Oliveira Lima e a longa História da Independência | André Heráclio do Rêgo, Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães

Lucia Neves e Lucia Guimaraes Oliveira Lima e a longa História da Independência
Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães | Fotos: A Hora e CocFioCruz.br

NEVES Oliveira Lima Oliveira Lima e a longa História da IndependênciaHá uma intrigante expressão popular na língua inglesa que sempre desafia o sujeito na direção da curiosidade e da investigação. Cito-a aqui no original: “more than meet the eye”. Ao que tudo indica, trata-se de uma expressão idiomática cuja origem histórica é difícil de rastrear, mas que nos brinda com uma imagem deveras interessante e ilustrativa: a do olhar em movimento, que se desloca na direção de algo com a intenção de “encontrar” o que não lhe parece óbvio, o que pode ainda ser revelado, elaborado, e portanto compreendido.

Cai como uma luva, no meu humilde entender, para dialogarmos nesta breve resenha, acerca da imensa contribuição intelectual e historiográfica, que podemos despreocupadamente constatar em cada página da obra Oliveira Lima e a longa história da Independência, organizada por André Heráclito do Rêgo, Lucia Maria P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães. Leia Mais

Ascensão e queda do paraíso tropical | História – Questões e Debates | 2021

Ascencao e queda do paraiso tropical 2 Oliveira Lima e a longa História da Independência
Montagem sobre o cartaz de “Ascensão & queda do paraíso tropical“.

A imagem do Brasil como “paraíso tropical” tem uma longa história, como mostram os conhecidos estudos dos prestigiados intelectuais Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda e, posteriormente, os trabalhos de Ronaldo Vainfas, de Ronald Raminelli e de Richard Parker, entre outros.[1] Desde os inícios da colonização, apontam esses autores, os europeus perceberam os povos nativos como indolentes e preguiçosos, desrespeitando suas tradições e negando violentamente seus modos de existência. Não foi muito diferente a imagem que construíram dos negros e das negras africanos, aqui trazidos pelo tráfico negreiro para substituir o trabalho indígena, segundo a triste e nefasta imaginação cristã dos colonizadores europeus. Leia Mais

Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder | Erivaldo Fagundes Neves (R)

Desde a superação da fase ensaísta do pensamento social brasileiro e sua substituição por uma fase acadêmica, disciplinar, aumentou muito a exigência para uma síntese de história do Brasil que fosse, ao mesmo tempo, interessante para o debate público e que contemplasse a produção crescente de especialidade de áreas e sub-áreas. Conhecimento de fontes de períodos distintos da história do Brasil, especialmente colônia e império, trânsito em diferentes campos de pesquisa como história econômica, história da escravidão, história cultural, história territorial e historiografia, são atendidos por Formação social do Brasil do historiador baiano Erivaldo Fagundes Neves, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.

Neves é uma referência em campos como história agrária, história da escravidão e história regional e local dos sertões da Bahia. Mobilizando sua experiência, produziu uma interpretação da história do Brasil à partir das categorias de etnia, cultura e poder. A obra serve ao estudioso, por seu embasamento teórico e empírico, ao mesmo tempo em que interessa ao debate público pois discute hierarquias raciais, desigualdade, estrutura do Estado e persistência de instituições de privilégio. Mesclando narrativa e análise objetiva, Neves defende a tese de que o Brasil conserva do antigo regime português comportamentos e relações de poder marcadas pelo regime de mercês e privilégios, ao mesmo tempo em que possuiria uma cultura popular exuberante marcada pela diversidade e autonomia. Essa resenha do livro Formação social do Brasil descreve seu conteúdo e destaca lacunas e pontos de força.

Nos quatro primeiros capítulos, o autor trata de temas que podem ser considerados os “antecedentes” do país. Trata de história pré-colonial do Brasil, faz uma ampla revisão das teses arqueológicas sobre povoamento do Brasil, relativizando a teoria de migração via estreito de Bering e afirmando a plausibilidade da hipótese das múltiplas migrações, via África, Polinésia e Extremo Oriente, para a América, bem como das grandes migrações internas no continente sul-americano. Trata de sambaquis litorâneos, aldeias de pescadores, ceramistas e agricultores ribeirinhos no interior do país. Analisa a formação das nações indígenas no período colonial. Discute a formação de Portugal, desde a hegemonia mourisca do território, do Estado português no medievo e do contexto de tensões políticas entre estados cristãos e muçulmanos no Mediterrâneo ocidental, analisa a presença de povos roms, chamados callí na península ibérica. Debate a história dos povos africanos que tinham relação mais próxima com a história do Brasil pelas mediações do tráfico humano e do comércio. Há estatísticas do tráfico e discussão das construção das nações coloniais africanas, como banto, haussá, nagô, jeje ou mina, a serviço do colonizador ibérico.

Não faltam os temas clássicos de presença francesa e flamenga na colônia, o pacto colonial-mercantil e as resistências indígenas e quilombolas. A novidade é a incorporação de uma tendência da historiografia colonial que destaca o caráter não-linear e efêmero da conquista, recuos e resistências, especialmente nos dois primeiros séculos. Neves destaca que a história do século XVII não é só da destruição de Palmares, mas também das 37 vitórias que o quilombo obteve frente às expedições da Coroa. Há uma análise densa dos dispositivos jurídicos-políticos e socioculturais da colonização, a adaptação no transplante para a América, descrições do aparato administrativo da colonização, as instâncias judiciárias e o aparelho militar. Um dos pontos fortes do livro que enriqueceria as atuais discussões públicas sobre direitos e privilégios no país é o tratamento da economia de mercês, com privilégios e suas hierarquizações complexas no modo de organizar a república no Antigo Regime e sua transplantação. Sobre a dimensão cultural, Neves debate o Barroco como um gênero que se apropriou das inovações técnicas do Renascimento e as extrapolou para criar alegorias à partir de signos, o papel da religião na vida cultural e artística da colônia, as academias literárias surgidas no século XVIII como expressão da ilustração colonial e a completa autonomia da música, que conservou o cantochão nos templos, não desenvolveu a música de câmara europeia e promoveu uma imensa riqueza em termos de música popular de rua. Também trata dos aspectos econômicos. Para Neves, é insuficiente compreender a colônia brasileira apenas como exportadora de gêneros para o comércio mundial, mas também perceber o mercado interno. Destaca o papel da pecuária na ocupação dos sertões, da mineração do adensamento demográfico do interior e na mudança de gravidade econômica da colônia e o mito do bandeirante é analisado em sua construção no final do século XIX. O autor destaca os aspectos ideológicos dos protestos anticoloniais, o iluminismo entre os grupos sociais abastados e médios e o haitianismo dos setores subalternos, além dos aspectos políticos da transferência da corte para o Brasil em 1808.

Entre os capítulos 10 e 13, o autor trata da formação do Estado pós-independente. Aborda o papel dos poderes oligárquicos regionais, as continuidades do absolutismo português no poder moderador da constituição outorgada, a formação da burocracia, das forças armadas e de uma elite aristocrática homogênea em torno de Pedro II como estratégia de governança. Para o autor houve duas grandes tendências nas tensões políticas do país, a de centralização do poder e o federalismo das oligarquias rurais, comerciantes e mineradoras regionais. Essa dualidade foi investigada no capítulo sobre as regências, com análise da configuração política partidária do país, dos conflitos federalistas e das guerras civis generalizadas, inclusive as de recorte social e racial. Com o golpe da maioridade, Neves narra a construção da estabilidade monárquica, o reformismo que perpetuava o escravismo e o projeto de embranquecimento do país com a imigração. O segundo reinado, para Neves, é marcado por conservadorismo, resquícios do absolutismo, reformas realizadas quando havia grande pressão, manutenção da estrutura de latifúndio e das características econômicas rurais do país.

Neves analisa a exclusão da quase totalidade da população do letramento e consequentemente uma minúscula elite letrada. Oito em cada 10 brasileiros eram analfabetos no século XIX. Os alfabetizados em geral possuíam rudimentos de leitura e escrita, as quatro operações básicas de aritmética e noção de juros simples e compostos, o suficiente para assinar documentos, não possuir o estigma de analfabeto, negociar, votar, talvez ler livros religiosos, livros agrícolas e, depois de 1890, folhetos com romances em versos. Isso se refletiu em uma literatura brasileira que mimetizava estilos europeus, como o neoclassicismo, o romantismo, o simbolismo e o parnasianismo. A ruptura ocorreu com a industrialização, urbanização e formação de uma sociedade dividida em classes. Neves também trata da formação de uma identidade nacional à partir da historiografia no século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil estabeleceu uma história pátria na qual a nação se desdobrava da história colonial, com protagonismo português, sendo indígenas e africanos coadjuvantes. As expressões dessa historiografia eram von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil e os volumes de Vanhargen.

Nos capítulos 13 e 14 Neves trata da transição para a modernidade nos aspectos econômicos, políticos e urbanos. A nova infraestrutura de transportes a vapor e a crescente urbanização, especialmente em Rio de Janeiro e São Paulo, se identificavam com um modelo de civilidade que excluía os mais pobres e pretos. Neves narra a exaustão do escravismo e o colapso da monarquia, derrubada por uma parada militar, após uma longa crise política, sucedida por uma ditadura de marechais até a transição para os governos civis que representavam as oligarquias regionais mais poderosas. A república foi seguida de decepção, manifesta furiosamente em lutas sociais como as revoltas da armada, da vacina e da chibata, o tenentismo, o cangaço e os movimentos milenaristas. Trata do processo de consolidação territorial e dos tratados sobre as fronteiras do país, destacando os conflitos com Paraguai e Bolívia. A seguir, o autor discute o colapso da república oligárquica e o processo de modernização pós-revolução de 30. Além da narrativa dos principais acontecimentos que levaram ao fim do regime liberal, destacando o colapso do modelo agroexportador e a recomposição política construída à partir do declínio da hegemonia ruralista, Neves analisa as condições mais estruturais da modernidade e a sua implantação no Brasil, uma sociedade herdeira do escravismo que continuava as formas mais perversas de racismo, exclusão sócio-racial, analfabetismo generalizado e permanência das estruturas de mercê e privilégios. Em que pesem as rupturas em termos de estética, moda e expressão cultural, a moderna sociedade conservava uma série de suas características e mazelas, nos sertões e nas capitais.

No capítulo 15, Neves apresenta vários pensadores do Brasil, desde Antonil, seguido por von Martius, Vanhargen, chegando a Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manoel Bomfim, Oliveira Lima, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire. Para Neves, o Brasil se caracterizaria por sua alegria, sociabilidade e generosidade, com aspectos do burlesco, do chistoso e do manhoso. Manifestos por uma minoria, haveria a astúcia, a vadiagem e a ilicitude, já destacadas por intérpretes do país como uma das características do brasileiro, mas segundo Neves, seriam aspectos marginais da população e expressão de suas estruturas perversas de concentração de terra, propriedade e poder. A escravidão, o genocídio, o latifúndio, a política baseada na mercê e nos privilégios, característica do antigo regime ibérico, teriam engendrado estruturas que persistem na organização do país. A história brasileira se caracterizaria, assim, por tendências opostas, como o centralismo e o federalismo, o latifúndio e a minifundização da propriedade, a opressão na forma de escravismo, jaguncismo, coronelismo e políticas excludentes dos oligarcas e a adaptação, burla, resistência e revolta permanentes.

Formação Social do Brasil mescla análise estrutural de longa duração, com destaque para aspectos econômicos, étnicos e políticos, mas há momentos narrativos, especialmente após a independência. O recorte cronológico vai até a revolução de 30. A ditadura civil-militar de 1964 está ausente, mas é tentador para o leitor pensar o período recente da história do país à partir das teses do autor de persistência de elementos do antigo regime na modernidade brasileira, como o sistema de mercês e privilégios e as reformas feitas sob pressão por regimes autocráticos. Algumas lacunas são as lutas sociais do movimento operário, já com destaque nas cidades nos anos 1910, e o banditismo rural, exceto por um tratamento mais atencioso ao cangaço. Como ficam os conflitos armados do império e da república de grande escala, como os que envolveram Militão Plácido da França Antunes nos anos 1840 e Horácio de Matos nos anos 1910, ainda ausentes em livros síntese de história do Brasil, dentro das das teses do autor sobre oligarquias fardadas? Formação é mais um livro de história econômica do que de história social, trata mais de estrutura que de conflito, embora destaque que a tensão e a revolta são permanentes.

O leitor que desejar conhecer com mais vagar os aspectos étnicos da formação do povo brasileiro, encontrará uma material amplo que trata de Portugal, África e América, pré-colonial e colonial, que permite uma visão panorâmica dos povos que formaram o Brasil. Além da diversidade étnica de indígenas e africanos traficados para a América, há destaque à diversidade étnica de Portugal, onde mouros, judeus e ciganos faziam parte da população que atravessou o Atlântico.

Uma última observação é que sua estruturação em capítulos pode ser desmontada e remontada. É possível fazer a leitura dos capítulos sobre etnia ou sobre economia, como também há capítulos de temas de cultura ou de política. Outras ordens podem ser feitas pelo leitor, sem prejuízo de sentido, devido à riqueza bibliográfica com qual cada tópico é construído. Nesse sentido, a profusão da bibliografia pode servir de guia de leituras para entender o Brasil. Em outros sentidos, o livro oferece ao leitor bastante autonomia, já que ele pode usá-lo como guia de leituras de aprofundamento, graças à bibliografia ampla e como cardápio de hipóteses extraídas do período colonial, imperial e primo-republicano para pensar questões recentes do país.

A novidade do livro é a proposta de uma história das estruturas econômicas e políticas do país que, não sendo concentrada no sudeste, seja territorialista. As obras escritas por Neves sobre os sertões baianos, tendo por objeto a conquista, o escravismo, a estrutura fundiária, a rede comercial e a cultura, permitiram que ele diferenciasse o território da sociedade, tentação em que caem muitos dos historiadores que pretendem se afastar de uma história dos centros administrativos do litoral. Não há “um sertão do Brasil”, mas sociedades, economias e oligarquias sertanejas, fundamentais para a estruturação do Estado e das hierarquias, políticas, sociais e raciais. Num momento em que a regionalização apressada vem ganhando espaço nas análises sobre política do país, onde abundam expressões como “o eleitor nordestino”, o “o voto dos grotões”, a “divisão regional”, é valiosa uma obra que não reifica o sertão, ao mesmo tempo em que não cai no caminho mais óbvio da historiografia brasileira de síntese que pensa o Brasil, para além de seus centros urbanos de expressão econômica ou administrativa, como território.

Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás e professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761.


NEVES, Erivaldo Fagundes. Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A persistência do privilégio: uma história das estruturas e das hierarquias do Brasil. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.508-513, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz (R)

É preciso coragem de verdade para enfrentar as histórias associadas às construções mitológicas, sobretudo aquelas calcadas no senso comum. A importância de uma resenha do livro de Lilia Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, não reside exclusivamente na qualidade de seu conteúdo, mas sobretudo na atualidade de seu tema. A vontade da autora em dar uma rápida resposta à crise política da qual atravessamos, reveste o livro de importância, independentemente da relativa superficialidade com que aborda o tema. Tal superficialidade, no entanto, não deve ser encarada apenas como uma fragilidade argumentativa. Se boa parte da sociedade brasileira está estupefata com a escalada do autoritarismo bolsonarista, era urgente que algum historiador propusesse algumas respostas que dessem conta de explicar o recrudescimento do autoritarismo e a violência institucional que ele implica. Temos sempre de ter em vista que a história não deve ser direcionada para usufruto exclusivo de seu público especializado, mas que momentos políticos conturbados exigem que reflexões deste tipo se tornem públicas, sem, é claro, perder as especificidades da disciplina.

Uma importante reflexão do livro, quase chave explicativa para entendermos o principal público a que se destina a obra, trata-se de uma reflexão onde a autora encaminha uma diferenciação entre história e memória. Neste caso, a história seria um procedimento inconcluso, plural, composto em diversos debates, “incompreensões e lacunas”. Já a memória, um procedimento individual de atualização do passado no presente, uma produção. Se recupera “o presente do passado”, fazendo com que o passado também vire presente. Nesse sentido, o que pretende a autora é lembrar, ou seja, repensar o presente sob os auspícios do passado, ou seja, sem esquecê-lo, projetando ao mesmo tempo o futuro. Dessa maneira ela entende que não há como dominar totalmente o passado e que sua contribuição jamais se propõe a fazê-lo, se distanciando, agora, da história pois essa seria composta de uma diversidade de debates sem os quais ela pretende realizar. Com isso, podemos entrever que a obra busca uma maior amplitude de público que não somente o especializado, pois não se dedica a fazer história, mas, como bem quer a autora, a produzir memória, sendo esta produção, por fim, uma atitude individual, capaz de ser realizada por todos

Segundo nos conta sua introdução, um dos objetivos da obra é justamente tentar acalmar os ânimos daqueles que não encontram respostas para o crescimento acelerado da violência e da intolerância, questões que acompanham o Brasil da atualidade. Para tanto, a autora convida esse leitor a uma viagem pela História do Brasil, entendendo as bases de nossa desigualdade e conflito, o terreno fértil aos arranjos autoritários que acompanham a nossa política. Por completude, entende-se que esses regimes forjam sua legitimidade na construção narrativa da harmonia e paz social, mas funcionam de maneira a conservar suas práticas centralizadoras e segregacionistas.

É consenso que a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência é um momento inaugural na terceira república, rompendo o quadro democrático proposto na constituição de 1988. Para tanto, diz Schwarcz que essa ruptura foi orientada através de batalhas retóricas em torno de novas narrativas históricas, construindo uma verdadeira batalha entre modelos autênticos e falsos, causa e consequência da divisão política do Brasil atual.

Nessa batalha retórica, um dos argumentos encontrados na tradição autoritária brasileira é a constante reafirmação de um mito nacional, no qual lê-se o Brasil como um território onde os problemas nacionais são encarados de maneira harmoniosa e positiva. Esse argumento se estabelece numa leitura continuada da história do Brasil. Segundo a autora, o ponto original dessa elaboração é o naturalista Von Martius, um dos fundadores do IHGB, segundo ela o primeiro responsável por estabelecer a “metáfora das três raças”.

Na concepção da autora, a batalha retórica se materializa na prática governamental da seguinte maneira. O Estado, grande articulador da convivência social, busca sua própria versão da História, promovendo determinados acontecimentos político-militares e “suavizando” problemas que tem raízes históricas e que estão fincados no presente. Essa “história única” postulada pela retórica governamental de caráter autoritário, busca sobretudo naturalizar “estruturas de mando e obediência”, sem poupar esforços para exercer seu controle e violência institucional, abandonando, na prática e de certo modo, a leitura harmoniosa que embala a sua construção mítica.

Em sua viagem pela história do Brasil, na tentativa de estabelecer as bases onde se assentam a tradição autoritária brasileira, a autora começa pelo tópico “Escravidão e Racismo”. O argumento histórico é que a escravidão é uma instituição colonial aprofundada no Império e persistente na República, sendo “o racismo filho da liberdade”, pois perdura na organização social da contemporaneidade brasileira, uma vez que a população negra é a mais vitimizada do país. Outro ponto importante no trato do capítulo é a discussão que aponta para o vínculo dos projetos autoritários com a prática que remete ao legado colonial, onde tenta-se sistematicamente “recriar e obscurecer” o papel e a história das populações não europeias.

Dando sequência às temáticas, a autora propõe a investigação do “Mandonismo”, uma estrutura herdada da tradição colonial “assenhoriada” e aprofundada na sua forma coronelista. Para mim, esse é o principal ponto no qual gravita a tradição autoritária brasileira. Primeiro para entendermosas bases do mandonismo, é importante percebermos que segundo a autora, nossa aristocracia colonial foi meritória e não hereditária, onde o reconhecimento do privilégio era individual e tido como um favor do Estado. Nesse sentido, recorre a um importante argumento de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, qual seja, o uso de diminutivos e apelidos utilizadospelos subordinados para se direcionar a seu senhor, sendo uma maneira de confundir o público e o privado, ou melhor, uma prática que, ao aproximar as hierarquias distintas, confunde a dominação.

O terceiro tópico é o “Patrimonialismo” e este é mais uma vez apresentado segundo sua base colonialista. Desde o início da ocupação, os colonos centralizavam uma série de funções administrativas e de autoridade pública – marca administrativa da colônia brasileira. Nesse meio, cabe uma crítica na maneira com que a autora discute o conceito de patrimonialismo. Ela afirma que a prática atravessa diversos grupos ou estratos sociais e que está ligada ao sentido geral da propriedade. Porém, cabe discutir se no uso do conceito não seria melhor trabalha-lo a partir da perspectiva que entende o Estado como instrumento de uma classe, sendo mais eficiente para entendermos a tradição autoritária do Estado brasileiro.

Ao desembocar no tópico da Corrupção, me permitam uma pergunta com a qual indaguei a autora durante a leitura de seu livro. A corrupção é cultural ou estrutural? Nas suas análises Lilia Schwarcz aposta na tese da continuidade histórica e afirma ser a corrupção uma herança dos tempos coloniais, ao meu ver, portanto, estrutural. Num esforço de origem, ela retoma um relato fundante de nossa história, a carta de Pero Vaz de Caminha, onde o escrivão chega a apelar ao então rei português que facilite a vida de seu genro. Contudo, ao final, é apresentada a ideia, como encerramento da reflexão, de que a corrupção, nas palavras da autora, constitui um problema endêmico do Brasil, parte do caráter brasileiro e, portanto, fincada na cultura nacional. Ao menos assume não ser impossível de ser erradicada, sendo o grande desafio da atual República.

Ao se referir às práticas de corrupção no Império, é citado um dito popular utilizado para exemplifica-la naquele regime político: “Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é Barão, quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde”. Tal abordagem não sinaliza apenas uma “questão de preço”, como indicado no livro, mas uma questão de classe, argumento que ela evita enfrentar diretamente ao longo da publicação aqui resenhada.

A Desigualdade – novo tópico – por sua vezé conclamada a partir da escravidão. Na sequência de sua argumentação, o passado colonial é sempre posto como ponto originário do desequilíbrio social, através justamente da concentração de terras e renda e suas respectivas práticas culturais patrimonialistas. No entanto, entre continuidades e rupturas, a autora infere que aquele tempo não deu conta de esclarecer porque o processo de industrialização do século XX não foi capaz de romper esse ciclo vicioso do passado, dando uma certa independência histórica ao fenômeno de nossa modernidade e contradizendo a perspectiva de que ela é na verdade carente, fruto de nossa dependência colonial.

Já encaminhando o desfecho do livro, Lilia Schwarcz propõe a discussão da violência, onde aqui destaco os argumentos que pretendem circunscrever sua forma autoritária e institucional. Parte fundamental é a discussão de que, no momento presente, sendo a violência uma marca estrutural de nossa história, estaríamos diante de um perigo eminente, tendo em vista os incentivos governamentais à brutalidade, à redução da maioridade penal e ao armamento. Contudo, o recrudescimento autoritário entendido nessas medidas não é capaz de entender e enfrentar a violência como um grande problema nacional.

A violência no campo é pouco ou quase nada trabalhada pela autora, tratando exclusivamente da questão indígena. Um ponto importante da argumentação sobre o tema é o fato de que a partir do Império se criou a imagem de que os indígenas a serem valorizados seriam aqueles capturados pela cultura nacional única e indivisível, os que tendiam a valorizar e defender sua existência sem passarem pelo processo de aculturação, seriam, enfim, tidos como bárbaros. Nesse sentido, argumenta a autora que essa visão romântica se transforma num processo violento que se eterniza na história nacional.

Em Raça e Gênero, sem muito me alongar no debate, apesar de considerar uma discussão importante para o equilíbrio social na contemporaneidade, apresento o apelo da autora para a criação de política públicas afirmativas, uma constante do livro. Mais caro ao esforço intelectual para o entendimento do autoritarismo, é a constatação de que o país se constitui na base de desigualdades socioeconômicas atreladas a questão de raça e gênero, mas também de geração e região.

Um ponto ao mesmo tempo já desgastado, mas importante de ser apresentado é quando a autora comenta que existe um racismo dissimulado no país, reservando à polícia a principal performer da discriminação. A partir desse ponto ela começa a citar casos de corpos negros vulneráveis como exemplos da violência policial, dentre os quais se destaca o recente assassinato de Marielle Franco.

Outro ponto que remete a questão de raça e gênero é a cultura do estupro. Ela é, ou ao menos deveria ser, um dos grandes problemas a serem enfrentados pelos governos em suas diversas esferas. Para exemplificar a construção patriarcal que ao longo do tempo tem autorizado, naturalizado e legitimado o estupro, a autora recorre às imagens da colonização, empresa de caráter masculino, onde o território colonial americano foi insistentemente representado como um corpo feminino a ser dominado e explorado. Ao final, em Intolerância, parte fundamental da imposição em torno das políticas afirmativas das minorias reside no argumento de que o Brasil é “uma nação de passado violento, cujo lema nunca foi a inclusão de diferentes povos, mas sobretudo a sua submissão, mesmo que ao preço do apagamento de várias culturas”.

Em dado momento em que discute a intolerância, a autora propõe que a crise política que engendrou o recente autoritarismo deu-se por um desgaste democrático ao longo dos últimos trinta anos, o que dá brecha para uma interpretação naturalizada da emergência conservadora. É uma interpretação confusa, pois em certo nível justifica a escalada autoritária, seus discursos e suas práticas, estas incompatíveis com uma organização política democrática, como bem defende a autora.

É evidente que a história do país e todos os argumentos dela derivados para definir as raízes de nosso recente autoritarismo, ilumina a cena atual. Contudo, a particularidade da política dos últimos anos, ou seja, o acirramento pós manifestações de 2013, escanteou os mitos fundantes da nacionalidade, e a proposta de sociedade harmônica do novo discurso autoritário nasceu envolta em meio daqueles que a buscam negar.

Filipe Menezes Soares – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará. Atualmente pesquisa sobre os seguintes temas: teoria e metodologia da história, ditadura militar no Brasil, conflitos agrários, Nordeste e Amazônia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2535-8538


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SOARES, Filipe Menezes. Muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.519-524, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

Transferência de renda no Brasil: O fim da pobreza? | Sonia Rocha

Nos últimos 10 anos observou-se no Brasil um crescimento significativo no desenvolvimento de programas sociais voltados para o núcleo mais pobre da população. Consequentemente, seu crescimento resultou numa maior participação deste tema no centro dos debates socioeconômicos, sobre as suas funcionalidades e implicações. A temática dos programas sociais ganhou destaque perante a grande mídia, assim como, na política e na econômica. Sobretudo no que se refere aos programas destinados a transferência de renda, que se transformaram no principal ponto de discussão sobre as políticas sociais; se dirigindo a elas como políticas de cunho clientelistas e de não contribuição social.

Inserido neste debate, apresentamos a obra lançada em 2013 pela editora Campus Elsevier intitulada: “Transferência de renda no Brasil: O fim da pobreza?”. Escrito pela economista e pesquisadora Sonia Rocha, este livro tem como objetivo analisar a trajetória dos programas de transferência de renda no país. Apresentando seu processo de maturação, suas principais características e efeitos, ao mesmo tempo que realiza uma historicização destes projetos na trajetória política e social do Brasil. Leia Mais

África e Brasil no Mundo Moderno | Eduardo França Paiva e Vanicléia Silva Santos

 

Resenhista

Jeocasta Oliveira Martins – Universidade Federal de Minas Gerais.


Referências desta Resenha

PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia Silva. (Orgs.). África e Brasil no Mundo Moderno. São Paulo: Annablume. Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2012. Resenha de: MARTINS, Jeocasta Oliveira. Uma história de conexões: África e Brasil. Escrita da História, v.1, n.1, p.144-149, abr./set. 2014. Acesso apenas pelo link original [DR]

Escrita da História | [?] | 2014

Escrita da Historia Oliveira Lima e a longa História da Independência

A Revista Escrita da História (2014-) tem por finalidade a publicação de trabalhos científicos inéditos na área das Ciências Humanas e Sociais, com o objetivo de promover a produção acadêmica, tanto de pesquisadores em início de trajetória quanto de investigações já consolidadas, desde que sejam trabalhos de fôlego analítico.

Periodicidade semestral

Acesso livre

ISSN 2359 0238

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Parcerias Estratégicas do Brasil: os significados e as experiências tradicionais | Antônio C. Essa e Henrique A. de Oliveira

Com o advento da globalização e o concomitante processo de expansão das relações internacionais após o término da Guerra Fria, tornou-se imperativo que muitos países revejam suas estratégias de inserção internacional, de modo a universalizá-las e desconcentrá-las de sua base regional. Isso gera uma ampliação do número de parcerias detidas por um país, o que induz à necessidade de evidenciar a relevância de determinados relacionamentos face aos demais, ou seja, de singularizar determinadas parcerias enquanto especialmente relevantes para o cumprimento dos objetivos entendidos como prioritários relativamente à consecução do interesse nacional.

Ganha-se, portanto, cada vez mais espaço no discurso diplomático a utilização, embora ainda de forma vaga e vulgarizada, do conceito de “parcerias estratégicas”. Especialmente no que tange aos estudos sobre os movimentos recentes da política externa brasileira, torna-se mister a necessidade de melhor entender esse conceito, de forma a facilitar a compreensão das prioridades delineadas pela diplomacia brasileira. Leia Mais

Relações Internacionais e Política Externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização | Paulo Roberto de Almeida

O livro “Relações Internacionais e Política Externa Brasileira: a diplomacia brasileira no contexto da globalização” traz uma herança de outros tempos para as pesquisas atuais em política externa. Tanto que, na primeira parte da obra, é apresentado ao leitor o tratamento dado ao estudo das relações internacionais no Brasil, que segundo Almeida, é um campo ainda não totalmente mapeado.

Os anos 1980 foram palco do crescimento notável dos estudos de relações internacionais no Brasil, principalmente, com a criação de vários cursos de graduação nessa área. Porém, no período em que ainda era estudante, Paulo Roberto de Almeida, aprendeu a compreender o meio internacional estudando-o na prática, por conta própria. Como jovem diplomata pôde consolidar essa ampla formação através de sua atuação no exterior. Leia Mais

Gnarus | [?] | 2012

Gnarus Oliveira Lima e a longa História da Independência

A proposta da Gnarus Revista de História ([?], 2012-) é a de reunir em uma publicação tanto historiadores experientes e de renome como, e principalmente, abrir espaço aos iniciantes, aos estudantes de graduação e pós-graduação interessados em participar e contribuir na produção e análise da historiografia do Brasil e do mundo.

Nosso desejo não é fazer apenas uma revista de História, mas também de empreender um instrumento da divulgação de um conhecimento que extrapole  o traçado dos limites acadêmicos, que compreenda o fazer História não como um objetivo exclusivamente douto, mas também com uma preocupação essencial para a experiência cotidiana de educação e cidadania.

[Periodicidade semestral]

Acesso livre

ISSN: 2317-2002

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Hotel Tropico: Brazil and the challenge of African decolonization, 1950-1980 | Jerry Dávila

‘We are going to be Africans, we are going to be Africans!’ It’s going to

be great! `We are all Africans, all Africans.’

Maria Yedda Linhares

Esta resenha examinará o livro Hotel Tropico: Brazil and the challenge of African decolonization, 1950-1980. O trabalho é de autoria de Jerry Dávila e foi publicado ano passado pela Duke University Press (2010, 328 páginas, ISBN: 0822348675). O livro é leitura essencial para historiadores (relações Brasil-África), antropólogos (debate sobre raça e identidade), economistas (promoção comercial e relações econômicas Brasil-África) e internacionalistas (um dos primeiros ensaios da diplomacia sul-sul brasileira). Ele é dividido em nove capítulos – além de introdução e epílogo. Há alguns temas recorrentes, como o impacto das relações com Portugal, o ideário da “democracia racial” e seus desdobramentos na diplomacia, a reconstrução dos laços na década de 1970 e a dimensão comercial. Apesar de falar da descolonização do continente, Gana, Senegal, Nigéria e Angola são, na verdade, os únicos países examinados com profundidade. Os temas também não são novos. Muitos atores já se debruçaram sobre as questões examinadas no livro – de José Honório Rodrigues a Adolpho Bezerra de Menezes, de Alberto da Costa e Silva a Florestan Fernandes, de Maria Yedda Linhares a José Flávio Saraiva. O autor tampouco é neófito no tema, pois publicou artigo na Revista de Antropologia em 2008 sobre a experiência de diplomatas brasileiros na Nigéria (Dávilla: 2008). Leia Mais

O Brasil no discurso da antropologia nacional | Mônica Thereza Soares Pechincha

Resenhista

Leandro Mendes Rocha – Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás.

Referências desta Resenha

PECHINCHA, Mônica Thereza Soares. O Brasil no discurso da antropologia nacional. Goiânia: Cânone Editorial, 2006. Resenha de: ROCHA, Leandro Mendes. Cultura nacional e identidade. História Revista. Goiânia, v.11, n.2, p.401-402, jul./dez.2006. Acesso apenas pelo link original [DR]