Erário Mineral – FERREIRA (VH)

FERREIRA, Luis Gomes. Erário Mineral. 2ed. Belo Horizonte: Centro de Memória da Medicina, 1999. Resenha de: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.23, p. 239-241, jul., 2000.

Depois de alguns anos de espera, foi finalmente lançada, pelo Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, UFMG, a segunda edição do Erário Mineral. O lançamento foi cercado de pompa e circunstância, como não poderia deixar de ser, pois é conhecida a dificuldade encontrada para empreender projetos como este nos espaços acadêmicos.

É interessante observar que havia uma proibição quanto às edições do Erário Mineral, solicitada pelo próprio autor, Luis Gomes Ferreira, junto às autoridades portuguesas. De acordo com o proponente, a solicitação fazia-se necessária considerando os altos custos de produção da obra. Nesse caso, o próprio autor seria o responsável pela comercialização do texto podendo, deste modo, recuperar o investimento realizado. A “provisão de privilégio” foi concedida em 22/11/1735, por dez anos, e significava que nenhum livreiro, impressor ou qualquer outra pessoa poderia, durante esse período, imprimir, vender ou mandar vir de fora do Reino o dito livro1. Desde então passaram-se mais de duzentos anos até que pudéssemos adquirir um exemplar de um dos compêndios de saúde utilizados nos séculos XVIII e XIX, especialmente no ambiente das Minas Gerais, sem ter necessidade de recorrer ao mercado de livros raros.

O Erário Mineral iniciou sua circulação em Lisboa em 1735 e a dedicatória é encaminhada “À puríssima Virgem Maria Nossa Senhora da Conceição, Mãe e advogada de todos os pecadores.”2 Mesmo confiante na sua formação, que lhe conferia o título de cirurgião-aprovado, o médico do século XVIII solicitava sempre a ajuda do mundo transcendente, e com Luis Gomes Ferreira não foi diferente. Daí a dedicatória à puríssima Virgem, acompanhada do pedido implícito de proteção.

Luis Gomes Ferreira estudou cirurgia em Lisboa, no Hospital Real de Todos os Santos, obtendo carta em 1705. Trinta anos depois, com experiência acumulada no Reino e no Brasil, divulga sua grande obra. Boa parte da sua experiência foi adquirida no cuidado ao corpo doente da população que habitava as Minas nas primeiras décadas do oitocentos. Chegou ao Brasil antes de 1710 atuando inicialmente na Bahia. Depois dessa data, circulou por várias localidades de Minas Gerais. São vários os casos de pacientes mineiros tratados por Gomes Ferreira citados ao longo do Erário Mineral.

A presente edição é fac-similar e, além dos cuidados com a reprodução do texto em si, toda a edição recebeu tratamento especial: capa dura e papel com cor envelhecida especialmente pintada para essa edição. Por certo os exemplares desta nova edição irão durar aproximadamente mais 250 anos, se consideramos a data da primeira edição.

Todo pesquisador da história da medicina no Brasil, mais especificamente, ou da história sócio-cultural no Brasil, reconhece a importância desta obra. O Erário Mineral faz parte da leitura obrigatória de todo pesquisador nessas áreas e, em especial, daqueles que investigam a região mineira. A disponibilidade deste texto nos arquivos mineiros é bem precária. Podemos encontrar um exemplar no acervo da Casa Borba Gato/Museu do Ouro, sob responsabilidade do IEPHA e há também uma edição no Acervo da Mina de Morro Velho, além do exemplar no Centro de Memória da Medicina/UFMG.

Quando o pesquisador depara-se com uma obra de importância como o Erário Mineral e a disponibilidade de consultá-la através de uma edição fac-similar fica mais fácil o trabalho de pesquisa. A regra básica dos documentos recolhidos nos acervos documentais é a não disponibilidade para empréstimos, por questões de segurança. Esta condição é necessária para preservação do acervo, muito diferente da natureza do acervo bibliotecário tradicional. A documentação que constitui os acervos históricos, incluindo os livros (obras de referência, obras raras) são documentos, quando não únicos, raros, de difícil acesso. Com o passar do tempo, a sua conservação exige cuidados especiais e estão sob a guarda e responsabilidade da instituição recolhedora. Este procedimento exige do pesquisador uma dedicação de tempo significativa. Algumas obras, devido à sua importância e repercussão nos meios acadêmicos, chegam a ser digitalizadas ou microfilmadas para que possam encontrar-se disponíveis pela internet ou por empréstimo/aquisição do microfilme. Este procedimento ainda não foi adotado para o Erário Mineral, valorizando ainda mais a recém lançada edição fac-similar.

O Erário Mineral, dividido em doze tratados, aborda os temas variados que poderiam auxiliar os enfermos nas regiões onde a existência de poucos médicos era regra. Trata-se assim de um verdadeiro guia indicando as doenças e problemas de saúde mais comuns para a população, não apenas das Minas Gerais, mas de qualquer localidade onde a freqüência de médicos era baixa. As informações de que dispomos não nos possibilitam afirmar, mas podemos indicar que médicos, com as qualificações de Luis Gomes Ferreira (cirurgião-aprovado) também utilizavam-se do manual de saúde, isto sem contar com os práticos na arte de curar, que não eram poucos diante da ausência de médicos formados.

O Erário Mineral não está sozinho neste ramo de publicação. Eram comuns obras nesse estilo, que visavam socorrer aqueles que enfrentavam problemas de saúde e os práticos/profissionais ou, para utilizarmos expressão da época, os versados na arte de curar, responsáveis por aliviar a dor e os males do corpo adoentado. Ao longo dos doze tratados do Erário Mineral podemos encontrar as doenças mais comuns, os remédios mais indicados, com suas respectivas formulações, o tratamento das fraturas e deslocamento dos membros, aspectos positivos e negativos da alimentação, permitindo um amplo leque de investigação sobre o mundo da cura no século XVIII: reconstrução do quadro nosológico, entendimento de corpo, doença e saúde, percepção dos procedimentos para restabelecimento do equilíbrio da saúde. Toda esta trajetória está pautada nos pressupostos da teoria dos Humores, herdada de Hipócrates e adaptada por Galeno.

O Erário Mineral cita vários exemplos colhidos da prática e experiência do autor na região mineradora das Minas Gerais. Mais um ponto interessante para os pesquisadores do tema: é possível desenvolver investigação das doenças e condições de saúde presentes entre a população trabalhadora, basicamente mão-de-obra escrava, nas Minas do século XVIII.

Como trata-se de uma edição especial, talvez não seja fácil encontrar o Erário Mineral em qualquer livraria. O mais indicado é entrar em contato com a equipe do Centro de Memória da Medicina, situado na Escola de Medicina da UFMG (http://www. medicina.ufmg.br/cememor). Os pesquisadores das práticas de saúde nos séculos XVIII e XIX agradecem e aguardam novas iniciativas do gênero.

Betânia Gonçalves Figueiredo – Professora do Departamento de História e pesquisadora do Grupo Scientia e Technica- UFMG.

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América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos – PRADO (VH)

PRADO, Maria Ligia Coelho. América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo EDUSP; Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração – EDUSC, 1999 (Ensaios Latino-Americanos; 4). Resenha de: MARTINS, Maria Cristina Bohn. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.23, p. 234-238, jul., 2000.

Dois são os campos em torno dos quais Maria Ligia Coelho Prado centra suas reflexões em “AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XIX. Tramas, Telas e Textos”: a história da cultura e das idéias políticas. Surgida em 1999 — em edição esmerada e muito bem ilustrada — numa publicação conjunta das Editoras da Universidade de São Paulo e da Universidade do Sagrado Coração, a obra reúne — revistos e ampliados — um conjunto de textos que foram apresentados pela autora como tese de livre docência ao Departamento de História da Universidade de São Paulo. Se cada um deles representa uma abordagem sobre uma América multifacética, em conjunto eles constituem um esforço de entendimento das peculiaridades deste universo que é o continente latino-americano.

Centrada no século XIX, a obra percorre diversos temas e questões — que, de fato, entrelaçam-se — fundamentais para a compreensão de um período crucial da história do continente e das nações que o compõem. E, ainda, o faz buscando, em alguns ensaios, fugir aos limites nacionais e propondo, através da história comparada, pensar semelhanças e diferenças entre o Brasil de colonização lusa e os Estados Unidos de colonização anglo-saxônica, em relação aos países americanos de colonização hispânica. Como questões importantes para pensar o século e o espaço em questão, a autora escolheu temáticas que vão das relações entre Universidade, Estado e Igreja à construção das identidades nacionais, do papel dos intelectuais latino-americanos nos debates de sua época sobre a democracia e a participação popular no processo político, ao âmbito do feminino, expresso, tanto na sua participação nas lutas pela independência, quanto no universo de suas leituras no XIX.

Os dois primeiros capítulos do livro retomam um tema capital da primeira historiografia latino-americana: o momento da independência em relação do domínio espanhol. Propõem a eles, contudo, um tratamento que se distancia da produção mais tradicional, ocupada fortemente em exaltar a atuação dos líderes das guerras de emancipação.

No primeiro, “A participação das mulheres nas lutas pela independência política na América Latina”, a autora lembra que, apesar da intensa renovação teórico-metodológica da historiografia contemporânea, a participação feminina nas história da independência da América Latina é território ainda pouco ou nada explorado. Desta forma, e “revertendo a perspectiva de alheamento da mulher das coisas públicas” preocupa-se em desvendar o papel desempenhado por elas nos eventos em questão. Falando da sua participação como mensageiras, como soldado nos exércitos camponeses, ou das suas atividades acompanhando as jornadas das tropas — cozinhando, costurando ou lavando —, das ricas criollas de famílias tradicionais ou de mulheres pobres ou mestiças, o texto de Maria Ligia Prado evidencia a necessidade de uma maior consideração por parte da historiografia da presença feminina num universo que tradicionalmente é percebido como especificamente masculino. Igualmente esclarecedor é o seu alerta para que esta reavaliação não incorra na perspectiva reducionista que, quando reservou-lhe algum papel nesta história, circunscreveu-o de forma a enquadrá-lo não “no espaço público onde efetivamente deu-se sua atuação política”, mas a recolhendo ao circuito do espaço privado, “já consagrado como ‘o lugar da mulher’ “.

Já em “Sonhos e Desilusões nas Independências Hispano-Americanas”, percorrem-se os caminhos do pensamento e da prática políticorevolucionária do colombiano Francisco José de Caldas e do mexicano Miguel Hidalgo y Costilla. O primeiro, postulando uma nova concepção de ciência que questionava os pressupostos escolásticos nos quais se baseara o conhecimento no período colonial, assumiu também uma posição política que o levou a abraçar a causa da independência e, em nome dela, perder a vida. O segundo, levou esta posição ao extremo de conduzir uma insurreição popular que mobilizou as massas em um movimento que fez tremerem as bases do domínio colonial no México. No entanto, “tempos de transformação trazem em si grandes esperanças e sua outra face, as inevitáveis frustrações”, lembra a autora, ao passar a discutir as posições crescentemente autoritárias e conservadoras que foram sendo assumidas por muitos dos que, à época da independência, haviam-se guiado pelas doutrinas liberais. Desta forma ela nos faz acompanhar o movimento pelo qual — no período posterior às guerras de emancipação — aqueles que as tinham iniciado reivindicando a liberdade, passaram a advogar em nome da autoridade.

Dois intelectuais liberais — o argentino Esteban Echeverría e o mexicano José María Luis Mora — são o objeto de análise do terceiro capítulo da obra, em que se analisa suas particulares concepções de democracia e soberania popular, uma vez que justificavam a exclusão dos setores populares da arena política. O ensaio acompanha a reflexão dos dois pensadores sobre os significados das liberdades e da soberania popular, avaliando em que medida a mesma estava condicionada pelas contingentes situações políticas vivenciadas em seus países. Se suas trajetórias pessoais realizam-se por caminhos diferentes, esclarece-nos a autora — Echeverría que fez parte da Geração de 37 não viveu para ver o fim do domínio rosista na Argentina, enquanto que Mora exerceu intensa atividade política tendo participado do governo liberal de Valentín Gómez Farías —, ambos convergem em, a par de sua defesa dos pressupostos da liberdade e da soberania popular, propor mecanismos legais para evitar uma concreta e perigosa participação dos setores populares. Estes seriam desqualificados como sujeitos políticos em favor dos ilustrados que saberiam melhor guiar-se pelo império da razão. Sobre o pensamento e preocupações de ambos, a autora afirma que estavam em consonância com “a situação histórica de seus países e (…) plenamente adequados à realidade latino-americana”, para concluir fecundamente que não se deve concordar com “certas interpretações que separam (…) de um lado , o ‘purismo’ dos pressupostos liberais e democráticos e, de outro ‘a crua e violenta realidade latino-americana’ “.

Na América Espanhola viveu-se, no período pós-independência, uma época de intenso debate entre os defensores da manutenção da universidade colonial e aqueles que propugnavam pela sua extinção, uma vez que viam-na como baluarte do atraso e do domínio da Igreja. Estes últimos propunham que, em substituição aos antigos estabelecimentos de ensino, fossem criadas novas instituições, alicerçadas nos princípios liberais. Este é o objeto do quarto artigo da obra — “Universidade , Estado e Igreja na América Latina”— em que aborda-se o tema das universidades desde o século XIX, tomando-as a partir do campo da história das instituições e das idéias “que devem ser pensadas dentro de um certo contexto sócio-político”. Desta forma, propõe-se a autora a acompanhar, em países diferentes, formas distintas de pensar o tema, elencando o Chile e o México como campo de análise, segundo as especificidades sócio-políticas dos dois países. Por fim, ela aborda o Brasil, em que a primeira universidade surge já em pleno século XX para avaliar como as relações entre Estado, Igreja e Universidade aparecem compondo um quadro em que estão entrelaçados o universo político-ideológico, as lutas sociais e as soluções educacionais propostas.

“Lendo Novelas no Brasil Joanino” estuda textos inscritos neste gênero literário publicados pela Imprensa Régia no Brasil entre 1810 e 1818. A autora propõe-se aí, a analisar a possível “existência, neste período, de um público feminino, provável leitor desses livros, e falar das restrições impostas pela censura oficial à seleção dos textos impressos”. O trabalho de Maria Ligia Prado, porém, não só traça respostas para tais questões, como remete os leitores a outras e igualmente importantes indagações, e que se ligam à história das práticas de leitura. A autora identifica aí, a tensão central de toda história da leitura, entre concepções que postulam a absoluta eficácia do texto (ligadas ao campo de sua produção), ou as que percebem-na como uma prática criativa que inventa conteúdos e significados particulares, não redutíveis às intenções de autores, editores ou censores. Assim, conduzindo-nos ao universo das publicações destinadas às mulheres leitoras do Brasil Joanino, Maria Ligia Prado nos remete, também, aos paradigmas de leitura predominantes neste período e lugar, aos diferentes “modos de ler”, com seus gestos próprios e seus usos particulares do livro. Temas estes, indispensáveis para pensar-se em como os textos escritos, as “novelas para mulheres” neste caso, puderam ser apreendidos, compreendidos e manipulados.

O sexto ensaio, “Para ler o Facundo de Sarmiento” detém-se sobre um dos textos basilares do pensamento político latino-americano e referência fundamental do pensamento argentino. Obra polêmica, matriz de incontáveis e apaixonadas discussões, “Facundo ou Civilização e Barbárie”, foi publicado pela primeira vez em 1845. Sobre ela, a autora preocupou-se em localizar a produção da obra em sua época, analisar suas partes constitutivas e oferecer um quadro dos principais temas e debates que o livro suscitou e tem suscitado. Desta forma, avalia como imbricadas na dicotomia apresentada por Sarmiento entre civilização e barbárie — encontram-se as propostas do autor para um projeto político alternativo para a Argentina, projeto este calcado nos supostos da doutrina liberal e no unitarismo.

E, indo além da análise desta antinomia que é a faceta mais conhecida da obra, Maria Ligia Prado recupera a produção historiográfica mais recente, apontando outras tantas leituras possíveis. Estas podem deter-se, por exemplo, na análise do livro de Sarmiento como representação dos interesses de determinados segmentos sociais da Argentina da época, ou preocupar-se com outras franjas do texto, suas “sutilezas e ambigüidades”, como chama a autora. É assim que o campo, locus da barbárie, é também o espaço do heroísmo, “envolvido em certa pureza e integração com a natureza que a civilização teria, contraditoriamente, que destruir”. Ou ainda a avaliação sobre a aproximação de Sarmiento com o mundo da tradição oral, uma vez que, embora partidário convicto da importância da educação letrada, foi com depoimentos deste tipo que ele construiu suas considerações sobre a vida dos caudilhos.

Enquanto Sarmiento pensa a natureza argentina sob o signo da negatividade — espaço selvagem que cerca e oprime, lugar por excelência da barbárie — escritores e pintores norte-americanos percebiam-na, na metade do século XIX, como fonte cultural e moral e como base da auto-estima nacional. Esta perspectiva particular sobre a wilderness e sua articulação com a construção da identidade e do nacionalismo norte-americano, é o tema de “Natureza e Identidade Nacional nas Américas”. Neste ensaio, a autora analisa a construção de um repertório de imagens nacionais nos Estados Unidos, calcados na força regeneradora da sua natureza — jovem, vigorosa e pura — em contraste com o desgastado mundo europeu; natureza vista sob o signo da positividade, e em benéfica comunhão com seus habitantes e suas instituições.

Assim, enquanto para Sarmiento a solidão dos vastos espaços vazios, que colocam o homem em contato com a natureza, implica na ausência de respublica e favorece o despotismo e a barbárie, Frederick Jackson Turner revolucionava a historiografia norte-americana do período, propondo que era da free land das florestas que brotava a democracia. Ali onde Sarmiento encontrava um fator de dificuldade para os gaúchos organizarem-se como sociedade civil, Turner via a possibilidade de brotar um individualismo que era promotor da democracia. A fronteira, ponto de encontro entre a civilização e a wilderness, é para ele um espaço regenerador, traduzindo-se em renascimento e rejuvenescimento.

Explorando as construções do imaginário americano, Maria Ligia Prado analisa também neste ensaio, o diálogo travado entre os textos escritos e o repertório iconográfico, especialmente o da chamada Escola do Rio Hudson, cuja perspectiva sobre a natureza norte-americana era igualmente edulcoradora. Emergem daí cenários de paisagens intocadas, de uma natureza não-domesticada, que igualmente contribuíram para a elaboração da identidade nacional. Era, assevera, “uma arte nacionalista, que pretendia afirmar que a natureza atingira sua forma mais pura e elevada nos Estados Unidos”.

Com uma narrativa que consegue ser fluente sem fugir, em nenhum momento, do rigor científico e da erudição, nem incidir na simplificação dos conceitos, “AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XIX. Tramas, Telas e Textos” é uma preciosa via de acesso a uma época particularmente importante do universo latino-americano. Expressão da maturidade intelectual de sua autora, a obra nasceu clássica e percurso obrigatório para todos que pretenderem entender este universo, em — nas palavras da autora — suas tramas, telas e textos.

Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, RS.

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História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa – SOUZA (VH)

MELLO e SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 (História da Vida Privada no Brasil, 1). Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.22, p. 211-214, jan., 2000.

” … verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas. porque toda ela não é república, sendo-o cada casa”. Esta é uma frase da epígrafe do primeiro capítulo da publicação História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa, livro organizado por Laura de Mello e Souza, primeiro volume da coleção História da Vida Privada no Brasil, dirigida por Fernando Novais. A frase, extraída da obra História do Brasil (1500- 1627), escrita por nosso primeiro historiador, frei Vicente do Salvador, anuncia o primeiro problema encarado pelos autores do livro e que constitui motivo central da reflexão de Fernando Novais: o desenvolvimento do espaço privado sem que a vida privada estivesse totalmente consolidada. Os níveis de público e privado estão enredados. A noção de privado está associada à formação da nacionalidade, como nos alerta Novais. Assim, a rigor, não existiria uma “vida privada” durante o período colonial, mas só a partir do século XIX, momento da formação de um Estado Nacional.

Guiando-se pelos passos de Philippe Ariês e Georges Duby, que coordenaram a edição de uma História da Vida Privada para a Europa ocidental [Histoire de la Vie Privée. Paris: Seuil, 1985], os historiadores que escreveram a versão brasileira alargaram o conceito de vida privada, considerando as especificidades da América portuguesa e particularizando-o ao abordarem cada um dos temas tratados.

A forma de trabalho adotada para a elaboração de nossa história da vida privada inspirou-se na Nova História e, de resto, nos Annales. Desde 1929, com a criação da revista francesa Anais de História Econômica e Social por Marc Bloch e Lucien Febvre, as observações sobre o cotidiano de um determinado momento, de uma localidade ou de uma personagem, assim como as suas crenças, as suas atividades e valores sociais, políticos e econômicos são retratados, além de serem auxiliados pelo intercâmbio com as outras ciências humanas, como a antropologia e a sociologia. Optou-se por uma história narrativa como forma de expressão do pensamento, da linguagem, dos hábitos, de gestos, de amores e das sensibilidades. A obra em questão procurou combinar e articular diversas propostas temáticas da história da cultura, do cotidiano e das representações sociais, advindas de uma historiografia não só francesa, mas inglesa e italiana. É preciso ressaltar, ademais, que o livro é tributário de dois marcos nas ciências humanas no Brasil: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Por fim, o livro prossegue o esforço inaugurado pelo pioneiro Vida Privada e Quotidiano no Brasil na Época de d. Maria I e de d. João VI, de Maria Beatriz Nizza da Silva, obra que já havia retratado aspectos dessa temática entre nós historiadores.

A influência antropológica e sociológica de Gilberto Freyre, um dos pioneiros nos estudos sobre a sexualidade e a religiosidade do “brasileiro”, é observada nos capítulos da obra. Freyre mostrou que a sexualidade poderia ser apreendida em manifestações cotidianas e, por outro lado, que o cotidiano da América portuguesa impunha a preocupação acentuada com as questões sexuais: na vastíssima colônia, portugueses, ameríndios e, depois, também os negros, mergulharam de corpo e alma em deleites sexuais; além disso, atribuíram aos santos um papel intermediário entre os amores, ou conceberam-nos como entidade propiciadora de fertilidade e vantagens amorosas1 . Na medida em que eram atribuídos papéis aos santos, estes eram envolvidos numa forte carga afetiva. O amaciamento entre senhores e escravos levou a miscigenação e a relações de intimidade entre ambos; aspectos levantados por Freyre, também, destaques nesses capítulos. Todos esses assuntos desenvolvidos na obra já haviam sido tratados em Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, obras freyrianas, fundadoras dos estudos sobre a vida privada no Brasil.

A obra História da Vida Privada no Brasil procura compor a pré-história de nossa vida privada. Articulada em 8 capítulos interligados entre si, apresentando como eixo temático questões como a escravidão (que medeia todos os capítulos), privacidade e relações familiares. Em seu capítulo inicial, “Condições de privacidade na colônia”, o historiador Fernando Novais desenvolve questões teóricas sobre as condições para a existência de vida privada na América portuguesa. No capítulo 2º: “Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações”, a historiadora Laura de Mello e Souza estuda as expedições de bandeirantes e viandantes que adentraram no território, defrontando-se com mosquitos, animais de diversos portes, a falta de comodidade e desconforto das pousadas e as andanças realizados no outro lado da fronteira- o sertão, em detrimento da vida do litoral.

A partir do capítulo escrito por Leila Mezan Algranti (“Família e vida doméstica”), seguindo-se os de Luiz Mott (“Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”), Ronaldo Vainfas (“Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista”) e Mary del Priore (“Ritos da vida privada”), a questão da privacidade colonial começa a ganhar contornos mais claros, em assuntos como a sexualidade, a família e a religiosidade.

Através dos capítulos de Lei la Algranti e Ronaldo Vainfas, percebemos que as relações de privacidade estavam longe de serem desvendadas, devido à escassez de fontes. Essa ausência talvez se explique pela falta de cadernos, cartas ou diários dedicados ao relato das intimidades. Como bem observa Algranti, a ausência desse tipo de exposição deve-se à própria estrutura da sociedade colonial: a intimidade era mantida na esfera do privado, não se escrevendo sobre recordações e intimidades. O alto índice de analfabetos é um outro dado a ser destacado. As famílias convivem em casas sem um mínimo de privacidade, onde os cômodos têm múltiplos usos, onde os móveis- aí enquadram-se as camas – são montados e desmontados de acordo com as necessidades do dia. Havia, além disso, pouca distinção entre o público e o privado, ocorrendo, muitas vezes, a inversão entre esses dois espaços: o que é público torna-se privado e vice-versa. Vainfas esclarece: um espaço por assim dizer, público, como era o mato ou a beira do rio, podia ser mais apto à privacidade exigida por intimidades secretas do que as próprias casas de parede-meia ou cheias de frestas” (p. 257).

No nosso entender, entre os 8 capítulos que compõe o livro, 2 sobressaem-se aos demais. O primeiro deles, o do antropólogo Luiz Mott, sobre a religiosidade e, o segundo, o da historiadora Mary del Priore sobre os ritos da vida privada. As práticas supersticiosas constantes na sociedade colonial mesclavam-se às vivências da religião oficial do império português – o catolicismo. O isolamento geográfico possibilitou aos habitantes do interior da América portuguesa o aparecimento de práticas religiosas privadas como o eremitismo, chegando-se a encontros sabáticos. Através do diário (borrador) do senhor de engenho falido Antônio Gomes Ferrão Castelo Branco, uma peça documental inédita pertencente à coleção particular do bibliófilo José Mindlin, Mary dei Priore perfaz os caminhos desse senhor, demonstrando que a relação entre o público e o privado estava, mais do que nunca, interligadas. Demonstra, ainda, que a privacidade misturava-se com o cotidiano na vivência de certos ritos como o casamento, a morte e o nascimento.

O sétimo capítulo (“O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”) foi escrito pelo historiador Luiz Carlos Villalta e trata das práticas de leitura, da educação e da língua na América portuguesa. No último capítulo (“A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII “), o historiador lstván Jancsó analisa as revoltas ocorridas no final do setecentos. Em ambos ensaios, nota-se o aparecimento do intelectual do século XVIII: o libertino de idéias afrancesadas, influenciado pelo pensamento iluminista. Ambos os autores observam uma questão: aonde começa e aonde termina a vida privada? Através das sílabas F de fé, L de lei e R de rei , Villalta conclui que a identidade privada e a pública confundem-se. Estudando as bibliotecas e o teor de algumas obras nelas existentes, dá gancho para o capítulo seguinte, o de lstván. Este, através da análise dos movimentos sediciosos ocorridos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na Bahia, investiga as categorias de privacidade entre os que se envolveram nas práticas conspiratórias ocorridas no final do setecentos.

Enfim, acho que a amostra é suficiente para os que não conhecem o livro. Os leitores não se arrependerão de travar com ele uma discussão fecunda sobre a nossa pré-história da vida privada.

Nota

1 Laura de Mello e Souza. Sexualidade e religiosidade popular no Brasil colonial. In: Suzel Ana Reily & Sheila M. Doula (orgs.). Do Folclore à Cultura Popular. São Paulo: FFLCH/USP, 1990, p. 87.

André Figueiredo Rodrigues – Mestrando em História/ USP.

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O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808) – SILVEIRA (VH)

SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997. Resenha de: ROMEIRO, Adriana. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.22, p. 207-211, jan., 2000.

Muitos foram os autores que se debruçaram sobre os caracteres específicos do sociedade mineira do século XVIII, em busca dos processos e da dinâmica social responsáveis por uma feição tão peculiar. Como, por exemplo, explicar a fluidez e a instabilidade- características apontadas por Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Laura de Mello e Souza, entre outros – sem incorrer no lugar-comum ultrapassado de uma sociedade menos rígida e por isto mais democrática?

É neste domínio que se situa o livro “O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas”, de autoria de Marco Antonio Silveira. A questão que o autor se propõe a responder é: de que modo os códigos e a simbologia da sociedade patrimonialista e estamental foram reinterpretados e reinventados no contexto da mineração e do aluvionismo social?

O pano de fundo do livro é o contexto europeu da segunda metade do século XVII, quando aparecem uma nova sensibilidade e uma nova sociabilidade, atrelado às transformações em curso do capitalismo industrial. Gestos e hábitos considerados até então como naturais e corriqueiros passam a ser execrados em nome das boas maneiras e do refinamento – cada vez mais necessários numa sociedade que se caracteriza pelo convívio prolongado, pelas relações de dependência entre os indivíduos. Toda uma nova ética do comportamento individual e social é construída em torno destes novos valores ditos civilizados. É por esta trilha, explorada por Norbert Elias, Peter Burke, Keith Thomas e Mikhail Bakhtine – este último, a partir de uma perspectiva muito diferente- que Marco Silveira se envereda para pensar a sociedade mineira do século XVIII. Mas, familiarizado com a já não tão mais recente historiografia sobre as relações entre cultura popular e cultura erudita na Europa da Época Moderna, ele formula o seu problema de forma diferente: como vislumbrar formas de contestação e resistência a estes modelos civilizadores forjados a partir das novas exigências do capitalismo industrial ? Como articular, teoricamente, o problema da releitura e da reinterpretação de significados e códigos culturais? O autor responde: ” em toda abordagem cotidiana do fim da época moderna devem-se considerar as inúmeras reconstruções de valores e comportamentos difundidos pela sociedade. Ao mesmo tempo em que os grupos dominantes buscavam distinguir-se, suas formas de distinção eram reprocessadas na vida cotidiana. O estudo da cultura desse período é, portanto, também o estudo do fundo comum capaz de fornecer lógica no interior de um processo caracterizado por heranças culturais diferentes e em constante movimento” (p. 40). Para fortalecer seu ponto de vista, recorre a Goethe e a defesa da virtude em oposição ao cerimonial empolado e artificial. Em fins do século XVIII, as primeiras lufadas do romantismo já anunciariam as fissuras deste processo civilizatório. É assim que as Minas vão encarnar, em sua análise, o lugar por excelência de resistência a este processo civilizatório, desafiando o aparato simbólico das sociedades estamentais do Antigo Regime.

É esta matriz teórica- que privilegia os embates e conflitos culturais em detrimento do conceito de mentalités- que fundamenta a empreitada do autor pelas Minas do século XVIII. Em que medida a feição peculiar e original da sociedade mineira aponta para uma reinvenção igualmente original dos códigos, valores e normas que pautavam a sociedade européia do Antigo Regime? Apresentada a estrutura teórica e metodológica da investigação, o autor persegue, no capítulo 2, “Império e civilização”, as evidências de que nos trópicos reinava a mais absoluta barbárie, em contraposição aos apelos insistentes da Coroa, preocupada em levar o verniz da polidez, da etiqueta e da civilidade aos confins do sertão, porque, segundo o autor, ser civilizado passou a significar “bom vassalo”. É isto que vai permitir ao autor detectar nas velhas e repetidas ladainhas sobre o bom vassalo o propósito determinado da Coroa em lustrar seus mais rústicos vassalos – e mais importante – proceder a uma leitura da refração aos códigos de bom-tom como o sinal inequívoco de uma aclimatação da sociabilidade refinada: corrupção, troca de favores, desvios morais e religiosos. Diante de quadro tão assustador, só resta ao reformismo setecentista formular a utopia de uma nova sociedade, assentada sob as bases da civilização.

No capítulo 3, As Minas cadávericas e os “habitantes do universo”, o autor detecta na crítica dos administradores, governadores, religiosos e viajantes sobre a natureza indómita das gentes das Minas uma preocupação com a rusticidade e a grosseria dos mineiros. A começar pela paisagem urbana irregular e tortuosa e dela passando à gente da capitania, espécie de “monstruosidade indómita”, avessa ao modelo do bom vassalo e ignorante dos princípios religiosos e políticos- cuja expressão mais brilhante é de autoria do Conde de Assumar. Contra este estado de coisas vai se bater o discurso reformista, propugnador de uma sociedade fundamentada sobre o espírito público e na reforma dos costumes e comportamentos.

A parte 11, As bocas deste mundo, divide-se em dois capítulos. No primeiro deles, “Aiuvionismo social”, o que está em jogo são os sistemas de valor que se debatem numa economia complexa como a das Minas setecentistas: diante de uma realidade adversa, a ética da honra e da palavra, próprios da sociedade estamental, sucumbem diante de uma outra ética, a do dinheiro e da circulação, mais apropriados a uma sociedade fluida e aluvionista. Aqui estamos diante de mais um daqueles rearranjos que se forjaram nas Minas, resultantes de uma adaptação, para a realidade da mineração, do universo normativo do Antigo Regime. No capítulo 2, “Escravidão como valor”, o autor desenvolve a tese de que as Minas teriam conhecido uma variante peculiar do escravismo moderno: “a própria experiência cotidiana, entretanto, criou também as condições para que a escravidão fosse vivida como um valor. Dessa forma, embora a fluidez e a mobilidade convidassem à desagregação final do espaço público, persistiam elementos morais capazes de conferir certa legitimidade ao mundo mineiro. Em meio às reconstruções diárias, os cativos e forros buscaram, muitas vezes. formas peculiares de ‘ascensão’, mediante alforrias, quartações, empréstimos, escritos e outros métodos aptos a simbolizar a identidade”(p. 185).

No capítulo 1, “Justiça e criminal idade” que compõe a parte 111, A outra legislação, é analisada a estrutura ineficiente, morosa e venal do aparelho de justiça, responsável pela criação de novos expedientes, capazes de funcionar como uma legislação paralela, mais imediata e eficaz. Novamente aqui, o autor retoma a tese da multiplicidade dos rearranjos cotidianos. No capítulo 2, “A vontade da distinção” o autor discute a obsessão pela honra e pela distinção numa sociedade fluida, flexível e aluvionista. De que modo a simbologia e a ritualística que no universo estratificado e estamental têm por objetivo conferir visibilidade aos lugares sociais poderiam funcionar aí ? O final do século XVIII foi marcado pela integração dos mulatos aos postos civis e militares, abrindo virtualmente a possibilidade de ascensão das demais camadas sociais, dominadas pelo desejo de distinção. Daí o paradoxo da dinâmica social nas Minas: se a distinção visava marcar os lugares sociais, numa sociedade caracterizada pela instabilidade e pela fluidez, a busca desenfreada pela fidalguia e pelos símbolos estamentários conduzia à indistinção e à banalização de tal simbologia.

Vazado numa linguagem elegante e fluente, o livro de Marco Antonio Silveira revela uma pesquisa documental rica e minuciosa, e aqui e ali afloram casos e histórias interessantes, que, nas mãos do autor, transformam-se em exemplos fulcrais da complexidade da dinâmica social das Minas setecentistas. Atento ao detalhe e ao particular, Silveira os interpreta à luz de suas preocupações teóricas, captando-os no contexto mais amplo do universo colonial.

Talvez seja este olhar voltado ao particular que compromete, em vários momentos, a clareza e o entendimento dos objetivos mais gerais perseguidos pelo autor. Mesmo a introdução, cuja finalidade é introduzir o tema de estudo, falha ao restringir-se a uma discussão metodológica pouco relevante, que bem poderia ser substituída por uma apresentação da natureza das questões a serem desenvolvidas ao longo do livro. Além disso, os capítulos não evidenciam de forma explícita a unidade e a coerência dos temas nele analisados, parecendo muitas vezes pouco amarrados entre si. Fica por explicar a escolha dos temas da escravidão e da justiça para enfocar a natureza da sociedade mineira. Por que estes e não outros ? Por outro lado, alguns pressupostos teóricos não convencem totalmente: refiro-me à tese de que a Coroa portuguesa teria tentado implantar nos trópicos uma sociabilidade marcada pelo refinamento e pela polidez, identificando nela o ideal do bom vassalo. Se é inegável que um topos recorrente na documentação relativa às Minas é precisamente a condenação do mineiro, visto como sinônimo de rebelde e indômito, resta, no entanto, problematizar até que ponto tal topos não se constituiu numa peça de retórica, manipulada pelas autoridades administrativas segundo interesses bastante definidos. Ademais, raramente a estigmatização do mineiro como mau vassalo parece ter uma relação direta com a sua impermeabilidade às normas de civilidade e boas maneiras. Vale indagar até que ponto é legítimo afirmar que fazia parte do projeto político da Coroa portuguesa aplicar o verniz da civilidade nos seus colonos rústicos incrustados nos sertões do Novo Mundo. Que políticas o Estado português implantou na capitania com o objetivo de civilizar seus vassalos?

Cumpre notar que, ainda que o autor esteja atento para o fato de que a troca de favores, o tráfico de influência, o apadrinhamento e mesmo o desvio de dinheiro fossem práticas aceitas e correntes nas sociedades do Antigo Regime, em várias passagens do texto ele parece tender a considerá-las como exemplos de corrupção.

Um outro ponto a ser destacado diz respeito às fontes teóricas do autor. Eclético, ele se inspira em Thompson, Stuart Clark, Carlo Ginzburg, Norbert Elias, Huizinga, Peter Burke, Keith Thomas, entre outros, para pensar os mecanismos de distinção social em Minas. Na verdade, a estrutura teórica do trabalho é mais condizente com uma abordagem cultural do que uma abordagem da mecânica social – à exceção de Thompson e Elias, este último aliás incorporado sem uma crítica consistente de suas posições evolucionistas. E o problema a ser enfrentado é ainda o da dinâmica específica de uma economia mineradora no contexto colonial, pois não se trata aqui de pensar numa resistência concebida como reinvenção e reinterpretação. Cabe notar, além disso, que esta imagem de uma outra sociedade, em tudo diferente à européia, mais sensível ao dinheiro que à honra, foi amplamente manipulada tanto pela Coroa quanto pelas próprias autoridades locais.

Finalmente, podemos indagar se este padrão estamental, civilizador e ordenado, instaurador de uma nova sensibilidade, não teria desencadeado também na Europa da Época moderna as suas próprias reinterpretações, à luz de outros valores culturais, obrigando-nos a relativizar a força do modelo e por consequência a originalidade do mundo construído nas Minas …

Adriana Romeiro – Departamento de História/UFMG.

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Religion grecque et politique française au XIXe siecle, Dionysos et Marianne – TRABULSI (VH)

TRABULSI, José Antônio Dabdab. Religion grecque et politique française au XIXe siecle, Dionysos et Marianne. Paris: L’Harmattan, 1998. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 186-190, mar., 1999.

Raros são os historiadores brasileiros que publicam livros no exterior e, ainda mais infreqüentes, aqueles que o fazem sobre temas distantes da História do Brasil. O Professor Dabdab Trabulsi, da Universidade Federal de Minas Gerais, já havia publicado, em Paris, um volume sobre Dionysisme, pouvoir et socíété (Belles Lettres, 1990), obra que recebera prêmio, na França, por seu valor e, agora, publica um trabalho ainda mais ambicioso. Trata-se de um estudo, propriamente, historiográfico, sobre a interpenetração de ciência e política, no século XIX, centrando-se sobre o tratamento dispensado à religião grega pela erudição francesa, no contexto da História da França.

Wolfgang J. Mommsen1 lembrava que já Goethe advertira que cada geração cria seu próprio passado e Dabdab Trabulsi, logo de início, explícita uma abordagem que procura dar conta do contexto de produção da historiografia: “há que examinar os condicionamentos diversos que influem sobre a elaboração dos modelos de interpretação da História e, ao mesmo tempo, estudar a dinâmica científica, que tem uma dinâmica própria, e que pode fazer perdurar certos modelos bem adiante dos contextos sociais e intelectuais que lhes deram origem” (p. 9). A partir deste enfoque, o primeiro capítulo aborda a evolução política e intelectual francesa no século XIX, em especial a oposição entre catolicismo e laicização e suas repercussões tanto no ensino básico como superior. No segundo capítulo, dedicado aos fundamentos do debate historiográfico, debruça-se sobre a religião grega em meados do século, aprofundando-se em Fustel, Renan, Duruy, Girard, Boissier. Destaque-se que o estilo francês, literário, por oposição à erudição alemã, é relacionado, após a derrota de 1870-71, à superioridade da Educação alemã, que teria garantido a vitória militar aos prussianos (p. 37).

No capítulo terceiro, “A Idade da Erudição Triunfante”, a emulação à erudição alemã, de cunho filológico, acaba por produzir seus resultados, a começar pelo Dictíonnaire des antiquítés grecques et romaines, de C. Daremberg, E. Saglio e E. Pottier (a partir de 1877). O autor estuda os verbetes da enciclopédia que se referem a Dioniso e dialoga com os autores daquela época como se fossem nossos contemporâneos: Gerard faz uma “muito boa” apresentação, Lenormant é “demasiado etimológico”, Legrand compreende melhor as mênades do que um autor atual, Devereux, “que não conseguiu compreender”, algo que Legrand já explicara no século passado. Devereux “está totalmente equivocado” (p. 65)2 . Embora pouco usuais na historiografia anglo-saxônica e alemã, estes juízos e mesclas de abordagens afastadas no tempo podem ser o resultado de uma fluidez tipicamente francesa3 . Ainda neste capítulo, menciona en passant a “invenção do Oriente”, ainda que não explore o conceito de “invenção”, tão explorado na historiografia contemporânea, em geral, e sobre a Antigüidade, em particular4.

Em seguida, volta-se para a vulgarização, as polêmicas e os manuais escolares, objeto pouco explorado pelos estudiosos da historiografia. A imagem dominante, que continuará como referência por longo tempo, será, segundo o autor, aquela elaborada nos grandes trabalhos de erudição, dominados pelo positivismo e a filologia comparativa indo-européia. Com o tempo, a Antropologia começa a deslocar a lingüística como modelo explicativo, comparando os antigos aos “primitivos”. Os livros didáticos. por outro lado, seguem, com certo atraso, os autores eruditos, dando pouco destaque a Dioniso, associado à Ásia e, desta forma, à oposição ocidente/oriente, aludida acima, quando se mencionou a invenção do Oriente. A breve conclusão constata que “o exame dos diversos autores mostrou-nos que estas teorias e métodos foram elaborados no calor da luta social e política” e que “a História da Antigüidade e de sua religião participou na obra de laicização dos espíritos que contribuiu para consolidar a República. Seu esforço metodológico foi “exportado” para outros domínios e intelectuais saídos dos estudos da Antigüidade levaram este sopro crítico para a criação de outras disciplinas científicas” (p. 94).

Dabdab Trabulsi constrói um quadro coerente, cujo ponto alto consiste, precisamente, na articulação entre o estudo da Antigüidade e a política francesa. A oposição entre as correntes católicas e laicas, tão presente na França do oitocentos, apresenta-se, de forma explícita, nas formulações sobre a religião grega e o dionisismo, em particular. O estilo literário francês, oposto ao estilo erudito alemão, liga-se à influência crescente e irresistível da ciência alemã, cujos parâmetros, gradativamente, passam a ser reconhecidos pelos estudiosos franceses. Neste contexto, os autores alemães citados pelos franceses aparecem no livro apenas de forma indireta, sempre referidos pelos autores franceses estudados. Isto explica que a os fundamentos da filologia indo-européia, criação alemã por excelência, apareça de forma superficial. H.J. Klaproth, criador do termo lndogermanisch, em 1823, ainda usado pela historiografia alemã, foi apropriado pelos franceses, alterando seu nome para “IndoEuropeu”, menos germânico e intenso ao nacionalismo francês. A noção de Ursprache não pode, além disso, ser separada de Urvolke Urheimat: uma língua, um povo, uma cultura. Naturalmente, a leitura francesa dos alemães era muito seletiva e não é casual que nada disso apareça nos autores franceses. Uma comparação, pois, entre o que diziam os franceses dos alemães e os originais alemães muito poderia contribuir para elucidar a especificidade da construção discursiva francesa.

A construção discursiva dá-se, assim, por contrastes, e a historiografia francesa não se mirava e diferenciava apenas na alemã, mas há, também, uma oposição por silêncio: a historiografia em língua inglesa. Se os franceses mantinham uma relação particularmente complexa com os alemães, o silêncio quanto à literatura erudita britânica não podia ser mais significativa, especialmente após a derrota napoleônica. Os clássicos britânicos sobre a religião grega, desde Potter, Blackwell, Musgrave, Milford e Jones, nos séculos XVII e XVIII, chegando a Gladstone e Brown, já no século XIX5 , não foram ignorados à toa pela erudição francesa do século XIX, pois o referencial, por um lado protestante e por outro monárquico, não encontrava ressonância na oposição francesa entre católicos e laicos. A historiografia de língua inglesa tem ressaltado, nos últimos anos, que, a despeito desse silêncio francês, havia relações íntimas entre os paradigmas interpretativos que se formavam, em particular no que se refere à hermenêutica filológica e suas derivações colonialistas e racistas6 . Este contexto permitiria notar que o estudo da Antigüidade não apenas serviu para fortalecer a laicização dos espíritos como, principalmente, para assentar as bases de uma Weltanschauung que, a um só tempo, se queria neutra e científica e que se fundava em classificações iníquas. O anti-semitismo, primeiro latente e, depois, ativo e triunfante é só uma das manifestações desse novo paradigma. Ainda que tema pouco explorado por Dabdab Trabulsi, diversos autores franceses estudados neste volume não escondem seu propósito de naturalização da superioridade grega frente à inferioridade oriental. Neste sentido, o caso Dreyfus revela este outro lado do êxito dos novos paradigmas, com um novo anti-semitismo, agora científico, por oposição àquele religioso.

De toda forma, o livro de Dabab Trabulsi contribui para que se entenda melhor como a historiografia francesa continua a preferir imaginar-se auto-suficiente e com uma contribuição sempre positiva para a sociedade francesa. Já se mencionou, mais de uma vez, que a França tem dificuldade em lidar com um passado nem sempre tão humanista quanto sua consciência gostaria que fosse, nem tão autônomo e original como conviria ao nacionalismo. Dionysos et Marianne insere-se bem nesta tradição e o autor, ainda que brasileiro, não deixa de adotar uma perspectiva eminentemente francesa. O mérito maior desta obra consiste em demonstrar que também um brasileiro pode escrever um estudo historiográfico à francesa e para os franceses, mérito tanto maior quanto Dabdab Trabulsi retoma e vivifica estes valores com competência e conhecimento de causa. Até mesmo o estilo da escrita francesa do autor, envolvente e acolhedor, favorece esta identificação do leitor com os argumentos apresentados. O volume constitui, pois, uma leitura agradável e recomendada a todos os que se interessam pelo estudo da historiografia.

Notas

1… die bekannte. schon von Johann Wolfgang Goethe hervorgehobene tatsache. dass eine jede Generation die Vergangenheit die Geschichte. in der si wiedererkennt; ihr Geschichtsbild ist Teil ihrer geistig Kulturelfen und nicht selten auch ihrer politischen ldentitat. em Historlsche Zeltscrift. 238, 1, 1984, Die Sprache des Historikers, p. 80.

2 Contraste-se com Ellen Somekawa & Elizabeth A. Smith: there is no one neutral/po/itical position from which to view events and hence no one correct intepretation, em Journal of Social Hlstory, 1988, 22,1, Theorizing the writing of history, p. 154.

3 Segundo Ernest Schulin, ich habe versucht. den Weg einzelner bedeutender Geschchtswissenschaften in unserem Jahrhundert zu skizzeieren: … der franzosischen mil ihrer breiten, unideo/ogischen Vergangenheits rekonstruktion. em Hlstorische Zeitschrlft. 245, 1, 1987, Geschichtswissenschaft in unserem Jahrhundert. Probleme und Umrisse einer Geschichte der Historie, p. 29.

4 Cf. Mark Golden & Peter Toohey (orgs), lnventing Ancient Culture, Londres. Routedge, 1997.

5 J. Potter, Archaeologia Graeca, or the Antiquities of Greece, Londres, 1697; T. Blackwell, Enquiry into the Life and Writing of Homer, Londres. 1735; S Musgrave, On lhe Graecian Mythology, Londres, 1782; W. Mitford, The History oi Greece. Londres, 1784-1804; W Jones, on the gods of Greece, ltaly and lndia, em The Works of Sir William Jones, vol.1 ” Londres. 1807; W Gladstone, Juventus Mundi: The Gods and Men of the Heroic Age, Londres, Macmillan,1869: R. Brown, Semitic influences in Hellenic Mythology, Londres, 1898.

6 Cf. M. Bernal, Studies in History and Phílosophy of Science, 1993, 24,4, Essay review, Paradise Lost, pp. 669-675; M. Bernal, Social Construction of the Past, organizado por G. Bond & A. Gilliam. Londres. Routledge, 1994, The image of Ancient Greece as a tool for colonialism and European hegemongy, pp. 119-128; E. M. Wood, Peasant-Cítízen and Slave, The Foundations of Athenian Democracy, Londres, Verso, 1989.

Pedro Paulo A. Funari – Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

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Vísceras da Memória:Uma leitura da obra de Pedro Nava – BUENO (VH)

BUENO, Antônio Sérgio. Vísceras da Memória:Uma leitura da obra de Pedro Nava. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Resenha de: ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 184-186, mar., 1999.

Cada ser humano é único. Esta é uma grande verdade. Cada um de nós guarda em si potencialidades e qualidades que nos tornam singulares. Entretanto existem alguns, entre nós, cuja singularidade e unicidade se tornam por demais significativas. Pedro Nava, certamente, foi um ser humano assim. Médico, desenhista, poeta, escritor-memorialista, revelou – se ao mundo como uma personalidade única e ao mesmo tempo dotado de múltiplas facetas. Conhecê-lo, defini-lo não é uma tarefa muito simples.

Existem uma quantidade expressiva de obras acadêmicas, jornalísticas, literárias, entre outras que analisam a personalidade e a obra de Pedro Nava, entretanto podemos afirmar que o livro recentemente publicado pelo Prof. Antônio Sérgio Bueno nos possibilita mergulhar no universo navaniano e ao menos, enxergar algumas novas centelhas acerca do personagem inquieto e insondável que foi Pedro Nava.

A obra de Bueno é resultado de uma tese de doutorado defendida no ano de 1994 inserida no Programa de Pós – graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ao falar de suas pretensões em relação ao trabalho, autor afirma que seu objetivo foi: “( … ) estudar as memórias de Nava através de categorias operacionais como espaço, corpo e figuração, tendo sempre em vista o diálogo da literatura com outras áreas do saber e o diálogo interno entre as próprias obras literárias.( … )” ( p. 19 grifas do autor), entretanto podemos dizer que as questões apontadas por Bueno ao longo de seu texto se abrem para maiores possibilidades de análise e servem como referencial àquele que se interessa não apenas pela trajetória de Pedro Nava, mas para o estudioso da memória, cidades e cultura busca .em fontes alternativas como a Literatura, um apoio para seus estudos e Investigações.

Bueno divide seu texto em três capítulos seguindo a estrutura que gestou ao eleger três categorias como essenciais nas memórias de Pedro Nava. São elas: o espaço, o corpo e a figuração.

No capítulo I, intitulado, “Espaço” irá nos revelar como a noção de espaço, lugar, recriação e restauração foram importantes para Nava ao escrever suas memórias. Segundo ele, ao rememorar, o escritor reconstruía lugares, pontos, ruas, de forma que pudesse recuperar em suas lembranças a essência de suas memórias. A recuperação dos espaços · funcionava como elemento detonador das lembranças. Revela ao leitor um Nava amador de ruínas buscando entre cacos e estilhaços reter e reconstruir aquilo que já não existia mais e através de seu texto restaurava as imagens que haviam se tornado invisíveis ou mutiladas.

No capítulo 11 dedicado ao “Corpo” encontramos a relação clara e intrínseca entre o Nava médico e o Nava escritor que lidava com seu texto e com suas lembranças com uma precisão visceral e a curiosidade de um anatomista. A Anatomia era em verdade, sua grande paixão. A analogia estabelecida entre o médico Frankenstein que desejou dar vida à matéria morta e ao médico Pedro Nava que recuperava o passado não o considerando matéria morta, mas algo vivo e pulsante no qual sempre esteve mergulhado, nos faz refletir sobre o papel do historiador na sociedade como aquele sujeito que mesmo compreendendo a impossibilidade de recuperar o passado integralmente, faz dele seu objeto e referencial no entendimento da sociedade em que vivemos. O historiador reúne características do Dr. Frankenstein e do Dr. Pedro Nava.

Neste capítulo o autor tratará, também, da relação de Pedro Nava com a morte, a presença dos cadáveres em suas descrições, a rememoração das aulas na Faculdade de Medicina e como estas experiências definiram de forma indelével sua personalidade.

No terceiro e último capítulo “Figuração”, Bueno irá tratar de um aspecto fundamental na vida e obra de Nava: a imagem. É sabido por todos que o memorialista possuía conhecimentos artísticos que o dotavam de qualidades plásticas que, caso tivesse persistido na carreira artística, não teria deixado nada a dever ao mundo das artes. Entretanto nos mostra o autor que a imagem nunca esteve afastada do universo criativo de Nava. Nos originais de seus textos elaborava desenhos, caricaturas, colagens, reconstruía e desenhava mapas, lugares, buscava em fotografias sue material de apoio para a recuperação das memórias que escrevia. Rescrever suas memórias era trabalho e um trabalho que envolvia a manipulação de uma linguagem estética.

Bueno encerra sua análise comentando acerca dos originais somados em trinta e seis páginas inéditas do que seria parte do sétimo volume das memórias de Nava intitulado “Cera das Almas”.

Na realidade o texto de Antônio Sérgio Bueno é uma aula de erudição e um convite, prazeroso, à leitura e ao estudo. Ao analisar, visceralmente, a produção de Nava nos aponta algumas de suas influências literárias que se destacam em seu texto, citamos Edgar Allan Poe, Mareei Proust, Stevenson, Rabelais, entre outros, bem como seu infinito conhecimento em relação às artes plásticas e as analogias que invariavelmente estabeleceu entre a produção de artistas como Rembrandt, Michelângelo, Rubens, Monet, Renoir, entre outros como elementos detonadores e referenciais para a construção de suas lembranças.

Por outro lado, embora não trate desta questão diretamente, o autor nos permite refletir acerca da importância da memória como categoria social, cujo compartilhamento permite aos homens reconstruir seu passado através de depoimentos orais ou escritos, reestruturar sua história e muitas vezes recuperar elementos que não poderiam ser recuperados através de outras fontes.

E neste sentido ao mencionarmos as fontes, acrescentamos que as análises implementadas por Sérgio Bueno possibilitam enxergar a Literatura como uma categoria de fonte para os pesquisadores que muito tem contribuído para o enriquecimento de novas abordagens e tem permitido um diálogo mais amplo e profundo entre os homens e a história que é construída por eles. Revela – nos que este fazer não acontece apenas nos espaços e nos meios tradicionais, mas as obras de pensamento, de criação e reflexão muito podem nos contar acerca destes homens. É óbvio que as memórias de Nava já vêm sendo utilizadas por historiadores, arquitetos, sociólogos, entre outros estudiosos como elemento constituinte em suas análises, entretanto o que se ressalta no estudo de Bueno é a interpretação que ele estabelece em relação ao texto navaniano e as possibilidades de verticalização que permite ao leitor e que se encontram nas entrelinhas.

Desta forma, portanto, podemos afirmar que o trabalho realizado pelo Prof. Antônio Sérgio Bueno é uma obra que merece ser lida, analisada, criticada e aproveitada em todos os seus sentidos, explorando todas as possibilidades que nela são apontadas, inclusive o retorno ao texto de Pedro Nava. Bueno através de suas interpretações, nos convida, delicada mas convincentemente, à leitura dos seis volumes das memórias de Nava, para aquele que ainda não teve esta oportunidade e incita à uma releitura, cuidadosa, anatômica, visceral aquele que já teve a chance de mergulhar na escrita navaniana, pois certamente encontrará novas nuanças no depoimento deste personagem ímpar que foi Pedro da Silva Nava.

Marcelina das Graças de Almeida – Mestre em História Professora da Rede Municipal de BH.

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O Racismo – D’AIRE (VH)

D’ AIRE, Teresa Castro.  O Racismo. [Lisboa]: Sociedade Gráfica, 1996. Resenha de: RIBEIRO, Maria Solange Pereira. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 181-183, mar., 1999.

Racismo em Portugal: qualquer semelhança com o Brasil é mera coincidência.

Teresa Castro introduz essa obra com um dito africano de profunda densidade ideológica: “obrigado meu Deus por ter criado o cavalo, porque se não existisse o cavalo os brancos montavam em cima de nós “e afirma logo no início, sobre a epopéia dos descobrimentos, a miscigenação das raças e a teoria dos brandos costumes, serem tudo mentira – “os portugueses são racistas, sim”.

Essa obra é composta de perguntas e respostas, constituíndo-se um texto que no seu cômputo geral é claro e de leitura rápida e fácil de modo que pode servir facilmente como texto para debates ou discussões em níveis diferenciados. O livro enfoca um assunto de profunda importância na explicitação do racismo em Portugal, desse modo, em circunstâncias e dosagem diversas, poderá ser útil ao ensino em matérias que discutam o preconceito racial. Apresenta-se dividido em 15 entrevistas referentes às seguintes perguntas básicas:- Origem geográfica do entrevistado e de sua família; nível de escolarização e profissão: como e onde mora e qual a cor dos vizinhos; se o entrevistado acredita ter raça mais bonita, mais inteligente; se tem raça que comete mais crimes; se o entrevistado se casaria com alguém de outra religião que não a sua; se o entrevistado se casaria mais facilmente com um pobre ou com um preto, se as leis portuguesas protegem todos da mesma forma, etc.

As respostas a essas perguntas e a outras são surpreendentes e reveladoras sobre a existência de racismo em Portugal.

Diz a autora sobre as pessoas que inicialmente admitiram a existência do racismo em Portugal. quando convidados a falar um pouco mais sobre suas experiências fecharam-se e comentaram que no seu caso pessoal nem tinham muita razão de queixa. Para essas pessoas. que passaram pelas humilhações mais vergonhosas que um ser humano pode ser sujeito, a não-denúncia era como se fosse a única forma de conservar o mínimo de dignidade que os brancos ainda lhes não roubaram. conclui a autora na sua introdução.

Prosseguindo a análise levanta questões sobre o depoimento do dirigente do SOS Racismo que afirmou ser o português mais racista do que os alemães. uma vez que na Alemanha tomam se providências diante de manifestações agressivas de preconceitos e intolerância, enquanto em Portugal as autoridades. através da ausência de atitudes, são coniventes com os agressores.

A maioria dos entrevistados foi unânime em afirmar que os discriminados que vão a tribunal por maus tratos. dificilmente ganham a causa. pois os juízes são racistas. É comum em Portugal a ação dos Skinheads e da Polícia contra grupos minoritários especialmente o preto. Entretanto admitir ter sido discriminado é sentir a humilhação duas vezes, a grande maioria das pessoas discriminadas não dão queixa e dizem não adiantar.

Mas nem todos pensam assim, há negros conscientes de seus direitos e estão mobilizando as autoridades para que façam justiça com as minorias portuguesas ou como dizem os portugueses os “retornados” (ex-colônia Portuguesa). O SOS Racismo está solicitando também que se incorpore nos currículos das escolas secundárias o senso de respeito pelas raças. Trabalhos como o da cantora cabo-verdiana Celina Pereira. vem tentando levar às escolas bilíngües histórias nascidas em Cabo Verde. Um livro com fita cassete foi patrocinado por uma organização não-governamental italiana, editada em três idiomas; italiano, português e crioulo. São canções infantis, trovadinhas, cantigas de roda, confeccionadas dentro de uma ordem pedagógica e didática para as escolas de ensino bilíngüe. Nos Estados Unidos a obra aparece em português, crioulo e inglês e já é utilizada em algumas escolas em Massachusetts, onde a autora recebeu alguns prêmios.

O projeto dirige-se a crianças cabo-verdianas que possuem um índice muito grande de insucesso escolar, pois são obrigadas a aprender a estudar numa língua que não é a delas; entretanto, Portugal não tomou conhecimento do projeto, lamenta Celina. O maior número de africanos que vivem em Portugal é de Cabo Verde, acrescenta a cantora; “eu só queria dar às crianças de Cabo Verde algumas referências culturais dos seus progenitores para poder se situar enquanto seres humanos, saber de onde vêm e para onde vão”.

Este livro, curiosamente, leva-nos a tecer algumas comparações e consequentemente uma compreensão da base do racismo no Brasil, uma vez que estamos na condição de “retornados”, através da língua e de algumas heranças culturais.

Um dos fatos de aproximação é que no Brasil os negros de nível sócio-econômico mais elevado ficam “sem cor” e passam a discriminar a sua raça. Isso ocorre também com o mulato, que para fugir da discriminação se coloca mais próximo do branco de forma ideológica. Dessa forma vai emergindo uma massa sem identidade pois o mulato nem é negro nem é branco, como afirma uma entrevistada- a colonização tirou do africano que vive em Portugal, a cultura, a língua, os costumes e lhes impôs uma vida de humilhação.

Por outro lado a autora coloca a dificuldade das mulheres pretas em se manifestarem e em dar depoimentos aprofundando ao gravíssimo problema da auto-estima.

“Eu quando tenho saudades de ver um preto basta-me olhar para o espelho, e pronto, tão cedo já não preciso de voltar a vê-los na minha frente.”

Sobre esse fato revela a autora, que o curioso nessas mulheres é serem de um status sócio-econômico de classe média e talvez tenham sido ainda mais discriminadas do que os homens por isso tenham tanta pressa em esquecer as humilhações do passado. Uma culpa de todos nós, considera Teresa Castro, cidadãos de todas as raças e que parece repetir-se em muitos casos como recorrência.

Maria Solange Pereira Ribeiro – Doutoranda- Educação- USP. E-mail: [email protected]

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Uma história da leitura – MANGEL (VH)

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Resenha de: GOMES, Leonardo José Magalhães. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 178-181, mar., 1999.

Em uma conferência ditada na Universidade de Belgrano e publicada em seu livro “BORGES ORAL”, o mestre portenho chama a atenção do papel do livro como extensão da memória e da imaginação, qualificando-o como o mais assombroso dos diversos objetos humanos, cuja função principal é a recordação do passado e dos sonhos. Mais adiante, manifesta o desejo de escrever uma história das diversas valorizações que o livro recebeu ao longo do tempo, tarefa que nunca chegou a realizar. Também no pequeno ensaio “DEL CULTO DE LOS LIBROS”, parte de “OTRAS INQUISICIONES”, estão já presentes muitas das idéias mais tarde expostas na conferência. Se considerarmos as quase três décadas existentes entre um e outro texto fica clara a constância destas idéias em sua Obra.

Se Borges não chegou a escrever seu estudo, nos privando assim de mais uma de suas fascinantes contribuições, a idéia não se perdeu, já que agora nos chega esta “UMA HISTÓRIA DA LEITURA”, do argentino naturalizado canadense Alberto Manguei, que ao longo de suas 408 páginas traça um interessante painel das diversas valorizações que a leitura, e conseqüentemente seu continente, o livro, vêm recebendo ao longo dos tempos.

Começo este texto lembrando a figura de Jorge Luis Borges, porque embora Manguei não o admita explicitamente, talvez por ser desnecessário de tão óbvio, sua obra está impregnada pelo universo simbólico e pelas idéias do velho mestre, inspirador evidente da concepção e de muitas das passagens capitais desta “UMA HISTÓRIA DA LEITURA”. Basta uma leitura de cada uma das obras citadas (no caso de Borges, a conferência “EL LIBRO” em “BORGES ORAL”) para que seja comprovada esta afirmação. Além da influência natural de um grande autor sobre um seu conteporâneo e conterrâneo mais jovem, há nesse caso um elo mais forte, já que Manguei, como ele mesmo conta, foi leitor para Borges, tendo assim, ao substituir os olhos do outro, a oportunidade de uma convivência muito mais íntima e cúmplice do que a de um mero leitor com um autor distante.

Não vai aí nenhum demérito, não estou dizendo que Manguei copia Borges, longe disso, acho apenas que ele desenvolve, e de maneira brilhante, idéias que foram adquiridas pela convivência e/ou leitura de seu antecessor. Nada de mais lisonjeiro para um leitor que ampliar, melhorar e desenvolver o texto lido, num verdadeiro trabalho de recriação, transferindo-o para um novo universo, ainda mais quando a fonte de inspiração é um autor do porte de Jorge Luis Borges. Além disso, e podemos dizer sem problemas, já que ele próprio o alardeava, um dos traços mais característicos da obra de Borges é exatamente este, a releitura, recriação e inserção em nova realidade de obras e conceitos de autores do passado, proporcionando assim uma nova vida a criações que de outra forma desapareceriam no vai-e-vem das modas, criando com isso uma meta-literatura.

Histórias da escrita, da imprensa, das bibliotecas, da indústria gráfica, ou seja, do objeto-livro em suas mais diversas formas e conjuntos, e até mesmo manuais de editoração, produção, aquisição e de cuidados com os livros há muitos. Exemplos recentes, escritos em ou traduzidos para o português, que ainda se acham nas livrarias e sebos da cidade, são: “O LIVRO” de Douglas C. McMurtrie, “O APARECIMENTO DO LIVRO” de Lucien Febvre e Henry-Jean Martin, ‘SÍNTESE HISTÓRICA DO LIVRO”, de José Barboza de Mello, “A PALAVRA ESCRITA”, de Wilson Martins, “A CONSTRUÇÃO DO LIVRO”, de Emanuel Araújo e os “ELEMENTOS DE BIBLIOLOGIA”, de Antônio Houaiss, além do há muito esgotado “O BIBLIÓFILO APRENDIZ” de Rubens Borba De Moraes. Mas histórias da leitura ou como disse Borges, das diversas valorizações que o livro tem recebido ao longo do tempo, têm sido raras.

É claro que quando se fala de livros há que se falar de leitura, e que em diversos momentos este tema é tratado nestas obras. Mas parece interessar aos seus autores mais o objeto material, cobiçado pelos bibliófilos antes pelo aspecto e raridade do que propriamente pelo conteúdo, que a íntima relação entre o leitor e o autor através da obra, da qual o livro é apenas o necessário, indispensável e, é bom que se diga nestes tempos de computador em que muitos apressadinhos tentam declará-lo em extinção, eterno suporte físico.

Obras que tratam deste assunto sob esta ótica da leitura, em português, só me vêm à lembrança no momento, os belos e indispensáveis “OS LIVROS NOSSOS AMIGOS” e “O DIABO NA LIVRARIA DO CÔNEGO”, de nosso mestre Eduardo Frieira, que juntamente com seus diversos ensaios merecem uma divulgação muito mais ampla do que têm, tal a sua qualidade e perene contribuição. É bom lembrarmos que Frieira, que por coincidência morreu cego como Borges, não só escreveu livros, como também os fabricou, pois começou sua vida profissional como impressor e tipógrafo, adquirindo assim um conhecimento dos dois lados da produção dos livros talvez único entre intelectuais de seu porte, o que dá um sabor especial às suas obras sobre o tema. Mas como santo de casa não faz milagre …

Esta “UMA HISTÓRIA DA LEITURA” chega em boa hora, no momento em que a própria sobrevivência do livro como suporte material está sendo contestada. Há aqueles que, provavelmente porque ou não gostam da leitura como prazer, fora das atividades profissionais, ou nem chegam a imaginar a existência deste hábito, acham estar o livro com seus dias contados, sendo substituído pelos computadores. Isso é grande bobagem. A tela da máquina pode substituir as obras de referência, tais como enciclopédias e dicionários, e os periódicos. Mas quem vai ler “GUERRA E PAZ”, um conto qualquer de Rubem Fonseca ou um exemplar de Asterix numa tela?

Por enquanto não há melhor suporte para leitura que o nosso bom e velho “códice”, um dos mais geniais objetos de “design” criados pelo Homem, que, como já foi amplamente dito, é leve, portátil, permite acesso quase imediato às informações nele contidas, sua leitura não cansa como a da tela do computador, além de ser extremamente durável.

A teia, por outro lado, como o próprio Manguei diz em sua obra, é uma versão moderna, eletrônica, dos antigos rolos de papiro ou de pergaminho e velino, que tinham de ser desenrolados à medida que iam sendo lidos, dificultando assim o acesso ao seu conteúdo, além de ser de difícil armazenagem e transporte. Experimente ler na cama, ou mesmo em uma poltrona com um computador, mesmo daqueles pequenos, portáteis. E quando acabar a luz, qual vela iluminará a tela?

O livro de Manguei está dividido em quatro partes, organizadas como um livro às avessas começando com “A ÚLTIMA PÁGINA” e terminando com as “PÁGINAS DE GUARDA”, com os “ATOS DE LEITURA” e “OS PODERES DO LEITOR” pelo meio. Nestes capítulos é traçado um vasto painel do surgimento, desenvolvimento e variação da atividade da leitura nas diversas fases e situações por que passou o Homem ao longo de sua trajetória.

Neles aprendemos sobre a solidão e a discriminação sofridas pelo leitor, sobre as suspeitas que a leitura gera em épocas de totalitarismo, o que leva estes regimes a combater com vigor, desde o início, esta atividade para melhor controlar a sociedade e reprimir a oposição. Aprendemos também, como era vista a leitura na Antigüidade Clássica e nos primórdios da Idade Média, em que o importante era a palavra dita e não a escrita, sendo os livros vistos como verdadeiros túmulos das ide ias, e destruidores desta outra arte quase perdida para nós, a da Memória, diluída hoje no infinito mar de informação que nos afoga, espalhado que está em seus suportes eletrônicos, e não como achavam Sócrates e Platão dentro do cérebro, ou coração de cada um, trazendo assim a necessária sabedoria como fruto da aprendizagem, e não apenas a repetição mecânica.

Discute-se também o espanto de Agostinho ao ver Ambrósio lendo silenciosamente, o que nos leva a crer que esta era a prática incomum nos primeiros séculos· da leitura, o que deveria causar um verdadeiro tumulto nas bibliotecas e locais públicos, além da inevitável indiscrição em relação ao texto lido. Fala-se da lenta evolução para uma leitura silenciosa, que foi possibilitada pela invenção dos sinais de pontuação no início da Idade Média.

Temos, também, um painel do aparecimento das heresias causadas pela leitura silenciosa, que deixava o leitor divagar pelo texto lido, imaginar teorias e chegar a conclusões não ortodoxas, fato impossível quando da leitura em voz alta. Por aí o autor vai, até chegar aos nosso dias, passando pelos mais variados aspectos da arte e do prazer de ler em suas mais diversas formas, situações e conseqüências, como o roubo de livros, a leitura do futuro através dos textos consagrados. o futuro da leitura como atividade, a leitura do mundo e dos códigos não escritos, a aprendizagem da leitura, a relação entre estas duas e muito mais. Tudo isto é exposto em linguagem clara, de maneira extremamente agradável, que aliada a uma boa tradução e ótima apresentação gráfica torna este livro indispensável para quem se interessa pelo assunto, e inevitável para quem gosta de ler.

Leonardo José Magalhães Gomes – Licenciado em História pela UFMG.

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Coroas de Gloria, Lagrimas de Sangue — A rebelião em Demerara em 1823 – COSTA (VH)

COSTA, Emilia Viotti da. Coroas de Gloria, Lagrimas de Sangue — A rebelião em Demerara em 1823. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. Resenha de: SÁ, Cristina Isabel Abreu Campolina. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 212, nov., 1998.

Este livro e um fino exemplo de um trabalho de pesquisa de primeira classe sobre urna das maiores revoltas de escravo do Novo Mundo. A revolta ocorreu no ano de 1823 na Colônia de Demerara na Guiana, ex-Guiana Inglesa. A autora se propõe a contar a história do missionário evangélico John Smith que, proveniente da Grã-Bretanha para Demerara em 1817, foi acusado de ser o mentor e instigador da referida rebelião.

A região onde o conflito se deu é conhecida corno Costa Leste ocupando urna imensa área de cultivo de açúcar que se estende ao longo do mar por quase 40 Kms a leste da foz do rio Dernerara. Atingindo quase 60 fazendas a partir da fazenda Success pertencente a Jonh Gladstone, a rebelião contou com a participação de 10 a 12 mil escravos que se sublevara, em nome de seus “dreitos”.

O dado que confere singularidade ao conflito foi a interferência do missionários evangélicos que jogaram luz nos desmandos do sistema escravista vigente, em confronto com os senhores (fazendeiros locais) e, as autoridades coloniais que os acusavam simultaneamente de traidores e fanáticos. Outro dado importante no conflito foi que contrariando a esperada atitude de apoio por parte da Metrópole, nos inúmeros atritos entre missionários/colonos, colonos/escravos, as autoridades britânicas nunca se posicionaram radicalmente a favor dos fazendeiros.

A autora justifica a importância de tal pesquisa pelo valor universal do terna da escravidão e, considera o trágico destino do Reverendo Smith emblemático no que concerne a atuação de indivíduos que se distinguem na história corno paladinos da justiça e da igualdade.

Cristina Isabel Abreu Campolina Sá.

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OBS: Resenha incompleta só consta essa página.

A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da historiografia – BURKE (VH)

BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. REIS, José Carlos. Annales: a renovação da história. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1996. Resenha de: LOPES, Marcos Antonio. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 209-212, nov., 1998.

Dois livros tematicamente aparentados, e que quase se confundem pelo conteúdo de seus títulos. E as semelhanças não se esgotam nisso. A concepção geral das duas obras converge numa distribuição quase idêntica das matérias em análise. O período abordado e praticamente o mesmo. Os autores tencionam traçar um quadro amplo do desenvolvimento da chamada Escola dos Annales, desde os tempos de seus heréticos pais fundadores – pela explosão inovadora de suas idéias em meio a um ambiente intelectual conservador — Lucien Febvre e Marc Bloch, até o final da década de 80.

Na verdade, esta é a intenção maior de Burke e de Reis, que acabam por estender o que seria o projeto de uma história circunscrita dos Annales. Escrever uma história dos Annales partindo somente de seus fundadores seria fazer uma “história de pernas curtas”, como diria o próprio Lucien Febvre. Ao tentarem compreender o conteúdo “revolucionário” da história proposta por Febvre e Bloch, alargam o foco da pesquisa, descendo ao leito complexo do pensamento filosófico, da sociologia e da história, da forma corno eram concebidas estas disciplinas no século 19, o que Peter Burke chama – para esta última área – de “o Antigo Regime da historiografia”. Nesse percurso, Burke e Reis estabelecem as “genealogias”, febvriana e blochiana, identificando as raízes mais profundas das filiações teóricas e metodológicas dos fundadores, para explicar de que forma foram absorvidas e de que modo atuaram as influências recebidas em meio aos primeiros “debates e combates” travados na luta pela elaboração de uma história renovada.

Outra convergência dos textos: analisam as obras mais importantes, os maiores “monumentos” erguidos pelos Annales, como Os Reis Taumaturgos de Bloch, o problema da descrença (…) de Febvre, 0 Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo (…) de Braudel, Camponeses do Languedoc de Le Roy Ladurie, entre outros. Ambos percorrem as “três gerações” dos Annales, sendo que Reis pretende avançar este quadro, levando a pensar numa “Quarta geração” surgida do tournant critique de 1988.

Entretanto, apesar de algumas semelhanças de superfície, trata-se de textos acentuadamente distantes um do outro. Com efeito, as obras de Burke e Reis são ótimos exemplos de como pesquisadores que se debruçam sobre um mesmo objeto podem obter resultados desiguais, podem chegar a respostas convergentes ou divergentes, sem que necessariamente uma delas esteja incorreta ou deva ser refutada. Abandonadas as exageradas pretensões cientificistas na história, o que conta para um bom resultado da pesquisa é o seu “questionário”, ou seja, o programa do pesquisador, o grau de complexidade de suas perguntas, o amadurecirnento intelectual de seu projeto, como, a propósito, enfatiza Reis. Não que os dois trabalhos destoem quanto a qualidade e rigor, antes pelo contrário.

A diferença está em outra parte, isto é, no calibre da discussão, no fôlego e na disposição em discutir amplamente as matérias. Se os autores seguem um roteiro semelhante, corno foi ressaltado, existem sensíveis disparidades na estratégia de seu desenvolvimento. Não há dúvida de que o livro de Burke é mais leve, de leitura mais fácil, muito mais dinâmico e povoado de personagens que fizeram e ainda fazem a história da historiografia de nosso tempo. Por outro lado, o livro do professor Reis e mais te6rico, mais “sisudo”, e bem mais compacto. Acerca desse aspecto, vale ressaltar que aquilo que Burke discute em dois ou três parágrafos, de maneira quase alusiva, Reis desenvolve em diversas páginas. Para ficar em alguns poucos exemplos, basta comparar o tratamento que recebem as influências fecundas de Max Weber, Ernile Durkheirn, Frangois Simiand e Henri Berr. Em média, sete ou oito páginas de análise profunda de cada um!

Desse modo, seria o caso de indagar: em dois livros que têm propósito comum de informar sobre urna mesma questão, de onde vem o descompasso? A resposta para isso talvez possa ser encontrada no “espirito” de cada obra, na intenção de cada autor, naquilo que se refere ao público-alvo que eles tinham em mente corno destinatário de seus textos.

Ora, o livro de Peter Burke é quase urna obra de circunstancia, no sentido de se voltar claramente para o grande mercado editorial – no que, aliás, teve bastante êxito numa área em que, apesar da presença de alguns títulos consagrados, ainda há um considerável vazio de textos dessa natureza. Poder-se-ia objetar que o livro em questão foi publicado por urna editora universitária, preocupada em destinar obras de grande valor acadêmico para um público restrito. Contudo, a Editora da Unesp há anos já está inserida no circuito comercial das grandes editoras nacionais, desempenhando, diga-se de passagem, um papel brilhante.

Já o livro de Reis e extrato de tese, escrita para atender a uma rigorosa banca examinadora europeia, visto que seu trabalho foi defendido na Universidade Católica de Louvain, sem querer dizer com isto que as bancas nacionais sejam pouco rigorosas. E sobre este aspecto, o autor não se preocupou nem um pouco em “aliviar” o seu texto das necessárias mas sempre pouco agradáveis arestas acadêmicas, em destitui-lo de suas feições de tese, em esvazia-lo de pelo menos uma parte de sua densidade doutoral, premeditando atingir um público mais amplo, muito provavelmente desamparado de suficientes dados para digerir informações transmitidas num nível tão elevado. Limitou-se em nos conceder urna versão em português, incorporando as indigestas citações e refer8ncias bibliográficas no corpo do texto. Mas, pensando melhor, esta pode ser uma opção legitima do autor, que não faz concessões a certas “profanações”, igualmente legitimas, do grande mercado editorial. Se não conhecesse a história da obra, seus percalços e peripécias, teria sérias dúvidas de que editoras comerciais aceitassem publica-la, no formato corno se encontra pela Editora Universitária da UFOP.

Nesse ponto, a obra de Burke é mais feliz. Seu texto, sem a menor pretensão de desmerecer o livro, é material paradidático – com direito até a Glossário para aqueles que passaram por Francois Dosse, H. Coutau-Bergarie, Guy Bordé e Hervé Martin, sem esquecer o livro-dicionário organizado por Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacque Revel. Apesar de seu desenvolvimento quase telegráfico, ou melhor, o seu tratamento bastante ligeiro dos temas enfocados, o autor atinge seu principal objetivo: dar a conhecer o “regime” historiográfico que havia antes dos Annales, o impacto e a influência da obra de Febvre e de Bloch, a recepção internacional dos Annales, até fins dos anos 80, passando pelas “gerações” intermediarias em trajetórias breves mas muito bem tecidas, com destaque para a atuação e o lugar de Fernand Braudel.

E o que nos oferece o livro de Reis? o mesmo que a obra de Burke. Mas com analises mais extensas, o que não deixa de ser um importante diferencial. Um bom exemplo disso e o quadro que o autor traça sobre a “contaminação” da história pelas ciências sociais, e com vantagens sobre Burke, pois não se limita a estabelecer influencias e filiações te6ricas: explicita metódica e pormenorizadamente cada sistema teórico, para, ato continuo, identificar os seus pontos de enraizamento junto a história. Aí está com certeza, o seu maior mérito. Além  de uma erudita exposição do desenvolvimento da historiografia francesa, o livro de Reis constitui-se ainda numa competente e bem informada aula de metodologia da história, posto que orienta sobre as especificidades da pesquisa histórica, suas dificuldades e riscos.

Apesar da identidade temática, de uma certa coincidência no desenvolvimento do texto, ‘bem como pela presença dos mesmos personagens e algumas referências bibliográficas cruzadas, as duas obras têm poucos traços em comum. Trata-se de pesquisas que chegam a resultados bem diferentes, porque desde seu ponto de partida perseguiram fins muito diversos. Acentua-se a disparidade principalmente porque são textos de níveis teóricos claramente distintos, o que para o leitor interessado nessa matéria e muito favorável: terá acesso a duas visões, a duas formas personalizadas de tratamento de um só problema. Mas, fora de qualquer dúvida, ao transformarem uma área importante da historiografia contemporânea em objeto de análise, tarefa sumamente espinhosa, cada trabalho desempenha com valor a sua meta: colaborar para a ampliação do conhecimento de um terna mais que relevante. Em síntese, dois livros inteligentes sobre uma questão a um só tempo complexa e fascinante.

Marcos Antonio Lopes – Departamento de História/ UNIOESTE-Pr.

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Cocanha: A história de um país imaginário – FRANCO JÚNIOR (VH)

FRANCO JUNIOR, Hilário. Cocanha: A história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Resenha de: PAIS, Marco Antonio de Oliveira. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 205- 208, nov., 1998.

No início da presente década o Prof. Hilário passou a dedicar-se a uma linha de pesquisa direcionada para o estudo da mitologia medieval e cujos resultados podem ser encontrados nos seus livros As utopias medievais, A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval e Cocanha: lianas faces de uma utopia. Mas é com a presente obra que o autor mais avança nos seus estudos, na qual aborda um tema de grande interesse para os estudiosos da civilização medieval. 0 livro coloca ponto final numa discussão que ocorre nos meios acadêmicos nacionais e Órgãos financiadores de pesquisa sobre a possibilidade, ou não, de ocorrer avanços na historiografia medieval conduzida por um pesquisador brasileiro, trabalhando no Brasil. Seu trabalho serve de estimulo para o professor que diante das dificuldades colocadas pela pratica da pesquisa nesta área aqui no Brasil muitas vezes deixa-se vencer pelo desanimo. Penso que com este livro a historiografia medieval brasileira atinge a maturidade, abrindo perspectivas para a realização de novos trabalhos.

A excelência da obra e reconhecida inclusive por um dos maiores medievalista contemporâneo, o professor francês Jacques Le Goff, que no prefacio, entre outros temas, agradece ao autor pela seu trabalho sobre o pais de Cocanha, pois mesmo apesar de atrair a atenção de diversos historiadores, nunca tinha sido tratado de forma abrangente e sistemática. A partir de agora o livro deverá tornar-se citação obrigatória na bibliografia sobre o assunto.

A utopia de um país maravilhoso, de uma terra de abundancia e felicidade, da eterna juventude pode ser encontrada em diversas formações sociais pré-industriais, ocidentais e orientais, sejam elas letradas ou iletradas, tanto no mundo antigo quanto no contemporâneo. Estes sonhos que povoam o imaginário de inúmeros povos vão aos poucos sendo desvendados pela pesquisa histórica, ampliando nosso conhecimento sobre as sociedades onde surgiram. E partindo do pressuposto de Duby — de que para conhecer a ordenação das sociedades humanas o historiador deve prestar a atenção tanto nos aspectos econômicos quanto mentais que o Prof. Hilário desenvolve seu trabalho.

Movimentando-se numa área onde são muitas as imprecisões conceituais, aquela do imaginário e da intersecção cultura popular/erudita, o autor consegue se locomover com habilidade, discutindo e esclarecendo os pressupostos teóricos que utiliza, apresentando hipóteses precisas e bem elaboradas. Demonstrando ser um discípulo da história social, o autor abre-se a interdisciplinaridade movimentando-se com desenvoltura na área da história, literatura, semiótica, etimologia, filosofia, antropologia, sociologia, e mesmo algumas escapadas pela psicanalise.

O livro demonstra uma grande erudição e acesso a uma vasta bibliografia, mas nem por isto deixa de ser urna leitura agradável. O autor evita as citações em idiomas estrangeiros, tediosas e incompreensíveis para muitos, e com isto favorece a leitura a um público mais amplo do que aquele restrito ao interessados pela história medieval. A tradução completa do fabliau da Cocanha nas primeiras páginas presta um auxilio inestimável ao leitor e favorece a compreensão das idéias do autor no decorrer da obra.

No primeiro capítulo, O Fabliau de Cocagne, mosaico textual, localiza o texto manuscrito cronológica e geograficamente e faz algumas incursões pela área do maravilhoso em várias culturas do mundo antigo, concluindo que o “fabliau da Cocanha pode ser considerado um exemplo típico da utilização de lugares-comuns, de imitação, de empréstimos, de compilação enfim, pratica muito difundida nas elaborações literárias medievais.” (p. 50) Quanto ao público alvo do fabliau não há acordo entre os especialistas, e o autor prefere sustentar a hipótese de que o mito de Cocanha funciona como uma compensação imaginaria para os principais grupos sociais urbanos dos séculos XII e XIII, período muito agitado na Europa em consequências das transformações oriundas do crescimento comercial e urbano ocorridas naquela época. Mas Cocanha não e só uma terra de sonho, pois representa também urna crítica social, além de urna sátira ou paródia da cultura oficial.

No segundo capitulo A terra da abundância parte do princípio de que a fome representava um dos piores inimigos da população da Europa medieval, daí o surgimento de várias utopias que poderiam dar cabo daquela desgraça de uma forma imaginaria. Ao que tudo indica nem mesmo o nome do país — Cocanha estaria livre de associações com o terna dos alimentos. A dieta dos cocanianos e alvo então de interessante analise e comentário, e nos dá uma visão panorâmica dos hábitos alimentares da civilização medieval.

No capitulo terceiro A terra da ociosidade, a partir do verso de que “La, quem mais dorme mais ganha” (FC v.28), aborda-se um dos tragos marcantes dos cocanianos, herança talvez dos preconceitos contra o trabalho oriundos da civilização greco-romana, da cultura germana e do cristianismo. E o interessante foi a valorização da ociosidade num momento em que o trabalho começava a ser reconhecido, refletindo talvez unia postura aristocrática contra as atividades dos burgueses. Neste capitulo o autor defende a tese de que “a natureza cocaniana e divina.” (p. 90), o que leva ao panteismo, isto e, doutrina na qual a idéia de Deus e do mundo representa urna (mica realidade. Dedica também algumas páginas na análise do carnaval e outras festas populares, pois “A terra maravilhosa com seus excessos alimentares, alcoólicos e sexuais é um carnaval ininterrupto.” (p. 97/98.)

No quarto capitulo, A terra da juventude aborda-se este tema tão sonhado pelas sociedades pré-industriais, mas que permanece obcecando o mundo pós-moderno. As condições econômicas, médico-sanitárias e alimentares da sociedade medieval conspiravam para que os indivíduos tivessem uma vida reduzida, daí a ênfase dada ao assunto pelo autor do fabliau, que inicia e fecha seu texto fazendo referências a Fonte da Juventude. Ser jovem era urna condição sine qua non para desfrutar das delicias e maravilhas de Cocanha. O próprio autor do fabliau era um jovem, corno ele mesmo afirma no texto, e que o imaginário transposto para país maravilhoso seria aquele da juventude aristocrática feudal. Mas para o Prof. Hilário o público alvo do fabliau não seria exclusivamente esta jovem aristocracia, pois atenderia também aos anseios e sonhos dos grupos urbanos burgueses.

No capitulo quinto, A terra da liberdade, discute-se as restrições que ela passou a sofrer no início da baixa idade média quando passou a ser cerceada pelo grande conjunto de normas imposto pelas monarquias centralizadas, pelos núcleos urbanos e pela igreja. Estas medidas deram origem a um clima de intolerância inexistente até então e que gerou a segregação de diversos segmentos da sociedades como enfermos, prostitutas, homossexuais, pobres de urna maneira geral, estudantes itinerantes, por exemplo. A ênfase na liberdade cocaniana seria urna compensação da liberdade real negada pelas realidade histórica daquele momento. Num momento de conflitos entre os partidários da ortodoxia da igreja e os diversos grupos heréticos que surgiram por várias partes da Europa, Cocanha desfruta de urna liberdade religiosa, e, melhor ainda, e um país não sacerdotal, conforme afirma o autor na página 139. Com uma igreja obcecada em impedir os prazeres oriundos do sexo, os cocanianos contra-atacam estabelecendo urna liberdade sexual que atinge a violência, pois os homens e a mulheres poderiam tornar a iniciativa de “pegar” os parceiros que quisessem, independente do seu consentimento, sem que isto gerasse algum descontentamento. O apelo da natureza era a única motivação a orientar a vida sexual dos cocanianos. No capitulo busca-se urna vez mais as possíveis origens do autor do fabliau e o Prof. Hilário enfatiza a hipótese de que vários indícios apontam para um goliardo que se investe contra a corrupta e avarenta estrutura papal e eclesiástica.

No sexto capitulo o autor aborda urna versão medieval inglesa do fabliau, cuja tradução e apresentada. Diferententemente da versão francesa, esta é bem mais limitada, concentrando-se na paródia de uma instituição monástica, ao que tudo indica a poderosa ordem de Cister, e seu autor seria um poeta franciscano, adepto da pobreza e simplicidade. 0 texto teria sua gênese então nos conflitos enfrentados pelas ordens monásticas a respeito dos valores e funções que as mesmas deveriam manter.

O sétimo e último capítulo trata de versões tardias que por surgirem num contexto histórico diferente do medieval incluem alguns elementos novos, apesar de manter constante o sonho de urna terra maravilhosa. Como o autor afirma, houve urna certa popularização do país da Cocanha e muitas versões representam críticas sociais as condições de vida levadas pelas classes mais pobres da sociedade, principalmente os camponeses. Algumas versões marcadas pela ideologia burguesa voltaram-se contra o clima de ociosidade e descontração da antiga Coconha. Por outro lado o realismo, o racionalismo e o iluminismo cuidaram de dar um cunho mais realista e sóbrio a algumas versões. Muito interessante para os leitores brasileiros são as páginas dedicadas a adaptação dos ideais cocanianos para o Novo Mundo a partir do final do século XV, funcionando como incentivo para o deslocamento de grandes contingentes de europeus para a América. A vegetação exuberante, a fauna variada, as aves coloridas, os rios caudalosos, a abundância de metais preciosos, a nudez indígena, levaram a transferir para a América a realidade da Cocanha. E para encerrar o livro o autor, como medievalista e brasileiro, não poderia ser mais feliz ao abordar uma interessante e cômica versão nacional do fabliau, o livreto de cordel intitulado o País de Sa -o Saruê, cujo autor transpôs para a realidade nordestina as maravilhas do país de Cocanha.

Na análise de um recorrente sonho da civilização ocidental — a utopia de uma terra maravilhosa o Prof. Hilário faz uma grande viagem pelo tempo, pois inicia seu livro abordando o famoso Poema de Gilgamech escrito por volta de 2500 a.C. no Oriente Media, e o conclui com um texto brasileiro de meados do século vinte.

Finalizando só resta-me recomendar a leitura do livro não só para os interessados pela cultura medieval, mas para todos aqueles dedicados aos temas relacionados ao imaginário, ideologia e cultura popular/erudita. E como aprofunda o tema referente ao carnaval deve ser leitura obrigatória para todos interessados pela cultura brasileira, pois afinal, para muitos, o Brasil e o país do carnaval.

Marco Antonio de Oliveira Pais – Professor do Departamento de História da UFMG.

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BH: horizontes históricos – DUTRA (VH)

DUTRA, Eliana Regina de Freitas (Org). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/ Arte, 1996. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 507-508, nov., 1997.

De que é feita uma cidade? A resposta a tal indagação pode ter um número vasto de abordagens, como nos mostra a obra B.H — horizontes históricos. Na verdade, qualquer um teria dificuldades de pensa-la ou defini-la sem realizar associações imediatas como todas as sensações e impressões mescladas as imagens de cidades em que viveu, conheceu de passagem ou através de fotos, textos literários, poesias ou imagens cinematográficas.

Mas é justamente a dificuldade de precisar a cidade o segredo para pensá-la. Pois uma cidade e feita de vida e experiencias, inscritas em suas pedras, ruas, nas luzes que brilham a noite, nos rostos das pessoas que passam, nos locais onde se encontram ou se resguardam. Ela não é uma totalidade fechada a ser desvendada nem um espaço de relações passive! de ser aprisionado em um sistema organizado. Esta e sua beleza, este é seu fascínio.

A perspectiva da comemoração do centenário de Belo Horizonte tem, certamente, nos estimulado a refletir sobre seus problemas e esperanças. Mas o aniversario traz também a noção de tempo decorrido. Surge, aqui, a questão de se pensar a história desta capital: os sonhos que a mobilizaram, os homens que a ocuparam e nela construíram suas vidas, as múltiplas cidades que a formam. Pois se horizonte é um substantivo no singular, sua unidade e uma mera abstração de nosso olhar sobre o céu. 0 horizonte e de infinitos, formação de incontáveis e indistintos pontos e trajetos. Belo Horizonte: termo que unifica, afetivamente, toda a pulsação e a explosividade de uma série de práticas dos homens que a habitaram em momentos diversos, na mem6ria que imprimiram pelos seus quatro cantos, na presença de seus vivos ou nos sinais que estes tentam deixar aos seus sucessores.

BH — horizontes históricos, organizado pela professora Eliana de Freitas Dutra, do Departamento de Histeria da UFMG e publicado pela Editora C/Arte, apresenta-se como um momento propiciador de indagarmos essa multiplicidade de Belo Horizonte. A cidade vista nas relações de seus homens e mulheres, nos projetos em que foi delineada, nas práticas que a tentaram definir e em que se construíram suas identidades, em suas praças e parques, ruas e bondes, casas e cinemas, cafés e bares, estatuas e placas comemorativas, Igrejas e imagens.

Formado por seis ensaios sobre a cidade — todos eles produzidos ou orientados no Âmbito do Departamento de História da UFMG — a obra possui uma rica diversidade temática, convidando o leitor a viajar por Belo Horizonte por caminhos muitas vezes impensados. A partir de uma alta qualidade acadêmica, os autores obtiveram o resultado de uma leitura extremamente agradável, com um tratamento preciso e, simultaneamente, simples das questões envolvidas nas reflexões históricas propostas.

Dirigido a um público amplo, BH — horizontes históricos possibilitara a seus leitores, com alta qualidade e extrema singeleza, a reflexão em torno de fascinantes aspectos da vida de nossa cidade. E, ao ressaltar a complexidade de nossa histeria, acaba por abrir-nos promissoras perspectivas de tudo o que pode ser construído no âmbito ilimitado da capacidade criativa de seus cidadãos.

Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH- UFMG.

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“Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão” – SALGUEIRO (VH)

SALGUEIRO, Angotti Heliana. “Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão”. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos Culturais, 1997. Resenha de: DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 500-507, nov., 1997.

No momento em que a cidade de Belo Horizonte comemora o seu primeiro centenário, reveste-se de significativa relevância a iniciativa da Fundação João Pinheiro, com o concurso da historiadora Heliana Angotti Salgueiro, de preparar uma biografia de Aarão Reis, engenheiro chefe dos trabalhos da Comissão Construtora da da capital.

A tarefa de construção de uma biografia, ainda hoje, é um impreendimento delicado, que afugenta muitos historiadores temerosos de serem identificados à antiga história tradicional, em parte herdeira do paradigma do indivíduo iluminista, com o seu clássico acento sobre as ações dos atores, preferencialmente aqueles que se fazem visíveis no mundo das grandes decisões políticas.. Pruridos à parte, é certo, porém, que a biografia enquanto gênero historiográfico tem retornado aos poucos a ocupar um discreto, mas significativo, lugar dentre os recentes escritos históricos Tal fato tem sido, em parte, atribuido aos desdobramentos, no campo do conhecimento histórico, do advento da pós-modernidade com a prerrogativa da passagem do “sujeito” ao “indivíduo”. Na linha do estabelecimento de uma relação entre pós-modernidade e biografia tem sido alinhados, como pontos para a reflexão dos historiadores, questões tais como a perda do sentido da história e o enfraquecimento ou mesmo o fim dos grandes discursos legitimadores do sujeito ,conquanto inerentes à chamada crise da modernidade.

Por seu turno, os sociólogos, como é o caso de, Bourdieu, manifestam seus cuidados teóricos preocupados em bem distinguir o indivíduo concreto — a personalidade individual e biológica capaz de atuar em diferentes campos, — do indivíduo construido, ou agente eficiente em um dado campo do social, precavidos em não se deixarem capturar pela “ilusão biográfica”. A recomendação nesse caso é de que a compreensão de uma “trajetória” — de eventos biográficos — seja condicionada à construção preliminar dos estados sucessivos do “campo” onde ela se desenrolou, portanto o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado ao conjunto de outros agentes implicados no mesmo campo e afrontados ao mesmo espaço de possíveis. Só assim se evitaria conceber que uma vida individual é uma “História” e a narrativa desta História, no que também concordam os historiadores.

Noutra ponta do debate historiográfico, e sem negligenciar a refelexão teórico-metodológico em torno da biografia, Heliana Angotti Salgueiro se impõem a tarefa de biografar Aarão Reis optando por fazer uma “biografia intelectual”, dentro de um novo campo da história social, qual seja, o da “micro-história”. Por esse caminho ela reconcilia a ação social com as escolhas e o poder de decisão do indivíduo, cruzando num jogo de escalas, o espaço das ações individuais com o espaço dos sistemas coletivos, portanto a micro com a macro-história. Deste cruzamento, a noção histórica de indivíduo aparece resignificada, pois não mais fragmentada e desterritoralizada, ou mesmo não mais anulada, por uma inexorável determinação, uma vez que o “individual” é complementar ao “social”.

Baseada em um cuidadoso, e minucioso, trabalho de pesquisa de fontes, sobretudo primárias, no qual se destacam um precioso levantamento iconográfico; a seleção de vários, e diversificados, escritos de Aarão Reis; bem como das obra dos autores que deixaram sobre ele uma marca intelectual mais decisiva; e utilizando-se de fartas referências bibliográficas, calcadas em historiadores franceses, Heliana Angotti Salgueiro realiza um trabalho sério e competente.

Pela trajetória intelectual e política de Aarão Reis , seu ponto de partida, somos levados de encontro a uma trilha do pensamento social brasileiro da segunda metade do século XIX e da primeira metade deste, e à fronteira da formação técnica, das referências culturais e dos campo de atuação, e efetiva intervenção, dos engenheiros na sociedade e na administração pública no Brasil dos oitocentos. Também, seguindo as pegadas de Aarão Reis, é possível vislubrar os projetos de reforma social postulados ou em curso, naqueles anos, seja no campo da instrução pública, do planejamento urbano ou mesmo da difusão do progresso científico e tecnológico, bem como às suas respectivas filiações ideológicas, e representações utópicas e imaginárias.

A autora definiu um plano para a obra pelo qual essa se divide em duas partes. Na Parte I , designada “Traços”: Formação e trajetória de Aarão Reis — Pensamento e ação de um engenheiro da Politécnica no Brasil do século XIX”, ela desenha o perfil do homem , do intelectual, do engenheiro. A formação politécnica; a militância republicana, na juventude; sua participação na diretoria do Club de Engenharia; sua atividade no jornalismo, inclusive na imprensa abolicionista; seu trabalho como professor — inicialmente no ensino secundário e posteriormente na Escola politécnica do Rio de Janeiro — e como tradutor de autores franceses do porte de Littré, Condorcet, Laboulaye, entre outros, que estarão nas bases do ideário que marcará seu engajamento em grandes obras públicas; a publicação de tratados científicos, panfletos, opúsculos, através dos quais ele opta por difundir , no dizer da autora,” os princípios de economia social que dominavam sua geração”.

Há que se destacar nesse ponto da obra, alguns momentos importantes na análise empreendida. Por um lado a estratégia metodológica adotada onde a idéia de “esboço” surge em complementaridade à de “traços” impedindo que o leitor apreenda uma imagem estática e linear da vida e obra do biografado. O pensamento e a ação de Aarão Reis, não obstante sua coerência — garantida pela adesão ao “cientismo”, onde a razão e a ciência devem orientar a tomada de decisões políticas e o engajamento na construção de um “Brasil moderno” — aparecem em movimento, abertos à mudanças de influências e sujeitos à deslocamentos. Assim é que podemos acompanhar a multiplicidade de suas idéias, o ecletismo de sua biblioteca e sua relação, em diferentes níveis de temporalidades, com os autores que lê: “parte de Condocert, passa por Saint- Simon e pelo positivismo heterodoxo da ala littreísta, para finalmente abraçar os estereótipos comtianos mais conservadores na sua obra de maturidade”.

Por outro, ao se deter em alguns dos principais escritos de Aarão Reis — entre eles “A Instrução Superior no Império” e “Economia Política e Finanças” — com vistas a estabelecer as relações entre eles e sua ação, suas possíveis contradições, a repercusão dos pensadores que ele leu e “convocou”, sua relação com a memória cultural do século XIX, sua afinidade com o pensamento dos engenheiros reformistas de sua geração, sua articulação com os problemas vividos pelo Brasil, e, sobretudo com a futura concepção de Belo Horizonte, a autora traz à luz um panorama rico sobre o itenerário intelectual de Aarão Reis. O que vemos é um homem culto, com uma erudição marcada, embora não limitada, aos filósofos e engenheiros franceses, com os quais se sintoniza e compartilha a crença em uma filosofia e ciência positivas e com seus valores, e instrumentos , voltados para a instrução pública, o progresso e a modernização do país, guardando sempre, em nome de uma ciência social tecnocrática, uma proposital distância dos partidos políticos, porém, cultivando a crença na autoridade do Estado .

É de se lamentar, no entanto que a atuação do Club de Engenharia, o papel da Escola Politénica do Rio de Janeiro e mesmo a história da constituição da engenharia enquanto um campo de saber técnico e especializado no Brasil não tenham merecido por parte da autora a atenção devida .Aliás surpreende a sua afirmação de que “No processo de modernização urbana, os engenheiros, dentre os quais Aarão Reis, cuja polivalência de pensamento e de ação no desenvolvimento do país não foi ainda levada em conta de forma aprofundada”. Uma simples consulta à obras, entre várias outras, como as Maria Alice Rezende de Carvalho, ”Quatro vezes Cidade”; Jaime Larry Benchimol, “Pereira Passos — Um Haussmman Tropical; Mário Barata, “Escola Politécnica do Largo São Francisco — Berço da Engenharia Brasileira”; Maria Inês Turazzi, “A Euforia do Progresso e a Imposição da Ordem: a engenharia, a industria e a organização do trabalho na virada do século XIX”; Oswaldo Porto Rocha, “A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro — 18701920; José Murilo de Carvalho, A Escola de Minas de Ouro Preto: O peso da glória; bastariam para descaracterizar a afirmação acima e reafirmar a existência, de longa data no país, de um conhecimento já estabelecido sobre o tema. Um diálogo com essa literatura certamente teria fornecido novos e ricos elementos para a biografia intelectual de Aarão Reis e para a sua trajetória dentro do campo de atuação possível dos engenheiros do seu tempo e no espaço das iniciativas de modernização e progresso.

Na Parte II, intitulada “Temáticas, Glosas, Referência , são selecionadas, nos escritos de Aarão Reis, temáticas expressivas e emblemáticas, tais como a instrução pública e a reforma do ensino, os ideais humanitários de liberdade e fraternidade, o desenvolvimento tecnológicco, o planejamneto do espaço e do território e a administração das cidades; capazes de inscrever o pensamento e a ação de Aarão Reis, bem como de engenheiros e administradores seus contemporâneos, como uma dimensão particular, e não externa, ou fora do lugar, do fluxo do pensamento ocidental sobre a modernidade. A opção pelo procedimento analítico que privilegia, na biografia intelectual, a noção de apropiação/circulação cultural permite a autora exorcizar a tese das “idéias fora do lugar”, revelando um fundo comum de questões e problemáticas que se cruzam. e circulam, num âmbito internacional de referências, numa corrente cultural geral, e que serão traduzidas em diferentes regimes de historicidade “em face de situações vividas ou condições de sua aplicação”.

No “primeiro segmento “Da instrução pública e do nacionalismo” somos levados de encontro à marcas do romantismo e do naturalismo , na obra de Aarão Reis, no âmbito do seu discurso pedagógico e patriótico que clama pela educação profissional, se desdobra no discurso de regeneração e transformação e intervenção no espaço urbano-arquitetural, e nas iniciativas de representar a pátria no espaço da cidade. A toponímia das ruas e praças de Belo Horizonte, seriam, nesse caso, manifestações exemplares da utilização do espaço, pelo poder, para educar. Ë pena que a autora não tenha se detido um pouco mais nesse ponto explorando a questão da educação popular/ educação e instrução ,e sua relação com o projeto e o ideário republicanos no Brasil, sinalizadas e esboçadas, na primeira parte, à luz do engajamento de Reis com a causa da educação e a transformação do país. A intencionalidade pedagógica presente em boa parte do material iconográfico distribuido ao logo da obra, se trabalhado nesta parte certamente teria permitido comparações e aprofundamentos.

Na sequência , “Do bem comum e social: a Liberdade e a Fraternidade”, encontramos Reis , em outra faceta, às voltas com a questão abolicionista , com iniciativas mutualistas, e com o desafio de conciliar sua condição de pensador, afinado com as idéias humanistas, com a de administrador público, o que lhe impôem, entre outras, a “melindrosa” tarefa de realizar as desapropiações no arraial e lidar com os habitantes desalojados.

Na seção “Da história da técnica: eletricidade e mobilidade” o panorama dos textos escritos por Reis é, como bem diz a autora , uma “crônica dos avanços do século e da sua repercusão no país”, tomadas como ícones do triunfo da civilização e da medida da solidariedade entre os homens. A eletricidade e as estradas de ferro enquanto expressão do progresso científico/tecnológico/material, legitimam a atuação pública de um engenheiro, como Aarão Reis, e conferem visibilidade — através dos seus artigos, relatórios, e outras publicações- à sua erudição técnica internacional, as quais ele não dissocia, dada sua perspectiva ideológica, do debate histórico e político do período Os textos aqui escolhidos nos introduzem a um só tempo à alguns ângulos da história da técnica no Brasil do século XIX, às opiniões de Reis sobre a implantação dessas tecnologias e o seu impacto social e cultural , bem como ao estágio das políticas públicas no país.

Ainda na parte II, no segmento “Do funcionário republicano em face das vicissitudes da política e da administração das obras públicas”, uma outra dimensão da biografia intectual de Reis, é explorada: aquela das delicadas relações emtre o intelectual, o agente responsável, e os tortuosos caminhos do poder e da administração pública. Um republicano convicto com Reis, “porta-voz de uma engenharia nascente”, como afirma a autora, imbuído da missão de levar o progresso ao país e de modernizar as cidades, vai vivenciar a dura realidade dos desencontros ente o que é ditado pela razão técnica e o que é imposto pelo poder político na gestão urbana.. Nos relatórios e nas correspondências se destacam as recomendações técnicas ignoradas pelos governantes e as queixas e desabafos do engenheiro. O descontentamento entre o ritmo demandado pelos funcionários científicos e e o que imposto pelo poder público, por um lado, levam Reis a propor uma alianças entre o Estado e a iniciativa privada para a realização de obras públicas, o que faz tendo como referência o debate entre individualismo e socialismo, ou seja, sem se afastar dos seus referentes de doutrina.

Reiteremos, nessa parte, as mesmas observações feitas anteriormente à I Parte, acerca do papel do engenheiro, uma vez que a autora reafirma que se “pesquisou pouco” sobre a história do funcionalismo científico e admnistrativo no Brasil .

Por fim o ultimo segmento “Da leitura do território ao planejamento urbano: o caso de Belo Horizonte” contempla as intervenções diretas sobre o território e a cidade, que vira a ser Belo Horizonte. A temática escolhida dá à obra um fechamento lógico e coerente: o pensamento e a ação de Aarão Reis, com seus matizes, seus pontos de apoio, suas configurações e sua expressão material, parecem convergir em uníssono para a construção da nova capital.

O Relátório da Comissão d’Estudo das Localidades Indicadas para a Nova Capital, a Planta Geral , os projetos dos prédios públicos, a Exposição de Aarão Reis, na Revista Geral dos Trabalhos, são alguns, entre vários outros, documentos bem retrabalhados pela autora rumo à compreensão do discurso urbanístico, do modelo de cidade e da utopia do espaço, que nortearam a planificação urbano-territorial de Belo Horizonte. Esses pontos têm sido objeto de análise exaustiva e minuciosa por parte de historiadores, sociólogos e urbanistas empenhados igualmente na sua decifração no caso belorizontino. Mantidas as diferenças de enfoques entre eles, é possível encontrar na análise de Heliana Angotti e em alguns desses trabalhos, várias preocupações analíticas comuns. Surpreende, no entanto que a autora não faça nenhuma menção à sua existência, o que pode significar um desconhecimento de farta bibliografia, ou pouca disposicão para a troca de idéias. Quanto aos possíveis antagonismos interpretativos e de método, que poderiam advir da utilização dessa numerosa literatura, ressente-se pela perda da riqueza do contraditório e do diálogo com a diferença.

Para exemplificar, no que diz respeito à analise interna da Comissão d’Estudos — que registre-se, não é desconhecida nos anais da história do urbanismo no Brasil — como forma de penetrar o discurso de Reis, o texto perde em não contrastar e até mesmo aprofundar algumas convergências com o texto de Maria Esther Saturnino Reis, “A cidade paradigma e a república: O nascimento do espaço Belo Horizonte em fins do século XIX”, que adota um procedimento arqueológico na análise do texto da commissão de d’Estudos. Sobretudo quando ambas percebem a importância do recurso aos saberes físicos e biológicos, a fundação de um conhecimento ecológico, a preocupação com a salubridade e a higiene, a centralidade e a inscrição dessas condições na Economia Política da época.

Também quando a autora se detém no exame da Planta da cidade e nas leituras e modelos de Aarão Reis na montagem da sua cidade ideal, é impossivel não se ressentir da referência, e da convocação, dos trabalhos de Paulo Henrique Ozório Coelho, “La Creation de Belo Horizonte: Jeu et enjeu politiques”, Letícia Julião, “Belo Horizonte: Itinerários da Cidade Moderna”, de Luiz Mauro Dos Passos, “A Metrópole Cinquentenária. Fundamentos do saber arquitetônico e imaginário social da cidade de Belo Horizonte —1897-1947, para ficar apenas em alguns poucos, que se debruçam em minúcias sobre a mesma Planta Geral. A concepção de Aarão Reis sobre a cidade e o território; a presença do Estado na regulação da ocupação e do crescimento; a pluralidade das referências e das disposições, modernas e arcaicas, na elaboração do plano urbano da nova Capital; a relação entre o desenho da planta e a topografia local; o suposto caráter rígido do projeto de Reis, são pontos que mais afastam do que aproximam os autores da interpretação de Heliana Angotti, comportando leituras em sua maioria divergentes, incorporando elementos não menos importantes para o entendimento das estratégias e objetivos de Reis, capazes de propiciar rica interlocução e ampliar o escopo da análise histórica.

A autora conclui a biografia intelectual de Aarão Reis reafirmando o conteúdo ideológico progressista de Aarão Reis, centrando na idéia de metamorfose a expressão da sua utopia. A fé littreana de Reis, a qual segundo ela ligava “o progresso da ciência à evolução dos costumes, daí o combate à miséria, vista como obstáculo aos progressos morais e ao bem-estar social da humanidade”, é o pressuposto que sustenta a sua tese de que a concepção de Belo Horizonte, do Reis engenheiro, não é um projeto político ou social, mas parte de uma “missão”, que ele considera sua. Quer concordemos ou não com essa conclusão, chegamos ao final dessa biografia com uma compreensão mais alargada do cenário intelectual e político do final do século XIX no qual transitavam e atuavam homens da estatura de um Aarão Reis, cujo perfil de homem público é esboçado com responsabilidade na presente obra.

Para terminarmos esta resenha um comentário final sobre a edição da Fundação João Pinheiro a qual, muito embora primorosa, como de hábito — quanto ao acabamento da obra, a qualidade do papel , da impressão e das reproduções fotográficas — pecou pelo excesso , ou seja , pelo rebuscamento visual e pela saturação gráfica, as quais dispersam a atenção do leitor, pertubando a leitura das notas e desvalorizando a significativa linguagem das “imagens” tão bem utilizada pela autora.. Uma maior sobriedade estaria em melhor acordo com a natureza do texto e, por que não dizer, com o perfil do biografado.

Eliana Regina de Freitas Dutra – Professora do Departamento de História da UFMG.

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UFMG: Projeto Intelectual e Político – DIAS (VH)

DIAS, Fernando Correia. UFMG: Projeto Intelectual e Político. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Resenha de: REIS, José Carlos. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 495-500, nov., 1997.

Belo Horizonte faz 100 anos e a UFMG, uma de suas instituições mais importantes, faz 70 anos. A festa dos 70 anos da UFMG integra o conjunto das comemorações do centenário de Belo Horizonte. Nesse ambiente de festa e alegria, o departamento de História da UFMG tomou a iniciativa de criar o projeto integrado de pesquisa UFMG: Memória & História, sob a coordenação das Professoras Maria Efigênia Lage de Resende e Lucília de Almeida Neves Delgado e envolvendo uma ampla equipe de pesquisadores das diversas unidades da UFMG. As pesquisas visam a elaboração de ensaios e estudos sobre as origens e a trajetória da UFMG, o arrolamento de fontes bibliográficas e documentais e a produção de fontes orais, escritas e audiovisuais. O projeto tem o apoio financeiro da FAPEMIG, CNPq, FUNDEP, UFMG e FAFICH. O resultado das pesquisas será apresentado em uma série de 5 volumes. E o primeiro volume acaba de ser oferecido ao público belo-horizonte, mineiro e brasileiro. Trata-se do livro do Professor Fernando Correia Dias UFMG: Projeto Intelectual e Político. Quem o apresenta é o atual Reitor, o Professor Tomaz Aroldo da Mota Santos. A editora da UFMG se esmerou na produção gráfica e artística do livro: uma bela capa que é como a “foto de uma lembrança” do prédio da Faculdade Livre de Direito, o papel de boa qualidade, a impressão bem definida, o texto corretamente tratado e revisado.

O Professor Dias, 71, mineiro de Três Pontas, autor do livro, teve toda a sua formação feita na UFMG: Bacharel em Direito (1951), Bacharel em Sociologia e Política (1957), Doutor em Ciências Sociais (1969). De 1962 a 1969, ele foi professor da FACE e da FAFICH; de 1969 a 1984, foi professor da Universidade Nacional de Brasília. O Professor Dias possui uma obra numerosa, dedicada à sociologia da cultura e à história da cultura. Em suas principais obras, ele tematizou os “caracteres originais” de Minas, a cultura mineira, o barroco, a Inconfidência, a literatura, a educação.

Nesse seu novo livro, o Professor Dias deseja “estudar a mentalidade das elites políticas e intelectuais de Minas nos anos 20, uma quadra de inovação e alvoroço, para compreender o contexto político e intelectual da emergência de projetos coletivos de maior alcance, como a preservação da arte barroca e a construção da primeira universidade do Estado”. E ele atingiu o seu objetivo, cumpriu a sua missão. Ele nos oferece um relato das origens da UFMG, que não pretende ser completo, mas que é uma bem realizada análise da conjuntura política e cultural de Minas na segunda metade da década de 1920, repleta de datas, nomes e episódios. Ele menciona ao final do volume uma vasta e consistente bibliografia. As fontes para o seu livro, ele as encontrou na Biblioteca Central/UFMG, no Arquivo Público Mineiro, na seção Mineiriana da Biblioteca Estadual Prof. “Luis de Bessa”. Ele se apoiou também nos jornais de 20/30.

Eis, portanto, o projeto UFMG: Memória & História e, dentro dele, o livro e o seu autor. Sobre o livro, seria necessário e interessante reter algumas de suas análises e informaçöes. Em 1927, criou-se a UMG. Aurélio Pires, um dos seus maiores defensores e fundadores, divide a “história da idéia da universidade mineira” em três fases: 1789-1925: iniciativa; 1925/27: início da realização; 1927: criação definitiva. Vamos nos apoiar nessa periodização para organizar os dados que nos oferece em seu livro o Professor Dias. A periodização é uma estratégia especificamente historiadora para organizar o vivido, oferecendo dele alguma inteligibilidade. Aurélio Pires considera que a “inteligibilidade da UMG” poderia ser percebida nessas três fases, e o Professor Dias parece concordar, pois a estrutura implícita do seu livro leva em consideração essa periodização.

De 1789 a 1925: iniciativa. A UMG foi sobretudo um “sonho dourado” dos Inconfidentes. Em sua origem, ela já era um “projeto político e intelectual”. Os Inconfidentes eram intelectuais com um projeto político, que marcou profundamente a memória mineira e nacional. A fundação da UMG veio realizar uma espera que não pode ser realizada pelos seus sonhadores do passado. Ela será o resgate de uma dívida com o passado, a realização do sonho dos ilustres antepassados mineiros, os Inconfidentes. A universidade apareceu tardiamente no Brasil; elas apareceram somente no século XX. Durante todo o século XIX foram vários os projetos apresentados e arquivados por inércia e indiferença. Por que? Os governantes, afirma Dias, preferiam manter escolas isoladas tendo em vista a profissionalização das novas gerações. Predominava uma mentalidade pragmática, “naturalista”. A universidade seria um retrocesso, um lugar de retórica e pedantismo literário. Para o Professor Dias, foi a “orientação pragmática” que impediu o surgimento antecipado da universidade brasileira. O positivismo que predominou no final do século XIX reforçou esta atitude ao considerar a universidade elitizante e promotora do saber ornamental. A consequência disso era uma cultura dominada pelo autodidatismo e pela bibliografia estrangeira. A tradição cultural mineira se dividia em duas vertentes: a da “razão humanista” e a da “razão pragmática”. A primeira era orientada pela herança católica e greco-latina; a segunda, pela utilidade prática da informação técnica. As duas vertentes predominaram alternadamente e coexistiram e ambas foram prejudiciais à idéia da universidade.

O ensino superior era feito em escolas isoladas. A primeira escola superior fundada no Brasil foi a de Farmácia, em 1839, em Ouro Preto. A segunda, também em Ouro Preto, foi a Escola de Minas, em 1875. Criou-se uma Escola Livre de Direito também em Ouro Preto, em 1892. Mas, com a fundação de Belo Horizonte, a cultura mineira se deslocou de Ouro Preto para a nova capital. Várias escolas superiores isoladas foram criadas em Belo Horizonte: em 1907, a Escola de Odontologia; em 1911/ 12, a Escola de Medicina; em 1911, a Escola de Engenharia. Antes, em 1898, a Escola Livre de Direito de Ouro Preto transferiu-se para Belo Horizonte. A nova capital passou a ter uma importante rede de escolas superiores isoladas. Eram estabelecimentos livres, particulares e autônomos. Belo Horizonte se consolidou como centro político-administrativo e intelectual de Minas. De Ouro Preto, vieram funcionários, profissionais liberais, professores e, inclusive, costumes e rituais. O autor discorre longa e detalhadamente sobre cada uma das escolas de Ouro Preto e de Belo Horizonte. Ele apresenta listas de nomes dos professores e biografias de alguns deles.

Essas são, portanto, as condições iniciais da UMG: subjetivas, o sonho sagrado dos Inconfidentes, uma sensação de menoridade e inferioridade em relação aos países estrangeiros e vizinhos e ao Rio de Janeiro; objetivas: quatro escolas superiores isoladas, que existiam bem e concretamente, que poderiam ser o núcleo inicial da sonhada universidade. Outros fatores vão se associar a esses: a efervescência política e intelectual dos anos 1920, o projeto político do Presidente do Estado Antônio Carlos Andrada, a aspiração da comunidade mineira e belohorizontina.

1925-1927: início da realização. Um reparo em relação a esse corte temporal: ele parece muito curto! Se é verdade que o movimento pró-Universidade se acentuou na segunda metade da década de 20, ele deve ter começado um pouco antes, pelo menos no início da década. Talvez se obtenha uma maior “inteligibilidade do processo” se se estendesse essas datas para 1920/1927. O Professor Dias afirma que o ambiente político e intelectual da década de 20 era marcado por três fatores que aceleraram a fundação da UMG:

1º) a formação dos intelectuais. Nos anos 20, as escolas isoladas começaram a dar os seus primeiros frutos. Os estudantes de Direito se destacavam na política e no setor literário. A maior parte dos jovens intelectuais modernistas passaram pela escola de Direito. A geração modernista mineira possui uma unidade coletiva real, é um grupo social homogêneo. Ela está interessada em resgatar o regionalismo cultural mineiro, quer retomar a tradição intelectual mineira desde o século XVIII. Há interesse na preservação da arte barroca, da cultura mineira. Os novos têm uma formação Iluminista, assim como os seus antepassados do século XVIII. Eles convivem com os tradicionais, egressos do Caraça e dos Seminários de Mariana e Diamantina, de herança católica e greco-latina.

2º) as condições e consequências da urbanização. Belo Horizonte continuava a ser uma tranquila cidade político-administrativa. Ela simbolizava a unidade mineira e recebia os mineiros vindos de todo o Estado. A sua vida urbana se acelerou. Ela centralizava a vida cultural. A imprensa era mais contínua e estável. A oligarquia política perremista não era tão fechada — ela ouve e acolhe intelectuais e políticos oriundos de outras camadas sociais. O Estado não era controlado exclusivamente por uma oligarquia, mas por “elites autoritário-modernizantes”, cuja expressão maior era o próprio Presidente Antônio Carlos. O Professor Dias tem uma opinião, talvez, muito favorável de Antônio Carlos, que uma citação que faz de Norma de Góes Monteiro ajuda a relativizar: é uma “velha raposa”, autoritário, mas modernizante, com tintas de liberal. O autor parece ter-se deixado seduzir por Antônio Carlos.

3º) o pensamento social vigente: foi um momento de forte expressão do regionalismo cultural e político em Minas. Falou-se em “civilização mineira”, em “mineiridade”, que só hoje se rediscute e se busca restringir, limitar. Minas teria uma “visão de mundo” peculiar, da qual o barroco mineiro seria a maior expressão. Havia, em Minas, nos anos 20, um clima de renovação política e intelectual.

Esses três fatores somados teriam levado à realização do sonho dos Inconfidentes: à fundação da UMG. A elite política andava de mãos dadas com a elite intelectual. Dessa convergência nasceu a UMG.

1927: criação definitiva. Os modernistas não foram os mentores e nem os fundadores da UMG. Mas, situados em postos estratégicos no campo intelectual, eles deram decidido apoio à iniciativa de criá-la e implementá-la. Pedro Nava, por exemplo, foi um modernista que a defendeu e consagrou. O jornal “Diário de Minas”, que era órgão oficial do PRM e onde trabalhavam os jovens intelectuais, como Carlos Drumond de Andrade, revela a união das elites em torno da fundação da UMG. Os modernistas, enfim, não a fundaram, mas lutaram também por ela. Eles estarão mais ligados à outra iniciativa cultural importante dos anos 20: a preservação do patrimônio artístico e cultural de Minas, no que tiveram o apoio dos modernistas paulistas.

A fundação da UMG fazia parte do projeto político de Antônio Carlos. Ele tinha um verdadeiro programa de reforma da educação. Aliás, nos anos 20, o tema educacional tornou-se plataforma política. Várias propostas de reforma da educação foram apresentadas. Fernando Azevedo se destacou nessa discussão em São Paulo; em Minas, destacaram-se Francisco Campos e Francisco Mendes Pimentel. Foi esse último que se ocupou do problema da universidade, dos textos legais e do projeto. A UMG teria como objetivo: estimular a cultura científica, a produção nacional de conhecimento científico, promover o progresso e o bem-estar da população, a formação profissional, a fidelidade à cultura mineira e nacional, a responsabilidade e compromisso social. A instituição deveria servir à região mineira e ao Brasil. Ela teria autonomia didática e administrativa. A Universidade não seria um agregado de escolas, mas uma “confederação”. Ela deveria integrar as quatro escolas que a constituíam, bem como os professores e alunos. O espírito da Universidade seria o da convergência da “razão pragmática” e da “razão humanística” em uma “razão científica”, que não separa, mas reúne as duas primeiras. Alguns dos seus fundadores eram ao mesmo tempo técnicos e humanistas: juristas e naturalistas, físicos e filósofos, engenheiros e historiadores, farmacólogos e latinistas… Propõe-se um espírito comum, de solidariedade entre as suas quatro unidades e os corpos docente e discente.

Portanto, a UMG nasceu como resultado da convergência de conjunturas favoráveis: o projeto de um homem político forte, a cidade nova e centralizadora da vida político-administrativa e cultural, o anseio antigo das elites políticas e intelectuais e de outras camadas da população. A sua criação obteve o apoio entusiástico de toda a população. A imprensa, os estudantes, os políticos, os profissionais liberais, todos aplaudiram a iniciativa do Presidente do Estado. Fundada, a luta passou a ser pela construção de uma “cidade universitária”, uma sede espacial bem delimitada, um campus. A crise financeira do Estado adiou o projeto.

O Presidente escolheu para ser o seu primeiro Reitor um homem de sua confiança e que lutou pela UMG: Francisco Mendes Pimentel (18691957). Ele foi aluno, professor e diretor da Escola de Direito. Pimentel tomou a sua indicação como uma “missão”. Mas, durou pouco! O Professor Dias descreve de modo dramático o conflito que opôs o Reitor, o Conselho Universitário e os estudantes em torno da questão da “aprovação anual sem exames finais!”. Pimentel sofreu duramente a violência estudantil. Houve gritos, ameaças, pedradas, ovos atirados, tiros, mortos, feridos, humilhados, polícia e processos na justiça. Pimentel abandonou a universidade, decepcionado e ressentido. O autor sugere que esta fase seria a da criação definitiva. Mas, depois desse episódio, a UMG esteve ameaçada: ela pareceu passar de um “sonho dourado” a um “pesadelo infernal”. O Presidente do Estado pensou em desistir da idéia, pois estava frustrado. Mas, não o fez. A vida universitária ficou carregada de desconfiança e ressentimentos. No entanto, o tempo passou, a ferida sarou. E nos anos 40/50, a universidade se consolidou: incorporou a FAFICH e a Escola de Arquitetura e Belas Artes. Em 1949, ela foi federalizada.

Hoje, a UFMG é um dos centros de pesquisa e de formação de quadros e cidadãos, um centro de produção de conhecimentos científicos, sociais e filósoficos e de educação dos mais férteis do Brasil e em padrões excelentes. A universidade sofreu com as reviravoltas políticas: 30,37,64. Ela teve de lutar por sua existência e pela sua autonomia contra as ditaduras. Ela sempre foi uma referência democrática, um centro de resistência aos ventos mais turbulentos da história brasileira. Os fundadores e dirigentes da UMG e da UFMG lutaram com dedicação e competência pela sua fundação e continuidade. Se eles se inspiraram nos antepassados mineiros do século XVIII, eles nos inspiram, hoje, na defesa da Universidade contra aqueles que, muitos saídos dela, querem passar para a história como seus “coveiros”.

O livro do Professor Dias é encerrado com alguns interessantes apêndices: belas fotos dos primeiros prédios da UMG e de Belo Horizonte dos anos 20/40; as biografias dos cientistas mineiros dos séculos XVIII e XIX, feitas por Aurélio Pires; o discurso de Pedro Nava louvando a criação da UMG; o documento da fundação com as assinaturas dos fundadores; um documento em que a nova universidade responde às questões da ABE sobre a sua idéia de universidade; documentos dramáticos que revelam a luta dos Reitores da UMG e UFMG pela sua autonomia, destacando-se os de Aluísio Pimenta em 64.

Concluída a leitura do livro do Professor Dias, tem-se a certeza de que a pesquisa promovida pelo departamento de História para comemorar os 70 anos da UFMG, que está planejada para 5 volumes, começou muito bem em seu primeiro volume. Os próximos 4 volumes terão no livro do Professor Dias um bom preâmbulo, uma boa referência. O projeto UFMG: Memória & História foi bem iniciado; agora, aguardemos os próximos resultados desse importante trabalho.

José Carlos Reis – Departamento de História/UFMG.

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Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem – BORGUES (VH)

BORGES, Márcio. Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Geração Editorial. Resenha de: NEVES, Lucilia de Almeida.   Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 491-494, nov., 1997.

“Escrevo para cumprir um impulso, esvaziar meus escaninhos e contar para mim mesmo com os olhos do tempo e da distância uma história que de qualquer forma já está contada nas músicas que compus”. Estas são as palavras com que Márcio Borges, primeiro parceiro de Milton Nascimento, crava nas páginas iniciais de seu recente livro o mais profundo e humano sentido de permanência das lembranças e dos sonhos.

Escrevendo um texto que pode ser classificado tanto como romance de uma geração, ou como livro de memórias o autor, através de um estilo saboroso, arrebatador, simples mas verticalizado, produz literatura histórica de primeira qualidade. Os casos contados por Borges apresentam-se como visita às reminiscências de um tempo histórico privilegiado no qual os jovens cronstruíam utopias. Trata-se de um mergulho no tempo que se foi. Mergulho pautado pelas emoções e vivências do presente. De um presente que se consubistancia como ponto de partida para a viagem do recordar.

A memória é caracterizada por potencialidades múltiplas, dentre as quais se destacam as seguintes: possiblidade de reascender utopias de um tempo anterior, reconstrução da atmosfera de outra época, revivicação de emoções políticas, individuais e sociais. Borges, ao rejuvenescer os sonhos passados, realiza na escrita de suas memórias as potencilidades inerentes ao ato de rememorar. O faz com sabor especial, com uma força particular, que transforma a memória em História.

As memórias individuais de Márcio Borges, traduzidas em palavras que conformam um texto de saborosa viagem ao recente passado mineiro e brasileiro, transmudam-se em elementos que contribuem para uma melhor compreensão da história contemporânea de Belo Horizonte e do Brasil. Isso porque, suas lembranças particulares, são, simultaneamente, revelações de memórias coletivas. Dessa forma, o relato individual do autor tem como ponto de partida diferentes quadros sociais, ou seja, a vida cotidiana da comunidade belohorizontina nos anos sessenta e a inserção nesse cotidiano de jovens de classe média, tomados por um forte impulso gregário e por um marcante desejo de “mudar o mundo”. Portanto, como afirma Fernando Brant em sua apresentação do livro, o autor:

“Com olhos de cinema, literatura e música viu e vê a vida. Máquina humana de decifrar o mundo com palavras, sons e imagens, ela aparece agora contando cacos de um tempo querido, os anos sessenta e setenta”.

O livro, cujo pano de fundo temporal é a efervescente década de sessenta e os silenciosos primeiros anos da década de setenta retrata, com emoção de artista, o cenário de um tempo histórico privilegiado no qual o mundo foi revirado pelo avesso. Nas páginas do livro, como em um documentário cinematográfico podem ser visualizados, através do texto e de fotografias, a derrubada de João Goulart, o movimento da juventude em 1968, o surgimento e consolidação do grupo de jovens músicos mineiros, que formaram o Clube da Esquina, o recrudescimento do autoritarismo no início dos anos setenta e o nascimento da década de oitenta, arejada pelas primeiras e sequentes brisas da abertura política.

O principal sujeito da história contada por Borges é um grupo de jovens mineiros que, naqueles anos, movido por uma forte esperança trasnsformadora, contribuiu para o plantio de sementes de mudanças no Brasil e em todo ocidente. Jovens integrantes de uma geração marcada pela vontade de visualizar alternativas para o futuro do país e do planeta terra, e de buscar a construção dessas alternativas no presente. Dessa forma, o texto apresenta-se como especial observatório de uma geração que não teve medo de viver e de romper barreiras. De uma juventude, que fez da arte porta voz de sonhos e que revelou através da música o retrato de um Brasil, àquela época amordaçado, mas não rendido às mãos fortes do autoritarismo político.

Os personagens que viveram a aventura daquele tempo de acreditar em sonhos eram rapazes da então pacata Belo Horizonte. Uma cidade de avenidas largas e arborizadas que conformaram o cenário no qual a vida se descortinava plena para um grupo de adolescentes que residia em sua parte central, no edifício Levy. Um prédio plantado em plena Avenida Amazonas, nas proximidades da Praça Sete, coração da capital mineira. Adolescentes que cresceram presenciando as transformações que levaram o Brasil democrático do início dos anos sessenta, na época do populismo e do governo Jango, a se transformar em um país dominado pelo arbítrio do regime militar.

Estudantes que desabrocharam para a vida num tempo de coerção e censura. Jovens em cujas veias corria uma musicalidade de forte inspiração poética, que deu origem, em Minas Gerais, a um espontâneo e original movimento cultural que ficou conhecido como O Clube da Esquina.

Ao relembrar as origens desse movimento, Márcio Borges traz à cena uma juventude caracterizada por um forte espírito solidário e por um criativo desejo de conhecimento revelados em conversas infindáveis sobre arte, música, cinema e política nos colégios, universidades, bares, bairros e esquinas da cidade de Belo Horizonte.

Uma Belo Horizonte que ainda não tinha ares de metrópole, mas que era iluminda por uma efervescente vida cultural, que desabrochava nos teatros e cineclubes e se ramificava pelos bairros da cidade. Foi exatamente em um bairro da capital mineira, Santa Tereza, para o qual se mudara a família Borges, que surgiu, na década de setenta, o Clube da Esquina. Borges assim descreve o então corriiqueiro encontro de jovens que vieram a animar um dos mais ricos movimentos musicais do Brasil contemporâneo:

“… o nome Clube não designava senão uma pobre esquina, um pedaço de calçada e um simples meio fio, onde os adolescentes da rua (e só raramente os rapazes de minha idade) costumavam vadiar, tocar violão, ficar de bobeira, no cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis. O Club da esquina.”

O texto além de narrar aspectos do cotidiano, como o acima descrito, é marcado por uma nostalgia que, paradoxalmente, ao relembrar o passado, descortina o futuro. Futuro este que se revelou diferente para cada um dos rapazes que integraram aquele movimento musical. Mas um futuro no qual, pelos nós de um passado comum, todos se mantiveram definitivamente atados uns aos outros.

As lembranças do que passou, marcadas por indiscritível saudade e por um sentimento unívoco de que cada tempo é único e significativo em sua peculiariedade, são assim definidas pelo próprio autor:

“ Ressurjo agora para contar aquelas cenas longíquas que hoje brilham em meus olhos através das lentes que naturalmente adquirimos com a idade madura e a vista cansada: as da compaixão e da saudade. Portanto, e finalmente, este relato é de minha parte só uma invocação, uma celebração, uma ode ao tempo que passou voando e apenas ocorreu uma vez na vida de cada um de nós”.

Na ode ao tempo tecida por Borges estão presentes os Beatles com suas músicas que revolucionaram os hábitos da juventude e a musicalidade do mundo contemporâneo. Nela está descrito, com especial sensibilidade, o costume então corriqueiro de ir ao cinema e discutir filmes à exaustão. Além disso, são revelados, pelas palavras que compõem a trama do texto, a força das experiências coletivas, as resistências pacifistas da juventude, os movimentos de cultura alternativa e a inacreditável magia dos tempos em que no Brasil ainda havia ensino público secundário de qualidade, representado, no caso, pelo Colégio Estadual Central de Belo Horizonte.

Nas páginas do livro, por outro lado, estão registrados os anos de autoritarismo político e acontecimentos peculiares àquela época, como o da morte de jovens que cultivavam o sonho da igualdade. Estão traduzidos também: o dilema da juventude que buscava resistir à ausência de liberdade, a ânsia de transformação que contaminava estudantes, artistas e outros expressivos segmentos da sociedade brasileira de então e, principalmente, o passar do tempo que transformou todas essas experiências e projetos coletivos em História.

Márcio Borges, amigo e cúmplice de Milton Nascimento, ao relembrar a trajetória do compositor e do grupo de artistas que em torno dele se agregava, contempla o leitor com descrições minuciosas sobre a inspiração criativa e vital que gerou em Belo Horizonte e em Minas Gerais uma musicalidade nova, diferente de tudo o que se fazia na música popular brasileira da época. Música e versos inesquecíveis, marcados por uma profundidade impar, por uma densidade que entranha.

Também registra, sem qualquer tom de mágoa, a já tradicional diáspora de artistas e intelectuais mineiros que, como se cumprindo o ritual de uma sina secular, precisam desapegar-se de sua terra e correr outros “Brasis” para alcançarem projeção. Contudo, ao falar do “desterro” dos mineiros, registra a persistência de alguns — como ele próprio — que resistiram ao impulso de partir e mantiveram-se presos ao chão de ferro das Minas Gerais, tendo mesmo assim alçado vôos sobre outras plagas.

De Três Pontas para Belo Horizonte; de Minas para as gravadoras do Rio de Janeiro e São Paulo; do Brasil para o mundo, as histórias do Clube da Esquina contam sobre um país pluralista, múltiplo, sofrido, marcado pelas desigualdades e pela vontade de sua juventude de construir um novo futuro. Contam também sobre músicas de forte religiosidade, de montanhas, de trens, de aldeias, de fogo, de amigos, de sete chaves, de saudade, de artistas, de paisagens, do velho Curral D’el Rei, da América do Sul. Contam, principalmente, sobre a travessia de Milton Nascimento, dos irmãos Borges, de Tavinho Moura, de Toninho Horta, de Ronaldo Bastos, de Fernando Brant e de toda uma geração, que era jovem nos anos sessenta, para uma fase da vida na qual os sonhos não envelheceram… transformaram-se.

Lucilia de Almeida Neves – Professora do Curso de História da PUC Minas e do Mestrado em História da UFMG.

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Population Politics in Twentieth-Century Europe. Fascist Dictatorships and Liberal Democracies – QUINE (VH)

QUINE, Maria Sophia. Population Politics in Twentieth-Century Europe. Fascist Dictatorships and Liberal Democracies. London:  Routledge, 1996.  Resenha de: FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.17, p. 282-287, mar., 1997.

É fato reconhecido que os historiadores têm hesitado em penetrar em uma seara praticamente monopolizada por sociólogos, cientistas políticos e economistas, qual seja, a área de estudos que constitui uma verdadeira indústria de pesquisa sobre o wefare state. Sob a égide dos auto-denominados ” hard scientists”, a teorização sobre a origem e expansão do Estado de Bem-Estar Social, partindo da tese conhecida como “lógica da industrialização”, passando pela argumentação marxista e pela “lógica dos recursos de poder” (que destaca o papel dos movimentos sindicais e dos partidos trabalhistas), desembocou na hoje prevalecente elaboração “neo-institucionalista”. Essa teorização, tantalizada pela regularidade, tem relegado a um segundo plano elementos que constituem a verdadeira essência do ofício do historiador: a temporal idade e as particularidades. As explicações genéricas desenvolvidas para elucidar a conformação do wefare state têm tomado como variáveis o processo de industrialização e modernização, a democracia, o capitalismo, a competição partidária e os grupos de interesse. Sua aversão à contextualização, informada pela busca de fatores generalizantes e universalmente aplicáveis, mostra-se flexível apenas no consenso sobre a utilidade de se estabelecerem tipologias dos Estados de Bem-Estar Social.

Não nos cabe aqui listar os sucessos recentes daqueles historiadores que “ousaram” cruzar as fronteiras. Talvez possamos apenas, de passagem, endossar a sugestão de Peter Baldwin, para quem o “temor” da historiografia em fazer sua a temática talvez se deva, em parte, ao “inevitável atraso com o qual os historiadores respondem aos tópicos” (“The Welfare State for Historians. A Review Article”. Compara tive Study of Society and History, Vo1. 34, No 4, 1992, pp.695-707).

Contudo, mesmo que essa não seja uma ambição explícita do trabalho de Maria Sophia Ouine, que leciona História Européia Moderna na Universidade de Londres, fato é que seu Population Politics in TwentiethCentury Europe cumpre bem o papel de alertar para o fato de que a historiografia tem muito a contribuir para a compreensão das origens e do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social. Na verdade, a contribuição de Ouine nesse sentido é apenas implícita, uma vez que a autora, através de uma análise apurada das políticas populacionais implementadas na Itália, na França e na Alemanha na primeira metade deste século, procura apontar as distintas soluções nacionais a um problema comum aos países mais industrializados da Europa Ocidental: a acentuada queda na taxa de natalidade.

É possível dizer que, em todos os países envolvidos, o fenômeno desencadeou acalorados debates que, em graus diferentes, se nortearam por questões da seguinte ordem: considerações militares e estratégicas, o recorrente temor quanto à “extinção da raça” e ao declínio da nação, ataques ao neo-malthusianismo, o papel dos princípios religiosos e da eugenia na reversão do processo de declínio das taxas de natalidade, a central idade da família enquanto instituição social, a revalorização da maternidade e a expansão dos mecanismos de seguridade social visando proteger crianças e mães e redistribuir os custos envolvidos na manutenção de uma família. Contudo, a perspectiva historiográfica deixa evidente o fato de as políticas populacionais discutidas e implementadas terem englobado mais que políticas familiares de incentivo à natalidade ou políticas sociais que lançariam as bases da cidadania social marshalliana. O foco do trabalho de Ouine é exatamente o papel crucial das diversas políticas populacionais nos projetos de “reconstrução nacional” da Itália de Mussolini, da Terceira República francesa e do Terceiro Reich.

Em uma concisa introdução, precedendo os estudos de caso, a autora discute o impacto da pessimista teorização de Malthus acerca do inevitável desequilíbrio entre a produção de alimentos e o crescimento populacional, a influência do neo-malthusianismo e o pânico alarmista, já nas últimas décadas do secúlo XIX, quanto ao espectro do “despovoamento” nacional, uma vez que o declínio acentuado das taxas de natalidade, a partir da década de 1870, passou a eclipsar qualquer temor quanto a uma eventual super-população.

Uma vez que a ênfase no pró-natalismo da Terceira República tem sido o objeto de inumeráveis estudos, a grande originalidade do trabalho em questão talvez resida na comparação das políticas de incentivo à natalidade implementadas no Terceiro Reich com aquelas advogadas pelo regime de Mussolini. É certo que a historiografia ainda não chegou a um consenso quanto à natureza do processo que culminou na Endíosung, a “Solução Final” de extermínio em massa dos judeus e demais “indejesados”. Sem se furtar ao polêmico debate, Maria Ouine encontrou uma solução engenhosa, que não pretende endossar de maneira conclusiva qualquer das posições em contenda. Alertando quanto às armadilhas do “revisionismo” em curso, a autora emprega, de maneira quase intuitiva, um instrumento heurístico eficaz, qual seja, a distinção entre propostas e medidas populacionais “positivas” ou “negativas”.

Apesar da natural repulsa quanto às consequências nefastas da política racial do Terceiro Reich, classificada como “negativa”, a distinção proposta não se prende a julgamentos de valor, atendo-se a aspectos essencialmente quantitativos. “Positivas” são as medidas de incentivo à natalidade, tais como salários família, exames pré-natal gratuitos, acompanhamento médico aos recém-nascidos, creches, prêmios honoríficos ou em dinheiro para famílias numerosas e qualquer outro auxílio financeiro às famílias. “Negativas” são as medidas que procuram restringir a fertilidade, como a divulgação de métodos contraceptivos, a liberalização do aborto e, também, medidas como a esterilização compulsória e outras dirigidas a grupos sociais específicos.

Na Itália de Mussolini, as políticas populacionais foram ativadas muito mais devido às consequências da Primeira Guerra Mundial do que por qualquer persistente e alarmante queda nas taxas de natalidade. A hostilidade gerada pelo neo-malthusianismo na Itália, com sua propaganda dos meios contraceptivos, deveu-se, segundo Ouine, não à força crescente do movimento, mas sim à aguda ambivalência de se discutir abertamente o significado social da sexualidade e da reprodução em um país onde o catolicismo sempre teve raízes tão profundas. As idéias que vertebraram a política populacional de Mussolini foram derivadas de uma peculiar eugenia que, em vez de preconizar a “procriação seletiva”, desejava encorajar a classe trabalhadora a procriar ainda mais. O movimento eugênico italiano era nitidamente pró-natalista e favorável à estruturação de um aparato de seguridade social capaz de amparar mães e crianças. A frustração dos anseios imperialistas italianos responderia por boa parte do pró-natalismo do movimento eugênico no país, bem como pelas políticas populacionais do fascismo.

A faceta assistencialista das políticas populacionais do Duce baseava-se na premissa, defendida pela Sociedade Eugênica Italiana, fundada em 1912, segundo a qual devem ser dadas aos cidadãos recompensas materiais na forma de benefícios sociais e isenções fiscais que possam induzi-Ios a cumprir sua “obrigação cívica” de procriar prolificamente. Como, segundo o suposto, povo fértil é povo robusto, as políticas populacionais do fascismo passaram a enfatizar tanto a “quantidade” como a “qualidade”.

Autores pró-natalistas italianos, além de enfatizar questões militares e estratégicas em sua defesa da necessidade de se elevarem as taxas de natalidade, chegaram mesmo a reverter o argumento de Malthus e destacar que a auto-suficiência na produção de alimentos e a aceleração do processo de industrialização só seriam possíveis com o aumento da população. O investimento em “capital humano” compensaria o país por sua carência de recursos. O título de um ensaio de Mussolini de 1928 sumariza bem o raciocínio: “Números como Força”.

Buscando capitalizar a generalizada frustração nacionalista dos italianos, o pró-natalismo, que cruzava fronteiras partidárias e ideológicas, tornou-se política oficial do regime fascista, servindo de mediador das relações entre o Estado e a sociedade. A “ressureição nacional” preconizada pelo fascismo, galvanizadora da legitimidade do regime, teria como pilar básico uma política populacional nacionalista, ferramenta essencial do planejamento social e da transformação da Itália em um país produtivo, orgulhoso e prolífico, verdadeiro herdeiro da Civilização Romana. A campanha demográfica fascista legitimava a intervenção estatal na esfera privada, transformando a família em instrumento político. O fato de grande parte dos mecanismos de seguridade social preconizados pelo regime jamais ter sido implementada apenas reforça a noção da centralidade da propaganda para a legitimação do “Novo Império Fascista”.

O incremento populacional há muito é reconhecido com uma das principais metas do nazismo. O crescimento demográfico almejado, entretanto, não era irrestrito, mas racialmente qualificado. Mesmo antes dos campos de extermínio, a política populacional do Terceiro Reich poderia ser classificada tanto como “pró-natalista” quanto como “antinatalista”. Maternidade e esterilização compulsórias foram a tônica da campanha de procriação seletiva implementada. O programa nazista de esterilização seria a primeira etapa de um processo de progressiva radicalização que passaria pela campanha da “eutanásia” para culminar no genocídio. A campanha demográfica de Mussolini, quando comparada ao programa de “higiene racial” do nazismo, parece, segundo Ouine, demasiadamente obcecada com os números, com a quantidade. Se a “batalha pela natalidade” advogada pelo Ouce enfatizava mecanismos de natureza “positiva”, parece evidente o destaque dado pelo Terceiro Reich a medidas “negativas”.

Se a brutalidade absoluta do Holocausto levou analistas a buscar razões socio-culturais para tamanho radicalismo, um dos pontos de destaque do livro de Ouine é certamente sua ênfase na quase universalidade dos movimentos eugênicos na Europa, isto é, no fato de, em muitos aspectos, compreensivelmente negligenciados pelos estudiosos ante a malignidade da Endlöosung, o Terceiro Reich não ter sido assim tão excepcional. A “Solução Final”, assim, é explicada tanto pela ideologia hitlerista como pelo monopólio da “biologia social” e da “higiene racial” sobre o aparato público e privado do wefare state alemão. “Essa influência institucional constituiu uma base firme a partir da qual foi promovida uma aceitação gradual de um amplo programa de saúde pública que tinha como objetivo o ‘melhoramento’ racial” (p.103).

Concluindo o livro, Ouine deixa claro o seu ponto: os estudiosos ainda são relutantes em desmitificar as agendas sociais traçadas pelos regimes fascistas comparando-as àquelas estabelecidas por regimes políticos “convencionais”. Na verdade, a noção generalizada de que o Estado deveria controlar a reprodução é um dos pilares básicos das políticas populacionais tanto nas ditaduras como nas democracias (p.132). A peculiar política populacional da Terceira República francesa, assim, com seu notório conservadorismo, seu pró-natalismo clerical, sua ênfase na família como clientela privilegiada do Estado de Bem-Estar Social em formação e no papel dos pais como “salvadores da nação”, compartilha muitas de suas características com os outros regimes analisados pela autora. De maneira similar, as comparações estabelecidas demonstram a falácia recorrente de que havia algo particularmente “fascista” na adoção de políticas populacionais agressivas e autoritárias.

Apenas nas últimas páginas, Ouine reconhece a relevância de sua abordagem para o debate sobre a origem e natureza do Estado de BemEstar Social. As políticas populacionais, centrais no weffare statemoderno, foram implementadas na esteira da ansiedade generalizada acerca de probemas demográficos, que deram o estímulo ideológico e emocional a essas políticas, tanto nas democracias como nas ditaduras.

Se, por um lado, a seleção das experiências italiana, alemã e francesa permite que a autora estabeleça distinções importantes entre fascismo e nazismo, contrapondo-as às políticas populacionais francesas, com resultados desmitificadores, sua contribuição ao debate acerca das origens e expansão do Estado de Bem-Estar Social poderia ser maximizada caso se tivesse optado por uma seleção distinta. Os sistemas de seguridade social da Alemanha, França e Itália têm sido qualificados como “continentais”, “corporativistas” ou “conservadores”, dependendo da tipologia. Alguns analistas chegam mesmo a distinguir uma variante “latina”, englobando França e Itália, entre outros. Caso se resolvesse tomar de empréstimo a renomada tipologia de Esping-Andersen e se analisassem, por exemplo, as políticas populacionais da França (welfare state conservador), da Inglaterra (liberal) e da Suécia (social-democrata), um estudo comparativo dessa natureza poderia marcar definitivamente o terreno para que a historiografia fizesse também sua uma seara da qual ela se alheou por tantas décadas.

Para encerrar, o trabalho de Quine deixa aos historiadores brasileiros a impressão de que as relações do Estado Novo com a eugenia e a “política da reprodução” ainda não foram suficientemente analisadas. Aos estudiosos das políticas públicas, fica a sugestão de que o fator “gênero” venha a assumir papel de maior destaque.

Carlos Aurélio Pimenta de Faria – Doutorando em Ciência Política no IUPERJ. Professor da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro – BH/MG.

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Abolitionism in the United States and Brazil. A Comparative Perspectiva – AZEVEDO (VH)

AZEVEDO, Célia Marinho. Abolitionism in the United States and Brazil. A Comparative Perspectiva. Nova Iorque e Londres: Garland Publishing, 1995. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.17, p. 279-282, mar., 1997.

A tese de doutoramento da Professora Célia Marinho Azevedo, apresentada à Columbia Universlty, nos Estados Unidos, acaba de ser publicada na coleção de “Estudos sobre Cultura e História Afro-Americana”, de Nova Iorque. Raras são as obras de brasileiros publicadas no exterior e, ainda mais excepcionais aquelas que não se refiram apenas ao Brasil, como é o caso deste estudo comparativo do abolicionismo nos dois países. Na verdade, a abolição tem sido considerada muito mais do ponto de vista econômico e político do que de uma perspectiva social e cultural e este trabalho, portanto, cobre também uma lacuna na historiografia sobre o tema 1_ O livro começa com um pequeno prefácio, seguido de uma introdução bibliográfica (lx-xxiv) e desenvolve-se por quatro capítulos principais, sobre “O abolicionismo nos dois países: uma visão geral” (págs. 3-20), “Visões do senhor de escravos” (págs_ 21-48), “Visões do escravo” (págs. 49-82), “Reflexões sobre o racismo e o destino no ex-escravo” (págs. 83-120), concluindo com um “Epílogo” (págs. 121 -126). Em cada tópico, as experiências do abolicionismo brasileiro e norte-americanos são analisadas, comparativamente e passo a passo. A erudição da autora pode ser avaliada pelas 36 páginas de notas e as 444 obras citadas, entre fontes primárias e secundárias. Sua leitura, contudo, nem por isso é difícil, mas, ao contrário, a suavidade do texto apresenta-se. ainda. tornada mais agradável pela beleza do estilo claro e pouco afeito ao jargão.

A bela comparação entre o abolicionista William Lloyd Garrison, nascido no norte dos Estado Unido e alheio, d todo, à prática da escravidão e Joaquim Nabuco, antigo senhor tornado opositor do sistema, permite observar a precisão estética da autora: “falando com este senhor, Garrison sentiu-se, provavelmente, um verdadeiro outsider, incapaz de compreender a consciência e o mundo do dono de escravos. Pelo contrário, para o futuro líder abolicionista brasileiro, Joaquim Nabuco, a escravidão tinha sempre sido uma realidade tão natural como o ar que respirava. A escravidão não era uma instituição esquisita que, às vezes, ouve-se falar ou encontra-se, face a face, apenas em circunstancias excepcionais. A escravidão era o seu mundo e moldava sua consciência tão profundamente quanto o fazia para o dono de escravos que Garrison havia encontrado na prisão de Baltimore” (págs. 16-17). Azevedo utiliza-se do conceito de “imaginário” para descrever a criação perene de figuras, formas e imagens que permite aos agentes históricos, neste caso abolicionistas. produzir sua ”realidade” e sua “racionalidade”. O livro pode ser lido como uma oposição constante entre duas culturas irredutíveis, cujas escravidões e abolicionismos guardam semelhanças externas, em parte derivadas da sua inserção em um contexto internacional comum, e profundas diferenças ideológicas.

Os diferentes caminhos dos dois países na sua emancipação política explicam, em grande parte, os divergentes abolicionismos. A Revolução Americana e a vitória do republicanismo construíram idéias sobre a identidade nacional. a igualdade política e social e a cidadania completamente diversas do compromisso pacífico entre a Coroa portuguesa e a nova nação brasileira. Seguindo as idéias desenvolvidas por David Brion Davis, sobre a liberdade interior e a virtude, Azevedo considera que o abolicionismo norte-americano foi o resultado de um pensamento inovador, derivado de uma nova ética de benevolência, cujo ideal de responsabilidade individual substituiu os antigos padrões. em de integração, da caridade da responsabilidade social de cunho medieval. Esta filosofia, surgida na Grã-Bretanha, no século XVII, confiava na capacidade humana de aprimoramento moral e opunha-se tanto à predestinação calvinista como ao apego ritualístico do catolicismo tradicional. A este ethos americano, opõe-se o caráter patriarcal da sociedade brasileira. Baseada na hierarquia e na proteção derivada das relações de compadrio, a sociedade católica brasileira, fundada no respeito à ordem vigente, que incluía a escravidão, só podia conceber o abolicionismo como … movimento dentro da Iei ! “Os abolicionistas brasileiros permaneceram, normalmente, determinados a combinar a abolição com o respeito das leis, o que, em um país escravista. eqüivalia a respeitar os interesses dos donos d escravos” (pág. 45). A guerra civil americana e seus mortos representam uma quebra com o antigo regime que, no Brasil, nunca houve. Como lembra Célia Marinho Azevedo, a passagem pacifica à emancipação, no Brasil, foi acompanhada pela reforma eleitoral de 1879 que reduziu os votantes de 1.114.066, em 1874, para apenas 145.296, em 1879 2.

O abolicionismo norte-americano fundava-se na igualdade entre os homens. entre os quais estavam os negros, o que opunha a escravidão, a um só tempo, ao cristianismo e à república. Os senhores, pecadores e infratores à constituição ipso facto, eram não apenas combatidos como a própria escravidão nos Estados Unidos era considerada a mais detestável, a menos mitigada. É neste contexto, argumenta a autora, que, naquele país, cria-se a noção de uma escravidão mais humana, porque fundada no Direto Romano, imperante alhures. O Brasil passa a ser, na verdade, o paradigma dos benefícios de uma escravidão regrada: “No Brasil. no momento (i.e. 1833) a nação com maior população escrava, é ainda melhor. Ali o senhor é obrigado, sob ameaça de pena severa, a dar a seu escravo uma licença escrita para procurar outro dono sempre que o escravo assim o pedir; encontrada a pessoa interessada na compra, o magistrado fixa o preço” (David Child}. Com o passar do tempo, o racismo norte-americano. denunciado por diversos abolicionistas, foi contrastado ao paraíso racial brasileiro, cuja fama internacional já era reconhecida em meados do século XIX. Como lembra a autora, é interessante notar que muitas dessas idéias abolicionistas sobre o inferno racial norte-americano e o paraíso racial brasileiro foram incorporadas pelos grandes estudiosos do nosso século, Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum3.

Célia Marinho Azevedo toca, en passant, em um ponto que talvez mereça alguma reflexão: André Rebouças, de origem africana, teve carreira notável graças ao esforço, trabalho, disciplina e estudo. As disciplinas estudadas incluíam latim, francês, inglês e a tradução dos filósofos gregos e romanos. Ora, também nos Estados Unidos, escravos. fugitivos e forros privilegiavam. da mesma forma. o estudo do latim e do grego. como demonstrou Shelley P. Haley4 . No contexto norte-americano, o domínio dos clássicos era sinal de igualdade, quanto ao Brasil? Se aceitarmos a interpretação proposta pela autora, parece razoável supor que, ao contrário, o conhecimento erudito afastasse o indivíduo de ascendência africana dos escravos e libertos pobres e o identificasse como integrante da elite branca. Nesta direção caminha constatação de Célia Marinho Azevedo a respeito da imagem positiva da África nos círculos abolicionistas americanos, por oposição à terra de ignorantes na concepção brasileira predominante. Cleópatra era negra nos Estados Unidos. enquanto Rebouças era branco, no Brasil.

Espera-se que a obra seja, o mais breve possível, traduzida e publicada entre nós. Desta forma, também o público brasileiro mais amplo, e não apenas aquele mais diretamente dedicado ao estudo de temas afro-americanos, poderá ter acesso uma obra cuja repercussão acadêmica já começou nos principais centros internacionais de pesquisa.

Nota

1 Lacuna bem lembrada por Hebe Maria Matos de Castro em “Estudos Afro-Asiáticos”, número 28, 1996, pág 106.

2 De maneira independente, era o que também ressaltava Magnus Mômer em “Ibero-Americana. Nordic Journal of Latln American Sludies”, número 22, 1992, pág 20.

3 Esta oposição entre a tradição latina e anglo- saxônica foi ressaltada em diferentes historiografia latino-americanas . o caso cubano estudado por AIine Helg em “Politlcas sociais en Cuba después de la lndependencla: represión de la cultura negra y mito de la lgualdad racial”, America Negra, Bogotá, 11, 1996, páginas 63-79, apresenta paralelos interessante a respeito

4 Em ” Feminlest Theory and lhe Classlca”, organizado por N.S. Rablnowltz e A Richlin, 1993, págs 23-43.

Pedro Paulo A. Funari – Departamento de História, IFCH, IJNICAMP.

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A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval – FRANCO JUNIOR (VH)

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: EDUSP, 1996. Resenha de: RIBEIRO, Daniel Valle. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.16, p. 174-177, set., 1996.

A Editora da USP acaba de lançar estudo acerca da mitologia medieval. Trata-se da coletânea de trabalhos antigos e novos ensaios com que Hilário Franco Júnior se apresentou ao concurso para a livre-docência na Universidade de São Paulo. Autor de inúmeros estudos na área de História Medieval, Franco Júnior busca neste livro captar o inconsciente da psicologia coletiva através da análise do imaginário da sociedade. Para tanto, selecionou com sensibilidade o essencial e colheu com argúcia o importante no social.

O emprego da palavra mitologia no contexto da cultura medieval pode parecer inadequado, já que a tradição cristã da época sempre opôs aos mitos a verdade da Revelação, como nota com pertinência Jean-Claude Schmit no prefácio. Assim, mito e cristianismo aparentam incompatibilidade insanável. Franco Júnior, entretanto, sobrepõe-se às dificuldades e desempenha com brilho a tarefa a que se propôs. História Medieval no Brasil é uma fatalidade a que estão condenados heróis ensandecidos. Ora, em país pouco voltado para o estudo do medievo, de historiografia quantitativamente pobre na área, é meritório um trabalho de alto nível como o de Franco Júnior, que alarga o horizonte de pesquisa quase sempre voltado para temas nacionais.

O livro reúne doze ensaios bem articulados, distribuídos em capítulos com subdivisões, tendo o mito como tema central. Há, pois, sólida unidade temática. Alguns deles resultam de longa pesquisa em arquivos da França, e de trabalho ao lado de Jacques Le Goft e Jean-Claude Schmitt, da Écola des Hautes Études en Sciences Socialies. Franco Júnior lança-se a território novo. Tendo inventariado, em 1991, a produção historiográfica dos medievalistas franceses nos últimos vinte anos, Jacques Berlioz, Le Goft e Anita Guerreau-Jalabert concluíram que o campo ainda está por explorar. Com efeito, estudar o universo mitológico da Idade Média pode parecer desconcertante, pois a mitologia era vista (e ainda parece estranha aos medievalistas) como uma expressão cultural da Antigüidade e das culturas primitivas. As referências bibliográficas e o competente uso das fontes comprovam a autoridade do professor da USP. Franco Júnior deu ao cristianismo tratamento histórico, ou seja, procedeu à análise crítica e interpretação que se aplicam às outras religiões. Para ele, estudar o universo mitológico da Idade Média “é um caminho fundamental para se entender em profundidade a sociedade medieval e, portanto, as origens da civilização ocidental” (p. 20).

Hilário Franco Júnior vê o cristianismo como mitologia. Identifica o mito ao folclore, ou seja, o conjunto de tradições orais e ritos que se formaram e se desenvolveram à margem da cultura religiosa oficial e de resistência aos valores eclesiásticos. O historiador analisa o contexto social em que se manifestam, e retoma as observações de Jacques Le Goft, pondo em relevo o papel da pequena e média aristocracia no reflorestamento do folclore através de seus representantes – os cavaleiros ou milites. Hilário Franco Júnior mostra como esses mitos folclóricos enriqueceram acultura medieval cristã, através da “cultura intermediária”. Mas está atento também às versões e alterações dos mitos cristãos, como se nota na sua aguda interpretação da “Eva Barbada”, afresco da abóboda da abadia de Saint-Savin-sur-Gartempe.

O historiador consagra a primeira parte do volume a duas discussões teóricas: o conceito de cultura intermediária e o problema historiográfico relativo ao cristianismo e mitologia. Hilário Franco Júnior pondera a seguir a importância das atitudes mentais em relação à política. O conflito entre os poderes temporal e espiritual insere-se no ensaio Construção de uma Utopia, quando examina a figura lendária de Preste João. Sustenta que “no século XII a formulação eclesiástica ofical era a célebre teoria dos dois gládios de São Bernardo” (p. 89-90). Na verdade, o abade de Claraval retoma no De conversatione a alegoria das duas espadas, com base em textos evangélicos (Luc 22, 26 e Mat 16, 52). Registre-se ainda que, não obstante sustente o poder eminente do pontífice romano – a plenitudo potestatis -, mais que Honório Augustodunensis e Hugo de Saint-Victor, São Bernardo reconhece certa autonomia do pode temporal. Hilário Franco Júnior notou com argúcia que a adoção do epíteto sacrum, dado por Frederico Barba Ruiva (1157) ao Romanum Imperium, tinha a clara intenção de atribuir ao imperador o direito de intervir nas questões eclesiásticas. De fato, o Império se tornou Sacrum Imperium para competir, em condições de igualdade, com a Sancta Ecclesia e fazer frente a ela. Frederico I ancorava-se na legislação romana e na tradição carolíngia, segundo as quais os direitos imperiais se baseavam não na outorga do papa, mas na conquista. Tanto que perguntado de quem recebera o poder, Barba Ruiva respondeu: “De Deus, apenas”.

Quando Hilário Franco Júnior assevera que “o modelo oriental [Império de Preste João] servia perfeitamente aos propósitos da Igreja, apenas naturalmente depurado de nestorianismo e com o papa no papel de rei-sacerdote” (p. 99), o que diz tem fundamento. Ora, Inocêncio III (1198-1216) evocou Melquisedeque, rex etsacerdos, e deixou claro que, se o sacerdócio e o reino estavam unidos na pessoa do patriarca, em troca estavam separados na sua jurisdição e sua atividade. Pretendia com isso demonstrar que o chefe da Igreja era, de uma parte, o supremo pontífice, e, de outra, o rei supremo. A argumentação de Inocêncio, no entanto, repousava em nova concepção do papado, que fazia do papa não apenas o detentor de poderes essencialmente religiosos, mas o vigário de Cristo exercendo os poderes de Cristo, soberano tanto dos corpos como das almas, sacerdote supremo e rei (PL 226,721). O ensaio Valtário e Rolando: Do Herói Pagão ao Herói Cristão retrata a realidade cotidiana da “doce França”. Para Rolando, os francos são o novo povo eleito. Note-se como um autor do século XII retoma a idéia de grandeza e do caráter providencial da missão dos francos, expressa inicialmente quando do advento da dinastia carolíngia na correspondência emanada da Chancelaria da Sé Romana para a corte franca.

A parte final do livro é uma análise segura e densa do papel da alquimia na realização da utopia de Dante Alighieri. O texto revela, mais uma vez, a cultura e o domínio do tema por Hilário Franco lúnior. Despertará provavelmente grande interesse, tendo em vista a pouca informação que ordinariamente se tem da história da ciência medieval. É indicada, aí, a estreita relação entre alquimia e astrologia. Poder-se-ia dizer que a alquimia e a astrologia são relacionadas porque, enquanto a primeira procura estabelecer uma relação horizontal do homem com o mundo que o rodeia, a segunda busca ligar verticalmente o mesmo homem com o mundo intangível acima de sua cabeça. Ambas têm como objetivo o conhecimento dos princípios e das operações que governam aqueles dois tipos de relação. Na perspectiva acentuadamente escatológica de Dante, havia necessidade da recuperação da androginia primordial, única condição para se retornar à justiça dos primeiros tempos. Para se chegar a isso, a alquimia procurava obter a fusão das partes masculina e feminina da matéria – a androginia dos minerais. Através do elixir ou da pedra filosofal seria possível o retorno às origens. Tenha-se em mente que a busca do elixir na alquimia chinesa, de origem teoísta, adquiriu característica diferente do que sucedia entre os alexandrinos, árabes e europeus. Sendo a China um país pobre em ouro, ao contrário do Egito, por exemplo, a busca do elixir consistiu em transformar o ouro (metal incorruptível) em uma forma assimilável pelo corpo humano, de modo a dotá-Io da mesma incorruptibilidade do metal precioso.

Os historiadores da cultura parecem atualmente fascinados pelo uso da linguagem como metáfora. Também Hilário Franco Júnior mostra-se atraído pela decodificação de ações simbólicas. Mas é cuidadoso e não comete os excessos de muitos. Procura com seu belo livro abrir novas perspectivas e possivelmente permitir, como se escreveu, que o historiador moderno possa sentir o cristianismo medieval através do seu próprio caráter mítico. A Eva Barbada – Ensaios de Mitologia Medieval, obra de um historiador fecundo e criativo, é comparável ao que de melhor produz a historiografia européia sobre o tema.

Daniel Valle Ribeiro

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A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial – VAINFAS (VH)

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Resenha de: MATA, Sérgio da. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.16, p. 171-174, set., 1996.

O novo livro de Ronaldo Vainfas é uma grata surpresa. Finalmente a historiografia se volta para um objeto que a maior parte dos pesquisadores tem simplesmente ignorado: a história das práticas religiosas indígenas no Brasil. Infelizmente, perdura ainda em nosso meio acadêmico a opinião, inconfessa, de que o estudo das sociedades ditas primitivas “não é assunto de historiador”. Vainfas tem ainda o mérito de agregar à análise historiográfica as contribuições importantíssimas de autores como Florestan Fernandes, Maria lsaura Pereira de Oueiróz, Pierre Clastres, Hélêne Clastres e Mircea Eliade. Sua narrativa leve, bem articulada, e, antes de tudo. seu objeto e sua opção metodológica interdisciplinar, tornam esta obra tremendamente oportuna. Uma história religiosa científica e de caráter não-confessional ainda está por ser feita no Brasil. A Heresia dos Índios constitui-se, desde Já, num dos marcos deste esforço.

O tema do livro é o estudo da Santidade de Jaguaripe, formada e destruída na década de 80 do século XVI no Recôncavo baiano. As santidades eram “movimentos” religiosos orginalmente indígenas. Lideradas por xamãs denominados caraíbas, as santidades representavam a promessa e a possível materialização daquilo que o imaginário tupi pretendia ser a “Terra sem Mal”: a terra mítica onde os índios não precisariam trabalhar para comer, onde não haveria nem sofrimento e nem a própria morte.

Mas, vistos como heréticos pela Igreja e como fomentadores da desordem pelos fazendeiros, 1mpnmiu-se uma perseguição sem tréguas aos seus adeptos e líderes espirituais. O que há de surpreendente na Santidade de Jaguaripe é que ela teve Justamente num dos mais ricos senhores de engenho da Bahia, Fernão Cabral, o seu maior patrocinador Por que um membro da voraz elite latifundiária sessentista se arriscaria a tanto? Para desvendar este enigma, Vainfas empreende uma pesquisa de fôlego, a partir da qual entrevê-se não o mero estudo de caso, mas também um esforço de visualizar a interpenetração das culturas, bem como das relações de força às quais estão inevitavelmente conectadas.

Há duas questões de fundo perpassando A Heresia dos Índios: (a) o enorme preço pago pelos indígenas ao iniciar-se o processo colonizador -escravidão, epidemias, aculturação imposta, genocídio-teria ou não desempenhado papel decisivo na eclosão do “milenarismo tupi”; e (b) as Santidades seriam – e até que ponto – ou não fruto de um sincretismo cristão/xamanista? Minhas discordâncias em relação a Vainfas giram em torno das respostas que ele apresenta a estas perguntas.

Com relação à primeira questão, o autor advoga que o impacto da colonização sobre as populações indígenas foi o fator decisivo no surgimento das santidades (p. 45-46, 65). A maioria dos deslocamentos de índios, tendo à frente os caraíbas, dava-se em direção ao interior, justifica ele. O que pareceria comprovar que se havia uma “Terra sem Mal”, esta estaria por certo longe da costa, onde estabelecera-se o europeu. O problema desta tese, ao meu ver, reside no próprio caso da Santidade de Jaguaripe. Se fosse tão decisivo o peso da exploração colonial, como entender que Fernão Cabral tenha convencido boa parte da santidade original a migrar rumo à sua fazenda- ou seja, rumo ao litoral? Vainfas subestima a força social do mito, pois, ao que tudo indica, a direção das migrações não interfere diretamente na estrutura deste mito. O que era essencial: chegar à “Terra sem Mal”, mesmo porque (e precisamente porque) isso significaria ignorar riscos enormes.

As santidades, sublinha Vainfas, teriam um nítido caráter “anti-colonialista”. Contudo, em 1586, quando da destruição de Jaguaripe, o autor revela-nos que os índios assistem a tudo “sem esboçar reação alguma” (p. 1 00). Teria sido tão grande o peso da “exortação à guerra” feita pelos caraíbas?

A análise seguinte, do sincretismo entre elementos da religiosidade cristã e tupi, também revela problemas. Vainfas dá provas de “hibridismo”: similitudes entre a “Terra sem Mal” e o paraíso cristão, a santidade por alguns chamada “Nova Jerusalém”, o caraíba Antônio a quem se referiam outros tantos por “papa” ou “Noé”, o “rebatismo” dos novos adeptos, cruzes e rosários, etc. A partir destas homologias, entretanto, Vainfas sente-se autorizado a concluir que a maior parte das crenças de Jaguaripe “foi gerada( … ) nos aldeamentos da Companhia de Jesus” (p. 117), e mesmo que o “ídolo” venerado pelo índios era, “por origem, uma invenção cristã” (p. 132, grifo meu).

Desta vez o historiador fluminense superestima o peso da tradição cristã nas crenças que moviam as santidades. Seria mais sensato ver no esforço dos jesuítas uma prática aculturadora relativamente limitada: no Brasil colônia, como aliás na China deste mesmo período, os jesuítas só puderam introduzir com algum sucesso suas representações religiosas na medida em que elas tivessem algum homólogo, por distante que fosse, nas culturas autócones. Assim, o Tupanaçu dos jesuítas devia tanto ao Tupã indígena quanto a doutrina do Senhor do Céu de Matteo Ricci devia à noção de “Soberano do Alto” herdada da tradição chinesa. As (re)formulações jesuíticas não constituíam realidade inteiramente nova, como parece crer Vainfas. Estavam, para usarmos os termos de Johan Huizinga, ainda “impregnadas de passado”. O modus agendi jesuíta parece ter sido basicamente este em situações históricas ou contextos nos quais a “conversão” não pôde ser garantida, antecipadamente, (de fora para dentro) pela força ou (de cima para baixo) pela adesão da chefia em sociedades de tipo “heróico” (Sahlins).

Ademais, não convém esquecer que determinados aspectos-chave do ritual das santidades pouco ou nada tinham de cristãs. Tinham, isso sim, origens distantes. Juan Schobinger mostra-nos que as sociedades Diaguitas do noroeste da Argentina utilizavam-se do fumo como alucinógeno religioso seis séculos antes da chegada do europeu. Da mesma maneira, o tugipar (“templo” da santidade) tupi, as estacas fincadas no seu centro e os “ídolos” de pedra também Já existiam entre os Diaguitas. Como ver, então, nas práticas religiosas das santidades uma “invenção cristã”?

Problemática é, igualmente, a hipótese de que teria havido sincretismo religioso ao nível dos adeptos indígenas da santidade, mas nem tanto por parte dos vários mamelucos e mesmo brancos que, segundo a Inquisição, a eles teriam se juntado (p. 158). De fato, muitos destes últimos apenas simularam crer nos caraíbas para atraí-los ao litoral, ansiosos pela mão-de-obra proporcionada pelos “bugres” de Jaguaripe. A existência de tal diferenciação interna seria perfeitamente possível de sustentar, mas somente na condição de confundirmos nível de adesão (ou de conformidade) religiosa com sincretismo propriamente d1to. O ser “mais” adepto ou “menos” adepto não interfere na natureza das crenças e representações em questão.

Duas últimas observações. Vamfas utiliza, ao longo de todo seu livro, a categoria “seita” para se referir às santidades. Não foi uma boa escolha. Revela, neste particular, absorção acrítica (em que pesem todos os cuidados tomados) da linguagem inquisitorial. Nesta, como nos meios cristãos em geral, “seita” assume um significado diverso do sociológico. Onde o senso comum eclesiástico vê “heresia”, “desvio”, “erro” (e daí a sua repressão), a soc1olog1a da religião vê um tipo de comunidade religiosa com um padrão configuracional próprio. Vale d1zer: a inflexibilidade e ngorismo das seitas (Wach), sua ênfase na “obediência literal e no radicalismo” em relação a uma dada tradição religiosa (Troeltsch) são, em certo sentido, pouco compatíveis com quaisquer sincretismos (ou hibridismos). O que permite concluir que as santidades, muito provavelmente, não eram seitas.

Creio ainda que não tenha sido devidamente formulada ou explicitada a noção de “juízo etnodemonológico” (p. 53). Em que tal manifestação constitui um caso à parte de etnocentrismo, é algo que não se chega a compreender claramente.

Sérgio da Mata – Professor de Antropologia Cultural Fundação Educacional Monsenhor Messias- Sete Lagoas.

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O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista – MICELI (VH)

MICELI, Paulo. O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista. São Paulo: Scritta, 1994. Resenha de: VIDAL, Diana Gonçalves. As viagens são os viajantes. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 203-204, mar., 1996.

Fascinante. Talvez o adjetivo que melhor qualifique o livro de Paulo Miceli. O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na histeria da expansão e da conquista, adaptação de tese de doutorado, recentemente publicado pela Scritta. Livro de História e de histórias. Agrada aos que buscam o rigor do trabalho cientifico e aos que apenas desejam o deleite da leitura.

Nele, as viagens trágico-marítimas ganham vida. Deixam de ser “riscos coloridos que percorrem milhares de léguas, unindo os portos de saída aos de chegada”, como figuram nos mapas, na critica do autor, para assumir outra materialidade, a dos relatos de bordo. 0 cotidiano das embarcações nos é narrado numa linguagem fluida e convidativa. Embalados pela narrativa, ora nos deliciamos com os lazeres de bordo: encenação de peças teatrais escritas por padres, procissões religiosas e festas tradicionais — como a da coroação do imperador —; ora nos aturdinos com os reveses das viagens, ondas gigantescas governadas por “uma grande folia de vultos negros, que não podiam ser senão diabos”, epidemias e fome.

Na busca as razoes dos naufrágios, nos deparamos com explicações curiosas. Às vezes, a inepcia do piloto: o privilégio de dirigir a embarcação poderia ser atribuído a “homem desacostumado nesta carreira”, desde que o comprasse. Às vezes, o descuido na construção dos navios: madeiras verdes, furos de verruma não preenchidos por carpinteiros, falta de proporção nas medidas. Às vezes, o despreparo dos homens do mar: marinheiros de última hora — sapateiros, agricultores que não conheciam o linguajar de bordo, nem sabiam nadar. Às vezes, a ação das “peçonhas do diabo”, designação dada pelos padres as prostitutas que embarcadas, distraiam os homens de seus afazeres, deixando-os a merca da tuna do mar (sic). Às vezes, a cobiça: excesso de carga, má distribuição do peso.

Este relato de viagem(s) nos permite, ainda, conhecer a alimentação, a hierarquia social, os conflitos, as disputas, a medicina, as doenças, o proibido e o permitido a bordo dos navios nos séculos XV e XVI. Através dos escritos dos cronistas da época somos lançados neste universo, que para Miceli, ao contrário da sabedoria popular, não é um mundo à parte. Os termos portugueses, muitas vezes desconhecidos, destas crônicas nos são esclarecidos em notas.

O livro se divide em seis capítulos, em cada um deles o autor procura situar aspectos da história da expansão e da conquista portuguesa. Uma breve discussão histórica posiciona Miceli em relação ao seu objeto e a arte de narrar. O segundo capitulo leva-nos a um passeio pela Lisboa quinhentista: fome, doenças, guerras e catástrofes naturais. O capítulo III debruça-se sobre a arquitetura naval. Percorremos as várias etapas da feitura de um navio: projeto, modelo, produto final. Descobrimos carpinteiros e calafates como um poderoso grupo profissional. Percebemos mãos femininas auxiliando a construção de naus — desfazendo cabos de cordas de linho, velhos, e tornando a fiar em estopa de calafetar. Em Singradura, conhecemos a “gente do mar” e alguns de seus relatos de experiencias. Um convite a participar do cotidiano das viagens: festas, teatros, dietas e doenças, nos é realizado no quinto capitulo. Finalmente, em Passageiros do Acaso, o autor interroga-se sobre as raízes dos naufrágios. Falhas na construção, reparo e manutenção das embarcações, além de cobiça, são algumas das causas apontadas.

As notas no final de cada capitulo revelam um intenso trabalho de pesquisa em bibliotecas e arquivos portugueses. Mas indicam, também, o desejo do autor de interferir o menos possível na fluidez do texto, deixando o leitor a vontade para escolher entre entregar-se ao prazer de uma viagem descomprometida ou ao rigor da leitura acadêmica.

Do ponto onde estamos, dirigimos nosso olhar ao passado, tentando captá-lo, conhecê-lo, talvez, aprisioná-lo. Fica o alerta do autor, citando Fernando Pessoa: “As viagens são os viajantes. 0 que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

Diana Gonçalves Vidal – Doutora em História da Educação.

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O teatro dos vícios – ARAUJO (VH)

ARAUJO, Emanuel. O teatro dos vícios. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1993. Resenha de: MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 200-202, mar., 1996.

Resenha discutida durante o seminário Estudos Bibliográficos: Subsidio para a História Social da Comarca do Rio das Velhas – 1994 – de 03 a 07 de Janeiro. Grupo “Século XVIII mineiro”- Centro de Estudos Mineiros – Fafich – UFMG.

“Todavia os donos do poder fortaleceram-se com o tempo, os burocratas públicos ficaram ainda mais burocratas, o judiciário permaneceu venal e o povo, esse, perpetuou-se sob eternos males a ele impostos e mazelas por ele próprio criadas”. (P27).

Segundo se lê na seção “Ideias”(FSP, 24/12/93, p.3), 0 teatro do vícios  está classificado entre os oito melhores livros de História publicados em 1993.Outra referência da mídia a dar destaque a essa obra é a resenha de Luís Felipe de Alencastro (FSP, 06/06/93), que lhe faz uma justa apreciação.

Ao meu trabalho, em particular, a obra vem enriquecer não só com elementos referentes a grande parte do território nos três primeiros séculos da história do Brasil, mas também com a divulgação de uma variada bibliografia sobre o assunto, pouco difundida, e, portanto, pouco consultada. Embora ARAUJO use como fonte “o universo documental publicado” (p.14), deixando de lado as fontes primarias. Demonstra permanente recorrência aos processos inquisitoriais, as Ordenações Filipinas e as Atas das Câmaras, entre outros documentos. Contudo, exagera na citação de relator de viajantes estrangeiros —sobretudo ingleses —que percorreram o País, particularmente no século XIX.

De início, o autor expõe seus objetivos: ao convocar os mortos “a falarem”, pretende comprovar a imutabilidade da estrutura do poder, apesar das mudanças dos regimes políticos, analisando a forma como o Estado controla a população:”…levou-se a extremos o sentimento do rei como bom pastor que vela por todo o rebanho, dissimulando habilmente sempre, o que encobre tal noção: o rebanho…” (p. 23). Essa passagem lembra, com muita propriedade, um texto recente de Renato Janine Ribeiro, em que comenta a má fé da última fala do ex-Presidente Collor, ao destacar “dois temas: o dos órfãos do poder e o do repudio as paixões e interesses políticos”, confirmando sua demagogia. “Falar… em ‘Órfãos do poder’ e pretender assim que fosse ele o pai que redimiria esses desvalidos, é a prova cabal do caráter autoritário de um projeto que negava a própria cidadania, que reduzia os brasileiros a tutelados. ” 0 articulista termina seu texto lembrando que o apelo as ultrapassadas formas de populismo —”a referência ao pai e a sua privação…” não passa de “uma parodia pobre de nosso passado da qual esperamos ter visto agora o último ato” (FSP,27/12/93). Nesse caso, estariam os prognósticos de Araújo sendo confirmados.

Na obra em questão, o autor incita o brasileiro a recuperar sua identidade, a repensar historicamente o seu próprio caráter —a buscar, no comportamento dos colonizados, a tecitura da sociedade brasileira e seus antigos mitos. Para isso, privilegia, como “exame prioritário e norteador, (a análise) do comportamento desviante em amplo sentido”(p.26).

Os quatro capítulos do livro são bastante sugestivos. No primeiro, fica logo delimitado o cenário, o local onde os atores cumprem seus papeis: a vila, a cidade. Tudo indica que os primeiros povoados foram improvisados em sítios inadequados, com muitas ladeiras e tragados irregulares, compondo-se de casas mal alinhadas e ruas estreitas, escuras e mal cheirosas. Desde os primeiros momentos, o autor insiste em considerar a pobreza das ralas populações das vilas, em 1585, 1610 e 1630, comparando-a a uma população rural predominante, citando, particularmente, a região Nordeste.

Se o mundo rural prevalece, nos dois primeiros séculos, a partir do sec. XVIII, com o desenvolvimento da economia mineira, algumas transformações profundas começam a se fazer notar nas vilas coloniais, que se formam rapidamente. Nesse momenta, as Câmaras atuam de maneira efetiva1. Quanto as edificações particulares, parece que o autor fez uma leitura rápida da tese de Sylvio de Vasconcelos2. Na verdade, as dificuldades com relação ao urbanismo brasileiro dizem mais respeito a herança portuguesa do que a desordem e/ou provisoriedade da ocupação, a pobreza, a falta de higiene e a indolência do brasileiro. Ainda no mesmo capitulo, ele trata da alimentação e da moradia.

É no segundo capitulo —A sociedade da aparência —que ARAUJO começa a delinear os tragos psicológicos predominantes do brasileiro: preguiçoso, presunçoso, amante dos prazeres, etc. Nessa conceituação, prevalece sempre a opinião de estrangeiros visitantes do século XIX. Até que ponto se pode endossar a fata de autores originários de culturas tão diferentes e de países como a Inglaterra, que criou e massacrou, durante séculos, uma massa enorme de pequenos camponeses, despojando-os da terra, transformando-os num exército de mendigos “hospedes” das work houses ou de miseráveis que vão povoar Londres nos séculos XVII e XVIII, tornando-se permanente ameaça social GUTTON 3  esclarece que, na verdade, nas sociedades europeias da época, a presença de pobres era inevitável. Contudo, mesmo na Europa, o estudo desse estrato da população e extremamente difícil: os registros a respeito são precários: seus elementos vem, sobretudo, de algumas instituições assistenciais particulares ou públicas. Assim, que tipo de individuo viria para o Brasil Colônia.

Continuando, ARAUJO informa que, no Brasil, nessa época, o trabalho se torna indicador de condições subalternas, desonrosas, portanto. Os ofícios mecânicos eram desempenhados por mestiços, negros ou brancos pobres. Explica-se esse desprestigio do trabalho, e a consequente preguiça do brasileiro, pela permanência do sistema escravista.

Entretanto, para curtir a preguiça, urgia comprar escravos. De onde vinha o capital necessário Um escravo media, em Minas Gerais, em meados do sec. XVIII, custava de 100.000,000 (cem mil reis) a 120.000,000 (cento e vinte mil reis), o que correspondia, em média, ao preço de três casas urbanas, no mesmo período. Curioso e que L.S. Vilhena, um “modesto  professor de Grego” (p.87) possuía oito escravos. E dele a lapidar frase que caracteriza o Brasil como a “moradia da pobreza, o berço da preguiça e o teatro dos vícios”.

0 ócio, de acordo com alguns depoimentos referidos, era prerrogativa dos citadinos burocratas, profissionais liberais, estalajadeiros, padeiros, taverneiros, açougueiros, barbeiros, costureiras e outros. Essa é uma imagem que necessita verificado mais acurada, por meio de análise de outras fontes que não as opinativas e/ou circunstanciais.

Por outro lado, ser aceito e reconhecido pela sociedade era uma condição fundamental para o colono. Portanto, a aparência física contava muito. Um traje de boa qualidade, ataviado com detalhes em ouro e prata e altos penteados ou perucas enfeitadas, para aparecer em público, contrastavam com a simplicidade das vestes caseiras e, em especial, com a sobriedade da decoração interior das casas. Parece, no entanto, que eram hábitos apenas transplantados de Portugal. Tudo indica que a rua apresentava muitos atrativos, como procissões, cavalhadas, touradas, carnaval, danças, teatro. Quanto a essa questão (p.145), chocam-se as opiniões de dois viajantes, Lindley e Maria Graham, a respeito do teatro de Salvador. 0 que torna bem Clara a precariedade dos depoimentos opinativos.

No terceiro capítulo — A Colônia pecadora— ARAUJO empenha-se em detalhar a conduta desviante do brasileiro, privilegiando sua vida privada, em que os comportamentos da mulher e do padre se tornam paradigmáticos.

Como se pode deduzir, trata-se de uma obra que merece uma leitura cuidadosa. 0 autor transita bem pela moderna historiografia brasileira. Sua tentativa de incentivar a fala dos mortos deve prosseguir.

No entanto, ficam, ainda, algumas questões: Como a crítica recebeu a obra Como são trabalhados, nela, as categorias pobreza, mendicância, vadiagem e prostituição As dicotomias público X privado e colono X colonizado são bem definidas ao longo do texto E outras mais…

Notas

1.MAGALHAES, Beatriz Ricardina. Estrutura e funcionamento do Senado e da Câmara em Vila Rica (1740- 1750). In: Anais da Xl Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH), são Paulo, 1991.p..133-136. Esse texto foi elaborado para fazer entender a dinâmica da administração municipal de Vila Rica.

2.VASCONCELOS, Sylvio. Vila Rica, São Paulo.: Editora Perspectiva,1977.

3.GUTTON, Jean Pierre. La societe et les pauvres en Europe (XVI-XVII).Paris: PUF,1974.

Beatriz Ricardina de Magalhães.

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Arqueologia Histórica Urbana en Santa Fe la Vieja: el Final del Principio – ZARANKIN (VH)

ZARANKIN, Andres.  Arqueologia Histórica Urbana en Santa Fe la Vieja: el Final del Principio. Columbia: The University of South Carolina Press, 1995 (“Historical Archaeology in Latin America”, vol.10). Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 199, mar., 1996.

Santa Fe foi fundada em 15 de novembro de 1573, a primeira cidade planejada do Rio da Prata, tendo sido transladada para local menos sujeito a inundações em 1660. Esta cidade foi abandonada e apenas nos últimos anos pesquisas arqueológicas puderam trazer a luz os restos materiais da antiga cidade colonial. O livro de Andres Zarankin procura dar conta desses trabalhos e reinterpretar a História da cidade a partir da cultura material.

A cidade compunha-se de proprietários espanhóis (vecinos) e outros habitantes, tendo chegado a atingir 500 almas, população substancial para a época. A composição étnica da cidade incluía espanhóis, indígenas e africanos e o estudo do material cerâmico permitiu ao autor diferenciar os seguinte tipos: cerâmico importada não hispânica; cerâmica importada hispânica; cerâmica local hispânica e cerâmica local de tradição indígena. O autor estudou a distribuição espacial, no interior da cidade, dos diferentes tipos cerâmicos, e pode notar que a cerâmica local tinha difusão homogênea, enquanto a cerâmica decorada, ao contrario, parece estar em relação com uma particular distribuição de certos grupos sociais na cidade (pp.92-94).

A presença de indígenas na cidade espanhola, em especial de índias concubinas ou esposas, explicaria, naturalmente, a ubiquidade da cerâmica aborígene (p.94). A Arqueologia de Santa Fe apresenta, portanto, um quadro semelhante aquele que foi encontrado nas prospecções na Serra da Barriga, capital do quilombo dos Palmares, sitio contemporâneo, onde a presença de cerâmica indígena parece indicar a importância da mescla cultural nesses primeiros assentamentos coloniais (cf. P.P.A. Funari, The Archaeology of Palmares and its Contribution to the Understanding of the History of African-American Culture, Historical Archaeology in LatinAmerica, 7, 1994, pp.1-41). A Arqueologia Histórica permite, assim, repensar diversas questões relativas a etnicidade dos assentamentos coloniais e apenas a multiplicação de estudos monográficos como este permitirá melhor avaliar a significação de elementos da cultura material indígena em assentamentos coloniais.

Pedro Paulo A. Funari – Departamento de História, IFCH, UNICAMP.

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Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) – FRAGOSO (VH)

FRAGOSO, Joao Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. Resenha de: MENESES, José Newton Coelho. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 193-198, mar., 1996.

Se tentássemos resumir em poucas palavras uma obra de tal porte, diríamos que ela se propõe a fazer uma investigação reflexiva sobre os mecanismos de reprodução da economia colonial, em torno da praga do Rio de Janeiro, na virada do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, evidenciando que essa economia não se restringe as estruturas do escravismo e do mercado internacional. A esses elementos estruturais somam-se a existência de um mercado interno, a ocorrência de acumulações endógenas e a presença de um setor mercantil residente. A somatória de todos esses elementos, configuraria uma formação social que controlaria, em boa parte, seus pr6prios mecanismos de reprodução.

O presente livro e composto pelos quatro primeiros capítulos da tese de doutoramento do autor1 que, ao que parece, foram pouco alterados para essa publicação, uma vez que se apresenta sob forma rigorosamente acadêmica, o que, infelizmente, pode limitar sua leitura a grupos de interessados. Esses leitores, no entanto, certamente não se arrependerão de poder refletir, sob uma orientação clara e lúcida, acerca da estrutura econômica do sudeste colonial, no período proposto. O caráter acadêmico está caracterizado na obra, sobretudo quando se mantêm a descrição dos métodos e técnicas de pesquisa utilizados, onde o autor explicita as Pontes de diversas naturezas trabalhadas (fiscais e cartoriais), bem como o tratamento dado a elas e os cruzamentos dos seus dados. Além disso, o número excessivo de Tabelas e Curvas (são 79, no total) e a descrição dos dados de cada uma delas, não nos deixa dúvidas acerca do rigorismo citado, e evidenciam a necessidade de uma edição futura, cuidadosamente preparada para uma major parcela de leitores.

Logo de início, Joao Luís Fragoso nos apresenta seu objeto e hipóteses de trabalho, contrapostos a uma análise dos debates que buscaram criar os modelos explicativos clássicos da economia colonial. E discute tais modelos de forma crítica, mas evidenciando a necessidade de conhece-los e de apreender alguns de seus conceitos. 1  Não esquece de mencionar as diversas pesquisas de base que, nas décadas de 70 e 80, buscam as evidencias de um mercado interno colonial e as atividades que giram em torno dele, e define, por fim, a necessidade de se testar novos moldes explicativos, que é o que ele se propõe a fazer. A busca desses novos modelos se enraízam em bases que o autor já pesquisara em trabalho anterior e que lhe apresentaram a formação de uma economia agro-exportadora cafeeira no Vale do Paraíba fluminense, em meio a uma conjuntura econômica internacional desfavorável (depressão europeia de 1815-1850), o que vai de encontro as análises clássicas da economia colonial. Estas veem para o período, uma impossibilidade de acumulação end6gena e, para o autor, somente uma ampla acumulação previamente existente, explicaria aquela nova formação agro-exportadora em período recessivo internacional e da economia escravista açucareira e do algodão. Da mesma forma, ao contrário do que pensava Celso Furtado, a economia cafeeira do Vale do Paraíba não contaria com abundante escravaria vinda de Minas Gerais (em economia decadente), pois Minas, nessa época era a principal compradora de escravos que desembarcavam no Porto do Rio de Janeiro, bem como apresentava um crescimento demográfico significativo. Aos negociantes da praga do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, caberiam uma acumulação, que teria começado nas Últimas décadas do século XVIII, não s6 ligada à exportação, mas também ao abastecimento interno. A elasticidade dessa economia, ultrapassaria as vicissitudes da agro-exportação e, assim, surge, para o autor, a necessidade de se cunhar um novo pressuposto que considere a economia colonial como uma formação econômico-social.

O autor busca “apreender as formas de acumulação presentes na economia colonial do Sudeste, no século XIX”, 2 através das seguintes hipóteses: (1) o escravismo colonial (da plantation), em sua reprodução, gera formas de produção não-capitalistas, ligadas a seu abastecimento, entre as quais, a produção camponesa, o trabalho livre não-assalariado e a produção escravista de alimentos; (2) nessa formação econômico-social do sudeste colonial, o escravismo tem papel hegem6nico; (3) o processo de produção escravista do Sudeste introduz ou redimensiona três categorias na economia colonial que são, a acumulação endógena, o mercado interno onde ela se realiza e o capital mercantil residente que e um elemento gestado e, ao mesmo tempo mediador do processo de reprodução dessa economia. Este mercado interno tem natureza não-capitalista e, parte do trabalho não remunerado colonial assumiria forma de acumulação mercantil, originando uma distinção na hierarquia social sob a forma de dois grupos: uma aristocracia escravista territorial, hegemônica, e comerciantes de grosso trato que seriam os negociantes envolvidos, simultaneamente, no tráfico internacional de escravos, no abastecimento interno e nas finanças coloniais. Apesar do titulo do livro, e mais do que sobre esses homens que o autor vai falar. Ele não descuida de tratar do risco para esse sistema que seriam esses homens de grosso trato, mas, por outro lado, como eles tratam de reproduzi-lo com base na busca do poder hierárquico e na recorrência ao investimento em terras e escravos. Este, talvez seja um dos pontos nevrálgicos de que trata o autor: a recriação de sistemas agrários escravistas em áreas de fronteira que vão manter a sociedade colonial.

As proposições do autor, na medida em que vão de encontro as análises dos modelos explicativos clássicos que tentam demonstrar a incapacidade estrutural da Colônia em gerar acumulação interna, poderiam levar a uma crença na invalidade dos mesmos. Não e o que acontece, uma vez que o próprio autor resgata e apreende o que há de proximidades entre eles e passa a refletir sobre as bases daquelas argumentações. Através dessa raiz, propõe uma nova abordagem acerca do comercio metrópole-colônia: mercado de concorrência e não de monopólios, 1 ou mesmo, quando elege o Rio de Janeiro como o locus privilegiado para a verificação dos mesmos. A busca de respostas a uma pergunta, no entanto, aponta os limites dos modelos explicativos: como se abastecia a plantation ?

A partir da evid6ncia dos limites dos modelos explicativos clássicos da economia escravista colonial, Fragoso, seguindo o pressuposto de caracterizar a economia colonial como uma formação econômico-social, exemplifica, com as áreas do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, o “mosaico de formas nao-capitalistas de produção”, de uma economia colonial “para além da plantation escravista-exportadora”, mostrando formas diferenciadas de organização do trabalho escravo, formas especificas de trabalho livre (camponesa e peonagem) e, sobretudo, uma escravidão alocada em outros setores econômicos.

Em relação ao que descreve sobre Minas Gerais e o comercio de abastecimento desenvolvido na Capitania e, mais tarde, Província, o autor afirma que teria havido uma mudança de direção desse comercio, da mineração para a agro-exportação para território fluminense. Nesse ponto, me parece, o autor negligencia o crescimento demográfico da região mineira, crescimento, aliás, que ele evidencia em vários momentos. A meu ver, mais que uma mudança de direção, ocorre uma ampliação desse mercado, já que este crescimento proporcionaria um aumento da demanda estável de alimentos em território mineiro. Este fator e pouco tratado na obra. No entanto, outras observações são instigantes coma a comparação dos dados de crescimento demográfico, porcentagem de população escrava e participação da pecuária na economia mineira. A partir dessa analise conclui, por exemplo, que a agricultura mineira era tão mercantilizada que permitia adquirir cativos; que a pecuária não era somente produto do trabalho escravo e que o acesso à terra, em Minas, era estável, o que permitia um trabalho camponês/familiar com o auxílio do braço escravo.

Ao tratar, especificamente, do mercado colonial e das acumulações endógenas, Fragoso volta a apontar limites nos modelos explicativos clássicos por apresentarem uma situação paradoxal: a economia colonial, mesmo sendo um modo de produção, não possuiria suas próprias flutuações. Reitera algumas concordâncias com os citados modelos mas propõe novos pressupostos que mudam o angulo de visão do problema. São eles: (1) existência de uma formação econômica e social no espago colonial (escravismo associado a outras formas de produção não-escravistas); (2) ação de uma elite mercantil, originaria de acumulações endógenas e responsável pela reprodução da agro-exportação; (3) o fato de que a economia colonial, mais do que a plantation escravista, é a base de uma sociedade que se pretende reproduzir e, portanto, a inversão do sobretrabalho não mais depende apenas de injunções externas, mas das necessidades de reprodução dessa estrutura social, ditadas, principalmente, pelo mercado interno e pelas acumulações dele originadas. Mais uma vez, o exemplo e Minas Gerais que, sendo a principal região importadora de escravos, tem sua economia baseada na produção para o mercado interno e não para o internacional, o que prova a existência de acumulação endógena. Da mesma forma, o próprio tráfico internacional de cativos era controlado, desde o século XVIII, por comerciantes residentes no Brasil. Esse fato e os dados do tráfico interno “(…)colocam de cabeça para baixo os modelos clássicos da economia colonial’1 e demonstram que “(..) o custeio da empresa agroexportadora era feito, em grande medida, por uma elite mercantil colonial autônoma.” 1

Fragoso caracteriza bem: a plantation não tinha caráter autárquico e, mais que isso, gerava um mercado interno que, por sua vez redefine a natureza da economia e da sociedade coloniais e possibilita, juntamente com outras formas de produção, a ocorrência de acumulação endógena. 0 crescimento demográfico, por outro lado, provoca uma demanda (inelástica) de alimentos produzidos para três segmentos: plantation, setores urbanos e segmentos mercantis voltados para o mercado interno.

A caracterização deste mercado colonial é o objeto sobre o qual o autor vai se dedicar a reflexão, com dados numerosos e suficientes para permitir a conclusão de que ele é um mercado de fortes variações conjunturais que “reforçam o caráter especulativo de seu empresario”2  permitindo acumulações endógenas e uma hierarquia econômica altamente diferenciada, com graus de concentração de riquezas diferentes, de sua base ao seu topo, proporcionando a formação de uma elite mercantil hegemônica, com práticas especulativas que, no entanto, não a impediria de ter uma considerável estabilidade e, mesmo, de exercer práticas monopolistas. Estas seriam as características de um pequeno grupo de abastados empresários da praga mercantil do Rio de Janeiro que, no fundo, demonstrariam o caráter desigual da hierarquia econômico-social dessa praga e a natureza não capitalista do mercado colonial. A direção desse comercio praticado pelos “coloniais” se diversifica geograficamente e especificamente (do tráfico de escravos ao abastecimento de alimentos), mas com sua base no abastecimento interno. A ausência de fortes instituições financeiras, apesar da criação do Banco do Brasil, em 1808, tornaria o ápice desta pirâmide comercial dependente de um capital usurário fornecedor de empréstimos ao mercado e exercido pelos grandes negociantes de cada setor que se tornavam, também, grandes financistas de um mercado cativo.

Este capital mercantil seria o “elemento unificador” do mosaico de formas econômicas da Colônia, papel este que caberia “ao capital mercantil da praga do Rio de Janeiro, personificado em sua comunidade de comerciantes de grosso trato.”3  Praga essa marcada por uma hierarquia econômica que pouco se distingue da presente em sociedades pré-industriais da Europa dos séculos XV e XVI.4  Essa elite comercial carioca, de caráter múltiplo em sua atuação (abastecimento de alimentos, exportação, importação e tráfico de escravos), teria a possibilidade de substituir a aristocracia fundiária no topo da pirâmide econômica, pelas facilidades de apropriar-se do excedente do escravismo exportador e do de outras formas de produção, presentes na formação econômica e social da Colônia.

Como vimos, todas as análises de Fragoso acerca da economia colonial, a consideram como dependente não somente de fatores externos, mas, também de flutuações e especulações internas exercidas por uma pirâmide empresarial de base pequeno proprietária e topo financista usuraria, bem como de um mercado interno diversificado e dinâmico. 0 pressuposto que permite ao autor fazê-las é o de que o ritmo do mercado colonial só pode ser entendido, se considerarmos a Colônia como uma sociedade com suas pr6prias estruturas econômicas e sociais. E mais que isso, uma sociedade com necessidades e mecanismos de reprodução próprios.

A obra de Joao Luís Ribeiro Fragoso, tem vários méritos como a riqueza de dados e a limpidez das análises. No entanto o que mais se destaca é a sua lucida capacidade de justificar as proposições e pressupostos que dão base a sua reflexão.

Notas

1 Comerciantes, Fazendeiros e Formas de Acumulação em uma Economia Escravista-Colonial: Rio de Janeiro, 1799-1888, apresentada a Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em dezembro de 1990. 0 presente trabalho recebeu o Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, de 1991.

2 Trata-se aqui dos modelos explicativos de Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Fernando A. Novais, Ciro F. Cardoso, Jacob Gorender, António Barros de Castro, Joao Manuel Cardoso de Mello e Jose Jobson Arruda, dentre outros.

2 FRAGOSO, J. L. R., Homens de Grossa Aventura: acumulação a hierarquia na praga mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830), Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1992. p. 27

1 Usando, aqui, conceito de Jose Raimundo Correia de Almeida. Op. cit., pp. 70-72.

1 Op. cit., p. 147.

1 Op. cit., p. 133.

2 Op. cit., p. 153.

3 Op. cit., p. 212.

4 0 autor a compara a Florença de 1427 e a Lyon de 1543. Op. cit. pp. 257-258.

José Newton Coelho Meneses – Mestrando em História – FAFICH/UFMG.

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A Torre Kubitschek: trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil – PIMENTEL (VH)

PIMENTEL, Thais Velloso Cougo. A Torre Kubitschek: trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1993. Resenha de: LANNA, Ana Lúcia Duarte. Varia História, Belo Horizonte, v.10, n.13, p. 176-177, jun., 1994.

O presente livro foi, onginalmente, apresentado como dissertação de Mestrado em H1stóría Social na UNICAMP, e ganhou o XII Prêmio Diogo de Vasconcelos (da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais), o que possibilitou a sua publicação. Partindo da história de um conjunto habitacional, o Conjunto Juscelino Kubitschek (CJK), Situado no centro da capital mineira, a autora buscou compreender o “processo que transformou o ‘tempo das Ilusões’ em tempo da desconfiança e os sentimentos que se movem em torno desses prédios, na cidade que os abriga e nas pessoas que os hab1tam”. (pág 20)

Idealizado por Juscelino Kubitschek, quando governador do Estado, e projetado por Niemeyer, o conjunto habitacional foi estudado pela autora, que acompanhou através dele a trajetória de 30 anos de Brasil. O trabalho, organizado em 4 capítulos, revela o CJK como “síntese de uma realidade contraditória, entre a idéia, nascida num momento fecundo da história do país e de seu povo, e a sua própria história enquanto obra, experiência real vivida por pessoas de outro tempo” (pág 138)

No primeiro capítulo, a análise reca1 sobre a arquitetura enquanto representação da civilização, símbolo de poder, ícone da modernização e do progresso. Os monumentos arquitetônicos, a partir do século XIX, devem ser compreendidos enquanto expressão do poder triunfante da burguesia. A arquitetura moderna, inserida neste processo, é vista como parte das vanguardas do século XX. Sua proposta associa técnica, velocidade e uma inovadora relação entre moradia individual e coletiva que a obriga a pensar sobre o espaço urbano. Projeta para o futuro e defende a liberdade de criação e experimentação de novas idéias, independente do sentido político de sua aplicação.

A obra de Niemeyer, visto como arquiteto do poder, será, de acordo com a autora, capaz de cumprir esta função simbólica de representar um certo 1deal de progresso que, projetando o futuro, questiona ao mesmo tempo a tradição. Belo Horizonte, enquanto uma cidade que deveria ser ao mesmo tempo moderna e tradicional, reúne uma quantidade significativa de obras de Niemeyer, aí edificadas sob o patrocínio do Estado, o que segundo a autora “espelha a forma como os grupos socia1s dominantes comandaram as reformas urbanas e administrativas necessárias à confirmação de sua hegemonia”. (pág. 39)

No segundo capítulo, Thais Pimentel realiza um apanhado da ideologia naclonal-desenvolvlmentista. Destaca conteúdo simbólico dos anos 50 corno “anos dourados”, o papel do ISEB, o crescimento das cidades e a Crescente atuação do Estado criador de uma Ideologia que prega a prosperidade, a 0rdem e a soberania. A pratica autoritária do Estado no comando da economia e sociedade brasileira pode ser percebida na forma como se dec1d1u a construção do CJK. Tanto o conjunto residencial quanto Brasília têm a forma material do desenvolvimentlsrno e podem ser vistos como símbolo e síntese desta época, imagem e semelhança do projeto de dominação da fração burguesa dominante, para quem a busca da harmonia social ora tão cara. O CJK é apresentado como um “balão de ensaio” revelando a tragédia e a glória dos anos 50.

No capítulo 3, o leitor poderá acompanhar a história da construção do CJK. Os empresários envolvidos, a participação e atuação do Estado e dos condôminos, em geral da classe média. A decisão de real1zar o CJK e as críticas e resistências ao projeto são apresentadas como indicadoras da prát1ca populista de poder onde o consenso é obtido a posteriori. As dificuldades enfrentadas na realização do empreendimento, a descrença e desmoralização que passaram a envolver o projeto ocasionadas sobretudo pelos sucessivos atrasos e elevação dos custos são então abordados. O Estado promotor do desenvolvimento bancaria o proJeto até 1964.

Mas esta trajetória tortuosa, a demora da execução e as características mesmas da cap1tal mineira vão fazer deste um lugar de suspeição. A sua proposta Inovadora de um morar colet1vo, voltada para o futuro, quando consolidada, encontra um país que rejeita o coletivismo. A aglomeração de pessoas v1sta como perigosa, em especial nos anos 70 quando os apartamentos ficaram prontos, reforça o medo que o local provoca Trabalhando com dicotomias como o interior do prédio – organizado e limpo, face a um exterior – Sujo e com Impressão de uma confusão permanente, ou moradores satisfeitos frente a uma população assustada e apreensiva, a autora vai mostrando o v1ver no CJK e o v1ver em uma cidade em expansão. Analisa ainda as transformações que o projeto trazia sobre o morar e como elas foram sendo alteradas ao longo dos anos e usos que os prédios tiveram As fachadas de v1dro fazem deste um panóptico ao avesso onde a cidade controla o interior.

A leitura do livro é int1gante pois a partir da análise de um monumento a autora consegue traçar a história de um país. O texto é de leitura fluente e agradável e interliga análises macro e micro, revelando na concretude como a cidade, através do granito e concreto, expressa os valores soc1a1s dominantes. Mostra ainda como a atuação de múltiplos atores interfere, altera e red1rec1ona os monumentos construídos em ruínas virtuais. A Torre Kubitschek é cicatriz v1sível na modernidade.

Ana Lúcia Duarte Lanna – Professora da FAU-USP e doutora em História Social pela USP.

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Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia – DEL PRIORI (VH)

DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1993.  Resenha de: DANTAS, Mariana Libãnio de Rezende. Varia História, Belo Horizonte, v.10, n.13, p. 172-175, jun., 1994.

“Este estudo apenas tentou abrir uma janela para a história social da mulher. Nele, procurei desvendar os mais salientes papéis da mulher na colônia, para descobrir que sentido elas lhe davam. Ou ainda, avaliar como os tais papéis funcionavam para endossar a ordem social proposta pelas instâncias de poder, ou, no plano oposto, para promover mudanças nesse sistema. além de incentivar rupturas e resistências. ” [ Del Priore, 1993]

Como a própria autora especifica nesse trecho retirado da conclusão de seu livro, esta obra vai procurar delinear o modo como a mulher se inseria na realidade social do Brasil colônia, quais papéis ela assumia, qual era a sua função social – função esta ditada pelos discursos normativos presentes e conjugados neste dado momento histórico – e quais eram seus comportamentos, !alas e gestos que nos permitem entrever o seu posicionamento em relação a esta sua existência ( sua aceitação ou sua recusa e a maneira como os demonstrava ).

Ao se propor este objetivo a autora vai mostrar estar em ressonância com a tendência atual de uma historiografia ‘francesa (ou poderíamos estender isto a uma historiografia mundial?) que vem tratando da mulher. Como bem nos mostra Bernard LePetit na introdução que escreveu para uma série de quatro artigos que visam criticar a obra Histolre des Femmes en Occidenl – organizada por Geroges Ouby e Michelle Perrot – publicada em um dos últimos exemplares da Revista dos Annales, não cabe mais se limitar a tratar a mulher na história como parte abstrata de um contexto mais geral, ajustando a sua história a uma já configurada história econômica, política ou social essencialmente masculino. O que ele vai propor, e os demais autores vão reforçar, é que os historiadores que se  detiverem sobre esta questão devem buscar tratá-la estabelecendo como foco central a mulher – o que implica não somente elegê-la como objeto  estudo mas buscá-la como sujeito de sua própria história e procurar entendê-la e ao mundo que a cerca a partir da interação de ambos.

Tendo em vista esta “proposta” de trabalho podemos identificar ao longo da leitura do texto a apreensão, por parte da autora, de três papéis específicos estabelecidos para a mulher nesse período estudado por ela, que abrange os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX: o papel de esposa, o papel de mãe e finalmente, e em estreita relação com a concretização desses dois. o papel de transmissora e fixadora dos ideais e de uma moral católico-cristãos. Assim, partindo de dois discursos fundamentais, que a autora considera como tendo sido os dois musculosos instrumentos de ação acionados para O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais, o discurso sobre padr6es ideais de comportamento, difundido por moralistas, pregadores e confessores e fruto, em grande parte, das decis6es tomadas pela Igreja durante a reforma católica e de um projeto civilizatório que inundava a Europa renascentista; e o discurso normativo médico que, procurando discorrer sobre o funcionamento do corpo feminino, acaba por endossar e difundir uma concepção deste como destinado à procriação, a autora vai resgatando a maneira pela qual esta imagem da mulher vai sendo construída e firmada, não somente na mentalidade daquela sociedade como, também, na visão que a própria mulher tinha de si mesma.

Mas, se por um lado temos o que se mostra como sendo o idealizado pela época, por outro temos o que era praticado na época. Mary Del Priore nos apresenta, portanto, um mundo dicotômico, polarizado, onde o que propunha (ou impunha) o discurso masculino (religiosos, civilizador ou médico) tinha como opositor a realidade social desse mundo colonial, fruto de uma grande miscigenação de culturas, crenças e comportamentos. testemunha de necessidades que muitas vezes não condiziam com o que procurava estabelecer tais discursos e aliado de práticas e costumes que fugiam a estes ditames. E dentro dessa realidade “a-ser-normatizada” surgia a própria atitude dessas mulheres: que se apresentava como uma resposta mais coerente às imposições dessa realidade do que seria aquela desejada, pregada ou recomendada pelos seus adestradores. O texto da autora vai se basear, portanto, nessa polaridade e, ao mesmo tempo em que procura mostrar a concretização da mulher ideal ela nos mostra o forjamento da imagem da mulher condenada, aquela que se nega a ser esposa, que exerce a maternidade de uma maneira distoante da desejada pela Igreja e pelo Estado e que é incapaz de transmitir uma tradição católico-cristã por ser ela própria urna transgressora desta tradição, em suma, ela procura mostrar como essa mesma sociedade, que procura estabelecer os moldes da mulher ideal, vai forjar a imagem da “puta” para, através desta polarização radical, poder impor mais eficientemente seu projeta de adestramento da mulher.

Enfim, procurando entender e captar essa mulher presente no Brasil colônia, Mary Del Priore envereda pela literatura narmatizadora de quatro séculos buscando nas escritos teológicos, moralizantes e médicos da Europa, como também alguns produzidos no Brasil, o olhar masculino sobre a mulher e as intenções masculinas com relação a este sexo implícitas nesse “olhar”. E numa tentativa de resgatar essa ”mulher” ela vai percorrer o que a passado nos largou de indícios sobre ela: os testamentos, os autos de divórcio, as receitas de “remédios”, as crenças e tradições femininas. os relatos de viajantes e demais testemunhas que tiveram algum convívio com ela.

Através desse seu rastreamento ela nos deixa um retrato que, apesar de pouco nítido, nos permite perceber uma mulher que aceitou ser uma esposa obediente e submissa. que se rendeu à sua função de mãe e, para tanto, sofreu imensamente as dores do pano, sentiu um enorme medo e uma grande insegurança, que viveu permanentemente entre a vida e a morte (seja a sua seja a de seus filhos), que teve que negar sua própria identidade em prol de seus rebentos, de seu marido, do recato e da boa conduta moral, que abriu mão da sua sexualidade e do prazer e que finalmente acabou se adequando ao que a Igreja e a sociedade exigiam dela. Mas se observarmos bem esse mesmo retrato vamos perceber que essa mesma mulher era dada a agir, de vez em quando, de uma maneira nada “recomendável”, que era protagonista de “histórias de ‘amor-demasiada”‘, que se permitia viver amancebada ou concubinada, que criava suas filhas para venderem seus corpos como ela o fazia, que era detentora e transmissora de um saber considerado como feitiçaria ou bruxaria, que se recusava a ser mãe e abortava, abandonava ou matava seus filhos e, enfim, que apesar de todos os esforços masculinos para a controlarem e adestrarem, era muitas vezes “senhora absoluta” de suas casa e de seu corpo.

É essa mulher que a autora procura apreender e é através dessa mulher que ela procura delinear a trajetória histórica que marcou a vida da mulher desde a fundação da col6nia até a sociedade oitocentista – quando o papel social da mulher se apresenta melhor delimitado e esta se mostra melhor adequada a ele e mais nitidamente situada na sociedade brasileira – e é através dela, ainda, que ela procura entender a origem de uma certa imagem de mãe e de mulher que se mostra presente no imaginário de milhões de brasileiros ainda nos nossos dias. Mas será que, no final das contas, este seu trabalho responde a questão que ela se propôs, ou seja, responde a pergunta “Quem somos nós”? A autora vai, indubitavelmente, “abrir uma janela para a história social da mulher” na medida em que instaura um questionamento a cerca da origem desta mulher brasileira, esposa e mãe, mas será que na tentativa de dar conta destas questões ela não cai numa generalização e numa abstração ao tentar resgatar uma imagem de mulher – acabando, inclusive, por endossar a inevitabilidade a configuração feminina? Assim, ao trabalhar com o discurso dominante e buscar o modo como este interage com a mulher ela vai delineando uma imagem, u um retrato, desta mulher que vai ser sustentada por exemplos ilustra1ivo., deixando sempre a impressão de que a autora pode estar certa ou ela pode  simplesmente, ter “topado” com os exemplos “certos” !

Mas, independentemente de qualquer critica que possamos formular a esta obra · fica a certeza de sua indiscutível importância pois ao procurar desvendar a origem e formação desse estereótipo Mary Dei Priore nos fornece o conheci menta necessário ao entendimento de certos fatores que até os nossos dias vêm marcando negativamente o destino da mulher brasileira. Nos remetendo ao nosso passado a autora nos permite entender melhor os elementos que compusseram e continuam compondo a nossa condição de mulher ~· assim. nos permite compreender como somos, na verdade, uma construção fruto de ideais de uma época passada, e, assim, ela acaba nos entregando a possibilidade de nos “reconstruirmos”.

Mariana Libãnio de Rezende Dantas – Bolsista de iniciação científica do CNPq. Aluna do curso de História da UFMG.

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Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura – FUNARI (VH)

FUNARI, Pedro Paulo. Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.9, n.12, p. 154-155, dez., 1993.

Os estudiosos da história vêm, há muito tempo, ampliando sensibilidade em relação aos sinais do passado que chegaram até nós, trazendo seu testemunho acerca de outras organizações sociais.

O historiador francês Lucien Febvre alertou, num texto de 1949, para a 1mportancra dessa abertura da noção do documento histórico: os documentos escritos têm grande utilidade na pesquisa. Porém, sua ausência não deve impossibilitar tal trabalho. Também os signos, as palavras, as paisagens e as formas dos campos, ou seja, tudo o que traga inscrita a ação humana serve como documento ao historiador hábil e perspicaz.

É esta criatividade na busca de fontes que faz da obra de Pedro Paulo Funari um texto essencial para os leitores que s interessam pelas várias possibilidades abertas pela construção do passado histórico. No caso, a Antigüidade Clássica é analisada a partir de um aspecto inédito, o que leva o autor a falar em uma outra Antiguidade. A cultura popular, suas manifestações esquecidas e desprezadas durante tantos séculos- quando só uma parte da cultura clássica fascinou e serviu de modelo à cultura ocidental moderna – é o tema de reflexão da obra.

Na ausência de documentos escritos tradicionais, o autor recupera as pichações nos muros e paredes das cidades antigas. A maior parte da documentação foi levantada em Pompéia, cidade onde uma catástrofe vulcânica Preveniu a destruição desses sinais. A forma de lidar com os grafites mostra-se tão original quanto a sua escolha como documentação: Funari não se reduz a desvendar as palavras, frases e poesias inscritas, mas analisa a expressividade iconográfica dos sinais gráficos, mostrando a excelência artística dos autores anônimos e, talvez o mais importante para o olhar do historiador, a forma através da qual esses pichadores relacionavam-se com as palavras.

No seu intento de fugir a uma história parcial, que privilegia apenas uma versão construída pelas elites dominantes da época, o autor utiliza os grafites como monumentos: são sinais de um assado construídos dentro de situações de conflito, ambiguidades, sonhos e esperanças, protestos e indignações. Entretanto, a obra continua apoiando-se num dos pilares da historiografia tradicional: o que move a pesquisa é, segundo as palavras de Funari, reconhecer-se “nos gregos e nos romanos e perceber como eles têm a ver com a gente”. Historiadores dedicados ao período clássico – como Finley, Vidal-Naquet, Vernant, M. Dettienne e Paul Veyne – renovaram a abordagem historiográfica justamente pela vertente oposta. Destacam a diferença de valores, de mentalidade, de organização social. Ressaltam o caráter diverso dessas sociedades, renunciando-se às categorias eternas e continuidades enganadoras. Como afirma o filósofo C. Castoriadis, o que precisamente nos interessa na história é nossa “alteridade autêntica, os outros possíveis do homem em sua singularidade absoluta”.

Outro aspecto passível de discussão pode ser apontado na visão dicotômica transmitida na separação cultura popular/cultura erudita. A cultura erudita é classificada como “continuadora imóvel da tradição reprodutora de um passado clássico”; a minoria erudita é inativa; a pintura apreciada pela elite caracteriza-se, para o autor, pela ”continuidade na ausência de rupturas, na sensação de imutabilidade”. Funari apresenta o leitor uma cultura clássica erudita completamente estática e desprezível. Por outro lado, a cultura popular é dinâmica, criativa, revestida de caráter multifacetado e contestatório.

Entretanto, não é tão fácil dividir, cultura erudita e popular, já que há um movimento constante de recriações e apropriações, onde pólos aparentemente opostos se interpenetram. Além disso, é inútil negar a riqueza da cultura clássica que o autor classifica como erudita. Como desprezar (só para citar alguns exemplos) Ésquilo, Sófoles, Hesíodo, Heródoto, Virgílio e tantos outros? A nova história precisa exorcisar o perigo da adesão às novidades simplificadoras, como a de que tudo o que foi criado pelos “vencidos” seja “bom”, sob pena d cair no moralismo românico.

Paralelamente à necessidade de debater tais posições contidas no livro, afirma-se o valor de sua leitura. Dedicado a um público Jovem, estimulará, sem margem de dúvida, o fascínio pelo estudo da história. Acreditamos que seu uso, em turmas de jovens estudantes, poderá contribuir imensamente para levar, ao ensino de segundo grau, uma história renovada, simples sem ser simplista, interessante e, finalmente, instigante.

Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH·UFMG.

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Trajetória política do Brasil. 1500-1964 – IGLÉSIAS (VH)

IGLÉSIAS, Francisco. Trajetória política do Brasil. 1500-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Resenha de: ANASTASIA, Carla Maria Junho. Varia História, Belo Horizonte, v.9, n.12, p. 156-157, dez., 1993.

Aqueles que têm o privilégio de conhecer a intimidade compartilhada com a História pelo Prof. Francisco lglésias; seu trânsito, com singular competência, pelas ciências sociais; sua fina ironia, não se surpreenderam com as qualidades de Trajetória política do Brasil, livro que vem reiterar a posição do autor, considerado um dos maiores historiadores do pais.

Trajetória política do Brasil é obra da mais refinada tradição historiográfica e, embora recentemente publicada, já se coloca ao lado dos clássicos da História do Brasil. A identificação do trabalho do Prof. Francisco lglésias com as obras de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., e com o magistral Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, é imediata.

Na introdução, o autor explícita a necessidade do trato rigoroso das questões metodológicas. Enfatiza as imprescindíveis conexões da história política com a sociologia, economia e cultura. Pelo caráter abrangente de seu texto, ressalta somente as invocar para caracterizar o sentido geral da obra. Tratando dos cortes temporal e temático – que permitem o estudo da história por partes afirma fazer “dupla história especial; no espaço e no assunto”. História especial no espaço ao tratar especificamente do Brasil; história especial nos “aspectos do real”, ao privilegiar o político.

Com rara habilidade, o autor desenha a trajetória política do Brasil do período colonial à fase imediatamente anterior ao golpe político militar de 1964. A luz dos ensinamentos de Marc Bloch, explica essa trajetória do lugar onde ela se torna inteligível – como parte de uma totalidade – a história geral. Reitera o autor que o pleno sentido da história política do Brasil” … só se esclarece no relacionamento das partes, com as quais se forma um sistema, configurador de várias fisionomias'”.

Assim, ao analisar o período colonial, compara a política administrativa implementada no Brasil por Portugal com o quadro político delineado nas colônias espanholas e ressalta as relações que se estabelecem entre os estados europeus. Emerge, nessa primeira parte da obra, o Brasil inserido em um sistema mais amplo, que se convencionou denominar Antigo Sistema Colonial.

O mesmo procedimento é adotado na Parte 11 na qual o autor examina a transição do mundo colonial para o Brasil independente. Novamente aparece o un1verso europeu do Iluminismo, do Racionalismo, das políticas agressivas das potências do além-mar, o papel desempenhado por Portugal e Espanha. Situa-se nesta intrincada rede de relações políticas a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil e o final da transição para a Monarquia.

Na terceira parte, o autor apresenta as singularidades do regime monárquico brasileiro em uma América Latina republicana. A análise se torna mais complexa à medida em que avança o processo de nacionalização da independência. Apesar da maior complexidade do texto, é a questão da dicotomia centralização versus descentralização, decisiva no período colonial, que continua a informar o exame do processo político pelo autor. E assim terá seu próprio lugar na análise do federalismo na República.

Na Parte IV, ao examinar o período republicano, surgem, com mais força as especificidades da trajetória política brasileira. Sem dúvida, a preocupação central do texto e o ponto mais alto do trabalho.

Deve ser ressaltado como o cuidadoso trato do autor com as palavras consegue transmitir ao leitor fortes impressões. Não há como não antecipar àqueles que ainda não tiveram o livro nas mãos. a presença, na obra, de vigorosos perfis de homens públicos da República e a densidade da análise de momentos cruciais deste período. A fundação da República e Floriano, homem que se deixou tomar pela paixão política; Juscelino Kubitschek e suas realizações, pelos quais o autor deixa transparecer grande admiração; Jânio Quadros, sua estranha personalidade e seu ambíguo comportamento político são exemplos de virtudes, circunstâncias e acasos, cuja descrição impressiona vivamente o leitor.

O trabalho do Prof. Francisco lglésias, ao contrário dos pesados textos acadêmicos, é de leitura saborosa. Não sem razão, em número alentado de páginas constam apenas vinte e sete notas.

Ao final, o autor apresenta, além de uma cronologia, bibliografia selecionada e comentada. E é sem surpresa que se encontra, com algumas poucas exceções, as obras clássicas da historiografia brasileira nesta síntese da história do Brasil que já nasce clássica.

O autor afirma que seu livro é um ” … texto a ser lido por qualquer pessoa culta'”. Essas pessoas e, em especial, os estudiosos da história do Brasil certamente terão um enorme prazer ao ler Trajetória política do Brasil.

Carla Maria Junho Anastasia – Professora do Departamento de História- UFMG.

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Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913) – LITVAK (VH)

LITVAK, Lily. Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913). Barcelona, Antoni Bosch Editor, 1981. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.5, n.9, p. 185-187, jun., 1989.

“No se presenta un plan prefabricado, sino ideas

audaces y heterodoxas, porque exigían que cada

hombre fuese único e uno dentre muchos” (p. 402)

Musa Libertaria cumpre, segundo a concepção benjaminiana, a função da obra do historiador, despertando no passado as “centelhas da esperança”. A autora reflete sobre o papal da arte como forma de luta. Alguns artistas consagraram-se e imortalizaram-se como Tolstoi, Picasso, Pissaro. Muitos, entretanto, permaneceram na obscuridade.

Lily Litvak dedica seu livro ao estudo desses artistas ocultos, destacando os anarquistas espanh6is. Chamando a atenção para a escassez de obras sobre a vida cultural e literária dos anarquistas, afirma que estes valorizavam a obra de arte como parte inseparável da propaganda, atribuindo-lhe um papel revolucionário. As criações artísticas de tendência libertaria se inspiravam nas vozes silenciadas e nas vidas dos despossuídos.

0 anonimato em que permaneceram tais obras e a derrota sofrida pelos anarquistas espanhóis não justificariam que o tema permanecesse esquecido. Como afirma a pr6pria autora, existem “tristes êxitos e her6icas derrotas”. Quanto a questão da eficácia ou não da atuação anarquista como arma contra a dominação, sempre se costuma lembrar seus fracassos. Porém, sua efetividade encontrava-se em sua própria existência, “enquanto testemunho da rebeldia humana contra a opressão e a injustiça” (p. 399).

Nota-se a forte influência de W, Benjamin sobre o propósito da obra em questionar o domínio dos vitoriosos e estabelecer uma relação de empatia com os que foram vencidos e derrotados.

0 estudo das manifestações artísticas libertarias não se faz de maneira simplesmente descritiva, mas esquadrinhando-se, com perspicácia, inúmeros pontos básicos e problemas fundamentais presentes no ideário anarquista.

0 levantamento dos temas a serem abordados no decorrer da obra é feito a partir da análise das imagens ficcionais construídas na literatura, nas gravuras, desenhos e pinturas de inspiração libertária. Assim, é através de poemas, romances e canções que se reconstrói, por exemplo, a concepção de natureza comum entre os libertários: a natureza harmoniosa, fonte de exemplos para a regeneração da sociedade humana, equilíbrio ao qual retornaria o homem na sociedade anárquica. São reproduzidas gravuras de jornais anarquistas, dentre alas uma que exemplifica a vida anarquista através da imagem de uma família trabalhando no campo: esta presente a noção de continuidade do labor na vida do homem, da beleza moral do trabalho e da premiação do esforço humano pela natureza, vista como uma mãe serena e fecunda (p. 27 e 28).

As figuras do padre, do capitalista, do miserável, do revolucionário, etc., eram apresentadas pelos anarquistas de forma estereotipada, tornando fácil a identificação. A autora destaca o expressionismo presente nestas caricaturas e a forma como as mensagens são’ comunicadas intensa e vibrantemente. 0 inimigo é simbolizado através de objetos (crucifixos, espadas, coroas, etc.), como animais ferozes (cobras, serpentes, monstros) ou através da ênfase a aspectos burlescos (burgueses gordos, avaros amarelados com um riso falso nos lábios, etc.). Os miseráveis são representados como possuidores de grande beleza moral e dignidade. A imagem do operário militante revela coragem, luta, rosto nobre, fronte larga. Na linguagem, como na construção das personagens, nada é sutil, tudo é manifesto, claro e simples. A emotividade transparece no use frequente de expressões extravagantes, de palavras de sonoridade significativa, repetições, exclamações e interrogações.

Este excessivo maniqueísmo levava a uma estética dominada por contrastes absolutos. 0 realismo anarquista era exagerado e desmedido, buscando demonstrar a todo o custo uma verdade inquestionável, cujo conhecimento levaria ao caminho da anarquia.

Analisando a linguagem e a construção de imagens ficcionais pelo realismo anarquista, Lily Litvak faz uma instigante reflexão sobre temas importantes do ideário anarquista e a extensão do conhecimento científico; o pacifismo; a valorização do potencial revolucionário dos miseráveis, criminosos, mulheres e camponeses; a preocupação com a criação de uma estética revolucionaria; a representação do caráter digno do trabalho (desvirtuado pela sociedade capitalista); o fervor religioso presente na crença no caráter regenerador da doutrina anarquista; visões da utopia, dentre outros.

Além da literatura e da pintura, a autora também examina outras atividades culturais. A imprensa é uma delas. 0 papel alternativo da imprensa anarquista era valorizado pois divulgava idéias, fatos e eventos silenciados pela imprensa burguesa. Os libertários buscavam organizar um sistema eficiente de distribuição. Os jornais lidavam com dois tipos de mensagens, as escritas e as tipográficas. As disposições tipográficas, na busca de impacto, traziam cores agressivas e simbólicas. Gravuras complementavam o texto, buscando despertar emoções. A imprensa libertaria intencionava ser um canal de comunicação alternativo que criticasse, desmascarasse e negasse a linguagem e os canais institucionalizados pela burguesia, contribuindo para a pratica de uma cultura revolucionaria.

0 teatro libertário é analisado em seu caráter popular (à medida em que era facilmente compreensível pela massa, por retratar com simplicidade seu pr6prio cotidiano) e realista medida em que procurava mostrar verdades absolutas que transcendiam a própria realidade “palpável”). A educação e a cultura também eram muito estimuladas. Várias revistas foram criadas, procurava-se facilitar o acesso a livros, jornais, etc.

A partir da avaliação de todas estas atividades, conclui-se que existia uma verdadeira pratica cultural levada a frente pelos anarquistas. Estes, opondo-se cultura burguesa, pretendiam forjar outros códigos linguísticos e novos veículos de comunicação (p. 283).

A concepção corrente entre os anarquistas espanhóis sobre a arte também objeto de reflexão da autora: a arte como forma de luta, como meio de despertar as consciências e o espírito de rebeldia. Relacionado a vida cotidiana, o ato criador era mais valorizado que o produto final, pois as obras artísticas eram vistas como uma forma de ação direta. Desmitificava-se as obras artísticas consagradas, assim como os museus, exposic6es, etc.

Lily Litvak realiza um estudo esclarecedor do anarquismo espanhol, utilizando livros, poemas, canções e gravuras. Investigando as especificidades desse movimento, consegue trazer ao leitor uma maior compreensão das ideias, esperanças e desejos libertários.

Regina Horta Duarte

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Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930 – RAGO (VH)

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930. Editora Paz e Terra, 1985. Resenha de: FARIA Maria Auxiliadora. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.147-148, jun., 1986.

A convite, do prefaciador Edgar de Decca e da própria Autora. participei da viagem. E o fiz com gosto por estar, como outros, preocupada em resgatar na tecitura histórica da República Velha práticas cotidianas do operariado brasileiro.

No Brasil, esta tentativa é nova. E como tudo que é novo, inquietante. Ao se tentar por exemplo, reconstituir os processos de morar dos trabalhadores. suas formas de lazer e de educação, sua sexualidade e mesmo as sutilezas de suas resistências frente às diversas instâncias do Poder, revela-se o até então irrevelado. Redimensiona-se o papel histórico da classe operária, recuperando-a não em suas generalizações mas em suas particularidades, ou no seu cotidiano.

Para penetrar nesse mundo novo necessário se faz, tal como propõe a Autora, empreender uma viagem. Todavia, não se pode levar na bagagem preconceitos há muito arraigados: que a classe operária brasileira da Primeira República era social e politicamente atrasada; que os anarquistas não propuzeram nenhuma forma organizada de resistência; e além de outras ”verdades consagradas” a de que as classes dirigentes, ocupadas na manutenção do Estado Oligárquico cujo sustentáculo econômico era o setor agrário-exportador, não construiram, a nível do espaço urbano em geral e da fábrica em particular, dispositivos especiais de domesticação do operariado.

O cenário é quase sempre a cidade de São Paulo, apesar de o subtítulo referir a: Brasil 1890·1930. O objeto de estudo: o cotidiano do operariado e, em especial dos adeptos da doutrina anarquista. E assim que Margareteh Rago tenta, e com êxito, desvendar as inúmeras formas utilizadas no processo de adestramento dos operários para torná-los mais produtivos, mais dóceis e mais disciplinados. Aptos a desfrutar, portanto, de um espaço – a cidade- que longe de ser o local mesmo do conflito deveria tornar-se o da harmonia.

No sumário do lívro, mais que um índice, um apelo da Autora, um chamamento à leitura: “Fábrica satânica/fábrica higiênica- A colonização da mulher -A preservação da infância- A desodorização do espaço urbano”. Introduz em cada um desses capítulos não apenas emocionantes relatos fundados em dados empíricos, mas também e principalmente, ricas interpretações subsidiadas por pensadores como E.P. Thompson e Michel Foucault. Utiliza-se também de O. Montgornery e Mário Tronti. quando se preocupa em analisar práticas explícitas ou veladas de resistência operária. Assim, a Autora contribui decisivamente à construção de uma nova historiografia sobre a classe operária e o movimento anarquista na Primeira República.

Mas se a contribuição é decisiva, não se pode negar que o arrojo de M. Rago ao penetrar “no interior das fábricas, dos bairros e vilas operárias do inicio da industrialização do país” para atingir os objetivos propostos, resultou num certo comprometimento da análise no tocante a temas polêmicos. como sejam: o mito do amor materno, o aleitamento infantil, o problema do menor abandonado ou mesmo a questão da segregação social do espaço urbano, que ela preferiu chamar de “desodorização do espaço”. A ideologizaçâo que atribui ao saber médico, leva o leitor menos atento a repudiar a evolução da medicina e a introdução de técnicas sanitárias e higiências no espaço urbano. Assim também, a atribuir à medicina preventiva, e ao incentivo à amamentação um lugar de peças decisivas num plano diabólicamente tramado no sentido exclusivo de domesticar a mulher operária e preparar cidadãos saudáveis e aptos a se integrarem ao mercado de trabalho. Ainda sobre a mulher conclui, à pág. 206, que o projeto de domesticação da classe operária redefiniu papéis e que a ela (mulher) “foi designado o triste destino de vigilante do lar e de mãe de família. Todos os comportamentos que se produziram fora destes parâmetros recobriram-se do estigma da culpabilidade e da imoralidade. Entre as figuras da Santa Maria e da Eva, nenhum espaço foi permitido à mulher. a despeito de todas as solicitações que o mundo industrial lançava sobre ela”.

Da idéia de “triste destino” talvez lhe tenha ocorrido outra, que deu título ao livro: “Do cabaré ao lar”, ou aí estaria o duplo de que tanto fala o prefaciador? Como ele mesmo afirma. que a liberdade do literato não é a mesma do hitoriador, ocorreu-me o que se contava no meu tempo de estudante: Um aluno, não sei bem se de História ou de Sociologia, teria ido à biblioteca em busca do livro “Raizes do Brasil” do saudoso Sérgio Buarque de Holanda. Não o encontrando na prateleira apropriada, pediu auxilio a uma funcionária que lhe passou a seguinte advertência:- “Você está equivocado. Esse livro deve ser procurado na seção destinada às obras de botânica”.

Quem empreender com a Autora a viagem proposta certamente colocará o livro na prateleira adequada, e o destacará como obra inconfundível. A densídade com que desvenda a trama do cotidiano operário apesar de pequenos desvios de percurso, acaba por desmistificar algumas verdades. Entre outras, a de que, apesar de todas as tentativas de silenciamento, operários em geral e anarquistas em particular, foram capazes de apresentar formas: de resistência ao conjunto de normas disciplinares que lhes foram impostas nos primeiros anos de industrialização brasileira.

Maria Auxiliadora Faria – Professora Adjunta do Departamento de História da FAACH/UFMG.

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Para Um Novo Conceito de Idade Média | Jacques Le Goff

LE GOFF, Jacques. Para Um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. Resenha de: RIBEIRO, Daniel Valle. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 144-146, jun., 1986.

O trabalho de Jacques Le Goff, cuja edição original apareceu em 1979 com o título Pour Un Outre Moyen Ager é expressiva contribuição ao estudo da Idade Média. O livro reúne vários artigos do Autor sobre o tempo, o trabalho e a cultura no ocidente, merecendo, portanto, a atenção daqueles que se interessam pelo assunto.

Em oposição à idéia dos humanistas do Renascimento, Jacques Le Goff não vê na Idade Média um vazio no fluxo do tempo, e sim um período de grande impulso criador. Para ele,, como de resto para os que têm noção desta época, o medievo é idade seminal, fase de gestação da sociedade moderna e civilização ainda viva “pelo que criou de essencial nas nossas estruturas sociais e mentais”. Leia Mais

Condição Feminina – Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias têxteis – NEVES (VH)

NEVES, Magda Maria Bello. Condição Feminina – Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias têxteis. Tese de Mestrado. DCP/UFMG. Resenha de: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 139-143, jun., 1986.

A mulher, as condições de trabalho da mulher, a dupla jornada de trabalho, a mulher dona de casa, a mulher mãe, a mulher profissional, a mulher operária, as condições especiais nas quais a mulher é contratada, são vários dos muitos aspectos através dos quais a questão feminina tem sido tratada. A literatura que trata do tema expande-se a um ritmo cada vez mais crescente. São depoimentos individuais de vida, são romances, são teses acadêmicas, são poesias, são artigos de revistas e jornais. especializados ou não. E um fenômeno mundial. A mulher adquiriu um estatuto novo e um’ reconhecimento diferenciado que cada dia se torna mais evidente. O trato â questão feminina S · e amplia e ultrapassa o mundo dos impressos. Os meios de comunicação audio-visual passam a apresentar programações inteiras e diárias que tratam com exclusividade da questão feminina. Tanto nos meios de comunicação impressos ·como nos audio-visuais o tratamento do tema adquire uma característica inovada. Questões sexuais, relacionamento afetivo, relação com os filhos, maternidade. controle de natalidade, profissão, tarefas domésticas, moda … são temas tratados permanentemente pela imprensa falada. televisada e escrita. Outro tipo de publicação que proliferou nos últimos tempos é a imprensa feminista. De alcance e público mais restrito este tipo de publicação tem tido importância vital, como elemento de vanguarda no novo tratamento que a questão feminina exige.

Nesta leva tão ampla de publicações sobre o tema “mulher”, dentre os vários livros acadêmicas publicados e as várias teses defendidas nas universidades surgem alguns trabalhos que contribuem sem dúvida para’ ampliação e aprofundamento da literatura especializada. Este é o caso da tese de Mestrado em Ciência Política defendida por Magda Maria Belfo Neves na UFMG em 1983. Sob o título “condição Feminina -Condição Operária, um estudo de caso sobre operárias texteis”, a autora aborda de forma simples, mas com densidade as questões mais pungentes que compõem o cotodiano das operárias tecelãs. O texto é de uma leveza não comum às pesadas teses acadêmicas normalmente escritas nas universidades. Mesclado de depoimentos das operárias, de citações bibliográficas e de ligeiras análises teóricas a leitura se faz solta sem dificuldades. O caráter descritivo do trabalho facilita seu acesso a um público não universitário, sendo inclusive possível a sua leitura pelas próprias protagonistas da pesquisa, as operárias tecelãs.

Devido a essa facilidade de compreensão do texto, cremos que um objetivo fundamental da Universidade vem a ser atendido pelo trabalho de Magda, ou seja. a produção não só para o público vinculado ao mundo acadêmico, mas também e especificamente para a comunidade na qual a Universidade está inserida.

A ESTRUTURA DO TRABALHO

O texto da tese se divide em uma introdução, quatro capítulos e uma conclusão. No que se refere à reflexões teóricas, a introdução é a parte mais rica desta tese. Aliás, o forte do trabalho não é a parte teórica, sua riqueza e importância maior estão na exaustiva pesquisa empírica levada a cabo pela autora. Ela própria assim define seu trabalho:

” … este trabalho é um estudo monográfico, um estudo de caso, que não têm pretensões de generalizações teóricas, mas sim, de descrever e analisar as condições materiais e cotidianas de um grupo de mulheres, trabalhando numa fábrica de fiação e tecelagem. Enfim, de como se dá a subordinação da mulher operária trabalhando no processo de produção capitalista, o que existe de específico neste processo em relação a mulher”.

As questões teóricas da introdução sustentam-se basicamente em textos de Karl Marx, Taylor, Robert Linhart e Claude Durand(1). Com base na análise e discussão dos conceitos teóricos destes autores Magda redige o pano de fundo sobre o qual se assenta o objeto maior de sua pesquisa, ou seja, analisar a inserção da mulher no processo de trabalho na indústria de fiação e tecelagem. Realizando uma discussão detalhada da conceituação do processo de trabalho, a autora acaba por concluir que além da rotina normal do trabalho operário que oprime indiscriminadamente a homens e mulheres, as condições de trabalho da mulher, são especialmente mais dolorosas, já que, uma série de outros fatores contribuem ainda mais para caracterizar, para elas, uma situação de submissão duplicada. São fatores de ordem política e cultural, que preponderam na sociedade e que são habilmente usados, de forma particular pela fábrica, para seleção, controle e rendimento da força de trabalho feminina ali empregada. Tendo como referência estas reflexões preliminares a autora define o objetivo de seu trabalho da seguinte maneira:

“o objetivo deste trabalho é analisar como se dá nas indústrias de fiação e tecelagem a inserção da mulher no processo de trabalho e. quais os fatores políticos e culturais articulados pela fábrica para subordinar a mulher à divisão sexual do trabalho. Além disto, nos interessa compreender como as mulheres enfrentam essa imposição e esse controle no cotidiano da fábrica”.

Além disso. ultrapassando o mundo do trabalho enquanto puro mecanismo de produção, a autora se propõe, segundo a citação acima, a compreender a reação da mulher frente às condições de trabalho e de vida que lhe são impostas. Se a reação é de passividade e aceitação, se de revolta, ou são impostas. Se a reação é de passividade e aceitação, se de revolta, ou de crítica. Procura também identificar as maneiras através das quais estas reações se expressam.

Para melhor atender aos objetivos propostos por seu trabalho, Magda percorreu uma longa trajetória de pesquisa empírica dentro e fora da fábrica. Uma trajetória na coleta de dados que ultrapassou os limites da academia e penetrou nas emoções das protagonistas de tão importante estudo de caso. Partindo de contatos extra fábrica e usando a fundo a sua sensibilidade e identificação feminina com as operárias entrevistadas, Magda conseguiu conquistar não só a sua confiança, mas também penetrar no cotidiano de suas vidas e melhor compreender, a partir daí, suas dificuldades, anseios, aspirações, alegrias e tristezas O maior mérito do trabalho é exatamente este, sem perder seu caratér sociológico e político, transforma-se por este mesmo caratér adicionado à emoção presente em cada depoimento das operárias num testemunho cheio de vida da dura realidade ,que é o cotidiano da mulher operária tecelã de uma indústria de fiação e tecelagem de Belo Horizonte.

Desenvolvendo um eficaz trabalho de rompimento da dissimulação característica de postura operária em relação ao mundo intelectual, Magda conseguiu que as mulheres falassem livremente de sua experiência de vida e do seu cotidiano. Para tal freqüentou suas casas, e participou de seu cotidiano extra-fábrica. Só depois de vencida esta fase é que a pesquisadora entrou na fábrica, e aí já tendo conquistado na etapa anterior das operárias tecelãs passou a fazer entrevistas no próprio local de trabalho. Tomando como modelo a Enquete Operária de Marx de 1880 a autora entrevistou vinte operárias e dez técnicas administrativas.

No contato extra-fábrica a autora teve a oportunidade de penetrar no uni· verso operário mais amplo, podendo observar e conviver com aspectos como: condições de moradia, de transportes, hábitos de lazer, trabalho doméstico .. , durante três meses utilizou o mesmo transporte coletivo usado pelas tecelãs, percorreu o percurso por elas percorrido na ida e volta para o trabalho, conversou com elas e com seus familiares visitando suas casas inúmeras vezes. Este contato, segundo a própria autora, revestiu-se de um caratér especial marcado inicialmente por um choque ~entre a concepção acadêmica da maior parte da intelectualidade de que o científico se busca em verdades exatas, e as contradições inerentes à vida das tecelãs, contradições estas que ultrapassam em sentimentos e emoções os conceitos dos textos teóricos e manuais acadêmicos.

Neutralizado o choque inicial de dois mundos tão diversos superou-se a primeira etapa da pesquisa e o trabalho no interior da fábrica pôde ser desenvolvido com maior facilidade. A conquista da confiança das operárias já havia sido conseguida, só restava à pesquisadora adaptar-se às condições imperantes no local de trabalho e assim dar início a uma segunda série de entrevistas. A própria autora afirma que as dificuldades de adaptação à fábrica foram inúmeras e o incômodo provocado pelo calor, poeira e barulho, foi seu companheiro permanente durante todo o tempo em que permaneceu no interior da empresa aplicando questionários.

Aplicados os questionários deu por concluída a fase de pesquisa empírica e iniciou então a etapa da redação do texto. Uma: etapa na qual com especial sensibilidade conseguiu compor com rara perfeição um retrato real e completo da vida das operárias tecelãs.

Cinco capítulos alem da Introdução e da Conclusão, compõem o caminho percorrido para a formação de um interessante painel sobre o trabalho e vida das tecelãs da indústria de Fiação e Tecelagem ., A” de Belo Horizonte: São eles : Desenvolvimento Tecnológico e Presença Feminina na Indústria Textil; Divisão Social e Sexual do Trabalho na Fábrica; Processo de Trabalho e Produção; Condição de Trabalho e Saúde do Trabalhador; Politica Salarial e Dupla Jornada de trabalho.

Percorrendo uma vasta bibliografia sobre a presença feminina nas indústrias de fiação e tecelagem{2), Magda utilizou ao máximo os avanços teóricos e conceituais alcançados por estes textos, mas além disso deu um salto de qualidade e desvendou a fundo a condição feminina no trabalho e na vida das operárias tecelãs da indústria ”A”.

Relacionando processo de trabalho com trabalho feminino, e também analisando o grau de desenvolvimento tecnológico alcançado pela empresa nos ·últimos 20 anos, Magda chega a três conclusões: A fábrica não passou por modificações tecnológicas de peso nos últimos 20 anos; a maior parte da força de trabalho ali empregada é composta por pessoas do sexo feminino (de 1300 operários 670 são mulheres); a mão-de-obra feminina é empregada nos trabalhos menos qualificados e de menor remuneração. A justificativa para o emprego desse elevado número de mulheres na fábrica e também para a sua baixa remuneração é bem expressa petas seguintes palavras de um supervisor reproduzidas no texto da Magda: ” … a mulher aceita receber salários baixo, seu salário é de complementação, é uma “ajuda” em casa e, por outro lado, ela está ali esperando para casar, é um emprego provisório, por isso ela aceita mais e reivindica menos;’. É portanto fundamental numa empresa deste tipo o controle dos salários em um nível mais baixo e a certeza de que as reivindicações serão quase inexistentes.

A política desenvolvida pela empresa de se prevenir ao máximo movimentos reivindicatórios dentro da fábrica começa, de acordo com a análise desenvolvida pela autora, a ser colocada em prática já na seleção e contratação de pessoal. Os critérios para a contratação passam por uma rede de amizade e de família. Qualquer pessoa só pode ser contratada se for indicada por outra pessoa que já trabalhou na fábrica, e mais, a preferência de contratação recai sobre familiares dos operários da empresa. Esta estratégia de controle revela-se como sendo de uma eficácia extrema, os compromissos tornam-se pessoais e os contratados têm medo de romper a rede em algum ponto. Ninguém quer comprometer ninguém, perder o emprego ou indicar pessoas que possam comprometê-las negativamente na empresa.

No que diz respeito especificamente à contratação da mulher, a autora aponta mais uma questão que revela o quanto são fortes as artimanhas usadas para se levar as operárias a uma submissão cada vez maior. A estrutura do trabalho na empresa reproduz integralmente a estrutura do patriarcalismo que predomina na sociedade em geral. O Chefe, superior na hierarquia da fábrica, não abre mão de pressionar, com o uso do seu poder de chefia, as moças que ali trabalham. São pressões, na maioria das vezes, revestidas de características sexuais. A operária vê-se pressionada a submeter-se “à autoridade masculina” sob pena de perder o emprego.

Outra questão ressaltada com prioridade pela autora é a posição da mulher na estrutura hierarquica da fábrica. Baseado em argumentos de que mulher é dócil, meiga e paciente a elas são dados trabalhos especiais, normalmente localizados hierarquicamente abaixo daqueles destinados aos homens. Tal situação~ muito bem expressa no depoimento de uma tecelã citado no trabalho:

“… As mulheres na fábrica, apesar de trabalharem muitos anos, estão sempre assim em posição inferior. Mesmo aos homens mais novos, por exemplo, tem ocupado lugares de chefes, encarregados, etc. E a mulher está sempre permanecendo mais baixo. Eles não dão assim muito valor e oportunidade para a mulher”.

Outros aspectos do trabalho da mulher tecelã também são abordados com muita propriedade pela autora. Ela descreve em detalhes o treinamento das operárias, sua jornada de trabalho, suas funções, sua relação com a máquina, seu lazer, sua concepção de vida, suas esperanças. Além disso retrata exaustivamente todo o processo de produção desde a preparação dos fios, até o acabamento final do tecido. Um retrato inteiro da realidade sofrida das operárias, marcado pelo testemunho de fiandeiras, tecelãs e bobinistas.

Para compor melhor o quadro a autora dedica um capítulo inteiro de seu trabalho a analisar as condições de saúde e trabalho das tecelãs. Condições de trabalho cuja composição básica é o barulho, a poeira e o calor. Uma mescla de elementos que provoca nervosismo, alergia, constantes irritações e inflamações de garganta, tuberculose, sinusite, dor de cabeça, doenças na pele, palpitação, inchaço de perna e envelhecimento precoce. Os depoimentos das tecelãs colhidos pela pesquisadora, são pungentes e revelam senão uma situação de impotência das trabalhadoras diante das condições de trabalho que lhes são impostas pelo menos um misto de perplexidade e de revolta.

Além dessas condições aviltantes que as tecelãs enfrentam no seu dia a dia da empresa, condições. que as levam a um esgotamento crônico, outros fatores também contribuem para o seu envelhecimento precoce. Os salários· são baixos, e portanto insatisfatórios e insuficientes. O trabalho é duplo, quando finda a jornada de trabalho na fábrica a operária se vê obrigada a se envolver no trabalho doméstico. Inicia-se então, a jornada da lavação de roupa, preparo de ali· mentes, cuidado com os filhos. E a tecelã que tem filhos é a que mais se sacrifica. Optando pelo trabalho noturno, ela tem o dia (“livre”) para os afazeres domésticos. A luta dessa trabalhadora é incessante e continua. Seu fazer é praticamente inexistente e só lhe resta sonhar, sonhar aliás, por sua condição de mulher operária jamais alcançará.

A conclusão do trabalho é curta, e esta aliás tem sido, infelizmente a norma dos trabalhos acadêmicos. No entanto, apesar das poucas páginas a ela dedicada, a autora consegue sintetizar com bastante eficácia o que é a vida e o trabalho da tecelã da Indústria “A” de Minas Gerais. Uma vida e um trabalho onde o patriarcalismo se une ao capitalismo, para através da subordinação da mulher operária, alcançar lucros maiores para a empresa.

Notas

1 MARX, Karl – O Capital. Rio, Civilização Brasileira, s. d. (Livro 1).

2 A bibliografia usada compõe-se basicamente dos seguintes textos, dentre outros:

Referências

TAYLOR, F. W.- Princípios de Administração Científica. São Paulo. Atlas, 7ª ed., 1970.

CORIAT, Benjamin – d’ Atelier et Ie Chronométre. Paris, Christian Boujours editeur.

DURANO, Claude- Le Travaíl Enchaine. Paris. Seuil, 1978.

UNHART, Robert- I’Organization du Travail lndustriel. Rio, mimeo., 1980.

CORIAT, Benjamin- Ciência, Técnica e Capital. Madrid, Blume, 1976.

RODRIGUES, Jessita Martins – A Mulher Operária – Um estudo sobre tecelãs. São Paulo. Hucitec, 1979.

ACECO, LIliana – La Muyer en el Processo de trabajo- una fábrica têxtil– ANPOCS. 1980.

PEREIRA. O coração da fábrica- Um estudo de casos entre operárias têxteis. Rio, Paz e Terra, 1981.

PENA, Maria Valéria Junho –Mulheres e trabalhadoras- Presença Feminina na Constituição do Sistema Fabril. Rio, Paz e Terra. 1981.

Lucília de Almeida Neves Delgado – Professora Adjunto do Departamento de História da FAACH/UFMG.

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Varia Historia | UFMG | 1985

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A Varia Historia (Belo Horizonte, 1985-) foi fundada como Revista do Departamento de História , da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Em 1993, após consolidar sua importância no meio acadêmico brasileiro, a revista lançou uma nova era, com o objetivo de ampliar seu público e melhorar sua qualidade, com um novo título.

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