as vítimas sofreram ante a instauração do silêncio e das informações falsas concedidas por estes mesmos sujeitos acerca dos desaparecidos políticos. O governo, através de um aparelho de Estado repressor que tudo sabia e que constantemente estreitava contatos de fidelidade com pessoas dentro e fora do país para enrijecer o sistema, tentou a todo custo despistar, cansar, manipular e mentir aos familiares sobre o paradeiro de seus desaparecidos. Dessa maneira, Bernardo realizou um trabalho notável ao explorar as vias enigmáticas em que se instaurou o sistema autoritário brasileiro, que conseguiu levar Majer à exaustão, uma vez que seus movimentos foram monitorados por agentes do governo, desviando-o de seu objetivo: encontrar a filha, ainda que morta.

Um dos pontos auges do livro encontra-se no capítulo “A Terapia”. Neste, Bernardo, utilizando-se do relato da personagem Jesuína Gonzaga, expõe os bastidores de uma casa em Petrópolis [15], no Rio de Janeiro, onde um dos chefes de comando do regime militar, o suposto Sérgio Paranhos Fleury, vinha de São Paulo para comandar e realizar torturas psicológicas, físicas e massacrar, de fato, os opositores ao regime. Fleury era reconhecido pela terapeuta do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e pelos demais como “o Fleury do esquadrão da morte”. Segundo Jesuína, nesta casa havia uma espécie de garagem ou depósito que ela só pôde conhecer quando esteve sozinha no local. As atrocidades reveladas por testemunhas oculares [16] como Jesuína, mesmo que de forma fragmentada, colocam em evidência os horrores a que as vítimas diretas do regime foram sujeitadas. Jesuína, por exemplo, por não suportar conviver com aquela realidade, procurou o INSS para realizar um tratamento psicológico, além de fazer uso de pílulas para dormir. Neste capítulo, Bernardo escancarou a realidade do local onde ocorria a carnificina e o esquartejamento dos corpos que, posteriormente, eram levados em sacos de lonas bem amarrados para lugares até hoje desconhecidos.

Bernardo, ao relatar o encontro de Majer com o arcebispo de São Paulo, solidário às famílias que buscavam por seus desaparecidos políticos, revelou a incapacidade do pai em relatar coerentemente o acontecido. Ainda que Majer Kucinski fosse contrário ao catolicismo no passado, naquele momento tentou preencher o vazio com notícias que talvez o arcebispo poderia lhe conceder sobre a filha e o genro. É indubitável que a supressão de provas tornou a busca de Majer ainda mais dolorida, pois, diferente da Polônia – onde a família do preso era notificada, podia visitá-lo, e os presos tinham direito à defesa –, no Brasil os corpos simplesmente desapareciam.

O livro K., através de sua narrativa ficcional, procura compreender o papel de sobreviventes ante acontecimentos estarrecedores, como foi o caso da invasão na Polônia, em que Majer perdeu suas duas irmãs, e sua primeira mulher, toda a família. Conforme retratado anteriormente, Majer não relembrou esses episódios aos filhos para evitar causar-lhes mal no período em que estavam construindo suas vidas, além disso a lembrança provocava-lhe malestar. Por meio de estudos acerca do trauma nota-se que o sobrevivente procura viver o presente tentando se recuperar do trauma do passado. Dessa forma, o passado vivia adormecido na vida de Majer Kucinski até o momento em que sua vida no Brasil fê-lo vítima das atrocidades do regime militar. Nesse sentido, é importante observar que o livro de Bernardo apresenta problemáticas quanto ao estudo de passados traumáticos [17], por exemplo, em relação ao sobrevivente que, além de carregar o mal do passado, sente-se culpado e tornase vítima de um sistema que imputa a ele a responsabilidade psicológica de não ter oferecido o amor necessário à filha, como retrata Bernardo na obra ao afirmar que os sobreviventes sempre vasculham o passado “em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam” (p. 168). Ou seja, a culpa alimentada através da dúvida e das incertezas impostas pelo sistema permanece dentro de cada sobrevivente como um drama pessoal e familiar, que foge da ordem coletiva. Dessa forma, a dor psicológica e a culpa instalam-se.

Bernardo deixa explícito o poder de imposição do sistema ao final da obra, no “Post Scriptum” de 31 de dezembro de 2010, quando toma como referência um telefonema que recebeu em que uma voz originária de Florianópolis-SC relatou que, numa viagem ao Canadá, uma pessoa de nome Ana Rosa Kucinski Silva se apresentou a ela. Bernardo não retomou contato com a pessoa do telefonema porque acredita que o sistema repressivo continua articulado. Ou seja, segundo Bernardo, essa ação é fruto de uma reação referente a um vídeo gravado por uma atriz brasileira convidada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para personificar o desaparecimento de Ana Rosa. Nesse sentido, a obra K. contribui de forma categórica à problemática em que se circunscrevem as vítimas diretas e os sobreviventes do regime militar no Brasil, conduzindo esse problema aos debates acerca da história, do trauma e da memória e contribuindo decisivamente com estudos de passados traumáticos.

Bernardo estimula-nos ao imaginário individual e de ordem coletiva que funciona como via de regra na constituição dos fatos. Assim como o luto continua em aberto, uma vez que não foi possível oferecer às vítimas uma lápide devido à ausência dos corpos, esta mesma ausência causa transtornos aos familiares dos desaparecidos políticos, que ainda buscam por certezas e justiça para seus entes, baseados nos debates constantes acerca da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em desacordo com os crimes de qualquer natureza cometidos contra a humanidade. No encalço dessas problematizações cabe ainda salientarmos a importância dos debates no Brasil acerca da temática “Justiça de Transição”. Este é um assunto que tem ganhado espaço nos debates acadêmicos devido aos “conceitos de legados autoritários, justiça transicional e política do passado como são hoje aplicados e analisa também as formas de justiça transicional que estavam presentes durante os processos de democratização na Europa do Sul” [18].

Por fim, o livro resenhado atribui aos pesquisadores e intelectuais de um modo geral a tarefa de investigar pistas, rastros e vestígios em busca de respostas sobre esse passado traumático que sucumbiu com a vida de pessoas como a de Majer Kucinski – pelos tormentos da culpa, do trauma e da morte causados pelo cansaço e exaustão ao procurar sua filha – e de Ana Rosa Kucinski Silva, que até agora continua sem um túmulo, sem uma lápide que a insira num tempo que contabilize seu nascimento e morte, pois, conforme os judeus, “Sem corpo não há rito, não há nada”.

Notas

2. É importante deixar claro que o livro de Bernardo Kucinski se situa no âmbito das discussões teóricas da egiptóloga Aleida Assmann, a qual, por meio do livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural (ASSMANN, 2011), nos oferece a oportunidade de analisar que o resgate da memória traumática, referente a acontecimentos do nosso passado recente, nos remete a posicionarmos contra as catástrofes, atrocidades dos eventos traumáticos. Um dos exemplos chave que podemos apontar nesta abordagem, o Holocausto.

3. Conferir o texto do historiador Edgar Salvadori de Decca A humilhação: ação ou sentimento? (MARSON; NAXARA, 2005). Nesse texto, Decca contribui sobre o que é humilhação. Segundo o autor, diante de várias características que a palavra carrega, a humilhação é o processo em que a “vítima é forçada à passividade, sem ação e sem socorro” (p. 108).

4. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 dez 1948. Disponível em . Acesso em: 30 out. 2015.

5. Vale lembrar que, para o historiador Carlo Ginzburg as pistas e vestígios do passado são fundamentais ao historiador no processo investigativo de determinado acontecimento histórico. Dessa maneira, através deste pressuposto, reconhecido como “paradigma indiciário” é que, também, podemos ler as lacunas e os silêncios que muito nos contribuem sobre aquele objeto de estudo e o tempo em que ele está imerso. Conferir: Sinais: Raízes de um paradigma indiciário (GINZBURG, 1989, pp. 143-179).

6. Nesse sentido, Hayden White expõe a problemática de que o historiador em seu processo de escrita, onde a leitura das fontes se apresenta como norteadora, deve se utilizar da sutileza e da herança cultural literária que ele carrega, oferecendo, portanto, um sentido específico ao que objetiva narrar. Dessa forma, para White essa ação é uma “operação literária e criadora de ficção”. Consultar: O texto histórico como artefato literário (WHITE, 1994, p.104).

7. “O iídiche é falado pelos judeus da Europa Oriental e teve seu apogeu no início do século XX, quando se consolidou sua literatura; sofreu rápido declínio devido ao Holocausto e à adoção do hebraico pelos fundadores do Estado de Israel” (p. 13).

8. É importante considerar neste contexto que para Paul Ricouer o testemunho se configura como elemento muito importante para que o historiador possa resgatar o passado. Conferir: O testemunho (RICOUER, 2007, p.170).

9. O historiador italiano Carlo Ginzburg argumenta que a relação entre narrações ficcionais e narrações históricas “devia ser enfrentada da maneira mais concreta possível”. Ou seja, nota-se que tanto para Hayden White quanto para Carlo Ginzburg as duas formas de narrativas são fundamentais em nossa operação historiográfica. Conferir o livro O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício (GINZBURG, 2007, p.12).

10. Consultar: É isto um homem? (LEVI, 2000).

11. Cabe salientarmos que para melhor apreensão acerca deste assunto é preciso consultar a obra: A interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001, p.554).

12. É interessante notar que os estudos do historiador Dominick LaCapra sobre trauma são bastante sugestivos justamente ao enfoque que ele dá aos traumas de pessoas que testemunharam eventos históricos estarrecedores. Observa-se que as vítimas sentem-se como sua linguagem ficara comprometida devido aos efeitos psicológicos. Pois as testemunhas oculares de eventos limites carregam imagens do ocorrido e que vem a lhe causar tormentos constantes diante das cenas que lhes vem à memória. Conferir: Writing History, Writing Trauma (LACAPRA, 2001).

13. Consultar a obra: A interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001, p.581).

14. O historiador Francês Pierre Nora à frente da Associação Liberdade para a História na França tem chamado a atenção acerca da liberdade dos historiadores em representar os crimes cometidos contra a humanidade. Pois essa assertiva vai à contramão de políticas públicas que muitas vezes procuram através de leis e ações políticas salvaguardar o retrato desses acontecimentos à luz de interesses políticos ou de natureza particular. Conferir o livro: Liberté pour l’histoire (NORA, 2008).

15. Vale lembrar que a esta altura do livro, Bernardo Kucinski, ao referir-se à uma casa em Petrópolis ele faz alusão à existência da Casa da Morte em Petrópolis no Rio de Janeiro para onde foram levados os presos políticos e lá, massacrados.

16. A abordagem da historiadora argentina Maria Ines Mudrovcic acerca de testemunhas oculares se faz bastante pertinente nesta resenha no que concerne à abordagem referente à dor psicológica causada no indivíduo que testemunhara a um evento limite. Segundo Mudrovcic, testemunha ocular é todo indivíduo que vê o que acontece diante os seus olhos, portanto, no caso de Jesuína, ela testemunhara os horrores à sua frente. Logo, essas experiências desencadearam com o tempo, trauma. Conferir: El debate em torno a la representación de acontecimientos límites del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente (MUDROVCIC, 2007, pp. 127-150).

17. Os estudos do literato Márcio Seligmann-Silva vem a calhar com questões acerca de passado traumáticos assim como os trabalhos da historiadora Maria Ines Mudrovcic. As expressões eventos limites, trauma, literatura, ficção, história e memória são bastante recorrentes nas obras de Seligmann-Silva, dentre elas, consultar: A História como Trauma (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.78).

18. Consultar: O Passado que não Passa: A sombra das Ditaduras na Europa do Sul e na América Latina (COSTA; MARTINHO, 2012, p.5).

Referências

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. de Paulo Soethe. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011.

MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005.

COSTA, António Pinto; MARTINHO, Francisco Carlos Palomantes. O Passado que não Passa: A sombra das Ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

DECCA, Edgar Salvadori de. A humilhação: ação ou sentimento? In: MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (Org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. Trad. De Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Trad. de Frederico Carotti. 2ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

_________________. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Trad. de Rosa Freire d’ Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LACAPRA, Dominick. Writing History, Writing Trauma. Baltimore: The Johns Hopkins Universty Press, 2001. LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. de Luigi Del Re. 3ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.

MUDROVCIC, María Inés (editora). Pasados em conflicto: Representación, mito y memoria. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2009.

MUDROVCIC, María Inés. El debate em torno a la representación de acontecimientos límites del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente. Diánoia. México, v.52, n 59, pp. 127-150, 2007.

NORA, Pierre; CHANDERNAGOR, Françoise. Liberté pour l’histoire. Paris: CNRS Éditions, 2008.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. de Alain François. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. (orgs.). Catástrofes e representação. São Paulo: Escuta, 2000.

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994

Varlei da Silva1 – Mestrando em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]


KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: SILVA, Varlei da. As lacunas e os silêncios de uma busca que não terminou. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.20, p.595-605, ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

Capitalismo tardio e os fins do sono – CRARY (A-EN)

CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de QUEIROZ, Luciana Molina. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.3, sept./dec., 2016.

No primeiro episódio da série da BBC Black Mirror, chamado The National Anthem, o primeiro ministro britânico é chantageado pelos sequestradores de um membro da família real e obrigado a realizar em rede nacional um ato absolutamente constrangedor e degradante, sob a pena de ser responsável pela execução da Princesa Susannah caso não cumprisse as exigências por eles colocadas. Enquanto todos os habitantes do país são mostrados em torno de televisores acompanhando de maneira horrorizada a coragem e decisão do primeiro ministro, a Princesa anda por ruas completamente desertas, sem que ninguém fosse capaz de constatar que ela já havia sido liberada por seus raptores. O argumento dos sequestradores (e, portanto, do episódio) é um dos aspectos mais interessantes abordados por Jonathan Crary em seu livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono: o modo como experiências de gerações inteiras são completamente moldadas a partir da programação da cultura de massa. Um grande evento, como a Copa do Mundo, e mesmo as grandes tragédias, como a morte de um ídolo pop ou o recente ataque ao Charlie Hebdo, assim como a catástrofe do 11 de setembro, são exibidos e acompanhados com viva atenção em escala global. Nesse sentido, a história pessoal de um indivíduo é filtrada por aparelhos.

Tal como Black Mirror, o ensaio de Crary por vezes parece ficção científica. O próprio autor admite que parte de casos extremos para demonstrar a relação entre sono e capitalismo tardio, tais como acidentes industriais noturnos que vitimaram várias pessoas enquanto dormiam. Esses exemplos, que parecem parte de uma distopia ou de um cenário catastrófico num universo cyberpunk, podem facilmente levar o leitor de simpatias tecnofóbicas a desejar voltar a um mundo basicamente pré-capitalista e rural, no qual máquinas não mediavam nossas vidas. É verdade que, hoje, a tecnologia é tão bem aceita dentre os habitantes da cidade grande que qualquer crítica a ela sempre está sob suspeita de ter motivação conservadora ou nostálgica sem mais. Por isso, é vital estarmos alertas à identificação da agenda política e das bases teóricas em que se firmam as críticas à técnica. É necessário lembrar, por mais trivial que possa parecer, que a crítica marxista em geral deixa claro que se opõe ao uso da técnica feito pelo capital, e não à técnica por si, algo ambivalente no discurso de Crary, por vezes mais ansioso em denunciar a alienação do sujeito derivada da dissolução das noções de comunidade e pertencimento existentes nas sociedades tradicionais do que propriamente em esmiuçar a coisificação do sujeito em uma sociedade em que o capital adquire inúmeras vantagens quando aliado à técnica.

Apesar dos exageros de tom apocalíptico, algo subjaz de terrivelmente verdadeiro na exposição de Crary: a preocupação com a tendência do capitalismo a tudo colonizar e instrumentalizar. “Existem agora pouquíssimos interlúdios significativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing” (CRARY, 2014: 24), argumenta. Há, então, incompatibilidade entre as demandas do mercado e as necessidades de uma vida humana saudável. Em uma época marcada pelo estranhamento e pela reificação, em que se sedimenta a crença de que não se pode encontrar prazer no trabalho, o tempo/espaço referente ao trabalho e o referente ao lazer são reinseridos em um continuum, talvez ainda mais pernicioso, posto que ainda se caracteriza pela alienação, e não tem ruptura ou escapatória. Nesse sentido, compreendemos as altas taxas de adoecimento físico e psíquico exibidas pelos professores universitários. Não só porque também se encontram subsumidos nesse mesmo imperativo categórico do publish or perish, mas também porque a mercadoria-fetiche por excelência do acadêmico, o conhecimento, e suas configurações em livros, cursos on-line e transmissões ao vivo do evento sobre comunismo em Bogotá ou Istambul parecem multiplicados pelas indicações realizadas pelos bancos de dados das lojas online e pelas atualizações das redes sociais. Em meio a curtidas de fotos do bebê do colega de trabalho, aparecem para ele inúmeras indicações de leitura. A todo instante se exige do acadêmico que esteja up-to-date, e em seus aspectos regressivos isso implica que ele deve se inteirar das novidades do mundo intelectual, sejam essas importantes ou frívolas. Faz parte do funcionamento da indústria acadêmica a existência de intelectuais pop star como o Žižek e de best sellers da economia como O capital no século XXI, de Thomas Piketty, pois eles são marcas da impotência do acadêmico para ignorar informações. Pertencer à comunidade acadêmica é algo que ironicamente reduz o tempo do intelectual junto às suas próprias inquietações teórico-existenciais, no corpo a corpo de seu objeto de pesquisa, e o reinsere na lógica capitalista – menos um intelectual autônomo e mais um autômato 24/7.

O horror da tese de Crary nos persuade porque mesmo o sono, esse último reduto do ser humano contra a produtividade capitalista, vem sendo progressivamente desguarnecido. Se há alguns anos o sonho ainda era visto como uma zona impassível de ser ocupada pelo capitalismo, o autor demonstra, através da análise da cultura de massas, que até ele aparece em filmes como A Origem, de Christopher Nolan, como algo passível de ser entendido por critérios de rentabilidade. É como se no imaginário popular já estivesse consolidado o desejo de eliminar o que Crary considera a última barreira para a expansão capitalista: o sono e o descanso. Isso o leva a empreender uma crítica a um só tempo corajosa e selvagem ao pai da psicanálise, que teria em sua primeira formulação a respeito dos sonhos afirmado que todo sonho é a realização de um desejo do sonhador (afirmação que ganharia um ad hoc quando Freud se colocou com a devida atenção a questão do sonho traumático). Para o estadunidense, essa formulação do sonho como algo existente somente como anseio individual, somada à crítica de Freud aos movimentos gregários em sua análise da psicologia das massas, teria acarretado graves equívocos teóricos e práticos. Freud nunca teve o interesse explícito e primordial de se comprometer com algum partido ou ideário político ao erguer as bases de seu trabalho. Mas Crary defende que subterraneamente haveria ali uma concepção de desejo ideologicamente favorável à manutenção desse estado de coisas, em que o privatismo dos gadgets pessoais se tornaria um sintoma externo do individualismo crescente. Para ele, “a privatização dos sonhos por Freud é apenas um sinal de uma supressão maior da possibilidade de seu significado transindividual. Por todo o século XX, pensou-se que os anseios estivessem ligados exclusivamente a desejos individuais – desejar a casa dos sonhos, o carro dos sonhos ou férias” (CRARY, 2014: 118).

Contudo, ainda parece ser a psicanálise, aliada às ciências sociais, o principal ferramental teórico para se compreender o desejo individual manifesto no sonho como algo formulado no estado de vigília a partir de vivências historicamente situadas. Nesse sentido, é útil voltar à “indústria cultural”, conceito cunhado por Adorno e Horkheimer. Ao nos chamar a atenção para o grande número de experiências compartilhados pelas mídias, Crary poderia ter ido além, e especulado como que essas experiências também moldam desejos e, combinando aspectos da teoria dos sonhos de Freud e da exposição de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, poderíamos então nos questionar se a indústria cultural, ao contrário do que ele pensa, já não foi capaz de entrar no terreno insondável do sonho, submetendo-o ao menos em parte à lógica do capitalismo tardio. Afinal, um aspecto comum ao sonho e à mercadoria é justamente o modo como ambos são expressão de um desejo. Ainda que as pessoas sejam capazes de se associar a padrões de consumo diversificados, é inegável que muitas necessidades são moldadas pelo fetichismo da mercadoria, esse “passe de mágica” pelo qual de repente nos vemos absolutamente ávidos em adquirir determinado objeto convencidos de que há nele algo capaz de mudar nossas vidas. A cultura de massas, que engloba a publicidade, a imprensa e os meios de comunicação, bem como suas trocas com a indústria do entretenimento e do lazer, participa de uma equação na qual os desejos individuais tornam-se cada vez menos idiossincráticos, tendo em vista que são em alguma medida formados por uma estrutura totalizadora que é recebida coletivamente. Se isso vem ocorrendo, então os desejos já são em certo sentido transindividuais – sem dúvida não do jeito que pretende Crary, mas sim a partir de uma massificação dos objetos desejados e da própria faculdade de apetecer, que também pode ter como princípio algum anseio de ordem local, nacional ou mesmo mundial. As grandes detentoras dos meios de comunicação que buscam influenciar politicamente uma eleição ou sugerir para o público como deve se sentir e pensar a respeito de uma manifestação política ou sobre a possibilidade do país sediar uma Copa ou as Olimpíadas são capazes de atestar isso. Torna-se claro, então, que a questão que deve ser colocada não é a de se é possível sustentar algum desejo coletivo, mas antes se deve ter como foco o modo como esse desejo pode se dar.

Se Crary não desejava que sua crítica aos meios de comunicação e novas tecnologias fosse confundida com mera tecnofobia, teria feito bem em especificar de maneira mais rigorosa as diferenças entre individualismo e individualidade, pois, diante de sua argumentação, por vezes temos a impressão de que a única solução para o que observamos seria voltar a um modelo de sociedade pré-moderna, em que não havia possibilidade para a constituição forte de sujeito. Falta a ele ter uma visão mais dialética da coletividade, pois em seu ensaio retorna como falta o principal impasse relativo à cultura de massas (já presente no debate marxista, e mais especificamente nas disputas entre adornianos e benjaminianos): a relação entre o individual e o coletivo. Apontada como contribuintes do individualismo social, a cultura de massas no entanto reproduz uma estrutura que é recebida coletivamente, e que tem força suficiente para em alguma medida homogeneizar as massas em relação a uma visão de mundo e a um comportamento a favor do capitalismo. O blockbuster hollywoodiano, por exemplo, não só nos provê firmes noções de beleza e de erotismo, como também as associa a objetos e mercadorias específicos, tornando-se assim uma instância capaz de formar desejos associados ao estilo de vida existente no capitalismo. O sujeito não só se autodefine e se comporta como um consumidor como também naturaliza esse comportamento. Marcuse inteligentemente disse que, no capitalismo de hoje, a indústria cultural muitas vezes viria a substituir a lei paterna. Como construir utopias e desejos coletivos se a cultura de massas justamente opera a partir da falta de autonomia individual? Trata-se de uma das tarefas fulcrais da práxis política hoje: construir uma coletividade que se baseie não num comportamento comumente associado às massas, de irracionalidade quase animalesca (no retrato de Freud) ou de rebanho (como já aparecia na obra de Nietzsche), mas sim num comportamento em que as individualidades, de egos fortes e críticos, não se tornem facilmente massa de manobra de uma personalidade carismática e autoritária, como demonstram os usos feitos pelo nazismo da técnica, mas possam antes se agregar em torno da construção de uma utopia comum de motivações emancipadoras.

Luciana Molina Queiroz. Mestra em Filosofia pela UFMG e doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp.E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Metafísicas Canibais-CASTRO-(NE-C)

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosacnaifty, 2015. Resenha de: PIMENTA, Pedro Paulo. A permanência da metafísica, pelas lentes de um antropólogo. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.1, Mar, 2016

Desde sua publicação em meados de 2015, o livro de Eduardo Viveiros de Castro vem sendo comemorado por parte significativa da comunidade antropológica brasileira, e por boas razões. Trata-se de mais uma contribuição desse etnólogo à reflexão sobre o estatuto, o papel e a dimensão da antropologia como ciência social que não hesita em assumir também uma dimensão filosófica-vocação essa que muitos, inclusive este resenhista, consideram inerente a ela. É natural, portanto,que também os filósofos se posicionem diante do livro,de preferência sem aderir de antemão ao projeto em que ele se insere ou tampouco rechaçá-lo (só porque esse projeto se imiscui,sem pedir muita licença, nos domínios da filosofia).Desde o título,acertado e provocativo,este Metafísicas canibais tem tudo para alienar uma parcela do mundo acadêmico e cultural pouco afeita a irreverências com a filosofia (há uma razão para isso: volta e meia, ela é constrangida a se explicar, e mesmo a justificar a própria existência – por que filosofia? Por que filósofo? Pergunta que volta e meia se põe, como observava Rubens Rodrigues Torres Filho nos idos de 1974). O leque de referências filosóficas abertamente mobilizadas por Viveiros de Castro, que relê a antropologia estrutural de Lévi-Strauss pelo crivo de Deleuze e Guattari, constitui outro fator, se não alienante, certamente divisor, dada a paixão com que o pensamento destes últimos, atualmente divulgado à exaustão no Brasil, é aceito/rejeitado por leitores que por ele se interessam (num fenômeno similar ao que ocorre com Foucault).Mas, se é verdade que não se pode julgar o livro pelo título, e muito menos pela bibliografia, então não resta dúvida de que a chegada da obra em língua portuguesa (o texto de base surgiu na França em 2009) deve ser comemorada como uma boa-nova, pois não há dúvida de que Viveiros de Castro merece ser lido por todos aqueles que tomam a peito a filosofia e que, nessa condição, certamente receberão a obra criticamente – atitude que, se não me engano, ela mesma reclama de seu leitor.

A primeira coisa que observo é que Metafísicas canibais é um livro original não somente pelas teses que expõe, ou, melhor dizendo, que costura,como também pelo modo como as enuncia.O estilo de Viveiros de Castro é vivamente coloquial,sem nunca se tornar prosaico.O tom de sua voz,pessoal desde as primeiras páginas,não raro inusitadamente confessional, põe o leitor em contato direto com a inteligência do autor, marcada pelo raciocínio rápido, a virada engenhosa, o arremate inesperado, a ironia por vezes sarcástica, nunca desmesurada. Tudo isso, percebe-se logo, é estritamente necessário para a encenação de um balé arriscado, em que a antropologia estrutural e a filosofia contemporânea são os protagonistas. Seria impreciso referir-se à relação entre elas,tal como concebida por Viveiros de Castro,como um diálogo ou interlocução – situação demasiadamente relacionada ao logos que o autor quer descentrar.Trata-se antes de choque,fricção,desencontro, conflito e outras situações próximas do desacerto e da incompreensão, estratégia que as hábeis mãos do encenador julgam a mais conveniente para alargar as perspectivas da filosofia ao mesmo tempo que reforça a posição da antropologia como ciência com ambições filosóficas. Um clima de tensão, que resulta dessa abordagem, perpassa as páginas do livro e garante – o que não é pouco, em se tratando de uma obra com elevadas pretensões teóricas e extensas digressões conceituais-queo interesse do leitor se mantenha o mesmo,do início ao fim.

Uma das evidências de que estamos diante de um discípulo autêntico e original de Lévi-Strauss é a adoção por Viveiros de Castro de um viés bem determinado,que pauta os diferentes estudos que compõem este Metafísicas canibais, e que poderíamos descrever como um pendor, que se mostra, nas mais densas análises teóricas, para conclusões com consequências vultosas. Efeito notável, que infunde o texto com a promessa de que, atravessadas as páginas mais áridas de teoria propriamente dita, chegar-se-á por fim a um resultado de monta, que diz respeito a muito mais do que a teoria mesma que levou a ele. No caso de Lévi-Strauss,a dissolução da filosofia na etnologia,movimento coerente,que as Mitológicas finalmente executam,com as indicações e esquemas legados ao estruturalismo por Rousseau; no caso de Viveiros de Castro,a absorção mútua de certa filosofia (a de Deleuze e Guattari, mas também a de um Latour) e da única antropologia que no fundo lhe importa,justamente essa que Lévi-Strauss inventou,ao levar a sério as injunções lançadas por Rousseau à razão ocidental.Aqui e ali,trata-se em alguma medida da reforma (ou mesmo da sorte) de um saber ancestral,que,como se sabe,se encontra em plena crise desde o início do século XIX:a própria filosofia.A exemplo de Lévi-Strauss,Viveiros de Castro saboreia a ironia de que justamente um herdeiro dessa mesma filosofia – o antropólogo, logo ele, filho da Ilustração – venha a propor algo como uma reformulação da metafísica, essa “ciência” há muito combalida e desacreditada, porém resistente. É uma ideia irônica, mas que nenhum deles considera despropositada. Com efeito, a filosofia se encontra, tanto para Viveiros de Castro quanto para Lévi-Strauss,no banco dos réus – ou,melhor seria dizer,no leito de morte, tendo caducado em virtude de suas próprias deficiências e limitações (basicamente de perspectiva) e da arrogância que por séculos a fio a levou a ignorá-las. Daí a aliança com Deleuze e Guattari, que se inscrevem num horizonte de reflexão pós-metafísica. É o pano de fundo a partir do qual desponta o conceito central de toda a obra de Viveiros de Castro,ou pelo menos deste livro e do que o precedeu, A inconstância da alma selvagem: o perspectivismo. Um modo de simplificar ao extremo e mesmo banalizar Metafísicas canibais seria dizer que é uma obra de fundamentação filosófico-antropológica do perspectivismo, com vistas a assentar essa nova teoria no centro das reflexões teóricas e métodos de estudo, em campo e no gabinete, adotados pelos estudiosos simpáticos à antropologia estrutural. E mais. Uma vez adotado esse programa, sugere-se, a nova antropologia não somente prescindirá dos serviços dos antigos funcionários do logos como poderá reclamar para si as prerrogativas que um dia couberam a estes, desde Platão. Em suma, teríamos uma ciência que faz algo de fato singular: propõe uma visão de mundo,completa e abrangente.E o faz num movimento dos mais interessantes: a morte da filosofia como evento que traz o renascimento da metafísica, no seio da antropologia.

Sabiamente,o autor se recusa a rebaixar sua empreitada a um inquérito, como se a “história da filosofia” pudesse ser acessada, de repente, sem mais, a partir de um ponto de vista exterior que reduzisse a quase nada as aventuras da razão (e não só dela: entre suas acompanhantes, não esqueçamos aqui a imaginação, tão louvada pelos filósofos que entreviram o advento do saber etnológico).A insuficiência da filosofia,tal como diagnosticada pelo pós-estruturalismo(se me permitem o termo), não será identificada por nenhuma leitura rápida,com nenhum recurso aos antigos manuais que nos brindavam com a triunfante marcha da razão rumo a sua efetivação completa.Ao contrário,e pode-se dizer que quanto a isso Viveiros de Castro se coloca mesmo numa posição privilegiada,em relação àquela de Lévi-Strauss. Enquanto este,em meio a rompantes contra os filósofos,não conseguiu jamais apagar a impressão de que no fundo era um deles (e dos mais raros:um discípulo de Rousseau, talvez o único depois de Kant), nosso autor se dirige à filosofia como quem busca por uma aliada,ciente de que o título desse saber,e daquele que o pratica (filósofo), é um nome geral que recobre muitas ideias particulares, cada uma delas com suas nuances e sutilezas, algumas mais próximas de seus propósitos, outras que, de tão alheias a eles, podem simplesmente ser ignoradas. É uma estratégia inteligente, que contribui muito para o vigor dos argumentos expostos. (E representa um passo importante em relação a A inconstância da alma selvagem, onde o peremptório acerto de contas com alguns clássicos da filosofia era feito com um misto de má vontade e simplificação – Hume um herdeiro da reforma luterana,Kant,obscuro,porém conveniente etc.)

Para compreender Metafísicas canibais e saboreá-lo não é preciso,porém,concordar com esse diagnóstico,apenas embarcar com o autor em sua aventura intelectual, sem necessariamente se comprometer com ela (em sã consciência,ninguém lê Descartes ou Hegel em busca da verdade,mas,via de regra,porque são autores interessantes).É então que surge a questão de saber que sentimentos o livro estaria apto a despertar num leitor oriundo da filosofia que se interessa pela exposição como testemunho de uma vigorosa empreitada intelectual. Tudo depende, é claro, da formação de cada um, de suas leituras, dos filósofos que se está acostumado a frequentar,por assim dizer.Os leitores acostumados à filosofia surgida na França em fins dos anos 1950 não terão dificuldade em extrair muito proveito das páginas de Viveiros de Castro,pois é efetivamente com essa tradição que ele dialoga, inclusive no terreno da antropologia – se pensarmos que em 1966 Foucault encerra As palavras e as coisas saudando a etnologia de Lévi-Strauss como uma das formas legítimas do saber filosófico de nosso tempo (pois o tempo de então é também,em larga medida,o nosso).Mas é claro que nem todos os filósofos são herdeiros de Foucault. E questões inusitadas podem surgir,a partir de uma posição mais distante em relação a tudo isso.

Por exemplo, um leitor de Kant (como este resenhista) poderia observar, já no próprio título do livro, a filiação do projeto de Viveiros de Castro a uma tradição especificamente moderna, que consiste na elevação, a objeto de reflexão filosófica, de um tema raramente estudado antes do século XVIII,e em todo caso tido como de importância marginal: acuriosa permanência da metafísica, a despeito de todos os ataques e contestações sofridos por essa pretensa ciência – ou por esse saber,se quisermos simplificar as coisas.É um tema fascinante:outrora “rainha de todas as ciências”,ela se vê contestada,declara a Crítica da razão pura, por todas as partes. Mas mesmo os céticos, que a rechaçam com mais contundência, concedem a ela algum valor, que seja relativo à configuração específica da razão humana, e logo lhe concedem uma perenidade. É claro que o título cunhado por Viveiros de Castro tem um forte sabor irônico, mas nem por isso é menos sério. Em suas lições no Collège de France,Lévi-Strauss advertia:o canibalismo,estritamente falando,não existe como instituição social. O que seriam então essas “metafísicas canibais”? Precisamente isto, eu arrisco dizer: sistemas de leitura e interpretação, que surgem não da cogitação do indivíduo a respeito do mundo, mas do lugar mesmo que ele ocupa em relação a outros indivíduos, na trama das relações que perfazem isso que por conveniência se chama de mundo, natureza, totalidade, cosmos, gaia etc. Muito se discutiu, na época moderna, acerca dos limites da razão e da possibilidade ou impossibilidade da metafísica como ciência;mas,como alerta Kant, haverá metafísica enquanto houver relação e enquanto essas relações forem concomitantes a ações – ou seja, haverá metafísica enquanto houver seres (não necessariamente humanos) que atuam em consequência de necessidades sentidas, sejam elas transcendentais (Kant), sejam empíricas (Condillac, Rousseau). A esse respeito, cabe lembrar a lição de Lebrun,intérprete de Kant:pode-se esperar pelo fim da metafísica comociência,mas seria uma grande tolice aguardar por sua dissolução como instinto próprio,resultante do fato de que o homem é uma espécie de animal que cogita e pensa abstratamente;logo,sempre haverá uma metafísica, como presença surda e incontornável na constituição de todo e qualquer pensamento ou saber positivo – seja ele abstrato ou civilizado, seja concreto ou selvagem (Lévi-Strauss), seja ainda, como sugere Viveiros de Castro (na trilha de um Iluminismo expandido),animal,vegetal,pós-humano etc.Não custa muito,assim, à antropologia estrutural reiterar algo que o século xviii apenas esboçara: a equivalência entre esses múltiplos sistemas, quanto ao valor da interpretação que eles sugerem (e cada um deles sugere sua própria interpretação como única, verdadeira e necessária, ainda que restrita a um só evento ou fenômeno: logo, como relativa a quem interpreta). Que se afirme a existência de classes reais na natureza;que estas sejam reduzidas a uma síntese da imaginação,que sejam elevadas a princípios transcendentais, dissolvidas e anuladas pela perspectiva de um indivíduo qualquer – em todo caso,articula-se uma visada sobre indivíduos e relações, e é prudente deixar em suspenso qual delas deve ter prioridade ou se seriam mesmo excludentes.

Com isso, Metafísicas canibais reforça o convite, que já fora feito indiretamente pelo autor em A inconstância da alma selvagem e diretamente em conferências (que eu saiba,não publicadas por escrito) para que os filósofos sejam lidos do mesmo modo como quem se encontra diante da enunciação de uma concepção de mundo essencialmente alheia ao senso comum (teórico ou não) de cada um – experiência com que o etnógrafo/etnólogo se depara o tempo inteiro, se estiver aberto ao que a experiência, direta ou indireta, tem a lhe oferecer. Assim como seria uma perda de tempo deslocar-se até o Alto Xingu ou a Itanhaém apenas para reforçar o que os manuais de outrora e de hoje dizem sobre “povos primitivos”, de que valeria abrir as páginas de um Espinosa ou de um Aristóteles, se é apenas para confirmar o que cada um tem na cabeça e toma como verdades intocáveis a respeito do que é relevante ou não para o atual debate filosófico? É preciso conceder a um filósofo que parece falar e pensar como nós, e que parecemos compreender, a possibilidade de que aquilo que ele diz seja uma articulação estranha, de verdades cujasimplicações nos escapam, que, para ser compreendidas, exigiriam realmente algo como um descentramento de nossa razão, uma abertura tal que levasse a considerar cada sistema filosófico como a expressão de uma singularidade completa quanto ao modo de pensar.É preciso,em suma, que a ideia de uma razão ocidental seja posta em suspenso, para que a filosofia associada a essa alcunha venha a ressurgir em todo o seu esplendor e riqueza. Aceita essa premissa, na verdade bastante sensata, e silenciosamente em operação na melhor historiografia filosófica (como a de um Deleuze ou de um Lebrun, como nas leituras de um Foucault), fica difícil falar, sem mais, em logos e em razão ocidental. Por mais que os filósofos da tradição compartilhem de certos pressupostos,seriam estes suficientes,como se costuma pensar,para sustentar a unidade dessa entidade rarefeita,a razão ocidental,diante do peso e da força das singularidades de cada um? Pensamento selvagem ou pensamentos selvagens? Daí a pertinência do título escolhido por Viveiros de Castro, que fala em metafísicas, não em metafísica: se é verdade que esta morreu,com a revolução kantiana ou com a Revolução Francesa,pouco importa aqui,sua posteridade é igualmente irrecusável.Encontram-se metafísicas por toda parte – das ciências da natureza às da linguagem, da medicina à economia,da história à política e,é claro,em toda filosofia que se preze (mesmo nas pós-metafísicas, que pretendem atravessar a antiga ciência).Com as ciências humanas não é diferente,e uma lição silenciosa de Metafísicas canibais é esta: basta que se ignore ou, pior, se faça pouco da presença de uma metafísica num saber positivo qualquer para que este adquira, inadvertidamente, as feições de uma metafísica única, centralizada, pronta para suprimir a pluralidade de saberes, possíveis e existentes, às voltas com as condições de possibilidade de sua efetivação como saberes.

A sugestão que se depreende da leitura de Viveiros de Castro para a compreensão da reflexão filosófica em relação com a historicidade da própria filosofia é tão mais pertinente quando se pensa que o próprio Deleuze, cuja obra perpassa as páginas desse livro, foi antes de tudo um exímio leitor de Hume (1953), Nietzsche (1962), Kant (1963), Espinosa (1968) e Leibniz (1986). Essa série de livros pode inclusive ser vista como uma espécie de mitologia filosófica do autor, teia de referências sobre a qual repousa sua própria reflexão – ela mesma,mais um capítulo das mitológicas filosóficas que vislumbrei aqui, a partir de Metafísicas canibais. Em vista disso, uma frustração que o leitor de cabeça filosófica poderá eventualmente experimentar ao percorrer as páginas de Metafísicas canibais é a relutância mostrada pelo autor sempre que tem diante de si a possibilidade de explorar as sendas percorridas por Deleuze em sua historiografia (indissociável de sua filosofia). É o caso, por exemplo, de uma sugestão feita por Viveiros de Castro, porém não explorada, de que o perspectivismo teria afinidades com a monadologia de Leibniz. Parece indubitável que, se uma abertura como essa fosse aproveitada, o livro seria bastante diferente, embora não necessariamente melhor. Em todo caso, fica a tentação de pensar o que seria esse outro livro, que um leitor entusiasmado de Leibniz (ou de Borges) poderia inclusive supor como realmente existente – correlato metafísico, determinação complementar da mônada que é o Metafísicas canibais que temos diante de nós. (Seria esse livro aquele a que o autor se refere nas páginas iniciais – o anti-Narciso?) A etnologia de Viveiros de Castro,ousada e sugestiva, deixa assim no leitor a impressão de ser um pensamento que se estrutura à maneira do organismo leibniziano – totalidade encerrada em si mesma, máquina vital cujas partes remetem a determinações infinitas de uma substância una (cujo equivalente, no plano da exegese crítica, seria a tradição antropológico-filosófica, em constante evolução, que serve de pano de fundo ao autor).

Como toda mônada,essa se encerra em si mesma no mesmo movimento em que se abre para outras,e o leitor de filosofia tirará proveito do modo como Viveiros de Castro se posiciona em relação à tradição estruturalista e seus desdobramentos;e quem sabe se,estimulado por esse embate, não mergulhará (ou se perderá?) nos escritos de Clastres, Descola, Ingold, Sahlins, Strathern, Wagner e tantos outros que aí comparecem – incluindo, evidentemente, o saber dos “povos da selva”.É um enfrentamento estimulante,conduzido por um pensador que se põe à altura de uma corrente de pensamento para a qual sua própria obra vem contribuindo, pelo menos desde Araweté: os deuses canibais (1986).Sem mencionar que é impossível não retornar,ainda uma vez,ao Lévi-Strauss de Opensamentoselvagem e das Mitológicas – ponto de partida e de retorno de Viveiros de Castro, em sua etnografia bem como em sua própria “metafísica” (aqui já com as devidas aspas).Essa (re)descoberta de fontes poderá inclusive reforçar esta indagação, a que a leitura do livro progressivamente dá corpo:e quanto aos limites dessa metafísica tão singular, que, na pena de Viveiros de Castro, pretende contestar a metafísica clássica? Não estariam eles na articulação discursiva,na formulação dos conceitos,na leitura e interpretação das fontes, orais, escritas, simbólicas – enfim, numa certa presença, talvez incontornável,daquela racionalidade que tanto incomoda e que se pretende superar? Se essa indagação tiver sentido, o livro de Viveiros de Castro se mostrará também,entre muitas outras coisas,como uma confirmação da atualidade de Kant e de Nietzsche. E, nessa exata medida, poderá ser inscrito numa mitologia que, felizmente para todos nós, não parece dar sinais de esgotamento.

Pedro Paulo Pimenta– Professor do Departamento de Filosofia da USP.

Acessar publicação original

Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo – SAFATLE (RFMC)

SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Resenha de: PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.3, p 190-193, n.1, 2015.

Em Circuito dos Afetos, Vladimir Safatle investiga desdobramentos de suas ideias acerca de uma ontologia do negativo, as quais sustentou em sua tese de doutorado 1 por meio de uma engenhosa articulação entre Hegel, Lacan e Adorno. Seu novo livro aborda especificamente a dimensão dos afetos. Nosso autor já havia apontado para essa direção em dois de seus trabalhos, Cinismo e Falência da Crítica e Grande Hotel Abismo. O primeiro mostra que cínico é aquele que aprendeu a rir das normas: não importa se estas se realizam de maneira invertida, para o cínico o que realmente interessa é a promessa de gozo imediato do neoliberalismo. Posteriormente, Grande Hotel Abismo aprofunda a investigação sobre uma ontologia capaz de exercer uma pressão subtrativa e insiste no potencial produtivo de experiências de indeterminação.

Que afetos estão ligados à produtividade do trabalho do negativo? Que afetos permitem a insurgência de uma violência destruidora daquilo que nos faz estagnar em um circuito de repetições intermináveis? Que afetos criam sujeitos? Estas são as perguntas centrais de Circuito dos Afetos. Para pensa-las, Safatle retorna a Freud, particularmente ao desamparo [Hilflosigkeit] freudiano. Este é, de fato, um retorno, pois somente após incorporar sua tríade (Hegel, Lacan e Adorno) nosso autor poderia ler Freud tal como, agora, propõe.

Diferentemente do medo ou da esperança, o desamparo não está ligado a projeções de determinados acontecimentos futuros. O desamparo se conecta a situações às quais não somos capazes de atribuir um sentido (ou, como prefere Safatle, atribuir um predicado) ou a experiências que não sabemos como lidar. No desamparo agimos sem saber em que lugar chegaremos. Mas, mesmo desamparados, agimos. Movemonos, pois de algum modo devemos ter sido capazes de perceber que estávamos presos a um circuito de repetições. Estranhamos isso – o desamparo é, nestes termos, articulado ao estranhamento (Das Unheimlich) freudiano. Nosso autor escreve sobre uma política do impossível, isto é, sobre uma política ligada a um ato que não está mais fundado nas possibilidades que nos são disponibilizadas por uma ordem simbólica. Trata-se de um ato que só poderá adquirir sentido retroativamente.

A partir de textos freudianos, Safatle formula, ainda, um diagnóstico acerca da hegemonia de certos afetos em nosso modo de vida: sua leitura de Totem e tabu expõe a força atual de um circuito repetitivo de medo e culpa, conexo a um laço social de base melancólica.

Em Totem e tabu, Freud conta a história de um pai primevo que possuía todas as mulheres e tinha acesso a um gozo ilimitado. Os filhos se unem, matam o pai e, depois disso, comem a sua carne. Ocorre que, desde o início, a relação com o pai era ambivalente: os filhos não só o odiavam, também o amavam. Foram, por isso, após o parricídio, tomados por sentimentos de medo e de culpa. O banquete totêmico mostra que, com o assassinato, o pai não fica para trás, ele é introjetado. É desse modo que o supereu freudiano se forma.

Poderíamos concluir, como fazem alguns, que o parricídio é um marco para a constituição de um laço horizontal entre irmãos. Há quem diga que estaria aí a base de uma sociedade democrática e igualitária. Safatle mostra, todavia, que não é esta a história narrada em Totem e tabu: a morte do pai e sua introjeção melancólica produz um fantasma. Nosso autor escreve que as democracias neoliberais são sociedades de irmãos assombrados pelo fantasma do pai. Vivemos em tempos de neoliberalismo e de injunção ao gozo, em vez do supereu repressivo da época de Freud, o supereu, hoje, ordena: goze agora! Satisfaça-se imediatamente! Os irmãos se tornaram indivíduos que competem entre si e buscam afirmar sua potência (querem ser como o pai); são, hoje, empresários de si mesmos.

Para pensar a política no tempo presente, devemos, então, compreender que o laço entre indivíduos no neoliberalismo se constitui melancolicamente. A centralidade desta ideia fica clara na afirmação “a gênese do supereu em Freud está alicerçada em uma analítica da melancolia” (SAFATLE, 2015: 82) e na passagem que a segue:

É possível dizer que o poder nos melancoliza e é dessa forma que ele nos submete. Essa é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos clássicos de coerção e dominação pela força, pois trata-se aqui de violência de uma regulação social que leva o Eu a acusar a si mesmo em sua própria vulnerabilidade e a paralisar sua capacidade de ação (SAFATLE, 2015: 83).

Tanto o luto como a melancolia são processos ligados à perda de um objeto de forte investimento libidinal. Na melancolia, entretanto, o trabalho de elaboração não se realiza por completo. O objeto não é deixado para trás, ele permanece de um modo bastante peculiar: é introjetado, ou seja, é ligado ao eu. Dessa maneira, afetos como raiva e ressentimento por ter sido abandonado pelo objeto amado se voltam contra o próprio sujeito. Na melancolia há um movimento pendular entre, de um lado, autoacusações e sentimento de impotência e, de outro, afirmações obstinadas da potência. Não é por acaso que indivíduos, empresários de si, oscilam, hoje, entre uma profunda sensação de impotência (o aumento dos diagnósticos de depressão não aconteceu sem motivo) e procura por maximização da performance. Os indivíduos não cessam de tentar alcançar a potencia plena ou gozo ilimitado (como o do pai primevo) que o neoliberalismo promete.

O luto conforma outro modo de lidar com a perda. O trabalho de luto apenas pode se realizar, contudo, se formos capazes de agir sem medo de perder um objeto que já, desde sempre, estava perdido. Em outras palavras, o luto está ligado um ato que acontece sem o amparo de fantasias como a de um pai primevo e sem a promessa de um gozo ilimitado. Safatle se refere ao luto da ideia de indivíduo e da promessa neoliberal de gozo; este é, para ele, um luto do impossível.

Nosso autor realiza, assim, uma crítica que convoca a performatividade adorniana: falar sobre o esgotamento de um modo de vida é também uma maneira de fazer alguma coisa, é um modo de realizar uma intervenção interpretativa. É como se tivéssemos que fazer ressoar, afirmar, uma vez e de novo, que um modelo se esgotou e que não há saída possível, apenas para que, em um segundo momento, possamos dizer: “há, agora, novas possibilidades, há sim uma saída”. Trata-se de tornar o impossível possível: “conseguiremos mais uma vez explodir os limites da experiência e fazer o que até então apareceu como impossível tornar-se possível” (SAFATLE, 2015: 185). Este é um projeto crítico que busca mobilizar “a força performativa da rememoração” (SAFATLE, 2015: 176). Safatle insiste que instituir outros modos de narrar a história pode ser um maneira de realizar um trabalho de luto.

Propomos, por fim, avançar um pouco mais na discussão sobre o luto e possibilidades para crítica. Em diversos trechos do livro, Safatle se refere a Judith Butler. Isso de nenhum modo surpreende, pois a filósofa norte-americana também pensa a política a partir de ideias freudianas sobre luto e melancolia2. Nosso autor não se aprofunda, entretanto, no exame das diferenças entre o seu ponto de vista e o de Butler.

Não é o luto do indivíduo ou de uma promessa de gozo que interessam a Butler, ela investiga o luto que experimentamos em nosso cotidiano, aquele que vivenciamos ao perdermos pessoas importantes como um parceiro ou parceira, nossos pais, filhos, um grande amigo. O trabalho de luto pode, nesses casos, mostrar que não somos proprietários de nós mesmos. Butler não cuida, então, de um luto referente à morte do individuo-proprietário; para ela, é o próprio luto que mata o individuo-proprietário que imaginávamos ser.

Para compreendermos esta ideia, basta nos lembrarmos de perdas que vivenciamos. Ao perdermos pessoas importantes comumente imaginamos que a dor que sentimos é temporária e que, posteriormente, retornaremos à situação anterior. Mas certas perdas não permitem que esse retorno ocorra. São justamente estas que podem revelar algo realmente significativo sobre nós mesmos. Após tais perdas irreversíveis, o que antes sabíamos sobre nós mesmos se desfaz. É como se o “eu” não perdesse simplesmente um “tu” do qual se separaria, é como se perdesse o que conhecia sobre si mesmo: perdemos alguém para descobrir que nos perdemos daquilo que imaginávamos ser. Somente conseguiremos deixar que o trabalho de luto ocorra se aceitarmos essa falta de sentido, isto é, se aceitarmos que não mais sabemos o que fazer, que estamos desamparados. Parece, então, que, para nossa autora, o luto produz desamparo.

Apenas poderemos atravessar o luto se nos deixarmos submeter a uma transformação cujos resultados não podemos prever. Há algo em jogo no luto que é mais forte do que previsões, do que conhecimento, do que escolha. Algo toma conta de nós e, assim, o luto nos mostra que não somos proprietários de nós mesmos. Não seria equivocado falarmos, então, sobre “estranhamento” no sentido que Freud atribui à palavra: no trabalho de luto, o sujeito se percebe como outro.

A nossa autora escreve que, hoje, certas vidas, quando perdidas, não produzem luto (a expressão que usa é “ungrieveble lives”). Ela associa esta ideia à luta de movimentos sociais e pergunta: como os movimentos sociais, formados por pessoas que passaram por perdas irreversíveis, podem realizar o luto? Talvez a elaboração de suas perdas possa mobilizar uma autocrítica e impulsionar o avanço desses movimentos. Ainda, tendo em conta as políticas de guerra nos EUA, nossa autora indaga: o que aconteceria com os EUA se pronunciássemos, uma vez e de novo, o nome de afegãos e iraquianos mortos em virtude da ação de norte-americanos? E se pronunciássemos, uma vez e de novo, os nomes dos prisioneiros de Guantánamo, que não estão ainda mortos, mas também não estão exatamente vivos (BUTLER. 2004).

Parece-nos que há, aqui, dois caminhos para a crítica. De um lado, a crítica adorniana de Safatle e, de outro, a crítica de Butler, que busca uma conexão direta com a ação de movimentos sociais. Os dois projetos têm algo em comum: os nossos autores indicam que crítica deve nos permitir deixar algo para trás e, desse modo, limpar o terreno para que novas possibilidades possam emergir. Estas duas propostas poderiam ser articuladas? Como tal articulação poderia ser feita? Estas são questões que gostaríamos de investigar em futuros trabalhos.

Notas

1 SAFATLE, Vladimir. A Paixão do Negativo: Lacan e Dialética. São Paulo: UNESP, 2006.

2 Esta discussão está presente em diversos trabalhos de Butler. A ligação entre luto e lutas de movimentos sociais é formulada de uma maneira especialmente clara em Precarious Life. BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London & New York: Verso, 2004

Referências

SAFATLE, Vladimir. A Paixão do Negativo: Lacan e Dialética. São Paulo: UNESP, 2006.

____. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

____ .Grande Hotel Abismo: Por uma Reconstrução da Teoria do Reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

____. Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London & New York: Verso, 2004.

Mariana Pimentel Fischer Pacheco – Pós-doutoranda – USP.

Acessar publicação original

 

O retorno do real – HAL (NE-C)

HAL, Foster. O retorno do real. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: LEONÍCIO, Otavio. O real e a História. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.101, Jan/Mar, 2015.

Os problemas em torno dos quais O retorno do real se constitui são imensos. Eles têm pautado o pensamento e a prática de críticos e artistas desde meados dos anos 1960 – ou seja, há exatamente meio século; de um modo ou de outro, e sobretudo no que concerne à questão do significado da arte dita contemporânea, dizem respeito a uma questão crucial: a crise da concepção de história sobre a qual a arte vinha sendo (e,parcialmente pelo menos,ainda vem sendo) produzida desde o romantismo. Mais especificamente, a questão central de O retorno do real é a eventual superação de um “historicismo persistente que julga a arte contemporânea atrasada, redundante e repetitiva” (p. 30). Em certo sentido, portanto, Foster se vê aqui às voltas com os mesmos desafios e dilemas de uma geração de artistas e críticos que, como afirmou um de seus maiores expoentes, Robert Smithson, percebeu que “uma consciência transistórica emergiu nos anos sessenta”1.

A agenda de Foster não coincide, todavia, com a dos artistas sessentistas. Pois o que está em jogo para ele é também, e talvez sobretudo, a viabilidade de uma modalidade discursiva (a crítica de arte) que, desde o romantismo, busca o significado das obras de arte na interseção entre qualidade estética (vinculada à noção transcendental de experiência estética) e pertinência histórica (vinculada à situação das obras de arte no quadro geral da História da Arte). Ou seja, o que está em jogo para Foster são as condições de possibilidade de um discurso crítico cujos fundamentos em larga medida coincidem com o próprio advento (em fins do século XVIII) do historicismo – precisamente os fundamentos que a arte dos anos 1960 pôs em xeque. Quer dizer, diferentemente do que ocorre com boa parte da práxis artística dos anos 1960 e 1970, Foster pretende salvaguardar a prática crítica tradicional. Como? Dotando-a de um vocabulário conceitual “pós-histórico” (p. 25) não apenas operativo mas igualmente legitimável num ambiente de crescente desprestígio das “grandes narrativas” – as históricas, sobretudo2.

A solução encontrada por Foster lança mão do conceito de “neovanguarda”, compreendido aqui de modo idiossincrático, i.e., em termos da noção de “Nachträglichkeit” (“efeito a posteriori” ou, literalmente, “ação retardada”). Tomada de empréstimo à teoria psicanalítica, a noção supõe que “um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica; só chegamos a ser quem somos no efeito a posteriori(Nachträglichkeit)”. Toda a argumentação de Foster parte pois da hipótese de que “a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos” (p. 46). Nessa perspectiva, supostamente cairia por terra o argumento (levantado por Peter Bürger em Teoria da vanguarda, contra o qual O retorno do realexplicitamente se volta)3 de que a arte dos anos 1960 se restringiria a uma repetição farsesca e acrítica das ações empreendidas pelas chamadas vanguardas históricas. Para Foster,ao contrário,a neovanguarda dos anos 1960 consistiria na plena efetivação daquilo que apenas de modo incompleto ou inacabado foi empreendido no início do século XX por movimentos como construtivismo, dadaísmo e surrealismo.

Obviamente, pode-se arguir o rendimento heurístico do modelo psicanalítico proposto por Foster, quer dizer, questionar em que medida ele constitui de fato um ganho de conhecimento sobre a arte dos anos 1960.Significativamente,a questão é levantada pelo próprio autor, o qual, numa nota de pé de página desconcertante, admite que “[a]inda que eu combine o desenvolvimento com o efeito a posteriori, minha extensão da (re)construção do sujeito individual até a (re) construção de um sujeito histórico é problemática”. Donde a dúvida: “Será que posso abordar historicamente a lógica do sujeito se meu modelo da história pressupõe essa lógica? Esse vínculo duplo seria produtivo ou paralisante”.

O fato de Foster ter ido adiante com seu modelo psicanalítico (sem o qual este livro não existiria) não dá por encerrada a questão. De fato, em termos epistemológicos, o livro apenas explicita os dilemas de uma geração de intelectuais progressistas que, tendo sido formada num ambiente francamente desconstrutivista, viu-se nos anos 1980 (ou seja, num contexto em que grassavam sem resistência institucional tanto Aids quanto Reaganomics) à procura de um aparato teórico porventura menos irrealista que o desconstrutivismo. A advertência de Foster acerca dos limites de sua própria empreitada intelectual, voluntariamente destinada a resgatar não todo e qualquer real, mas apenas a uma reconstrução subjetiva sua4, soa nesse sentido duplamente sintomática: por um lado, evidencia um incontido desejo de realidade; por outro, denuncia o mal-estar para com a própria noção de realidade – ao menos com relação àquelas noções de realidade que, advertidamente ou não, possam evocar uma referencialidade minimamente estável. Mais do que um dilema, a posição de Foster expõe a condição porventura aporética do projeto pós-pós-modernista, do qual Foster é um avatar. Significativamente, no capítulo final de O retorno do real, Foster se pergunta acerca das desconstruções operadas por Foucault e Derrida: “Esses pós-estruturalismos reelaboram os acontecimentos do pós-colonial e do pós-moderno criticamente? Ou servem de ardis por meio dos quais esses acontecimentos são sublimados, deslocados ou, ao contrário, desativados?” (p. 199). Enredado numa espécie de limbo epistemológico, Foster – como muitos de nós, aliás – procura abrigo num mundo pós-transcendental particularmente inóspito a desconstrutivistas não irrealistas e sobretudo não pluralistas (avessos portanto ao “falso pluralismo do museu, do mercado e da academia pós-históricos” [p. 7]).

O que a solução proposta por Foster revela, no entanto, é um vício de origem – qual seja, a suposição de que, como queria Bürger, a arte dos anos 1960 caracterizar-se-ia por um resgate (aos olhos de Bürger, acrítico e anacrônico, aos de Foster, deliberado e pertinente, porquanto produto de uma inusitada e lúcida “consciência histórica”) de práticas próprias às “vanguardas históricas”. De fato, nas palavras de Foster, “os artistas da década de 1960 tiveram de elaborar [os procedimentos da vanguarda histórica] criticamente; a pressão da consciência histórica não permitia nada menos do que isso” (p. 25). Este, de fato, o pressuposto não problematizado de O retorno do real: dar por suposto (contra inúmeras evidências de que o que de fato caracteriza a arte dos anos 1960 não é em absoluto o predomínio de uma consciência histórica, senão a emergência e disseminação de uma consciência meta ou anti-histórica) que a questão crucial para a neovanguarda seria “remodela[r] procedimentos da vanguarda para fins contemporâneos” (p. 8). Como se vê, a divergência de Bürger é apenas parcial, a diferença residindo no modo como um e outro interpretam um mesmo fenômeno, Bürger condenando-o, Foster exaltando-o.

Os limites insuperáveis de O retorno do real vêm daí. A começar pela evidente dificuldade do autor de dar conta da arte com a qual, aparentemente, tem maior empatia – o minimalismo. Pois se de um modo ou de outro o minimalismo (mas também uma parte importante da arte produzida em sua esteira) põe em xeque a ideia de vanguarda (em função justamente da consciência de seus vínculos com a visão de mundo historicista), Foster se revela incapaz de conceber quaisquer práticas artísticas “ambiciosas” que não sejam igualmente “avançadas” ou “inovadoras” (passim), ou seja, que não suponham a noção de “desenvolvimento histórico”. Dito de outro modo, o que Foster não parece estar pronto a conceber (a exemplo de Bürger) e mais ainda aceitar é – parafraseando T.J. Clark – uma arte sem futuro5. Donde o descompasso: ali onde uma parte significativa da arte dos anos 1960 e 1970 buscava conjurar uma experiência temporal meta-histórica (em cujo contexto o conceito de vanguarda simplesmente não faz sentido), Foster se empenha a todo custo em preservar a ideia e o valor não apenas da vanguarda, mas acima de tudo de uma historicidade supostamente inerente à arte – em suas palavras, a “historicidade de todas as artes, incluindo a contemporânea” (p. 33). De par com essa historicidade essencial, o que Foster pretende salvaguardar é a criticalidade da arte – mais especificamente, a criticalidade histórica da arte. Uma vez mais, estamos diante de uma posição axiomática. Pois, aos olhos de Foster, simplesmente não há criticalidade num ambiente em que predomina a “desatenção à historicidade” e no qual, portanto, a crítica resulta marcada pela “perda de influência histórica” (p. 13).

Os pressupostos modernistas dessa salvaguarda da historicidade da arte (e com ela de uma crítica baseada num conceito supostamente renovado de “desenvolvimento histórico”, não mais progressista e teleológico) são evidentes: com a noção de neovanguarda o que se quer preservar é uma tradição: a tradição do novo, i.e., de uma ideia de arte segundo a qual,como afirmou um de seus mais influentes praticantes – Harold Rosenberg –, “ter um lugar na história da arte é o valor”6.

Obviamente, Foster não há de concordar com essa leitura; de toda evidência, ele está convencido de que seu modelo alternativo de desenvolvimento histórico foi de fato capaz de complexificar categorias fundamentais como “causalidade”, “temporalidade” e “narratividade” (cap. 1, passim), e, assim, superar o modelo historicista de desenvolvimento, na qual a narrativa modernista se baseia. Até onde percebo, no entanto, o que Foster logrou superar não foi propriamente o modelo historicista, mas uma versão bastante simplória deste.

Não que Foster ignore a complexidade dos problemas teóricos com os quais está lidando aqui. Notadamente, o autor está a par da centralidade que aqui adquire a noção de evento – o fato de que, como adverte Zizek, uma das referências teóricas de O retorno do real, “o ponto crucial aqui é o status modificado do evento”7. Mas aqui também fica claro como o diálogo com Bürger resultou pouco produtivo. Pois a noção de evento que Foster pretende complexificar, tomada emprestada de Bürger, não vai muito além daquela que subjaz à boutade marxiana de que “todos os grandes acontecimentos da história mundial ocorrem duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa” (p. 32). A escolha de Foster é curiosa – mesmo de parte um intelectual marxista; surpreende sobretudo que Foster tome como contramodelo uma noção tão estereotipada de evento histórico – noção que ignora a evidência de que o traço principal da noção de evento no contexto do historicismo não é nem a originalidade nem a autonomia, senão, conforme a formulação de Reinhart Koselleck, o fato de estar sempre pronto a “alterar sua identidade em função do status cambiante que adquire no progresso da história”8. Nessa perspectiva, fica claro como a noção de evento que Foster deriva de Marx (na qual, em parte pelo menos, se baseiam os realismos de um e de outro) deixa de lado a questão central do significado dos eventos num contexto epistemológico (o historicismo) comandado pela noção de “processo” – mais especificamente, por um processo que, como percebeu Hannah Arendt, “torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquirindo assim um monopólio de universalidade e significação”9. A suposição de que Foster logrou complexificar as noções de evento e, por conseguinte, de desenvolvimento histórico é, como se vê, enganosa. O que Foster complexificou foi um par de estereótipos.

A opção de Foster por operar a partir de tal contramodelo não é injustificada, contudo; ela se adéqua à perfeição a uma argumentação que pretende requalificar historicamente as neovanguardas, vistas não mais como repetição farsesca mas, alternativamente, como plena realização histórica. Uma vez mais, fica claro quão limitada é a divergência de Bürger. Pois a leitura de Foster permanece atravessada pelas noções – e, além dessas, pelos valores – tipicamente modernistas de autenticidade e originalidade. Afinal, o que Foster pretende sustentar por meio de seu modelo alternativo de desenvolvimento senão a tese de que as neovanguardas não são farsescas e espúrias? A argumentação de Foster é, de fato, sem ambiguidade: se as neovanguardas repetem eventos históricos, isso se deve ao fato de que, de acordo com o conceito de “efeito a posteriori”, sua primeira manifestação/ocorrência se restringiria apenas a uma dimensão incompleta, reprimida. Em vez de mera repetição, sua segunda ocorrência nos anos 1960 seria portanto da ordem do desrecalque de algo que por trinta, quarenta anos havia permanecido reprimido. O que a teoria de Foster sustenta, portanto, é a ideia de que, em sua integridade e plenitude, as ações retardadas da neovanguarda constituem um evento histórico autêntico, original, verdadeiramente vanguardista. Ora, mas uma posição de fato meta-historicista não deveria, ao contrário, simplesmente descuidar das noções de autenticidade e originalidade, não obstante os enormes problemas que esse deslocamento coloca para um sistema de arte dependente – hoje como ontem – da ideia de vanguarda?

O que Foster não é capaz de conceber, em revanche, é uma história que não seja desenvolvimental, isto é, que não se oriente naturalmente em direção ao futuro – mais especificamente, a um futuro entendido como “horizonte de expectativa”, i.e., como campo aberto a transformações mais ou menos utópicas. Dito de outro modo, desenvolvimento é compreendido aqui não como categoria adstrita a um regime de historicidade específico (o historicismo), senão como condição antropológica e transistórica,e nesse sentido insuperável, da experiência temporal humana. Como se vê, o argumento em favor de uma “historicidade de todas as artes” tem uma origem definida.

Que a defesa de um marxismo renovado (em contraste com o marxismo alegadamente ossificado de Bürger) esteja no centro da reflexão de Foster não é, como se vê, fortuito: é sempre preservar a ação historicamente empenhada – isto é, a ação empreendida na e para a “História” – aquilo que está em jogo aqui. Para Foster, afinal, prática artística ambiciosa é também, necessariamente, prática engajada. Dito de outro modo, aos olhos de Foster o que cabe à práxis artística não diverge muito do que cabe à ação política: viver no front da História, fazer com que esta avance, combater a ameaça de estagnação. O pressuposto tem, é claro, um desdobramento no âmbito da crítica: se não se faz arte ambiciosa fora da História, o mesmo se dá com respeito à crítica. Esta, de fato, a função precípua, e a decorrente legitimidade, da crítica modernista (mas também, como se vê, da crítica supostamente pós-modernista de Foster), cuja principal incumbência, na prática, é de fato a atribuição da situação histórica das obras, quer dizer, a definição do lugar preciso ocupado pelas obras de fato avançadas e inovadoras em cada etapa do “desenvolvimento histórico”. Tanto quanto a práxis artística, a atividade crítica deve pois obedecer ao preceito de que “a compreensão histórica não depende do apoio contemporâneo, mas um engajamento no presente, seja artístico, teórico e/ou político, é indispensável” (p. 11).

Mas, repare-se: tanto quanto o “engajamento no presente”, o argumento supõe um “presente” definido essencialmente como tempo e espaço de “engajamento”, quer dizer, como tempo e espaço de uma ação historicamente engajada e transformadora. Ora, como destacou Hans U. Gumbrecht, tal concepção do presente é um dos pressupostos mais básicos, ainda que tácitos, do historicismo. Segundo Gumbrecht, é de fato apenas no contexto do regime temporal historicista que “em cada momento presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras que têm de ser diferentes do passado e do presente e dentre as quais ele escolhe um futuro de sua preferência”; é apenas nesse contexto que a “subjetividade pode integrar o componente de ação na autoimagem que ela oferece à humanidade. E é essa inter-relação entre tempo e ação que cria a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’ sua própria história”. Coerentemente, é também apenas nesse contexto que o tempo, compreendido como agente absoluto de mudança, “dá à inovação o rigor de uma lei compulsória”10. Como fica claro, modernismo e consciência histórica (mas também marxismo) são astros de uma mesma constelação epistemológica, em cujo centro jaz o regime de historicidade historicista. O que tal evidência expõe é o tamanho dos desafios que a crise do historicismo coloca para a crítica “progressista”. Pois o que está em jogo neste caso é nada menos do que a viabilidade não apenas de uma esquerda sem futuro (nas palavras de Clark, uma esquerda apta a “não ver uma forma ou uma lógica – um desenvolvimento desde o passado até o futuro”, e que portanto diz adeus às “reflexões [afterthoughts] e imagens da vanguarda”)11, mas de uma esquerda historicamente desengajada, ou pelo menos eventualmente disposta a engajar-se numa concepção alternativa de história. Não por acaso, Foster conclui O retorno do real indagando-se em que medida um sujeito pós-moderno disfuncional (o sujeito “suspenso entre a proximidade obscena e a separação espetacular”) não se limitaria a obedecer à lógica de “uma razão cínica [que] não elimina mas renuncia ao poder de ação [agency]” (p. 206).

Que o apego de Foster à episteme modernista/historicista constitui tanto a marca registrada quanto os limites de O retorno do real fica evidente na afirmação de que Michael Fried (como se sabe, o grande detrator do minimalismo)12 “é um excelente crítico do minimalismo não porque tem razão em condená-lo, mas porque, para ser persuasivo, tem de entendê-lo, e isso significa entender sua ameaça ao modernismo tardio” (p. 66). A tese é absurda; Fried jamais compreendeu o minimalismo, fenômeno que ele – como tantos outros depois dele, aliás – se restringia a ver do ponto de vista de sua suposta objetidade literal, uma visão que, como destacou Anne M. Wagner, é francamente reducionista13. O que tal afirmação deixa claro, no entanto, é a afinidade entre os fundamentos vanguardistas (e portanto modernistas/ historicistas) das práticas críticas de Fried e Foster.

Não surpreende, nesse sentido, que, não obstante a ressalva que faz à ênfase excessivamente fenomenológica que Rosalind Krauss dá ao minimalismo14, Foster tenda sempre a ver o minimalismo como expressão essencialmente fenomenológica e de tipo site specific (específico do lugar) – em suas palavras, como uma arte na qual o espectador “é instigado a explorar as consequências perceptivas de uma intervenção particular num determinado local [site]. É esta reorientação fundamental que o minimalismo inaugura” (p. 53). Que tal definição (afeita à obra tipicamente antiminimalista do segundo Robert Morris, mas também aos objetos e operações fenomenológicos de um Richard Serra) implica uma redução absurda do significado da obra crucial de Donald Judd é uma das consequências do enviesamento conceitual/ ideológico de Foster. Que ela não acomode, ou acomode de modo canhestro, no espaço minimalista a obra essencialmente antifenomenológica e anti-site specific de Robert Smithson, é outro. Numa chave psicanalítica, pode-se dizer que, em sua busca pelo desrecalque do real, Foster acabou reprimindo o real minimalista – algo, aliás, que Joseph Kosuth já havia destacado com respeito às construções historiográficas perpetradas ainda nos anos 1970 pelo grupo de críticos ao qual Foster está ligado, a começar por Krauss. De fato, como afirmou Kosuth, “a fácil assimilação do minimalismo no mainstream como mais um tipo de forma na história da escultura constitui basicamente a limpeza [cleansing] de seu peso filosófico”15.

Nada disso diminui a importância de O retorno do real. Publicado originalmente em 1996, mas contendo partes fundamentais apresentadas ainda em meados dos anos 1980, o livro deixa claro como as questões levantadas pela arte dos anos 1960 ainda pautam, e em grande medida assombram, a arte e a crítica atuais. Nesse sentido, a importância do livro está menos em seus achados que no modo como revela, ainda que involuntariamente, os desafios e dilemas que a crise do conceito moderno de história coloca para o pensamento crítico (ou metacrítico) contemporâneo, o de Hal Foster inclusive. Em tempo: a presente edição conta com tradução de Célia Euvaldo, especialmente eficaz na manutenção da fluidez da leitura16.

Notas

1 SMITHSON, Robert. “Ultramodern”. Arts Magazine, v. 42, nº 1, set.- out. 1967, p. 31. Minha tradução.

2 LYOTARD, JF. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

3 BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008.

4 “Reprimido por numerosos pós-estruturalismos, o real retornou, mas como real traumático” (p. 46, n. 38). Em sua formulação original, tal restrição era ainda mais rigorosa: “Reprimido por vários pósestruturalismos, o real retornou – mas não um real qualquer, apenas o real traumático”. Foster, Hal. “What’s new about the neoavantgarde?”October, v. 70, outono 1994, p. 29. Minha tradução.

5 CLARK, T.J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo: Ed. 34, 2013.

6 ROSENBERG , Harold. “O novo como valor”. In: ___. Objeto ansioso. São Paulo: CosacNaify, 2004.

7 ZIZEK, Slavoj, apud Foster, p. 46, n. 42. Minha tradução.

8 KOSELLECK, ReinhartFuturo passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Contraponto, 2006.

9 ARENDT, Hannah. “O conceito de história: antigo e moderno”. In: ____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 96.

10 GUMBRECHT, Hans U. “Cascatas de modernidade”, In: ___. Modernização dos sentidos. São Paulo: Ed. 34, pp. 15-16.

11 CLARK, T.J., op. cit. Minha tradução.

12 Cf. FRIED, Michael. “Arte e objetidade”. A/E Revista da Pós-Graduação em Artes Visuais, Rio de Janeiro, EBA-UFRJ, 2002, pp. 130-147.

13 WAGNER, Anne M. “Reading minimal art”. In: BATTCOCK, GregoryMinimal art: a critical anthology. Berkeley: University of California Press, 1995.

14 Ver, em especial KRAUSS, Rosalind. “Sense and sensibility: reflection on post ‘60s sculpture. Artforum, v. 12, nº 3, nov. 1973, pp. 43-53.

15 KOSUTH, Joseph, “History for”. Flash Art, Milão, nº 143, nov.-dez. 1988, p. 101. Minha tradução.

16 Agradeço a leitura e os comentários de Marcelo G. Jasmin, Felipe Charbel e Henrique Estrada.

Otavio Leonidio – Arquiteto, doutor em História, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

Acessar publicação original

Luto e Melancolia – FREUD (C-FA)

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. Tradução de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de BAZZO, Renata. O marco de uma tradução. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.22, Jul-Dez, 2013.

Publicada pela primeira vez na Revista Novos Estudos em 1992 1, a tradução de Luto e Melancolia, de Sigmund Freud, realizada pela psicanalista Marilene Carone, foi apresentada ao público, em 2011, na forma de livro pela Editora Cosac Naify. Nesta edição, encontram -se, além da tradução propriamente dita, um prefácio de Maria Rita Kehl, um pequeno texto de Modesto Carone, no qual se esboça o percurso de Marilene Carone como tradutora da obra de Freud e, finalmente, um posfácio de Urania Tourinho Peres, no qual a autora expõe um pequeno histórico da questão da melancolia na psiquiatria e na obra freudiana.

Poderíamos nos perguntar qual a importância e relevância de republicar uma tradução feita 20 anos atrás, principalmente se consideramos que essa publicação pode ser contada em uma série de traduções mais recentes do texto freudiano, que por ora saem em português, provavelmente estimuladas pelo do fim do domínio de direitos autorais, completados 70 anos da morte do autor. Cabe lembrar que atualmente existem dois projetos para tradução das obras completas de Freud em português pela Editora Companhia das Letras, desde 2010, conduzido por Paulo César de Souza, e também pela Editora Imago, desde 2004, sob a direção de Luiz Alberto Hanns. O leitor pode encontrar também disponível em português, desde 2010, algumas traduções do texto freudiano feitas por Renato Zwick para a Editora L&PM. Além disso, o mais recente projeto de tradução da Editora Autêntica, denominado “Obras Incompletas de Freud” e coordenado por Gilson Iannini, acaba de lançar seus dois primeiros volumes em edição bilíngue.

O texto de Luto e Melancolia foi escrito por Freud em 1915 e publicado em 1917, classificado como pertencente ao conjunto de textos que compõem a metapsicologia. Tendo como pano de fundo a primeira guerra mundial, é possível encontrar nessa e nas outras obras desse mesmo período (“ Introdução ao Narcisismo ”, “ Considerações atuais sobre a guerra e a morte ”, “ A transitoriedade ”) a constelação temática da morte, do luto, do sentimento de culpa, da perda e do trabalho psíquico que envolve a sua elaboração. Na tentativa empreendida por Freud de explicar a melancolia sob o paradigma do luto, o leitor poderá perceber em status nascendi as ideias sobre o super -eu e a pulsão de morte, que só seriam desenvolvidas alguns anos mais tarde pelo psicanalista.

Devido à centralidade desse texto, ele já se encontra traduzido por Hanns 2 (2006) e Souza 3 (2010) em seus projetos, portanto em versões mais recentes que o trabalho de Marilene Carone. Ainda assim, a nosso ver, há razões para sustentar que o trabalho de Carone continua atual, como mostraremos em seguida.

Junto às novas edições mencionadas acima e que vêm agora a público, os interessados também podem usufruir de apresentações importantes a respeito dos principais debates e problemas de tradução dos textos freudianos, solidificando assim a fortuna crítica concernente ao vocabulário teórico do psicanalista vienense no Brasil. Em 1996, Luiz Alberto Hanns apresentou o Dicionário Comentado do Alemão de Freud, composto por 40 vocábulos selecionados como os mais controversos e para os quais faz um estudo vertical profícuo. Além disso, Paulo César de Souza (1999) e Paulo Heliodoro Tavares (2011) apresentam o panorama dos problemas e das críticas que cercam os principais projetos de tradução da obra de Freud no Ocidente, inserindo nesse quadro as considerações sobre as condições brasileiras. Além dessas obras de referência, há atualmente importantes debates sobre o tema em artigos de periódicos. Neste Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, por exemplo, consta recentemente o texto de Ivan Estevão 4 (2012), o qual discute acerca de Trieb, um dos conceitos fundamentais da metapsicologia freudiana que é sabidamente elemento de discórdia entre tradutores e escolas de psicanálise.

No entanto, ainda que tenha ganhado maior densidade nos últimos anos com as novas publicações citadas, o debate sobre a tradução dos textos freudianos já ocorre no Brasil desde os anos 80.

É nesse cenário que podemos reencontrar o nome de Marilene Carone, cujos textos publicados no caderno Folhetim do jornal Folha de São Paulo foram precursores e decisivos para a tradição de debate sobre a qualidade das traduções brasileiras. Nesses textos, Marilene Carone dedicou todos os esforços para evidenciar as mazelas da tradução publicada da Editora Imago, uma versão pouco criteriosa feita a partir de uma tradução inglesa, mais requintada, mas também não menos polêmica.

A primeira versão brasileira de Freud havia sido realizada nos anos 40 pela Editora Delta, também uma tradução que tivera como texto de origem as versões existentes em francês e em espanhol e não o texto fonte em alemão. Por sua vez, a Editora Imago iria lançar nos anos 1970 a versão das obras completas de Freud em português, uma “tradução da tradução” inglesa de James Strachey. O mérito dessa versão inglesa das obras freudianas, denominada Standard Edition, foi organizar os textos cronologicamente, inserir notas e bons prefácios, além da tentativa de estabelecer a unicidade do vocabulário conceitual. No entanto, em 1983, o psicanalista Bruno Bettelheim tornou -se uma voz decisiva no crescente coro das críticas a essa edição, as quais acusavam a versão inglesa de tentar inserir a psicanálise em uma linguagem cientificista e médica, deixando de lado a qualidade literária do texto de Freud, que, como se sabe, recebeu o prêmio Goethe em 1930 5.

No entanto, as críticas que Carone direciona à tradução brasileira de Freud vão muito mais longe do que estas. Em seu primeiro artigo para o Folhetim, intitulado Freud em português: uma tradução selvagem6, a autora elenca os principais problemas, que vão desde a linguagem rebuscada (“ Peço vênia, para fazer um relato ” que poderia ser traduzido por “ Permitam -me fazer um relato ”), ao uso das opções utilizadas em inglês e que soam artificiais para o português (“ mutual relationships ” que poderia ser traduzido por “ relações recíprocas ” mas foi traduzido por “ relações mutuais ”), além dos erros crassos de tradução (“ he was pretending to widdle ” para “ ele estava pretendendo fazer pipi ”) e das metáforas que foram traduzi das ao pé da letra (“ newly -fledged man of Science” traduzido como “ um cientista recém -emplumado ”).

Na continuação de sua crítica, publicada em outubro do mesmo ano 7, Carone assinalou a existência da falta de unidade terminológica no que se refere a alguns dos principais conceitos freudianos na tradução brasileira, possibilitando que em cada volume do conjunto das obras completas estivesse presente uma tradução diferente para o vocábulo. Ela sublinha, além disso, o aparente paradoxo desse fato ao demonstrar como outros vocábulos que não são conceitos fundamentais da obra freudiana receberam bastante atenção nesta versão em português, conferindo a eles um status até então inexistente. Esse paradoxo revela que, se por um lado houve desleixo na tradução, houve também uma decisão ideológica que norteou seu percurso. Desse modo, as escolhas da tradução apontadas por ela no artigo anterior são fruto não apenas do descaso com o texto fonte, mas principalmente uma opção de leitura da teoria e da clínica em psicanálise, transformando conceitos fundamentais em termos corriqueiros e atribuindo dignidade de conceito aos vocábulos menores.

Essas críticas ressoam ainda na tradução de Luto e Melancolia. Na versão publicada pela Editora Cosac Naify, o leitor pode encontrar um quadro em que a tradutora apresenta, compara e comenta as versões de tradução para passagens e expressões importantes do texto freudiano. Assim, ela compara a versão original em alemão, a versão in glesa de James Strachey, a tradução brasileira da Standard Edition e a sua própria versão, seguida de seus comentários e considerações.

Nesse quadro, é possível reencontrar alguns dos apontamentos da autora que estavam presentes no primeiro artigo de Folhetim publicado 1985. De modo geral, a crítica de Carone não incide sobre as opções de Strachey para a versão inglesa, mas sim continua a enfrentar as opções da versão Standard Brasileira. Para além dos absurdos como traduzir “ Abusing it ” por “ abusando ”, também há a tradução de “ Alternation ” por “ Alteração ”. Diante dessa solução, o comentário de Carone limita -se a uma pequena frase na qual questiona se seria esse um “Erro ou cochilo de revisão?” (pp. 94 -95).

Em termos de estilo, Carone destaca a tradução da frase “ The consciousness is aware ” por “ A consciência está cônscia ” e afirma: “Um grande escritor como Freud certamente jamais se permitiria um pleonasmo tão grosseiro como esse…” (pp. 96 -97). Ainda assim, talvez o erro mais grave da tradução brasileira apontado nesse quadro síntese seja a tradução de “ Substitution of identification for object -love ” por “ Substituição da identificação pelo amor objetal ”. Como o leitor poderá notar ao seguir as hipóteses de Freud no texto, essa opção inverte totalmente o sentido da argumentação a respeito dos destinos do investimento libidinal na melancolia.

No entanto, a publicação da versão de Carone não se limita a ser apenas uma reedição das críticas outrora realizadas. A pertinência de publicar o seu trabalho vinte anos depois de sua primeira publicação deve -se à condição de seu texto que, embora antigo, não se tornou datado. Além de representar certamente um grande avanço em relação à tradução disponível à época, para qual ela dirigiu tantas críticas, o trabalho de Carone também se mostra à altura das traduções que foram realizadas anos depois. Um indício disso é que até hoje é possível encontrar nos trabalhos posteriores de tradução de Luto e Melancolia as soluções elegantes dadas por Carone. Talvez a mais conhecida tenha sido a expressão que está presente no parágrafo 12 do texto “ Ihre Klage sind Anklagen ” que Carone traduz por “ Para eles, queixar -se é dar queixa ”. Na versão brasileira anterior, essa frase encontrava -se traduzida por “ Suas queixas são realmente ‘queixumes ’”. Segundo a versão recente de Hanns: “ Seus lamentos e queixas [Klagen] são acusações [Anklagen] ”, mantendo -se os termos originais do alemão entre colchetes. Paulo César de Souza, por sua vez, acata a solução de Carone. O tradutor, em nota de rodapé, afirma que Carone conseguiu encontrar uma proposta capaz de conservar o jogo de palavras presente no texto original (p.180).

Comparando a tradução de Carone com as duas novas traduções, podemos perceber como a sua versão mantém -se atual.

Além disso, pode -se dizer até mesmo que a psicanalista representa um marco nas traduções de Freud para o português no Brasil, uma vez que, ao criticar a edição anterior, ela estabeleceu uma exigência de qualidade para as futuras tentativas de lidar com o texto freudiano.

Por outro lado, cabe discordar da opção da autora em manter a solução inglesa de tradução de Ego, Superego e Id para designar as instâncias Ich, Überich e Es. A justificativa da tradutora consiste em afirmar que esses termos já estariam suficientemente incorporados à nossa cultura e ao vocabulário corrente da língua portuguesa, constando inclusive nos dicionários. Esses termos latinos, segundo Souza 8 (1999), teriam sido sugeridos por Ernest Jones, um dos principais responsáveis pelas decisões de tradução da edição inglesa. Para Jones, a nomenclatura clássica teria a vantagem de garantir a compreensão dos conceitos em qualquer idioma, além de ser frequentemente utilizada no vocabulário médico cientifico internacional.

Porém, ao manter a opção latina para designar as instâncias, a tradutora desconsiderou um aspecto importante, que é aquele da importação e utilização de uma linguagem excessivamente academicista, estranha ao texto freudiano. Quanto a isso, pode -se lembrar que a versão da Imago para a Standard Edition havia preservado o termo latino catexia para traduzir Besetzung e que Carone se livrara dessa solução, adotando, mais simples e corretamente, o termo investimento. Se foi assim, por que não abandonar de vez os termos latinos exteriores à escrita freudiana?

O próprio Freud, em seu texto A questão da análise leiga 9 (1926), após apresentar para seu interlocutor imaginário as instâncias Eu e Isso, explica a razão de sua opção por pronomes usuais em detrimento do vocabulário clássico:

Você objetará, provavelmente, que para indicar essas duas instâncias ou províncias nós tenhamos escolhido pronomes simples, em vez de introduzir estrondosos nomes gregos. É que na psicanálise gostamos de permanecer em contato com o modo popular de pensar, e nós preferimos tornar utilizáveis para a ciência seus conceitos, ao invés de rejeitá -los. Não é mérito algum: nós temos que proceder assim porque nossas teorias devem ser compreendidas por nossos pacientes, que muitas vezes são muito inteligentes, mas nem sempre são eruditos. O Isso impessoal está ligado diretamente a determina das formas expressivas do homem normal. “Isso [ Es ] me abalou”, se diz, “havia algo em mim [ es war etwas in mir ] que naquele momento era mais forte que eu”. “ C’était plus fort que moi ”. (p. 183) Contudo, essa ressalva não deve comprometer a principal imagem que se tem ao ler a tradução de Carone: Freud com rigor e estilo.

Notas

1.FREUD, S. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone. Novos Estudos – CEBRAP, 1992, n. 32, pp. 128 -142.

2.FREUD, S. Luto e melancolia. In: ______.Obras psicológicas de Sigmund Freud.

  1. A. Hanns (Coord.), vol. II. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2006.

3.FREUD, S. Luto e melancolia. In: ______.Sigmund Freud Obras Completas. Vol.12. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

4.ESTÊVÃO, I. Retorno à querela do Trieb : por uma tradução freudiana. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 19, 2012, pp. 79 -106.

5.TAVARES, P. H. Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

6.CARONE, M. Freud em português: uma tradução selvagem. Folhetim, Folha de São Paulo, 21 de Abril de 1985.

7.CARONE, M. Freud em português (capítulo II).Folhetim, Folha de São Paulo, 20 de Outubro 1985.

8.SOUZA, P. C. de. As palavras de Freud – O vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Ática, 1999.

9.FREUD, S. ¿Pueden los legos ejercer el análisis? Diálogos con un juez im parcial. In: ______.Obras Completas. Vol. XX. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1992.

Referências

CARONE, M. Freud em português: uma tradução selvagem.

Folhetim, Folha de São Paulo, 21 de Abril 1985.

_______. Freud em português (capítulo II). Folhetim, Folha de São Paulo, 20 de Outubro 1985.

CHAVES, E. A Pulsão: de Freud a Benjamin. Cult, São Paulo, v. 181, pp.36 41, 2013.

ESTÊVÃO, I. Retorno à querela do Trieb : por uma tradução freudiana. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo: Crítica e Modernidade, n. 19, 2012, pp. 79 -106.

FREUD, S. Luto e melancolia. In: ______.Sigmund Freud Obras Completas.Vol. 12.Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Trabalho original publicado em 1917).

_______. Luto e melancolia. In: ______.Obras psicológicas de Sigmund Freud. Vol. II. L. A. Hanns (Coord.). Rio de Janeiro: Imago Ed., 2006.

_______. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone.Novos Estudos – CEBRAP, 1992, n. 32, pp. 128 -142.

_______. ¿Pueden los legos ejercer el análisis? Diálogos con un juez im parcial. In: ______.Obras Completas. Vol.XX. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1992. (Trabalho original publicado em 1926).

SOUZA, P. C. de.As palavras de Freud – O vocabulário freudiano e suas versões.São Paulo: Ática, 1999.

TAVARES, P. H.Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra.Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

_______. ‘Esperando Freud’ ou ‘Psicanalistas à procura de um autor’.Cult (São Paulo), v. 181, 2013, pp. 26 -29.

Renata Bazzo – Mestre em Psicologia pela PUC -SP

Acessar publicação original

Luto e Melancolia-FREUD et al (NE-C)

FREUD, Sigmund; KEHL, Maria Rita; PERES, Urania T.; CARONE, Modesto; CARONE, Marilene, Luto e Melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de: RIVERA, Tania. Entre dor e deleite. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

A leva de novas traduções surgida recentemente e disseminada graças à passagem da obra de Freud para o domínio público tem, finalmente, fornecido ao leitor brasileiro versões condizentes com a envergadura intelectual e literária desse grande pensador. Além de permitir um contato mais direto com o próprio texto do pai da psicanálise, essa nova situação abre caminho para a diversificação dos modos de acesso a escritos quase sempre reunidos em volumes organizados cronologicamente. Destaca-se nesse conjunto a bela edição da Cosac Naify para “Luto e melancolia”, um grande clássico escrito em 1915 (e publicado em 1917) cujo interesse só se renova, especialmente em tempos marcados por uma aparente profusão de quadros depressivos.

Acompanhada de textos de duas importantes psicanalistas brasileiras, Maria Rita Kehl e Urania Tourinho Peres, a edição traz uma tradução – de Marilene Carone – que fez história e permanecia inédita em livro, tendo sido publicada pela Novos Estudos Cebrap em 1992. Ela conta, ainda, com uma introdução e comentários da tradutora, além de uma curta nota do escritor e tradutor Modesto Carone, que foi seu marido. Como salienta o professor e tradutor André Medina Carone, estudioso, como a mãe, da prosa científica de Freud (sobre a qual fez sua tese de doutorado em filosofia), “Luto e melancolia” jamais foi publicado como livro pelo próprio autor, e seu aparecimento ao lado da contribuição de outros autores reproduz, de maneira pertinente, a condição polifônica que era aquela das primeiras publicações de seus textos na época, em geral em revistas reunindo textos de seus discípulos.

A psicanalista e tradutora Marilene Carone fez seus estudos de psicologia na Universidade de São Paulo e na Universidade de Viena. Foi na Áustria que ela iniciou o estudo da psicanálise, que mais tarde, já de volta à capital paulista, a levou a empreender uma formação no Instituto Sedes Sapientiae, no qual depois viria a atuar como professora. Marilene em primeiro lugar dedicou-se à tradução de Memórias de um doente dos nervos (Graal, 1984), o livro de Daniel Paul Schreber cuidadosamente estudado por Freud em seu “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia” (1911). Com a intenção de verter para nossa língua a totalidade da obra freudiana, ela voltou-se em seguida para outro forte texto, “A negação”, de 1925, antes de realizar a tradução de “Luto e melancolia”, seguida daquela das “Conferências introdutórias à psicanálise” (1916-1917), concluída pouco antes de seu precoce falecimento por um tumor cerebral, em 1987. A Cosac Naify já trabalha na edição de “A negação”, que também trará a contribuição de outros autores, e pretende em seguida publicar o mais longo e último texto traduzido por Marilene Carone.

A entrada dessa editora no campo da psicanálise é, sem dúvida, motivo de contentamento e expectativa por parte dos leitores, até hoje apenas parcialmente atendidos pelas versões brasileiras. Parte da obra freudiana foi traduzida no Brasil já nos anos 1940 pela editora Delta, tendo como base versões francesas e espanholas. Na versão completa e oficial da Imago, dos anos 1970, realizada a partir da tradução inglesa de James Strachey, seria questionável a ausência de confronto imediato com o original alemão, mas isso ficava em segundo plano diante do amadorismo da tradução promovida pela editora, que deteve os direitos de publicação até 2010. Na cena internacional, Bruno Bettelheim e outros autores chamavam a atenção, no início da década de 1980, para o enviesamento cientificista da tradução inglesa, que buscava tornar o revolucionário e perturbador pensamento freudiano mais palatável para os meios científicos anglo-saxões. Nesse mesmo momento, começa a ganhar espaço no Brasil o retorno a Freud empreendido por Jacques Lacan, impondo respeito à literalidade da obra freudiana, o que não era propriamente a tônica na cena psicanalítica dominada pela ipa, a International Psychoanalytical Association, fundada pelo próprio Freud em 1910.

Nesse contexto inscreve-se um artigo de Marilene Carone, publicado na Folha de S.Paulo em 1985, que denuncia a aterradora qualidade da tradução na Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud. A psicanalista mostrava que essa versão nem sequer merecia o tipo de análise inaugurado por Bettelheim, pois comprometia a recepção e o estudo do texto freudiano com erros muito mais primários e grosseiros. “Trata-se pura e simplesmente de falta de competência e responsabilidade no trabalho intelectual”, julgava Marilene, para acrescentar, jocosa, que para o leitor brasileiro Freud falaria “como um personagem dublado de filme de televisão”1. Não apenas a fluidez e estilo do texto freudiano seriam massacrados, mas também sua coerência conceitual. Tratava-se, definitivamente, de uma “tradução selvagem”, cheia de barbarismos e deturpações e que chegaria a criar noções estapafúrdias, ausentes no pensamento do autor.

Em sua introdução a “Luto e melancolia”, Marilene Carone compara a tarefa de tradução àquela do psicanalista, na medida em que ambas envolveriam um “trabalho de interpretação de texto” e buscariam manter uma certa neutralidade (p. 38). A tradutora afirma que é inevitável que transpareça, contudo, em tradução como em análise, a formação e os posicionamentos teóricos e técnicos do tradutor ou do analista. Se a neutralidade absoluta não é mais que uma quimera, isso não alarga a liberdade do intérprete, antes pelo contrário: ao tradutor, assim como ao analista, cabe identificar as balizas e os limites que o “texto” em questão impõe por si mesmo, e ser fiel a eles. Imbricada à experiência clínica da psicanalista, tal concepção de tradução precipita-se em uma versão em português que é duplamente rigorosa: fiel tanto à conceitualização freudiana quanto à prosa ensaística que a torna fluida e literariamente “tocante”. Ela representa, portanto, o feliz encontro de duas posturas habitualmente tomadas como opostas no tratamento dado à obra do mestre: aquela que privilegia a literalidade do texto e aquela que se preocupa com a qualidade literária de sua transposição para outra língua.

“Luto e melancolia” é, sem dúvida, um texto privilegiado para o desdobramento dessa sofisticada proposta. Trata-se do último dos textos metapsicológicos escritos por Freud em 1914-1915, dos quais a metade foi destruída pelo autor. Seu embasamento clínico é evidente e seu alcance teórico não deixa por menos. O mais importante, contudo, é que ele mostra como poucos a força e a beleza do ensaio freudiano. Apesar da reflexão contundente e da consistência teórica, o texto em nenhum momento torna-se hermético ou árduo para o leitor, mesmo que este não possua conhecimento prévio em psicanálise. A genialidade freudiana está no difícil equilíbrio entre ousadia na teoria e generosidade na exposição, e para isso contribui o fato, sublinhado por Marilene Carone e tomado como a base de sua tradução, de que Freud “preenche de conteúdos novos palavras antigas, reconhecíveis no ‘modo popular’ de dar nome às coisas”, como lembra em sua nota Modesto Carone (p. 34-5). Hoje, é corrente entre os estudiosos a ideia de que “em Freud, a fronteira entre uma linguagem científica especial e a linguagem comum, não específica, é sempre móvel”, nas palavras do tradutor Paulo César de Souza2. Mas isso não garante que as traduções mais recentes dos textos fundamentais da psicanálise façam jus a essa mobilidade, nem tampouco que o uso desse vocabulário nas atuais investigações psicanalíticas seja leal à flexibilidade da linguagem freudiana. Ambos tendem a se aproximar mais da rigidez do conceito que da força (literária, mas ao mesmo tempo conceitual) do texto.

Assumindo tal extraordinária mobilidade da linguagem, Freud nega-se a apresentar uma explicação teórica inteiramente pronta e bem acabada, e é justamente na medida em que se arrisca no pensamento, mostrando seus percalços, que constrói um texto que não se endereça apenas a psicanalistas ou filósofos, mas a cada um de nós. E como bem aponta Maria Rita Kehl em sua apresentação, “o mérito de um texto bem escrito é, sobretudo, ético: liberta o leitor” (p. 9).

TRABALHO DO LUTO E REBELIÃO MELANCÓLICA

Mais do que um estudo sobre as manifestações de luto e, em cotejamento com elas, sobre o quadro clínico da melancolia, trata-se em “Luto e melancolia” de um escrito fundamental sobre o eu (ou ego, como prefere a tradutora, alinhando-se à proposta do tradutor inglês James Strachey para das Ich). Freud faz uso do recurso metodológico conhecido como “princípio do cristal”, por ele exposto nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933): a psique, como um cristal, só mostra suas linhas de estrutura quando se quebra. Não existe, portanto, uma clara oposição entre normal e patológico. Enquanto não se quebrar, o cristal parecerá “normal” – entretanto, ele é composto de fraturas que, no momento em que alguma circunstância desencadeadora o fizer “cair”, guiarão o modo como ele se partirá.

Um ano após introduzir o conceito de narcisismo, que localiza o eu como objeto de amor para si mesmo e o delineia como reservatório do qual a libido pode ser enviada – e retirada – aos demais objetos, Freud nos mostra, com a melancolia, a face noturna desse jogo entre sujeito e objeto que pode chegar ao suicídio. Com isso, não se trata apenas de explicar o fenômeno do luto e o quadro clínico da melancolia e da depressão, mas de romper definitivamente com qualquer postulação empírica do indivíduo como idêntico a si mesmo e distinto do objeto (com o qual ele entreteria uma relação de complementariedade). O eu só se constitui ao preço de sua divisão: ele deve fazer-se objeto para si mesmo. E deve se amar, ou seja, a libido deverá tomá-lo como objeto. Mas Narciso também pode se odiar e chegar a abandonar ou aniquilar a si mesmo. Se seu apaixonamento é perigoso por sua exclusividade, como aponta a lenda grega, a escolha de objeto não basta para salvá-lo, pois o objeto deve ser perdido. Trata-se, fundamentalmente, em “Luto e melancolia”, de conceber o eu como um trabalho de perda do objeto.

De fato, uma das principais lições desse texto é a de que não basta que o objeto desapareça para que dele nos separemos. É necessário um verdadeiro trabalho psíquico de perda, chamado por Freud “trabalho do luto” – tarefa lenta e dolorosa através da qual o eu não só renuncia ao objeto, dele se desligando pulsionalmente, como se transforma, se refaz no jogo com o objeto.

Nesse sentido, “Luto e melancolia” traz uma estranheza fundamental que a leitura “diagnóstica” tende a esconder. Longe de consistir em uma unidade narcísica irredutível e capaz de assegurar alguma identidade, o eu não é mais do que um mosaico de traços de objetos perdidos, como uma mulher na qual seria possível reconhecer as características dos homens com os quais já se relacionou, na curiosa observação de Freud3. Tributário da perda do objeto, o eu se constitui apartado de si mesmo, e pode mais ou menos facilmente voltar a se “situar” no outro, exercitando suas identificacões plurais. Em “O Ego e o Id”, de 1923, o autor reconhece que no momento em que se debruçou sobre a melancolia não pôde perceber “a significação plena” da substituição de um investimento objetal por uma identificação, nem “quão comum e típico” é esse processo conformador do eu4.

A tristeza ou a depressão não são, portanto, quadros distintos de uma pretensa “normalidade” que se deva buscar restituir a todo custo. Elas podem ser o sinal de que um importante trabalho subjetivo está em marcha, operando a perda do objeto e implicando uma remodelagem do eu, à maneira do trabalho de luto. Esse é um ponto a ser sublinhado na atualidade, de modo a trazer modulações e nuances à crescente medicalização da tristeza, impulsionada pelo desenvolvimento dos antidepressivos nos últimos vinte e cinco anos e o interesse comercial dos laboratórios que os produzem.

O eu trata a si mesmo como um objeto, e é isso que lhe permite matar a si mesmo, fazendo talvez de todo suicídio um autoassassinato (Selbstmord, em alemão, traz esse significado literal). Na melancolia mostra-se em toda a sua radicalidade algo estrutural, mas habitualmente encoberto: o eu se toma como objeto de crítica e mortificação, graças a uma identificação com o objeto perdido, e assim, ao queixar-se de si mesmo, “dá queixa” do objeto (“queixar-se é dar queixa” (p. 59), na engenhosa tradução de Carone para o jogo de palavras freudiano “ihre Klage sind Anklagen“). Freud já havia, com o narcisismo, delimitado duas partições no campo do eu: um ideal, imagem de uma perfeição que lhe teria sido subtraída, e uma instância crítica que compararia constantemente o eu “real” a tal ideal, exigindo que ele deste se aproxime. Na atividade de tal instância crítica, a melancolia desenrola uma força destrutiva que, alguns anos mais tarde, Freud nomeará pulsão de morte. Em 1923, ela será ligada à crueldade da instância rebatizada como supereu (ou superego), e um ano mais tarde o psicanalista poderá rever sua concepção do masoquismo de modo a mostrar que o eu pode, sim, apresentar de saída impulsos destrutivos contra si mesmo, sem passar necessariamente pelo sadismo (dirigido ao objeto) como um estágio preliminar.

Na melancolia, o eu se revolta contra a perda, em vez de engatar um trabalho de luto através do qual possa a ela se con-formar, identifica-se maciçamente ao objeto perdido, a ponto de se deixar perder junto com ele. Tal rebelião é o cerne da melancolia e pode se instalar como uma “ferida aberta” (p. 71) que suga a libido e dolorosamente empobrece o eu. Se essa atitude se opõe ao trabalho de luto, ela não deixa, porém, de consistir também em um “trabalho” que “consome” o eu, nos termos de Freud (p. 53). A suspensão da perda por uma radical entrega do eu ao objeto também é uma tarefa psíquica dinâmica, e em consequência dela o quadro melancólico pode se reverter em um episódio de mania, caracterizado por exaltação e agitação extremas. Tal alternância, conhecida pela expressão psicose maníaco-depressiva – ou pelos termos, atualmente mais usados, distúrbio bipolar -, mostra que se pode passar de um estado no qual o eu está quase inteiramente subjugado pelo objeto para uma situação na qual o eu teria “superado a perda do objeto (ou o luto pela perda, ou talvez o próprio objeto)” (p. 77). Talvez o eu possa até, nesse momento, reconhecer-se como melhor, “como superior ao objeto”, diz Freud (p. 85).

PERDA E DELEITE

Seja como for, o menor contato com pacientes em quadro maníaco mostra-nos quão longe ele está de ser positivo e invejável. O triunfo maníaco tem, assim como a apatia melancólica, algo de mortífero e intratável. Ambos deixam a porta aberta ao gozo, tão bem expresso por Freud ao falar do “autotormento indubitavelmente deleitável” da melancolia (p. 67). Na tradução desta expressão-chave, Marilene declina toda a sua maestria. O termo usado pelo autor, Genuss, que pode ser traduzido como gozo na esteira da jouissance em Lacan, não indica propriamente “prazer”, mas algo que está além – ou aquém – da distinção entre prazer e desprazer, algo que, sendo um sofrimento, é ao mesmo tempo um deleite. As novas traduções de Paulo César de Souza (pela Companhia das Letras) e da equipe de Luiz Hanns (pela Imago) optam por “prazeroso” e com isso perdem a oportunidade de distinguir o termo de Lust, muito mais frequente no texto freudiano e claramente referenciado a Lustprinzip (princípio de prazer). Carone acerta em cheio ao se valer das nuances semânticas que fazem de deleite algo muito mais complexo, digamos, menos imediata e diretamente sentido como prazer, ao mesmo tempo em que dão à palavra uma conotação vagamente erótica. A etimologia confirma nossas suspeitas por uma via surpreendente, confirmando a sabedoria da língua: o termo latino delectare vem de lactare, “embalar, seduzir, induzir”, que por sua vez deriva de lacere, que significa “atrair, seduzir” e se relaciona com lax lacis: “astúcia, fraude, sedução” 5. O deleite de que se trata, e que a melancolia tão bem explicita, tem a ver com o momento em que o bebê é um objeto inteiramente submetido a quem dele cuida (embala, digamos), e assim se inscreve no campo conceitual que Freud desde o início aponta com a noção de trauma e de sedução: aquele da pulsão de morte.

A melancolia, portanto, muito além de um quadro clínico bem definido e a ser diferenciado dos episódios depressivos variados que dão notícias de nosso trabalho de luto cotidiano, é uma noção que traz à tona algo fundamental ao humano, às suas paixões. E à Cultura. Disso já dava notícias a concepção de melancolia surgida na Grécia antiga e suas derivações ao longo da história ocidental até as vésperas, digamos, do surgimento da psicanálise. Como apresenta Urania Tourinho Peres em seu posfácio, no Renascimento a melancolia começou a ser associada à criação artística. Freud também a associará com a arte em um pequeno texto escrito poucos meses depois de “Luto e melancolia” e que talvez seja seu mais belo ensaio: “Sobre a transitoriedade”. Em um passeio primaveril com Lou Andreas-Salomé e o jovem Rainer-Maria Rilke, Freud se espanta que o poeta esteja impedido de fruir a beleza da paisagem pelo melancólico pensamento de que tudo isso em breve seria destruído com a chegada do inverno. Ora, afirma o psicanalista, o fato de a beleza ser passageira só aumenta seu valor! O deleite que ela nos proporciona é mesclado de luto, de renúncia, da expectativa de uma perda iminente. “O doloroso também pode ser verdadeiro”, retruca Freud diante da revolta contra a perda6.

A arte não nos poupa as impressões mais dolorosas, e no entanto pode ser vivida como um deleite superior, como nota Freud falando especialmente da tragédia, em “Além do princípio de prazer”. Tal gozo talvez seja o sinal inconteste de que houve transmissão de algo tão doloroso quanto “verdadeiro”. Entre dor e deleite, de fato – entre luto e melancolia, se quisermos – se trama em nossa vida alguma “verdade” e alguma beleza.

Notas

1 CARONE, Marilene. “Freud em português: uma tradução selvagem”. Folha de S.Paulo, caderno “Folhetim”, 21/04/1985, p. 3-4. (Posteriormente reproduzido em Souza, Paulo César de (org.). Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense, 1989.)
2 SOUZA, Paulo César de. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Ática, 1999, p. 77.
3 FREUD, Sigmund. “O Ego e o Id”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
4 Ibidem, p. 41.
5 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
6 FREUD, Sigmund. “Vergänglichkeit”. Gesammelte Werke, p. 359.

Tania Rivera – Psicanalista, ensaísta e professora da Universidade Federal Fluminense.

Acessar publicação original

Nova história em perspectiva. Propostas e desdobramentos (v. 1) | Fernando A. Novais e Rogério Forastieri Silva

Pensar os caminhos e desdobramentos da Nova História, suas implicações teóricas em meio aos discursos dos historiadores e situá-la no contexto geral da historiografia são algumas das propostas que norteiam este denso e instigante trabalho.

Organizado por Fernando Novais e Rogério Forastieri da Silva, professores de brilhante trajetória em universidades como a Universidade de São Paulo, Instituto de Economia da Unicamp e participação internacional em universidades como Louvain, Coimbra e Lisboa, este vem a ser o primeiro volume de uma coletânea de dois volumes: o primeiro intitulado “Propostas e desdobramento” e o segundo “Debates”. Leia Mais

Investigando Piero – GINZBURG (RBHE)

GINZBURG, Carlo. Investigando Piero. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Resenha de: AGUIAR, Thiago Borges de. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 2 (29), p. 267-280, maio/ago. 2012

Recomendar a leitura de uma obra escrita pelo autor de O queijo e os vermes para o público brasileiro pode ser facilmente justificável pela qualidade já consagrada de sua produção histórica. No entanto, fazê-lo para os historiadores da educação no Brasil justifica-se por dois motivos. O primeiro consiste em fugir do lugar-comum pelo qual Ginzburg é visto por aqui: um autor da micro-história que propõe uma leitura das fontes a partir de um paradigma indiciário e/ ou da circularidade cultural. O segundo é o caráter de “aula-passeio pela arte de se fazer história” que essa obra possui.

A tradução da obra Investigando Piero, lançada em 2010 pela Cosac Naify, foi baseada na edição italiana de 1994. Ela é diferente da tradução publicada pela editora Paz e Terra, que até então circulava no Brasil, visto que esta última foi traduzida de outra edição italiana, a do ano de 1982. A nova tradução para o português, em oposição à edição que circulava anteriormente no Brasil, traz diversas imagens em cores, maior quantidade de figuras, inclusão de quatro apêndices, além da revisão do próprio texto.

Ginzburg propõe com esse livro uma discussão do comissionamento das obras de Piero della Francesca e da iconogafia nelas presente, evitando a discussão de aspectos propriamente formais, questões que deixa o autor para serem respondidas pela história da arte. Três obras de Piero foram escolhidas para esse trabalho: o Batismo de Cristo, a Flagelação e o conjunto de afrescos da igreja de San Francesco, em Arezzo.

Por que investigar Piero della Francesca? Pode um estudo histórico sobre esse pintor renascentista italiano trazer resultados relevantes? É o que se questiona o autor no início de seu prefácio à edição de 1981. Ele entende que, apesar de suas limitações no campo da arte, as condições para a pesquisa sobre Piero (escassas referências biográficas e pouquíssimas obras datadas) são um rico campo de pesquisa histórica. Entendemos que, para Ginzburg (p. 15), está justamente na dificuldade de se trabalhar com esse artista a possibilidade de convertê-lo num “caso de grande importância metodológica, até independente de sua excelência artística”.

O livro de Ginzburg também estabelece um diálogo com a obra de Roberto Longhi, seu conterrâneo, cujo título é Piero dela Francesca (Florença: Sansoni, 1963/São Paulo: Cosac Naify,2007). Comenta o autor que, apesar de ser um trabalho de peso, digno de nota pela qualidade do exame realizado diante de tão parca documentação existente, é inevitável que a obra de Longhi apresente algumas falhas depois de tanto tempo de sua primeira formulação (1927).

Em uma aula que Ginzburg ministrou durante um seminário de estudos da Fundação Longhi, cujo ensaio foi publicado como “Apêndice IV” da edição aqui resenhada, o autor afirma que seu livro consiste em uma homenagem à obra de Longhi, da única maneira que é possível fazê-la: discutindo-a e criticando-a. De certa maneira, investigar Piero é investigar Longhi, e fazer dele um “modelo e um desafio constante”, mesmo quando as conclusões d ambos seguem caminhos diferentes.

A discussão que é praticamente o pano de fundo de todo o livro de Ginzburg é a datação das obras de Piero. Em diálogo com Longhi, Ginzburg (p. 11) afirma que para este “a datação era um momento decisivo na análise de uma obra”. É esse procedimento, porém, que recebe as críticas mais contundentes do historiador italiano. Uma datação estilística permite afirmar apenas que uma obra é anterior ou posterior à outra. “Só é possível converter esse ‘antes’ e esse ‘depois’ em indicações cronológicas absolutas – talvez até ad annum – se a análise estilística se enganchar com elementos de datação externa” (p. 13-14).

São os “ganchos” em documentações concernentes e relacionáveis ao comissionamento e à iconografia das obras que permitiram ao autor (p. 24) “entrar num terreno, o da cronologia das obras, que os conhecedores [da história da arte] sempre reivindicaram como área sua”. E a resposta de Ginzburg (p. 25) aos críticos de seu livro é categórica nesse sentido:

Sem dúvida, o estilo é um fenômeno histórico e, enquanto tal, está ligado a um contexto temporal, em princípio verificável. Mas a datação dos fatos estilísticos pode se prender a uma cronologia absoluta, de calendário, apenas por meio de fatos extraestilísticos, como a data inscrita no afresco de Piero em Rimini, por exemplo.

Não me cansarei de repetir que, sem essa data, o afresco não poderia constituir um “gancho”, um ponto de referência indiscutível (pelo menos até prova em contrário) para a cronologia absoluta das obras de Piero. Isso não significa que a história da arte seja uma disciplina à deriva ou que o juízo dos conhecedores seja mais frágil que o dos historiadores. Porém, o caráter relativo das datações puramente estilísticas coloca claros limites à sua capacidade demonstrativa.

Por que, então, um historiador trabalhar com Piero dela Francesca? A resposta de Ginzburg passa por uma retomada de Lucien Febvre. Se este sugeria examinar plantas, campos de lavoura, eclipses da lua, por que não examinar pinturas? Além disso, para Ginzburg (p. 20), já está na hora de reunir historiadores e historiadores da arte num trabalho interdisciplinar, “cada qual com seus instrumentos e competências próprias, a fim de chegar a uma compreensão mais aprofundada dos testemunhos figurativos”.

Essa interdisciplinaridade, já proposta por Ginzburg em obras como História noturna ou Mitos, emblemas e sinais (história e morfologia), bem como em Nenhuma ilha é uma ilha (história e literatura), tende, tradicionalmente, a se traduzir numa apregoada justaposição de resultados de áreas diversas. No entanto, o historiador italiano propõe fugir dessa prática pouco produtiva, visto que as divergências em relação a problemas concretos, como a questão da datação das obras de Piero, são mais frutíferas do que as convergências entre as áreas. É por meio das divergências que se pode “recolocar em discussão os instrumentos, as áreas e as linguagens de cada disciplina. A começar, sem dúvida, pela pesquisa histórica” (p. 21).

O livro de Ginzburg (p. 24) serviu-lhe também como alimento para “uma reflexão sobre um tema mais geral – o da prova” –, com o qual ele afirma ter-se ocupado “várias vezes na última década, e de diversos pontos de vista”. Investigando Piero, nesse sentido, fornece subsídios para o diálogo com outras obras de Ginzburg, como Relações de força e O fio e os rastros, ou ainda, mais especificamente, com o ensaio “De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método”, publicado no Mitos, emblemas e sinais.

Vemos aqui como o Ginzburg investigador de Piero dela Francesa é muito mais do que o historiador que estudou a vida de um moleiro perseguido pela inquisição ou que reuniu Morelli, Freud e Sherlock Holmes num único texto, como ele aparece nos estudos de história da educação. É alguém que nos mostra que a construção histórica passa por uma discussão sobre o lugar da prova, diante de uma documentação escassa e da necessária interdisciplinaridade para a realização desse debate.

Mais do que isso, trabalhando com um assunto não tão próximo às temáticas mais recorrentes de sua obra, como os sistemas de crença e bruxaria, Ginzburg oferece, para quem está familiarizado com sua obra, uma oportunidade para ser enxergado por outro prisma. Visto trabalhar numa área na qual ele não circula com facilidade, Ginzburg, em seu livro, constrói sua argumentação com mais “cuidado”, deixando claramente à mostra as etapas do processo de elaboração de uma narrativa histórica valendo-se da análise de sinais que não saltam à vista num primeiro momento.

Investigando Piero está, portanto, recheado da metodologia indiciária e narrativa da escrita histórica de Ginzburg. Ao longo dos capítulos do livro, detalhes como o aperto de mãos de personagens nas obras de Piero são discutidos com historiadores da arte e documentos de época e analisados pela ótica de categorias como “convincente” e “implausível” (p. 38) à luz de critérios de análise como “exaustividade, coerência e economia” (p. 39). As conclusões que o autor (p. 140) constrói ao longo de quatro capítulos dividem-se entre comprovações e conjecturas, como comenta no final da análise do ponto mais controverso de sua obra, a identidade de um dos personagens de Flagelação:

a coerência interpretativa sem correspondências de fato sempre deixa uma margem de dúvida. Os documentos sobre a encomenda e a localização original, que no caso do Batismo permitiram que controlássemos a exatidão da interpretação iconográfica de Tanner, ainda não vieram à luz no caso da Flagelação; esperamos que algum dia apareçam. No aguardo de novas descobertas documentais, é preciso reconhecer que a interpretação acima apresentada é, em boa parte, conjectural. Tratando-se de um quadro anômalo em termos iconográficos, cujo destinatário e localização originais são ignorados, talvez seja difícil proceder de outra maneira.

Não apenas pela qualidade do exercício metodológico de Ginzburg e da ilustração de seu método indiciário de trabalho histórico vale a leitura de Investigando Piero. O exercício de autocrítica que o autor faz ao questionar seus próprios resultados com base em críticas externas é um rico exemplo de honestidade científica. No apêndice II de seu livro, Ginzburg (p. 245), ao discutir os limites da prova no campo dos estudos sobre a iconografia, apresenta “conclusões bastante autodestrutivas”, justificando que “a reflexão sobre um fracasso pode ser tão (ou talvez mais) instrutiva quanto a reflexão sobre um sucesso”. Embora termine afirmando que “preferiria de longe ter discorrido sobre um sucesso”, entendeu o autor (p. 259) que “conjecturas e refutações, ambas fazem parte da pesquisa”.

Seu fracasso constituiu num detalhe que descobriu mais tarde: a faixa vermelha que o autor (p. 258) demonstrou ser a “irrefutável e correta” interpretação de que Giovanni Bacci fora o comitente do quadro Flagelação e estava nele retratado não consistia numa faixa cardinalícia e sim num simples xale, ou um becchetto, “uma longa tira cujas pontas pendiam como uma espécie de turbante, amplamente usada na Itália quatrocentista”. O que Ginzburg pensava ser uma anomalia era, na verdade, uma série de elementos repetidos em outras obras da época. Embora essa descoberta tenha destruído boa parte de sua argumentação sobre a datação tardia do quadro, ela serviu ao autor como instrumento para novas descobertas a respeito de Piero e suas obras. Seu exercício de assunção de um erro apenas reforçou sua posição de que “a propensão a hipóteses arriscadas e o rigor na pesquisa das provas podem e devem coexistir” (p. 250).

Nesse sentido, Investigando Piero, obra que se poderia supor uma anomalia dentro do conjunto de escritos de Ginzburg, talvez um livro de deleite ou uma fuga para outra área, é um exemplo consistente do lugar da prova na pesquisa histórica e das amplas possibilidades de atuação do historiador que quer se arriscar a sair dos lugares-comuns.

Thiago Borges de Aguiar – Pedagogo e doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorando bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) na Faculdade de Educação da USP. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Nova História em Perspectiva – NOVAIS; SILVA (NE-C)

NOVAIS, Fernando A; SILVA, Rogerio Forastieri da (orgs.). Nova História em Perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de: FLORENTINO, Manolo. História, Sentido e Totalidade. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.

Certa vez, em meio a uma reunião científica, foi sugerida a um alto gestor público a extinção dos cursos de mestrado no Brasil. A ideia partiu de um colega da área tecnológica, físico ou químico, não recordo bem. “Para que mestrados? É pura perda de tempo! Deveríamos selecionar nossos alunos diretamente para o doutorado!”, argumentou incisivo o colega. A resposta não tardou. O alto funcionário contestou na lata que, com as devidas exceções, as graduações brasileiras são muito ruins. Ao que, acrescentou, as pós-graduações do país eram legalmente soberanas para tornar obrigatórios ou não os mestrados como etapas da formação de seus alunos.

Ponto para o burocrata!

Pois a verdade é que, ao menos para o caso de História, os mestrados representam momentos de intenso exercício prévio à obra que se supõe resultará do doutorado. O motivo? A mais antiga dentre as chamadas ciências sociais, a História é, sobretudo, uma disciplina argumentativa — aspecto em que se sobressai dentre a chamada área de humanidades —, mas fundada na correta escolha e utilização de fontes de tipos diversos. Mais que isso, sua abrangência é enorme, seu objeto é, ao fim e ao cabo, indelimitável, o que por certo lhe imprime um caráter altamente artesanal e subjetivo. Mais claramente: argumentação aplicada ao tempo, à mudança, a partir do manejo de corpos documentais cujo escopo vem aumentando nas últimas décadas em função da imensa diversidade temática que cada vez mais caracteriza o ofício de historiador. É, pois, saudável que, ao menos no campo do saber historiográfico, nossos alunos passem por essa etapa preparatória fundamental encarnada nos cursos de mestrado.

Quando menos por isso é de grande importância para estudantes e especialistas em teorias da História a publicação do primeiro tomo da antologia de fôlego (três volumes no projeto original) organizada pelos professores Fernando Antonio Novais e Rogério Forastieri da Silva. Trata-se de trabalho cujo objetivo explícito é inserir a chamada Nova História na história geral da historiografia, enquadrando-a analiticamente em um tempo, em uma conjuntura. Afinal, como alertam Novais e Forastieri na longa e densa introdução à antologia, lenta e imperceptivelmente também a Nova História vai se tornando história.

A estrutura do primeiro volume de Nova História em perspectiva está centrada na apresentação de propostas e desdobramentos. Por propostas entenda-se trazer ao público novas traduções dos manifestos axiais dos nomes mais importantes de cada uma das três fases dos Annales. Daí os textos clássicos de Lucien Febvre, expoente da primeira fase, caracterizada pelo diálogo mais intenso entre a História e, sobretudo, a Sociologia; de Fernand Braudel, catalisador da segunda etapa, quando a interação entre a História e a Economia predominava; e, por fim, os lineamentos apresentados por Jacques Le Goff e Pierre Nora, que na década de 1970 impuseram novos rumos, marcados sobretudo pela maior abertura dos historiadores à Antropologia (ou, como querem Novais e Forastieri, sobretudo com a Etnografia) — a fase da Nova História propriamente dita.

Seguem-se os desdobramentos da avassaladora velocidade com que a Nova História se impôs nos meios acadêmicos ocidentais, contemplados neste primeiro volume da antologia pelas análises de André Burguière, Carlo Ginzburg, Emmanuel Le Roy Ladurie, Hayden White, Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, Massimo Mastrogregori, Maurice Aymard, Michel Vovelle, Natalie Zemon Davis, Philippe Ariès, Pierre Chaunu e Stuart Clark. Fecha o volume o texto de James Harvey Robinson, verdadeiro achado arqueológico, publicado originalmente em 1912 sob o sugestivo e antecipatório título de “A nova história”.

O que está em jogo aqui é, a partir de textos seminais, contribuir para o entendimento de como, na perspectiva dos organizadores da antologia, em pouco mais de quatro décadas os sucessivos grupos de profissionais agregados ao redor dos Annales acabaram, não sem profundas descontinuidades, por contribuir para instaurar um cenário historiográfico marcado pela extrema pulverização temática e — com as devidas exceções — por uma “pobreza teórica verdadeiramente capuchinha”, nas palavras de Novais e Forastieri.

É evidente, pois, a natureza crítica da longa introdução escrita pelos organizadores à Nova História inaugurada por Le Goff e Nora a partir do lançamento dos três volumes do hoje clássico Faire de l’histoire1. Os argumentos apresentados são eruditos, elegantes e fundados em uma lógica ferrenha.

De início nos é mostrado didaticamente o que vem a ser o fundamento da história-discurso, que corresponde à necessidade da criação da memória social. É estabelecida então a diferença entre a narrativa mítica, própria da constituição da memória coletiva entre os primitivos, e a narrativa histórica propriamente dita, ancorada, ao contrário da primeira, na temporalidade. Como diria certo filósofo, a história-discurso da civilização funda-se na necessária simbolização do homem no tempo.

A anterioridade da História em relação às Ciências Sociais demanda, logicamente, levar em conta o impacto do surgimento destas últimas sobre a História, e não o contrário. Nesse sentido, o século xix é muito bem localizado pelos organizadores como representando o ponto de inflexão na história do discurso historiográfico, instaurando a forma propriamente moderna de fazer História a partir do diálogo com as Ciências Sociais nascentes. Com uma importante diferença: enquanto as Ciências Sociais sacrificam a totalidade pela conceitualização, a História faz o inverso, sacrifica a conceitualização pela totalidade. Pela simples razão de que o historiador visa explicar para reconstituir um passado necessariamente total — ainda que se foque tal ou qual de seus aspectos —, enquanto o cientista social visa reconstituir para explicar.

É a partir desses pressupostos que Novais e Forastieri se posicionam criticamente em relação à terceira fase dos Annales, a da chamada Nova História. Em primeiro lugar, reconhecem que ela conforma um desdobramento das fases anteriores, na medida em que mantém, em termos gerais, o princípio básico de interlocução com as Ciências Sociais. A ruptura, entretanto, a caracteriza quando se detecta a diminuição desse diálogo e a afirmação de certa tendência à desconceitualização — dialoga-se muito mais com a Etnologia do que com a Antropologia, segundo os organizadores. À desconceitualização sucede uma imensa pulverização temática (a “História em migalhas” da qual fala François Dosse) e, pior, a descaracterização da natureza necessariamente total da história, dado que nenhum acontecimento pertence exclusivamente a uma única esfera do existir. Detalhe, bem explicitado por Novais e Forastieri: não se deve confundir esferas da existência (economia, política etc.) com níveis de realidade (estrutura, conjuntura etc.) — toda esfera da existência comporta necessariamente os vários níveis de realidade.

Em termos gerais, estou de pleno acordo com os organizadores deste primeiro volume de Nova História em perspectiva. Observando melhor o perfil de grande parte da produção historiográfica recente, é fácil capturar nele uma enorme gama de ceticismo — corolário do relativismo —, e mesmo de cinismo e niilismo. Mas lembro aqui ser necessário nunca deixar de duvidar. Da importância política da dúvida e do ceticismo que sempre marcaram a civilização ocidental contemporânea discorrem muito bem Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margareth Jacob, na “Introdução a Telling the Truth about History“, presente na antologia de Novais e Forastieri.

Mesmo reconhecendo os traços gerais desenhados por Novais e Forastieri, no entanto, insisto no que há de extremamente positivo na crítica ao consagrado, seja ele estabelecido pela tradição ou pelo mercado. No mínimo porque a iconoclastia ou o simples exercício legitimado do espírito de porco abrem campo para todas as formas de expressões artísticas, historiográficas ou teóricas possíveis, inclusive para a apaixonada defesa que Novais e Forastieri fazem do marxismo, na segunda parte de sua introdução. Da importância criadora dos momentos de maior peso do ceticismo na cultura ocidental falam, por exemplo, no campo da literatura, os grandes nomes da ficção norte-americana entre 1920 e 1945 — Scott Fitzgerald, John Dos Passos e Ernest Hemingway, apenas para ficar em alguns dos mais conhecidos.

Por que os cito em um contexto no qual a discussão sobre a natureza na Nova História é o centro? Pelo simples fato de que, com todos os seus problemas, consigo capturar nesse movimento historiográfico a expressão da radicalização do conflito entre a sociedade e o indivíduo, este definitivamente sufocado pelas teorias totalizantes em todos os campos das Humanidades até as décadas de 1970 e 1980 (a longa censura não declarada à obra de Norbert Elias é disso apenas um exemplo). Há no movimento, pois, mais do que desvios em relação às modernas regras que definem o ofício do historiador. Há nele um grito pela localização do sujeito individual na História e a firme decisão de resgatar a tolerância e a diversidade como traços constitutivos da moderna civilização.

Notas

[1Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974.         [ Links ]

Manolo Florentino – Professor do Instituto de História da UFRJ

Acessar publicação original

Facundo ou civilização e barbárie – SARMIENTO (NE-C)

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo ou civilização e barbárie. Tradução e notas de Sérgio Alcides; prólogo de Ricardo Piglia; posfácio de Francisco Foot Hardman. São Paulo: Cosac & Naify, 2010. Resenha de: HOSIASSON, Laura Janina O prazer da leitura em Facundo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011.

Do tempo que é depois, antes, agora,
Sarmiento, o sonhador, continua nos sonhando.
Borges, “Sarmiento”, O outro o mesmo

A leitura deste livro – em tradução cuidadosa de Sérgio Alcides – confirma com espantosa evidência o fato de estarmos no século XXI ainda fincados de modo visceral no século XIX. Embora nossas convicções nacionalistas distem muito de ser as mesmas de Sarmiento e seus preconceitos raciais sejam intoleráveis para nós, ainda que seus prognósticos políticos soem ingênuos para o leitor latino-americano no presente, reconhecemos como nossas as contradições, os paradoxos, as ambivalências que marcam o discurso deste narrador que perscruta o mundo ao redor à procura do sentido de sua história. Sua perspectiva diante dos acontecimentos que narra nos atrai pela capacidade de enxergar a complexidade que há por trás do fato aparentemente simples. Para além de sua visão de mundo cindida em dois, um mundo que se debate entre as forças civilizadas vindas da Europa e a barbárie indígena e de lastro colonial, entre “os últimos progressos do espírito humano e os rudimentos da vida selvagem, entre as cidades populosas e as matas sombrias” (p. 53), apesar dessa visão tributária decerto do romantismo de sua época, reconhecemos a desenvoltura de sua prosa e a forma como ele liga coisas que pareciam distantes e as atrela ao núcleo principal de seu argumento.

É preciso destacar, nesse sentido, o prazer da leitura desde os primeiros parágrafos. Escrito “de uma sentada só”, em não mais de dois meses – entre maio e junho de 1845 -, para ser publicado como folhetim no jornal chileno El Progreso, sua prosa viva, ágil e imaginosa embala o leitor num ritmo que nunca esmorece. Para falar de contingências da política internacional, Sarmiento lança mão de símiles e perífrases que dariam água na boca a qualquer um de nossos comentaristas atuais. Na sua visão, o mundo possui convergências inusitadas e paralelismos que podem ligar as rotações dos astros no firmamento às reviravoltas dos regimes autoritários aqui na terra. Sua perspectiva global dos acontecimentos internacionais lhe permite aludir às vicissitudes, aos processos histórico-culturais, à política ou à economia da Itália, da Polônia ou do Paraguai para falar da Argentina. Por outro lado, sua concepção do mundo asiático e oriental, marcada pelo exotismo, parece saída dos livros de Marco Polo e são recorrentes as alusões a “lembranças imaginárias” desse mundo excêntrico, devasso, desorganizado, atrasado, bárbaro enfim, para se referir às mazelas da situação argentina.

Em primeiro lugar, e sem nunca sair do espectro de seu horizonte, está o “Eu”1 do exímio narrador, figura que se insinua e já se define nas cenas descritas na “Advertência do autor”, quando começa por nos alertar sobre os erros circunstanciais e as “inexatidões”, derivados da situação de exílio em que se encontrava2, obrigado a apelar para “as próprias reminiscências”. Exemplo emblemático é a célebre citação (“on ne tue point les idées”) que nessa mesma “Advertência”, ele atribui a Fortoul: Paul Groussac a remeteria ao conde Volney, mas críticos recentes afirmam ser invenção dele próprio e Ricardo Piglia (no prólogo a esta edição), de Diderot3! O mesmo ocorre com as epígrafes que inauguram cada capítulo, em sua maioria inexatas, incompletas e mal atribuídas. Mas isso está longe de significar motivo de preocupação para ele, que as assume como sinal de espontaneidade e de transparência, preferindo não retocar nada para não desaparecerem do livro “sua fisionomia primitiva e a audácia louçã e voluntariosa de sua concepção mal disciplinada”, como ele mesmo declara em carta a Valentín Alsina, no momento da segunda edição da obra em 18514. Nessa atitude já se mostra um tipo de narrador que se assume como leitor e intérprete ele também e que, adiantando-se em várias décadas, aponta para aquilo que Marcel Proust irá formular num pequeno e precioso texto “Sobre a leitura”: a relação livre que o escritor poderia estabelecer com os documentos e livros que cita e a partir dos quais constrói sua obra5. Podemos pensar também que aqui reside uma das matrizes da relação libérrima e lúdica que se estabelece nas narrativas de Jorge Luis Borges com as fontes e as citações bibliográficas. Borges fará disso um procedimento estético.

O narrador de Facundo sente-se duplamente livre: de um lado, num território neutro, como o que ele encontra no seu exílio chileno, para dizer e escrever o que pensa, sem risco de vida; e de outro, sente-se livre e já maduro para elaborar um estudo capaz de aglutinar de modo magistral um enorme leque de gêneros e estilos, através dos quais perambula com absoluta soltura.

Aos 34 anos, após uma formação praticamente de autodidata (Sarmiento só cursou de forma regular a escola primária) tornar-se-á grande educador, áspero polemista, político hábil e publicitário. Dominará a escrita e será capaz de compor descrições detalhadas da geografia do pampa argentino, com olhar detido em toda espécie de árvore, flor ou aroma; saberá elaborar uma tipologia social do gaúcho, de sua rotina no pampa, tão eficaz e pertinente, que o transformará de imediato e de maneira simultânea em referente para o pensamento histórico sobre o país e pedra de toque para a imaginação de toda uma linhagem literária argentina. Ainda no mesmo livro, interpreta a história do país desde sua independência em 1810 até 1845, período dentro do qual delineará a biografia circunstanciada do terrível caudilho Facundo Quiroga, salpicada de digressões, diatribes e ponderações e termina prognosticando um futuro argentino, uma vez superada a ditadura de Juan Manuel Rosas (o que só aconteceria em 1852). Tudo isso num livro só, pontuado ainda com iluminações de grande estrategista político, qualidade essa que levaria Sarmiento à presidência, em 1868.

O título bifronte –Facundo ou civilização e barbárie-, que alude, de um lado, à biografia do caudilho, e, de outro, à dialética entre o que se entende por mundo civilizado e o que se entende por barbárie, já aponta na direção de uma obra plural. Entre outras coisas, trata-se também de um panfleto político, na tradição da Brevíssima relação da destruição das Indias Ocidentais de Bartolomé de Las Casas6. Encontramos no texto de Sarmiento, como no de Las Casas, um esquematismo antitético, muitos exageros e fórmulas simplificadoras e caricaturais em que a história se coloca como campo de batalha entre forças antagônicas lutando entre si. Só que não estamos aqui em presença do maniqueísmo sistemático com que o frade dominicano reduzia o conflito entre indígenas e espanhóis no século XVI, posicionando frente a frente pobres carneirinhos e lobos famintos. Sarmiento propõe-se detratar e desmoralizar o ditador argentino, seu maior inimigo político: aquele que representa para ele a personificação do mal, do atraso, da impossibilidade do progresso e é signo da estagnação política. Só que para tanto idealiza um texto em que isso possa ser feito sem que as farpas sejam dirigidas de forma direta. A primeira biografia que escreveu, sobre o general Félix Aldao, poucos meses antes de começar a escrever Facundo, era já de certa forma germe deste livro e também do seu proceder: um meio lateral de apontar na direção de Rosas.

Mas a questão é que Rosas é muito interpelado, e ressurge o tempo todo ao longo das mais de quatrocentas páginas: como a sombra de tudo que se narra, é o alvo de tudo que se diz. Mediante um procedimento literário absolutamente magistral, a primeira frase do livro, “Sombra terrível de Facundo, vou evocar-te para que te ergas, sacudindo o pó ensanguentado que cobre tuas cinzas […]”, produz um duplo movimento: trazer das sombras da morte o caudilho da província de La Rioja para iluminar e vitalizar sua trajetória, e empurrar Juan Manuel Rosas para as sombras do texto, sem voz, mas sempre a “escutar”, como um interlocutor fantasma, tudo quanto for dito. A ele são atribuídos desde o começo e de forma direta os epítetos mais terríveis: “falso”, “coração gelado”, “espírito calculista”, “um Maquiavel”, “Tirano”, “monstro”, déspota”, “esfinge Argentina” (por covarde e sanguinário). A Rosas dirige-se também de forma direta o narrador no último capítulo (“Presente e porvir”), quando o “Eu” narrativo encara de modo frontal seu interlocutor mudo, invocando-o na segunda pessoa do singular: “Insensato! O que fizeste?” (p. 422). Um dos grandes prodígios do livro é justamente ter criado uma situação absolutamente fictícia, mas por isso mesmo de uma força real impressionante, na qual o “Tigre de los Llanos” Facundo Quiroga (exemplo máximo da barbárie provinciana), tendo ficado atrás, morto e enterrado, deixa agora eles dois – Rosas e Sarmiento a se verem finalmente um diante do outro, como num duelo de titãs. No Prólogo à edição aqui resenhada, Ricardo Piglia trabalha justamente essa ideia.

Nas páginas finais, através do olhar do estrategista, Sarmiento calcula o paradoxo segundo o qual, graças à política do terror praticada pela ditadura de Rosas, o país está já finalmente centralizado em Buenos Aires: “Porém não se creia que Rosas não conseguiu fazer progredir a República que está despedaçando […]. A ideia dos unitários está realizada; apenas o tirano está demais” (p. 418). O olhar do escritor que tudo sopesa permite-lhe capitalizar o período sinistro da ditadura como um tempo de aprendizado, de educação política e social para o povo argentino. Um desfecho otimista, esperançoso de quem, apesar da adversa realidade circundante, nunca esmoreceu nas suas convicções, de quem estava se armando para assumir um dia ele mesmo o poder político do país. Nesse momento final irá repetir doze vezes (!) sua arenga contra Rosas, agora usando a terceira pessoa do singular: “Porque ele, não tomou uma medida administrativa […]. Porque ele perseguiu o nome europeu […]. Porque ele destruiu os colégios […]” (pp. 427-430), e assim por diante.

A eficácia de todo esse esforço por desacreditar o inimigo ficaria provada pelas palavras que o mesmo Rosas teria declarado após a publicação do livro: “O livro do louco Sarmiento é o melhor que já se escreveu contra mim; é assim que se ataca, senhor; é assim que se ataca; o senhor verá que ninguém irá me defender tão bem”7.

Outra grande eficácia do livro reside na sua estrutura. Tendo sido expostas já na “Introdução” as diretrizes gerais que norteiam tanto o aparato ideológico de Sarmiento como seus pressupostos esquemáticos sobre os processos históricos, a obra poderia correr o sério risco de se tornar uma longa e árdua estrada de redundâncias e de desenvolvimentos previsíveis. Isso está longe de acontecer graças à estrutura completamente heterogênea de suas partes. É possível pensar o livro em três grandes blocos8, muito diversos em natureza e tratamento narrativo.

Um primeiro bloco que compreenderia os quatro capítulos iniciais, dedicado à descrição dos contextos físico, social, racial, econômico, cultural e histórico que determinariam a índole dos indivíduos que ali habitam; um segundo- o mais longo – que reúne os nove capítulos seguintes, em torno da “vida e obra” de Juan Facundo Quiroga; e os dois últimos capítulos, de teor mais político e panfletário. A repisada questão da multiplicidade de gêneros que residem nesta obra, já pulsa nesta divisão que supõe três viradas abruptas nos pressupostos narrativos e compositivos, assim como mudanças de tom, de perspectiva e de ritmo.

A descrição que Sarmiento é capaz de fazer da imensidão argentina, de seus pampas, desertos e planícies é digna de poeta. A poesia de suas frases, para além da descrição justa e pormenorizada, permite que a própria geografia penetre na linguagem e se faça expressão da vida natural. Ele cria cenas hipotéticas de viajantes, de encontros com animais selvagens, com a onça perigosa, com o passarinho silvestre; sua palheta harmoniza cores, esboça nuanças com a sensibilidade do grande artista. Sarmiento é um escritor nato9 num tempo feliz em que a escrita podia intervir no curso das coisas, e foi o que ele fez.

No primeiro capítulo, “Aspecto físico da República argentina e caracteres, hábitos e ideias que engendra”, destaca-se a comparação com aquilo que Sarmiento entende pelo “mundo árabe e asiático”, atrasado, violento, supersticioso. Isso funcionará quase como um motivo recorrente ao longo do livro porque lhe serve para definir o que seja o mundo bárbaro (comparado também ao mundo tártaro). Ora os luares na planície extensa do pampa argentino se lhe afiguram como um espetáculo com “certa tintura asiática” (p. 77), ora “o caudilho argentino é um Maomé” (p. 133), e assim por diante. Francisco Foot Hardman, no posfácio à edição que aqui resenhamos, aponta para as relações intertextuais mais profundas desses quatro primeiros capítulos com a obra explicitamente citada por Sarmiento, As Ruínas, ou meditações sobre as revoluções dos impérios (1721), do conde Volney. Muitas das alusões ao Oriente no deserto do pampa, a caracterização dos seus tipos, além da cena de abertura da Introdução, em que Sarmiento invoca a sombra de Facundo Quiroga, seriam empréstimos e colagens de Volney. Isso vem reafirmar a atitude geral do narrador em Sarmiento, leitor compulsivo, autodidata genial que aproveita materiais de fontes bibliográficas e testemunhais diversas para compor seus panoramas, cenas e tipos. De fato, e isto causa verdadeiro espanto, Sarmiento nunca tinha estado no pampa quando realizou essas descrições antológicas. Valeu-se de narrações de vaqueiros e de descrições feitas por combatentes da guerra civil. Ele só veio conhecer o espaço tão perfeitamente descrito sete anos depois, em 1852, redigindo boletins para o “Exército Grande” de Urquiza que derrubaria finalmente a ditadura de Rosas.

Com relação ao Oriente, seu conhecimento deve ter sido fruto de tudo que ele apanhava, no ar de seu tempo, da visão romântica e exótica, até as leituras explicitamente declaradas de Volney. A questão é que para ele, sem ter ainda estado no pampa e sem nunca ter ido ao Oriente, como afirma categoricamente e sem deixar que o leitor possa ter tempo de parar para duvidar, “há algo nas soledades argentinas que traz à memória as soledades asiáticas […]” (p. 77). Por outras palavras, para os propósitos de sua tese, é importante inventar esse mundo de barbárie (sedutor e abominável ao mesmo tempo) lançando mão de tudo que estiver disponível e, assim, poder construir a oposição com o mundo civilizado da cidade, de modos elegantes “à europeia”, instruído e trabalhador, que ele propõe para o futuro da pátria.

O determinismo oriundo da leitura de A democracia na América de Tocqueville (mais uma das referências citadas explicitamente por Sarmiento), entre outros, pairava sobre as concepções sarmientinas da formação do caráter dos povos. Somente por meio do contato direto com as ideias e a cultura europeias inculcadas nas escolas primárias é que o povo argentino poderia superar sua condição atávica de atraso que lhe chegava por duas vias: a indígena bárbara e a espanhola retrógrada (e, portanto, também bárbara).

Ao longo desses quatro capítulos iniciais aparecem alguns dos mitos que marcam de forma profunda e indelével a literatura argentina: a violência e galhardia gauchescas e a ociosidade anticapitalista do mundo da campanha, entre outros. Como não pensar em Borges quando lemos trechos como o seguinte:

[…] é preciso ver essas caras cobertas de barba, esses semblantes graves e sérios, como os dos árabes asiáticos, para julgar o compassivo desdém que lhes inspira a visão do homem sedentário das cidades, que pode ter lido muitos livros, mas que não sabe aterrorizar um touro bravio e darlhe morte; que não saberá proverse de cavalo em campo aberto, a pé e sem auxílio de ninguém; que nunca deteve um tigre, recebendoo com um punhal na mão e o poncho envolvido na outra para lhe meter na boca enquanto lhe traspassa o coração e o deixa estendido a seus pés (p. 92).

Também exercita Sarmiento seus dotes de crítico literário, incursionando na interface da ficção com o ensaio: analisa O último dos moicanos de Fenimore Cooper, aproximando-o de A cativa de Echeverría, dois antecedentes na ficcionalização do binômio civilização/barbárie. Arrola poemas de poetas cultos e o cancioneiro popular. Seu narrador está a esta altura, juntamente com o seu leitor, embevecido pelo encanto deste mito da vida do gaúcho, bárbara e desprezível – que ele retrata, lembra, inventa – repleta de força vital e literária.

Em “Originalidade e caracteres argentinos” e “Associação: a pulperia”, provavelmente as passagens mais romanescas do livro, elaboram-se os tipos e os temas gauchescos que se constituirão em mitos: o “rastreador”, o “baqueano”, o “gaucho mau”, o “cantor”, a faca e o cavalo. O narrador oscila, com a ambiguidade sedutora própria de todo grande narrador, entre a admiração e a indignação diante desse mundo, segundo ele “a cavalo” entre o século XII e o século XIX. O mistério do poder e da força que esses seres bárbaros possuem contradiz, o tempo todo, a proposta de crítica. O narrador cai na cilada do fascínio do enigma cifrado nesses gaúchos. São eles, seres que conhecem, que possuem um saber da realidade ao seu redor, o que os torna perfeitamente pertinentes dentro do contexto em que são concebidos: O rastreador, uma espécie de farejador de rastos e sinais, pela dignidade e o respeito que provoca a seu redor; o baqueano, pelos seus conhecimentos de topografia indispensáveis em qualquer façanha militar; o gaúcho mau, “sem que esse epíteto o desfavoreça de todo”, cujo mistério “voa por toda a vasta campanha”; e o cantor, que de certa forma, é uma soma dos demais e o poeta que os canta. Campo e cidade entram aqui num confronto complicado porque, para Sarmiento, a concepção de progresso (para ele a passagem do campo à cidade) passa fundamentalmente pela troca de hábitos culturais, sem que a base econômica da defasagem esteja colocada. Daí o andamento ambíguo, contraditório da escrita nessas passagens. Martín Fierro viria, décadas mais tarde, se erguer contra todo o preconceito com que Sarmiento imaginou esta tipologia popular, embora, lendo a contrapelo o poema de José Hernández, se revelem todos os débitos que ele tem com a sua matriz.

Outra das contradições interessantes nestes primeiros quatro capítulos é a concepção ambivalente que se tem da Espanha. Ora é a “renegada da Europa, posta entre o Mediterrâneo e o oceano, entre a idade Média e o século XIX”, cujo problema poderia ser compreendido por meio do “minucioso exame da Espanha americana, assim como as ideias e a moralidade dos pais podem ser rastreadas por meio da educação e dos hábitos dos filhos” (p. 53), Espanha essa que mais adiante é definida como a face europeia e culta da República argentina, em oposição à “bárbara, americana, quase indígena”, na hora de sua independência, em 1810 (p. 135). Essa “maleabilidade” dos conceitos utilizados pelo narrador neste livro fantástico repete-se em mais de uma oportunidade e pauta um estilo que vem a ser, por isso mesmo e antes de tudo, uma obra de ficção cujo protagonista principal não será nem Facundo nem Rosas, mas o próprio Sarmiento. O narrador é uma das caras deste personagem que avança no seu relato, refletindo sobre o próprio fazer a cada passo: “Dou tanta importância a esses pormenores porque eles servirão para explicar […]” (p. 134) ou mais à frente: “Precisei repassar todo o caminho até aqui percorrido a fim de chegar ao ponto no qual nosso drama começa” (p. 137), entre outros muitos exemplos ao longo da narrativa. Dessa forma nos envolve, sentimo-nos incorporados como escutas no processo desse “Eu” poderoso e envolvente que é o personagem-narrador10.

Os nove capítulos seguintes são dedicados à figura de Facundo, desde o nascimento até sua morte, assassinado a mando de Rosas, em Barranca Yaco. Fugindo da forma tradicional da biografia (proeza inusitada se lembrarmos, sobretudo, que Sarmiento escreve na primeira metade do século XIX), o narrador começa este esboço biográfico do caudilho e líder montonero11 narrando uma cena digna do melhor filme de faroeste12, na qual Facundo Quiroga se defronta com uma onça feroz. A ideia explicitada por Sarmiento é que as anedotas do personagem o revelam por inteiro. Essa é também uma teoria da composição que Borges desenvolveria depois. Toda a longa sequência do esboço da figura de Facundo é prova cabal da mão de mestre. A descrição física atravessada por digressões e conclusões deterministas e por comparações exóticas confirma o aspecto demoníaco da personalidade do feroz caudilho; a forma como o biógrafo continua fugindo do esquema tradicional de chave hegeliana leva-o a entremear os dados da vida do montonero com uma análise aguda da situação política de cada uma das províncias argentinas e de cada capital após a independência. Seu exercício é uma tentativa de compreensão do quadro geral que ali estava posto entre as províncias aliadas a Buenos Aires e as regiões em litígio, e dentro desse quadro (com direito a esquemas gráficos), ele irá acompanhar o desenvolvimento da “carreira” de batalhas e enfrentamentos de Facundo. A estratégia compositiva geral do livro repete-se aqui em cada caso particular, ou seja, o narrador leva seu leitor a sobrevoar pela geografia de cada localidade para ir adentrando em seus meandros e intrigas palacianas. De certa forma, sua tese, que concebe o campo e a cidade como compartimentos estanques, como dois polos antagônicos e em pugna, se desmancha pela própria mão de sua narrativa, que mostra as guerras intestinas que unitários e federalistas irão travar dentro e fora das cidades.

Os episódios mais macabros e cruéis das andanças de Facundo não serão poupados, mas pairará sempre sobre eles um tom de admiração diante de tamanha altivez e coragem. A cena de sua morte será descrita em minuciosos detalhes, enaltecendo-se essa coragem. Borges fará dela o seu poema “El general Quiroga va en coche al muere”13. Sarmiento também terminará seduzido pelo seu herói, “um homem superior […] de reputação misteriosa”, apesar do propósito central de demonstrar o seu caráter bárbaro e desgovernado.

Cabe destacar ainda nesta segunda parte a deliciosa e desvairada passagem em que Sarmiento se espraia sobre a importância das cores e do vestuário. Por mais descabido que possa parecer para o leitor de hoje, esses dois elementos passam a ser também mais uma arma com a qual Sarmiento arremete contra a barbárie e contra Rosas. “Sabeis o que é o tom colorado? Eu tampouco o sei; mas vou juntar algumas reminiscências”, diz ele. A cor vermelha, o colorado, símbolo dos rosistas, passará então a ser demonizada à custa de um fantástico elenco de exemplos oriundos dos mais diversos contextos em que o rubro se ligaria ao crime, aos selvagens, à barbárie, ao absolutismo europeu etc. Sua obsessão o leva até a improvável constatação de que nas bandeiras dos países europeus cultos jamais predomina o colorado, enquanto Argel, Tunis, Mongol, Turquia, Marrocos, Japão, Sião etc. fazem flamejar a cor do mal. Contra essa cor maligna, resplandece “o azul-celeste e o branco; o céu transparente de um dia sereno e a luz nítida do disco do sol: a paz e a justiça para todos” (p. 229). Já o vestuário, sua mobilidade, a moda, o uso do fraque, são privilégios de uma sociedade culta e civilizada, ao passo que “na Ásia, onde se vive sob governos como o de Rosas, desde Abraão o homem traja vestuário talar” (p. 232). Mais adiante, nos capítulos finais, denuncia a perseguição de Rosas ao fraque e “a todas as instituições que nos esforçamos por toda parte para copiar da Europa” (p. 396) e a substituição que o ditador impõe por pantalonas largas e soltas e todas as formas de trajes nacionais. A passagem da barbárie para a civilização é, de fato, cultural e comportamental na visão de Sarmiento, que chega até afirmar que “o elemento principal de ordem e moralização com que a República Argentina hoje conta é a imigração europeia” (p. 434).

Uma vez morto Facundo, resta um país unido em torno do ditador que ele concebe como o espelho de todas as características negativas do caudilho, esboçadas nos capítulos anteriores. O ataque torna-se mais direto nos últimos dois capítulos que são antecedidos por justificativas do narrador que intui que sua história deveria acabar onde acaba a vida de Facundo. Os dois capítulos finais precisam ser então justificados pelo narrador-personagem que, evidentemente, não consegue se deter sem antes arremeter contra quem na verdade havia precipitado a escrita do livro14. Ele explica então:”Como sua morte [a de Facundo] não põe fim à série de fatos que me propus coordenar, e para não deixá-la truncada e incompleta, preciso continuar um pouco mais adiante, no caminho que sigo […]” (p. 360), e antes do último capítulo, declara admitir que apesar de ter concluído seu ensaio sobre a vida do caudilho, precisa agora apreciar suas conseqüências e resultados “ora, favoráveis, ora adversos” (p. 398). Nessa última parte, portanto, além de desprestigiar o tirano, o narrador se lançará na proposta de um futuro programa de reestruturação nacional para quando o ditador for derrocado.

Este livro, que é muitos livros ao mesmo tempo, dá-nos a sensação de um mergulho profundo na mentalidade do século XIX que sentimos gravitar na raiz da nossa mentalidade em vários sentidos. Como afirma Foot Hardman nas palavras do posfácio, muitos dos processos aludidos por Sarmiento no seu Facundo têm se feito presentes na historia da América Latina contemporânea, ao longo das muitas décadas que nos separam das dele. Assim como encontramos também em escritores como Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia, César Aira, Juan José Saer e Andrés Rivera (para citar apenas alguns) a reelaboração de seus personagens gaúchos, caudilhos, déspotas, intelectuais e escritores.

Para terminar estas notas, é preciso dizer que com a edição brasileira que ora temos em mãos estamos diante de um trabalho de tradução da mais alta qualidade que deve ser elogiado pela escolha do respeito à forma culta utilizada por Sarmiento neste livro, sem por isso ter se tornado esforço árduo para o leitor, muito pelo contrário. É interessante consignar a este respeito, que em carta dirigida por Sarmiento a Matías Calandrelli (autor de um dicionário etimológico da língua castelhana), em 1881, ele ratifica sua utilização de locuções antiquadas e castiças e invoca como razão principal o fato de ele ter sido criado, sem estudos regulares, em uma região afastada como era a província de San Juan, recebendo assim a língua dos conquistadores conservada sem alterações sensíveis. Mais uma contradição sarmientina, se pensarmos em seus abertos ataques às posturas conservadoras de Andrés Bello – travados no Chile por aqueles anos – com relação à grafia e à pronúncia da língua espanhola na América.

O critério do tradutor de conservar no original certas locuções platinas com o apoio de notas elucidativas é também muito feliz, já que permite ao leitor brasileiro adentrar de modo mais contundente o universo do pampa ali retratado. Também é necessário ressaltar que as notas que acompanham a leitura do texto refletem um esforço sério e exaustivo de pesquisa em fontes diversas e edições anotadas que resulta hoje indispensável para a completa compreensão do seu conteúdo histórico e contingente. A edição reproduz também um mapa de 1930 que permite acompanhar o traçado dos múltiplos caminhos percorridos pela trama através da geografia argentina. Só ficaria a sugestão de incluir numa próxima edição um subtítulo diferente para cada um dos quatro capítulos que levam aqui somente o nome de “Guerra Social”, já que cada um deles focaliza conflitos em lugares específicos: La Tablada, Oncativo, Chacón e Ciudadela, respectivamente.

Notas

1 Um “Eu” megalomaníaco e delirante que valeu a Sarmiento o apelido de “Dom Eu”.
2 Em 1840, Sarmiento tinha sido deportado para o Chile pelo então governador de San Juan e partidário de Rosas, Nazario Benavides.
3 PIGLIA fez do assunto matéria literária do seu primeiro romance, Respiração artificial (1980), no qual os personagens Renzi e Marconi discutem longamente sobre a citação apócrifa que abre Facundo.
4 Esta carta encontra-se no “Apêndice” da edição aqui resenhada.
5 PROUST, Marcel. Sobre a leitura [1905]. Trad. Carlos Vogt. Campinas, SP: Pontes, 1989. [Links] 6 LAS CASAS, Bartolomé de. Brevíssima relação da destruição das Indias Ocidentais [1552]. Trad. Heraldo Barbuy. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 1984.[Links] [7] Saldías, Adolfo. Historia de la confederación [1911]. Buenos Aires: Editora Universitaria, 1973, p. 193. Tradução livre. [Links] 8 Há edições do Facundo que de fato dividem o livro em três partes, como por exemplo, a edição espanhola organizada para a Editora Nacional de Madri, em 1975, por Luis Ortega Galindo.
9 PIGLIA o compara a Flaubert, no Prólogo à edição aqui resenhada (p. 38).
10 Ricardo Piglia explora de maneira engenhosa e fértil esse tema no Prólogo da edição aqui resenhada.
11 Montoneras eram unidades militares de extração rural, lideradas por caudilhos regionais que lutavam contra as milícias governamentais.
12 As ligações com o gênero norte-americano são evidentes na obra em mais de uma ocasião.
13 BORGES, Jorge Luis. Luna de enfrente [1925]. Em português em: Primeira poesia.Texto bilíngue. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras. 2007, pp. 112-113. [Links] 14 Rosas havia enviado uma comissão ao Chile, solicitando a extradição de Sarmiento para seu julgamento na Argentina. O presidente Montt denegou o pedido.

Laura Janina Hosiasson – Professora na área de Literatura Hispano-americana da Universidade de São Paulo.

Acessar publicação original

A invenção da cultura – WAGNER (NE-C)

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza; Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Resenha de: GOLDMAN, Marcio. O fim da antropologia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011

Há três modos de abordar A invenção da cultura: enfatizar a originalidade quase absoluta do livro, seu caráter intempestivo; inventariar suas dívidas para com os autores a ele contemporâneos ou para com aqueles de um passado recente ou remoto; tentar, enfim, um equilíbrio judicioso entre a primeira e a segunda opções. Por diversas razões escolhi deliberadamente a primeira alternativa.

Deste ponto de vista, poderíamos observar inicialmente que a primeira edição de A invenção da cultura, em 1975, é quase simultânea a de dois outros livros de antropólogos norte-americanos que marcaram a antropologia contemporânea: A interpretação das culturas, de Clifford Geertz, e Cultura e razão prática, de Marshall Sahlins – publicados, respectivamente, em 1973 e 1976. O destino desses três livros, contudo, continua sendo muito diferente. Afinal, os dois últimos conheceram uma difusão e um sucesso que o primeiro mal começa a experimentar e que dificilmente terá em grau comparável. No Brasil, por exemplo, o livro de Geertz foi traduzido, ainda que parcialmente, em 1978, e o de Sahlins em 19791. E até hoje é raro encontrar um programa de curso de teoria antropológica que não os inclua na bibliografia.

A invenção da cultura, por outro lado, teve que esperar 35 anos para receber sua tradução, em ótima iniciativa da editora Cosac Naify e belo trabalho de tradução de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. Com efeito, é quase inevitável especular sobre qual teria sido o destino da antropologia brasileira se o livro de Wagner tivesse sido traduzido ainda na década de 1970 e os outros dois não. Talvez não estivéssemos ensinando uma antropologia tão afastada do que efetivamente se faz na disciplina hoje em dia; talvez tivéssemos resistido melhor ao imperialismo das análises construcionistas ou desconstrucionistas que apelam para o eterno poder e as inevitáveis manipulações ocultas atrás de qualquer situação; talvez nada tivesse acontecido… De toda forma, o que não é fácil imaginar é a tradução dos livros de Geertz e Sahlins 35 anos depois de terem sido originalmente publicados.

A “mensagem” desses livros parece tão adaptada ao momento em que foram escritos que é difícil concebê-los em outro contexto qualquer. Afinal, nos dois casos se tratava, em breves palavras, de salvar o culturalismo daquilo que sempre foi o que poderíamos chamar seu melhor inimigo, a saber, o reducionismo naturalista. Ou seja, aquilo sem o que a antropologia cultural simplesmente não pode funcionar, na medida em que lhe faltaria esse seu “outro”, aquele que define, equivocadamente sem dúvida, o que a cultura elabora, interpreta, simboliza ou transcende – a natureza.

Observemos também, ainda que de passagem, que esse naturalismo se apresentava, tanto a Geertz como a Sahlins, sob uma dupla forma. De um lado, as antropologias ditas ecológicas ou materialistas, que ambos simplesmente recusam; de outro, uma versão muito mais complicada, sofisticada e, talvez, inesperada, o estruturalismo levistraussiano. Afinal, apenas dois anos antes da publicação do livro de Geertz, Lévi-Strauss havia concluído sua mitológica tetralogia – em que a demonstração da incrível sofisticação de que era capaz o pensamento indígena parecia anular qualquer possibilidade de redução – com um livro significativamente intitulado O homem nu, que conclui com a peremptória afirmativa de que, no final das contas, tudo não passa do produto da atividade do cérebro humano, ele mesmo produto de um complexo processo de evolução natural: higher naturalism2, como definiu Sahlins; hypermodern intellectualism, nas palavras de Geertz3. Mas, se Geertz parece simplesmente recusar a alternativa levistraussiana buscando refúgio numa hermenêutica que invariavelmente funciona como saída sofisticada para os que não gostam da noção de estrutura, a reação de Sahlins é diferente. Oriundo, ele próprio, de uma tradição antropológica materialista e neoevolucionista, um estágio em Paris o fez imaginar a possibilidade de, por assim dizer, embutir o estruturalismo no culturalismo, fazendo das “estruturas da mente” os “instrumentos da cultura”, não sua “condição”4, e da própria estrutura apenas uma parte da cultura e da história.

O livro de Wagner segue um caminho bem diferente, seja em relação ao interpretativismo geertziano, seja em face do culturalismo estruturalizado de Sahlins. Tão diferente que podemos ter hoje a sensação de que não são apenas um ou dois anos para mais ou para menos que separam A invenção da cultura desses dois outros livros, mas algo como meio século! De fato, se A interpretação das culturas e Cultura e razão prática soam hoje como anúncio do fim (no duplo sentido de acabamento e de término) de uma antropologia fin de siècle (século XX), A Invenção da cultura parece anunciar o início de outra coisa, que poderíamos imaginar como uma das possibilidades abertas para a antropologia do século XXI.

A esse respeito, talvez valha a pena observar que os leitmotifs centrais das obras de Geertz e Sahlins – a interpretação e a simbolização, respectivamente – não deixam de ser evocados por Wagner, ainda que para preparar outras reflexões. Assim, desde o início do livro, a “interpretação” aparece na forma da “moderna cultura interpretativa americana” (p. 10), tema que será desenvolvido no item “A magia da propaganda” (pp. 107-19) do capítulo 3 de modo evidentemente bem distinto daquele de Geertz. Pois aquilo que este trata como um dispositivo metodológico que apenas prolonga e torna mais sofisticado um procedimento inerente a qualquer cultura humana (a “interpretação”, justamente) será analisado por Wagner como uma singularidade de uma cultura particular, a “norte-americana”. Em termos mais precisos, pode bem ser que a interpretação seja um modo universal de lidar com o mundo e com a sociedade, mas o problema é que essa generalidade não nos diz nada sobre seu funcionamento em situações concretas e específicas. Isso significa, claro, que ela pode perfeitamente operar de acordo com a mecânica básica dos dispositivos chamados etnocêntricos: implementar como universal aquilo que é uma característica particular da cultura do próprio antropólogo. Neste caso, como insiste Wagner, tentando tornar cada vez mais transparente o caráter convencional da cultura em que vivemos. Ou, o que dá no mesmo, fomentando o desejo de nos tornarmos autoconscientes daquilo que, não obstante, sustentamos que nos determina. Na antropologia, sabemos bem onde tudo isso foi parar, na nossa versão particular do “pós-modernismo”, e não é casual que tenham sido alunos ou discípulos infiéis de Geertz os que lançaram a moda entre nós5.

Antes de nos determos um pouco no chamado pós-modernismo antropológico, contudo, observemos que também a oposição entre “razão prática” e “razão cultural”, que estrutura o livro de Sahlins, é de algum modo retomada em A invenção da cultura. No entanto, ao contrário do estilo épico de Sahlins, que opõe as duas razões quase como o diabo ao bom deus, Wagner sublinha o fato de que as duas variedades de antropologia derivadas dessa oposição compartilham um mesmo solo ou, ao menos, uma necessidade comum. Pois se as antropologias naturalistas ou naturalizantes (analisadas no item “Controlando a cultura”, pp. 214-20, cap. 6) atribuem uma ordem tão determinada e tão determinante à natureza, o efeito (a “contra-invenção”) dessa atribuição é estabelecer um rigoroso controle sobre a cultura, eliminando tudo o que esta pode ter de criativo e indeterminado. Por outro lado (como exposto no item “Controlando a natureza”, pp. 221-29, cap. 6), mas de modo simétrico, as antropologias culturalistas (e nada impede que as duas variedades possam coexistir em doses variáveis) atribuirão todo ou quase todo poder de determinação à cultura, de tal forma que o controle incidirá agora do lado da natureza, cujo poder e indeterminação poderão aparecer doravante como meros limites da própria cultura.

Nem interpretação, nem simbolização, o conceito central do livro de Wagner, claro, é o de invenção. Mas neste ponto é preciso ter cautela. Como observa Martin Holbraad, na ótima “orelha” escrita para a edição brasileira, o termo “invenção” tem o mau hábito de despertar uma série de associações de ideias, todas igualmente inadequadas para a compreensão correta do sentido do conceito wagneriano. Grosso modo, podemos dizer que, ao ouvir a palavra “invenção”, somos quase invariável e inevitavelmente conduzidos a noções como a de “artifício”, no mau sentido da palavra, ou seja, como aquilo que é “artificial” e se opõe ao “real”. Na definição do dicionário Houaiss, “invenção” é “coisa imaginada que se dá como verdadeira; invencionice, fantasia”; “coisa imaginada de modo astucioso, frequentemente com objetivos escusos”; ou “o que não pertence ao mundo real; imaginação, fábula, ficção, engano”. Claro que também é “imaginação produtiva ou criadora, capacidade criativa; inventividade, inventiva”; e “faculdade de criar, de conceber algo novo ou de pôr em prática, de executar uma ideia, uma concepção; criação”.

Por razões que próprio Wagner esclarece, os antropólogos parecem preferir as definições negativas às positivas. Assim, quando se fala na “invenção das tradições”, imagina-se imediatamente que estas são “falsas”, no sentido de não corresponderem à história que contam de si mesmas, e que certamente foram engendradas por alguém com objetivos pouco confessáveis. Talvez seja por isso que no curto post scriptum que escreveu para a edição brasileira, Wagner observe, de forma curiosa, que “em certo sentido, a invenção não é absolutamente um processo inventivo, mas um processo de obviação” (p. 240). Pois se em 1975 ou 1981 não era possível imaginar a direção que a compreensão da noção de invenção tomaria, em 2010 sabemos exatamente como as coisas se passaram. E isso ainda que A invenção da cultura chame a atenção para o fato de que as “tradições são tão dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes” (p. 94). O que significa que “invenção” e “inovação” não são a mesma coisa (p. 77) que toda tradição é inventada e que, em uma expressão como “invenção das tradições”, o primeiro termo (processo de invenção) deveria ser muito mais importante do que o segundo (o que acabou sendo inventado).

Adiante veremos como liberar a noção de invenção de seu estatuto crítico. Mas, antes, se vale a pena distinguir com clareza o pensamento de Roy Wagner daquele dos mais importantes antropólogos norte-americanos mais ou menos a ele contemporâneos6, isso também é verdade em relação àquilo que se seguiu à publicação de A invenção da cultura na antropologia norte-americana. Como se sabe, esta tem a fama de ter passado por uma profunda revolução a partir de meados da década de 1980, quando a publicação de Writing culture anunciou o advento do pós-modernismo na antropologia. Salvo engano, A invenção da cultura é citado apenas uma vez nesse livro, logo na “Introdução”, de James Clifford7. E o é justamente, e apenas, para opor a noção de “invenção” à de “representação” – ou seja, para ilustrar o ponto central de Writing culture, o de que as etnografias que os antropólogos escrevem são obras de ficção, não representações da realidade. É o sentido crítico da noção de invenção que opera, só que agora dotado de uma aparente positividade que não possuía.

De todo modo, não se trata aqui de tentar ressuscitar os mortos, nem o pós-modernismo antropológico, nem as críticas tradicionais que a ele foram dirigidas. Um quarto de século depois, creio que o melhor que se pode dizer dos chamados pós-modernos é que foram capazes de levantar algumas questões realmente importantes, ainda que não tenham oferecido respostas interessantes para nenhuma delas! Isso provavelmente porque seus objetivos nunca foram os de responder ao que quer que fosse, mas, como se dizia, de adotar uma postura “irônica”, quer dizer, a daqueles que ao menos sabem que nada sabem ou podem saber com certeza. Postura responsável, talvez, pela incapacidade última de transformar a “crítica da representação” e o anúncio do caráter inevitavelmente ficcional da etnografia em um novo começo para a antropologia. Afinal, como escreveu o autor nigeriano Chinua Achebe, embora toda “ficção seja indubitavelmente fictícia, ela também pode ser verdadeira ou falsa, não com a verdade ou a falsidade de um noticiário, mas em relação a sua imparcialidade, intenção, integridade”8.

Esse novo começo exigia reunir de forma mais consistente a crítica da representação como forma de conhecimento e forma de poder. Ou seja, exigia renunciar à representação não porque é falsa ou ficcional, nem mesmo porque é sempre uma relação de poder que concede a alguém o direito de representar outrem, mas sim porque a representação faz parte do conjunto de prolongamentos das relações de poder que o Ocidente capitalista estabeleceu dentro do texto antropológico com as demais sociedades do planeta9. É justamente o reconhecimento do caráter imanente das relações estabelecidas pelo poder com o texto antropológico que teria podido abrir linhas de fuga para o antropólogo escritor, uma vez que ele estaria às voltas com as relações de poder no espaço parcialmente sob seu controle, o próprio texto antropológico. Nesse sentido, teria sido possível levantar uma questão ao mesmo tempo epistemológica, ética e política: como proceder de modo a não reproduzir, no plano da produção de conhecimento antropológico, as relações de dominação a que os grupos com quem os antropólogos trabalham se acham submetidos?

Para isso, não era necessário ter ido muito longe. Bastaria ter conectado a crítica da antropologia enquanto representação com aquela, pouco mais antiga, que criticava o saber antropológico expondo suas relações de dependência para com o empreendimento colonialista. Não no sentido megalomaníaco que faria da antropologia um saber fundamental para o colonialismo, mas, como sustentou Talal Asad10, no sentido em que o colonialismo é importante demais para a antropologia, obrigando-a, consequentemente, a buscar romper essa dependência política, ética e epistemológica:

A antropologia histórica espelhava a ideologia dos impérios coloniais e supraétnicos tardios da GrãBretanha, da França, de países da Europa Central e outros (esses impérios quase que literalmente “fizeram” a evolução e a difusão Culturais como política pública). A antropologia sistêmica refletia a urgência racional da mobilização de guerra e o Estadonação econômico (p. 231, grifos meus).

Mas se a atenção a esta relação entre escolas e conceitos antropológicos com os empreendimentos colonialistas e imperialistas (estabelecida aqui de uma forma que poderíamos qualificar de imanente ou intrínseca) demonstra, creio, o interesse de Wagner na questão levantada por Asad, o trecho que se segue mostra que a linha de fuga por ele traçada segue uma trajetória bem diferente daquela esboçada na coletânea organizada pelo segundo11:

A curiosa “evolução” através da qual cada um dos sucessivos episódios paradigmáticos conduziu a si mesmo no sentido da obviação e contradição de seus pressupostos originais fornece a evidência mais convincente da natureza da antropologia como disciplina acadêmica. Tratase de uma ação de contenção contra a relatividade, uma espécie de fixativo teórico que erige insight introspectivo em teoria culturalmente corroborativa (pp. 231232).

Wagner aposta, pois, na radicalização do poder subversivo da prática etnográfica da antropologia – e não na análise das próprias relações entre a antropologia e o colonialismo ou o imperialismo – como meio capaz de romper com a dependência da primeira em face dos segundos.

Nesse sentido, o problema central do pós-modernismo antropológico, como Wagner mostrou em uma resenha pouco conhecida que escreveu sobre Writing culture12, é a pretensão de “fazer com a etnografia o que uma antropologia mais segura de si e menos cínica (a ‘Grande Teoria’, como se diz) fez com a teoria – desenvolver poderosos e decisivos cânones de compreensão”. Ou seja, introjetar na própria etnografia os mecanismos de controle em geral empregados pela teoria. Assim, se o antropólogo tradicional opera como uma espécie de crítico do fato – no sentido do crítico de arte que tenta mostrar que, por maior que seja a novidade aparente do que está sendo apresentado, “tudo já foi dito antes” (p. 235) e na verdade não está acontecendo nada -, o antropólogo pós-moderno pode ser entendido como o crítico de um “teatro do fato”, utilizado a “autoridade” (“a peça dentro da peça”, como a define Wagner) como meio de controle adicional. Nem as ideias, nem os fatos devem ter o poder de espantar ninguém!

Para traçar essa linha de fuga, Wagner foi obrigado, em primeiro lugar, a redefinir, ou a redirecionar, tanto a noção de invenção como a de cultura. É por isso que cada palavra do título deste livro – incluindo o artigo e a preposição – são fundamentais e devem ser bem compreendidas. Para começar, o que significa “invenção” em A invenção da cultura?

No início de O que é a filosofia, Deleuze e Guattari13, após definirem provisoriamente essa atividade como “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”, e de argumentarem que os conceitos, na verdade, “não são necessariamente formas, achados ou produtos”, concluem que “a filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos”. Eu arriscaria dizer que no livro de Wagner a noção de invenção deve ser entendida rigorosamente no sentido estabelecido por Deleuze e Guattari para a noção de criação14.

Isso significa que a “invenção” de Wagner não consiste nem na imposição de uma forma ativa externa a uma matéria inerte, nem da descoberta de uma pura novidade, nem na fabricação de um produto final a partir de uma matéria-prima qualquer. Isso a afasta dos modelos mais recorrentes utilizados no Ocidente para pensar o ato de criação: o modelo hilemórfico grego15, o judaico-cristão da criação ex nihilo, o modelo capitalista de produção e da propriedade16. A invenção wagneriana é, antes, da ordem da metamorfose contínua, como acontece na imensa maioria das cosmogonias estudadas pelos antropólogos, em que as forças, o mundo e os seres são sempre criados e recriados a partir de algo preexistente. Ponto que acarreta uma série de consequências.

A primeira é o fato de que esse conceito de invenção-criação tem mais a ver com arte do que com ciência e técnicas. Não é por acaso que a pintura de Bruegel, Rembrandt, Rubens e Vermeer, a poesia de Morgenstern e Rilke, a música de Beethoven, Haydn, Mozart e o jazz aparecem ao longo do livro como meios de explicação da atividade do antropólogo. Pois esta atividade é definida justamente em termos de sua criatividade, termo que gera o título do segundo capítulo (“A cultura como criatividade”) e que aparece, direta ou correlatamente, mais de cem vezes ao longo do texto. A particularidade da antropologia é que a criatividade do antropólogo depende de outra (e de outrem): aquela das pessoas com quem escolheu conviver durante um período de sua vida. Aqui tocamos num ponto fundamental, pois o reconhecimento da criatividade daqueles que “estudam” é, para Wagner, condição de possibilidade da prática antropológica. Mais do que isso, o antropólogo deve estar preparado e disposto a assumir duas premissas: reconhecer naqueles que estuda o mesmo nível de criatividade que crê possuir; não assimilar a forma, ou o “estilo”, de criatividade que encontra no campo com aquele com o qual está acostumado e que ele próprio pratica.

Wagner é, assim, o primeiro a propor um verdadeiro construtivismo para a antropologia. Ou, pelo menos, a elaborar o acabamento daquele há muito estabelecido por Malinowski ao anunciar o trabalho de campo como o único procedimento adequado para a antropologia então “moderna”. Foi ainda em 1935 que ele sustentou que esse trabalho de campo seria, sobretudo, uma atividade construtiva ou criativa, uma vez que os fatos etnográficos “não existem”, sendo preciso, portanto, um “método para a descoberta de fatos invisíveis por meio da inferência construtiva”17 – posição que, infelizmente, não parece ter tido muito eco ao longo da história da disciplina.

A esse respeito, mais uma vez, é preciso atenção. O construtivismo wagneriano (e já o malinowskiano) tem pouco ou nada a ver com a ladainha pseudo politizadora do famigerado construcionismo social. Este, como se sabe, dedica-se a afirmar o caráter “socialmente construído” do que quer que seja (das relações de parentesco aos genes e planetas), mas concede um estranho direito de exceção a seus próprios procedimentos, bem como àquilo a que atribui o papel de grande arquiteto, a saber, as relações sociais e políticas que apenas o analista tem a miraculosa capacidade de enxergar. Assim, não pode haver dúvidas de que os agentes sociais passam todo seu tempo construindo, mas, infelizmente, não são capazes de perceber que estão construindo, “naturalizando” e “essencializando”, como se diz, tudo o que pensam encontrar pelo caminho, mas que, na verdade, foram eles mesmos que fizeram. Cabe ao analista, então, “desconstruir” essas ilusões, o que faz com que, estranhamente, construcionismo social e desconstrucionismo queiram dizer exatamente a mesma coisa. Durkheim ao menos sabia o que é essa “sociedade” que tudo cria mas que é, ela própria, incriada: Deus – e nada poderia ser mais diferente da ideia de uma invenção criativa da cultura. É por isso, aliás, que “trabalho de campo é trabalho no campo” (p. 49).

No entanto, há os que pensam que a posição de Wagner coincide com esse fetichismo generalizado do qual apenas o antropólogo está isento, essa espécie de “criacionismo de pobre”, como o definiu Latour18. O problema é que quando se supõe que a cultura a ser estudada pelo antropólogo é “socialmente construída”, não apenas “a invenção da cultura” se torna uma “invencionice” como, por vezes, os próprios nativos passam por ter sido “socialmente construídos” por um antropólogo interesseiro19. Para isso, claro, é preciso imaginar um “nativo-em-si” (por exemplo, os Daribi das Terras Altas da Papua Nova Guiné, que Wagner estudou, ou os Bororo do Brasil Central) absolutamente impenetrável para a nossa compreensão a qual, não obstante, se torna surpreendentemente poderosa e clarividente quando se trata de determinar os verdadeiros motivos e causas sociais e políticas que levaram o antropólogo a “construir” os nativos desta ou daquela forma.

Wagner, no entanto, jamais afirma que o antropólogo inventa a cultura, porque não há nada para ver ou porque é incapaz de compreender o que pensa que vê. O problema é outro, é que há coisas demais para serem vistas, ideias demais para serem compreendidas e muito pouco tempo para fazê-lo. O antropólogo faz o que pode, inventando a cultura para tentar conferir um mínimo de ordem e inteligibilidade lá onde a plenitude da vida as dispensa completamente. Nesse sentido, Wagner é provavelmente o primeiro antropólogo a fazer da vida (e não da evolução, história, função, estrutura, cognição…) o referente último do trabalho antropológico. Além de fundar o construtivismo em antropologia, ele também funda uma espécie de vitalismo antropológico20.

O construtivismo, no entanto, só pode funcionar se for completo e generalizado, e a obrigação do antropólogo é que sua criação faça aparecer a criatividade da qual ela mesma depende (a sua própria) e, principalmente, a das pessoas com quem trabalha. Ele se assemelha, assim, a um desses demiurgos das mitologias que estuda, aqueles que criam um mundo lá onde outro mundo já existia e sempre existiu. Nesse processo, há duas tentações às quais deve resistir: imaginar que está apenas “representando” o que existe em si e por si mesmo; pretender estar criando a partir do nada.

Em ambos os casos a criatividade daqueles que estudamos é recusada. No primeiro – que corresponde, grosso modo, às antropologias que Wagner designa como “diacrônica” ou “histórica” e “sincrônicas” ou “sistêmicas” (p. 230) -, essa recusa se disfarça sob uma aparente afirmação. Afinal, se os antropólogos nada fazem além de representar as outras culturas, apenas as pessoas que aí vivem podem ser as responsáveis por elas. O problema é que essas antropologias só afirmam tal criatividade para negá-la, ao atribuírem papel determinante a forças que as pessoas não conhecem e não controlam: evolução, ordem, função, sentido, inconsciente ou o que quer que seja. No segundo caso que corresponde mais ou menos aos pós-modernismos, construcionismos e desconstrucionismos dos últimos anos -, estaríamos às voltas com uma recusa ainda mais absoluta: a criatividade nativa é vista como uma espécie de quimera à qual simplesmente não podemos ter acesso. Inconscientes num caso, incognoscíveis no outro, o papel dos nativos é servir de modelo para um academicismo21 da representação ou de pretexto para um pessimismo da ficção. Ambos nos livram de todos os riscos, nos deixam intactos e incólumes, mas, ao mesmo tempo, incapazes de sermos afetados, modificados, ou seja, impossibilitados de pensar:

O passo crucial que é simultaneamente ético e teórico consiste em permanecer fiel às implicações de nossa pressuposição da cultura. Se nossa cultura é criativa, então as “culturas” que estudamos, assim como outros casos desse fenômeno, também têm de sêlo. Pois toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, negandolhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós (p. 46).

Se a criatividade é um fenômenos geral, ainda que se manifeste sempre sob determinados estilos, o antropólogo lida com um tipo particular de invenção, a “da cultura”. Em 1975, não seria difícil dizer da cultura o que Descartes dizia do bom senso: que é a coisa mais bem dividida do mundo22. A invenção, por outro lado, parecia privilégio de poucos (nós mesmos, na verdade). Trinta e cinco anos depois, as coisas parecem ter se modificado. A invenção, no mau sentido da palavra, claro, parece estar em toda parte, e a cultura (ou a tradição) só existe porque é uma invenção de nativos e/ou de antropólogos defendendo seus próprios interesses.

De certo modo, Wagner já havia invertido o quadro. É a invenção, no bom sentido de criatividade, que constitui o plano de consistência de todos os humanos (e talvez não só deles); a invenção da cultura, por outro lado, corresponde a um episódio histórico (cultural) muito específico, ocorrido em certo momento da história do mundo ocidental. É nesse sentido que poderíamos dizer que Wagner elabora uma noção de cultura propriamente cultural, ao estabelecer que dela faz parte intrínseca e constitutiva a explicitação de que a noção de cultura é ela mesma um artefato cultural, ou seja, produto de um ponto de vista cultural específico – o nosso.

O ponto fundamental, contudo, é que a origem “ocidental” da noção não é um atestado de impotência ou malignidade, mas apenas o signo de um trabalho a ser continuamente realizado. Assim, que nossa noção de cultura derive da de “cultivo” e que, mais tarde, tenha recebido seu sentido “sala de ópera” (pp. 53-4), só se torna um problema quando interrompemos o processo de derivação ou “metaforização” (p. 54), literalizando um sentido que é sempre local, transitório e instável. Cada um pensa e fala com as palavras e as categorias de que dispõe, e a grande questão é como proceder de modo que elas sejam capazes de dizer mais, ou outra coisa, do que o de costume, mantendo, não obstante, sua inteligibilidade23.

Aqui devemos retroceder um pouco. O brevíssimo quadro da moderna antropologia culturalista norte-americana esboçado no início desta resenha deixou intencionalmente de fora aquele que é certamente a mais importante “influência” sobre Wagner, seu orientador no doutorado David Schneider, a quem A invenção da cultura é dedicado. Ao lado de Geertz e Sahlins, Schneider completa a trinca de autores que de algum modo acabam (no duplo sentido da palavra) o culturalismo antropológico. Ora, o ponto fundamental do principal trabalho de Schneider24– e nisso reside, creio, sua originalidade em relação a todos os demais culturalistas – consiste em sustentar que ainda que seja inevitável investigar outras culturas a partir de categorias da nossa (o parentesco, no caso), isso não pode nos fazer imaginar que nossas categorias sejam universais. Assim, e ao contrário do que muitos imaginam, não creio que o livro de Schneider simplesmente condene o estudo antropológico do parentesco por ser este, afinal, uma “categoria ocidental” (qual não seria?). Trata-se, antes, de utilizar o parentesco de um modo que Wagner designará por “analógico” (ver, por exemplo, pp. 41-45). É nesse sentido que A invenção da cultura pode ser lido como uma extensão da proposta de Schneider: por que nos determos no parentesco uma vez que a própria noção de cultura também é exclusivamente “nossa”?

Mais uma vez, isso não significa condenar a antropologia por ser um empreendimento ocidental. Ela certamente o é, mas a questão é o que se pode fazer a partir dessa constatação. Assim, vimos que a noção de cultura como cultivo foi analogicamente estendida à de cultura “sala de ópera”, o que permite imaginar que a noção antropológica de cultura consiste numa nova extensão analógica:

O uso antropológico de “cultura” constitui uma metaforização ulterior, se não uma democratização, dessa acepção essencialmente elitista e aristocrática. Ele equivale a uma extensão abstrata da noção de domesticação e refinamento humanos do indivíduo para o coletivo, de modo que podemos falar de cultura como controle, refinamento e aperfeiçoamento gerais do homem por ele mesmo, em lugar da conspicuidade de um só homem nesse aspecto (p. 54).

Um dos argumentos centrais subjacentes em A invenção da cultura é que tanto as mudanças históricas (como as que os críticos da antropologia colonial enfatizavam) como as teóricas (de que tanto gostavam os pós-modernos) exigem uma nova extensão do conceito de cultura, extensão que seja capaz de conectá-lo com o de invenção-criação, reconhecendo assim nas “culturas” uma criatividade cuja universalidade, no entanto, não possa apagar as singularidades dos estilos locais.

Esse mecanismo de extensão do significado é o que Wagner denomina metáfora, alegoria ou, mais usualmente, analogia, e corresponde, também, à “diferenciação”. O procedimento analógico deve obedecer a três princípios fundamentais. Primeiro, só pode operar num campo de diferenças, o que significa que, evidentemente, só precisamos de analogias quando nos defrontamos com situações à primeira vista irredutíveis às que nos são habituais – ou seja, analogia não é sinônimo de semelhança. Em segundo lugar, nenhum dos dois termos colocados em relação pela analogia deve estar situado em um plano superior ao outro, como se o primeiro fosse capaz de revelar a verdade oculta do segundo – analogia não significa explicação. Por fim, os dois termos devem ser afetados pelo processo, de tal modo que o conceito ocidental de cultura, por exemplo, tem que ser ao menos ligeiramente subvertido quando serve de analogia para a vida nativa – o que significa que a analogia é da ordem da relação: “a ideia de ‘relação’ é importante aqui pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como ‘análise’ ou ‘exame’, com suas pretensões de objetividade absoluta” (p. 29).

É nesse sentido que a cultura só pode ser inventada em situações de “choque cultural” (p. 34), choque que, paradoxalmente, preexiste à própria cultura; e é por isso, também, que “todo ser humano é um ‘antropólogo’, um inventor de cultura” (p. 76) em situações de ininteligibilidade primeira. Isso significa, ao mesmo tempo – ponto importante a fim de evitar a tradicional húbris antropológica -, que todo antropólogo é apenas um ser humano, operando em condições mais ou menos especiais. Ao contrário da nossa tradicional pretensão, o máximo a que o podemos almejar é viver em dois (ou mais) mundos ou modos de vida diferentes, mas não entre as culturas, como se fôssemos capazes de transcendê-las:

Assim é que gradualmente, no curso do trabalho de campo, ele próprio se torna o elo entre culturas por força de sua vivência em ambas; e é esse “conhecimento” e essa competência que ele mobiliza ao descrever e explicar a cultura estudada. “Cultura”, nesse sentido, traça um sinal de igualdade invisível entre o conhecedor (que vem a conhecer a si próprio) e o conhecido (que constitui uma comunidade de conhecedores) (p. 30).

É por isso, enfim, que o estatuto da noção de cultura ao longo de

A invenção da cultura é muito complexo, uma vez que Wagner parece defini-lo de diferentes modos ou, para ser mais preciso, encará-lo de diferentes ângulos. Ele aparece ora em sentido forte, ora em sentido fraco, o que não significa, de modo algum, que o primeiro seja melhor que o segundo. A “cultura” começa sendo definida como o que todo mundo tem; depois, como o que só nós temos e que os outros só têm porque nós a colocamos lá; mais tarde como aquilo que ninguém tem; e, por fim, como aquilo que todo mundo tem porque a cria em situações relacionais específicas. Nos termos do próprio Wagner, a cultura começa como dada e passa para a ordem do feito – primeiro como falsa invenção e depois, enfim, como invenção-criação.

Passemos, então, ao “da”, que separa “invenção” e “cultura”. Nossos hábitos acadêmicos são tão arraigados que podem nos fazer imaginar que esse partícula poderia significar apenas que é a cultura que é inventada. Se isso fosse verdade, contudo, todo o livro perderia o sentido, pois seu ponto central é justamente mostrar que a invenção da cultura é inseparável daquilo que a cultura inventa. A cultura “inventada” corresponde, basicamente, ao que Wagner denomina “convenção”; a cultura “inventante” ao que ele chama de “diferenciação” – talvez os conceitos centrais do livro.

Convenção e diferenciação constituem, em primeiro lugar, os dois mecanismos básicos da semiótica particular adotada por Wagner. Nesse sentido, ponto crucial, não constituem dois “tipos” de coisas, mas as duas faces da mesma realidade (ver p. 88). Simbolizar é sempre utilizar de forma “diferenciada” símbolos que fazem parte de uma “convenção”, e é apenas o peso respectivo de cada procedimento em cada ato simbólico que varia. É por isso que “a distinção [é] mais complicada do que dicotomias simplistas do tipo ‘progressista-conservador’, apropriadamente parodiadas por Marshall Sahlins na expressão ‘the West and the Rest’” (p. 16).

Por outro lado, quando nós confrontamos nossa própria cultura ou, para ser mais preciso, a “moderna cultura interpretativa norte-americana”, com os Daribi – ou com qualquer conjunto que Wagner designa alternadamente com combinações dos substantivos classes, grupos, povos, sociedades, tradições, e dos adjetivos camponeses, trabalhadoras, étnicas, não racionalistas, religiosos, tribais -,nós temos a sensação que o investimento no convencional e no diferenciante muda de lugar. Assim, tendemos a imaginar que nossas regras são puramente convencionais, aquilo que fazemos e, consequentemente, o domínio que está sob nossa responsabilidade (p. 19) e onde investiremos nossa criatividade. Mas os Daribi e muitos outros parecem imaginar o contrário, a saber, que este reino, para nós convencional e feito, é da ordem do dado. Até aí, convenhamos, não há muita novidade: a imagem de primitivos vivendo sob o império de uma tradição que consideram transcendente é muito antiga. O que faz de Roy Wagner o mais original dos antropólogos desde Lévi-Strauss é ter colocado a questão que faltava: onde, então, esses “primitivos” investem sua criatividade? Num enorme esforço para se singularizar diante de uma convenção dada, é a resposta.

Isso traz enormes consequências. Enquanto o Ocidente foi construindo, ao longo dos séculos, a hipótese (que toma como dado) de uma natureza “lá fora” e, no entanto, controlável (p. 225), os Daribi, os Bororo e outros parecem preferir o “‘mundo como hipótese’, que nunca se submete às exigências rigorosas da ‘prova’ ou legitimação final, um mundo não científico” (p. 171). Mas, de novo, não há necessidade de querer enxergar aqui mais um grande divisor:

O homem é tantas coisas que se fica tentado a apresentálo em trajes particularmente bizarros, só para mostrar o que ele é capaz de fazer […]. E no entanto tudo o que ele é ele também não é, pois sua mais constante natureza não é a de ser, mas a de devir (pp. 2123).

Tudo isso pode parecer meio estranho, mas é, na verdade, bem simples. A “improvisação”, define o Dictionnaire encyclopédique de la musique25, é a “execução musical criada na medida em que é tocada”, ou “a composição ou performance livre inesperada de uma passagem musical, em geral de acordo com certas normas estilísticas mas livre das características prescritivas de um texto musical específico”, como prefere a Britannica. Se nós, “de forma consciente e intencional, ‘fazemos’ a distinção entre o que é inato e o que é artificial ao articular os controles de uma Cultura coletiva, convencional”, “o que dizer daqueles povos que convencionalmente ‘fazem’ o particular e o incidental, cujas vidas parecem ser uma espécie de improvisação contínua?” (pp. 142-3), e onde os controles

[…] não são Cultura; não são pensados para serem “executados” ou seguidos como um “código”, mas para serem usados como a base da improvisação inventiva […]. Os controles são temas para interpretação e variação um pouco ao modo do jazz, que vive da constante improvisação de seu tema (pp. 1445).

A aproximação com a música permite levantar, ainda, três pontos complementares. Primeiro, nem tudo é permitido, e as improvisações têm que ser levadas a sério pelos outros, ou seja, não podem perder suas relações com a convenção. Pois elas também podem se tornar, como exclamou o grande pianista de jazz Thelonius Monk ao interromper uma sessão de improvisação, wrong mistakes (ver p. 139, para os “erros necessários” para a invenção da personalidade). Segundo, o fato de que tanto a noção de estilo como a de interpretação devem ser entendidas, em Wagner, mais no sentido musical do que culturalista ou hermenêutico dos termos. Um bom músico é capaz de tocar em mais de um estilo e de “interpretar” uma obra de diferentes maneiras. A “oposição” entre culturas convencionais e diferenciantes, ou entre os norte-americanos e os daribi, serve apenas para estabilizar provisoriamente a tensão dialética existente em todo processo de simbolização, e só deve ser sustentada enquanto rende alguma coisa. Mas ela também pode ser estabilizada no interior de uma cultura, de um indivíduo ou de um ato simbólico singular se isso for interessante26.

Por fim, é curioso que, em inglês, improvisation também se diga extemporization, que, em português, nos leva a “extemporâneo” e “intempestivo”, quer dizer, a Nietzsche. Não é à toa que as últimas palavras de A invenção a cultura– “demasiado humana” – sejam deste autor, citado apenas mais uma vez no livro (pp. 141). Há alguma coisa no pensamento de Nietzsche sobre a cultura como máquina de repressão da vida, e sobre a criatividade como única forma de escapar disso, que ecoa no livro de Wagner. Claro que este, antropólogo, adverte para o fato de que é a antropologia que pode funcionar como máquina de repressão na medida em que converte a vida em cultura. Se essa conversão é inevitável – uma vez que o antropólogo precisa dela para tornar a vida que escolheu viver entre outras pessoas vivível, e, depois, inteligível -, cabe a ele inventar uma noção de cultura que combata ativamente sua pulsão repressora. Questão que não pode ser resolvida de uma vez por todas e que, por isso, nos obriga a estarmos sempre às voltas com ela. Nesse sentido, o livro poderia se chamar “Diferenciação da convencionalização” – ou vice-versa!

Para terminar com o título, resta o pequeno artigo definido “a” – mas mesmo ele é fundamental. Na sua ausência, o título poderia sugerir uma generalidade do processo de invenção que Wagner pretende a todo custo evitar. O “a” responde justamente pelo caráter abstrato do conceito de invenção da cultura, mas abstrato no sentido preciso de que apenas assinala uma condição que pode ser preenchida de diferentes maneiras, uma vez que cada invenção é sempre efetuada de acordo com um estilo particular:

E porque a percepção e a compreensão dos outros só podem proceder mediante uma espécie de analogia, conhecendoos por meio de uma extensão do familiar, cada estilo de criatividade é também um estilo de entendimento (p. 61).

É nessa chave que deve ser entendido o capital trecho acerca do que Wagner denomina “antropologia reversa” (pp. 67-72), que ele ilustra com o exemplo do culto da carga melanésio. Trata-se, de um lado, de imaginar simetricamente a literalização das “metáforas da civilização industrial moderna do ponto de vista das sociedades tribais” (p. 69); e, de outro, de entender esse “gênero pragmático de antropologia” (p. 71) – uma vez que ele evidentemente não assumirá a forma de uma disciplina acadêmica, constituindo, antes, um análogo desta – no sentido em que se fala de “engenharia reversa”. Ou seja, da desmontagem de uma caixa-preta (no caso, a própria antropologia que praticamos) não apenas no intuito de desvendar seus mecanismos de funcionamento, mas, principalmente, de se tornar capaz de reconstituí-los. Em suma, a antropologia reversa praticada por outras sociedades explicita para nós os mecanismos que empregamos de forma implícita e, às vezes, inconfessável27.

Para concluir, poderíamos dizer que A invenção da cultura segue seus próprios pressupostos em um grau muito superior à maioria das obras. O livro é percorrido por uma série de contrastes dialéticos que o autor tem o cuidado de definir como parte de uma dialética que não almeja qualquer síntese (p. 96): contraste entre concepções de cultura (cap. 2), modos de simbolização (cap. 3), formas de subjetividade (cap. 4), estilos de socialidade (cap. 5), teorias antropológicas (cap. 6), entre outros. A ideia de síntese parece ser uma das grandes ameaças ao pensamento isoladas por Wagner. Afinal, a pretensão às grandes sínteses – ou a denúncia das falsas, tanto faz – é apenas uma “estratégia de ‘proteger

a antropologia de si mesma'” (p. 227), defendendo-a da relatividade que ela mesmo revela quando é capaz de “analisar a motivação humana em um nível radical” (p. 13). O primeiro capítulo do livro elabora justamente essa distância que separa a relatividade ameaçadora que a antropologia revela do “relativismo” que professa, relativismo que é a primeira forma de controle da própria relatividade, uma vez que, como escreveu Roland Barthes, “logo se detém no coração inalterável das coisas: é uma segurança, não uma perturbação”28. Para um espírito mais sisudo, “o fim da antropologia sintética” (p. 229), ou do “sintesismo” (234), com que Wagner encerra o livro, bem poderia ser entendido como o fim da própria antropologia. Mas, como a A invenção da cultura não se cansa de demonstrar, todo fim é a ocasião da invenção de um novo começo. Creio que nisso consiste a aposta de Roy Wagner.

Espero que o Wagner que inventei seja suficientemente flexível para escapar de uma convencionalização demasiado rápida. Porque ninguém precisa se iludir: mesmo autores tão criativos quando ele não deixam de ser incessantemente “contrainventados” na forma convencional de algo como um neo-Durkheim, cujos conceitos e ideias seriam capazes de dar conta do que quer que seja e a quem devemos devoção respeitosa. Antes de “aplicá-lo” ali e acolá, convém meditar sobre a nova forma de conexão entre fatos e teorias que pensamentos como o de Wagner nos convidam a imaginar. Certamente, coisas e ideias não são nem a mesma coisa – nem a mesma ideia. Mas isso não significa que as relações entre elas sejam da ordem da hierarquia vertical, com umas, não importa quais, sendo mais importantes do que as outras. Sua relação, como diria Guattari, é transversal; para um antropólogo, a questão é como traçar transversalmente as relações entre o que aprendeu na academia e aquilo que viu e que seus amigos lhe ensinaram no campo. Só assim, creio, poderemos responder com um “não” definitivo quando nossos amigos levantarem a questão que os daribi propuseram a Wagner: “vocês antropólogos, podem se casar com gente do governo e com missionários?”.

Notas

1 A interpretação das culturas foi traduzido para cerca de vinte línguas; Cultura e razão prática foi traduzido ao menos para o alemão, espanhol, francês, italiano e português. Mas A invenção da cultura é a primeira tradução do livro de Wagner. Além disso, o livro praticamente não foi resenhado ao ser publicado. Duas exceções – cuja incompreensão e má vontade para com o autor fazem beirar o ridículo – são: BEATTIE. J. “Roy Wagner: the invention of culture”.Rain, vol. 13, 1976, p. 10;[Links] e Blacking, J. “Wagner, Roy. The invention of culture”. Man, vol. 11, nº. 4, New Series, 1976, pp. 607-8. [Links] 2 SAHLINS, M. Culture and practical reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1976, p. 121.  [Links] 3 GEERTZ, C.The interpretation of cultures. Nova York: Basic Books, 1973, p. 359. [Links] 4 SAHLINS, op. cit., pp. 122-3.
5 Como escreveu com humor James Wafer, podemos ter saudades “do paraíso perdido da antropologia, quando era possível distinguir um tique de uma piscadela, e piscadelas reais daquelas de brincadeira” (The taste of blood: spirit possession in Brazilian candomblé. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1991, p. 117). [Links] 6 Na verdade, tanto Geertz (nascido em 1926 e falecido em 2006) como Sahlins (nascido em 1930) são seniores em relação a Wagner, que nasceu em 1938.
7 CLIFFORD, James e MARCUS, George (orgs.). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986, p. 2. [Links] 8 ACHEBE, Chinua. Home and exile. Nova York, Anchor Books, 2000, p. 33. [Links] 9 Como escreveu Michel Foucault, “a antropologia se enraíza, com efeito, numa possibilidade que pertence exclusivamente à história de nossa cultura, mais ainda, a sua relação fundamental com toda a história, e que lhe permite ligar-se às outras sociedades sob o modo da pura teoria” (Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: PUF, 1966, p. 388).
10 ASAD, Talal. “From the history of colonial anthropology to the anthropology of western hegemony”. In: STOCKING Jr., GEORGE W. (org.). Post-Colonial situations: essays in the contextualization of ethnographic knowledge. Madison: University of Wisconsin Press, pp. 314-24, p. 315. [Links] 11 Idem (org.).Anthropology and the colonial encounter. Nova York: Humanities, 1973. [Links] 12 WAGNER, R. “The theater of fact and its critics”.Anthropological Quarterly, vol. 59, nº 2, 1986, pp. 97-9, p. 99.[Links] 13 DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit , 1991, pp. 8-10. [Links] 14 Para um cuidadoso estudo sobre as possíveis relações entre os pensamentos de Wagner (além de Marilyn Strathern e Bruno Latour), de um lado, Deleuze e Guattari, de outro, ver Viveiros de Castro, E. “Filiação intensiva e aliança demoníaca”. Novos Estudos Cebrap, vol. 77, 2007, pp. 91-126. [Links] 15 DELEUZE e GUATTARI. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980, p. 457. [Links] 16 STRATHERN, M. The gender of the gift: problems with women and problems with society in Melanesia. Berkeley: University of California Press, 1988, pp. 18-19, passim. [Links] 17 MALINOWSKI, B. Coral gardens and their magic. Londres: George Allen & Unwin, 1935, vol. 1, p. 317. [Links] 18 LATOUR, B. Petite réflexion sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris: Synthélabo, 1996, p. 101. [Links] 19 Como escreveu Marilyn Strathern, “etnografias são construções analíticas de acadêmicos; os povos que eles estudam não. Faz parte do exercício antropológico reconhecer que a criatividade desses povos é maior do que o que pode ser compreendido por qualquer análise” (op. cit., p. XII).
20 “A monotonia que encontramos em escolas de missão, em campos de refugiados e às vezes em aldeias ‘aculturadas’ é sintomática não da ausência de ‘Cultura’, mas da ausência de sua própria antítese – aquela ‘magia’, aquela imagem insolente de ousadia e invenção que faz cultura, precipitando suas regularidades na medida em que falha em superá-las por completo” (p. 146). Ou seja, o que falta nesses lugares é vida, e o antropólogo deveria falar em desvitalização no lugar de aculturação.
21 Que, como se sabe, corresponde a um estilo pautado unicamente pelo esforço de manter com rigor intransigente as regras e as técnicas das academias de formação. Qualquer semelhança com a antropologia contemporânea não é mera coincidência (ver p. 228).
22 Ver STRATHERN, “The nice thing about culture is that everyone has it”. In: Shifting contexts: transformations in anthropological knowledge. Londres, Routledge, pp. 153-76, 1995. [Links] 23 A alternativa seria o silêncio ou a autocontemplação. Como escreveu Strathern, “o fato de não existir lugar fora de uma cultura exceto em outras culturas” levanta um problema “técnico: como criar uma consciência de mundos sociais diferentes quando tudo o que se tem à disposição são termos que pertencem ao nosso mundo” (“Out of context: the persuasive fictions of anthropology”.Current Anthropology, vol. 28, nº 3, 1987, pp. 251-281, p. 256). [Links] 24 SCHNEIDER, D. American kinship: a cultural account. New Jersey: Prentice-Hall, 1968.[Links] 25 P. Griffiths. “Improvisation”. In: D. Arnold, Dictionnaire encyclopédique de la musique. Paris: Robert Lafont, 1988. [Links] 26 Como escreveu Strathern, “a interpretação deve manter estáveis os objetos de reflexão pelo tempo suficiente para que possam ser úteis” (“Cutting the network”.Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 2, nº 3, 1996, pp. 517-35, p. 522).
27 “Nessa situação, a antropologia não pode permitir-se o papel de Grande Inquisidor” (p. 236).
28 BARTHES, R. “De um lado e do outro”. In: Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970 [1961], pp. 139-47, pp. 139-40. [Links]

Marcio Goldman – Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq e da Faperj.

Acessar publicação original

O outono da Idade Média | Johan Huizinga

A recente edição em português do magnum opus do historiador holandês Johan Huizinga, publicado originalmente em 1919, se reveste de real importância e nos motiva a uma reflexão sobre a produção historiográfica desse notável medievalista. Apesar de pertencer a uma geração de historiadores que marcaram época – entre eles o seu notável amigo Henri Pirenne –, sua obra, voltada à história da cultura, ficou de certo modo esquecida frente à vertente da história social e econômica que dominou soberana, até bem pouco tempo, no meio acadêmico.

Porém a revisão e a retomada de modelos e concepções historiográficas sob a ótica da contemporaneidade bem como a procura de novos caminhos contribuiu para o resgate e a revalorização da obra de Huizinga, que em seu tempo enfrentou o cientificismo positivista dominante entre os historiadores alemães em cujo debate participou Karl Lamprecht (1856-1915), que chegou a dar seu nome à polêmica conhecida como Methodenstreit (a polêmica sobre o método). Leia Mais

A Cultura do Romance – MORETTI (NE-C)

MORETTI, Franco. A Cultura do Romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Resenha de: VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. O romance como gênero planetário: a cultura do romance. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar. 2010.

Ao percorrer as páginas de A cultura do romance, primeiro dos cinco volumes da série O romance, organizada por Franco Moretti, o leitor logo notará que se encontra diante de uma obra singular, pois ali se narra uma história do gênero que, não raro, transgride fronteiras nacionais, abole limites espaço temporais e segue uma orientação comparatista e internacionalista, certamente inspirada na conhecida posição de seu organizador sobre a literatura mundial. Com efeito, em ensaio publicado em 2000, Franco Moretti retomava o conceito proposto por Goethe, no final do século XVIII, e defendia o retorno à antiga ambição da Weltliteratur, a partir da constatação de que”afinal, a literatura a nossa volta é inequivocamente um sistema planetário”1.

Mescla de história e crítica literárias, esta coletânea reúne um respeitável time de especialistas e põe em funcionamento outro princípio que tem norteado o trabalho de seu organizador:o de que uma história do romance,fundamentalmente pelo caráter transnacional do gênero, teria de ser escrita a partir de um esforço coletivo, por meio do qual as diferentes especialidades contribuiriam para repensar o modo como tratamos a historiografia literária, reinscrevendo o romance não mais no espaço demarcado pelas linhas divisórias das nações, mas em um mundo cujas fronteiras se alargaram e no qual o romance viaja e viceja como forma verdadeiramente livre na sua tradutibilidade2.

O romance como um sistema planetário: eis o espírito que parece animar esse conjunto diversificado de ensaios que,recobrindo um largo espectro temático e um amplo arco temporal,abarca uma multiplicidade de pontos de vista e tradições, combina traços específicos e particulares a questões de ordem geral e redesenha o mapa da história desse gênero onívoro e inclusivo, dessa forma permanentemente a se fazer e se renovar3, cuja natureza de inacabamento se comprova fartamente aqui.

Graças à sua”capacidade de mudar sem transformar-se em outra coisa”,4 o romance desafia e desestabiliza convenções, alia continuidades e descontinuidades, reinventa-se e franqueia ao romancista liberdade de imaginação, de recriação das formas e de proposição de novos caminhos.Seu modo de ser protéico e camaleônico fica patente na pletora de temas, procedimentos, técnicas e soluções que vemos mobilizados nas obras que são discutidas e comentadas nos ensaios do volume. A dinâmica da forma-romance emerge, assim, nas suas mais variadas vertentes, como narrativas de fundação, relatos da vida cotidiana, histórias de sondagem da interioridade, da experiência urbana, dos embates entre o indivíduo e a sociedade, do sobrenatural, dos recônditos da alma humana – apenas alguns exemplos das potencialidades quase ilimitadas do gênero desde sua invenção. Do mesmo modo, pelas suas próprias características e desapego às convenções, o romance convida à aproximação com outros campos e artes, como a história, a historiografia, a sociologia, a política, o cinema, a linguagem, a psicanálise, a pintura, numa teia de relações que põe em destaque sua abertura para as mais diferentes esferas da experiência humana. Esses diálogos e intersecções também vemos em ação aqui.

Os dois ensaios que, respectivamente, abrem e encerram o volume, com seus títulos especulares não só estabelecem de pronto um vínculo estreito e indiscutível entre o romance e o mundo moderno, como também pontuam alguns dos temas que iremos acompanhar com interesse no percurso dessa”primeira forma simbólica verdadeiramente mundial”5. Assim, enquanto Mario Vargas Llosa encarece a importância da leitura e explora os sentidos da literatura, enfatizando seu papel na formação do cidadão e da linguagem, seu teor de conhecimento e sua vocação para despertar um”sentimento de pertencimento à coletividade humana através do tempo e do espaço”6, ele igualmente lembra a capacidade de insubmissão e transgressão dos bons romances e, num exercício de ficcionista, imagina o quê ou como seria um mundo sem romances. Claudio Magris, por sua vez, retoma e discute com maestria outro problema que, ao leitor mais atento, não deve ter passado despercebido ao final da leitura. Ao longo de todo o volume, vamos topando freqüentemente com certa variação dos modos de se referir ao romance: ora romance mesmo, ora”romance”, romance, novel, novelas ou ainda romanesco. Além disso, muitas vezes o vocábulo romance se faz acompanhar de um adjetivo. A lista não é muito extensa, mas intriga: moderno, medieval, antigo, de corte, de cavalaria. Para os leitores menos familiarizados com as questões mais técnicas, é bom esclarecer que na tradição inglesa romance e novel designam de fato modalidades narrativas distintas, e passaram a fazer parte do vocabulário crítico no século XVIII como efeito da percepção de que ocorrera uma importante mudança histórica, com reflexos indiscutíveis na prosa de ficção. Por isso, na maioria das vezes dispensam adjetivos. A inexistência dessa diferenciação em outras línguas européias e a subsunção de romance e novel num mesmo termo genérico (cf. romance, romanz, roman, romanzo) põem em menor evidência,nessas outras tradições, a noção de ruptura que norteou a adoção dos dois vocábulos em língua inglesa.

Que conseqüências tirar dessa instabilidade, então, e desse uso reiterado dos qualificativos para melhor definir e precisar aquilo de que se fala? A resposta já ficara delineada por Catherine Gallagher7, que expõe com clareza a questão e mapeia, com bom fôlego teórico, as diferenças entre romance e novel, entre o gênero pré-moderno, precursor imediato do romance, e esse outro, encarnação da modernidade. O ensaio de Magris volta ao assunto, com uma reflexão que incorpora algumas das mais iluminadoras discussões sobre o gênero, para não apenas ressaltar a sua modernidade radical, mas sobretudo para pensar essa”epopéia do desencanto”, nos termos propostos por Hegel e Lukács,como objetivação da cisão entre o eu e o mundo. Essa”por vezes degradada mas aventurosa e radicalmente nova odisseia”8 é, entre todos os gêneros, aquele que faz do mundo, enquanto história, seu objeto, em que o caráter temporal e histórico da ação dos homens é problema sempre crucial e sempre presente para o romancista. Ao afirmar que”o romance é o mundo moderno”, Magris, além de o alinhar aos desenvolvimentos da era que se inaugura por sobre os escombros da ordem feudal, sugere que nele podemos reconhecer a experiência que nos determina e constitui. Reaparece assim,nesse remate,a relação problemática entre romance e realidade que já viera pontuando várias das outras intervenções no debate que pudemos ir acompanhando até esse final.

Essa moldura enquadra, dessa maneira, um verdadeiro mosaico de leituras que nos deslocam no tempo e no espaço e nos confrontam com um rol de questões que rondam o romance desde seu surgimento. De dentro da diversidade de abordagens, ângulos e perspectivas que os autores dos ensaios escolheram para ler seus objetos, vemos surgir alguns temas recorrentes, que atravessam o volume como um todo e remetem às escaramuças que o romance teve de enfrentar no seu longo processo de ascensão e consolidação. Um deles diz respeito à tensão entre veracidade e ficcionalidade (ou verdade e mentira, verdadeiro e falso,fato e ficção),que desde sempre esteve no centro da discussão sobre as relações entre o romance e a representação do real. Não é muito difícil compreender por que essa tem sido uma preocupação constante por parte de teóricos e críticos: afinal, o romance tem suas raízes firmemente fincadas no tempo histórico e em contextos socioculturais específicos e, mesmo nos altos vôos da fantasia, tem um conteúdo de verdade e um notável poder de revelação, de “descoberta e interpretação da realidade” (a expressão é de Antonio Candido). É essa capacidade de escavar a superfície e penetrar nas correntes subterrâneas de uma vida, de uma comunidade, de uma experiência, que lhe confere a prerrogativa de produzir uma impressão de verdade, a qual nasce da arte do romancista de absorver na estrutura narrativa, para além dos detalhes e fragmentos do real, para além dos dados externos, certos princípios constitutivos da sociedade. Basta acompanhar o que fizeram os diversos romancistas dos mais diferentes quadrantes que são motivo de comentários nas leituras críticas que compõem o mosaico e estão distribuídas ao longo do volume.

O contrato com o leitor, a “plausibilidade fictícia”9, o jogo ficcional – tudo contribui para a suspensão da descrença e carrega o leitor para um mundo que parece verdadeiro,quando é apenas crível, verossímil. A verossimilhança, entretanto, não explica esse sentimento de verdade de que somos possuídos quando um romancista” toma a si o encargo de imaginar e compor o movimento da sociedade”10. Sem dúvida, foram os nexos que estabelece com a vida real, somados à sua inegável faculdade de estimular a imaginação,que lhe valeram a pecha de influência perniciosa e prejudicial e fizeram dele alvo de censura e condenação, inclusive judicial, por meio de processos que levaram às barras dos tribunais romances e romancistas. A história literária está repleta de exemplos, e eles não se limitam aos tempos em que um controle mais rígido e rigoroso sobre a moral esteve vigente. Alguns deles são lembrados aqui e dão notícia dos obstáculos que o gênero enfrentou para ganhar dignidade e reconhecimento. Um verdadeiro dossiê reúne vários documentos que registram a história dessa batalha, cujo último capítulo não está tão distante assim e envolveu a fatwa contra os Versos satânicos de Salman Rushdie. Mas as imputações não se restringiram ao terreno da religião,da política ou da moralidade, como foi o caso de Madame Bovary ou de O amante de Lady Chatterley.Para além das acusações de sedição, blasfêmia, obscenidade ou difamação que fustigaram o romance em diferentes momentos da sua história, esse”vão caudal de tinta sobre papel esfarrapado”11 teve ainda de se haver com aqueles que o consideravam apenas um gênero bastardo, destituído de tradição e da nobreza do teatro e da poesia. Um parvenu da República das Letras, o romance não mereceria senão desprezo e desconfiança, e o establishment literário não perdeu as oportunidades de golpeá-lo,como o fizeram Pierre Nicole ou Gotthard Heidegger12. Como outros, antes e depois, eles esgrimiram argumentos éticos e estéticos para desaprovar o gênero. Na Itália, ainda no século XIX, prevalecia”a aversão da escola com relação ao romance” e se assistia” à luta destemida do padre Antonio Bresciani […]” e de seu aliado Cesare Cantú”contra a podridão proveniente das cloacas francesas”, isto é, contra o romance-folhetim13. Na mesma Itália, em 1956, Pier Paolo Pasolini foi chamado a defender seu Ragazzi di vita diante de um tribunal, que exigiu dele”justificar a sua obra no plano moral [e] esclarecer [seu] significado artístico e literário”14, enquanto em Moscou, dez anos mais tarde, os autos contra Juli Daniel e Andrei Siniavski acusavam Govorit Moskva de instigar”um acerto de contas com os dirigentes do partido e do governo”15.

Havia ainda outro motivo para a condenação da ficção. Desde seu surgimento, o romance esteve bastante próximo do universo feminino. As mulheres foram, desde o início, suas protagonistas e seu público. Por isso, muitos dos ataques ao romance foram provocados pelo medo da imitação.A oposição à fantasia e a suspeita de que a liberdade de imaginação podia levar à ação foram argumentos recorrentes nas discussões sobre os efeitos deletérios da leitura de romances principalmente sobre os jovens e as mulheres.Julgava-se que o poder corruptor dos romances, esse passatempo de ociosos, podia influenciar condutas e pôr em risco a virtude feminina, inspirando a desobediência ou a transgressão de normas de comportamento consideradas essenciais para a reputação das mulheres. Havia também um temor generalizado da identificação do leitor com as personagens ficcionais, pois ela poderia provocar emoções e sentimentos e mobilizar sua sensibilidade, fazendo aflorar uma série de reações físicas que se acreditava serem evidências da comoção produzida pela leitura. As mulheres pareciam especialmente suscetíveis a essas alterações emocionais,que se traduziam em afecções do corpo, como testemunha essa leitora de Samuel Richardson, em carta ao romancista:

Se me tivesses visto, tenho certeza de que teria despertado vossa piedade. Quando só, em agonia eu punha o livro de lado, o retomava novamente, andava pela sala, derramava um rio de lágrimas, enxugava os olhos, lia novamente, talvez nem três linhas, jogava longe o livro, bradando, desculpai-me, bom Sr. Richardson, não consigo continuar; é vossaculpa- fizestes mais do que consigo suportar; jogava-me sobre o sofá para me recompor, recordando minha promessa (que mil vezes desejei não tivesse sido feita); de novo lia, de novo agia exatamente igual: às vezes agradavelmente interrompida por meu querido esposo, que estava naquele momento avançando com dificuldade ao longo do 6volume, com um coração capaz de impressões como o meu […].

Vendo-me tão comovida, ele implorou, pelo amor de Deus, que eu não lesse mais; bondosamente ameaçou tomar-me o livro, mas, diante da minha promessa, permitiu-me continuar. Aquela promessa agora está cumprida e estou grata que a pesada tarefa tenha acabado, embora os efeitos não. Tivesse ela sido conduzida como eu desejava, em vez de ficar impaciente para terminar a triste história, como eu teria me demorado, com prazer, em cada linha, e me sentido relutante em chegar à conclusão.

Meu ânimo foi estranhamente afetado; meu sono está perturbado, despertando durante a noite, tenho ataques de choro; isso aconteceu no desjejum, essa manhã, e agora, de novo. Deus, seja misericordioso – o que isso pode significar? Talvez, Senhor, atribuais isso a paixões violentas, mas, de fato, se conheço a mim mesma, não sou acometida delas. É tudo fragilidade, inequívoca fragilidade tola. Eu vos asseguro, não exacerbo o desassossego que me aflige, não, nem comunico o pior [Lady Bradshaigh, 6 de janeiro de 1748].

Esse depoimento de leitura é um dos exemplos daquilo que Stefano Calabrese chama de”patologias da leitura romanesca”, tais como a Wertherfieber e o bovarismo16, as quais pareciam acometer principalmente as mulheres e fazer delas suas vítimas potenciais, aumentando o preconceito e as restrições ao gênero. Apesar disso,o romance foi um dos principais instrumentos do acesso delas à esfera pública.

O século XVIII marcou em definitivo a entrada das mulheres no mundo da escrita, não mais apenas na condição de leitoras. E os romances desempenharam um papel fundamental nisso,porque,sendo um gênero sem leis nem regras e tratando de assuntos da vida cotidiana numa linguagem acessível a todos, eles se constituíram como um espaço no qual elas, como escritoras, podiam exercitar seus talentos e tratar de temas que as tocavam de perto, e, como leitoras, se reconhecer como partícipes de uma comunidade de interesses e de destino, que lhes permitia partilhar,mesmo que vicariamente,experiências comuns. O âmbito doméstico e o viés sentimental das narrativas, assim como o recurso à vivência pessoal de suas autoras,elas mesmas envolvidas e empenhadas em uma luta pela afirmação de suas aspirações, facilitavam esse reconhecimento. O romance tornou-se, para muitas delas, meio de expressão, de denúncia, de revolta e de recusa das limitações e dos constrangimentos sociais a que estavam submetidas.Um passo que Virginia Woolf reconheceria como um feito histórico, em Um teto todo seu (1929):

Assim, para o término do século XVIII promoveu-se uma mudança que, se eu estivesse reescrevendo a história,descreveria mais integralmente e consideraria de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas. A mulher da classe média começou a escrever17.

Inaugurava-se, assim, uma linhagem, com uma participação cada vez maior e mais ativa das mulheres na cena literária.Mesmo em culturas muito diversas da européia, como é o caso da japonesa, a presença feminina foi central para o florescimento da prosa, por meio de cartas e narrativas escritas pelas damas da corte, com as quais elas, se utilizando da língua coloquial, própria da esfera privada, contribuíram para a busca e a formação de uma nova linguagem literária e para o desenvolvimento do romance18.A tradição da escrita feminina tem ainda desdobramentos trazidos à tona por Christa Bürger19, que, numa visada diacrônica,percorre os modos como o tema do amor assumiu diferentes formas e ajudou a inscrever algumas mulheres na história do romance. Esse quadro se completa com as leituras críticas que tratam de outras romancistas que representaram uma enorme contribuição ao gênero, como George Eliot e a própria Virginia Woolf.

Na sua longa trajetória, alguns romances foram esquecidos e condenados”à morte pelo tribunal da posteridade”20, mesmo que tenham sido populares à sua época e caros aos seus leitores; porém, a grande maioria deles passou a fazer parte do nosso acervo comum, fornecendo um repertório de imagens, temas, personagens e enredos que se incorporaram à nossa experiência e às nossas maneiras de explicar e compreender o mundo.Por quase três séculos,o romance tem sido expressão artística de um espírito democrático21, e espaço onde questões cruciais são objeto de configuração estética. Trata-se de um gênero inquieto, que continua”inacabado”, com uma”ossatura […] ainda […] longe de ser consolidada”, tornando impossível”prever todas as suas possibilidades plásticas”22.

Por essa razão, o romancista está permanentemente diante de desafios formais, sempre repostos. Se no romance oitocentista o indivíduo burguês se constituiu como uma subjetividade que se reconhecia como sujeito da história, a progressiva perda dos vínculos do homem consigo próprio e com a comunidade acentuou-se cada vez mais no mundo administrado da sociedade industrial.A partir de meados do século XIX,assistimos à desagregação desse indivíduo e sua diluição na massa, no caos urbano. Desde suas origens, o romance instaurou a fratura entre o eu e o mundo,encenando a jornada do homem solitário, que já não se sente em casa em lugar algum. O esforço de recriação da totalidade preside o gesto do romancista,cuja tarefa é construir o sentido de uma vida e de um mundo que perdeu o sentido,por meio de uma forma que é a”tentativa,na época moderna,de recuperar algo da qualidade da narração épica como uma reconciliação entre matéria e espírito, entre vida e essência’23. Essa empreitada foi se mostrando cada vez mais difícil. Matéria primordial do gênero, o eu fraturado, numa sociedade fraturada, configura-se como o tema por excelência principalmente do romance modernista, com conseqüências para a forma romanesca, que também se estilhaça e se refrata na perda da onisciência ou na multiplicação da voz narrativa, na interiorização dos conflitos e na quebra do encadeamento causal no âmbito do enredo. A crise da experiência e do indivíduo contemporâneo encontra rebatimento numa forma também em crise, obrigando o romancista a re-configurar seus materiais e técnicas para dar conta de novos conteúdos,a aventurar-se em novos experimentos formais, como os que vemos comentados no último conjunto de leituras críticas, quase ao final do volume24.

Cobrindo o período de 1900 a 1950, e portanto dos movimentos de vanguarda que mudaram o panorama das artes no século XX, esse instantâneo dos múltiplos caminhos abertos aos romancistas pela consciência das transformações cruciais que sofria o mundo naquela quadra histórica flagra algumas das respostas possíveis para o desafio de dar uma nova conformação narrativa ao real.Não se trata apenas da dissolução da forma-romance tradicional,mas também de enfrentar a”questão do sujeito e de sua representação,sua ausência ou desagregação”25. Uma observação de Virginia Woolf, em ensaio de 1924, cristaliza essa percepção numa tirada lapidar:”em ou por volta de dezembro de 1910, o caráter humano mudou”. Woolf parece se reportar aqui a alguns dos acontecimentos, entre eles a exposição do Pós-Impressionismo naquele ano,que marcaram o fim de uma época de estabilidade e, na sua visão, praticamente obrigaram os artistas a repensar o modo como o caráter humano era moldado e compreendido. Essa mudança é o que ela vai buscar representar literariamente em seu romance Mrs. Dalloway (1925), como concretização de uma nova concepção do personagem de ficção e das novas maneiras de captar o fluxo incessante e caótico da vida, tanto no plano exterior como interior26.

De Rainer Maria Rilke a Mikhail Bulgakov, passando por Luigi Pirandello, Louis Aragon, Mário de Andrade e Vladislav Vanura, vemos como diferentes autores, de origens e tradições diversas, fizeram implodir a estrutura narrativa que o romance realista do século XIX havia erigido em modelo. Por meio de soluções inovadoras para o tratamento do tempo e do ponto de vista, do recurso à livre associação de idéias, ao monólogo interior e ao fluxo da consciência, entre outras providências,eles puseram em xeque as próprias fundações do gênero, possibilitando, com isso, sua renovação. Os romances que esses escritores nos legaram são exemplos do esgarçamento da experiência e da “fratura do senso de continuidade”, de que fala Enrico Testa a respeito de Pirandello27, e, no seu desassossego, são a materialização de experimentos formais que configuram algo que está para além de meros procedimentos técnicos. Na sua discussão sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld argumenta que a arte do século XX se caracteriza por um fenômeno que ele chama de”desrealização”, para se referir ao abandono da mimese, pela arte, e à recusa da”função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível”28. O realismo forte nunca se contentou com a mera reprodução ou cópia da realidade, contudo. O que os romances modernistas impõem, ao contrário, é a necessidade de ampliação do conceito de realismo para compreendê-lo na sua dimensão plural e histórica. Se aceitarmos que a”matéria do artista [não é] informe: é historicamente formada,e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência”29, é possível perceber nesses autores o esforço que empreenderam de ir além da superfície e ler cada obra como”a historiografia inconsciente de si mesma da sua época”30.

Podemos concluir, assim, que A cultura do romance constitui seu objeto como um campo de tensões e de negociação, e, à sua maneira, narra a história da ascensão, do apogeu e da crise do romance, na qual se inscreve a história do indivíduo, cuja trajetória o gênero formaliza em seus impasses, conflitos e contradições. Os autores aqui reunidos aceitam e cumprem à risca o desafio proposto por Franco Moretti de conferir aos seus ensaios”aquele tom antropológico – história da literatura como história da cultura – que é a aposta desse volume”31.

Notas

1 Idem.”Conjeturas sobre a literatura mundial”.Novos Estudos Cebrap, 2000, nº 58, pp.173-181, p.174 “Conjectures on world literature”.New Left Review, 2000, nº 1, pp. 54-68.
2 Idem. Atlas of the European novel 1800-1900. Londres: Verso, 1997 [ed. bras.: Atlas do romance europeu 1800-1900. Trad. SANDRA Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003].
3 BAKHTIN, Mikhail.”Epic and novel”. In:The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1986, pp.3-40 [Ed.bras.: “Epos e romance”. In: Questões de literatura e estética.2 ed. Trad. Aurora F. Bernardini e outros. São Paulo: Hucitec, 1990].
4 MCKEON, Michael. “Introduction”. In: Theory of the novel: a historical approach. Baltimore/Londres: The Johns Hopkins University Press, 2000, p. xiv. Tradução minha.[Links] 5 MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 11.
6 LLOSA, Mario Vargas.”É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 22. [Links] 7 GALLAGHER, Catharine.”Ficção”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 629-58. [Links] 8 MAGRIS, Claudio.”O romance é concebível sem o mundo moderno?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 1016. [Links] 9 GALLAGHER, op. cit., p. 638.
10 SCHWARZ, Roberto.”Outra Capitu”. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 104. [Links] 11 HEIDEGGER, Gottard.”Mitoscopia romântica: ou discurso sobre o chamado romance”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., 202. [Links] 12 Ver NICOLE, Pierre.”Sobre a comédia”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 200-201; Heidegger, op. cit., pp. 201-203.
13 FAETI, Antonio.”Um negócio obscuro: escola e romance na Itália”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 147. [Links] 14 SITI, Walter.”O romance sob acusação: aparato crítico”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 227. [Links] 15 Ibidem, p. 233.
16 CALABRESE, Stephano.”Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”. In: MORETTI (org.),A cultura do romance, op. cit., pp. 697-732. [Links] 17 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 86. [Links] 18 ORSI, Maria Teresa.”A padronização da linguagem: o caso japonês”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 425-58. [Links] 19 Ver BÜRGER, Christa.”O sistema do amor: gênese e desenvolvimento da escrita feminina”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 595-627. [Links] 20 LUZZATTO, Sergio, em”Leituras: bestsellers perdidos”, pp. 735-819. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 787 (sobre O ano 2440, de Louis Sébastien Mercier). [Links] 21“O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta e traduz, no plano estético, a mesma ambição” (Camus, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, p. 320, trad. minha).
22 BAKHTIN, op. cit., p. 397.
23 JAMESON, Fredric. “Georg Lukács”. In: Marxism and form. Princeton: Princeton University Press, 1974, pp. 171-172. [Links] 24 Ver “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 951-1012. [Links] 25 TESTA, Enrico, em “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p.972 (sobre Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello). [Links] 26 Ver BANFIELD, Ann, em”Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 961-70 (sobre Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf ). [Links] 27 TESTA, op. cit., p. 971.
28 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: Texto/ Contexto. São Paulo/Brasília: Perspectiva/INL, 1973, pp. 75-97, p. 76. [Links] 29 SCHWARZ. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 25. [Links] 30 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970, p. 207. [Links] 31 MORETTI.”O século sério”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 823. [Links]

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos – Professora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP.

Acessar publicação original

O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus – OLIVEIRA (VH)

OLIVEIRA, Myriam Ribeiro. O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Resenha de: KLAUSING, Flávia Gervásio. Varia História, Belo Horizonte, v.20, n.31, p. 278-282, jan., 2004.

O Brasil tem se preocupado em catalogar e estudar as obras do seu acervo artístico, já há algum tempo. Desde o resgate e reconhecimento do barroco, feito pelos modernistas no primeiro quartel do século XX, a arte colonial luso-brasileira vem sendo estudada. Entrementes, foi o próprio Mário de Andrade que realizou um anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, no então governo de Vargas; órgão que, desde sua abertura preza não só pela preservação dos monumentos característicos da nossa história, como também pelos estudos sobre os mesmos.

Na sua “fase heróica”, tendo na presidência Rodrigo Melo Franco de Andrade, procedeu-se ao levantamento de obras a nível nacional, jamais visto até então — inventário este, documentado pela Revista do SPHAN. Deve-se levar em conta, entretanto, o caráter nacionalista desta empreitada. A influência do movimento modernista e o próprio contexto de construção de nação delegaram a estes estudos um aspecto essencialmente patriótico- buscava-se uma originalidade e uma brasilidade incipiente no período denominado então de “barroco mineiro”, sendo que hoje, até o uso deste termo, é discutível.

Ao longo dos anos, o interesse por esta arte persistiu, visto, por exemplo, a criação e extensão da Revista BARROCO, que divulgou estudos que tratavam de forma mais ampla aquele fenômeno cultural. Segundo Affonso Ávila, poeta, ensaísta e coordenador da revista, o barroco é mais que uma manifestação artística, consiste em uma visão de mundo. Uma das pesquisadoras mais atuantes de então é Myriam Ribeiro de Oliveira, historiadora doutora que se dedica ao inventarioo e à análise da arte luso-brasileira. Seus estudos — que englobam temas como Aleijadinho e sua oficina, pintura em perspectiva nos forros das igrejas mineiras, tipologia de retábulos e da imaginária, dentre inúmeros outros — são reconhecidos e tidos como referência para os pesquisadores da área. Seu método fundamenta-se na perspectiva do “connaisseur”, que parte da observação empírica da obra e, em confronto com as fontes arquivísticas, estabelece informações sobre a datação e autoria, escola regional/nacional, estilo individual e de época, e análises técnica e iconográfica.

Partindo da suposição de que a manifestação do rococó no Brasil não estava definida de forma clara e precisa, o livro da professora Myriam intitulado “O Rococó Religioso no Brasil — e seus antecedentes europeus” visa compreender melhor o estilo e favorecer sua fruição estética. Ela principia definindo sua origem na França, em fins do século XVII, quando houve uma reação ao excessivo peso ornamental do barroco e uma necessidade de redimensionamento do espaço da alta burguesia e da nobreza. Buscou-se criar assim, um ambiente de luxo, com uma decoração leve e suntuosa baseada no uso de formas fluidas e sinuosas, principalmente do ornamento rocalha.

Dividido entre os períodos Regência e Rococó, o estilo que teve sua origem no campo civil, poderia se adaptar à esfera religiosa, mesmo levando em conta os valores em importantes ao Oitocentos — o hedonismo, o racionalismo e o anti-religiosismo? Myriam responde afirmativamente a esta questão bastante controversa, alegando que a fé cristã passou por uma mudança de concepção, tornando-se mais serena e positiva. Citando o forte crescimento da Igreja (vide o grande número de construções de capelas), a autora considera o propalado anti-clericalismo do século XVIII, como, antes de tudo, um ataque às Instituições, e não à doutrina católica que se encontrava forte e revigorada.

A maleabilidade do rococó que não estava ligado sistematicamente a nenhuma doutrina teórica, sua coexistência com o estilo barroco tardio, desenvolvido na Itália no século XVIII, sua adaptação a tradições locais e, conseqüentemente, sua apresentação em aspectos variados, dificulta uma sistematização em um conjunto de categorias estéticas e histórico-artísticas. Myriam delega também a estes fatores a visão equivocada do estilo — geralmente visto como um desdobramento do barroco, sem autonomia e sem conhecimento do seu repertório formal. Foram nomes como Starobinski, Fiske Kimball, Minguet e Schoenberg que, a partir de 1950, não se limitaram a interpretações restritivas ou preconceituosas daquela concepção visual. Assim como a própria autora coloca, é fundamental perceber o longo caminho ainda a percorrer visando desvendar a diversificada gama de manifestações estilísticas, tanto no âmbito civil, como no religioso.

É também importante ressaltar o processo de internacionalização do estilo, através do intercâmbio de obras e artistas, mas, principalmente, por meio da divulgação em fontes impressas. Com a ascensão do mercado editorial de livros leigos — que tinha nas cidades francesas e na cidade germânica de Augsburgo, seus principais centros irradiadores —, se deu a circularidade dos elementos constitutivos do rococó através dos tratados teóricos, manuais e gravuras, usados permanentemente nas oficinas e levados para terras distantes da Europa Central, Portugal e colônias, onde foram, posteriormente, reinventados.

Esse papel das fontes impressas vem sendo estudado na Europa, inclusive em Portugal1 mas, no Brasil, ainda há muito o que investigar. Hannah Levy2 escreveu artigos demonstrando a recorrência às gravuras na pintura colonial e abriu o caminho para correlações afins. Fazer um levantamento destas fontes e relacioná-las com a produção artística, é um ponto fundamental na análise da arte colonial e, principalmente, na determinação das influências da mesma.

O rococó, à medida que se internacionalizava, se integrava às tradições locais. Assim, na região da Baviera, o rococó religioso vai se desenvolver de forma original, buscando produzir uma sensação de bem estar e conforto e privilegiando a oração na fé e na alegria, através de uma “obra de arte total” — na qual os efeitos de conjunto têm função primordial.

Foi assim também em Portugal, local que se caracteriza pela diversidade das escolas regionais. Em terras lusitanas porém, o estilo sofria forte concorrência com o barroco tardio, visto a grande influência italiana que o “império pombalino” vai somente acentuar. As regiões de Porto e Coimbra irão apresentar maior homogeneidade e originalidade na divulgação do rococó por meio, principalmente, da talha e da azulejaria. Componente característico da arte portuguesa, os azulejos irão se tornar um importante veículo do estilo francês, se utilizando da rocalha, da assimetria e ondulação dos contornos e, tendendo, com o tempo, a uma maior delicadeza e elegância. Myriam Ribeiro de Oliveira assinala também o papel destes azulejos na divulgação do repertório do rococó no Brasil, visto o grande número de importação para o litoral brasileiro. Ao mesmo tempo, vemos em Minas uma carência da utilização deste recurso — provavelmente devido à dificuldade de transporte — o que originou a criação de uma técnica, pelo Ataíde, da pintura em madeira de fingimento de azulejo, presente na Capela de São Francisco da Penitência em Ouro Preto, e na Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara.

A circularidade propiciada pelas fontes impressas permitiu à colônia brasileira receber a influência não só de Portugal, mas também da região da Alemanha e da França e, juntamente com as tradições locais, realizou-se um mosaico de interpretações do estilo rococó. É elucidativo pensar a aproximação entre o rococó germânico e aquela produzido em Minas — muitas vezes o que se delega como “original”, é uma peculiaridade do rococó religioso — e também a grande semelhança entre as duas sociedades, visto que, em ambas, a maioria dos artistas eram locais, formados em oficinas e eram fortemente ligados às tradições artísticas próprias da região e ao seu tipo específico de sensibilidade estética.

Myriam assinala também o papel das irmandades leigas na estruturação da sociedade colonial e, a partir de meados dos Oitocentos, período em que o rococó inicia sua penetração no Brasil, na promoção de construções religiosas, visto a sua abertura à experiência de novas tendências. A autora aponta para a necessidade de se estudar a vida econômica destas confrarias, elucidando assim, aspectos importantes daquela sociedade.

Ao analisar as condições de trabalho e as categorias profissionais, Myriam ressalta o papel fundamental dos mestres de obras portugueses, que, devido à sua perícia técnica, legaram obras de grande apuro. A historiografia sobre a arte colonial tendeu a supervalorizar a contribuição dos mulatos para assim reconhecerem na colônia, um símbolo de liberdade social. Esta postura vem sendo revista e trabalhos estão sendo feitos no sentido de apurar ponderações feitas a priori.3

A autora também mostra, ao considerar detidamente a arquitetura, talha e pintura mineira, que a arte em Minas não se resume a dupla Aleijadinho-Ataíde. O panorama artístico da capitania era muito mais rico e composto de nomes que, na sua maioria, ainda estão para serem estudados. Um exemplo é a região de Diamantina em que, além do trabalho do Guarda-mor José Soares de Araújo, já analisado, vem sendo descoberto outros nomes de artistas atuantes na região, como o do cartógrafo e pintor Caetano Luiz de Miranda e Silvestre de Almeida Lopes.4

A obra não se resume à análise da produção artística do território mineiro, abarcando também o estudo do rococó no Rio de Janeiro — com uma produção específica, porém, mal conservada —, no litoral nordestino — de forte influência portuguesa — e no Pará — onde se encontra obras do arquiteto italiano Antônio Landi, grande nome do barroco tardio. A ênfase da historiografia em Minas, muitas vezes relega a importância destes centros, que também possuíram uma produção artística de forte expressão.

O livro de Myriam, como toda síntese, peca por trazer lacunas. O que, de modo algum retira o mérito desta obra, abrangente, cuidadosa e inovadora em sua interpretação. A autora inclusive reconhece que ainda há muitos estudos a serem feitos, que irão complementar este grande quadro da nossa arte colonial. Um passo importante a ser realizado ainda é o de inventariar as obras artísticas brasileiras, processo iniciado pela equipe do então SPHAN, em meados de 1940 e ainda não completado. Esse trabalho filológico é o ponto de partida para todos aqueles que querem estudar a arte luso-brasileira. Pode-se dizer, contudo, que Myriam alcança seus objetivos de, ao revisar conceitos tradicionalmente aceitos, ajudar a compreender melhor o rococó e assim, produz uma obra de referência fundamental.

Notas

1 Sobre o assunto ver o artigo de MANDROUX , Marie-Thérèse: ‘La circulation de la gravure d’ornament em Portugal du xvie. au xviiie”. In: Congresso Internalionale di Storia dell’Arte, Bolonha, 1983.

2 Cf. LEVY, Hannah. “Modelos europeus na pintura colonial” In: Revista do SPHAN, 8 (1944): 07-66.

3 Ver SANTOS, Antônio Fernando B. dos. A Igreja de Nossa Senhora do Carmo e a pintura ilusionista de José Soares de Araújo. Dissertação de Mestrado em Artes Visuais, Escola de Belas Artes/UFMG, 2002.

4 Cf. ARAÚJO, Jeaneth Xavier. Para a decência do culto de Deus: artes e ofícios na Vila Rica setecentista. Dissertação de Mestrado em História/ UFMG, 2003; vj. Ainda CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Vida cotidiana e produção artística de pintores leigos nas Minas Gerais: José Gervásio de Souza Lobo, Manoel Ribeiro Rosa e Manoel da Costa Ataíde” IN: PAIVA, Eduardo F. & ANASTASIA, Carla (0rg). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver — séculos XVI a XIX. Belo Horizonte: UFMG- Annablume, 2001. Pp. 247-264.

Flávia Gervásio Klausing – História/UFMG-FAPEMIG. Bolsista de Iniciação no Projeto Pompa e Semana Santa no Barroco luso-brasileiro, CNPq coordenado pela profa. Adalgisa Arantes Campos.

Acessar publicação original

[DR]