Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno – RYAN (RFA)

RYAN, Bartholomew. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.905-915, jul./dez, 2014.

Trilhada quase que exclusivamente sob uma linha mestra que desemboca em uma única vereda, a pesquisa sobre Sören Kierkegaard é demasiadamente pautada ora pelas migalhas que o autor dinamarquês legou, ora pelo interesse que ricocheteia sobre Kierkegaard. Explica-se: certa linha de pesquisa é ainda muito adstrita aos termos kierkegaardianos, realizando uma espécie de exegese textual que, embora essencial, por vezes apresenta limitação pelos próprios horizontes delineados; outra linha de pesquisa tangencia a obra de Kierkegaard quase como que por acidente, vindo a buscar nos textos do pensador de Copenhague uma solução específica e, não raramente, distorcida do autor. Assim, por um lado ocorre a consideração de categorias filosóficas engendradas por Kierkegaard — como instante, salto, angústia, desespero, liberdade, etc. —, por outro lado há uma aproximação capciosa, em que tanto a teologia — em um embate por certa sustentação da fé cristã por via de uma reforma — quanto a filosofia — pela influência exercida sobre Heidegger, Jaspers e outros — acabam gerando uma pesquisa circular e incapaz de corresponder ao devir da obra kierkegaardiana.

O grande mérito de Bartholomew Ryan com seu livro Kierkegaard’s Indirect Politics – Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno é deslocar, desde o início, a pesquisa realizada em torno da obra de Kierkegaard. Para além dos termos já marcadamente conhecidos acerca da produção kierkegaardiana, tais como existência, subjetividade ou religiosidade, Ryan arrisca-se na abordagem de uma temática pouco atribuída a Kierkegaard, ou seja, a questão política. E, conjuntamente, como o próprio título indica, faz essa abordagem temática exercendo uma conversação diferenciada, não com os já habituais filósofos do século XX que costumam acompanhar Kierkegaard (ou seja, o dito existencialismo francês e alemão), mas realizando um diálogo com o conturbado cenário político-cultural do início do século XX na Alemanha. Carl Schmitt, Theodor Adorno e Walter Benjamin são notoriamente figuras de relevância na construção do pensamento político alemão do período entreguerras. György Lukács, húngaro de nascimento, mas culturalmente germânico, é devidamente agrupado por Ryan à intelligentsia alemã. A força política dos autores do início do século XX é notória; o que não restaria evidente é o aspecto político presente na obra de Kierkegaard.

Ryan inicia seu livro assentando seus pressupostos teóricos. Prudentemente, põe-se a questão: “Faz sentido escrever um livro sobre ‘Sören Kierkegaard’ e ‘política’?”1 , tendo em vista a relutância kierkegaardiana de abordar a política manifesta em uma carta, onde o filósofo dinamarquês afirmaria: “Não, política não é para mim”. A aposta de Ryan visa a abordar a política em Kierkegaard não pela via direta, já que esta enfrentaria a resistência confessa do próprio autor, mas pela via indireta, servindo-se de aspectos biográficos, bibliográficos e filosóficos de Kierkegaard. A categoria filosófica, que também opera como método autoral, denominada pelo filósofo dinamarquês de comunicação indireta, é um dentre os pressupostos que Ryan utiliza para engendrar sua política indireta. Tal como no sentido da comunicação indireta, em que um conteúdo, não podendo ser comunicado diretamente, só pode ser feito indiretamente com o uso de recursos autorais dos mais sofisticados, também a política indireta só será comunicada lateralmente quando buscada dentro da obra kierkegaardiana, de forma que o conteúdo primeiro e mais imediato nunca é eminentemente político, mas que as profundezas de um conteúdo, o arcabouço e, mais, as consequências, possam, essas sim, ser políticas. Ryan expõe seu método com clareza:

Em um sentido simples, não podemos falar de Kierkegaard e política juntos. Mas a política indireta de Kierkegaard existe em um nível geral de duas maneiras. Primeiro, porque Kierkegaard não escreve teses políticas e despreza a política tradicional, sua política só pode ser indireta. Se o todo da autoria de Kierkegaard existe para transformar os seres humanos, então a ideia é que se as pessoas tornam-se mais conscientes [self-aware] de si mesmas como indivíduos formados por suas próprias decisões, isto pode levá-los também a questionar mais radicalmente as estruturas da autoridade que frequentemente buscam mascarar a autonomia humana, ou seja, o Estado e certas formas de dogmatismo político (RYAN, 2014, p.2).

A tentativa, portanto, não é retirar um conteúdo eminentemente político dos textos de Kierkegaard, mas estabelecer, por sua vez, um diálogo que, pela própria conversação, faça emitir conteúdos políticos. Não por outra razão os autores escolhidos possuem uma evidência política. Contudo, mais do que isso, os quatro autores escolhidos por Ryan para dialogarem com Kierkegaard são, curiosamente, leitores e estudiosos do pensador dinamarquês. O leitmotiv está, portanto, em definir um meio caminho entre a produção e originalidade da obra de Kierkegaard por um lado, a autoria e participação política dos filósofos escolhidos para o diálogo por outro lado e, em meio a esse trajeto, firmar um ponto de encontro que vá além do mero fato de que Kierkegaard foi lido por Lúkacs, Schmitt, Benjamin e Adorno.

Em seu primeiro capítulo, os apetrechos de que se vale Ryan para esse esforço são três: os termos Mellemspil (interlúdio), Skillevei (encruzilhada ou, mais liricamente, vereda) e Dagdriver (andarilho ou flâneur). O interlúdio [Mellemspil] é o instrumento que permite criar o diálogo entre os autores. Como pontua Ryan, “a política indireta é a brecha ou interlúdio que abre espaço para o salto dialético, a exceção, o exílio e o andarilho, e a esquiva negativa a toda totalidade” (RYAN, 2014, p.1). A vereda [Skillevei] diz respeito à vida de Kierkegaard, mais precisamente ao ano de 1848, ponto de virada em que o pensador dinamarquês escreve e publica uma série de textos que dizem respeito ao ambiente de revolução político-social dinamarquesa, como também da revolução pessoal de Kierkegaard. Em 1848 são escritos Duas Épocas: Uma Resenha Literária, Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra Enquanto Escritor, A Crise e uma crise na vida de uma atriz, parte dos Discursos Cristãos. Também nesse ano, Kierkegaard havia iniciado a escrita de Prática no cristianismo. Um ano de muita produção, em que grande parte dos textos busca responder ao ambiente social e político da Dinamarca daquele tempo. Por fim, Dagdriver, dificilmente traduzido como andarilho, tendo mais a característica de um flâneur, advém da característica de Kierkegaard de comportar-se como um observador e analisador cosmopolita e urbano, característica que se reflete nos textos e encontra similitudes com os autores escolhidos para os diálogos. Esses são os aparatos utilizados por Ryan, desde o início audaciosos e bastante inovadores quanto à pesquisa sobre Kierkegaard. Ainda que se tratem de categorias independentes e não correlacionadas em uma hierarquia, é certo que ao longo do livro o termo Skillevei tem maior ocorrência e relevância. Isso porque há maior proximidade entre a tese da política indireta e do produtivo ano de 1848 se considerado esse termo como central:

A imagem do Skillevei, traduzida como encruzilhada [vereda], é outro motivo limítrofe (literalmente) que é simbólico do ano de 1848. Como parte da política indireta, o Skillevei é o espaço, o entre, outro Mellemspil [interlúdio] entre momentos na história humana, entre viver e morrer, e na formação do indivíduo em si mesmo que é desafiado pela sociedade e, em contrapartida, confronta a sociedade. Isto está de acordo com o conceito de política indireta que é, antes de tudo, o espaço negativo entre disciplinas (RYAN, 2014, p.20).

Mais do que simplesmente embasar sua tese acerca da política indireta, Ryan realiza uma ponderação sobre textos que não raras vezes não estabelecem um diálogo dentro do corpo da obra kierkegaardiana. É por colocar lado a lado textos como os Discursos Cristãos e Duas Épocas que Ryan é capaz de apresentar um Kierkegaard que, de maneira plausível, poderia apresentar uma política indireta. A preparação do primeiro capítulo, no entanto, tem como pressuposto enunciado o fato de que os quatro autores que estabelecerão o diálogo com Kierkegaard são, dentre outros aspectos, pensadores políticos, de modo que se espera que se justifique com mais ênfase, por meio dos diálogos, a tese da comunicação indireta, sobretudo pela recepção que teriam exercido os filósofos políticos do início do século XX.

O método utilizado por Ryan para criar um cenário possível em que se realizem os diálogos é encontrar pontos de encontro que podem se transformar, conforme a análise, em uma aproximação ou em um distanciamento entre os autores. É assim que se procede, por exemplo, com o diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács no segundo capítulo. Pela via da influência kierkegaardiana na obra de Lukács, Ryan abre suas considerações:

Ao examinar os textos de Lukács, seja naqueles ainda fortemente sob a influência de Kierkegaard, como Alma e Forma e A Teoria da Novela, bem como na explosiva conversão ao marxismo em História e Consciência de Classe, ao período stalinista de A Destruição da Razão, que coloca Kierkegaard como um dos fundadores do irracionalismo e precursor do nacional-socialismo, Lúkacs transforma a interioridade de Kierkegaard em práxis revolucionária, mas no processo tenta aniquilar todos os traços de ambiguidade em uma homogeneidade, em um mundo totalmente unificado (RYAN, 2014, p.43).

Ao longo do segundo capítulo é possível acompanhar essa análise sobre a obra de Lukács e a possível influência de Kierkegaard presente no desenvolvimento do pensador húngaro. A proximidade entre Kierkegaard e Lúkacs no entorno da leitura e as impressões sobre o Fausto de Goethe, apresentadas logo no início do segundo capítulo, parecem ter antes o caráter de comprovar a relação entre os dois autores do que necessariamente lançar luz sobre a tese principal do livro: a política indireta. Isso porque, como Ryan afirma, a primeira fase da vida de Lukács, na qual ocorre a publicação de Alma e Forma, por exemplo, é ainda uma fase pré-marxista e mais voltada para a cultura e para a literatura do que propriamente para a política. A grande questão do diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács se dá pela apresentação da transformação que faz Lukács com a interioridade kierkegaardiana, alterando-a ou, mais precisamente, realocando-a para uma práxis revolucionária. Valendo-se de uma suposta linha de continuidade presente na produção do pensador marxista, Ryan afirma que uma vez que

no início de História e Consciência de Classe Lukács declara ‘postular-se, produzir-se e reproduzir-se — isto é realidade’”, esta seria a comprovação de que se teria utilizado “a interioridade como uma expressão da práxis revolucionária, componente que Lukács carrega para seu período marxista desde Alma e Forma e A Teoria da Novela (RYAN, 2014, p.57).

Entretanto, a influência de Kierkegaard sobre Lukács teria encontrado sua interrupção nesse pequeno adorno, ou seja, no fato de que, de alguma forma, o jovem Lukács, interessado por Kierkegaard — ao qual teria dedicado, inclusive, um belo ensaio em seu livro Alma e Forma —, teria se permitido levar para dentro do marxismo a concepção de interioridade kierkegaardiana. Porém, e isso Ryan parece tentar pontuar, Lukács leva Kierkegaard para dentro do marxismo, não para dentro do stalinismo, já que este condena o subjetivismo do filósofo dinamarquês e rejeita os pensamentos vindos de Copenhague, dando preferência aos prisioneiros da Sibéria. E aqui repousa todo contato Kierkegaard–Lukács.

No que diz respeito ao diálogo ocorrido entre Carl Schmitt e Kierkegaard, a análise depende em grande parte do que Schmitt expressa em uma carta para Ernst Jünger e que acertadamente Ryan escolhe como epígrafe de seu capítulo: “Tais influências indiretas, que iludem qualquer documentação, são as mais fortes e de longe as mais autênticas.” É preciso admitir, como faz Ryan, que “pouco foi escrito sobre Carl Schmitt e Kierkegaard apesar da reverência que Schmitt faz ao pensador dinamarquês”, sobretudo pelo uso do termo exceção, empregado por Kierkegaard em Temor e Tremor e Repetição, e utilizado por Schmitt em sua definição de soberania no livro Teologia Política. Grande parte da análise de Ryan quanto a esse diálogo se fundamenta pelo uso feito por Schmitt da exceção e pela leitura que faz o pensador alemão dos textos do pensador dinamarquês:

Ler a leitura que faz Schmitt sobre Kierkegaard é um exercício frutífero em trazer à tona várias questões não resolvidas nos últimos escritos, e também acrescenta outro surpreendente membro à lista de radicais pensadores europeus na Weimar dos anos de entreguerras que caiu sob o feitiço de Kierkegaard e apropriou seu pensamento de formas excitantes e polarizadas. Neste capítulo iremos mais a fundo na política indireta da forma que esta fez seu caminho para a vanguarda da política global no século XX. O que é frequentemente negligenciado quando se lê Schmitt é, como em Kierkegaard, a injeção do teatro em seu trabalho, e como os motivos, máscaras e figuras do palco informam e inspiram seu trabalho. Aqui temos o ponto de advertência de uma tentativa de preencher o espaço negativo e Mellemspil que é a política indireta (RYAN, 2014, p.90).

A proposta é encontrar, portanto, elementos que justifiquem a tese sobre a política indireta na influência de Kierkegaard sobre Schmitt. Correntemente referido, o ponto inicial é o conceito de exceção, o qual Schmitt realoca desde o emprego que faz Kierkegaard em seus textos — de maneira interior e existencialmente concreta — para um âmbito político. Ryan demonstra o vivo interesse que Schmitt manifestou na leitura de Kierkegaard e reúne diversas citações sobre como o jurista alemão era um vivaz entusiasta dos ensinamentos de Kierkegaard. No entanto, não é oferecida tese consubstancialmente relevante que permita crer que o conceito de exceção, tão arraigadamente existencial, individual e próprio do homem concreto, tenha saltado para a aplicação política feita por Schmitt senão por uma influência que, mais do que indireta, seria quase opaca, lateral.

Em contrapartida ao emprego do conceito de exceção por parte de Schmitt em sua possível influência kierkegaardiana, Ryan faz. uma excelente análise ao considerar a severa crítica realizada por Schmitt contra o romantismo político em paralelo com a crítica social- -existencial feita por Kierkegaard contra o romantismo germânico. O conceito em questão é a decisão e Ryan demonstra haver similitudes entre as duas críticas. Tanto Kierkegaard quanto Schmitt se voltariam contra o romantismo, uma vez que essa corrente produz uma característica de inação e indecisão. O esteta kierkegaardiano não decide concretamente da mesma maneira que o parlamentar burguês também não o faz. Contudo, a decisão kierkegaardiana é própria do indivíduo, enquanto a decisão demandada por Schmitt é própria da estrutura jurídica e política de um Estado. As consequências são bem pontuadas por Ryan: pelo lado de Kierkegaard a decisão produz a singularização do indivíduo; pelo lado de Schmitt, produz a dicotomia amigo-inimigo, bem como todos os efeitos que dessa dicotomia decorrem. Por fim, ao avançar em sua análise, apresentando o soberano como desespero, Ryan assume posições que já são marcadas por uma interpretação de Schmitt que é pautada pelas leituras de críticos do século XX, dentre eles Agamben, obtendo, com isso, os mesmos resultados relutantes acerca da produção teórica de Schmitt.

É sem dúvida pelo diálogo entre Walter Benjamin e Kierkegaard que o livro encontra seu ponto de maior efervescência. A começar pelas personalidades dos dois autores: ambos, Benjamin e Kierkegaard, exerceram uma espécie de fascinação por possuírem certas idiossincrasias que atraiam os leitores. Não são raros os escritos que dão mais importância às particularidades das vidas de Benjamin e Kierkegaard do que propriamente aos seus escritos. O que normalmente seria cotado como mera curiosidade sem fundo teórico relevante, no caso dos dois pensadores em questão parece ser o contrário, uma vez que suas idiossincrasias encontram reflexo em suas obras, como nota Ryan:

Igualmente ao corpo da obra de Kierkegaard, a variedade e riqueza dos escritos de Walter Benjamin levam o leitor a um vasto labirinto, pois como Kierkegaard oferece uma variedade de perspectivas e modos de vida por via de seus pseudônimos, Benjamin escreve com igual presença de espírito e paixão sobre tópicos como Marxismo, Kafka, A Bíblia, haxixe, cidades como Paris e Nápoles e o quase esquecido barroco alemão (RYAN, 2014, p.135).

Sugestivamente, o quarto capítulo intitula-se Loafers of History, o que põe em questão um conceito que parecer ser caro a Ryan, ou seja, o loafer, Dagdriver ou flâneur, figura representativa do século XIX e XX que bem representa Kierkegaard e Benjamin. Descrever minuciosamente os interiores e os exteriores de um centro urbano é mais do que simplesmente uma atividade poética, é parte de considerações filosóficas que vão se compondo conforme a própria descrição. Nesse ponto, pela potencialidade imagética e por se tratar de uma capacidade criativa e estética avantajada, Benjamin e Kierkegaard encontram-se, conforme a análise de Ryan, em uma esquina para, em uma caminhada, passar a tecer considerações que inevitavelmente levam à política: Kierkegaard, na crítica ácida à Dinamarca de seu tempo, e Benjamin, nas considerações sobre a Paris de Baudelaire, sobre Nápoles ou Berlim. O grande impacto do diálogo estabelecido entre Benjamin e Kierkegaard repousa sobre o fato de que, ao contrário dos outros diálogos, Benjamin parece ter algo a oferecer à leitura da obra kierkegaardiana:

Quem era Kierkegaard? Aos olhos do público ele era um preguiçoso [loafer] de esquina, o Dagdriver, um ocioso sagaz. Kierkegaard via a percepção das pessoas sobre ele como um flâneur como algo negativo, mas o que Kierkegaard se torna por meio de seus escritos é exatamente isso, no sentido de Benjamin; como observador, transeunte e crítico da cidade e da sociedade dentro da qual se vive e respira (RYAN, 2014, p.147).

Lateralmente, a questão da política indireta fica adstrita a uma espécie de embate entre Benjamin e Schmitt, no qual Kierkegaard parece ter pouco a oferecer, salvo algumas considerações pontuais. A aproximação da questão messiânica surge no livro como uma abertura temática que encontra poucas linhas de intersecção entre Kierkegaard e Benjamin, restando a imagem de que se trata de autores de suma potência no pensamento, mas que ainda não trilharam caminhos suficientemente paralelos.

O último diálogo, por sua vez, diz o limite daquilo que as análises de Theodor Adorno podem dizer. Se por um lado Benjamin e Schmitt não dedicam nenhum escrito específico a Kierkegaard e Lukács o faz em meio a tantos outros ensaios e estudos, por outro lado Adorno apresentou de fato um trabalho mais extenso sobre o filósofo dinamarquês. É acertado quando Ryan afirma que “dentre todos os pensadores em conversa com Kierkegaard neste livro, Adorno cita o trabalho de Kierkegaard mais extensivamente” (RYAN, 2014, p.177). Contudo, é também acertado considerar que tal trabalho, Kierkegaard: Konstruktion des Ästhetischen, é fruto de uma série de desentendimentos de Adorno não tanto com Kierkegaard, mas com tudo aquilo que não serve ao hegelianismo do teórico de Frankfurt. Ryan delineia essa questão ao fazer uma análise sobre a utilização que faz Adorno de um trecho de um conto de Edgar Alan Poe. A desolação de Poe é usada como imagem para o que Adorno considera sobre Kierkegaard:

O que resta após se ler esta notável prosa é uma imagem de niilista interioridade, suspensa entre haver e não haver chão, aliada a nada, uma abundância de copes atrás das quais repousa um buraco negro de futilidade. Esta é a filosofia de Kierkegaard de acordo com Adorno (RYAN, 2014, p.179).

Sentencialmente está sanada toda a relação entre Adorno e Kierkegaard. Havia Hegel entre eles e Adorno já havia prestado seu juramento de ortodoxia. Ainda que se queira afirmar que há qualquer resquício de influência de Kierkegaard na dialética negativa de Adorno, isso é mais benevolência do autor do que necessariamente uma posição embasada. O diálogo entre eles é, em verdade, negativo: não acontece.

Considerando, por fim, a tese da política indireta de Kierkegaard e os efeitos que podem advir do diálogo, é Ryan quem afirma que “um aspecto central da política indireta, como explorada neste livro, é a influência de Kierkegaard sobre a formação do pensamento político de Lukács, Schmitt, Benjamin e Adorno”, mas, para além disso, “como esses quatro interlocutores por sua vez leem e criticam uns aos outros à sombra de Kierkegaard” (RYAN, 2014, p.233). Ao ter frisado a importância das veredas, Ryan adentra em um grande sertão que muitas vezes o põe como um loafer diante das obras e autores abordados. A política indireta emerge de forma colateral, não à maneira que uma tese se evidenciaria. E uma vez que a política indireta é a própria tese, resta certa aporia em meio a alguns dos diálogos propostos.

Em comparação à pesquisa realizada acerca da obra de Kierkegaard, Ryan propõe um ponto de vista singular e perspicaz, seguindo os caminhos que inicialmente foram trilhados por George Pattison. Contudo, como esses caminhos levam a veredas, é preciso ser uma espécie de viandante para seguir a senda ainda muito vasta que se apresenta para aqueles que visam concluir a tese intuída por Ryan acerca da política indireta de Kierkegaard.

Nota

1 As citações feitas com base no texto original do livro de Bartholomew Rya são traduções livres feitas exclusivamente para a presente resenha. Quaisquer lapsos estilísticos são antes deslizes do tradutor que falhas do autor.

Referência

RYAN, B. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014.

Lucas Piccinin Lazzaretti – Mestrando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política – KOWARICK; MARQUES (NE-C)

KOWARICK, Lúcio; MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política.  São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011. Resenha de: Goulart, Jefferson. Novos percursos e atores em São Paulo: indicativos para uma agenda de pesquisa. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.97, Nov, 2013

É conhecido o enigma da esfinge: decifra-me ou te devoro. A ideia fundamental consiste em que o ignorado é capaz de nos tragar precisamente pela dificuldade de compreendê-lo. Provavelmente a mais radical efetivação do enunciado tenha se materializado por ocasião da ruptura com o Ancien Régime e na invenção da modernidade, quando Saturno revelou sua fúria e devorou os próprios filhos – os rebentos da revolução. A pergunta indigesta permanece: mesmo em um novo mundo pautado pela razão, estaríamos condenados à ignorância?

Particularmente no que respeita aos estudos urbanos, nossa trajetória intelectual é valiosíssima. As pesquisas de diferentes áreas do conhecimento e mesmo aquelas de abordagem interdisciplinar produziram um extenso mosaico sobre a realidade urbana brasileira, notadamente das grandes cidades. Não por acaso, a obra organizada por Kowarick e Marques se inicia no olhar panorâmico e retrospectivo sobre essa produção.

O legado desse conhecimento influenciou gerações de estudos, demarcando a indissociável relação entre segregação socioespacial e dinâmica capitalista, ou seja, o urbano tratado como objeto privilegiado de reprodução do capital sob o impulso do Estado mediante a existência de um exército industrial de reserva. Pobreza e desigualdade tematizaram a literatura correspondente para depois se fragmentarem teórica e metodologicamente.1

Mesmo assumindo-a como uma escolha arbitrária, a síntese dessa tradição de pesquisa pode ser identificada no achado seminal de que a percepção de caos e a aparente ausência de ordem tinham, sim, uma lógica: a da espoliação urbana.2 Mais ainda: a acumulação foi operada por meio de mecanismos de dilapidação da força de trabalho (e nas formas perversas de sua reprodução), da primazia do capital financeiro-imobiliário que se manifestou em grandes ações das incorporadoras e da interrupção de direitos de cidadania mediante uma ação estatal autoritária. Enfim, uma urbanização anômica3 que se traduziu em uma desordem ordenada.

A multiplicidade de influências teóricas e de escolhas metodológicas dessa rica tradição – dentre as quais se destaca o prestígio da matriz estruturalista da sociologia marxista francesa – ensejou um consenso genérico sobre o processo de urbanização em geral e particularmente sobre sua maior cidade: “cidade multifacetada, plena de contrastes, conjugando dinamismo, coração econômico do país marcado por vastas extensões de pobreza”.4 São Paulo é isso e muito mais.

São Paulo: novos percursos e atores se debruça precisamente sobre esse “muito mais”, e oferece um largo panorama das mudanças recentes, das permanências e das rupturas que fizeram dessa megalópole um lugar paradoxal que provoca amor e ódio, e cujo magnetismo já não é mais o mesmo a ponto de atrair e fascinar os incautos. Assim desmistificam-se as previsões demográficas do século XX5, constatação inseparável da tendência à sobreposição de funções de estruturas econômicas industriais e terciárias.6 Mais ainda: as desigualdades do mercado de trabalho têm determinações anteriores ao acesso à ocupação, relacionadas aos atributos desses candidatos ao emprego e aos contextos nos quais estão inseridos.7

A chave do enigma foi anunciada no título da obra, na adoção de um adjetivo temporal no plural: novos. É em torno dessa escolha (menos semântica e mais conceitual e analítica) e de sua subjacente aspiração ao postulado de que, com efeito, emergiram novos personagens e engrenagens, que o livro deve ser compreendido. E a referência cronológica não deve ser ignorada: embora nem todos os autores a adotem como recorte específico, as últimas quadro décadas alteraram substantivamente as configurações socioeconômica e político-institucional da cidade. Dessa perspectiva, organizadores e autores não só são convincentes como remetem a problemas cuja complexidade ainda precisa ser analisada contínua e detidamente.

Nesses termos, São Paulo: novos percursos e atores ingressa na galeria das leituras obrigatórias sobre o urbano porque sintetiza uma guinada sutil nos estudos sobre a grande megalópole. E as razões dessa distinção são diversas.

Primeiro, naturalmente, porque é convincente na pretensão de demonstrar a originalidade de alguns desses novos atores e percursos. Vista de um ângulo genérico ou aparente , evidente que São Paulo permanece segregadora, desigual e paradoxal: opulência e riqueza de um lado, vulnerabilidade e miséria de outro. Mas o tempo e os subterrâneos da cidade abrigaram mudanças importantes de quantidade e qualidade que a tornaram efetivamente diferente sob vários aspectos, a ponto de a oposição centro-periferia não ser mais suficiente como modelo explicativo das desigualdades urbanas.

Alguns exemplos simbolizam bem essas mudanças. O primeiro deles reside no plano da identidade cultural e particularmente na emergência do rap como expressão periférica de ressignificação da vida pública fundada em uma “ordem moralista, onde não existe lugar para diferença”.8 Outro é a dificuldade de discernir linhas divisórias precisas entre o “correto” e o “ilegal, o informal e o ilícito”, afinal essas dimensões (como o negócio do comércio de drogas) são socialmente legitimadas, assim como “nesses pontos de fricção que homens e mulheres negociam a vida e os sentidos da vida. No fio da navalha. O fato é que os indivíduos e suas famílias transitam nessas tênues fronteiras do legal e do ilegal…”.9

Além da presença de novos atores (caso emblemático do pcc), “o mapa da violência em São Paulo revela o confinamento da violência letal nas periferias: as franjas da cidade concentram o maior numero de homicídios”.10

Antes cidade de portugueses, italianos, espanhóis, orientais, sírio-libaneses, ex-escravos e judeus que imprimiram suas marcas a bairros, costumes e à materialidade da urbe, a São Paulo contemporânea acolhe novos estrangeiros, cujo ingresso é útil para também compreender processos complementares como a produção de serviços urbanos, as relações capital-trabalho ou as interações culturais.11

Cidade de favelização tardia comparativamente ao Rio de Janeiro, São Paulo vem registrando uma expansão desse tipo de habitação precária que sintetiza um fenômeno indissociável de sua dinâmica econômica, com destaque para a precarização do trabalho como sintoma de um estado de vulnerabilidade social mais amplo. Essa trajetória, contudo, não é linear. Tal heterogeneidade autoriza a formulação de uma “tipologia das favelas”, cuja “análise comparativa permite sustentar a existência de uma razoável variabilidade entre núcleos favelados da cidade”.12 Ainda mais surpreendente (e perturbador) é que “em termos relativos, as favelas não apenas melhoraram, como se aproximaram da situação de outros moradores da cidade, sugerindo um processo de convergência, incompleto e talvez excessivamente lento, mas mesmo assim existente entre os indicadores médios de favelados e não favelados”.13

Outros exemplos se situam no plano das relações políticas. De um lado, há que se reconhecer o processo de institucionalização da participação, mas essa trajetória não prescindiu da permanência dos movimentos sociais. Pelo contrário, estes ainda são vigorosos, sobretudo, nas temáticas mais sensíveis das políticas públicas, caso notável da centralidade da habitação.14 Claro que as práticas de clientela não desapareceram, mas os atores também não são apenas os tradicionais, aos quais se juntaram as articuladoras do associativismo, “novo tipo de ator criado na última década [que] ganhou centralidade e posicionou-se ao lado dos movimentos pela sua capacidade de agregação de demandas e de coordenação da atuação de outros atores”.15

Nessa senda, a violência organizada não se confunde com os movimentos sociais, mas não deixa de exprimir um novo e importante protagonista na cena urbana. Se em tempos não tão remotos a ascensão socioeconômica transcorria por meio das teias de integração social do trabalho, agora o cenário é bem diferente, pois “abriu-se espaço para que o ‘mundo do crime’ disputasse legitimidade com toda essa série de instituições e atores tradicionalmente legítimos nas periferias da cidade”.16 Tais mudanças foram percebidas inclusive pelo cinema, que as retratou de maneira ora caricata, ora mais realista, através de registros que às vezes selam o abismo entre distintos universos sociais e a impossibilidade de convívio entre esses mundos diferentes ou que exaltam marcas identitárias da periferia.17

No plano estritamente político, a análise de Limongi e Mesquita18 demonstra a polarização entre direita e esquerda no comportamento do eleitorado paulistano desde o restabelecimento das eleições diretas para prefeito da capital, em 1985. Os autores observam a estabilidade do eleitorado e enfatizam que as disputas têm nos eleitores de educação média (no quesito socioeconômico) e de centro (no quesito ideológico) seu núcleo decisivo. Se tais postulados estiverem corretos – e há fortes razões para aceitá-los -, os resultados de 2012 marcam uma importante guinada rumo à esquerda, cuja inclinação do centro ainda está por ser analisada.

Mas há pelo menos duas omissões importantes nas abordagens políticas do livro. A primeira diz respeito não às estratégias eleitorais e ao comportamento (relativamente flutuante) do eleitorado, mas ao desempenho desses diferentes governos de direita e de esquerda, ou seja, como estes têm se comportado na gestão de políticas públicas e quais teriam sido as razões para as oscilações do eleitorado centrista.

Outra ausência é a escassez de análises de gestão urbana, isto é, as políticas públicas e os instrumentos através dos quais os diferentes governos municipais têm enfrentado a agenda urbana: a gestão do território, a aplicação da função social da propriedade, o tratamento das agudas questões da mobilidade urbana e da habitação social (dentre outras), enfim uma avaliação político-institucional do modelo de produção do espaço urbano. Nesse sentido, um balanço – mesmo que preliminar – sobre a aplicação do Estatuto da Cidade seria indispensável, afinal, trata-se de bandeira histórica do movimento pela reforma urbana que vigora desde 2001, regulamentou o capítulo da Política Urbana da Constituição cidadã e que tem suas marcas institucionais no Plano Diretor Estratégico de São Paulo.

A segunda razão do caráter original do livro diz respeito à sua pluralidade teórica e metodológica, mérito que corrobora a correção de abordagens interdisciplinares e multidisciplinares sobre um mesmo objeto.

Definitivamente não há hierarquia entre escolhas de ferramentas sociológicas, urbanísticas, etnográficas, demográficas, políticas, comunicacionais e quaisquer outras. Pelo contrário, seus usos simultâneos produzem modelos explicativos mais sólidos e análises mais críveis. Essa diversidade de olhares revela descobertas e resultados complementares. Tal virtude contrasta com a tendência tão em voga de fragmentação excessiva do conhecimento, inclinação absorvida pelas instituições científicas e respectivas agências cujo maior risco é o confinamento do saber. São Paulo: novos percursos e atores ousa ir contra a maré, e o faz de forma persuasiva.

A terceira virtude da obra é que, mesmo não tendo a pretensão de ser conclusiva, remete a uma agenda de pesquisa que, embora já se manifestasse de forma mais ou menos difusa, ainda não fora objeto de um esforço de sistematização.

Em boa medida, essa agenda está anunciada nos temas e nas abordagens dos autores – e até poderíamos aceitar o agrupamento apresentado pelos organizadores: “viver e habitar na cidade”; “trabalho e produção”; “política e representação”; e “sociabilidade, cotidiano e violência” -, mas a proposta ainda se revela incompleta. E este é um ponto delicado, pois também envolve escolhas éticas e alguns tabus no universo acadêmico.

Um exemplo provocativo: conhecemos razoavelmente a precariedade da infraestrutura urbana das periferias, das favelas e dos cortiços, estudamos as diferentes expressões da violência e suas determinações e impactos ou ainda sabemos dimensionar minimamente os efeitos da informalidade nas relações de trabalho, todas essas dimensões relativas aos pobres e miseráveis, mas são escassos os estudos sobre os “de cima” da pirâmide social, como se sua posição socioeconômica privilegiada fosse justificativa moral para ignorá-los.

Essa lacuna é reconhecida pelos próprios organizadores quando advertem que [o livro] “não analisa centralmente um outro lado da cidade, que envolve parcela significativa da riqueza nacional”.19

A propensão a dar as costas a esses atores gera prejuízos cognitivos à medida que desconhecemos como vivem, como se organizam e como atuam tais personagens. Ou seja, como suas escolhas (e percursos) interferem na dinâmica urbana. Claro que a “desumanidade da Cracolândia”20, por exemplo, é um grande tema de pesquisa, porém, é inegável que a solução dessa chaga – em suas múltiplas dimensões: da marginalização social per se, da generalização do consumo de drogas, da saúde pública ou da violência – implica conhecer o “outro lado”, qual seja, a banda dos concertos da Sala São Paulo e os interesses imobiliários que operam no Projeto Nova Luz (e que são característicos de quaisquer processos de gentrification). Ou ainda: que o conhecimento sobre a expansão da favelização é inseparável da ação dos interesses do capital imobiliário e da conduta empresarial nas relações trabalhistas. Assim sucessivamente poderiam ser invocados exemplos ad nauseam. Fato é que ainda conhecemos pouco os “de cima”, e como estes efetivamente interferem na cena urbana e nas decisões públicas.

Em seu primeiro pronunciamento após vencer as eleições de 2012, o novo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, declarou que a cidade foi inventada para proteger e promover a integração social, e que era seu compromisso resgatar tais ideais. Bom presságio, em que pese o sabido abismo que separa o discurso normativo da realidade. O enigma da esfinge permanece nos desafiando: ou compreendemos São Paulo ou ela nos devora. Nesses termos, seria mais do que oportuno – na verdade um imperativo – absorver a advertência de J. Jacobs de que cidades vivas têm em suas próprias crises os germes da regeneração.21 O próximo período poderá responder se esse otimismo contido é justificável.

Novos personagens e seus respectivos caminhos foram enunciados em 16 textos por 26 autores – baliza paradigmática na agenda de pesquisa sobre o urbano em geral e São Paulo em particular -, restando agora continuar a decifrá-los. Este é, simultaneamente, o mérito e o desafio de São Paulo: novos percursos e atores.

Notas

1 MOYA, Maria Encarnación. “Os estudos sobre a cidade: quarenta anos de mudança nos olhares sobre a cidade e o social”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: novos percursos e atores – sociedade, cultura e política. São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011, pp. 25-50.         [ Links ] 2 A esse respeito, ver: KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.         [ Links ] 3 KOWARICk e MARQUES (orgs.), op. cit., p. 15.
4 Ibidem, p. 9.
5 BAENINGER, Rosana. “Crescimento da população na Região Metropolitana de São Paulo: descontruindo mitos do século XX”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 53-78.         [ Links ] 6 COMIN, Alvaro. “Cidades-regiões ou hiperconcentração do desenvolvimento? O debate visto do Sul”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp.157-177.         [ Links ] 7 GUIMARÃES, Nadya; BRITO, Murillo de; SILVA, Paulo Henrique da. “Os mecanismos de acesso (desigual) ao trabalho em perspectiva comparada”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 179-204.         [ Links ] 8 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. “O rap e a cidade: reconfigurando a desigualdade em São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 318.         [ Links ] 9 TELLES, Vera da Silva; Hirata, Daniel. “Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 391.         [ Links ] 10 MIRAGLIA, Paula. “Homicídios: guias para a interpretação da violência na cidade”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 334.         [ Links ] 11 LEME, Maria Cristina da Silva; Feldman, Sarah. “A presença estrangeira: processos urbanos e escalas de atuação”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 131-154.         [ Links ] 12 SARAIVA, Camila; Marques, Eduardo. “Favelas e periferias nos anos 2000”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 119.
13 Ibidem, pp. 126-7.
14 TATAGIBA, Luciana. “Relação entre movimentos sociais e instituições políticas na cidade de São Paulo: o caso do movimento de moradia”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 233-252.         [ Links ] 15 LAVALLE, Adrian Gurza; CASTELLO, Graziela; BICHIR, Renata. “Movimentos sociais e articuladoras no associativismo do século XXI”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 260.         [ Links ] 16 FELTRAN, Gabriel. “Transformações sociais e políticas nas periferias de São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 361.         [ Links ] 17 HAMBURGUER, Esther; STÜCKER, Ananda; CARVALHO, Laura; Ramos, MIGUEL. “Cinema contemporâneo e políticas de representação da e na urbe paulistana”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 279-299.         [ Links ] 18 LIMONGI, Fernando; Mesquita, Lara. “Estratégia partidária e clivagens eleitorais: as eleições municipais pós-redemocratização”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 207-232.         [ Links ] 19 KOWARICK e MARQUES, op. cit., p. 16.
20 KOWARICK, Lúcio. “O centro e seus cortiços: dinâmicas socioeconômicas, pobreza e política”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p.88.         [ Links ] 21 JACOBS, Jane. Morte e Vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.         [ Links ]

Jefferson O Goulart – Professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).

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O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina – MIRES (H-Unesp)

MIRES, Fernando. O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina. Organização e tradução Vicente Rosa Alves. Florianópolis, Ed. da UFSC; Bernúncia Editora, 2012, 242 p. Resenha de: PERES, Jackson Alexsandro. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O livro O discurso da natureza: ecologia e política na América Latina, foi publicado originalmente em 1990 na Costa Rica, e depois também no Chile, Argentina, Itália e Alemanha, o que demonstra a relevância do tema. Somente em 2012, ganhou uma edição em língua portuguesa, traduzida e organizada por Vicente Alves e publicada pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina em parceria com a Bernúncia Editora. Os 22 anos que separam a primeira publicação da edição de 2012 foram de crescimento dos movimentos ecológicos em todo o mundo e de surgimento de novos conceitos relacionados ao assunto. Porém, passados tantos anos, a obra se mantém atual em muitos aspectos. Nas palavras do autor Fernando Mires, na apresentação à edição brasileira, os problemas ecológicos, principalmente na América Latina, permanecem tão vigentes como no final da década de 1980.

Mires, sociólogo, nasceu no Chile em 1943. Até 1973 foi professor de Sociologia e História do Chile no Instituto de Sociologia da Universidade de Concepción. Atua desde 1975 como docente pesquisador no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Oldenburg, Alemanha, país que lhe concedeu o título de Privat Dozent na área de Política Internacional – máximo grau acadêmico conferido pelas universidades alemãs. Sua obra, aqui resenhada, constitui a primeira de uma trilogia na qual ele propõe o estudo de temas fundamentais para a construção do que ele considera uma “nova radicalidade social”. O segundo livro da trilogia citada é El discurso de la indianidad (San José, Quito, 1992); e o terceiro, El discurso de la miséria (Caracas, 1994). Neles, o autor discute as relações entre indianidade e política e a construção da miséria social e política, respectivamente. Em sua trilogia, o interesse de Mires é questionar a lógica interna da modernidade por meio dos antagonismos e contrastes que esta produziu, e em O discurso da natureza o objetivo central é apresentar os pressupostos para essa nova radicalidade social.

O livro está dividido em quatro capítulos e um comentário final. Mires já deixa claro seu intento logo na introdução da obra e a conceitua como polêmica, por ser uma proposta em contraposição às ideologias do crescimento econômico. Nesse ponto, os argumentos fica clara a atualidade de O discurso da natureza, visto que o crescimento econômico é ainda o objetivo que projeta a maioria dos países. Para se contrapor a isso, nos é apresentado o que o autor chama de “nova radicalidade social”. Uma nova radicalidade seria necessária porque, diante dos atuais problemas – como os feministas, os religiosos e também os ecológicos –, a concepção mais drástica até então contra a sociedade capitalista e de consumo, que eram as teorias socialistas, não é mais suficientemente radical para se opor a essa nova demanda.

A longa marcha da Ecologia é o título do primeiro capítulo. Nele se discute como a Ecologia, de ciência pura que residia dentro dos laboratórios, passou a fazer parte do meio político como um dos temas dominantes. Mires apresenta como documento inaugural do que ele chama de apogeu ecológico contemporâneo o relatório apresentado pelo Clube de Roma em 1972 sob o título “Os limites do crescimento”. Segundo o autor, o documento evidencia os problemas ambientais decorrentes do esgotamento dos recursos naturais, em tom catastrófico.

As avaliações feitas naquele relatório se tornaram tendências realistas no início da década de 1990, ano da primeira edição da obra. Transcorrem nesse capítulo as discussões sobre as proporções alcançadas pelo relatório de 1972 e suas polêmicas, e são discutidos outros documentos que, na época, formularam críticas a “Os limites do crescimento”. Aliás, este seria um título mais adequado ao primeiro capítulo, não apenas pela citação do relatório do Clube de Roma, mas por trazer, a partir desse documento, as discussões acerca da Ecologia e de sua dimensão política. Isso porque, quando se pensa em Ecologia e preservação, esbarra-se na pressão sociopolítica e nos discursos em prol do crescimento econômico, sendo este o foco da última parte do primeiro capítulo e também a discussão mais importante: as tensões entre Economia e Ecologia. Pensar ecologicamente é fazer uso daquilo que o autor chama de “segunda crítica à Economia Política”, equivalente à “nova radicalidade social”. Diferenciando-se da primeira crítica à economia burguesa atribuída a Karl Marx, essa segunda crítica à economia política pretende acusar a economia burguesa e marxista de ter ocultado o significado da natureza na formação do capital. Ou seja, quando se prega o desenvolvimento econômico, que nada mais é do que o desenvolvimento de métodos mais intensivos na exploração do meio natural, se omite o preço social da perda desse meio.

Após essa contextualização, o autor busca entender, agora no segundo capítulo, Rumo à formação de um pensamento ecológico na América Latina, o porquê de a Ecologia haver demorado tanto tempo para penetrar nos círculos políticos da América Latina. É apontado ainda um atraso no que concerne ao uso da Ecologia como arma crítica e analítica, ao comparar os países latino-americanos com alguns da Europa e com os Estados Unidos da América. Nesse ponto, o argumento que Mires utiliza para defender sua tese é que os países latino-americanos possuem características socioculturais e ambientais que são refletidas no discurso desenvolvimentista hegemônico neles proferido. A dificuldade em desenvolver um pensamento crítico acerca das discussões ecológicas resulta, segundo ele, da crença compartilhada por políticos, empresários e teóricos de esquerda e direita de que a América Latina atravessa uma revolução industrial, como aquela vivida na Europa nos séculos XVIII e XIX. Dessa crença emerge a ilusão de que existem ainda enormes áreas não utilizadas que estão à espera de conquistadores. Esse pensamento faz com que governos – e neste ponto o Brasil é citado muitas vezes – incentivem a ocupação dessas áreas. Outro viés usado em prol do desenvolvimentismo seria o “álibi da dependência”, ou seja, a culpabilidade dos países imperialistas, em uma versão nacionalista dos discursos. Assim, o discurso dita que a preocupação com temas ecológicos deveria ser dos países ricos e industrializados, já que os países pobres têm outros problemas a sanar, como a fome e a miséria. Outro ponto recorrente é culpar os países imperialistas de utilizar ideologias ecológicas como uma manobra para impedir o crescimento de países pobres.

Para uma leitura ecológica da realidade latino-americana – como o próprio título do terceiro capítulo sugere -, se ocupa em mostrar que, apesar de parecer que não existe consciência ecológica na América Latina, ela subsiste. A diferença é que, enquanto nos países europeus essa consciência alcançou notável grau de expressão política, na América Latina ela se mantém dissimulada, em nível cultural, nas “economias naturais”. Os grupos que o autor menciona como praticantes desse tipo de economia são as próprias vítimas da modernização: índios e camponeses. Por isso, utiliza o termo Etnoecologia, o que não levaria em conta somente os supostos sistemas naturais objetivos, mas sim os sistemas naturais que estão relacionados com os seres humanos, trazendo exemplos dessa relação com dois povos distintos: os Shuaras (Shuar) e os Aimarás. Para Fernando Mires, as origens da modernidade latino-americana ocorreram com a colonização hispano-portuguesa, pois as crenças trazidas pelos colonizadores continuam atuais. A crença eurocêntrica como um ideal de desenvolvimentismo e a crença de que os recursos naturais do continente são infinitos são as mais recorrentes.

O quarto capítulo, intitulado O modo de produção amazônico: ou os milagres da antiecologia, revela uma interessante reflexão sobre os desdobramentos da ocupação da Floresta Amazônica, incentivada pelas crenças apresentadas no capítulo anterior. É, portanto, segundo o autor, o melhor exemplo da imposição de relações de valor, ou seja, de impor a lógica de lucro e de acumulação aos consumidores imediatos da natureza (indígenas e camponeses) e também o lugar no mapa onde se comete em grande escala atos programados de “ecocídio” e “etnocídio”. Em resumo, Mires conceitua o modo de produção amazônico como um complexo econômico orientado pela destruição da natureza em virtude da obtenção imediata de lucros. Discute, além disso, algumas situações ocorridas principalmente no Brasil, como o alagamento de grandes áreas devido à construção de barragens para produção de energia elétrica e o desmatamento da floresta para abrir áreas de plantio, em razão do mito da fertilidade milagrosa do solo amazônico. A discussão, em todo o capítulo, gira em torno daqueles que são imediatamente afetados pela ideologia do crescimento por esses processos. Os povos que são imediatamente afetados são chamados pelo autor de “sujeitos da resistência ecológica”. Isso porque, além de enfrentar policiais, empresários e latifundiários, esses atores têm ainda que modificar sua própria cultura.

Ao apresentar seu comentário final, Mires retoma os pontos discutidos nos quatro capítulos reforçando a ideia de que a Ecologia por si só não possui um valor político, tampouco ditará os modelos de ações políticas, mas é, sobretudo, parte do que se espera de uma nova radicalidade social. Podemos corroborar o argumento do autor ao classificar o livro como polêmico. Também é uma importante referência para entender, sob o ponto de vista social, como se deu a trajetória percorrida pela Ecologia: de ciência pura para uma consciência coletiva que culmina em debates políticos e econômicos. Atual na grande maioria de suas discussões, o livro também o é, principalmente no que concerne à ideologia do crescimento, deliberadamente em prática nos países latino-americanos. Por outro lado, 22 anos é muito tempo, principalmente se pensarmos na velocidade com que ocorreram as mudanças no século XX. Devido a sua importância, uma atualização se faz necessária, principalmente no tocante aos termos conceituais e a práticas e discursos de movimentos ecológicos. Apesar disso, concordamos que o discurso ecológico não conseguiu ainda desativar o discurso economicista e que é necessário que o livro, em breve, deixe de ser um livro atual.

Jackson Alexsandro Peres – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

História, teatro e política – PARANHOS (VH)

PARANHOS, Kátia. (org). História, teatro e política. São Paulo/Belo Horizonte: Boitempo/FAPEMIG, 2012, 248 p. DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 49, Jan./ Abr. 2013.

O conhecimento histórico é uma construção refinada que dialoga com diferentes fontes documentais e discursos pretéritos. O teatro, em sua diversidade, é simultaneamente objeto de pesquisa, narrativa histórica e fonte documental. Nesse sentido, as relações do teatro com a História são necessariamente complexas e exigem do pesquisador competência para construção de trânsito interdisciplinar e sensibilidade para compreensão da narrativa teatral em si mesma. Exige também formação capaz de fazer da arte teatral um recurso epistemológico possível, na construção de abordagens históricas, que possibilitem compreender o tempo, as espacialidade e as relações sociais constitutivas da própria História.

Essa complexa inter-relação de dinâmicas e procedimentos metodológicos encontrou um belo lugar de expressão no livro História, teatro e política, organizado pela historiadora Kátia Paranhos. A obra de 248 páginas, publicada pela Editora Boitempo, tem o mérito de reunir textos, que embora referentes a experiências peculiares, trazem em comum a “compreensão do fato teatral como uma rede extensa e complexa de relações dinâmicas e plurais que transitam entre a semiologia, a história, a sociologia, a antropologia, a técnica e arte, a representação e a política” (p.10).

Ao abraçar essa perspectiva, o livro contribui para reflexão metodológica sobre o uso de fontes e teorias. Além disso, apresenta ao leitor, um retrato dinâmico de experiências históricas concretas em que teatro e política dialogam.

Na bela e densa apresentação da obra, Kátia Paranhos analisa como o movimento de redefinição do campo da História alargou possibilidades. Entre elas destaca-se a da compreensão do texto teatral não somente como documento ou fonte, mas também como elemento constitutivo da própria trama da história, uma vez que como fato é também ato. Nesse sentido, afirma:

A atividade teatral dialoga com outros campos do fazer artístico e, assim é lógico que incentive uma história que dê conta das relações verificadas dentro e fora do fenômeno teatral. (p.9).

Nesse sentido, para autora teatro é História, ou é a História em ato.

Essa orientação de valorização das inter-relações no campo do teatro está muito bem expressa no artigo de autoria de Adalberto Paranhos, História, teatro e política em três atos. Em seu texto analisa a interseção entre teatro e política, na construção da história por sujeitos sociais ativos:

O teatro seja autodenominado, político, engajado, revolucionário ou até apolítico, é sempre político, independentemente da consciência que seus autores e protagonistas tenham disso. O mundo da política é habitado por todos nós, queiramos ou não, quanto mais não seja porque toda e qualquer elação social implica, inescapavelmente, relações de poder, tenham essas o sentido de dominação ou não. (p.36).

Nesse sentido, não seria temeroso afirmar que a compreensão da organizadora da obra e dos autores dos textos nela reunidos é de que em sua construção artesanal cada espetáculo teatral é único. Mas que o teatro em si é heterogêneo, dialético e inserido em determinados tempo e espacialidade.

A dialética é inerente à extensa e diversificada rede de relações e dinâmicas que compõem o fenômeno teatral. Rede que, em uma tessitura de múltiplos fios, transita entre História, semiologia, sociologia, antropologia e política. Considerada essas características de mobilidade e pluralidade, o livro, em seu conjunto reafirma sua filiação a um campo renovado de produção do conhecimento histórico. Renovação que absorve novos objetos e novas formas de construção epistemológica, que considera a narrativa não uma simples reprodução do real, mas uma escolha permeada por variáveis diversificadas.

Ao traduzirem a complexa heterogeneidade inerente ao movimento da história e à construção do saber histórico, os textos selecionados pela organizadora do livro, além de reflexões sobre fontes, trazem rica contribuição sobre temas variados, entre eles o teatro russo e o teatro espanhol. A ênfase maior recai, todavia, sobre a produção teatral brasileira, em especial o teatro brasileiro de engajado, crítico e contestador, no período do imediato pré 1964 e na conjuntura que sucedeu o golpe político ocorrido naquela ano.

Na abertura da coletânea o leitor encontrará o belíssimo texto, “Editar Shakespeare”, de autoria de Roger Chartier, professor da Universidade da Pensilvânia” e membro do Centro de Estudos Europeus na Universidade de Harvard. Chartier, com precisão regada por formação histórica erudita, analisa a construção e a materialidade do texto shakespeariano e sua inerência histórica.

A coletânea também é composta por textos que abordam assuntos variados, tais como:

– relação entre História, teatro e política;
– teatro revolucionário russo;
– o teatro engajado de João das Neves;
– a produção dramática de Miguel Hernades à época da Guerra Civil Espanhola;
– a obra teatral de Oduvaldo Vianna, nos tempos sombrios brasileiros, pós AI5;
– produção de cenas teatrais por artistas como Hélio Oiticica e Lina Bo Bardi;
– itinerários da opereta e mapeamento de fontes selecionadas nas cidades do rio de Janeiro e São João Del Rei.

Os textos referentes ao teatro brasileiro são expressivos da importância histórica do teatro com especial destaque para o tempo presente, a bem dizer contemporâneo de muitos dos autores que contribuíram para a construção de um livro intenso que, embora de autoria múltipla, não se apresenta como um quebra cabeça desarticulado.

Como assinala Kátia Paranhos na apresentação do livro, o teatro em cena e o teatro em texto transbordam para além da representação e do fato teatral em si ganhando multiplicidade fulgurante e expressão histórica singular. A consideração da multiplicidade e da singularidade são também características do livro por ela organizado. As abordagens interdisciplinares inerentes aos capítulos escritos por autores de formação variada, trazem efetiva contribuição para a ampliação de horizontes metodológicos no campo da História em particular e das Ciências Humanas em geral.

Além disso, o livro cumpriu o objetivo de sua organizadora de “oferecer ao leitor um quadro inicial das diferentes categorias de discurso teatrais” (p.12). Ou seja, avançar para além do discurso teatral hegemônico e voltar o olhar para discursos teatrais não iluminados pela crítica. Para tanto considerou o fenômeno teatral em toda sua amplitude, incorporando análises sobre dramaturgia e dramaturgos, experiências cênicas, escrita teatral, gêneros do teatro, relações entre escolas de pensamento e práticas teatrais e, finalmente relação entre teatro e sociedade.

Essas são razões que considero mais do que suficientes para leitura do livro. Além disso, com certeza, o olhar e a compreensão dos leitores, encontrarão em suas narrativas e análises outros holofotes a iluminar a cena da leitura e as correlações entre o fazer teatro e política na História.

Lucilia de Almeida Neves Delgado – Departamento de História. Universidade de Brasília. [email protected].

 

 

 

 

 

Política, cultura e classe na Revolução Francesa | Lynn Hunt

Outros olhares acerca da Revolução Francesa [1]

A Revolução Francesa foi abordada, e ainda o é, por diversos trabalhos significativos na historiografia mundial. Lynn Hunt, entretanto, em seu livro Política, cultura e classe na Revolução Francesa nos traz uma nova maneira de abordá-la. A autora se encaixa em uma corrente historiográfica denominada como Nova História Cultural. Esta perspectiva propõe uma maneira diferente de compreendermos as relações entre os significados simbólicos e o mundo social (tanto comportamentos individuais como coletivos) a partir de suas representações, práticas e linguagens. É a partir desta perspectiva, portanto, que Hunt analisa o tema: busca compreender a cultura política da Revolução, isto é, as práticas e representações simbólicas daqueles indivíduos que levaram a uma reconstituição de novas relações sociais e políticas.

A pesquisa acerca do tema iniciou-se na década de 1970 e resultou na publicação do livro em 1984. Inicialmente, a autora buscava demonstrar a validade da interpretação marxista: a Revolução fora liderada pela burguesia capitalista, representada pelos comerciantes e manufatores. Os críticos desta abordagem, entretanto, afirmavam que tais líderes foram os advogados e altos funcionários públicos. Focando-se nestes aspectos, após um levantamento de dados feito a partir da pesquisa documental, Hunt percebeu que os locais mais industrializados, com maiores influências de comerciantes e manufatureiros, não foram, necessariamente, os mais revolucionários. Outros fatores deveriam então ser levados em consideração para explicar tal tendência revolucionária, não somente o da posição social dos revolucionários. Sendo assim, Hunt procurou evitar tal abordagem marxista, que coloca a estrutura econômica como base para as estruturas políticas e culturais. Desta maneira, a partir de uma mudança de olhar, tomou como objeto de estudo a cultura política da Revolução, que segundo a autora, propõe “uma análise dos padrões sociais e suposições culturais que moldaram a política revolucionária” (HUNT, 2007, p.11). Para ela, a cultura, a política e o social devem ser investigados em conjunto, e não um subordinado ou separado do outro.

Tais questões surgidas em sua pesquisa estão dentro de um contexto da década de 1980, quando os historiadores culturais procuravam demonstrar que a sociedade só poderia ser compreendida através de suas representações e práticas culturais. Na introdução de seu livro, a autora nos apresenta três influências principais: François Furet, que entendia a Revolução Francesa como uma luta pelo controle da linguagem e dos símbolos culturais e não somente como um conflito de classes sociais; Maurice Agulhon e Mona Ozouf, que demonstraram em seus estudos que as manifestações culturais moldaram a política revolucionária. Suas fontes foram documentos oficiais, como jornais, relatórios policiais, discursos parlamentares, declarações ficais, entre outros; contudo, a sua abordagem não poderia ignorar outras fontes como relatos biográficos, calendários, imagens, panfletos e estampas, que são produtos de manifestações e linguagens culturais da época.

Partindo de três vertentes interpretativas, a autora procura justificar a proposta de sua análise. Critica as abordagens marxista, revisionista e de Tocqueville por entenderem a Revolução centrando-se em suas origens e resultados, desconsiderando as práticas e intenções dos agentes revolucionários. Para Hunt,

A cultura política revolucionária não pode ser deduzida das estruturas sociais, dos conflitos sociais ou da identidade social dos revolucionários. As práticas políticas não foram simplesmente a expressão de interesses econômicos e sociais “subjacentes”. Por meio de sua linguagem, imagens e atividades políticas diárias, os revolucionários trabalharam para reconstituir a sociedade e as relações sociais. Procuraram conscientemente romper com o passado francês e estabelecer a base para uma nova comunidade nacional. (Ibid, p.33)

Mais do que uma luta de classes, uma mudança de poder ou uma modernização do Estado, Hunt enxerga como a principal realização da Revolução Francesa a instituição de uma nova relação do pensamento social com a ação política, uma vez que tal relação era uma problemática percebida pelos revolucionários e já posta por Rousseau no Contrato Social.

A partir de tais considerações, Hunt estruturou seu texto em dois capítulos: no primeiro, A poética do poder, a autora analisa como a ação política se manifestou simbolicamente, através de imagens e gestos; no segundo, A sociologia da política, apresenta o contexto social da Revolução e as possíveis divergências presentes nas experiências revolucionárias. Em todo o texto, a autora nos traz um debate historiográfico acerca de termos, conceitos e concepções das três perspectivas anteriormente citadas.

Hunt destaca a importância da linguagem na Revolução. A linguagem política passou a carregar significado emocional, uma vez que os revolucionários precisavam encontrar algo que substituísse o carisma simbólico do rei. A linguagem tornou-se, portanto, um instrumento de mudança política e social. Através da retórica, os revolucionários expressavam seus interesses e ideologias em nome do povo: “a linguagem do ritual e a linguagem ritualizada tinham a função de integrar a nação” (Ibid, p.46). Contudo, este instrumento deveria inovar nas palavras e atribuir diferentes significados a elas, já que se buscava romper com o passado de dominação aristocrática. Não é a toa que a denominação Ancien Régime foi inventada nesta época.

Nesta tentativa de se quebrar com um governo anterior dito tradicional foi que as imagens do radicalismo jacobino ficaram mais evidentes, afirma Hunt. O ato de representar-se através de uma ritualística foi questionado, descentralizando assim a figura do monarca e a base em que ele estava firmemente assentado: a ordem hierárquica católica. A imagem do rei sumiu do selo oficial do Estado; nele agora estava presente uma figura feminina que representava a Liberdade. Os símbolos da monarquia foram destruídos: o cetro, a coroa. Por fim, em 1793, os revolucionários eliminaram o maior símbolo da monarquia: Luís XVI foi guilhotinado.

Há outro aspecto da linguagem evidenciado pela autora: a comunicação entre os cidadãos. Influenciados por Rousseau, os revolucionários acreditavam que uma sociedade ideal era aquela na qual o indivíduo deixaria de lado os seus interesses particulares pelo geral. Entretanto, para que isto fosse possível, era necessário uma “transparência” entre os cidadãos, isto é uma livre comunicação, na qual todos pudessem deliberar publicamente sobre a política. A partir deste pensamento e da necessidade de se romper com as simbologias, rituais e linguagens do Ancien Régime, os revolucionários precisavam educar e, de certa maneira, colocar o povo em um molde republicano. Houve, portanto, uma “politização do dia-a-dia” (Ibid, p.81), no qual as práticas políticas dos revolucionários deveriam ser didáticas, com a finalidade de educar o povo. O âmbito político expandiu-se, portanto, para o cotidiano e, segundo a autora, multiplicaram-se as estratégias e formas de se exercer o poder. E o exercício deste poder demandava práticas e rituais simbólicos: a maneira de se vestir, cerimônias, festivais, debates, o uso de alegorias e, principalmente, uma reformulação dos hábitos cotidianos.

No livro Origens Culturais da Revolução Francesa, Roger Chartier busca compreender algumas práticas que contribuíram para a emergência da Revolução Francesa. Apesar do que sugere o título, o autor não está preocupado em estabelecer uma história linear e teleológica do século XVIII partindo de uma origem específica e fechada; mas em entender as dinâmicas de sociabilidade, de comunicação, de processos educacionais e de práticas de leitura que contribuíram para um universo mental, político e cultural dos franceses naquele período. Dentre os vários capítulos de sua obra, trago aqui algumas ideias principais do capítulo Será que livros fazem revoluções? para complementar a perspectiva de Hunt, visto que os dois autores bebem de uma mesma perspectiva.

Assim como Hunt, Chartier também desenvolve em sua introdução um debate historiográfico com os escritos de Tocqueville, Taine e Mornet. No capítulo especifico citado anteriormente, Chartier afirma que estes três autores entenderam a França pré-revolucionária como um processo de internalização das propostas dos textos filosóficos que estavam sendo impressos no momento: “carregadas pela palavra impressa, as novas ideias conquistavam as mentes das pessoas, moldando sua forma de ser e propiciando questionamentos. Se os franceses do final do século XVIII moldaram a revolução foi porque haviam sido, por sua vez, moldados pelos livros” (CHARTIER, 2009, p.115). Contudo, Chartier vai além: propõe que o que moldou o pensamento dos franceses não foi o conteúdo de tais livros filosóficos, mas novas práticas de leituras, um novo modo de ler que desenvolveu uma atitude crítica em relação às representações de ordem política e religiosa estabelecidas no momento. Como foi demonstrado por Hunt, novos significados e conceitos foram reapropriados pela linguagem e retórica revolucionária. Neste sentido, Chartier propõe uma reflexão: talvez tenha sido a Revolução que “fez” os livros, uma vez que ela deu determinado significado a algumas obras.

“Assim, a prática da Revolução somente poderia consistir em libertar a vontade do povo dos grilhões da opressão passada” (HUNT, 2007, p.98). Todavia, seríamos ingênuos de pensar que estes revolucionários almejavam uma igualdade social e política sem hierarquias, na qual todos estivessem em contato pleno com o poder. Focault afirma que o poder não está centralizado, ele constitui-se a partir de uma rede de forças que se relacionam entre si: o poder perpassa por tudo e por todos. Contudo, admite que há assimetrias no exercício e nas apropriações do poder (FOUCAULT, 2006). E neste contexto revolucionário não poderia ser diferente: os republicanos, através de seus discursos, buscaram disciplinar o povo de acordo com seus interesses.

Devemos relembrar que o próprio conceito de política foi ampliado. Neste sentido, Hunt afirma que as eleições estiveram entre as principais práticas simbólicas: “ofereciam participação imediata na nova nação por meio do cumprimento de um dever cívico” (Ibid, p.155). Como consequência disto, expandiu-se a noção do que significava a divisão política e a partir de então diversas denominações surgiram: democratas, republicanos, patriotas, exclusivos, jacobinos, monarquistas, entre vários outros. Mais significante ainda foi a divisão da Assembleia Nacional em “direita” e “esquerda”; termos que perduram até hoje.

Durante este processo surgiu uma nova classe política revolucionária, conforme a autora. Contudo, não devemos pensar esta classe como completamente homogênea: ela é composta por interesses e intenções individuais, mas define-se por oportunidades comuns e papéis compartilhados em um contexto social. “Nessa concepção, os revolucionários foram modernizadores que transmitiram os valores racionalistas e cosmopolitas de uma sociedade cada vez mais influenciada pela urbanização, alfabetização e diferenciação de funções” (Ibid, p.237).

O conteúdo simbólico foi se modificando e se moldando conforme as aspirações revolucionárias durante a década que sucedeu a Revolução. Mas a autora questiona-se como tais transformações foram percebidas e recebidas nas diferentes regiões da França e de que maneira os diversos grupos lidaram com elas. Seria equivocado pensarmos que a cultura política revolucionária foi homogênea em todos os lugares, até porque tal política estava sendo construída no momento. Sendo assim, Hunt também procura contextualizar socialmente a Revolução. Ela nos propõe uma análise da sua geografia política, considerando que “a identidade social fornece importantes indicadores sobre o processo de inventar e estabelecer novas práticas políticas” (Ibid, p.153). Neste sentido, o contexto social da ação política se deu conforme as condições sociais e econômicas; laços, experiências e valores culturais de cada local.

“A Revolução foi, em um sentido muito especial fundamentalmente ‘política’” (Ibid, p.246). O estudo de Hunt nos mostra como as novas formas simbólicas da prática política transformaram as noções contemporâneas sobre o tema. Talvez este tenha sido o principal legado da Revolução Francesa e talvez ela ainda nos fascine porque gestou muitas características fundamentais da política moderna. Ela conclui, portanto, que houve uma revolução na cultura política. Mais do que enxergarmos as origens e resultados da Revolução, é fundamental compreendermos como ela foi pensada pelos revolucionários e de que maneira estes sujeitos históricos se modificaram a si próprios e a própria Revolução.

Nota

1. Resenha produzida para a disciplina de História Moderna II, ministrada pela professora Dra. Silvia Liebel, do curso de Bacharelado e Licenciatura de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Referências

CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

FOUCAULT, Michel. Estratégia, Poder-Saber. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Carolina Corbellini Rovaris –  Graduanda do curso de Bacharelado e Licenciatura de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected]


HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Resenha de: ROVARIS, Carolina Corbellini. Outros olhares acerca da Revolução Francesa. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.12, p.284-288, jan. / jul., 2013. Acessar publicação original [DR]

Política. El código Chávez – Descifrando la intervención de los Estados Unidos en Venezuela / Eva Golinger

A autora

A doutora Eva Golinger é advogada, especialista em leis internacionais sobre direitos humanos e imigração. Desde 2003, a autora investiga, analisa e escreve sobre a intervenção dos EUA na Venezuela, recorrendo ao Freedom of Information Act (FOIA) para obter informações sobre os esforços do governo norte-americano para minar os movimentos políticos progressistas da América Latina.

Golinger vive em Caracas, Venezuela, desde 2005. Em 2009, venceu o Prêmio Internacional de Jornalismo no México. “La Novia de Venezuela” como é chamada pelo presidente Hugo Chávez, é autora de vários títulos de sucesso como: “The Chávez Code: Cracking US Intervention in Venezuela” (2006 Olive Branch Press), “Bush vs. Chávez: Washington’s War on Venezuela” (2007, Monthly Review Press), “The Empire’s Web: Encyclopedia of Interventionism and Subversion”, “La Mirada del Imperio sobre el 4F: Los Documentos Desclasificados de Washington sobre la rebelión militar del 4 de febrero de 1992” and “La Agresión Permanente: USAID, NED y CIA”. Leia Mais

E. P. Thompson: Política e Paixão | André Luiz Duarte e Ricardo Gaspar Müller

Ricardo Gaspar Müller e Adriano Luiz Duarte, brindam a comunidade acadêmica em 2012 com a organização de um livro, que já nasce como inegável referência para os estudiosos da obra e pensamento de Thompson no Brasil. O trabalho é resultado de um Seminário realizado em 2003 na Universidade Federal de Santa Catarina, sob o título, Política e Paixão: dez anos sem E. P. Thompson. Evento este que reuniu pesquisadores da História, Ciências Sociais e Educação, estabelecendo debates que reiteram a centralidade dos conceitos de classe e de consciência de classe como categorias históricas fundamentais, contrapondo-se assim a muitas tendências teóricas que negavam e ainda negam seu significado e importância. No interstício entre o Seminário em 2003 e a publicação da obra aqui resenhada (2012), houve a elaboração de um Dossiê, a partir da revisão dos textos apresentados e discutidos no evento, publicado na Revista Esboços (n.12) do PPGH/UFSC, intitulado: Cultura e resistência: dez anos sem E. P. Thompson, que esgotou em meados de 2005. Mediante a procura nacional e internacional ainda hoje do n. 12 da revista citada, é que tal trabalho foi organizado. O livro conta ainda com a tradução do Pós-escrito: 1976, da segunda edição do livro William Morris: Romantic to Revolutionary, onde Thompson tece amplo debate a respeito da produção intelectual dos fins da década de 1950 até o início da década de 1970, acerca do escritor inglês e suas interpretações, por vezes relevantes, por vezes pouco proveitosas, do ponto de vista do autor.

As peculiaridades da recepção de Thompson no Brasil é tema do prefácio do livro, assinado por Marcelo Badaró Mattos que, de algum modo, anuncia a intenção basilar da coletânea: reconciliar ideia e práxis, pesquisa e engajamento político na obra de E. P. Thompson, dimensões por vezes divorciadas nas leituras de historiadores brasileiros. Nessa perspectiva hegemônica, Thompson é frequentemente associado à Nova história, em especial à cultural. Lido pelas lentes do culturalismo, tradição da qual Thompson era um crítico contumaz, resultando assim em uma domesticação das ideias deste autor, que passa a ser tratado como um marxista demasiado heterodoxo ou um historiador acadêmico clássico, esvaziando o significado de sua ação política apaixonada na configuração de seu pensamento e de sua obra. Abordar Thompson em sua integridade como historiador e militante político, eis o mérito, segundo Mattos, da proposta do livro E. P. Thompson: política e paixão.

Em seu Pós-escrito: 1976, presente na segunda edição do livro William Morris: Romantic to Revolutionary, vemos um Thompson preocupado em deslocar sua análise sobre o escritor britânico de estereótipos que foram formulados por vários intelectuais, como se fosse necessário colocar Morris dentro de uma gaveta, para possibilitar a compreensão de sua vida e obra. Incomodado com tais produções, podemos observar Thompson tecendo suas críticas. O autor elege um campo recente (entre o final da década de 1950 até a data em que escreve seu pósescrito) dos estudos relacionados a William Morris, e propõe uma reflexão rigorosa acerca de alguns pontos que foram tratados a respeito do escritor.

O que podemos destacar e oferecer para o leitor, são alguns argumentos de Thompson e seu próprio conhecimento de se perceber como falho na sua interpretação em um dado momento sobre o escritor inglês, bem como o grande respeito que nutre por Raymond Williams. O ano é de 1955 e seu livro é publicado, propõe uma interpretação distinta de Morris, observando-o como um pensador socialista original, cuja obra era complementar ao marxismo. Dessa forma, rompe com um pensamento que insiste na equação Morris = Marx, não se limitando em oferecer um Morris como marxista ortodoxo. Logo, coloca que é preciso resistir à tendência que existia entre os historiadores das ideias de perceber e teorizar conceitos, apenas em sua linhagem de herança e em suas mudanças. Dado que, as ideias existem e existiram em pessoas reais e em contextos reais.

Em O Grupo e os estudos culturais britânicos: E. P. Thompson em contexto, Ciro Flamarion Cardoso põe em discussão a conjuntura de E. P. Thompson e seu conceito de cultura. No primeiro momento, Thompson é posto como sendo o mais jovem e destacado do grupo inglês, mas em seguida ao analisar Folclore, Antropologia e História Social e, Tradição, revolta e consciência de classe, textos clássicos, Cardoso coloca que não encontra-se com precisão o que seja cultura para o historiador inglês. Com isso, passa a buscar onde se encontra as influências dos estudos sobre cultura em Thompson, visitando Raymond Williams, Pierre Bourdieu e Clifford Geertz, sem conseguir detectar com precisão as influências, ou empréstimo de ideias. Por fim, confirma a importância de Thompson e sua reflexão a respeito das lutas de classes, mas deixa notório que seu conceito de cultura é incompleto.

Célia Regina Vendramini, em seu capítulo Experiência e Coletividade em E. P. Thompson, se dedica numa breve reflexão acerca da categoria de experiência formulada por Thompson. Partindo desse princípio analítico, a autora levanta a questão, a saber, em que sentido Thompson nos ajuda a compreender as práticas políticas atuais. Assim, traça a defesa do materialismo histórico e dialético como método de análise da realidade social. Diante disso, coloca uma proposta de utilizar o materialismo histórico para estudar o Movimento dos Sem Terra (MST) em Santa Catarina, e de outros movimentos sociais, argumentando que se pode compreender o seu sentido histórico atual, da mesma forma, compreendendo suas raízes históricas e suas possibilidades para o futuro. Por fim, destaca a importância de ter uma leitura crítica e dinâmica, ao mesmo tempo que se acompanha o processo histórico.

Regina Célia Linhares Hostins, em seu capítulo O modo de fazer pesquisa do historiador E. P. Thompson, propõe em reconstituir o modo pelo qual Thompson desenvolveu seu trabalho de investigação histórica. Em A miséria da teoria, pensa o método de análise dentro de uma lógica histórica, onde a investigação pauta-se em materiais históricos que se modificam constantemente, pois, se o objeto de investigação se modifica, as perguntas também mudam. Em A formação da classe operária inglesa, estabelece um diálogo entre conceito e evidência, o conteúdo das perguntas diante do material empírico e o modo como buscar identificar as propriedades objetivas da evidência. Assim, a autora discute como se realiza a pesquisa histórica atualmente, alertando para o compromisso com as propriedades determinadas da evidência histórica, isto é, estabelecer esse diálogo entre conceitos e evidências, articulando-os para se fazer ver o processo histórico, não como uma verdade absoluta, mas como um conhecimento em desenvolvimento.

Em E. P. Thompson e a micro-história: trocas historiográficas na seara da história social, Henrique Espada Lima demonstra com muita clareza a importância das pesquisas e reflexões feitas por Thompson para a micro-história italiana. Isso fica evidente por duas situações: a rápida tradução para o italiano da obra A formação da classe operária inglesa, em 1969. Como também a publicação de uma antologia de textos em 1981, em um dos volumes inaugurais da coleção Microstorie, espaço que abrigou o trabalho de vários micro-historiadores. Porém, o historiador inglês não passou ileso, sendo criticado por recusar análises por métodos quantitativos acerca da classe trabalhadora inglesa, uma vez que Edoardo Grendi considerava a demografia como base fundadora da História Social. Os seus conceitos de classe e consciências de classe, segundo Lima, foram considerados como esquemáticos e teleológicos, pelo historiador italiano. Lima ainda atenta para a influência de Eric Hobsbawm em historiadores como Edoardo Grendi.

Em O legado de E. P. Thompson ao estudo das multidões e protestos populares, Sidnei José Munhoz traça um panorama geral dos estudos sobre multidões, localizando as contribuições de Thompson para esse debate e chamando atenção para a importância do seu pensamento no presente, em face à crise no centro do capitalismo e a ausência de projetos alternativos consolidados. Munhoz parte por um lado, das abordagens conservadoras que tratavam os protestos sociais como manifestações do primitivismo e da barbárie e, por outro, do marxismo ortodoxo onde as agitações das multidões eram vistas como manifestações de um lumpemproletariado volátil que, por vezes, pendia ao conservadorismo. Para o autor, a virada nos estudos das multidões acontecerá com Georges Lefebvre e seus seguidores, sendo intensificada por nomes como Eric Hobsbawm, George Rudé e E. P. Thompson. Este último teria dado um passo fundamental para os estudos das multidões e protestos populares, ao perceber nessas manifestações o embrião de uma consciência de classe. Termina traçando um diálogo entre Thompson e seus críticos, além de apontar sua influência em historiadores contemporâneos.

Em Exterminismo e Liberdade Política, Ricardo Gaspar Müller retoma o ativismo e o pensamento de Thompson em face à proliferação de armas nucleares por conta da Guerra Fria. Para Thompson, a lógica da Guerra Fria estava na reciprocidade da ameaça entre EUA e URSS. Essa dinâmica se autoalimentava, assim, as potências se armavam cada vez mais, fomentando interesses políticos e econômicos que dependiam da Guerra Fria para sobreviver. Era preciso um movimento de baixo que pressionasse as mudanças em ambos os blocos. É no interior dos movimentos pacifistas e antinucleares que Thompson sofistica o conceito de exterminismo tomado emprestado de Marx, para definir o período em que vivia, o período do desenvolvimento de uma tecnologia do apocalipse que, em sua lógica perversa, prenunciava o extermínio da própria humanidade. Para Thompson, só a resistência popular é que poderia propor outras alternativas à humanidade, e a paz não viria de cima, pois, as elites governamentais estava presas à própria lógica da guerra. Nesse capítulo percebemos com clareza a aplicabilidade política da história dos de baixo.

Em E. P. Thompson e a pesquisa em Ciências Sociais, Ricardo Gaspar Müller e Maria Cecília Marcondes Moraes chamam a atenção para a pertinência do pensamento de Thompson para o debate contemporâneo sobre as pesquisas em Ciências Sociais, especialmente em face às tendências que põem em cheque a própria capacidade de apreensão do real e sua base ontológica. Debruçados sobre os oito pontos da lógica histórica, desenvolvidos por Thompson em The poverty of theory – em especial o quinto ponto onde Thompson reafirma seu solo ontológico ao propor que o compromisso da história deveria ser com a história real – e em seus conceitos de experiência e cultura, entendidos como “conceitos de junção” entre o ser social e a consciência social. Diante disso, os autores indicam o pensamento thompsoniano como um bom contraponto ao ceticismo epistemológico e ao relativismo ontológico, além de um convite para pensar as consequências da teoria.

Qual o essencial de E. P Thompson? Uma resposta possível foi dada à comunidade de historiadores por Dorothy Thompson, esposa e colaboradora do historiador e militante inglês, quando editou o livro The Essential E. P. Thompson em 2000. Coletânea de textos que está dividida em quatro partes: Política e cultura, Leis e costumes, História e teoria e, Lendo e escrevendo história. Adriano Luiz Duarte em Lei e costume: o essencial de E. P. Thompson concentra-se na segunda parte do livro de Dorothy, objetivando entender a compreensão de Thompson acerca da lei e a forma como articula justiça e direito. Com acuidade e clareza, Duarte indica que, para Thompson, parece fundamental observar a relação entre costume e lei em constante instabilidade e mutabilidade, salientando que a lei não poderia ser entendida como mera ideologia, sendo antes instância de conflito do que consenso. Termina por considerar que “[…] o argumento central de Thompson é que, obviamente, não se pode acreditar na imparcialidade abstrata da lei. Onde houver desigualdade de classe, a lei sempre será impostora”. (p. 346).

À luz do exposto acima, consideramos de grande importância a iniciativa dos organizadores da coletânea em refletir sobre Thompson em sua integridade, enquanto historiador e ativista político, ao fazê-lo, com sucesso, seguem os ensinamentos do próprio Thompson, para quem a agency e a experiência, são determinantes na formulação das ideias, no conjunto, os autores contribuem para desdomesticar a obra e o legado de E. P. Thompson, ampliando os horizontes de sua abordagem, prestando merecido tributo a esse importante historiador.

Referência

MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUARTE, André Luiz. (Orgs.). E. P. Thompson: Política e Paixão. Chapecó: Argos, 2012.

Jhonatan Uewerton Souza – Graduado em História pela UEM. Mestrando em História pela UFPR.

Thiago Ernesto Possiede da Silva – Graduado em História pela UEPR. Mestrando em História pela UFPR.

Thiago do Nascimento Torres de Paula – Graduado em História pela UFRN. Doutorando em História pela UFPR.


MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUARTE, André Luiz. (Orgs.). E. P. Thompson: Política e Paixão. Chapecó: Argos, 2012. Resenha de: SOUZA, Jhonatan Uewerton; SILVA, Thiago Ernesto Possiede da; PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. Desdomesticando E. P. Thompson. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.1, n.1, p. 235-240, 2013.  Acessar publicação original [DR]

MAIA Clarissa Nunes (Org) [et al], História das prisões no Brasil (T), Rocco (E), SANTOS Jéssica Luana Silva (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), História das Prisões, América – Brasil, América – Séc. 18-20

O livro História das prisões no Brasil é composto por oito artigos que se debruçam sobre a temática do sistema carcerário no Brasil e na América Latina. O primeiro deles, intitulado “Cárcere e Sociedade na América Latina (1800-1940)”, do autor Carlos Aguirre, nos mostra que no período Colonial as prisões apareciam de forma esporádica e com a finalidade de “depositar” sujeitos suspeitos pela justiça, ou aqueles que estavam esperando sentença. Diante da situação de descaso surgem alguns críticos que acreditavam que as prisões deveriam ser um lugar que tivesse a capacidade de transformar os detentos em cidadãos dignos e laboriosos. No entanto, tais discursos não saíram do papel.

Foi somente no século XIX que a ideia de transformar a cadeia em um local que tivesse a capacidade de converter os detentos em cidadãos dignos e laboriosos foi incorporada ao discurso local, tendo como objetivo muito mais imitar os padrões europeus na busca pela modernidade do que alimentar a preocupação especifica com a atuação sobre os seus detentos. O que atraiu o Estado para esse modelo penitenciário foi também o desejo de reforçar os mecanismos de controle e encerramentos já existentes. Porém, mesmo com a construção de penitenciárias na América Latina é importante frisar que ainda havia uma rede de cárceres pré-modernos que faziam uso de castigos tradicionais a fim de corrigir os sujeitos com condutas desviantes. Em linhas gerais, pode-se dizer que, no final das contas, mesmo com as críticas e sugestões de advogados, criminólogos e médicos, as prisões ficaram à margem da regulamentação do Estado na América Latina.

No século XX, mesmo com a influência da criminologia positivista e penalogia científica, a realidade carcerária permanecia a mesma. Os presídios masculinos eram verdadeiros infernos, onde homens viviam sem as mínimas condições de higiene. Os presídios femininos não fugiam à regra, no entanto a situação era ligeiramente mais amena porque estas ficavam sob a tutela de instituições filantrópicas. O perfil de detentos era diversificado o que muitas vezes fazia com que o espaço carcerário se transformasse em palco de conflitos entre detentos de grupos distintos. Com esses pontos, a conclusão que o autor chega é que os presídios estavam longe de serem modelos na recuperação dos detentos.

O segundo artigo, “Sentimentos e ideias no Brasil: pena de morte e digerido em dois tempos”, Gizlene Neder se encarrega de tecer uma análise sobre o código penal de 1830. Durante o século XIX o Brasil torna-se palco de discussões sobre as políticas de segurança e de justiça criminal. Antes de se reportar ao período analisado, que é o início da República, a autora faz um recuo temporal para melhor entender esses debates.

No período, a pena de morte restringia-se a escravos rebelados, e tal castigo tinha um objetivo inibidor e, portanto, exemplar. Mesmo com as ideias iluministas no começo do século XVIII, que defendiam penas de prisões diferentes segundo natureza e gravidade, estas não alteravam a organização social e política.

Em Portugal, por exemplo, os castigos tradicionais: pena de morte e degredo era pouco aplicado e serviam mais para intimidar. Nesse quadro os reis apareciam como sujeitos misericordiosos, a eles caberia à decisão de dosar o perdão, propagando assim a ideia de que o rei, mais que punir, deveria ignorar e perdoar.

No fim do século XVIII, as ideias iluministas defendiam que esses castigos provocavam distúrbios sociais e que as prisões seriam a melhor forma de punir. Vários países da Europa passaram a observar tais ideias e formularam novos códigos penais. O código penal de 1830 do Brasil era altamente repressivo. Desde o início da República, ia da apologia ao trabalho e disciplina até as práticas mais agressivas. A pena de morte não era clara, ao contrário do degredo, que era destinado àqueles que se envolviam em sedições e revoltas militares. Tais penas desenvolveram inúmeros debates.

O artigo seguinte, “A presiganga Real (1808-1831): trabalho forçado e punição corporal na marinha”, da autoria de Paloma Siqueira Fonseca, trata de um navio português que transportou a família real para o Brasil em 1808 e que passou a ser usado como depósito de sujeitos que cometiam crimes graves, e, como punição, eram submetidos ao trabalho forçado. É importante destacar que esses detentos não eram condenados à presiganga, mas nela depositados para realizar trabalhos pesados ou para receber castigos corporais. Tal navio-presídio podia ser comparado aos navios negreiros, pois as situações ali eram semelhantes. Os sujeitos eram de cor escura, viviam em péssimas condições, acorrentados e amontoados uns sobre os outros, além de serem submetidos a rígidos castigos corporais, alguns chegando mesmo a receber 300 chibatadas.

Como se tratava de um lugar temporário, não havia leis que regulamentassem esse navio-presídio, talvez por conta disso o responsável pelo navio, Marcelino de Souza Mafra usasse de austeridade para com os detentos. Em um episódio violento que aconteceu na presiganga, Mafra foi denunciado por sua tirania. De acordo com os detentos, ele castigava por qualquer ato e abusava de seu poder. No julgamento, Mafra não recebeu nenhuma punição, ao contrario, era elogiado pelo tempo de serviço prestado e por manter o naviopresídio em ordem. Além disso, as autoridades afirmavam que a atitude de Mafra era correta, pois os detentos representavam um fardo tanto para a sociedade como para a Marinha. E assim Mafra continuou no seu cargo e fazendo uso dos mesmos métodos até a desativação do navio-presídio.

O artigo da autoria de Marcos Paulo Pedrosa Costa, intitulado “Fernando e o mundo – o presídio de Fernando de Noronha no século XIX”, traz o relato da ilha de Fernando de Noronha como um lugar permeado por paradoxos. Por um lado, a ilha encantava seus visitantes com sua beleza exuberante, mas por outro representava horror e desumanidade para os que ali se encontravam aprisionados.

Não se sabe ao certo quando a ilha começou a servir como prisão, parece remontar ao século XVIII, o certo é que naquele lugar não havia uma prisão como edifício, somente a prisão de aldeia que era destinada àqueles considerados incorrigíveis. A prisão era a própria ilha e suas paredes o mar. Na ilha viviam paisanos (pessoas que não eram detentos nem militares) detentos, viradeiros e militares. Essas pessoas tinha uma vida normal naquele lugar, alguns chegavam até mesmo a se casar e constituir família, no entanto não se pode imaginar esse lugar como um paraíso, apesar do aparente clima de conformismo dos alguns detentos, não raro havia brigas e discussões entre os moradores do local. Alguns se arriscavam tentando evadir-se daquele lugar, mesmo tendo por certo a morte, outros preferiam tirar suas vidas ali mesmo em Fernando cometendo suicídio.

No artigo subsequente, “O tronco na enxovia: escravos e livres nas prisões paulistas dos oitocentos”, Ricardo Alexandre Ferreira tem por objetivo analisar a equiparação da situação vivenciada por escravos e homens livres que acontecia até o século XIX na esfera da Justiça criminal brasileira. Para tanto, o autor lança mão da interpretação de relatórios da Presidência da Província de São Paulo, ofícios administrativos, autos de crimes e de obras jurídicas produzidas entre 1830 e 1888. São basicamente dois os argumentos que norteiam a construção do texto. No primeiro deles, através da comparação entre as Ordenações Filipinas e o Código Criminal do Império, se desenvolve a noção de que não existia um descompasso das leis imperiais brasileiras em relação aos princípios iluministas que norteavam a legislação europeia.

Entretanto, devido à manutenção da escravidão, existia a perpetuação de uma situação de exceção que se acomodou à sociedade. Por outro lado, e então entramos no segundo argumento, uma condenação judicial, em última instância, era bastante complexa e morosa. Sendo assim, o encarceramento era visto como um período transitório, a prisão era encarada como um local onde os presos deveriam aguardar o seu julgamento, o que poderia durar anos. Enquanto isso, livres, libertos e escravos, acusados das mais diferentes infrações e irregularidades, se encontravam durante um bom tempo, acorrentados ao mesmo tronco. Como conclusão, o autor alega que esta proximidade teve como fruto a aliança entre os que ali estavam, sendo, inclusive, registrada através de fugas planejadas e executadas de maneira compartilhada.

O artigo “Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821” de Eduardo Araújo mostra que no final do século XVII existiam três categorias de prisões no Brasil: a Cadeia Pública, a Cadeia do Tribunal da relação e o Calabouço, esta última destinada à escravos. Tais presídios eram superlotados, caracterizados pela ausência de acomodações e proliferações de doenças devido as péssimas condições de higiene, os detentos pareciam zumbis, mal- alimentados e mal- vestidos. Dentro desse espaço, outra personagem ganhava destaque: os carcereiros, que também sofriam com o descaso, principalmente em relação aos seus pagamentos que frequentemente eram atrasados. A justificativa das autoridades era que estes exerciam outros ofícios e que devido às péssimas condições financeiras não era possível pagá-los.

A situação dessas prisões piorou com a chegada da Corte Real em 1808, visto que várias casas tiveram que ser desocupados para ceder espaço à comitiva Portuguesa, e isso aconteceu também com as prisões. Os presos foram transferidos para o Aljube, antigo espaço pertencente à Igreja, as condições ali eram ínfimas e degradantes. Somada à superlotação, muitos morriam vitimados pela proliferação de doenças. Com tanto horror e caos, a solução encontrada foi o conforto espiritual dos detentos com a realização de missas.

O sétimo artigo “O calabouço e o aljube do Rio de Janeiro no século XIX”, Thomas Holloway retrata o processo do Brasil rumo à formação de um Estado independente e nos termos daquela época, moderno. Nesse contexto foram estabelecidas instituições para controlar o comportamento populacional urbano, como a criação da intendência de polícia, a Guarda Real da Polícia e Corpo Municipal de Permantes. As duas principais prisões eram o Calabouço e o Aljube.

O calabouço era uma prisão destinada aos escravos que deveriam receber castigos à mando de seus donos. Com relação às condições de higiene, eram aterrorizantes, sem ventilação, e com escassez de alimento, além disso, muitos escravos morriam devido ao excesso de chibatadas. Dentro desse quadro de horror, surge uma figura importante Diogo Antônio Feijó que reconhecia a humanidade dos escravos, e ordenou que o chicoteamento de escravos no Calabouço não poderia ultrapassar duzentos acoites, em sessões de cinquenta por dia.

Já o Aljube não era uma prisão, ele passou a desempenhar tal função com a chegada da Família Real em 1808. Tornando-se o destino da maioria dos presos, escravos ou livres que aguardavam julgamento ou a sentença por crimes comuns. Esse espaço de depósito foi muito criticado, não só por conta das péssimas condições, mas também devido a sua arbitrariedade, uma vez que ali ficavam desde o ladrão de frutas até o bandido mais violento. Além do mais, não havia segurança, sendo constantes os conflitos tanto entre detentos, como também de detentos com guardas e carcereiros.

O último artigo, intitulado: “Trabalho e conflitos na casa de correção do Rio de Janeiro”, de autoria de Marilene Antunes S’Antana, mostra a construção da casa de correção como uma ruptura em relação ao que se tinha até a metade do século XIX no Brasil. Essa instituição foi construída com o objetivo de educar e (re) socializar o detento, o que deveria ser feito através da disciplina, trabalho e religião.

Várias eram as oficinas onde os presos tinham a oportunidade de aprender um ofício para depois aplicá-lo ao sair. No entanto, nem tudo saiu como se havia planejado, pois nessas oficinas passaram a sediar inúmeros conflitos e até mesmo a morte de alguns deles. De qualquer forma, outros obtiveram bons resultados e tiveram suas penas reduzidas ou foram perdoados graças ao trabalho. O livro, como um todo, cumpre seu objetivo que é analisar historicamente o sistema carcerário, mostrando como este passou por uma série de mudanças. É uma leitura recomendada não somente aos historiadores de profissão, mas também aos estudantes de direito visto que o livro é ancorado em análises de códigos penais.

Referência

MAIA, Clarissa Nunes [et al] (org.). História das prisões no Brasil. vol 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

Jéssica Luana Silva Santos – Graduanda do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Heróis do Jenipapo.

MAIA, Clarissa Nunes [et al] (Org.). História das prisões no Brasil. vol 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.  Resenha de: SANTOS, Jéssica Luana Silva. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.1, n.1, p. 241 – 245, 2013. Acessar publicação original [DR]

OLIVEIRA Edmar (Aut), A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador (T), Oficina da palavra (E), SOUSA Valéria Santana (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Santatório Von Meduna, Clidenor Freitas Santos, História da Psiquiatria, Estado do Piauí, América – Brasil, Séc. 20

Edmar Oliveira médico psiquiatra piauiense nos traz, em sua narrativa, seus percursos ao acompanhar o programa de saúde mental do Piauí. Edmar aborda a história do sanatório Von Meduna junto à trajetória do médico Clidenor Freitas Santos, importante nome da psiquiatria na história do estado. A experiência do trabalho de implantação do programa de saúde mental no Piauí foi transformada em livro e nos possibilita conhecer um pouco do que foi a constituição da psiquiatria na capital. Teresina foi uma das primeiras capitais brasileiras a ter uma “casa de doidos”. Ladislas Joseph Von Meduna, inventor da convulsão provocada pela medicação cardiazol, inspirou o nome do hospital psiquiátrico de Teresina, mais conhecido como sanatório Von Meduna.

Inicialmente o autor apresenta uma pequena introdução fazendo uma incursão histórica local, referenciando à composição étnica do Piauí, citando a presença dos “dois Domingos”: Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Mafrense, tidos pela historiografia tradicional e mais conservadora como heróis locais. Edmar ressalta a necessidade de repensarmos tal afirmação a esses personagens, uma vez que, dentre muitas de suas ações pelas terras dos meio-norte brasileiro, juntaram forças pra exterminar parte dos índios que ocupavam esse território. Dentro desta retomada histórica, também cita o importante papel da miscigenação junto à composição étnica do estado.

A criação do primeiro centro psiquiátrico do Piauí foi um feito do médico Areolino de Abreu, que teve a ideia de fundar uma casa para loucos, batizando esse centro como “asilo de alienados”. Mas, como o próprio texto aponta, a criação desse centro psiquiátrico não aconteceu devido à preocupação com os alienados – pois a alienação mental não parecia ser compreendida como um problema de saúde pública na época – mas sim com intuito de aferir uma condição asséptica à cidade e, concomitantemente, com a ambição de tornar Teresina uma cidade civilizada e “limpa”, servindo também para enaltecer o nome de seu criador, Areolino de Abreu.

Em 1940, o primeiro psiquiatra do Piauí, Clidenor Freitas, assume a direção do asilo e elabora um relatório denunciando as condições em que o mesmo se encontrava, propondo melhorias de acordo com o conhecimento da época. Entre os métodos defendidos pelo novo médico ganha-se destaque a retirada das correntes dos pacientes, substituindo esta prática pela inserção de métodos novos, como a malarioterapia (inoculação do vírus da malária em pacientes com demência paralítica causada pela sífilis) criada pelo cientista J. Wagner Jauregg, a insulinoterapia e a convulsão cardiazólica, de Von meduna.

Clidenor Freitas procurou modernizar o tratamento psiquiátrico no estado desde os métodos utilizados e até mesmo se preocupou em alterar o nome da casa de tratamento na tentativa de redimensionar o conceito que o nome impelia à instituição e sua prática, substituindo o nome “Hospital de Alienados” para “Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu”, já que, segundo ele, nem todo alienado podia ser considerado louco.

Em 1954, Clidenor inaugura o sanatório Von Meduna. Este mesmo foi construído no terreno de sua propriedade bem longe do perímetro urbano da capital. Outro marco na psiquiatria piauiense desta época foi a substituição dos tratamentos de choques insulínico e cardiazólico pelo aparelho de eletrochoque. A criação do Meduna foi considerada um marco, enquanto dispositivo modernizador dentro do movimento sociopolítico que engrenava os processos civilizatórios da cidade.

O sanatório Von Meduna, em Teresina, era a própria “encarnação da loucura”, dizia o autor, mas também trazia consigo os desejos e os projetos de trabalho e vida almejados pelo seu criador. Edmar Oliveira reproduz alguns trechos do discurso de inauguração e retratações pessoais feitos por Clidenor Freitas.

Carta aos meus filhos:

Quando houverdes atingindo a maturidade da vida, saberia compreender, em profundidade, os sentimentos que nessa data dominam o vosso pai. Sabereis que foi constante labor consciente de um homem que decidiu agir para concretizar um plano objetivo, real e tangível, destinado a amparar no conforto e na segurança, aqueles que perderam a razão (…) (FREITAS apud OLIVEIRA, 2010, p.43).

Em outro momento, Clidenor procura justificar os enormes gastos feito para a construção de sua obra maior, com o testemunho de Câmara Cascudo presente na inauguração.

Materialmente seu valor atual e bem elevado com, diria como dizem os medíocres para ‘fazer a independencia’ de um homem (…). O que importa não são os milhões que vale o sanatório, mas o objetivo a que ele se destina, (FREITAS apud OLIVEIRA, 2010, p.45).

Quatro anos após a inauguração do sanatório, Clidenor Freitas se envolve com a vida política e com outros empreendimentos empresariais. Durante esse tempo a direção do sanatório fica nas mãos de seu irmão mais novo. Clidenor Freitas morreu aos 87 anos, e, como o próprio autor diz, é necessário ressaltar sua importância na constituição da psiquiatria piauiense, anunciando novos métodos de tratamentos, defendendo a condição humana, considerando outras tentativas de inovações de cuidados para a época.

Alinhado a essa descrição histórica, Edmar Oliveira também não se exime de promover um propício debate sobre a crise de desumanização que os hospícios estão sujeitos: “por mais que se humanize um hospício ele tende a se desumanizar na sequencia, basta só um recorte de tempo”.

Menos de dez anos depois das reformas implantadas no hospício em Teresina, os pacientes voltaram a ser tratados de acordo com sua posição social. Muitos considerados indigentes, tratados de forma desumana, vivendo em ambientes com péssimas condições, tanto na área estrutural quanto na parte da alimentação, higiene, no isolamento total. Posteriormente com administração de Carlos Alves Araújo essa situação é revertida, melhorando a condição dos “indigentes”.

Em parte intermediária da obra, o autor promove um debate sobre a “competição” comercial que o capitalismo moderno suplantou nas “empresas médicas do estado”. Nesse sentido, Edmar menciona a restrição comercial que a “empresa” Von Meduna sofreu ao não participar das competições mercantis das empresas médicas do sistema de saúde de Teresina. Pois o esse sistema se tornou um ramo empresarial de grande porte à custa da maioria da população do estado, que dependeu na maioria das vezes do atendimento médico da capital. Nesse contexto ele cita como exemplo atual do Sistema Único de Saúde (SUS) que também tem suas inúmeras deficiências, até mesmo por não suportar a demanda de dependentes. Mas, por outro lado, o SUS permitiu que os hospitais Areolino de Abreu e Von Meduna dividissem a clientela de maneira igualitária, longe da concorrência das empresas médicas.

Entre as discussões propostas por Oliveira estão também os apontamentos que permeiam “novas” compreensões acerca do tratamento mental. Alguns pensadores como Foucault, Castel e Basaglia contribuíram pra que houvesse uma reforma no campo psiquiátrico no Brasil, entre os princípios que regem a reforma está a “devolução” ao paciente internado os direitos fundamentais de pessoa humana, devido a situação degradante dos sujeitos que são longamente internados e esquecidos. No Piauí, a luta por melhoria da condição humana dos pacientes, só irá se manifestar no inicio do século XXI, foi apenas em 2003 que pela primeira se comemorou “o dia da luta antimanicomial”.

A partir de 2004, surgiu o “serviço substitutivo” que ficou conhecido como Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSin), esse serviço tornou-se passivo de determinadas críticas por trazer consigo os mesmos vícios das políticas manicomiais. Em 2005, foi aberto o CAPS Norte e o CAPS Leste, essas instituições tinham serviços contrários ao modelo hospitalar das casas Areolino de Abreu e do Von Meduna.

A diminuição dos leitos implantados pelo ministério da saúde desencadeou na implantação de serviços residenciais de terapia em comunidades. Enquanto isso, os hospitais Areolino de Abreu e Von Meduna continuavam a funcionar sem tomar conhecimento dos novos métodos implantados. Esses novos serviços, segundo o autor, proporcionavam o enfrentamento da doença mental de maneira mais saudável e ampla. A utilidade dos hospitais Von Meduna e o Areolino de Abreu foram questionados por uma nova política de assistência pública.

Nos últimos capítulos, Edmar relata de maneira bem pessoal a sua volta aos sanatórios Areolino de Abreu e Von Meduna como consultor do ministério da saúde, enfatizando o fechamento do Von Meduna. A situação encontrada neste recinto não revelava nem de longe o esmero próximo àquele da época de sua fundação. Para justificar o “triste fim” que o hospital sofreu, Edmar Oliveira fez menção ao discurso escrito de inauguração do Von Meduna, feito por seu criador, Clidenor de Freitas, onde assevera que uso do dinheiro só fazia sentido a uma causa nobre. (OLIVEIRA, 2010, p.111)

Continuando, Edmar registra suas participações nas conferências nacionais de saúde mental, e os debates em relação ao fechamento do Von Meduna, situação que gerou muitas discurções, já que havia uma preocupação por algumas partes em relação ao destino dos “loucos” que lá estavam. Entretanto para Edmar Oliveira o fechamento do hospital Von Meduna significava a libertação do antigo regime manicomial e assim ele conclui com suas palavras:

Não se pode construir o existir quando é seqüestrado o seu lugar no mundo. E hospital não é morado de ninguém. Von Meduna retira-se sem fazer falta a uma cidade que passou, a saber, conviver e a tratar seus loucos na diversidade e na acolhida que os novos tempos anunciam… (OLIVEIRA, 2010, p. 132)

O fechamento do Von Meduna ainda foi alvo de questionamentos, o que ocasionou em dificuldades na consolidação dos novos modelos de tratamento psiquiátrico. Edmar oliveira encerra seu livro falando dos loucos que escaparam das ações psiquiátricas de Teresina, e que fazem parte da memória dos filhos da terra, também relata de maneira bem tocante à história dos loucos que estão na memória de sua infância, citando seus três preferidos: Manelão, Bibelô e Nicinha “eles eram da cidade, das ruas, das aglomerações. Nossos. Sem eles Teresina não tem sentido pra mim”.

A obra de Edmar Oliveira não se caracteriza apenas pela descrição histórica das instituições médicas e o tratamento da doença mental do estado. A obra é também uma abordagem crítica sobre as condições de tratamento dos sujeitos que são atravessados por uma maneira distinta de ver o mundo. O livro, em sua plenitude, é composto por uma visão crítica que compõe um posicionamento antimanicomial. Nele também observamos uma incursão pela história do Piauí, e da cidade capital, Teresina, palco de muitos dos personagens desterritorializados e marginalizados que fizeram parte da vida do autor. É um livro que também tematiza sobre experiência pela cidade e as memórias que retratam esse passado.

Referência

OLIVEIRA, Edmar. A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador. Teresina: oficina da palavra, 2010.

Valéria Santana Sousa – Discente do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí.

OLIVEIRA, Edmar. A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador. Teresina: oficina da palavra, 2010. Resenha de: SOUSA, Valéria Santana. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.2, n.1, p. 325-329, 2013. Acessar publicação original [DR]

REVEL Jacques (Aut), História e Historiografia: exercícios críticos (T), Editora UFPR (E), CATARINO Samila Sousa (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Teoria da História, Epistemologia da História, Epistemologia Histórica, Historiografia, Séc. 20, Europa – , Séc. 19-20

A obra “História e Historiografia: exercícios críticos”, do historiador Jacques Revel, é composta por nove artigos que refletem sobre o debate historiográfico no decorrer do século XX, em especial nas últimas décadas. No capítulo inicial, intitulado: “Construção francesa do passado: uma perspectiva historiográfica”, Revel propõe uma discussão sobre a historiografia francesa desde os fins da Segunda Guerra Mundial. Através dessa incursão, o autor analisa a contribuição dos franceses para a produção historiográfica. De acordo com sua concepção reflexiva, o debate historiográfico mediante novas proposições paradigmáticas, adquiriu certa retomada antes da Guerra, com as contribuições de Bloch e Febvre, porém esse não seria o marco inicial para tais discussões, esse debate teria sido proposto bem antes de 1929, ano de ascensão dos Annales.

Em 1870, as Universidades Francesas estavam passando por certa “elaboração da política universitária”. Isso porque a França via-se derrotada face aos conflitos políticos e econômicos protagonizados contra o novo “Reich” da Alemanha, o que alimentou junto aos franceses um sentimento de “revanche”, que, dentre outras coisas, impulsionou um modo de se repensar o ensino universitário no país. A disciplina história teve um papel fundamental nesse processo, pois serviu para reanimar uma nação que tinha sido humilhada pelos Alemães. Diante desses acontecimentos, o saber histórico passou por renovações. Tal proposição foi gestada no fim do século XIX, visava romper com a literatura e ganhar o status de ciência, constituindo-se como um saber “metódico”. Outras ciências como: geografia, psicologia, economia e em especial a sociologia de Durkheim vivam também um processo de renovação.

A mudança de paradigma proposta ao saber histórico subsidiou críticas por parte de outras frentes intelectuais. Os discípulos de Durkheim, por exemplo, criticavam a história mediante seu pleito em busca do lugar de ciência. Um deles, François Simiand, a criticava por argumentar que os acontecimentos factuais – campo de reflexão da história – não ofereceriam subsídios suficientes para arvorar ao status científico. As ponderações feitas por Simiand, e demais rivalidades, contribuíram com a proposta de Bloch e Febvre que absorveram tais críticas e propuseram uma nova forma de se pensar e escrever o conhecimento do passado.

O segundo artigo: “Mentalidades: uma particularidade francesa? História de uma noção e de seus usos”, o autor, a princípio, se volta a discutir a etnologia da palavra mentalidade e a partir dessa projeção promove uma análise em torno de seu significado. Revel assevera que o termo passa a ser difundido nos “vocabulários científicos” das diversas ciências como: antropologia, psicologia, sociologia e história, no decorrer do século. Dentre essas ciências o autor destaca a psicologia como sendo de suma importância para o debate nas áreas humanas. No desenvolvimento da análise são citados vários exemplos de estudiosos que se debruçaram no estudo da psicologia para a compreensão do social, dentre eles podemos citar o historiador Lucien Febvre que procurava compreender sobre a natureza das representações coletivas, se apoiando no conceito de “psicologia histórica”.

Revel volta às discussões associadas ao conceito e à aplicabilidade do termo ligado ao conhecimento social, retomando através de sua análise referências sobre os primeiros historiadores que desenvolveram uma abordagem histórica a partir do conceito “mentalidade”, e elencando os debates travados entre os campos da sociologia, psicologia e história, a respeito de sua apropriação, o que fez com que o conceito adquirisse amplitude em outras esferas intelectuais para além do seu domínio “mátrio” – França – apesar de ser afirmado como um gênero caracteristicamente francês.

O artigo seguinte: “A instituição e o Social”, tem por abordagem os debates e os discursos produzidos pelos historiadores em torno do modelo e conceito de “instituição”. Revel procura demonstrar que quando se pensa na categoria instituição a primeira dificuldade apresentada vem a ser a definição da palavra. Seguindo esse pressuposto, o autor propõe em seu artigo três formas de compreensões conceituais. O primeiro visa caracterizar a instituição como uma dimensão jurídica e política. O segundo traz a instituição num conceito mais amplo que se refere ao funcionamento e organização de determinados domínios, respondendo assim a uma demanda coletiva da sociedade. A última concepção, mas não menos importante, procura compreender a instituição como “toda a forma de organização social”.

A partir dessas conceituações, o autor constrói apontamentos em que relaciona a instituição e campo social. O primeiro conceito alimenta a lógica política quando se pensa nas questões institucionais, ligada à disciplina erudita. Durante muito tempo a historiografia prendeu-se a uma noção na qual considerou as instituições como locais que serviam para os arquivamentos de documentos, tornando assim sua compreensão restrita. Porém, outra compreensão para o termo, arrolando um sentido mais amplo, foi desenvolvida por Durkheim, da tradição sociológica moderna, sendo bastante difundida atualmente. Nesta baliza de pensamento elas seriam “criadoras de identidades” do núcleo social, isso porque os “fatos sociais são compreendidos como instituição”.

Revel relembra que, há muito, a tradição de pensamento sociológica foi desprezada pelos estudiosos, restringindo assim ao estudo político-jurídico, mas com o passar dos anos a abordagem sócio-histórica foi adquirindo vários adeptos. Essa mudança é chamada pelo autor de “evolução historiográfica”, onde os estudiosos passaram a tratar as relações sociais como constructos das instituições. Outro ponto abordado pelo autor vem a ser o estudo da posopografia ou biografia coletiva que seria um método utilizado na história, o qual permite observar os grupos sociais em suas dinâmicas internas e seu relacionamento com outros grupos.

O artigo “Michel de Certeau historiador: a instituição e seu contrário” vai desenvolver uma análise sobre a importância dos estudos de Certeau e o quanto este intelectual continua sendo amplamente estudado na academia por conta de suas pluralidades e perspectivas. Para iniciar essa análise, o Revel traz três momentos diferentes da obra de Certeau. O primeiro exemplo é uma obra em que Certeau tematiza sobre a espiritualidade jesuítica no início do século XVII. Jacques Revel procura dissertá-la demonstrando que a mesma se apresenta como uma não separação das experiências individuais e coletivas das instituições sociais. O segundo exemplo vem a serem os escritos que permeiam “A operação historiográfica”, discussão que ganhou força no terreno dos historiadores na contemporaneidade. De acordo com Revel a marca maior da operação historiográfica diz respeito à assertiva sobre a compreensão do oficio do historiador que ganha legitimidade a partir do lugar social na qual é produzido. O terceiro exemplo seria a imagem do próprio Certeau como um homem que gostava de viver em grupo, um homem plural.

No artigo subsequente “Máquinas, estratégias e condutas: o que entendem os historiadores”, Revel objetiva analisar o pensamento de Michel de Foucault e como esse pensador influenciou os historiadores em suas produções intelectuais, assim como a sua recepção na historiografia. O autor mostra que Foucault preocupou-se em pensar a função do autor, reflexão que os historiadores não tinham atentado em fazer até àquele momento. Para Revel os textos de Foucault são interpretados de diversas formas muitas vezes o deformando por completo. Em um texto de Foucault é como se existissem vários Foucault’s, isso porque os leitores construíram várias imagens muitas vezes deturpadas sobre ele. O “incômodo” de Revel nesse sentido refere-se ao fato que diversos historiadores se encontram satisfeitos com determinadas leituras reducionistas que são feitas ao pensador francês.

Para aprofundar sua análise o autor traz três imagens dele. O primeiro Foucault foi “descoberto” nos anos 60, este se aproxima muito das propostas dos Annales, e, assim como os historiadores de sua geração, Foucault produzia uma história estrutural. O segundo Foucault é aquele que trouxe a tona o conceito de “estratégia”, conceito esse que fez bastante sucesso entre os historiadores durante os anos 70. O terceiro é o Foucault seria aquele preocupado com as “condutas”, onde voltou-se a pensar sobre as relações de poder. A partir dessas três imagens, Revel vai elaborando uma análise de algumas obras consideradas importantes (Historie de La sexualité, L’ Archéologie Du savoir e etc.), trazendo conceitos de fundamental importância para a compreensão da trajetória de Foucault e assim este era visto pelos historiadores.

O artigo “Siegfried Kracauer e o mundo de baixo”, o Jacques Revel procura mostrar algumas reflexões feitas a partir da obra de Kracauer, onde este faz críticas sobre o campo da história. Primeiramente, Revel descreve uma pequena biografia do autor, assinalando inicialmente que este não era historiador e o seu interesse pela história aconteceu tardiamente, mas isso não o impediu de fazer um debate sobre o ofício de estudar o passado. Em sua obra History. The last things before the last. Kracauer traz algumas discussões sobre a cientificidade da história, historiadores, filmes e literatura.

De acordo com Revel, a questão da cientificidade da história é discutida em sua obra maneira enfática. Seguindo esta proposta, Kracauer alimenta a compreensão da história como uma disciplina da ciência social. Ele também promove um debate filosófico sobre as propriedades epistemológicas da história apoiando-se nas ideias de Dilthey, tomando por base os argumentos produzidos desde o fim do século XIX sobre tal discussão. Para ele a história pode reivindicar-se enquanto ciência social, a partir do momento em que ocorrem fenômenos que podem ser analisados e compreendidos em suas relações a partir de determinadas regularidades.

A segunda argumentação vem a ser do ofício dos historiadores, onde este trabalha com as fontes, que para ele são a “incompletude e a heterogeneidade das experiências humanas no tempo”. Revel relembra que Kracauer descrevera o modo como eram vistas as fontes no século XIX, sendo entendidas como detentoras de uma verdade absoluta e incontestável. Dando continuidade às suas reflexões, ele fala sobre literatura e filmes. Para ele, é importante se pensar no conceito de realidade. Segundo Revel, Kracauer faz uma analogia entre o literário e o historiográfico: o primeiro é livre de qualquer distinção realista, pois este vai compor a realidade a qual está inscrito, já o historiador não possui essa liberdade e é preso uma realidade limitada pelos indícios e fragmentos do passado que ganham personificação através das fontes.

O sétimo artigo “Recursos Narrativos e Conhecimento Histórico”, o autor vai abordar algumas contribuições do historiador Lawrence Stone que investiu nos programas de história científica entre os anos de 1930 e 1960. Segundo Revel, era necessário reintroduzir no debate historiográfico as questões da história científica, os dois historiadores que se encarregaram de tal desafio foram Stone e Carlo Ginzburg. Ambos produziram trabalhos no qual pensavam sobre tal problemática, a fim de “resgatar” o problema da narrativa na abordagem historiográfica.

Além desses autores Jacques Revel relembra a contribuição de outros pensadores sobre essa problemática. Podemos destacar a pessoal de Momigliano que se propôs a também pensar sobre as funções e os usos da narrativa, assim como Paul Ricoeur que aferiu um profundo debate sobre tal tema em muitos de seus trabalhos. O autor esclarece o quanto esse debate sobre a narrativa histórica já perdura por algum tempo, e que ainda se revela instável.

Revel também nos mostra a mudança na concepção de história ao longo dos anos. Se antes a compreensão histórica era vista como um “repertório de exemplos e lições a serem seguidas”, ela passou por inúmeras transformações, o que o autor chamou de “virada capital da historiografia”. Para ele, essa mudança ocorreu principalmente por conta de dois fatores. O primeiro fator vem a ser a desqualificação da retórica como instrumento de conhecimento. O segundo é a própria mudança na concepção de história que alimentamos. Com todas essas transformações, alterou-se também o papel do historiador, sua relação com o objeto, e, concomitamente, exercício crítico das fontes históricas.

No penúltimo texto, “A biografia como problema historiográfico”, como o titulo indica, é feita uma análise da utilização da biografia no campo historiográfico. A biografia como gênero amplamente utilizado nas produções historiográficas, possibilita uma variedade de públicos leitores, o que facilita a sua popularidade. Outro aspecto retratado por Revel vem a ser a conjuntura científica em torno da biografia. Nesse foco Revel toca nos debates referentes a duas questões que permeiam o tema: o “problema da biografia histórica” e “a biografia como problema”. Esse debate, para o autor, é “tão velho como a própria historiografia”. Para começar a discussão Revel compara os escritos de Aristóteles entre poesia e história. A poesia ou qualquer outra narrativa de ficção permitem a generalização, a modelagem da experiência humana, já a história está submetida à experiência, e no caso da biografia essa experiência é voltada para o indivíduo.

Com relação a uso da biografia como gênero historiográfico esta se encontra limitada a utilização das fontes. O ponto central do projeto biográfico é a importância de se analisar uma experiência singular e situá-la no contexto social, isso torna tal gênero pautado em complexidade. Para finalizar o autor propõe a utilização de três tipos de biografias: biografia serial (prosopografia), a biografia reconstruída em contexto e biografia reconstruída a partir de um texto (frequentemente utilizado na autobiografia).

O último artigo, intitulado “O fardo da memória”, é dedicado a discutir a experiência histórica e a memória da França. Nele, Revel destaca três tipos de memórias. A primeira é a comemoração. No final do século XX a França teria celebrado muitos fatos importantes do passado francês (datas comemorativas). A segunda forma de memória é a patrimonialização a questão da consciência com o patrimônio, que aconteceu tanto no campo ideológico como nas construções de museus. A terceira forma é a produção da memória, a própria mudança na escrita da história, o que antes era restito aos grandes homens passou estar vinculado às memórias esquecidas, ou seja, historiadores e memorialistas começaram dar visibilidade às narrativas da história “vista de baixo”. Para Revel essas três formas estão interligadas e contribuem para se pensar a memória com relação à história francesa contemporânea

A proposta feita por Jacques Revel à luz de tais perspectivas centra-se em torno de pensar a produção historiográfica na França, do século XX até a contemporaneidade. A partir desse foco, o autor procurar mostrar em sua obra os movimentos e as transformações sofridas no ambiente acadêmico, o hasteamento das disciplinas ao status de ciência, assim como a influência dos Annales na “construção” do conhecimento histórico, através da renovação da pesquisa histórica.

Em sua plenitude, o livro revela um enriquecedor conteúdo, propondo ao leitor apontamentos e compreensão acerca das ciências sociais e suas contribuições no campo historiográfico. O Revel procurou explanar sua proposta, mostrando ao longo dos nove artigos a importância das ciências sociais e sua proximidade com a história.

Referência

REVEL, Jacques. História e Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Ed UFPR, 2010.

Samila Sousa Catarino – Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Clóvis Moura.

REVEL, Jacques. História e Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Editora UFPR, 2010. Resenha de: CATARINO, Samila Sousa. Nos rastros da História: análise da obra “História e Historiografia – Exercícios críticos”, de Jacques Revel. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.2, n.1, p. 330- 335, 2013. Acessar publicação original [DR]

SENKO Elaine Cristina (Aut), Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406) (T), Ixtlan (E), MENDES Ana Luiza (Res), DRABIK Bel (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Historiografia, Sentido da História, Muqaddimah (I. Khaldun), Séc. 12-14

Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun, publicado em 2012 pela Mestra em História, Elaine Cristina Senko, nos oferece a análise do papel do historiador e o conceito de História na civilização islâmica do século XIV por parte de Ibn Khaldun (1332-1406), historiador islâmico que procurou dar um sentido específico à historiografia árabe medieval. Para tanto, estabeleceu um método rigoroso de estudo quando escreveu sua obra prima, Muqaddimah, composta a partir da crítica aos documentos e às narrativas árabes, de forma a aproximar-se cada vez mais de uma “verdade” objetivando compreender as vicissitudes de sua época.

Tal assunto mostra-se intrigante e pertinente, uma vez que, como a própria autora salienta na Introdução da obra, há poucos estudos atualizados sobre o historiador muçulmano e, além disso, através da investigação da metodologia histórica por ele formulada, é possível adentrar e aprofundar os conhecimentos da sociedade islâmica medieval de forma sistemática, a fim de desconstruir a imagem sensacionalista e errônea que, por muitas vezes, é transmitida sobre o Oriente pelo Ocidente.

Revelar outra percepção para a compreensão do mundo árabe e islâmico medieval é, pois, um dos objetivos do livro que também é orientado através do questionamento sobre o que representava a escrita de uma obra desse mote no contexto de Ibn Khaldun. Para tanto, a obra divide-se em três capítulos, nos quais a autora discorre sobre a tradição historiográfica islâmica; sobre a escrita propriamente dita de Ibn Khaldun e sua concepção historiográfica, finalizando com a relação entre a metodologia do historiador islâmico e a sua prática na sociedade do seu tempo.

O primeiro capítulo, Sobre a tradição historiográfica islâmica, apresenta distinções na forma de escrita da História na civilização islâmica. Na primeira, pertencente à era formativa dessa civilização, predominava a história oral que foi se transmutando em escrita, na era clássica, já no século X, acompanhando a organização dos califados e de uma necessidade propedêutica, ou seja, guardar as palavras do Alcorão. Além disso, nesse período, como a autora aponta, há uma inter-relação de gêneros, sobretudo: a biografia, a genealogia e crônica que, contudo, dividiam espaço com outros saberes como a geografia, as escolas jurídicas, filosóficas e a literatura.

Dessa forma, a autora nos possibilita a averiguação da riqueza cultural da civilização islâmica, confirmada não só pela variedade de conhecimentos, mas também pelo grande número de estudiosos que são enumerados, tais como os historiadores Al-Maqrizi, discípulo de Ibn Khaldun, que compreende a História como a escrita da verdade, e Al-Furat, que busca compreender o comportamento político do seu tempo através do conhecimento do passado.

O segundo capítulo, A escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun, antes de mais nada, explora as influências que o historiador poderia ter recebido e que teria contribuído para a sua forma de escrita e também para a sua compreensão da História. Tal influência diz respeito ao itinerário do saber entre o mundo clássico e o mundo árabe, de forma que é possível atestar o diálogo, em termos de proximidade, influência e analogia, entre a metodologia histórica clássica e a de Ibn Khaldun. Tal simbiose é fruto, como aponta a autora, da translatio studiorum, movimento erudito que proporcionou o afluxo e recepção dos saberes da Grécia, de Bizâncio, da Pérsia e da Arábia, influenciando tanto a cultura ocidental, quanto a oriental, de modo que, a presença do pensamento clássico nos escritos de Khaldun teria sentido. Assim, a autora passa a investigar na escrita do historiador islâmico quais elementos da historiografia clássica estão presentes, como a concepção da História como a investigação das causas e narrativa do que realmente aconteceu, ideia também defendida por Tucídides e Políbio.

No que diz respeito à relação entre História e verdade, Khaldun, inclusive, faz severas críticas à fabulação e aos fatos com pouca autoridade, isto é, fatos que, se examinados com a devida crítica, não condizem com a verdade. A partir disso, ele critica alguns historiadores islâmicos que não fazem tal distinção e transmitem informações que podem ser consideradas fantasiosas como é o caso das cifras exageradas quando se faz o relato de batalhas ou do número de descendentes de uma dinastia.

O exame minucioso das informações, utilizando-se da crítica, da lógica e do conhecimento da natureza é, portanto, um dos princípios que regem a escrita da História na visão de Khaldun, que também defende que o historiador deveria ter um conhecimento político, geográfico e militar da região estudada para poder se certificar que o que está sendo relatado é verdadeiro.

A autora observa, ainda, que para Khaldun, a História tem um objetivo prático, ligado ao poder: a análise das ações do passado faria com que o historiador ensinasse aos homens de poder a melhor forma de governar. Esse tema é abordado no terceiro capítulo, Uma metodologia da História que se aplique ao estudo e ao entendimento da sociedade, no qual a autora aborda a racionalização do conhecimento do estudo da sociedade no tempo por Khaldun, a partir da qual ele elabora estágios de desenvolvimento da sociabilidade humana e elenca os elementos necessários para tal.

Nesse contexto, temos o pensamento de Khaldun atrelado ao de civilização (umran), o que nos permite perceber que o historiador islâmico parte de uma questão do seu próprio momento em busca de uma compreensão que só se realiza na volta ao passado. Ibn Khaldun vivenciava a desestruturação do poder muçulmano em seus territórios e formulou uma inovadora metodologia historiográfica a partir da necessidade de compreensão da realidade social na qual estava inserido. Por isso sua concepção da História é prática, pois o historiador não pode se eximir do seu tempo. E foi o que Khaldun fez com seu trabalho. Além da formulação de uma teoria da História, também destacou, legitimou e fortaleceu o papel do erudito, a figura do historiador na sociedade, como o responsável por orientar os homens de poder, como ele mesmo realizou.

Assim, o livro de Elaine Cristina Senko, sobre as reflexões na escrita da História deste emérito erudito muçulmano vem com o bom propósito, para o público em geral, de criticar uma noção atual simplista das questões entre Oriente e Ocidente, sobretudo, após os acontecimentos do 11 de setembro de 2001. Critica o medo ao muçulmano e propõe uma visão mais global sobre um tema complexo que envolve força militar, política, religião, cultura e história.

Num segundo momento, para o ofício do historiador, o livro traz a maior contribuição e reflexão, para além da demolição dos preconceitos de hoje. O que parece essencial é a exploração do tema escolhido para demonstrar o outro lado da questão da ocupação da Península Ibérica, do Mediterrâneo, do Magreb (Norte da África) pelos muçulmanos no final do século XIV.

Descobrimos que por meio dos escalonamentos, abordados no terceiro capítulo, que Ibn Khaldun indicava os níveis de desenvolvimento que as sociedades podiam percorrer, um “padrão de movimentos”, até a falência destas que o próprio já havia presenciado. A escolha deste universo demonstra a coerência com a proposta inicial da autora de compreender o “outro” por meio da história da sua civilização, do olhar pela lente de um dos seus mais ávidos estudiosos. E ainda, é importante atentar que explorar um teórico da História que se aproxima tanto da Filosofia clássica herdada dos muçulmanos (desde o século IX, a partir das escolas de tradutores) para elaborar sua historiografia é colocar novamente a questão sobre o que é ser um historiador em nossas mentes. Da mesma forma, renovar a historiografia hoje, envolve ultrapassar limites disciplinares e buscar erudição para que se possa recontar histórias (mas não sem método) como a autora faz ao apresentar a renovação da metodologia que Ibn Khaldun propôs, a partir dos elementos variados, mesclando a Filosofia de Aristóteles, de Tucídides e a história oral e as narrativas islâmicas.

A exemplo disto, a escolha de uma destas narrativas existentes no livro, Harun AlRashid: o esplendor de Bagdá permite uma referência cultural diferenciada do contexto de Ibn Khaldun. Esta foi uma escolha feliz da autora, pois é uma história conhecida no Ocidente, que aproxima o leitor do contexto histórico árido, pouco familiar, mas que permite observar o que “também é uma história” naquele contexto, possibilitando a percepção que a História pode ser vista em sentidos variados.

E, por fim, não podemos deixar de observar que estes escritos levam o leitor da área a perceber a importância de o historiador estar aberto à crítica e evitar ao máximo a influência dos poderosos na escrita da História, não devendo depender do poder político ideológico para escrevê-la. Neste caminho, portanto, entrevemos a necessidade de ver além dos preconceitos – é o que defende Ibn Khaldun -, mas é o que defende também a autora, quando cita os nomes dos autores especialistas sobre o Oriente, como o de Uma História dos Povos Árabes3 , que publicaram seus escritos críticos sobre o modo como o Oriente era visto no século XX, críticos que como Khaldun, esclareceram comportamentos e preconceitos.

Aqui é clara a defesa que a autora propõe da integridade do ofício do historiador pela escolha do objeto e pela forma de abordagem, e pelo respeito com o qual trata o seu objeto de estudo.

Notas

2 Graduada em História pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail para contato: [email protected]

3 HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Referências

HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

SENKO, Elaine Cristina. Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406). São Paulo: Ixtlan, 2012.

Ana Luiza Mendes – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Bel Drabik – Graduada em História pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: [email protected]

SENKO, Elaine Cristina. Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406). São Paulo: Ixtlan, 2012. Resenha de: MENDES, Ana Luiza; DRABIK, Bel. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.3, n.1, p. 303-306, 2014. Acessar publicação original [DR]

TROJANOWSKI Elodie (Aut), Le “nouveau” Front National: Etude de la nouvelle ligne du parti à travers le discours de Marine Le Pen (T), Editions Universitaires Européennes (E), ANDRADE Guilherme Ignácio Franco de (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Marine Le Pen, Frente Nacional, Partido Político, Europa – França, Séc. 20-21

O livro “A nova Frente Nacional: Estudo da nova linha do partido através dos discursos de Marine Le Pen”, da autora francesa Elodie Trojanowski, nos oferece uma análise sobre as mudanças dos discursos do partido de direita radical francês Frente Nacional, após a sucessão da presidência do partido por Marine Le Pen. Para tanto a autora também analisa a mudança da linha política desenvolvida por Marine Le Pen. A obra é fruto da sua dissertação de mestrado em jornalismo, porém sua pesquisa se enquadra dentro do âmbito das ciências políticas. Seu mestrado foi desenvolvido na Universidade Católica da Lovaina2, localizada no interior da Bélgica. Seu livro, composto de 118 páginas, foi publicado pela Editora Universitária Europeia3 em abril de 2014.

Para tanto, a autora estabeleceu um método rigoroso de estudo quando escreveu sua obra, a partir da crítica aos discursos oficiais do partido, como também a seleção de diversas entrevistas concedidas por Marine Le Pen, de vídeos postados no site da Frente Nacional e discursos de Marine Le Pen durante a as eleições presidenciais francesas em 2012. Elodie Trojanowski buscou em sua pesquisa analisar individualmente cada um dos discursos proferidos por Marine Le Pen e separa-los pelas novas temáticas escolhidas pela líder da FN, procurando traçar um paralelo com a antiga linha discursiva do partido, liderado por seu pai Jean-Marie Le Pen.

Tal investigação mostra-se relevante e pertinente para os estudiosos das ciências políticas, como também de extrema importância para os historiadores especializados na direita radical europeia, uma vez que, como a própria autora salienta na Introdução da obra, por se tratar de um fenômeno recente, em pleno acontecimento – enquadrado por nós historiadores como pertencente a história do tempo presente – ainda há poucos estudos que procuram investigar a mudança ideológica e discursiva da atual direita radical no século XXI.

O recorte de pesquisa escolhido pela autora, se enquadra no período em que a presidente do FN, Marine Le Pen ascendeu a presidência do partido em 2011, quando venceu seu adversário Bruno Gollnisch no Congresso Nacional do partido. Após vencer as eleições Marine Le Pen colocou em prática um projeto de desdiabolização da FN. Esse método consiste em um processo de transformação da imagem do partido, que outrora – durante quatro décadas da existência da agremiação política – esteve intrinsicamente ligado às práticas xenófobas, racistas e antissemitas. Nesse sentido Elodie Trojanowski trabalha para analisar se esse âmbito de mudanças da FN na figura de Marine Le Pen, acontece apenas no nível discursivo, se ele é inventado para definir uma nova identidade ou se existe uma ruptura real com as antigas concepções radicais, se elas são concretas.

A obra nesse percurso de investigação se coloca na posição de estudar comparativamente a ideologia desenvolvida pelo FN. Através de uma análise de discursos políticos da Presidente da Frente Nacional, o estudo é feito de forma detalhada, buscando nos discursos as palavras de ordem, como elas são colocadas, como as novas temáticas adotadas pelo partido são apresentadas e manipuladas para terem efeito positivo e atraírem votos para a FN. E como a partir dessa nova leitura da conjuntura e a nova linha discursiva da Frente Nacional se destaca o abandono de determinados temas e sua substituição por novos bodes expiatórios, como a União Europeia e a imigração muçulmana, por exemplo. A autora relativiza como a Marine Le Pen utiliza o contexto de crise econômica, social e política da França, para aumentar sua base eleitoral e como o partido tem diminuído seu tom agressivo e extremista, se diluindo em uma posição próxima a direita nacionalista. Desta forma a autora se dedica a fazer um levantamento do novo vocabulário desenvolvido por Marine Le Pen e cria um banco de dados contabilizando o uso dessas palavras e o quanto elas aparecem e permeiam grande parte dos seus discursos.

A criação do partido Frente Nacional foi inspirada no sucesso eleitoral do partido neofascista italiano Movimento Sociale Italiano (MSI). O início do partido começou com grupos distintos, incluindo membros do governo de Vichy, opositores do general de Gaulle, membros do movimento Poujadista, neofascistas, militantes da Federação dos Estudantes Nacionalistas, militantes do Jovem Nação e ativistas que não possuíam vinculo partidário mas simpatizavam com a ideia de organizar um partido de extrema direita. O início da FN começou sob liderança de Jean-Marie Le Pen e François Duprat.

No processo de construção do projeto político do FN, podemos perceber também que além da questão militar para reforçar o nacionalismo, o partido procurou construir outros símbolos, principalmente buscar heróis na história da França, personalidades históricas que pudessem reforçar, simbolizar o novo nacionalismo desenvolvido pelo FN. Nesse processo de busca para encontrar heróis, vemos o fortalecimento do catolicismo dentro do partido. Para representar o FN, foi escolhida a figura de Joana D’arc, como símbolo que representasse o nacionalismo do FN, uma heroína francesa, nacionalista, católica, devota à nação, que sacrificou sua vida em prol da liberdade do país, sem ter qualquer ação individualista, a nação acima de qualquer desejo individual. A escolha de Joana D’arc também passa pela questão da busca pela tradição histórica do país, demonstração de orgulho com o passado histórico. A escolha do símbolo do partido é também uma forma de procurar unir todas as células dentro do partido, colocando um novo foco a ser seguido, supondo que essa nova escolha conseguisse superar antigas figuras como Napoleão Bonaparte, Marechal Pétain, General Boulanger, Charles Maurras e Pierre Laval.

No sentido do nacionalismo do FN, o partido procurou se posicionar em defesa dos cidadãos naturais franceses. Podemos aqui pontuar que tal sujeito defendido pelo FN seria: o cidadão francês que provenha de uma longa geração de franceses (podemos indicar aqui que isso seria o francês branco caucasiano), católico, nacionalista, identificado com sua terra, um cidadão orgulhoso de suas raízes e identificado com a História da França, valoriza o desenvolvimento da nação acima da vontade individual4.

Para Jean-Yves Camus a questão da nação é algo central no FN, o nacionalismo para a FN é o principal ponto de referência ideológico, podemos afirmar que a ideia da nação é o ponto vital, é a fonte principal de luta e é fundamental para o discurso do partido5. Dar ênfase à nação é a questão chave para ocupar os espaços deixados pelos outros partidos. A defesa da nação como pauta da agenda política do FN tem dois objetivos: o primeiro é para legitimar a ideia do nacionalismo pertencer à FN, e quando outro partido utiliza dessa tática o FN sai em defesa da sua ideia acusando a oposição de apropriação política. O segundo objetivo é obrigar outros partidos a também fazerem um discurso que saia em defesa da soberania nacional6.

A FN tem como principal ideológica, a defesa da identidade nacional, no qual segundo ela estaria ameaçada pela imigração, internacionalização do comércio, a globalização, enesse sentido defende o retorno do “glorioso” nacionalismo francês. Em seu alegado plano de defender a França, lançavam-se contra seus inimigos internos (anteriormente judeus, maçons e protestantes, agora imigrantes, principalmente árabes e muçulmanos) e os inimigos externos (expeculação internacional e as forças das multinacionais e do corporativismo). A FN defende valores tradicionais e instituições as quais, segundo ela, devem se basear a identidade francesa nos principios de família exército, autoridade e catolicismo.7

O livro de Elodie Trojanowski é dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo a autora faz uma sistematização da história da Frente Nacional, citando os principais sujeitos que constituiu o partido durante sua criação na década de 1970. Talvez uma abordagem com maior capricho no que diz respeito aos mais de 40 anos da história da Frente Nacional pela autora seria necessária, para que o leitor que desconhece a história da Frente Nacional conseguisse visualizar de forma mais abrangente a história institucional do partido. Mesmo o primeiro capítulo necessitando de maior atenção, a autora utiliza a bibliografia correta e obrigatória para qualquer pesquisador que pretende estudar a Frente Nacional, utilizando autores como Nonna Mayer, Pascal Perrineau, Michel Winock e Pierre Taguieff para apresentar as principais características da direita radical francesa e suas raízes históricas.

Ainda no primeiro capítulo Elodie Trojanowski procura apresentar o debate sobre a direita radical na França, abordando as diferentes formas como ela se apresentou no país. Ela aponta os diferentes grupos que existiram, como o movimento monarquista Ação Francesa e também faz menções a Revolução Nacional, durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial. Ela também procura descrever o conceito de populismo que é utilizado na Europa para caracterizar alguns partidos de direita radical. E para finalizar ela discute as características de Jean-Marie Le Pen.

No segundo capítulo a autora francesa demonstra seu método de análise dos discursos da Marine Le Pen. A metodologia escolhida pela autora para a análise discursiva da presidente da Frente Nacional se divide em várias etapas. Elodie Trojanowski separa os discursos em duas categorias, os discursos para a mídia e que foram divulgados pela internet, que ao todo são os 12 maiores discursos de Marine Le Pen e o segundo grupo são 4 discursos feitos por Marine Le Pen aos militantes do partido.

A autora trabalhou comparando os discursos e elencou as principais temáticas que aparecem na fala da líder da Frente Nacional e que são amplamente exploradas durante a a campanha presidencial. Os principais temas apresentados pela autora são; Violência Social, Globalização, Economia, Justiça, Nação, Vida em Sociedade, Imigração, Família, Liberdade, História da França, Cultura, Valores, Hierarquia e Democracia. Com essa definição e recorte do que investigar a autora do livro monta uma tabela onde enumera a quantidade de vezes em que cada temática aparece na fala de Marine Le Pen e também avalia a forma como ele é apresentado, se aparece de forma positiva ou se o tom do discurso é negativo, buscando induzir os eleitores a acreditar em suas alegações.

Nesse formato de investigação a autora contribui para os pesquisadores pois apresenta como algumas temáticas são manipuladas de acordo com o público presente, ou seja, de acordo com o setor político ou social em que se encontra o público da Frente Nacional, o discurso de Marine Le Pen pode ser mais apelativo para o lado sentimental ou pode reforçar a temática para reforçar a posição assumida por um setor. Um exemplo dessa distorção do discurso pode ser evidenciado nos discursos da Frente Nacional aos trabalhadores, quando Marine Le Pen defende a ampliação dos direitos trabalhistas e da garantia dos investimentos do Estado em políticas públicas. E quando a presidente da Frente Nacional fala para os empresários e comerciantes ela defende a redução dos tributos e a proteção do Estado para o crescimento da economia.

No terceiro capítulo a autora apresenta individualmente os resultados das análises quantitativas das temáticas recortadas por ela, demonstrando estatisticamente de que forma cada temática aparece, quantas vezes ela foi utilizada ou apareceu com maior ou menor incidência nos discursos políticos de Marine Le Pen. Além disso ao apresentar as temáticas, a autora também demonstra uma interpretação da conjuntura política e coloca como são construídos os discursos e as formas como eles se desenvolvem na medida que Marine Le Pen acerta a forma de abordagem e como ela modifica a estratégia quando não alcança os resultados esperados.

Notas

1 Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, na linha de pesquisa Sociedade, Urbanização e Imigração, orientado por Leandro Pereira Gonçalves. Bolsista CNPq. E-mail [email protected]

2 Université Catholique de Louvain.

3 EUE- Édition Universitaire Européenes.

4 FRONT NATIONAL, Défendre les Français, C’est le programme du Front National. Front National, no. 3, 1973.

5 CAMUS, Jean-Yves. Origine et formation du Front National…op.cit. pg.17

6 Idem, pg.18.

7 HAINSWORTH, Paul. The extreme right in France: The rise and rise of Jean-Marie Le Pen’s Front National. Representation, 40. 2004, p.44.

Referências

BIRENBAUM, Guy. Le Front National em Politique. Paris, Balland, 1992.

BOURSEILLER, Christophe. Extrême Droite: l’enquête. Paris, Editions François Bourin, 1991.

CAMUS, Jean-Yves. Origine et formation du Front National (1972 – 1981) in MAYER, N;

PERRINEAU, P. Le Front National à découvert. Paris, Presses de la FNSP, 1989.

FRONT NATIONAL, Défendre les Français, C’est le programme du Front National. Front National, no. 3, 1973.

HAINSWORTH, Paul. The extreme right in France: The rise and rise of Jean-Marie Le Pen’s Front National. Representation, 40. 2004.

TROJANOWSKI, Elodie. Le “nouveau” Front National: Etude de la nouvelle ligne du parti à travers le discours de Marine Le Pen. Saarbrucken, Editions Universitaires Européennes, 2014.

Guilherme Ignácio Franco de Andrade – Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, na linha de pesquisa Sociedade, Urbanização e Imigração, orientado por Leandro Pereira Gonçalves. Bolsista CNPq. E-mail [email protected]

TROJANOWSKI, Elodie. Le “nouveau” Front National: Etude de la nouvelle ligne du parti à travers le discours de Marine Le Pen. Saarbrucken: Editions Universitaires Européennes, 2014. Resenha de: ANDRADE, Guilherme Ignácio Franco de. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.4, n.1, p. 158- 163, 2015. Acessar publicação original [DR]

FERNANDES Fátima Regina (Aut), Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos (T), Editora Prismas (E), ZLATIC Carlos Eduardo (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Guerra dos Cem Anos, Europa – Portugal, Castros Galegos

A obra Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos é fruto do longo trajeto investigativo de Fátima Regina Fernandes, professora de História Medieval da Universidade Federal do Paraná e pesquisadora membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Enquanto medievalista, lança seu olhar sobre a Idade Média portuguesa, seus atores sociais e relações políticas no âmbito do Ocidente Medieval, com maior relevância para temas que giram em torno da dinâmica entre os poderes régio e nobiliárquico no espaço da Península Ibérica.

Antes de propriamente adentrar na resenha daquela obra, é preciso um esclarecimento. Toda publicação demarca um ponto no trajeto de pesquisa do historiador, seja ele graduando, pós-graduando ou historiador de carreira consolidada. Contudo, Do pacto e seus rompimentos se constitui por excelência como posição de chegada do percurso investigativo de Fátima Regina Fernandes, pois se trata da tese apresentada pela autora para obtenção do grau de professor titular do magistério superior, portanto, voltado à comprovação dos méritos da pesquisadora em ocupar tal posição, demonstrados por via da pesquisa que compõe as páginas do livro em questão. Assim sendo, foi a partir desta peculiaridade intrínseca a pesquisa que originou essa obra de onde partiu a análise contida nas linhas abaixo.

O livro objeto dessa resenha apresenta uma divisão em dois capítulos de desenvolvimento da problemática, aos quais se soma uma terceira sessão composta pelos anexos, que não devem ser menosprezados ou tratados como mero apêndice, tanto por oferecerem esquemas visuais – árvores genealógicas e mapas – facilitadores da compreensão do dinâmico contexto abordado por Fátima Regina Fernandes, quanto por conter a transcrição dos tratados2 utilizados pela autora para construir a argumentação central de sua tese, além de proporcionar o acesso a documentos por vezes difíceis de serem obtidos ao historiador brasileiro.

O primeiro capítulo é dedicado à abordagem contextual da segunda metade do século XIV, período marcado por fluidas relações políticas, rapidamente remodeladas pelo estabelecimento de pactos e tratados entre os monarcas ibéricos, franceses e ingleses; jogo de interesses que não poupou os nobres, dentre eles aqueles que acompanharam Fernando de Castro – os chamados emperegilados – ao reino de Portugal após a morte de Pedro I de Castela, também conhecido como o Cruel, pelas mães de Henrique de Trastâmara, seu meio irmão – pois bastardo –, tomando para si o trono castelhano.

Recebidos em Portugal, os Castros Galegos passaram à condição de vassalos do rei Fernando I, apoiando-o em suas ambições de domínio sobre o reino de Castela. Contudo, os planos dos nobres castelhanos foram malogrados pela aproximação entre o rei português e o aragonês – por meio de acordo que previa a divisão do território castelhano entre ambos –, mas principalmente pelo avanço da Guerra dos Cem Anos, que fez da Península Ibérica um palco de disputas políticas entre Inglaterra e França.

O objetivo de Fátima Regina Fernandes não é fazer uma revisão bibliográfica acerca dos pormenores que marcaram o irromper da Guerra dos Cem Anos e o desenvolvimento desse conflito a partir de uma narrativa centrada nas ações entre França e Inglaterra. Busca, antes, demonstrar como essa contenda se alastrou para além das disputas entre reino insular e o de além-Pirineus fazendo da Península Ibérica um ambiente sobre o qual se estenderam os interesses dos reis franceses e ingleses. Dessa maneira, a medievalista brasileira rompe com a centralidade de abordagens historiográficas focadas tão somente nos embates sustentados por França e Inglaterra ao longo da Guerra dos Cem anos e logra oferecer uma perspectiva de análise que enquadra esse fenômeno histórico enquanto pano de fundo capaz de envolver atores sociais inseridos no âmbito peninsular e os tencionar a tomadas de posição no campo político ibérico.

O ambiente de relações sócio-políticas da segunda metade do século XIV não é novidade nos trabalhos de Fátima Regina Fernandes, intimidade contextual que possibilita à autora o estabelecimento de vinculações de interesses entre o poder régio e o nobiliárquico, exercício facilitado por sua larga experiência no emprego do método prosopográfico – cujo uso se faz patente em sua tese de doutoramento (FERNANDES, 2003) e em tantos outros artigos, com destaque para as abordagens da trajetória de Nuno Alvares Pereira (FERNANDES, 2006; 2009) –, e que se revela, em Do pacto e seus rompimentos, no mapeamento das alterações experimentadas pelas relações políticas entre os Castros Galegos e os reis de Portugal e Castela, mas também entre esses últimos e os monarcas de Aragão, França e Inglaterra.

No que toca o tratamento dispensado por Fátima Regina Fernandes aos Castros Galegos, deve-se considerar que a autora os analisa enquanto grupo, nomeando tão somente a figura de Fernando Peres de Castro, enquanto os demais aparecem sob a sombra deste e escondidos sob o anonimato de seus nomes. A ausência do tratamento acerca da linhagem de Castro deve ser entendida sob a perspectiva de oferecer uma tese vertical, objetivando acima de tudo o debate em torno do estatuto social, político e jurídico experimento pelos emperegilados ao longo das vicissitudes que marcaram os finais da década de sessenta do século XIV e o início do decênio seguinte, compreendendo-os a partir da cultura política nobiliárquica castelhana, sustentada por uma nobreza cindida em dois perfis: a velha e a nova, conforme tipologia defendida por MOXÓ (2000) – importante referencial adotado por Fernandes. A supressão do processo de formação linhagística dos de Castro nessa tese deve sem entendido, para além do imperativo da almejada objetivo, pelo fato de que o tema já foi foco de pesquisas anteriormente publicadas pela medievalista (FERNANDES, 2000; 2008).

A abordagem do labirinto de relações sócio-políticas que marca o primeiro capítulo de Do pacto e seus rompimentos, característica que faz com que a leitura dessa primeira sessão da obra seja uma prática por vezes truncada e exigente de uma profunda acuidade por parte do leitor – a fim de que não se perda entre os nomes e as rápidas mudanças na direção dos pactos políticos –, oferece as referências contextuais necessárias para a devida compreensão do debate concernente ao segundo capítulo da obra, ao longo do qual a autora desenvolve o cerne de sua argumentação: o debate em torno da condição de traidores e, posteriormente, de degredados, imputada sobre o grupo de nobres castelhanos abrigados em Portugal.

Para atingir seu objetivo, Fernandes recupera os pactos e rompimentos políticos abordados no primeiro capítulo da obra para analisá-los a partir dos tratados firmados no desenvolvimento das relações entre França, Inglaterra, Aragão, Castela e Portugal, sendo o Tratado de Santarém, estabelecido entre os monarcas desses dois últimos reinos em 1373, crucial para o entendimento da condição sócio-política e jurídica dos Castros Galegos em território português.

Assim, a medievalista recorre ao exercício de crítica documental, heurística e diplomática para analisar o Tratado de Santarém, por meio do qual se estabeleceu a vassalidade de Fernando I de Portugal a Henrique II de Castela, o Trastâmara, lançando Fernando de Castro e os nobres que o acompanhavam no reino português na condição de traidores. Gozando desse estatuto, foram expulsos pelo rei português, rumando para Aragão e depois para a Inglaterra, onde passaram a viver como degredados sob a proteção do rei inglês.

Dessa maneira, “[…] a condição de traidor seria vista à luz da relação vassálica e identificada com o infiel, o que rompe unilateral e ilegitimamente o laço com o seu senhor” (FERNANDES, 2016, p. 85), rompimento este que deve ser entendido sob a perspectiva da natureza, compreendida enquanto “[…] relação artificial estabelecida voluntariamente entre os homens a fim de manter o bem comum, o consenso universal, a concordia ordinem” (FERNANDES, 2016, p. 97). Sob o imperativo de elucidar esses dois estatutos sociais – traidor e natureza –, Fátima Regina Fernandes recorre a um debate jurídico – traço também característico da autora e já demonstrado desde sua dissertação de mestrado acerca da legislação de Afonso III de Portugal (FERNANDES, 2001) –, problemática transpassada pelo do avanço das concepções do Direito emanadas a partir de Bolonha e do fortalecimento da ideia das fronteiras, fenômenos históricos que exerceram influência determinante no ideário político da Baixa Idade Média.

Ao enveredar pela discussão em torno da natureza e da noção de pertencimento à terra – questões atreladas à definição dos limites fronteiriços dos reinos medievais –, Fernandes toca no debate historiográfico concernente ao tema que pode ser sintetizado pelo título da obra de Joseph Strayer, As origens medievais do Estado Moderno, viés interpretativo que, tomando o Estado como ponto de chegada, relegou a Idade Média o lugar de berço, momento de gestação das instituições que posteriormente chegariam a sua maturidade no período histórico posterior ao da Idade Média.

Rompendo com as explicações teleológicas, característica da escrita de STRAYER (1969), Do pacto e seus rompimentos tem o mérito de inserir a análise acerca das instituições medievais no contexto próprio de sua dinâmica, fazendo perceber que o sentimento de pertencimento ao reino nutrido por aquelas pessoas surgiu a partir da base municipal, assim como instituições cujo funcionamento se pautava em uma relação mais impessoal entre o poder régio e o local; diferentemente da vinculação entre reis e nobres, haja vista que estes, preocupados com a manutenção de seu poder nobiliárquico, negligenciavam os limites fronteiriços, transitando mais livremente entre os reinos ao sabor das possibilidades oferecidas pelos pactos políticos – problemática que a autora já havia apontado ao estudar a trajetória de Gil Fernandes, um homem de fronteira (FERNANDES, 2013).

Os méritos da obra de Fátima Regina Fernandes podem ser estendidos para além da perspectiva de análise das problemáticas medievais supracitadas. Duas guerras mundiais. Conflitos armados no Leste Europeu e Oriente Médio – ainda hoje em chamas. Governos ditatoriais na América Latina. Todos esses embates político-militares impeliram, e seguem obrigando, extensa quantidade de pessoas ao abandono sua terra natal em pronta fuga aos horrores gerados pela violência daqueles embates. A proximidade temporal que envolve o observador contemporâneo a esses fatos pode levá-lo a concluir de maneira apressada que o exílio foi fenômeno nascido no século XX e vivo ainda na segunda década do XXI, entendimento equivocado que também se deve a escassez que a problemática experimenta no espaço dos debates historiográficas dos medievalistas.

Embora a circulação de nobres entre os reinos ibéricos possa ser largamente constatada ao longo da medievalidade ibérica, os medievalistas tendem a se ater ao contexto social e a equação de forças políticas que atuaram para a mobilidade nobiliárquica, muitas vezes dedicando pouca atenção aos conceitos que definem a extraterritorialidade desses atores sociais. A tese de Fátima Regina Fernandes alcança esse espaço de discussão pouco explorado, sem deixar de lado o rigor no trato contextual próprio desse período histórico, contribuindo não apenas para a compreensão da Idade Média, assim como o de nossa contemporaneidade, lembrando-nos que não apenas os indivíduos do século XX e XXI estavam sujeitos à necessidade do exílio, mas também os viventes do medievo.

Expostas essas ponderações, tem-se uma visão geral que torna possível a compreensão geral dessa obra. Enquanto tese de professora titular, a publicação cumpre a função de demonstrar o ponto de chegada das pesquisas desenvolvidas por Fátima Regina Fernandes ao longo de sua carreira de professora e pesquisadora no campo da História Medieval, motivo pelo qual estão presentes nessa obra, problemáticas pertinentes ao percurso dessa medievalista brasileira e que aparecem sintetizadas nas no desenvolvimento de suas interpretações em Do pacto e seus rompimentos.

Este não é, contudo, um trabalho de síntese do fim de um caminho de pesquisa. Ora, ainda há muito a ser feito! É antes um ponto de chegada, de onde partem outras problemáticas a serem elucidadas, como fica demonstrado por Fátima Regina Fernandes ao avançar com o debate acerca da condição de traidor e degredado no âmbito da Baixa Idade Média, cumprindo assim com o objetivo central dessa tese. A pesquisa que gerou a publicação de Do pacto e seus rompimentos ainda confirma o mérito que levou a medievalista a obtenção do grau de titular, elogiosamente reconhecido pelos membros que formaram a banca examinadora e registrado em prefácios preenchem as primeiras páginas de Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos.

Notas

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

2 Os documentos contidos no sessão de anexos são: Tratado luso-aragonês (1370), Tratado de Alcoutim (1371), Tratado de Tuy (1372), Tratado de Tagilde (1372) e o Tratado de Santarém (1373).

Referências

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STRAYER, J.R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa: Gradiva, 1969.

Carlos Eduardo Zlatic – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

FERNANDES, Fátima Regina. Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos. Curitiba: Editora Prismas, 2016. Resenha de: ZLATIC, Carlos Eduardo. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.6, n.1, p. 279 – 284, 2016. Acessar publicação original [DR]

PEDREIRA Flávia de Sá (Org), Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial (T), LCTE (E), FONTINELES FILHO Pedro Pio (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Nordeste do Brasil, Segunda Guerra Mundial, Séc. 20, América – Brasil

Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, obra organizada pela historiadora Flávia de Sá Pedreira, é escrita por diversos pesquisadores-autores que se organizaram em torno de um eixo de debate, voltado para pensar o Nordeste do Brasil e suas variadas relações com diferentes eventos e acontecimentos oriundos da Segunda Guerra Mundial. A organizadora, na Apresentação da obra, como quem convida para tomar um café na sala de estar ou no escritório, explica um pouco da trajetória da construção do livro, quando decidiu convidar outros historiadores para o debate/reflexão sobre o tema. Em suas palavras, “Um período tão rico da nossa história, que muitas vezes é negligenciado por se pensar que a guerra foi bem longe daqui…Ledo engano, pois se o front ocorreu do outro lado do Oceano, aqui também se fez presente, atingindo as mentes e os corações tupiniquins, especialmente os que habitam esta região do país” (p. 09). Movida por esse desejo de ampliar, unir e socializar pesquisas, foi que a presente coletânea teve sua origem.

O livro Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, além da sincera e pertinente Apresentação assinada pela organizadora, é composto por quatorze capítulos, todos debatendo sobre o conflito mundial e suas vinculações com alguma cidade ou capital do Nordeste. São dois capítulos ambientados em Sergipe, dois em Pernambuco, dois na Bahia, três no Rio Grande do Norte, um no Piauí, um na Paraíba, um no Ceará, um no Maranhão, um em Alagoas. A disposição dos capítulos não segue uma “lógica” específica, nem de recorte temporal e nem de agrupamento dos estados, tendo o tema da Segunda Guerra como único elemento aglutinador. Isso, ao contrário do que se possa pensar inicialmente, atribui mais leveza e fluidez à leitura, pois promove dinâmica na exposição dos objetos selecionados. Ao final, somos apresentados aos autores dos capítulos, com um breve resumo biográfico, com suas titulações e filiações acadêmicas.

Mais que uma coletânea de artigos produzidos eximiamente por estudiosos e especialistas na temática. É um referencial para e na historiografia, sobretudo no que tange ao capricho teórico-metodológico. Não se trata de um esforço de “encaixar” o Nordeste brasileiro em um episódio ou em acontecimentos, ou ainda, de “fazer” o Nordeste parte daquele momento beligerante da História mundial. Os estudos que integram a coletânea transitam, conscientemente, entre os limites e possibilidades das questões plurais de fronteira. São autores estão compromissados em “fazer” História, que, por sua vez, está imersa em temporalidades e espacialidades que ora se cruzam, ora se distanciam. Essa alternância se justifica, em grande medida, em decorrência das escolhas e recortes que os pesquisadores fazem. Isso é inerente ao campo científico da História. A percepção desse contraditório limite/expansão do termo “fronteira” é, também, uma tentativa de desnaturalizar o regional, o nacional ou o global como conceitos essenciais, prontos e imutáveis.

O esmero da obra, de fato, já se apresenta no excelente projeto gráfico da capa, que não faz o papel unicamente de adornar o livro. A capa em si já é o compromisso com o despertar e o refletir sobre o que, de forma direta e concisa, aponta o próprio título da obra. Imagens de espaços, sujeitos, momentos e ações diferentes, agrupadas como recortes que compõem uma colagem, isso tudo leva o leitor a pensar no caráter lacunar da história e na posição indelével do historiador, sobretudo no levantamento, na interpretação e na síntese que faz com e sobre as fontes. Fontes escritas, orais e audiovisuais, somadas a mapas, dados numéricos e gráficos, são exemplos da diversificação de olhares sobre os quais os autores se debruçaram para imprimirem suas análises, na presente obra coletiva. As fontes são lidas, problematizadas e interpretadas cuidadosamente à luz da teoria e da historiografia sobre a História da Guerra, a História nacional e das particularidades locais e regionais. Por essa razão, é que, de certa forma, os capítulos travam diálogos com múltiplas especialidades da História, como a história econômica, a história política, a história urbana, a história do cotidiano, a história cultural. No tocante à História Oral, Luiz Gustavo Costa sintetiza bem o seu uso nesta coletânea, ao afirmar que “não se buscou construir ou reconstruir conceitos historiográficos, mas abordagens que permitissem contornar caminhos alternativos embasados em critérios na busca constante em pesquisar determinadas entrelinhas” (p. 272). Cada capítulo aborda entrelinhas que, até então, ainda eram carentes de pesquisa e de conhecimento de um público mais amplo.

São artigos que transitam por variadas possibilidades de interconexões do fazer historiográfico. Por se tratar de um conjunto de pesquisas sobre uma das mais impactantes desventuras do mundo moderno, a Segunda Guerra Mundial, os textos podem ser lidos e interpretados a partir de alguns vieses de entendimento, como a História Política, no esteio daquilo que René Remónd (1997), e seus colaboradores, propunham pensar o mundo da vida política em seus muitos horizontes. Nesse sentido, os artigos que compõem o Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial apontam para como, em diferentes configurações culturais, econômicas, sociais e culturais, as políticas de atuação naquele episódio beligerante eram encaminhadas. Quando se fala de atuação, aqui, fala-se em convocação, participação, resistência, apoio, negação, medo, expectativa, imaginário, representações e demais alcances da Guerra no cenário nordestino.

O espaço e as suas subjetividades, corroborando a ideia de que os limites e fronteiras devem ser percebidos e problematizados em diferentes configurações, são, também, uma perspectiva potencial com a qual o leitor vai se deparar. As inúmeras bifurcações, ou melhor, os múltiplos veios entre o global, o nacional e o regional ganham ainda mais complexidade e viabilidade quando, em meio a tantos artigos, é possível se deparar com estudos que abordam o tema tomando um bairro como recorte espacial e se constitui como objeto.

Os gatilhos para a construção de um objeto de estudo são praticamente ilimitados. O leitor vai se surpreender como os autores aqui reunidos buscaram, em diferentes fontes e matrizes teóricas, a maneira particular de analisar e de apresentar seus olhares sobre a Guerra. O cotidiano, em variadas expressões foi tomado por alguns dos autores, como o fio que os levassem à problematização e construção de suas narrativas.

O desconhecido, o conflito, o medo, a força, a violência, o sonho, a esperança são alguns dos sentimentos que, em boa medida, podem ser percebidos nos textos agrupados. Ataques por mar e terra, espionagem, censura, representações, imprensa, discursos, morte, pobreza e precarização das condições de vida são tópicos e temas analisados ao longo da coletânea, como pode ser notado nos capítulos de autoria de Luana Carvalho, de Juliana Campos Leite, de Armando Siqueira. Episódios sangrentos e violentos, como aqueles do “Pearl Harbor brasileiro”, em Sergipe, discutido por Dilton Cândido Maynard, são revisitados para compreender os alcances simbólicos, imaginários, diplomáticos e políticos e políticos daquele conflito bélico de escala mundial. O mesmo terror é analisado no capítulo assinado em coautoria por Luiz Pinto Cruz e Lina de Aras, ao abordar os ataques empreendidos dos submarinos alemães no litoral sergipano. As relações diretas e indiretas entre os norte-americanos e alguns políticos e lideranças brasileiros são discutidas em diferentes abordagens, como é abordado pelos capítulos de autoria de Anna Cordeiro e de Raquel Silva. Os impactos sociais e urbanos também são analisados nos textos de Osias Santos Filho e de Sérgio Lima Conceição.

Nesse entremeio de textos e análises, é possível historicizar a Segunda Guerra Mundial a partir das críticas e sátiras que blocos de carnaval faziam, após a Guerra, sobre como a sociedade se comportava e representava aquele momento. O carnaval pós-guerra é tomado, então, como um sinalizador para as ranhuras, relações e sociabilidades que o contato, direto ou indireto com a Guerra, causou. Esse é o caso de Fortaleza, com o bloco dos CocaColas. Tal bloco, como discute o historiador Antônio Luiz Macêdo e Silva Filho. Diversão, irreverência e crítica, como têm sido as maiores marcas do carnaval ao longo dos tempos, se encontram para pensar sobre aquele período e sobre a sociedade. O Carnaval é também mencionado por Flávia de Sá Pedreira, em capítulo de sua autoria, quando a autora sobre os discursos acerca da produção artístico-cultural da cidade de Natal, sobretudo a partir do posicionamento de intelectuais, como Luís da Câmara Cascudo. A Segunda Guerra foi uma experiência com proporções quase imensuráveis e, como afirma Antônio Luiz Silva Filho, “as marcas dessa experiência seguem convidando a novas investigações” (p. 60).

A interseção entre cotidiano e guerra é ampliada em artigos como o de Daviana Granjeiro da Silva, que aborda aspectos da identidade para pensar o cotidiano em João Pessoa no período de guerra. Assim como as noções de fronteira devem ser desnaturalizadas, a historiadora apresenta, consciente e sutil, a discussão de que as identidades são importantes para as manifestações, mobilizações, acordos e resistências. Além disso, de que, lembrando aqui das identidades plurais propostas por Stuart Hall (2006), os sentidos ou sentimentos de pertencimento perpassam pelas construções e disputas de identidades. Por esse diapasão, Daviana da Silva conclui que “os desdobramentos de um conflito como foi a Segunda Guerra Mundial trazem efeitos para além dos campos de batalhas e do tempo cronológico de duração oficial do confronto, pois alteram modos de vida e visões de mundo de milhares de pessoas, mesmo em lugares tão distantes do front, o que ratifica a relevância de continuarmos estudando e refletindo sobre este momento peculiar de nossa história” (p. 184).

Da mesma maneira que as identidades, as memórias estão afloradas e debatidas ao longo dos textos da presente coletânea. Em alguns, de forma mais evidente e direta, em outros, de maneira mais diluída em subtemas ou na maneira com o trato com as fontes. Em relação a essas, é indispensável mencionar que todos os capítulos lidam com um leque amplo, desde documentos oficiais ligados à Força Expedicionária Brasileira (FEB), bem como depoimentos escritos de intelectuais e literatos, em sua fricção com depoimentos orais. É assim que, por exemplo, a historiadora Clarice Helena Santiago Lira constrói sua narrativa, promovendo o confronto entre diferentes fontes escritas e orais, para falar sobre o processo de mobilização de guerra na sociedade piauiense, utilizando a noção de front interno como mote de reflexão. A autora concluiu seu texto, afirmando que “a memória social sobre o processo de mobilização de guerra na cidade de Teresina não se faz presente, o que também é constatado por pesquisadores que estudam outras cidades brasileiras nessa configuração” (p. 133).

O repertório e manancial teórico e historiográfico são plurais e utilizados com maestria pelos autores da coletânea. A maioria não fugiu do contato inicial com os ensinamentos de referência de Roney Cytrynowicz (2000) e de Marlene de Fáveri (2002), sobretudo no que se refere ao trabalho de mobilização de guerra no Brasil. Além desses, estudiosos como Gerson Moura (1980; 19930), Silvana Goulart (1990), Vágner Alves (2002), Luiz Muniz Bandeira (2007) e Maria Capelato (2009) foram constantemente revisitados pelos historiadores que colaboraram com a presente coletânea. O diálogo empreendido é fluente, fazendo com que historiografia, teoria e empiria sejam colocadas de forma conexa.

No campo estritamente teórico, os capítulos estão ligados pelos meandros da memória, pois, em certa escala, abordam comunidades de memória ou grupos de memória. Essa concepção de memória, no lastro do que sugere Paul Connerton (1993), em que grupo assume tanto dimensões mais particulares de pequenas sociedades, quanto as dimensões mais complexas e, territorialmente falando, mais extensas. Nesse sentido, os grupos de pessoas de um bairro, de uma cidade, de um agrupamento militar, de lideranças políticas e intelectuais estão imersos nesse deslizamento entre o particular e geral do grupo, constituindo memórias singulares e plurais sobre a Guerra, seus agentes, sobre os espaços e temporalidades. De forma mais abrangente, ainda é viável ler toda a coletânea a partir dos conceitos de sistemas denominados de finalidade e causalidade, como propostos por Jean Baptiste Duroselle (2000), pois desde a movimentação política dos Estados até as reverberações sociais e cotidianas da população, tais sistemas estão manifestados.

Grande parte da riqueza e da importância desta coletânea está no fato de que, conforme a organizadora da obra, a historiadora Flávia de Sá Pedreira, “a indiscutível posição geográfica desta região do país muito contribuiu para o desfecho vitorioso dos países Aliados. A discussão a sobre a necessidade de se construir bases aéreas norte-americanas aqui demorou cerca de três anos, com intensas negociações entre os governos brasileiro e estadunidense. Com a instalação das bases, a partir de dezembro de 1941, o contato entre a população local e os estrangeiros fez-se de forma nem sempre harmoniosa, passando de uma convivência inicialmente cordial à confrontação explícita, principalmente na fase de racionamento em prol do ‘esforço da guerra’” (p. 08). A presente coletânea é um convite ao leitor, para que histórias antes silenciadas ou pouco conhecidas sejam retiradas das trincheiras do esquecimento. É um esforço coletivo em levar para o front da historiografia sujeitos e histórias responsáveis por inúmeras experiências urbanas da Guerra do outro lado do Oceano, do lado brasileiro, do lado nordestino. É importante frisar que, mesmo que cada autor presente nesta obra já tenha publicado inúmeros artigos em periódicos especializados e ter os apresentado em muitos eventos acadêmico-científicos, este livro se materializa como um símbolo e um norte para que novos pesquisadores e estudiosos sintam-se cada vez mais impelidos ao combate, no sentido amplo defendido por Lucien Febvre (1989). Mais que uma obra cujo público seria formado exclusivamente os especialistas e estudiosos das e nas universidades. A obra tem um alcance além, pois as narrativas, mesmo atendendo ao rigor científico e metodológico, não se distanciam da facilidade de compreensão por parte de qualquer público leitor interessado. Movidos pelo dever e pela responsabilidade de (re)escrever a História, em seus múltiplos vieses e horizontes.

Referências

PEDREIRA, Flávia de Sá (Org.). Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial. São Paulo: LCTE, 2019, 340p.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. São Paulo: EDUNESP, 2009.

CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Portugal: Celta, 1993.

DUROSELLE, Jean Baptiste. Todo império perecerá. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 2. ed. Lisboa: Editora Presença, 1989.

GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. CNPq/Marco Zero, 1990.

HALL, Stuart. O Global, o local e o retorno da etnia. In: HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. Neutralidade dependente: o caso do Brasil, 1939-1942. Estudos Históricos, v. 6, n. 12, Rio de Janeiro, 1993.

MUNIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Pedro Pio Fontineles Filho –  Doutor em História Social (UFC). Mestre e Especialista em História do Brasil (UFPI). Graduado em História (UESPI). Graduado em Letras-Inglês (UFPI). Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPI). Professor do Mestrado Profissional – PROFHISTÓRIA (UESPI). Professor do Curso de História (UESPI/CCM). E-mail: [email protected]

PEDREIRA, Flávia de Sá (Org.). Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial. São Paulo: LCTE, 2019. Resenha de: FONTINELES FILHO, Pedro Pio. Além das Trincheiras e do Front: escritas sobre o Nordeste brasileiro e a Segunda Guerra Mundial. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.10, n.1, p. 269- 275, 2019. Acessar publicação original [DR]

 

A vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo – ACCAIUOLI; FERRO (LH)

ACCAIUOLI Margarida; FERRO, António. A vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo. Lisboa: Bizâncio, 2013. Resenha de: VICENTE, Filipa Lowndes. Ler História, n.65, p. 182-188, 2013.

1 Em 1923, António Ferro publicou no Brasil A Idade do Jazz Band1. O texto fazia um elogio ao jazz – um símbolo «frenético, diabólico, destrambelhado, ardente» da contemporaneidade. Num momento em que este tipo de música era ainda incompreendido por uma vasta maioria, vilipendiado por atentar contra a harmonia musical e usado para fundamentar teorias racistas que o associavam à música negra, o jazz era para Ferro o símbolo de uma Europa renascida depois da Grande Guerra, e aberta ao que vinha do outro lado do Atlântico.

2 Nas décadas de 20 e 30, Ferro era ainda um jovem intelectual inquieto. Politizado, sem ser ainda político. Sempre em movimento, num entra e sai do país. Manifestava-se em múltiplos escritos – uns para consumo interno, outros destinados a públicos externos. Foi o caso da entrada que redigiu sobre o regime político português, na prestigiada Encyclopédie Française dirigida pelo historiador Lucien Febvre (1933)2. Uma sinopse do «Estado Novo», integrada num capítulo dedicado aos «outros regimes autoritários», aqueles que não cabiam na categoria dos «regimes fascistas», nem nos «regimes nacionais-socialistas». Uma entrada que era, sobretudo, um elogio a Salazar e ao seu modo de ser um português suave com mão de ferro.

3 Mas a vasta obra publicada de Ferro não foi um gesto silencioso e solitário. Intelectual de ação, a sua palavra impressa era, em geral, registo de um discurso oral, do diálogo-entrevista, da conferência proferida, no Rio de Janeiro ou em Lisboa. Em voz alta, pronunciada à frente de um público, discursada ao microfone, Ferro aprendeu bem a utilizar o melhor de todos os meios de comunicação disponíveis, quer na sua própria escrita, quer nas múltiplas vertentes de comunicação usadas pelos órgãos institucionais ou culturais que dirigiu.

4 Ferro traz para Portugal o mundo «lá de fora» onde ele identifica os traços do que era «moderno» na música, literatura, pintura, arquitetura ou escultura, bem como nos protagonistas dos novos fascismos europeus. Enquanto repórter jornalístico fez entrevistas a D’Annunzio, Mussolini ou mesmo Hitler, e transformou-as no livro Viagem à volta das Ditaduras, que antecedeu as suas conversas, mais longas, com Salazar. Destes diálogos nasceu a ligação que faria deles cúmplices na ação política e na construção das suas imagens públicas.

5 Um destes diálogos teve lugar num automóvel, em andamento, como se vê numa das fotografias publicadas em Salazar. O homem e a sua obra (1933). Para que o entrevistado não perdesse o pouco tempo que tinha para equilibrar as finanças do país? Ou para que a imagem do católico tradicionalista que tinha vindo da província fosse marcada pela modernidade do século? A conversa entre os dois homens foi marcada pelo click imediato da fotografia instantânea, bem como pelo movimento do automóvel, tal como o Chevrolet que levara Álvaro de Campos de Lisboa a Sintra.

6 Em 1933, já diretor do recém-criado Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), o escritor da contemporaneidade – ou o historiador do presente – passa a ser o político do espírito. Foi, então, que o seu cosmopolitismo deu lugar à construção de uma ideia de «Portugalidade» definida em várias frentes. Um Portugal dos sentidos para aqueles que sabiam ler, mas também para aqueles – a maioria – que só sabia ver. O Bailado do Verde-Gaio, a hesitar entre a reinvenção de um folclore esquecido e uma tradição clássica internacional; os múltiplos prémios literários e artísticos, a construir os cânones da época – onde A Romaria do Padre Vasco Reis ganhou o prémio de poesia de 1934, relegando a Mensagem de Pessoa para um prémio de consolação; as pousadas de Portugal, para que os portugueses pudessem americanizar os seus lazeres e viajar na própria terra; o concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal e a definição etnográfica de uma cultura popular (o povo deveria continuar a ser povo, mas um povo ciente das tradições que o identificavam e que deveria reproduzir); as intervenções numa Lisboa urbana, entre o culto do bairro de Alfama, com vasos de flores à janela para o rio, e a abertura das avenidas novas, com nomes de colónias e países estrangeiros; ou a tentativa de regulamentar o estilo decorativo através das «campanhas do bom gosto». Um estilo que os críticos chamavam, ironicamente, o «estilo secretariado».

7 Esta última é uma das poucas referências feitas no livro à contestação da política cultural do regime ou à resistência àquilo que muitos também viam como um excesso de regulamentação que pouco ou nada se coadunava com a prática da criatividade. Face à multiplicação de prémios e concursos para todos os tipos de escrita ou de arte, a revista Presença pôs o dedo na ferida. Onde estava aquele Ferro que, no passado, tinha escrito sobre a incompatibilidade entre a liberdade da produção cultural e a intervenção política?

8 A autora do livro dá bastante ênfase aos discursos proferidos por Ferro aquando da sua saída do Secretariado, em 1950. Foi através destes discursos que Ferro aproveitou para responder às críticas de que naturalmente também foi alvo, entre as múltiplas homenagens. Mas ficamos com vontade de saber mais sobre o que suscitou estes discursos justificativos. Em que margens se encontra a contestação ao regime, para lá do texto de Almada ou de António Pedro a questionar a ideia de converter os portugueses ao «bom gosto»? Onde estão os artistas, escritores e intelectuais que ficaram de fora? Por exemplo, segundo Jorge Segurado, Ferro teria dito que «era uma pena que o Arlindo Vicente não tivesse aderido ao Estado Novo». Que possibilidade de resistência – ou sobrevivência – é que tiveram aqueles que não aderiram? E as organizações que foram extintas pelo regime, como o Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas, principal organismo feminista, liderado pela intelectual Maria Lamas? Em 1947, este conselho organizou, na Sociedade Nacional de Belas Artes, uma Exposição de Livros Escritos por Mulheres de todo o Mundo e foi, em parte, o sucesso deste evento e dos colóquios que o acompanharam que acabaria por levar à sua extinção compulsiva.

9 E onde ficam as mulheres de uma história cultural do Estado Novo? Não aquelas que apareciam com trajes de minhota nas fotografias a preto e branco ou nas aldeias populares reconstituídas na exposição de 1940, mas as que escreviam, pintavam, ilustravam livros ou coreografavam espetáculos de dança e teatro. O livro refere vários nomes de mulheres, sobretudo as que ganharam prémios literários ou participaram nas muitas exposições patrocinadas pelo SPN (um útil apêndice mostra todos os premiados). Mas não faz qualquer abordagem de género. E é pena, pois o próprio António Ferro refletiu várias vezes sobre a contemporaneidade ou sobre a criatividade através daquilo que identificou como sendo valores femininos ou masculinos. E aqui, longe de «modernas» – Virginia Woolf, por exemplo, publicaria A Room of one’s own em 19293 –, as posições de Ferro correspondiam à ideologia dominante em relação à incapacidade da mulher para a escrita e para a criatividade.

10 Ferro aproveitou a sua entrevista à escritora francesa Colette para escrever sobre o assunto: por um lado, elogiou-a, nas vésperas de ser condecorada com a Legião de Honra, afirmando que só em França isso seria possível4. Uma Colette portuguesa, escreveu Ferro, seria uma imoral, fútil e – como todos aqueles «que se limitam a ser de hoje» – seria considerada «futurista». Mas, por outro lado, para ele a literatura era uma «arte masculina», a mulher era «o manequim da literatura», a musa inspiradora e a exceção que só servia para confirmar a regra da incapacidade da mulher para a escrita. Ou seja, aquelas que escreviam bem faziam-no por terem «cabeça de homem» e por não serem «mulheres de carne e osso».

11 Este é o mesmo homem que escolheu casar com uma mulher intelectual. Fernanda de Castro, uma escritora de múltiplos registos e vasta obra, da tradução, à poesia, ao teatro ou romance5. Como tantas outras mulheres de intelectuais do seu tempo, também ela contribuiu ativamente para consolidar a carreira do marido, traduzindo-lhe os discursos ou colaborando em muitas das iniciativas do SNI. Mas claramente existe uma opção de cingir a biografia a aspetos da vida pública de Ferro e não da sua vida familiar e privada. No entanto, o papel cultural ativo e interveniente de Fernanda de Castro subverte esta fronteira entre público e privado.

12 A «masculinização» de uma estética dos regimes fascistas europeus, para lá do óbvio domínio masculino do poder tem sido um tema abordado noutros casos europeus. De que forma é que este culto do corpo masculino se fazia sentir em Portugal? Por exemplo, Ferro escreveu que só admirava aqueles escritores que tinham «músculo na prosa» (Colette, p. 28). A iconografia da propaganda do Portugal dos anos 40 dá-nos outros exemplos – erotizados? – desta masculinidade visível. É o caso do livro Portugal 1940, publicado pelo SPN, que mostra imagens de homens a construir pontes em tronco nu ou a escavar a terra em mangas de camisa, os braços erguidos em uniformes militares ou em perfeitas coreografias de ginástica, homens negros a dançar seminus numa fotomontagem destinada a ilustrar a viagem do Presidente da República às colónias, ou um homem que, qual estátua grega, noutra sobreposição fotográfica, parece dominar o novo Estádio Nacional6.

13 À vertigem da palavra, bem notada no subtítulo do livro, será necessário acrescentar a vertigem da imagem. Enquanto «moderno», Ferro reconhecia naturalmente a relevância crucial da fotografia e do cinema, quer enquanto arte, quer enquanto instrumento de propaganda. Margarida Acciaiuoli reconhece a importância da imagem, dedicando um capítulo específico aos usos que Ferro, através do SPN/SNI, fez das tecnologias visuais. Mas não legenda, apropriadamente, as magníficas fotografias do livro. Sem autoria, sem identificação e sem data, muitas das imagens acabam por ser abordadas não como um documento histórico, mas apenas como uma ilustração. Neste uso da fotografia, como superfície de representação e não como um objeto em si que precisa de ser contextualizado historicamente e abordado criticamente, acabam por se reproduzir os modos como a própria fotografia foi usada no passado: como ilustração e não como documento.

14 Entre os casos mais interessantes que são referidos no livro, estão as encomendas dos álbuns fotográficos Portugal 1934 e Portugal 1940 – ambos com a enorme sofisticação gráfica comum a tantas das publicações do Secretariado. Com a participação de vários fotógrafos e a utilização das diferentes técnicas de montagem disponíveis na época, o próprio meio de propaganda correspondia à mensagem de modernidade que se queria transmitir. Da permanente relação contemporânea entre a fotografia e as exposições, Ferro tinha plena consciência. Em algumas exposições, a fotografia era usada negativamente – para mostrar aquilo que se queria rejeitar; noutras, positivamente, para expor aquilo que se pretendia celebrar.

15 O passado recente que se queria renegar era o da I República, como bem nota Acciaiuoli. A fotografia, retrabalhada em montagens que favoreciam o contraste, serviu de prova da «desordem» que o Estado Novo viera erradicar. Ao recorrer ao arquivo do fotógrafo Joshua Benoliel, com as suas reportagens visuais da politização das ruas republicanas, António Ferro tentou demonstrar uma consciência das potencialidades políticas da imagem que caracterizou todo o século XX. A Exposição Anticomunista, realizada em 1936 na sede do SPN, foi mais um exemplo dos usos políticos da fotografia, para os quais contribuíram as fotomontagens de Mário Novais. A mesma técnica foi também usada por Novais nos Pavilhões de Portugal nas exposições universais de Paris (1937) e de Nova Iorque (1939) para propagandear um país simultaneamente moderno e tradicional, consciente do seu passado, mas a viver o futuro.

16 Em 1942, António Ferro promoveu uma exposição do britânico Cecil Beaton, já então um fotógrafo de prestígio, conhecido pelos seus retratos sofisticados e produções de moda, na Vogue como nos círculos de Hollywood. Beaton fora pago pelo governo britânico para fotografar as personagens políticas do Portugal de Salazar, mas Ferro compreendeu a oportunidade única de poder mostrar ao público do Palácio Foz um Carmona, um Cerejeira ou um Duarte Pacheco. Este último, de cigarro entre os dedos, a olhar para um mapa de Lisboa, um belo homem fotografado como um ator de cinema. Esta foi, talvez, uma das raras oportunidades para Ferro mostrar algo de «internacional» em Portugal. Como demonstram muitos casos referidos no livro de Acciaiuoli, era quase sempre Portugal a ser exportado para fora – os pavilhões de Portugal nas exposições internacionais, os redescobertos Pauliteiros de Miranda no Royal Albert Hall de Londres em 1933, a exposição de arte popular portuguesa em Genebra, em 1935, ou a companhia de bailado Verde-Gaio apresentada num teatro parisiense em 1949.

17 O arquivo fotográfico do SPN/SNI, hoje na Torre do Tombo, é o arquivo de um Portugal de Trás-os-Montes a Timor. Um Portugal que se podia fotografar e que se podia divulgar. Estas imagens eram usadas nas múltiplas publicações do SNI, mas também cedidas para os portugueses ou estrangeiros que quisessem participar nesta divulgação. O guia de Portugal para estrangeiros que a embaixatriz britânica Ann Bridge e Susan Lowndes publicaram em 1949 é exemplo disso7. Muitas das fotografias que ilustram o Selective Traveller in Portugal foram escolhidas pelas autoras no arquivo fotográfico do SNI, instituição que também apoiou, logisticamente, as viagens que as duas inglesas fizeram pelo país nos finais da década de 1940. Um Portugal ainda a preto e branco, feito de igrejas restauradas, casas caiadas, e monumentos modernos em homenagem a feitos antigos – um cânone visual que a ação do SNI contribuiu muito para consolidar e que somente uma revolução política veio perturbar.

18 Este era também um Portugal para «inglês ver». Traduzido em inúmeras línguas e exportado numa linguagem estética moderna, mas não modernista, onde além dos «feitos do passado» se queria mostrar a «obra do presente», com as colónias a ocuparem um lugar central. Mais tarde, o SPN passou a chamar-se Secretariado Nacional da Informação (SNI), assinalando uma passagem da ideia de «propaganda» para a ideia de «informação» que não foi acidental. Mas a ideia de criação de uma «imagem» de Portugal – para fora ou para dentro – esteve sempre presente em Ferro. Nesta consciência e ação de um nacionalismo exportado está um dos aspetos mais fascinantes da sua obra institucional, pois é nela que melhor se consubstanciam as ideias de cosmopolitismo e nacionalismo.

19 Parecia existir uma tensão entre a modernidade tal como ela era sentida por Ferro – da moda ao jazz, na estetização das ditaduras, ou nas potencialidades do visual consubstanciadas na fotografia, nas exposições ou no cinema – e a crescente resignação em aceitar que o caminho cultural de Portugal tinha que ser o de um Portugal «português». Um exemplo poderia ilustrar esta hesitação, ou mesmo conflito, entre diferentes modos de pensar uma política cultural nacionalista. Em 1945, Villas-Boas teve um programa de música jazz na Emissora Nacional, a rádio oficial dirigida por Ferro. Mas, pouco depois, o programa passou para o Rádio Clube Português, por se considerar que não era adequado à ideia de «Portugalidade» que o SNI definia sempre com maior precisão. Tivera Ferro que abdicar do seu «cosmopolitismo» para não suscitar grande oposição do próprio regime? Porque é que o homem que não acreditava no passado, que renegava a nostalgia e a saudade, e que tanto tinha escrito sobre a necessidade da arte e da escrita celebrarem o presente, e mesmo o futuro, colaborava agora na construção de uma estética do passado português?

20 António Ferro. A vertigem da palavra teria beneficiado com abordagens de género, com um outro uso das fotografias fascinantes que o ilustram, com uma maior distanciação do discurso oficial das próprias fontes para melhor explorar as vozes de resistência e, também, com uma abordagem transnacional do assunto, atenta àquilo que de semelhante se passava para lá das fronteiras nacionais. O livro dialoga com os textos do seu biografado, dando-nos uma súmula muito útil do pensamento de Ferro, mais do que com uma bibliografia secundária de teses de doutoramento já publicadas ou por publicar. Do livro de Ellen Sapega, Consensus and Debate in Salazar’s Portugal: Visual and Literary Negotiations of the National Text, 1933-19488, ou o de Vera Alves, sobre arte popular e nação no Estado Novo9, à tese recente de Marta Prista sobre as Pousadas de Portugal10, são muitas as investigações interessantes que sobre este período têm sido realizados. Falta, agora, desenvolver uma maior consciência do contexto cultural internacional em abordagens transnacionais e comparativas.

21 Este é um livro bem escrito e com referências especialmente interessantes para a história dos museus, exposições e arquitetura do Estado Novo, onde uma narrativa mais centrada na figura de Ferro, e sobretudo no seu discurso, é intercalada com referências à cultura oficial do tempo. Tal como o nome da revista criada por Ferro para divulgar a cultura e a arte portuguesas, este livro constitui um panorama para quem se interesse pela história cultural, e política, do período. Desperta a curiosidade para outras leituras sobre o assunto, para a própria obra de Ferro e para os muitos traços estéticos e monumentais que a «política do espírito» deixou nas ruas e edifícios do país. Porém, cabe ao leitor assumir um papel ativo. Lendo para lá da voz reproduzida do biografado e interpelando uma narrativa que por vezes oficializa a história oficial. Sem problematização, a estética do Estado Novo, com a sua atração inegável, corre o risco de se despolitizar, e nos deixar com saudades de brincar, na ilusão da liberdade infantil, no Portugal dos Pequeninos.

Notas

1 António Ferro, A Idade do Jazz Band, São Paulo, Monteiro Lobato, 1923.

2 António Ferro, «L’État Nouveau», pp. 10’88-15, Encyclopédie Française publiée sous la direction gen (…)

3 Virginia Woolf, Um Quarto que seja seu, pref. de Maria Isabel Barreno, trad. de Maria Emília Ferros (…)

4 António Ferro, Colette, Colette Willy, Colette , Lisboa – Porto, H. Antunes, 1921.

5 As suas obras foram recentemente republicadas: Fernanda de Castro, Obra literária completa, com a i (…)

6 Barros, J. Leitão (dir.), Portugal 1940, Lisboa, Secretariado da Propaganda Nacional, 1940.

7 Bridge, Ann e Susan Lowndes, The Selective Traveller in Portugal, Londres, Chatto & Windus, 1949.

8Sapega, Ellen W., Consensus and Debate in Salazar’s Portugal: Visual and Literary Negotiations of t (…)

9Alves, Vera Marques, Arte Popular e nação no Estado Novo. A política folclorista do Secretariado de (…)

10Prista, Marta, Discursos sobre o Passado: Investimentos Patrimoniais nas Pousadas de Portugal, Lisb (…)

 

Filipa Lowndes VicenteInvestigadora Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (UL). E-mail: [email protected]

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Cinéma et turbulences politiques en Amérique Latine | Jimena P. Obregón Iturra e F. Adela Pinheda

El libro Cine y turbulencias políticas en América Latina1 es el producto de un Coloquio internacional realizado en la ciudad de Rennes, titulado “Imaginarios cinematográficos y turbulencias en las Américas: Revoluciones, revueltas, crisis”2, en febrero del 2011. Dicho Coloquio se llevó a cabo en sinergia con el Festival de cine Travelling, en el marco del año de México en Francia3. Fruto de este encuentro entre investigadores tanto latinoamericanos como franceses, surge una obra que aborda las relaciones entre cine y política en una visión a largo plazo, tomando diferentes países y periodos históricos.

En esta obra colectiva dialogan las miradas de distintos investigadores y se interroga sobre las producciones audiovisuales en América Latina, específicamente sobre cómo circulan los imaginarios cinematográficos y cómo éstos se relacionan con la realidad política de un continente. El concepto de “imaginario cinematográfico” es clave y central en el libro, en tanto herramienta conceptual a través de la cual se busca ahondar en las representaciones socioculturales y políticas que abundan en el espectro audiovisual de los distintos países considerados: México, Cuba, Colombia, Brasil y Chile por el lado Latinoamericano, pero también Estados Unidos/Hollywood en cuanto industria globalizante e Italia por el lado europeo. Leia Mais

Revolucionarios cibernéticos. Tecnología y política en el Chile de Salvador Allende | Eden Medina

El libro que vamos a reseñar a continuación corresponde a la traducción al castellano del primer trabajo de la historiadora Eden Medina, publicado originalmente en Estados Unidos el año 2011 con el título Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile. En este estudio la autora, abocada al estudio de la historia de la ciencia y tecnología desde una perspectiva social, se propone como principal objetivo investigar la relación que se dio entre tecnología y política durante el gobierno de la Unidad Popular, período en donde los profundos cambios que se intentaron llevar a cabo en nuestro país, generaron un clima propicio para la aplicación de novedosas ideas del campo de la cibernética, ciencia interdisciplinaria enfocada en el control y la comunicación, y que permitirían a su vez efectuar tales transformaciones, principalmente en el ámbito de la dirección del sector estatal de la economía chilena, por medio de un sistema tecnológico llamado Cybersyn en inglés, o Synco (Sistema de Información y Control) en nuestro idioma. También en esta obra se busca entender la manera en que se integraron principios e ideas políticas en el diseño técnico, así como las dificultades y limitaciones que se presentaron en este ámbito, y la utilidad que conlleva el estudio de la tecnología para tener una mejor comprensión de una época determinada. Para lograr estos fines, Medina hace uso de una amplia gama de fuentes, desde cartas e informes oficiales hasta entrevistas con los principales actores involucrados, principalmente científicos y técnicos, considerados por la autora como “nuevas voces” que la historiografia no había incorporado hasta ahora, este aspecto a nuestro juicio constituye uno de los méritos de este trabajo; por otro lado el marco teórico que orienta la investigación se basa en la historia de la tecnología, abocada al estudio de las relaciones entre el desarrollo técnico y el marco social y político en el que se desenvuelve. Leia Mais

Guerreros Civilizadores: política, sociedad y cultura en Chile durante la Guerra del Pacífico | Carmen Mcevoy

Carmen McEvoy nasceu no Peru, é historiadora e professora na University of the South, Sewanee, no Tennessee, EUA. É também mestre pela Pontifícia Universidad Católica del Perú e doutora pela University of California, em San Diego. Sua tese de doutoramento versou sobre o republicanismo no Peru do século XIX e inaugurou uma série de estudos da autora sobre as relações entre Peru, Chile e Bolívia, dos quais se destacam Armas de Persuasión Masiva: retórica y ritual en la Guerra del Pacífico (2010) e Guerreros Civilizadores: política, sociedad y cultura en Chile durante la Guerra del Pacífico (2011). Desse último, trata a presente resenha.

Guerreros Civilizadores é a continuação das pesquisas iniciadas em sua obra anterior, Armas de Persuasión Masiva, e aborda a Guerra do Pacífico, tema bastante conhecido e estudado por McEvoy. Ocorrida no final do século XIX, mais precisamente entre os anos de 1879 e 1884, essa guerra – que envolveu Chile, Bolívia e Peru na disputa pela posse do território rico em minerais situado ao norte do que hoje é o Chile – foi um episódio importantíssimo na configuração dos espaços nacionais dos países envolvidos. A guerra foi deflagrada a partir do impasse entre os governos de Chile e Bolívia em relação ao pagamento de impostos sobre a exploração das riquezas minerais bolivianas, por empresas chilenas que lá se instalaram. O conflito tornou-se tri nacional devido a um pacto de ajuda mútua, em caso de guerra, firmado anos antes entre Bolívia e Peru. O desfecho foi favorável aos chilenos, que puderam anexar ao seu território às partes em disputa com seus vizinhos. A Bolívia perdeu sua saída para o Oceano Pacífico, e o Peru perdeu a rica província de Tarapacá, principal centro de exploração do cobre chileno até os dias de hoje. Leia Mais

Religion, Politics and International Relations: selected essays | Jeffrey Haynes

Fruto de uma preocupação maior com o impacto de atores não-estatais religiosamente motivados no sistema internacional, o estudo do fenômeno religioso nas Relações Internacionais é uma tendência relativamente nova dentro da área no Brasil e no exterior. Em especial, os atentados de 11 de setembro trouxeram à tona a necessidade de um entendimento maior de como aspectos ligados a religiosidade e a prática de valores ligados a aspectos transcendentais podem impactar decisivamente no relacionamento político entre os países.

Frente a essa preocupação, é notório no Brasil o aumento de estudos, teses e artigos sobre a temática da religião, com especial ênfase à influência da mesma na política externa dos EUA. Não obstante, nota-se ainda a necessidade de uma ampliação desse debate, com um rigor maior no uso dos conceitos e na clarificação de como a religião pode ser entendida em diferentes atividades políticas domésticas e internacionais. Leia Mais

Enseñar filosofía o filosofía del enseñar: acerca de Platón y la política – SOARES (RA)

SOARES, Lucas. Enseñar filosofía o filosofía del enseñar: acerca de Platón y la política. Buenos Aires: Tecnos, 2010. Resenha de: BIEDA, Esteban. Revista Archai, Brasília, n.9 p.153-156, jul., 2012.

Ante todo, acordemos un breve marco conceptual. En líneas generales, el objeto de estudio de la filosofía no son las cosas, sino las I que los filósofos se hacen o tienen acerca de esas cosas.  La etimología de la palabra “teoría”da cuenta de esto, dado que tiene que ver con la “contemplación”de algo, con la “visión”que se puede tener de un objeto, de un fenómeno o de una idea: una teoría no es la cosa sino una representación de la cosa. Siguiendo esta línea, la historia de la filosofía probablemente consista en una representación del modo en que tal o cual filósofo se ha representado, a su vez, determinada cosa: estaríamos ante una  representación de representación. La distancia que media entre el historiador de la filosofía y el mundo podría parecer, así, casi insondable. Es por esta razón que algunos han afirmado que hacer historia de la filosofía no es una tarea filosófica sino, a lo sumo, historiográfica. En lo que sigue trataré de mostrar por qué, a mi juicio, el libro de Lucas Soares, Platón y la política, es una prueba que refuta dicha posición: no es sólo un libro de historia de la filosofía sino fundamentalmente un libro filosófico.

Comencemos por la expresión “hacer filosofía”o, mejor dicho, “tener a la filosofía como profesión en el siglo XXI”. La posición más tradicional sugiere que hacer filosofía consiste en la creación de sistemas de conceptos capaces de dar cuenta del  mundo circundante. Junto a este sentido clásico  y restringido hay otro quizá demasiado amplio: si es cierto, como decíamos antes, que el filósofo no trabaja con el mundo sino con las representaciones que tiene acerca del mundo, alguien podría concluir que, en ese caso, cada hombre particular es un  filósofo particular, alegando que las representacio nes son particulares e intransferibles. Si la primera definición de “hacer filosofía”–en tanto creación de sistemas conceptuales– era demasiado estrecha, esta segunda parece demasiado amplia. ¿Qué estadios intermedios hay v.g. entre la intrincada prosa hegeliana y el taxista que se pregunta por las razones de su tristeza? ¿Qué puentes hay entre el plano de la teoría y el de la praxis en lo que respecta a las preguntas filosóficas por antonomasia: “¿qué es el mundo?”, “¿qué es el hombre?”? Vayamos a esto.

En un tratado dedicado al estudio del alma  Aristóteles insiste en que “filósofo”no es quien tan sólo posee conocimientos filosóficos, sino quien se sirve de ellos, quien los teoriza, quien los pone en acción. El hombre que posee conocimientos pero  está dormido o no los utiliza no es filósofo en sentido pleno. El conocimiento por el conocimiento mismo no es una meta aristotélica. Ahora bien, ¿qué hay que entender por ‘utilizar los conocimientos filosóficos’? Cuando Aristóteles se propone definir lo que entiende por “conocimiento”(epistéme), cosa que hace en el primer capítulo de la que probablemente sea su obra más compleja, la Metafísica, señala como característica fundamental su enseñabilidad. Es en ese contexto que sienta la siguiente posición: “signo para distinguir al que sabe del que no sabe es su capacidad de enseñar”(Met. 981b7). Alguien “sabio”no es, pues, quien simplemente posee conocimientos, sino quien es capaz de utilizarlos o actualizarlos, entre otros modos posibles, mediante la enseñanza. Enseñar filosofía es, sin dudas, uno de los puentes que buscábamos, uno de los lazos capaces de unir el mundo de las más abstractas teorías filosóficas y las quizá poco revisadas convicciones de quienes se acercan a la filosofía por primera vez. Un filósofo no es únicamente quien crea sistemas conceptuales complejos sino también quien los comparte pedagógicamente con sus alumnos.

¿Qué tiene que ver todo esto con el libro de Lucas Soares? Pues bien, en él se plasman  esos dos aspectos que, sólo cuando unidos, hacen a la verdadera filosofía: la erudición teórica, por un lado, y el carácter irrenunciablemente  didáctico con el que se la presenta, por el otro. Al conocimiento profundo y exhaustivo de las  diversas representaciones que tuvo Platón acerca de su mundo y, en particular, de su realidad política, Lucas le suma la traducción a un plano donde se vuelve comunicable. Su libro no reposa, inerte, en el limbo de los análisis enrevesados e incomprensibles, sino que se compromete con la transmisión de la letra platónica sin por ello desatender la claridad y accesibilidad para el  lector. Aun cuando es un fino estudioso de los complejos problemas de la filosofía antigua (y  contemporánea), Lucas logra lo que pocos: hacerlo atractivo para cualquiera, dócil a la lectura para quien esté dispuesto a conocer cómo pensó Platón su entorno político y en qué dirección  hubiese querido transformarlo. ¿Significa esto  que estamos ante un manual de filosofía política platónica? De ningún modo, porque el libro no se limita a describir –pretensión del manual– sino que interpreta  mediante una hipótesis rectora  que lo recorre: “nuestra intención es desmitificar tanto la supuesta confianza ciega en la  pintura ideal de gobierno que Platón delinea en República, como el presunto realismo extremo de Leyes. Como se intentará demostrar a lo largo del libro, el pensamiento platónico es un tanto más complejo…”(p.10). No se resume el pensamiento político platónico, sino que se lo interpreta sobre la base de un profundo respeto, tanto por la letra platónica como por los lectores. ¿Y qué es la docencia sino la re-presentación de ciertos contenidos conceptuales, sensatamente dosificados con las propias interpretaciones? Enseñar interpretando, lo que podríamos denominar una “didáctica hermenéutica”, es una de las formas de la filosofía, y es lo que este libro propone.

Hay una idea que me interpela hace ya  varios años: si hoy Platón viviera, no entendería la mayor parte de los libros que se escriben acerca de él. Y esto ocurriría, creo, porque hay quienes identifican “hacer filosofía”con “complicar lo sencillo”. Tantos  papers, libros monográficos,  colecciones de artículos, todos escritos por los  así (auto)denominados “mayores especialistas en  la obra platónica”, se definen, en algunos casos  (porque por suerte hay varias excepciones), por su capacidad para complicar: cuánto más se enroscan los argumentos, más ‘serio’ y ‘valioso’ es el libro.  ¿Desde cuándo la seriedad es eso? ¿Por qué no  volver a los filósofos griegos del modo que proponía Pascal, pensador al que nadie se atrevería a negarle seriedad: “ordinariamente suele imaginarse a Platón y a Aristóteles con grandes togas y como personajes graves y serios; eran buenos sujetos,  que se divertían, como los demás, en el seno de la amistad. Escribieron sus leyes y retratos de política para distraerse y divertirse: esa era la parte menos filosófica de su vida. La más filosófica era vivir sencilla y tranquilamente”(Pensamientos)? Montaigne se lamentaba de un modo similar: “borran de la  historia que el más sabio y el más virtuoso de los hombres, Sócrates, bailaba”(Ensayos).

Desde mi punto de vista, un libro de filosofía no nace cuando es publicado; tampoco cuando es comprado por alguien. Un libro de filosofía nace  cuando es leído. Pues bien, me atrevo a decir que todos esos libros “eruditos”o de “especialistas”no deben tener, a nivel mundial, más de mil o dos mil lectores, lectores entre los cuales, si estuviera vivo, probablemente no se contaría Platón. ¿Por qué no? Porque, como afirma Lucas en su libro a propósito del proyecto político platónico, “el hecho de erigir su primer y mejor orden político como un ideal  inalcanzable en los mismos términos que supone  el modelo (parádeigma), no significa que la  pólis platónica se limite a una mera abstracción teórica, inviable en la práctica y sustraída al devenir histórico, sino que se trata más bien de un horizonte regulativo que apunta fundamentalmente a señalar un nuevo camino y la meta que debería proseguir de allí en más la verdadera política”(pp.232-3).  El genio de Platón no consiste en lo que algunos consideran su ‘idealismo’: el creador de la teoría  de las ideas no fue un idealista, al menos no en  el sentido que hoy le damos al término. El genio  de Platón consiste en su esfuerzo –quizás nunca  definitivamente exitoso– por tratar de comunicar  el plano de lo modélica y anheladamente perfecto con el de lo difuso y corruptible. A eso se refiere Lucas cuando afirma que “Platón nunca emprende su investigación acerca de lo político en abstracto, sino que pone en práctica un abordaje de naturaleza dual, el cual supone un ojo puesto en el análisis  histórico […] y otro puesto en la elaboración de  una alternativa política de cuño personal”(p.229). Parafraseando este pasaje, me atrevo a decir que  ‘Lucas nunca emprende su investigación, sea cual fuere, en abstracto, sino que pone en práctica un abordaje de naturaleza dual, el cual supone un ojo puesto en la transmisibilidad de los problemas a sus alumnos-lectores y otro puesto en la elaboración  de una interpretación de cuño personal’. Muchos  libros que estudian la filosofía antigua son escritos “en abstracto”; el de Lucas, por el contrario, se  concreta en la misión cuasi divina de la enseñanza, de aquello que hace que cada hombre no sea una mónada cerrada sobre sí misma, sin posibilidad de comunicarse con sus pares. Lucas no escribió un libro para él mismo, no lo escribió para regodearse en  un saber que, por ser incomprensible para muchos, sólo lo satisface a él y a unos pocos colegas; más bien escribió un libro que contiene la generosidad intelectual como marca distintiva. A propósito de la misión “cuasi divina”de la enseñanza, me refiero a que el verdadero docente es quien puede tener un ojo puesto en aquello que enseña y el otro en sus alumnos –paridad no siempre tenida en cuenta lo suficiente–. Este lugar ‘intermedio’ es lo que, según Platón, define nada menos que a Éros, semi-dios  encargado de comunicar el plano divino con el  humano. Es en ese sentido que hablamos de “eros docente”: la docencia es una actividad erótica por cuanto supone un tipo de comunicación cimentada en dos deseos que se encuentran: deseo de saber, por un lado, y de enseñar, por el otro. Sin dudas, este libro contiene altas dosis de eros docente.

Ahora bien, ¿dónde se ve todo esto en el  libro? En la mismísima “Introducción”encontramos el siguiente manifiesto: “se procuró equilibrar en el libro un tipo de exposición clara y ágil con el rigor filosófico y la pluralidad interpretativa que el tema amerita”(p.13). La claridad y la agilidad como  contrapropuesta al lenguaje imbricado y ampuloso, pero sin resignar, por ello, rigor filosófico. Pero hay más: “se ha priorizado, tanto en el cuerpo central como en las notas, la utilización de fuentes primarias, las cuales apuntan a brindarle al lector mayores elementos de juicio a partir de apoyo textual “(p.13). Ya en la propuesta, Lucas le advierte al lector que no pretenderá persuadirlo de determinada línea interpretativa: el autor selecciona y presenta al lector su propia interpretación, pero también aquello que considera relevante para que el lector mismo pueda generar sus propias preguntas e interpretaciones. La filosofía está viva porque activa el pensamiento del lector que, si bien asiste a la exposición de teorías ajenas, no por eso es asfixiado con toneladas de bibliografía secundaria y de problemas tan rebuscados como alejados de la letra platónica. Si bien el libro cuenta con un gran número de notas al pie en las que el lector interesado o el especialista pueden  encontrar referencias bibliográficas de toda índole para profundizar los problemas o conocer algunos debates de la crítica al respecto, no es eso lo más interesante que tiene. Porque sí: hay libros de historia de la filosofía que hacen que la filosofía se cierre sobre problemas que, paradójicamente, hacen que el pensamiento se detenga; algo similar a lo que le ocurrió al ciempiés de la madre de Gelman: “Siempre recuerdo una anécdota que me contó mi vieja, una leyenda rusa. Una vez estaba una arañita ahí al borde del camino y pasa un ciempiés. Entonces, la araña le dice: ‘Señor ciempiés, qué complicado, ¿cómo hace para caminar? ¿Con los cincuenta pies izquierdos primero, cincuenta después de la derecha, diez y diez, uno y uno?’. Y el ciempiés se puso a pensar, y no caminó nunca más”(Juan Gelman, Revista Ñ 11/3/2006). El libro de Lucas invita a pensar a Platón pero en marcha, caminando, es decir: leyendo a Platón mismo, y no desde la atalaya de debates anquilosados y estancos. En una entrevista, Fernando Savater afirmaba: “yo creo que uno de los problemas principales del estudio de la filosofía es lograr entender de qué va o, mejor, cogerle la gracia: como los chistes. No es tan fácil. Isaiah Berlin empezó su vida académica como filósofo (era uno de los discípulos predilectos de Wittgenstein) pero luego dejó este primer amor para dedicarse a la historia de las ideas; cuando se le preguntó por las razones de tal cambio, repuso: ‘Es que quiero estudiar algo de lo que al final pueda saber más que al principio (Diario El País, 02/09/2008). Cuando uno termina de leer el libro de Lucas puede tener la certeza de que sabe algo más que antes de leerlo.

En por todo esto que estoy convencido de que, si Platón viviera, sin dudas leería Platón y la política, entendería Platón y la política  y, más importante  aún, lo recomendaría a sus alumnos de la Academia.

Esteban Bieda – Universidad de Buenos Aires – CONICET.

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Memoria y Política en la Historia Argentina Reciente: una lectura desde Córdoba | Marta Philp

“Memoria y Política en la Historia Argentina Reciente: una lectura desde Córdoba” nos invita a reconstruir un período específico de la historia argentina: la etapa 1969 – 1989, desde un lugar determinado: Córdoba. Es éste ya uno de los puntos a destacar de la obra. Efectivamente, con la valiosa perspectiva de quienes investigan las historias provinciales; como alternativa y complemento al gran relato de la historia nacional, la autora aborda las relaciones entre historia, memoria y política, centrando el análisis en las conmemoraciones y homenajes. Éstos constituyen una vía particularmente rica para analizar cómo el poder político construye su legitimación mediante los usos y significaciones atribuidos al pasado.

Escrita en un lenguaje claro, sólido; “Memoria y Política en la Historia Argentina Reciente: una lectura desde Córdoba” aborda una temática aún conflictiva para la mayoría de los argentinos, cuyo tratamiento es considerado campo de abordaje por historiadores y periodistas; y todavía se halla en pleno proceso de construcción desde lo metodológico y lo analítico. De allí que, pese a ser una obra de buena lectura, una comprensión cabal apunte a entendidos. Leia Mais

Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política – RIDENTI (EH)

RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política.  São Paulo: Editora Unesp, 2010. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane Soares. Revolução e mercado. Estudos Históricos, v.24 n.48 Rio de Janeiro July/Dec. 2011.

“Fracasso político e sucesso profissional”: eis o subtítulo que um resenhista atrevido talvez sugerisse para Brasilidade revolucionária, que vem a lume pela Editora da Unesp, em 2010, sem a mais remota intenção de descredibilizar o subtítulo escolhido pelo próprio autor, “um século de cultura e política”. No entanto, é notável a tensão mantida em suspenso em seus trabalhos anteriores e que o autor ousa dar trato enfático nesse livro. O sociólogo Marcelo Ridenti empenha esforços, atiçado pelas dúvidas, estímulo de trabalho insubstituível, da geração dos nossos anos 1960. A reconstituição do “seu” século ambiciona responder, salvo equívoco de nossa leitura, a seguinte interrogação: como foi possível obras, artistas, livros, convicta e sinceramente anticapitalistas, alçarem tanto sucesso nos mercados correspondentes a suas atividades?

O livro compõe-se de cinco capítulos, abarcando o período que vai da Primeira República aos anos 1980. Em cada um dos contextos sociopolíticos tratados, é eleito um autor, grupo ou instituição, estratégicos para surpreender os elementos da “brasilidade revolucionária” como “estrutura de sentimento” – noção emprestada de Raymond Williams. A “brasilidade revolucionária” consiste “numa vertente específica de construção da brasilidade, aquela identificada com ideias, partidos e movimentos de esquerda – e presente também de modo expressivo em obras e movimentos artísticos” (p. 10). Já “estrutura de sentimento” refere-se ao conjunto mais representativo de agentes, práticas e produções culturais que deram conteúdo àquela “brasilidade revolucionária”, espécie de “sentimento pensado”/”pensamento sentido”. Essas noções não são os únicos suportes conceituais do livro, mas são centrais, perpassando todos os capítulos. Entre eles, o encadeamento se estabelece cronológica e significativamente; afinal, da Primeira República aos anos 1980, há uma espécie de emergência, auge e decadência da “brasilidade revolucionária” na “estrutura de sentimento”, processo apreendido em materiais expressivos os mais diversos, produzidos por agentes e instituições escolhidos para cada capítulo/período tratado.

Desse modo, o primeiro capítulo é dedicado à reconstituição e ao exame do percurso de Everardo Dias, uma biografia estratégica para o interessado nas lutas políticas do início do século XX no Brasil, bem como nos limites de abertura social do período, dada sua origem imigrante, seu zigue-zague entre prisão e liberdade, o trânsito em organizações de esquerda e na “sociedade dos bacharéis”. Nesse capítulo inicial, a sensibilidade historiográfica parece dar o tom que marca todo o livro. A escolha dessa biografia permite ao autor ligar o primeiro ao último capítulo do livro, a emergência ao ocaso da brasilidade revolucionária, por meio do auge dela.

Ao tomar como mote a segunda edição de História das lutas sociais no Brasil, de 1977, livro mais conhecido de Everardo, e anunciar que “a reedição expressava o elo que se buscava não apenas com as lutas do início do século ali retratadas, mas também com os embates do pré-1964, data de sua publicação original”, o autor parece dar uma piscadela de olho para o leitor, como que adiantando, mas não muito, projetos e derrotas de que tratará adiante. Não bastasse isso, o cruzamento de fontes de natureza distinta contribui para um bom rendimento interpretativo: memórias, edições de livros, cartas, dedicatórias. Se a leitura for correta, vale o adendo, o sentido dos três tempos – República Velha, retomada nos 1970, mediada pela derrota de 1964 – e o manejo da documentação são de fazer inveja a historiadores.

Dada a proposta de enquadramento das relações entre intelectuais e artistas e Partido Comunista, que se encontra no segundo capítulo, vale dizer, o autor vem abrir uma lacuna. Se já foi escrita uma biblioteca a respeito do tema da cooptação dos primeiros pelo segundo, há muito para ser pesquisado a respeito do outro lado da moeda: qual rendimento tal vinculação ofereceu para os produtores simbólicos, num momento em que a indústria cultural era incipiente e o espaço de atuação profissional universitário ainda em consolidação? Casos paradigmáticos, como o de Jorge Amado e o de Nelson Pereira dos Santos, são salutares para que se indague a respeito das “contrapartidas que mantinham intelectuais e artistas na órbita partidária, apesar de tudo” (p. 61), casos que não foram os únicos para os quais a militância no interior do partido foi uma “garantia de atuação profissional” (p. 65). No final das contas, a instância de organização da produção simbólica que hegemonizou o espaço profissional gabaritado, na ausência de um campo autônomo – com instituição especializada na formação dos agentes, mercado de trabalho correspondente e segmentação do consumo de bens culturais – foi o “Partidão”, tese implícita à análise.

Daí que a seguir – nos capítulos “Brasilidade revolucionária como estrutura de sentimento: os anos rebeldes e sua herança” e “Questão da terra no cinema e na canção. Dualismo e brasilidade revolucionária” – o autor atente à produção de agentes desligados do partido. Assim, pode aquilatar a centralidade de que gozou na cena cultural, e a perda dela mesma, pari passu o ocaso político, decorrente não apenas, mas fortemente, da fragmentação da esquerda e de sua autocrítica desencadeada pelo regime civil-militar. Desse modo, “especialmente depois de 1964, com a consolidação da indústria cultural no Brasil, surgiu um segmento de mercado ávido por produtos culturais de contestação à ditadura: livros, canções, peças de teatro, revistas, jornais, filmes etc. de modo que a brasilidade revolucionária, antimercantil e questionadora da reificação, encontrava contraditoriamente grande aceitação no mercado” (p. 98).

Toda a ambiguidade do quadro fica indicada pela reconstituição da repercussão do livro Tudo que é sólido desmancha no ar de Marshall Berman, publicado em 1986. Nota-se, novamente, a escolha bem pensada do material para o tratamento do problema que move o trabalho, pois com ele, acessa a “porta de entrada para pensar o entrelaçamento entre o campo intelectual e a indústria cultural no Brasil, bem como a relação entre mercado e pensamento de esquerda” (p. 145). Para dizer tudo num jargão familiar aos leitores: forma mercantil com conteúdo do campo “revolucionário” – é contraditório, mas, oferece síntese? Se sim, qual; se não, que fazer? No plano das trajetórias, o dilema se manifesta, genericamente, na figura do “intelectual atormentado com sua condição relativamente privilegiada, de portador de projetos de vanguarda numa sociedade subdesenvolvida e desigual”, mas “crescentemente seduzido pelo acesso individual ao desenvolvimento de um mundo globalizado, embora seu discurso por vezes mantenha tons esquerdistas” (p. 169).

Se nos fosse permitido, elaboraríamos a questão do seguinte modo. Assinala-se o ocaso do partido como instância fundamental da organização da produção afinada com o repertório cultural de esquerda, após 1964. Porém, a empreitada da modernização encampada após essa derrota requeria mão de obra qualificada. Tudo se passa como se a estrutura produtiva avançasse mais rapidamente do que as condições sociais correspondentes a ela, levando a deslocamentos de capital e mão de obra. O ritmo galopante do crescimento não comportava “esperar” a formação desta mão de obra, e se apropriou, nesse ritmo, da disponibilidade profissional – e não política – de tal qualificação. A consolidação da indústria cultural no Brasil é indissociável disso. Muito já foi dito a respeito das contradições da indústria cultural, mantendo-se rente aos conteúdos desse “cultural”. É tempo de se atinar para a “indústria”. A rotação das atenções para ela, parece-nos, segundo modesta leitura, consistir numa das contribuições salutares do presente trabalho, que tanto gostamos de ler.

Lidiane Soares Rodrigues – Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil ([email protected]).

Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt – CASTELO BRANCO (C)

CASTELO BRANCO, P. H. V. B. Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt. Curitiba: Appris, 2011. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 187-190, maio/ago, 2012.

A obra de Carl Schmitt foi, durante muito tempo, lida em função das ligações de seu autor com o Terceiro Reich na Alemanha nazista. Entre essa e outras razões permaneceu silenciada na França, como nos indica o estudo de Jean-François Kervégan (2006), ao analisar as dimensões da ideia de político e da ação política nas obras de Hegel e Schmitt. Além disso, prossegue o autor, “o fato de Schmitt ter se alinhado ao nacional-socialismo, cuja vitória foi descrita por ele mesmo como ‘a morte de Hegel’, parece ser a confissão de um xeque especulativo: o decisionismo professado durante os anos 1920″. (2006, p. XIV). Isso, por acaso, não redundou somente na França, mas também na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, na elaboração de estudos polêmicos, cujo norte era justamente o de alinhar a obra de Schmitt ao antissemitismo e ao nazismo.

Ainda que não parta de avaliação semelhante, a obra de Castelo Branco procura justamente destacar em que medida as tentativas de secularização da política e do direito permaneceram inacabadas na obra de Schmitt.

Versão revista de sua Tese de Doutorado, seu texto nos apresenta de que maneira Schmitt construiu seu projeto político e intelectual. Para Gabriel Cohn, que faz o prefácio da obra, secularização “é mais do que trânsito de ideias no éter dos significados”, pois é “literalmente trazê-las para o século, torná-las efetivas aqui e agora, manchá-las com a marca da empiria e da existência concreta”. (2011, p. 15). Para efetuar tal análise, Castelo Branco efetua um estudo minucioso da obra de Carl Schmitt, detalhando como  apreendia a questão da lei e da decisão, qual era a representatividade do Estado e qual era a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo. Nesse aspecto, sua hipótese é de que “o conceito de secularização é um pressuposto imprescindível para compreender alguns dos principais temas abordados por Schmitt nos seus estudos, como é o caso da decisão, do significado do Estado e do indivíduo e dos critérios do político”; assim, por “desempenhar um papel epistemológico no pensamento de Schmitt, entender seu conceito de secularização é uma condição essencial para tornar acessível o modo como o autor desenvolve outros conceitos, como decisionismo, exceção, mediação e soberania”. (2001, p. 20).

Desse modo, antes de aprofundar como Schmitt entende a secularização, o autor nos demonstra seu itinerário, tendo em vista que o progresso da razão universal e autônoma da época das Luzes do século XVIII teria eliminado os laços tradicionais e realizado a independência de uma esfera temporal. Sob este ponto de vista, os conceitos jurídicos e políticos do Estado moderno encontrariam seu fundamento racional no aperfeiçoamento moral e no progresso de um desenvolvimento histórico. O uso do conceito de secularização é objeto de disputa, por ser utilizado para legitimar a descontinuidade da modernidade e, consequentemente, do fundamento dos conceitos jurídicos que surgem com o Estado moderno. (p. 21).

E que, aliás, estaria na obra de Schmitt, apesar de suas preocupações, numa forma inacabada. Mas entender como tal questão se processa em sua obra não é uma tarefa nada fácil, e Castelo Branco conduz com desenvoltura seus argumentos para nos demonstrar que, ainda que esteja em estado inacabado, a ideia de secularização construída na obra de Schmitt é fundamental para entender todos os nexos de sua interpretação do político e do Estado, da lei e da decisão. Apesar de se aproximar da concepção de secularização de Löwith, que “não reconhece uma modernidade autônoma”, Schmitt percebe que a “transformação da religião em assunto privado não elimina a existência de um núcleo metafísico ou a crença de que o privado ocupe o lugar de algo sagrado”, entre outras razões, porque a “cultura da satisfação individual, do consumo ou da possibilidade de subjetivação de toda sorte de experiência, remete ao tema da secularização e, consequentemente, ao problema do esvaziamento de referências supraindividuais de orientação da conduta”. (p. 22). Por isso, o autor indica que “sob o ponto de vista político, mais importante do que a privatização dos bens da Igreja seria examinar a privatização do meio ambiente que fornece a medida ou diretriz às ações humanas” (p. 23), e é esse o caminho que segue para compreender a obra de Schmitt.

Ao centrar seu olhar sobre a obra de Schmitt, a partir da maneira que ele constrói seu conceito de secularização, o autor entende que sem ela esse não teria chegado a seu conceito de decisão. Daí a importância de inquirir a lei e a decisão, como se articulam e como são produzidas e empreendidas.

Com isso, passa a inquirir como a secularização constitui um dos alicerces fundamentais, para dar solidez à formação do Estado moderno, significado às suas instituições e bases às suas regulamentações. Por fim, demonstra como o conceito de secularização atua sobre o conceito de político.

Depois de efetuar tal análise, observa que “o sentido principal do conceito de secularização de Schmitt revela que a negação dos conflitos eleva o grau de contingência, aumentando o risco dos antagonismos”, pois a “omissão ou o encobrimento do conflito impede a sua restrição”, e o “reconhecimento da impossibilidade de se extinguir os antagonismos da vida humana abre a possibilidade para a sua contenção” (p. 291), ao se efetuar uma distinção clara entre amigo e inimigo. Além disso, o “conceito de secularização de Schmitt intenta recuperar as distinções nítidas alcançadas pelo Estado moderno europeu com a neutralização das guerras religiosas, a fim de postular o monopólio do político pelo Estado e evitar sua subordinação a categorias econômicas e princípios universalizantes”.

(p. 292). Por outro lado, após definir amigo e inimigo, e revelar o caráter inevitável dos antagonismos, o autor nos indica que secularizar, para Schmitt, “consiste em romper a generalidade e a regularidade de ordenamento de normas e expor a realidade concreta do sentido político do agir e decidir humanos”, tendo em vista que “não está mais em jogo o enfrentamento do poder espiritual de representantes da Igreja que buscam intervir na esfera secular de um domínio público, mas combater o encobrimento do político por parte do liberalismo e do positivismo”. (p. 295).

Portanto, ao descortinar os nexos e os significados do conceito de secularização na obra de Carl Schmitt, Castelo Branco, além de nos oferecer caminhos instigantes para rever a obra desse autor, a oportunidade de verificar que, apesar de aparecer de modo inacabado, a secularização constituía verdadeiramente um dos núcleos pelos quais Schmitt pensou a política, definiu a ideia de amigo e inimigo, como os antagonismos poderiam ser arrefecidos, mas não anulados completamente, e de que forma lei e decisão estavam articuladas em sua obra para perfazer a compreensão do conceito de político.

Referências

KERVÉGAN, J-F. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri: Manole, 2006. Recebido em 26 de abril de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems). E-mail: [email protected]

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Visões Políticas do Império: diplomatas belgas no Brasil (1834-1864) | Milton Carlos Costa

Concebido originalmente como trabalho de conclusão de curso em História pela Universidade Católica de Leuvan, na Bélgica, em 1979, a pesquisa do Prof. Milton Carlos Costa vem a público somente agora. O objetivo é reconstituir e analisar as visões políticas do Brasil imperial a partir dos escritos produzidos por representantes belgas que visitaram o país entre 1834, data da chegada do primeiro diplomata, Benjamin Mary, e 1864, momento marcado pela eclosão da Guerra do Paraguai. Para tanto, analisa um corpus documental constituído pelo Dossiê 1192 – Correspondência Política (1831-1870), reunido em cinco volumes, e pelos dossiês pessoais dos representantes belgas no Brasil, a saber, os diplomatas Benjamin Mary, Auguste Ponthoz, Joseph Lannoy, Eugene Desmaisières, Borchgrave d’Altena, Oscar Du Mesnil e Edouard Anspach, além dos cônsules Edouard Tiberghien e Edouard Pecher. Neste amplo trabalho de pesquisa realizado nos Archives du Ministère des Affaires Étrangères de Belgique, o autor percorre temas caros à historiografia brasileira.

Primeiramente, as relações da monarquia brasileira com outros países. A serviço da Bélgica, país industrializado e interessado em expandir seus mercados, os diplomatas e cônsules ocuparam grande parte dos seus escritos examinando-as. O Brasil pós 1822 aparece como integrado no sistema de dependência. Nas relações Brasil-Inglaterra, esses informantes elencaram dois focos de conflito, a Questão Christie e a repressão ao tráfico negreiro. Esta última seria uma tentativa de impedir o desenvolvimento agrícola brasileiro, interpretação que os aproxima da forma como essas problemáticas são tratadas historiograficamente. A análise revela, ainda, uma preocupação com a expansão estadunidense no continente americano, a percepção do imperialismo em gestação, e o sentimento de pavor representado pelo sistema republicano dos países do Prata. Notório, entretanto, é o fato de Costa identificar nessas correspondências um aspecto pouco conhecido das relações Brasil-França, que é a repressão francesa ao comércio de escravos.

Diretamente ligado a isto, um segundo tema de relevo é a questão escravocrata – e suas interfaces. Longe de um consenso, nota-se entre os informantes a existência de posições divergentes acerca deste ponto nevrálgico da sociedade brasileira. Para Tiberghien e Jaegher, a escravidão era uma necessidade indispensável, vital para o Império, ao passo que Lannoy enxergava aí um entrave à expansão capitalista. Assim, emerge a defesa da colonização por imigrantes e a rejeição à colonização assalariada enquanto solução para resolver a crise da agricultura cafeeira e açucareira que adviria do fim do tráfico negreiro. Esta defesa, no entanto, era um meio de servir aos interesses dos países industrializados europeus, como bem frisou Costa.

Adentramos, pois, à interpretação da realidade brasileira propriamente dita. O Brasil aparece como semicivilizado, principalmente nas regiões interioranas, cujo estado de organização parecia deixar a desejar, e para o que defendiam a necessidade de uma reforma institucional. A dificuldade de aplicação das leis é atribuída a influência da extensão territorial e o fato de que as diversas regiões do país viviam em “idades históricas” distintas, com desenvolvimentos desiguais. A economia era tida como rudimentar; a Câmara como verborrágica, indolente e ineficaz; e o Senado, conservador por excelência. Quanto aos partidos políticos, pelos quais demonstravam aversão, foram taxados como violentos, ressentidos e politicamente anêmicos, estando a organização do governo fadada ao revezamento entre conservadores e liberais.

Sob a ótica dos representantes belgas, havia uma clara contradição entre os princípios constitucionais, democráticos, e a realidade político-social brasileira, oligárquica. O “esquema das classes sociais no Brasil” aparece tripartido, hierarquizado em dominantes, dominados e ociosos. As massas, enquadradas nesse último grupo, são descritas como apáticas e ignorantes por razões intrínsecas ao formato da monarquia no Brasil. Singular em sua própria gênese, era antes um sistema passivo, um poder fraco e instável, que culminava na precariedade da vida cultural e do nível de civilização da massa da população, e seria, segundo Jaegher, a causa geral das rebeliões e revoluções do período regencial. De acordo com os informantes, esse problema estrutural teve ramificações profundas na constituição da sociedade brasileira – e aqui passamos a uma terceira questão que convém destacar na obra. Costa pontua a crença, por parte dos diplomatas e cônsules, da existência de um “caráter brasileiro”, constituído pela inconstância, espírito de trapaça, aversão aos estrangeiros, indolência e excessiva vaidade.

Em verdade, a defesa contundente da causa monárquica – e consequentemente dos interesses europeus – permeia o teor de todas as análises, principalmente acerca do que representaria um grande perigo à sua sobrevivência, como o sistema político de Rosas, as relações com os EUA, as conturbações das Regências, a dita “saúde frágil” de D. Pedro II e seu “despreparo” para a política. A lente conservadora e etnocêntrica com que enxergaram o universo brasileiro, conclui Costa, não impediu, porém, de registrarem a realidade do país de “maneira minuciosa, problemática e extremamente crítica” (p.187).

Em que pesem as três temáticas – relações internacionais, escravidão e identificação do “caráter brasileiro” –, inicialmente pode parecer que estamos diante de mais uma pesquisa que busca apreender a história do Brasil a partir de uma perspectiva europeia. E, com efeito, o material deixado por estrangeiros que visitaram o país no século XIX constitui, desde há muito, importante fonte para os estudiosos do Império brasileiro. Que o leitor não se engane, pois é justamente aí que reside o grande mérito da obra em questão. Ao elencar os relatórios enviados a Bruxelas pelos diplomatas e cônsules encarregados de compor um mapeamento das relações entre Brasil e Bélgica, o autor traz a lume um conjunto de estrangeiros se não totalmente desconhecidos da historiografia brasileira, ao menos pouco estudados.

No quadro de europeus que registraram suas impressões sobre o Brasil no Oitocentos, esses representantes belgas são marcados por uma singularidade. Em seus escritos, há pouca ênfase nas “riquezas naturais” brasileiras, muito embora a agricultura fosse vista como a base da prosperidade. Uma provável explicação para isso é o fato de que seus interesses eram fundamentalmente econômicos. O conhecimento científico do território não estava em seus horizontes. Importava antes analisar as possibilidades de expansão das relações comerciais à diversidade ecossistêmica do Brasil, tão exaltada pelos viajantes do século XIX. Em outras palavras, se para estrangeiros como Auguste de Saint-Hilaire, Georg Heinrich von Langsdorff, John Emmanuel Pohl e Carl Friedrich Philipp von Martius o Novo Mundo apresentava-se como um espaço para ampliação dos saberes da História Natural, ainda que voltada ao uso utilitário da natureza, para os diplomatas e cônsules era um mercado em potencial.

O contexto em que foi produzido também faz deste um trabalho pertinente. Escrito na década de 1970, em uma universidade europeia, insere-se num momento bastante significativo do ponto de vista da historiografia mundial. A terceira geração dos Annales, já em fins da década de 1960, ao advogar em favor de um maior contato da História com as variadas disciplinas das Ciências Sociais, abriu o campo de possibilidades, trazendo novas temáticas para o cotidiano do historiador e renovando o interesse pelas problemáticas do político e da política, as quais passaram a ser trabalhadas em uma outra perspectiva. O imaginário social, as representações, o comportamento coletivo, o inconsciente, as sensibilidades, entre outros, são, então, incorporados à investigação histórica sob a chave da Nova História Política, que entende o político como domínio privilegiado do todo social (RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.9-11).

A opção metodológica adotada por Costa é influenciada por este movimento. Por um lado, o reinteresse pela História das Mentalidades, que marca o período, faz-se presente na estruturação dos capítulos, nos quais é possível identificar a convergência dos dois caminhos propostos por Lucien Febvre para a compreensão do real, isto é, o individual e o social. À contextualização biográfica – incluindo os planos intelectuais, pessoais e profissionais – dos representantes belgas são somadas as relações pessoais mantidas com outros diplomatas, ministeriais e representantes de governo, e traços de caráter, como a franqueza de Mary, a sociabilidade de Jaegher, a firmeza de Lannoy, e a inteligência de Anspach. Por outro, o diálogo com a Antropologia histórica é perceptível na noção de alteridade. Ainda que o cônsul Pecher seja singular por ver o Brasil do ponto de vista do próprio país, o parâmetro de análise dos relatórios diplomáticos e consulares é europeu. Esses elementos, pessoais e coletivos, ajudam o autor a compreender melhor a percepção da realidade brasileira sob a ótica dos representantes belgas, muitas vezes de maneira comparativa.

Nesse sentido, Visões Políticas do Império dialoga com importantes trabalhos da historiografia brasileira. Caio Prado Jr, Nelson Werneck Sodré e Maria Odila Leite da Silva Dias são chamados quando da identificação das problemáticas comuns entre eles e as análises dos representantes belgas. E são tangenciados os estudos de Raymundo Faoro, cuja tese, “Os Donos do Poder”, sobre a sociedade patrimonialista, empresta nome a um dos subcapítulos, e de Ilmar Rohloff de Mattos acerca da formação do Estado nacional e dos partidos políticos brasileiros. O leitor tem em mãos, portanto, um sólido trabalho de pesquisa documental, metodologicamente embasado e historiograficamente relevante aos estudiosos do Império brasileiro.

Fabíula Sevilha de Souza – Mestranda no Departamento de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCL/UNESP – Assis/Brasil). E-mail: [email protected]


COSTA, Milton Carlos. Visões Políticas do Império: diplomatas belgas no Brasil (1834-1864). São Paulo: Annablume, 2011. Resenha de: SOUZA, Fabíula Sevilha de. Política, Economia e Sociedade: o Império Brasileiro sob a perspectiva belga. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 149-151, jan./jun., 2012.

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Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano | Javier Fernández Sebastián

Não seria exagerado dizer que o Diccionario político y social del mundo ibero-americano, dirigido por Javier Fernández Sebastián, constitui-se em uma das iniciativas de trabalho coletivo mais ousadas e meritórias das últimas décadas no campo da história do mundo ibérico e americano entre os séculos XVIII e XIX. Diante da atual profusão de incentivos à produção histórica sobre o período, alavancada pelas comemorações dos bicentenários das Independências na América e do translado da Família Real portuguesa para o Rio de Janeiro, o presente volume pode ser considerado um dos seus mais sólidos produtos. Primeiramente, por reunir pesquisadores de vários países, do Novo e do Velho Mundo, no projeto internacional El mundo atlántico como laboratorio conceptual (1750-1850) – ainda em andamento, e do qual este é um primeiro volume de resultados –, apostando na elaboração coletiva da reflexão histórica, infelizmente ainda pouco comum na nossa área de maneira geral. Mas a maior prova da importância e pertinência do projeto está, sem dúvida, na sua atual capacidade de gerar novas e pulsantes demandas historiográficas. O que significa dizer que hoje, quando se fala em história dos conceitos, é impossível não se remeter ao volume.

A problemática geral do volume – discutida por Fernandez Sebastián na preciosa introdução à obra – parte da teoria de Reinhart Koselleck que, de forma fecunda, consolidou caminhos de análise da profunda mutação no universo léxico-semântico verificada no período anunciado, a qual evidenciava grandes transformações políticas, institucionais e mentais em curso no mundo ocidental. A síntese desse processo está na sua concepção de nascimento da “modernidade”, caracterizada fundamentalmente pela percepção, entre os coevos, de uma ruptura temporal em relação ao passado e abertura de possibilidade de futuro como um tempo marcado por instabilidade e incerteza. Sua base era a crise de legitimidade das antigas monarquias, e mesmo da História como campo capaz de ensinar pelas experiências do passado, ou seja, como “mestra da vida”.

Se tal “terremoto conceitual” foi amplamente analisado para a Alemanha (e parte da Europa meridional e América do Norte) no magistral dicionário histórico de léxicos políticos e sociais do qual o próprio Koselleck foi um dos organizadores – o Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, publicado na década de 1980 em nove volumes – , sua análise global para o mundo ibero-americano era uma tarefa de fôlego ainda a ser feita. Nesse sentido, a presente obra tanto demonstra a vitalidade das assertivas koselleckianas para se pensar transformações estruturais em curso na Espanha, em Portugal e em seus antigos domínios, como enfatiza sua unidade no mundo occidental, numa perspectiva de interconexões. Nas próprias palavras de Fernández Sebastián, um dos objetivos da obra é:

ensayar uma verdadeira historia atlântica de los conceptos políticos. Una historia que tome em cuenta el utilaje conceptual de los agentes – individuales y colectivos – para lograr así una mejor comprensión de sus motivaciones y del sentido de su acción política (p.25).

Dimensão atlântica que, cada vez mais valorizada pela historiografia nos últimos tempos, tem como grande mérito romper com as fronteiras estabelecidas pelas historiografias nacionalistas desde o século XIX, em especial daninhas para análise do período em que as definições e soluções dos novos Estados fizeram parte de um processo de luta política em curso. O que para o caso brasileiro é ainda pior, haja vista que a construção do discurso da sua excepcionalidade, de um “Império entre repúblicas”, remonta ao próprio Oitocentos e continua a ser uma fonte de retroalimentação de desavisadas análises, a despeito de sua desconstrução crítica por parte de recentes trabalhos historiográficos. Um dos possíveis perigos das abordagens que privilegiam a história atlântica, o de se não respeitar os problemas específicos dos processos que se pretende ver em sintonia, é rechaçado pelo Diccionario, pois que a análise de cada contexto político permite o estabelecimento, bem como a problematização, da relação entre o geral e o particular. Ainda assim, é fato que partir da concepção de uma unidade atlântica pode encerrar outros questionamentos, como veremos adiante.

A escolha dos conceitos aqui tratados partiu de algumas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, do esforço em abandonar definições excessivamente normativas que, concebidas posteriormente, ainda impregnam de um ideal valorativo muitas das palavras aqui analisadas. Daí a ênfase na discussão dos seus significados coevos, bem como dos usos que os homens fizeram delas, ambos tensionados pela profunda reviravolta que se viveu no mundo ibérico, sobretudo, após os anos de 1807-1808. Entendendo que discurso e prática políticos são indissociáveis, poder-se-ia falar em uma verdadeira “guerra” de palavras como uma das dimensões da própria política, cuja esfera ampliava-se significativamente nas décadas aqui tratadas.

Nesse sentido, os termos selecionados justificam-se por terem sido fundamentais no vocabulário político da época, ou seja: sem cada um deles, toda a arquitetura argumentativa encontrar-se-ia comprometida. No entanto, a despeito de se considerar que os coevos se serviram de novas linguagens, sabedores de que as antigas apenas parcialmente lhes serviriam na busca de soluções à crise que se desvendava diante de seus olhos, a obra não se propõe a entender os conceitos como parte de um conjunto coerente, canônico e articulado de significados, aos moldes das proposições consagradas por John Pocock e Quentin Skinner. Ao contrário, é exatamente a fluidez e polissemia dos termos, sua apropriação por vozes e protagonistas de projetos políticos dissonantes, que são tidas como pontos de partida centrais para sua análise. Referenda-se assim, a não menos sugestiva definição koselleckiana do que são conceitos: palavras que unificam em si diversos significados, ao mesmo tempo “concentrados de experiência histórica” e dispositivos de antecipação de soluções futuras. A essa amplitude semântica soma-se um nível de generalização/abstração dos mesmos termos que, servindo a uma grande variedade de usos e interpretações, tendem a uma forte ideologização.

À luz de tais definições, dez foram os conjuntos de conceitos considerados fundamentais e prioritários na composição do volume: América/ americanos, cidadão/vecino, constituição, federação/federal/federalismo, liberal/liberalismo, nação, opinião pública, povo/povos e república/ republicanismo. A cada um deles foi dedicado um capítulo que contém uma síntese transversal e comparativa das transformações ocorridas nos termos para o mundo ibero-americano, além de nove textos de referência, um para cada espaço geográfico ou país previamente selecionado. Estes últimos, longos verbetes, foram na sua grande maioria elaborados por especialistas na história das Independências e serviram de base para elaboração das sínteses. O que, de fato, se pode chamar de um investimento de pesquisa coletivo.

Foram elaborados verbetes para: Argentina (Rio da Prata), Brasil, Chile, Colômbia (Nova Granada), Espanha, México (Nova Espanha), Peru, Portugal e Venezuela. Ou seja, a área contemplada é extensíssima, o que mais que justifica a enorme abrangência do Diccionario. A edição traz também um apêndice cronológico para cada um desses espaços, o que muito ajuda o leitor em função da profusão com que os acontecimentos políticos espelham o turbilhão de alternativas e soluções então colocadas em prática. Mas não há como negar que a ausência da América central (incluindo Cuba), banda oriental, Alto Peru (Bolívia) e Paraguai pode ser lamentada. O que, sem dúvida, tem mais relação com o estado da arte das pesquisas e volume de desenvolvimento das historiografias de cada um dos países, do que com a concepção de história que informa o presente volume. O mesmo pode-se dizer sobre o fato das análises se centrarem nos centros urbanos, tratando muito mais do universo dos crioulos do que de grupos indígenas e de africanos e seus descendentes, cuja inserção no processo político foi inegável ainda que seus discursos e práticas tenham sido menos analisados, e que suas trajetórias sejam mais difíceis de reconstruir historicamente.

A despeito do Diccionario seguir a periodização da “modernidade” proposta por Koselleck (1750-1850), há aqui o cuidado em se marcar que ela se trata apenas de uma referência geral. É notável como para o mundo ibero-americano, a maior ruptura política ocorrerá a partir dos anos de 1807 e 1808, como desdobramento dos acontecimentos que impedirão o monarca tradicional de governar na Espanha, e farão com que a Família Real portuguesa tome a direção de seus domínios americanos. O que pode ser claramente visto nas análises de cidadão, constituição, federalismo, nação, opinião pública e povo. Também fica evidente que muitos dos conceitos tendem a uma maior radicalização na década de 1810, e serão dotados de maior moderação a partir das seguintes que, não à toa, coincidem com a maioria das tentativas de consolidação dos novos Estados independentes na América.

Análises bastante profícuas dos conceitos levam em conta os termos/ideias correlatos a ela. É o que se pode ver claramente no texto sobre federação/federal/federalismo, cuja síntese transversal é de autoria de Carole Leal Curiel. A princípio, esses termos aparecem nos discursos coevos somente após 1810, mas a opção feita também pelo rastreamento da dupla conceitual de confederação/federação, bem como da problematização em relação à questão da (des)centralização que existe desde fins do século XVIII nos Impérios ibéricos, mostra-se muito profícua para no seu desvendamento. Nesse sentido, ainda que tais conceitos tenham sido ainda mais prioritários para as repúblicas ibero-americanas, os problemas que eles evocam tiveram importância central também nos debates que permearam as trajetórias das monarquias brasileira, portuguesa e espanhola.

De todos os termos, marca-se uma possível especificidade para América/americanos, cuja análise abre o volume. Como bem questiona João Feres Júnior em seu artigo transversal, em termos teóricos, ambos poderiam ser considerados “contraconceitos”: primeiro, pelo fato do seu uso ter sido valorizado em oposição às antigas metrópoles, ganhando muita força nos anos de consecução das Independências; além disso, haja vista sua decadência em termos políticos, sobretudo a partir da década de 1830, com a consolidação nacional dos novos Estados (quando todos os outros termos demonstram terem se transformado em essenciais para o debate político). No entanto, é pena que a análise não tenha valorizado a dimensão identitária contida no termo “americano”, a qual dialoga com vários dos vocábulos que passaram a definir os vínculos de pertencimento dos indivíduos e sua relação com os projetos políticos em disputa em cada um dos espaços geográficos aqui analisados. Assim já o demonstraram, de maneira profícua, os trabalhos de José Carlos Chiaramonte para o caso das tensões entre os termos “rioplatense”, “hispanoamericano” e outros termos provinciais (questões devidamente incorporadas por Nora Souto no verbete do Diccionario dedicado à Argentina), bem como os de István Jancsó que tratam de sua importância para se entender as rupturas presentes no processo de construção nacional no Brasil. Nessa chave, trata-se de lugar comum a afirmação de que a América portuguesa teria mantido sua unidade após a Independência, ao contrário da espanhola (Feres, p.64); as clivagens identitárias permitiriam se entender como “pernambucanos”, “baianos”, “maranhenses”, etc., que poderiam ser mais ou menos associados com “americanos”, além de revelarem as disputas políticas endêmicas à unidade nacional do Brasil. Raciocínio, em linhas gerais, válido também para toda a América espanhola.

O universo das tensões entre ibero-americanos e peninsulares logo fica explícito nas pujantes análises dos vocábulos constituição e nação. Na primeira, o texto transversal de autoria de José Portillo Valdés, evidencia com acuidade como a utilização do conceito é chave para entendê-las. Assim o faz analisando como, desde meados do século XVIII, predominava na Espanha, e igualmente em Portugal (conforme os verbetes do próprio Portillo e de Nuno Gonçalo Monteiro, respectivamente), uma percepção da necessidade de reformas para se corrigir o desajuste político e econômico de ambos os Estados no âmbito europeu. A economia política seria vista como um desses instrumentos, e o apego à constituição um “antídoto” para se evitar os posteriores acontecimentos revolucionários. Desde então, a percepção da desigualdade entre espanhóis e portugueses de distintos hemisférios é fortemente sentida; mas revelar-se-á especialmente contundente diante da necessidade de se pensar um arranjo constitucional comum após a instalação das Cortes de Cádis, em 1810, e das de Lisboa, em 1820 – já que constituição passava, cada vez mais, a ser sinônimo de projeção de novos governos. Nas décadas seguintes, seu sentido de disciplina social, com o intuito de tornar o Estado presente, acabaria por se sobrepujar ao anterior, evidenciando o sentido de moderação que o uso do termo viria a adquirir.

Na análise do vocábulo nação a percepção dos conflitos em torno dos projetos políticos em disputa são ainda mais evidentes. Conforme salientado na síntese de Fábio Wasserman, desde meados do século XVIII é possível delinear um sentimento dúbio, vivido de forma distinta em ambos hemisférios e expresso pela tensão no uso dos termos nação e coroa: se na Península os letrados deixavam evidente existirem diferenças entre o reino e suas conquistas, na América tal sentimento seria vivido com certo desconforto, e alimentaria iniciativas de defesa das especificidades locais, de “patriotismo crioulo” (p. 856-7). Com a ressignificação do conceito a partir de 1808, e a difusão de uma concepção unitária de nação, associada à soberania e à definição de novos pactos políticos, os embates no seu uso passam a ser imprescindíveis na definição das alternativas políticas. De forma bastante precisa, a América portuguesa (analisada no verbete de autoria de Marco Antonio Pamplona) não é aqui tratada como exceção em função da associação entre monarquia e nação que, mais do que continuidade, aquela pôde ser aqui lida como uma recriação. À exemplo do que ocorre com constituição, mesmo antes da década de 1830 já era possível observar-se em nação a perda do sentido de soberania popular, e uma ênfase na sua associação com um esforço de institucionalização e consolidação do poder.

Movimento semelhante ocorre com os termos cidadão/vecino. O primeiro sofre profunda politização a partir dos acontecimentos de 1808, ainda que o ritmo das mudanças tenha sido muito mais rápido na América do que na Península, conforme analisado por Cristóbal Aljovín de Losada (p.183). Na primeira, é digno de nota como o desafio da cidadania enquanto paradigma universal de direitos e de igualdade perante a lei possui uma série de questões que passam por clivagens raciais, em toda parte presentes. Mas o conceito traz em si mesmo ambiguidades, sendo uma delas a incorporação de diferenças pautadas pelas desigualdades entre direitos civis e políticos durante praticamente todo o século XIX – pouco analisadas por Losada, mas já profundamente discutidas, para o caso francês, por Pierre Rosanvallon em mais de uma de suas obras. Desse modo, não nos admira que tenha sido possível a definição de quem eram os cidadãos mesmo em um Império escravista como o Brasil. Obviamente que suas contradições, pensadas no âmbito da modernidade, continuariam a ser evidentes.

A análise dos termos povo/povos e opinião pública nos remete diretamente a clivagens na construção dos projetos políticos. É notável a duração mais curta na utilização do termo povos, sua maior abrangência na América espanhola logo após os desdobramentos das Cortes de Cádis, e sua associação com projetos de autonomia local e corte federal. A predominância do vocábulo no singular, no entanto, passa a ser efetiva nas décadas seguintes, conforme salienta Fátima Sá e Melo Ferreira na síntese transversal. Nesse sentido, opinião pública, expressão que ganha imensa expressão após a crise de 1808 (na América portuguesa, sobretudo, após 1820), é inicialmente utilizada para se defender os direitos dos mesmos povos. Mas veja-se como já nos anos 1820 ela é predominantemente evocada como “rainha do mundo”, fonte de legitimidade para defesa de posicionamentos políticos diversos. Nas décadas seguintes, no entanto, sua utilização também traz uma desconfiança ou perda de entusiasmo em relação à sua força inicial transformadora, com o termo associando-se igualmente a visões pejorativas.

É o texto transversal de autoria de Noemi Goldman que insere a opinião pública numa perspectiva altamente instigante. Partindo das análises de Elías Palti, a autora a insere no universo intelectual da época, discutindo como a defesa de unanimidade, representada de forma paradigmática pela evocação de “uma verdadeira opinião”, não era estranha aos coevos no século XIX (p.988). Ao contrário, ela está inserida num verdadeiro afã pela criação de assertivas e verdades objetivas que pudessem guiar a construção do futuro; ao menos, assim se imaginava possível, obviamente. Isso nos faz pensar no enquadramento geral de praticamente todos os conceitos aqui analisados, cuja polissemia só viria a comprovar a importância dos embates em torno dos significados por eles expressos.

O sentido de projeção de futuro que o uso das palavras coloca a nu nesse momento é especialmente desvelado na análise do termo liberalismo. É possível que seja esse o conceito que mais carrega o peso de uma tradição histórica normativa que impede, muitas vezes, a apreensão de seus significados específicos e coevos. Por essas razões, a síntese transversal assinada por Javier Fernández Sebastián salienta elementos especialmente significativos para sua compreensão: de como o termo contemplava, no momento em que ganha evidente sentido político (a partir de 1808), um respeito à tradição monárquica, e não sua completa negação; mas, ao mesmo tempo, serviria à afirmação de um governo representativo que pretendia a “regeneração” da Península e a construção de novos Estados na América. É notável que o ideal de “triunfo da civilização” e a crença no progresso que o mesmo termo viria a contemplar, fossem alvo, especialmente a partir da década de 1830, de clivagens marcadas pelas novas filosofias da história, com a ascensão de projetos que falassem em nome de uma maior moderação. Sem dúvida é essa uma chave para compreensão dos próprios “partidos” que, muitas vezes equivocamente, são por toda parte classificados como “liberais” e “conservadores” em função de imputações anacrônicas. Sua relevância para observarmos, por exemplo, a eclosão do chamado “Regresso conservador” brasileiro num universo mais amplo da Ibero-américa é evidente (perspectiva de análise para a qual desconhecemos quaisquer outros estudos para além das conexões aqui estabelecidos a partir do verbete de autoria de Christian Lynch).

Isso nos remete à questão das comparações, e do quanto elas podem ser válidas na perspectiva adotada pelo Diccionario. É igualmente Fernandez Sebastián que, na introdução, destaca a importância dos estudos comparados para se romper com uma historiografia nacional, tanto por meio da observação de um substrato comum na cultura política no mundo ibérico e americano, como pelas diferenças contextuais que explicariam diversidades de usos e de significados dos conceitos (p.31). No entanto, o mesmo autor é consciente de riscos dessas aproximações: por exemplo, o de valorizar os principais traços de cada país concebendo-os como distintos e específicos em relação a outros e, dessa forma, reforçar bases de historiografias nacionais (p.41, nota 14). É verdade que essa tendência aparece em alguns textos da obra, mesmo em algumas das sínteses transversais que foram pensadas justamente como uma forma de evitá-la; mas o resultado geral, construído sob o desafio de uma história comum, compensa amplamente sua ocorrência.

Diante disso, vale retornar ao tema da unidade atlântica. Ao defender um único processo revolucionário, global, a obra se volta contra uma definição apriorística de centro e periferias como categorias prévias para entender clivagens entre os espaços ibérico e americano. No entanto, sagazmente também se faz a ressalva de que tais ideias podem ser adequadas ao propósito da obra, ao menos quando elas se converterem em parte do próprio imaginário dos atores estudados, das representações mentais que constituem o presente objeto de estudo (Fernandez Sebastián, p.697). Em função disso, pode ser aparentemente banal a crítica ao tratamento homogêneo demais que aqui se dá a uma imensidade espacial, marcada por complexas e desiguais relações nos mais de 300 anos de colonização da América. Só nos arriscamos a seguir avante nessa ponderação, diante dos vários indícios que o pujante Diccionario nos oferece quanto aos diversos sentidos de modernidade no Novo e no Velho Mundo.

As análises dos termos história e república, especialmente, nos conduzem a tais questionamentos. Quanto ao primeiro, Guillermo Zermeño Padilha, autor da vigorosa síntese transversal, parte da premissa de que o termo é, em si mesmo, um conceito de temporalidade, e nos apresenta uma irretocável discussão historiográfica sobre sua relação com a construção da modernidade como uma ruptura temporal. Ao analisar os usos do vocábulo, arrisca marcar uma diferença estrutural na emergência de seus significados entre a Europa e a Ibero-américa. Na primeira, eles se articulariam a um processo de reflexão interna dos letrados, autorreferente em relação ao seu passado e consequentemente ao seu futuro – é notável como nos verbetes sobre Espanha e Portugal, de autoria de Pedro José Chacón Delgado e de Sérgio Campos Matos, respectivamente, as independências da América não parecem exercer nenhuma influência na ressignificação do conceito. No Novo Mundo, no entanto, o uso da palavra não resulta de algo imanente, e seu futuro se apresentaria, nas palavras do próprio Zermeño, “como um cheque em branco ao portador” (p.576). Seguindo sua cautelosa análise, seria mesmo excessivo afirmar que na Ibero-américa não teria existido um campo de “espaço de experiência” aos moldes koselleckianos; mas a tarefa de edificação dos novos Estados nacionais, aliada à negação/incorporação do passado colonial, teve, evidentemente, impasses particulares. O que serve para explicar a sensação de desconforto no esforço de construção de histórias locais americanas, desde meados do XVIII, e mesmo na emergência de crítica à condição colonial que, no mesmo período, extrapolavam a ela.

O termo república igualmente explicita grande parte dos desafios impostos aos coevos quanto à construção do futuro. Conforme analisado por Georges Lomné a partir dos verbetes específicos, é um equívoco associar seu uso apenas a uma forma de governo, conforme praticaria a historiografia posteriormente e que, no caso do Brasil, persistiria em vê-lo apenas como uma completa exceção. O que significa dizer que, nem mesmo onde acabariam por vigorar sistemas republicanos, o sentido do termo não se impõe necessariamente desde sempre – veja-se como no caso da Ata Constitutiva dos “Estados Unidos Mexicanos”, em 1824, o termo usado é “federação” e não “república” (conforme demostra Alfredo Ávila p.1339). Em, Portugal, de outro modo e na mesma época, se podia falar da “monarquia como a melhor das repúblicas” (Rui Ramos, p.1361). A matização do modelo norte americano como base para o significado do termo vem associada à exploração de sua associação aos sistemas representativos opostos à democracia, com a defesa da importância que a invenção republicana ibero-americana teve na sua ressignificação em todo mundo ocidental. Talvez por isso, Lomné não enfatize suas representações vinculadas às leituras e imagens da antiguidade, conforme destacam Gabriel Di Meglio (p.1272) e Alfredo Ávila (p.1333), para os casos da Argentina e do México, respectivamente.

A chave da projeção republicana como utopia de futuro é uma das mais contundentes para que se revalorize as clivagens estruturais entre esses mundos unidos pelo Atlântico. Vale dizer que várias das análises dos conceitos aqui apresentadas apontam para evidentes diferenças na sua utilização nos distintos hemisférios, conforme já indicado por nós. No entanto, república carrega para os americanos uma questão de fundo, que se generaliza amplamente em meados do século XIX: o da sua incompletude. Era dessa forma que Juan Batista Alberdi, em 1852, e uma vez derrotado Juan Manuel Rosas na Argentina, sustentava que:

la república deja de ser una verdade de hecho em la America del Sur, porque el Pueblo no está preparado para regirse por esse sistema (Apud Di Meglio, p.1278) Ou seja, para além da dimensão utópica comum à modernidade ocidental, faz-se presente um sentido de travamento em sua efetivação, por condições objetivas que, de uma forma ou de outra, remontam à história da América, dos seus homens e da sua sociedade. Não é de se espantar que mesmo o “progresso” pudesse aparecer, por vezes, como “decadência” (Zermeño, p.568), ao lado da sempiterna esperança de se alcançar os melhores frutos da civilização. Noção não apenas dos coevos, mas que engendrou raízes na modernidade pelas nossas bandas do mundo. Questão que, como outras, a magnitude do presente Diccionario nos permite pensar.

Andréa Slemian – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: [email protected]


SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano. Madrid: Ministerio de Cultura, 2009. Resenha de: SLEMIAN, Andréa. Unidade e diversidade das experiências políticas no mundo iberoamericano: Iberconceptos, 1750-1850. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 160-167, jan./jun., 2012.

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Oeuvres complètes tome I – Écrits philosophiques et politiques 1926-1939 – CANGUILHEM (Ph)

CANGUILHEM, Georges. Oeuvres complètes tome I – Écrits philosophiques et politiques 1926-1939. Paris: Vrin, 2011. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Philósophos, Goiânia, v.17, n. 1, p.237-248 jan./jun., 2012.

Com o subtítulo “Escritos filosóficos e políticos – 1926- 1939”, acaba de ser publicado, sob a direção de dois reconhecidos especialistas (Jean-François Braunstein e Yves Schwartz), o primeiro volume das obras completas de Georges Canguilhem. Estamos, de fato, diante de escritos filosóficos e políticos, como anuncia o título deste volume, mas também estamos diante, seguindo uma classificação costumeira que encontra bem seu emprego aqui, dos escritos de juventude de Canguilhem, cuja obra, a parte Le normal et le pathologique (1966) e, talvez, La connaissance de la vie (1965) e os Etudes d’histoire et philosophie des sciences (1968), ainda é bem pouco conhecida1. Os textos deste período, aos quais agora passamos a ter acesso, nos mostram um Canguilhem anterior ao Canguilhem cujas ideias, a pesar da discrição, não cessam de repercutir e de se renovar entre pensadores e estudiosos mundo a fora; um Canguilhem de antes do Canguilhem (Canguilhem avant Canguilhem), como diz o feliz título do artigo em que Jean-François Braunstein afirma com razão: “Está claro que não se trata aqui de trabalhos de epistemologia, nem mesmo de história das ciências em sentido corrente, mas alguns dos primeiros combates de Georges Canguilhem orientarão a visada epistemológica das obras ulteriores” (BRAUNSTEIN 2000, 11).

A obra é composta basicamente de artigos filosóficos, resenhas, conferências e alguns textos polêmicos publicados em diferentes jornais e revistas, mas, principalmente, no Libre propos, o jornal de Alain, cujo pacifismo antimilitarista, determinado fundamentalmente pelas atrocidades da Primeira Guerra Mundial, marcou profundamente o pensamento de Canguilhem, sobretudo, em sua primeira juventude; e na revista Europe, da qual foi um dos fundadores.

Além destes textos mais curtos, vale mencionar três trabalhos particularmente significativos, até então quase, se não totalmente desconhecidos: a brochura Le fascisme et les paysans, o Traité de logique et de morale e a tradução da tese da tese latina de Émile Boutroux, Des vérités éternélles chez Descartes. Como destaca J.-Fr. Braunstein no artigo citado há pouco, antes da edição de sua tese de medicina, Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, em 1943, Canguilhem já havia, portanto, publicado muito, até mesmo um livro, e este primeiro volume de suas Obras Completas permite, com efeito, “retificar a imagem corrente que faz de Canguilhem um puro historiador das ciências ou um simples continuador da obra de Gaston Bachelard” (BRAUNSTEIN 2000, 10).

Escritos filosóficos e políticos: o período que completa o título deste primeiro volume, “1926-1939”, não é trivial; não é um mero recorte didático. O texto que abre o livro é uma resposta do então jovem estudante da Escola Normal Superior, à questão proposta pela seção “La chronique internationale” da Revue de Genève, mesma questão à qual já haviam respondido Raymond Aron e Daniel Lagache, sobre “o que pensa a juventude universitária francesa”. Neste artigo já se podem identificar certos traços da personalidade de Canguilhem, sempre lembrada por seus comentadores, como o estilo provocador, incisivo e de uma petulância “rústica” e mordaz, o que, diríamos nós, o filósofo fez questão de cultivar como demonstração de sua forte ligação com suas origens campesinas. O modo como assina este artigo costuma ser mencionado sempre como exemplo disso: “Georges Canguilhem, languedociano, aluno da Escola Normal Superior onde se prepara para o concurso de agregação de filosofia.

No tempo que sobra, no labor do campo” (p. 152).2Este traço, que também evidencia a influência de Alain, se refletirá mais tarde na brochura de 1935, Le fascisme et les paysans, publicada clandestinamente pelo CVIA (Comité de vigilance des intellectuels antifascistes), na qual analisa a questão agrária na França frente ao desenvolvimento dos regimes fascistas que, na Itália e na Alemanha, buscavam valerse da crise agrária que, devido a suas especificidades, na década de 1930 atingiu particularmente os produtores rurais franceses, forjando uma ideologia de retomada de valores – diríamos nós: campestres – usurpados pelo rápido desenvolvimento das técnicas de agricultura e pelos grandes produtores, a fim de atrair essa força importante e, a esta altura, bastante organizada. Percebe-se, então, que neste momento, 1935, Canguilhem já enxergava os traços particulares do fascismo que é o que determinará sua ruptura com as posições pacifistas. Mas foi sob a influência de Silvio Trentin que Canguilhem pode perceber o quanto o cenário político internacional repudiava que se continuasse professando “A paz sem reservas” (este é o título do artigo que Canguilhem publica em 1932 tomando posição na polêmica entre Félicien Challaye e Théodor Ruyssen a propósito da questão do “pacifismo integral”), pois estava em curso um fenômeno que não tinha paralelo, nem com os acontecimentos da Primeira Guerra, nem com nenhum outro acontecimento anterior. A seguinte passagem deste artigo permite perceber, ao mesmo tempo, o teor do pacifismo que Canguilhem ainda professava em 1932, e a necessidade de uma ruptura total com ele, ruptura esta determinada pelos acontecimentos, ou melhor, pelos fatos:

Ora, a guerra, que cada vez mais se tornou um extermínio radical de tudo o que é jovem e generoso e, por isso, capaz de criação, – se for verdade que a criação é a mesma coisa que o porvir –, suprime aquilo pelo que a vida do homem ganha uma significação. […] Para que seja dado algum valor à vida e à justiça, é preciso que primeiro a vida seja. E para que eu possa mudar esse mundo, eu quero primeiramente – o que não quer dizer nem unicamente nem principalmente – viver nele. Sem dúvida, a morte é sempre possível. E a morte, pois que vem aniquilar o esforço do dever, é o mal absoluto. Mas esta morte que nos chega sempre do fundo de um acidente que vai de par com o de nossa existência, este próprio acidente abranda para nós o gosto amargo que ela tem. O que é horrível, não é a morte pelas coisas e pelo mecanismo, é a morte dada por um homem. O que é horrível, não é a morte, é a matança. Ora, a guerra é o assassinato e a morte preparados, paramentados, honrados. É a consciência tornada instrumento de sua negação, o aniquilamento de consciências por suas decisões recíprocas. Eis por que, como Challaye, eu digo: a guerra é o mal absoluto, sendo a morte tomada pela vontade como a saída a ser buscada e não como acidente possível. (p. 404)

O mal absoluto e a morte degradante, o esfarrapamento de toda humanidade pelo absurdo de uma vontade doentia, enfim, a aniquilação de toda possibilidade de criação da novidade, como se vê, na verdade, ainda estava por vir. E é a Trentin, em Toulouse, que Canguilhem deve a tomada de consciência que o levou romper com o pacifismo, poupando- o de seguir a deriva de outros que, fiéis à distinção defendida por Alain entre política interna e política externa, acreditavam, por exemplo, poder negociar com a Alemanha hitlerista.

Durante este período, e face a estes acontecimentos [afirma Canguilhem numa entrevista de 1991], muitas atitudes e convicções políticas que convinha chamar ‘de esquerda’ deram ensejo a confusões, a amálgamas, a mal-entendidos cuja interpretação e apreciação ainda alimentam querelas ideológicas. Viram-se socialistas tomarem distância em relação ao antifascismo. Viram-se pacifistas compreensivos com o hitlerismo. Viram-se intelectuais marxistas aprovarem o pacto germano-soviético. No entanto, aqueles que tiveram a sorte – e eu acrescentaria: a honra – de ouvir Trentin em suas analises, de seguilo em suas iniciativas, por vezes de acompanha-lo em suas investidas, devem agradecê-lo por terem podido, graças a ele, evitar as armadilhas de que comumente são vítimas os de boa vontade sem experiência política crítica.3

A partir de daí, é a volta ao concreto, à experiência concreta, o que se dá pela resistência e pela medicina. Neste sentido é que devemos reconhecer que, apesar da dificuldade em determinar quando ocorre efetivamente esta transição, o ano de 1939, com o Traité de logique et de morale, escrito em parceria com Camille Planet, marca, com ressalta Xavier Roth em sua Introdução ao texto, o fim do período de juventude, pois representa um ponto de inflexão no itinerário filosófico de Canguilhem “que testemunha menos uma doutrina definitivamente estabilizada, que uma filosofia do julgamento se orientando paulatinamente para um encontro decisivo – o encontro com a vida – que fornecerá a esta filosofia em devir, a um só tempo, uma base e uma ocasião de deslocamento” (p. 615). Neste sentido é que, ao final do Tratado, temos a constatação de que “para construir relações internacionais outras que as que existiram até o momento, é necessário primeiro determinar as condições do conflito. A ideia de Paz de nada serve a esta determinação”.

E logo em seguida:

Em resumo, dada a aspiração humana a uma sociedade verdadeiramente pacífica, dado o fato das soberanias nacionais e dos imperialismos concorrentes, recusando antecipadamente toda limitação do direito às suas pretensões e a sua autonomia, como subordinar o fato à aspiração? Haveremos de convir que os meios ficam por serem definidos e que, nestas circunstâncias, os fatos pesam mais que a aspiração. O realismo condicional é, neste caso, mais urgente que nunca (p. 921).

Este realismo condicional é o que determina a escolha, que é um aspecto decisivo desta “filosofia axiológica” para a qual, como afirmam os autores do Tratado de lógica de moral, o Valor prima em relação ao Ser (Cf. p. 793).

O período de juventude, portanto, entre os anos de 1926 e 1939, é um período marcado pela reflexão filosófica e política e, ao mesmo tempo, é um período de formação que resultará nos trabalhos mais conhecidos do filósofo, sobretudo, naturalmente, a tese Ensaio sobre alguns problemas concernentes ao normal e ao patológico, republicada mais tarde com o título reduzido, O normal e o patológico, acrescido de “novas reflexões” sobre o tema. Neste período está manifesto o grande interesse de Canguilhem, por exemplo, pela filosofia de Kant e, sobretudo, Descartes (além da tradução da tese de E. Boutroux, são deste período os dois importantes artigos “Descartes et la technique” e “Activité technique et création”). Como afirma Braunstein, alguns combates deste período de juventude continuarão, de fato, a orientar o pensamento maduro de Canguilhem, e não apenas as posições filosóficas defendidas no Tratado de 1939.

Neste sentido, destacaria a resenha do livro de Alain, Onze chapitres sur Platon, intitulada “O sorriso de Platão”, que, em 1929, Canguilhem publica na revista Europe. Este artigo, como outros reunidos neste volume, mereceria um estudo completo. Para o que nos interessa destacar aqui, no entanto, bastará a seguinte passagem:

Platão, tendo feito da metafísica o tecido das coisas positivas, levou, sem dúvida e de um só golpe, a irreligião ao seu estágio máximo, recusando- se desatar o drama humano através de um Deus que surgisse da transcendência como se de um céu de teatro. O deus ex machina da comédia antiga é um símbolo tão profundo quanto se queira e sem qualquer erro, pois falar de transcendência é falar do espírito em termos de carne e num lugar. Mas em Platão, e talvez apenas nele, nenhuma comédia. Compreendemos nós este sorriso e que não estamos, de modo algum, diante do espetáculo de nossa vida? A metafísica nas coisas positivas, eis novamente Platão”. (p. 236)

Para Platão, assim como para Canguilhem, o idealismo é um racionalismo; idealismo altamente irreligioso, na medida em que, nele, os dramas humanos se desatam numa busca do espiritual nas coisas, no mundo da vida, se for possível dar um sentido não fenomenológico a este termo.

Para Canguilhem, assim como para Platão e para Spinoza, o racionalismo deve ser, portanto, engajado; contra o deus ex maquina que acorre quando o drama da existência é transformado em espetáculo, o Deus sive natura insere e a metafísica nas coisas positivas e obriga o pensamento a “falar de espírito em termos de carne e de lugar”. Esse racionalismo, que será mais elaborado mais tarde através dos estudos de filosofia das ciências e que se recrudescerá pela influência cada vez mais marcante de Gaston Bachelard, enfim, este idealismo em sentido altamente platônico, caminha lado a lado com aquele “realismo condicional” de que nos fala o Tratado de 1939. E não é precisamente isso que se reflete na conhecida passagem da Introdução a Le normal et le pathologique, quando Canguilhem afirma que “a filosofia é uma reflexão para a qual toda matéria estranha serve e, diríamos até, é uma reflexão para a qual só serve a matéria que for estranha”? Na continuação deste parágrafo inicial da obra, a coerência entre a resistência na qual ingressou e os estudos de medicina que abraçou na mesma época fica ainda mais evidente: “Não é necessariamente para melhor conhecer as doenças mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina. Tampouco é para necessariamente se dedicar a uma disciplina científica. O que esperávamos precisamente da medicina é uma introdução a problemas humanos concretos” (CANGUILHEM 2009, 7).

É este idealismo platônico, que nos permitiremos identificar em Canguilhem como um racionalismo engajado, que configura aquele realismo condicional e seu enorme interesse pelos problemas humanos concretos. Esta conjunção, como se vê, profundamente filosófica, se realizará, enfim, nos maquis de Auvergne e pela medicina, a cujos estudos se consagra a partir de 1940, quando solicita afastamento de seu cargo de professor de liceu em Toulouse, cargo que, afirma ele, demorou muito a conseguir e que o único que realmente almejou em sua vida4, “a fim de não ter de ensinar o que parecia se preparar, isto é, a moral do marechal Pétain” (BING; BRAUNSTEIN 1998, 122). A respeito deste duplo engajamento, Elizabeth Roudinesco tem uma observação precisa no artigo Georges Canguilhem, de la médecine à la résistence: destin du concept de normalité, referindo- se à tese de 1943:

Nada deixava supor, à leitura deste texto magistral, que Canguilhem e Lafont [codinome de resistente] pudessem ser uma única e mesma pessoa. A clivagem entre as brilhantes hipóteses do filósofo e o contexto exterior, totalmente ausente de seu raciocínio, era tamanha que temos dificuldade em acreditar, ainda hoje, que uma tese dessa natureza tenha sido defendida em plena guerra, num momento em que, com a derrocada das potências do Eixo na África e o desembarque aliado na Itália, já se esboçava a derrota do fascismo na Europa.

E, entretanto, a reflexão empreendida pelo filósofo não era estranha às atividades do maquisard. […] No maquis, ele se encarregou essencialmente de atividades humanitárias, exercendo a medicina sob risco de morte. E este foi o único momento de sua vida em que praticou a medicina. Em outras palavras, foi médico apenas na guerra e pela guerra: um médico de urgência e do trauma. (BING; BRAUNSTEIN 1998, 25-26)

Estas circunstâncias da volta para o concreto, nos ajuda ainda a entender a reabilitação de uma referência filosófica importante para o Canguilhem da maturidade: Henri Bergson.

Depois de uma elogiosa resenha, publicada em 1929, do panfleto antibergsoniano de Georges Politzer, La fin d’une parade philosophique: le bergsonisme, no qual se leem afirmações rudes, como a seguinte: “À parte a mentira, somente a mediocridade poder erigir o bergsonismo em grade filosofia” (POLITZER 1967, 149), Canguilhem afirma a Fr.Bing e J.Fr. Braunstein, quando perguntado sobre o papel de Bergson em sua filosofia: “Eu o li melhor depois de meus estudos de medicina”. E logo em seguida: “Quando éramos alainistas, finalmente (risos), tínhamos poucos relacionamentos, éramos muito exigentes. Isso ficou pra trás, e o que me fez deixar isso para trás foi precisamente a ocupação, a resistência e o que se seguiu… a medicina” (BING; BRAUNSTEIN 1998, 129).5 Como se vê, de fato, o ano de 1939, com a ocupação, a resistência e os estudos de medicina, marca, ainda que de maneira imprecisa, o fim destes anos de formação. A partir daí, é uma obra, nos dizeres de Michel Foucault, “austera, voluntária e cuidadosamente limitada a um domínio particular de uma história das ciências que, em todo caso, não se coaduna com uma disciplina de grande espetáculo” (FOUCAULT 2008, 1582).

O que nos prometem os próximos cinco volumes das obras completas de Georges Canguilhem é precisamente a reunião dos trabalhos em que o rigor desta obra reflete, antes de tudo, a ação do pensamento. Maduro o pensamento, ele não se deixará levar pelas modas, nem seduzir por uma filosofia da ação, nem por uma filosofia do engajamento. A volta para o concreto oferece isso que aqueles que Canguilhem gostava de chamar “terroristas literários”, não puderam perceber, pois, quando uma tarefa essencial se apresenta ao espírito, é muito confortável separar da palavra e da escrita a mão e o gesto. Se Canguilhem sempre foi, ao longo da vida, discreto a respeito de sua atividade como resistente, seus escritos sobre o amigo e companheiro de maquis, Jean Cavaillès não cessarão de lembrar aos incautos que “a luta contra o inaceitável [é] inelutável” (CANGUILHEM 2004, 34). Neste sentido, a ação não é uma escolha, mas uma necessidade lógica, pois, como afirma em sua conclusão a conferência intitulada Vie et mort de Jean Cavaillès, “antes de ser irmã do sonho, ação deve ser filha do rigor” (Idem, 30) – o que, bem entendido, não vai sem poesia. Canguilhem nos ensina, seguindo Cavaillès, mas também Bachelard (não por acaso, é Canguilhem quem organiza a publicação, em 1972, da coletânea de artigos de Bachelard à qual intitula L’engagement rationaliste), que, se há ainda um problema filosófico importante em nossos dias, este problema é o do engajamento! * Por fim, é preciso assinalar o aspecto didático dado a este primeiro volume. Cada seção é precedida por uma longa e erudita Introdução e os textos são rica e cuidadosamente anotados. Abrem o volume um prefácio, quase que exclusivamente autobiográfico, de Jacques Bouveresse e uma Apresentação geral que destaca os aspectos centrais deste período, intitulada “Jeunesse d’un philosophe”, por Yves Schwartz. Nos anexos, nos são dados o texto de Félicien Challaye, ao qual Canguilhem reagiu com o artigo “La paix sans reserve? Oui”, bem como as respostas de Théodor Ruyssen, e ainda o artigo “Réflexions sur le pacifisme intégral”, publicado em 1933 no Libres propos, no qual Raymond Aron se manifesta a respeito deste debate.

Assim, este primeiro volume, sem dúvida, deixa-nos na expectativa dos próximo cinco que completarão a edição definitiva das Obras Completas de Georges Canguilhem (que inclui uma “Bibliografia crítica”, a cargo de Camille Limoges, como VI volume). Através delas se poderá finalmente perceber a dimensão da obra deste filósofo que, conhecido mais pelas referências feitas por aqueles a quem ele influenciou que pelos seus próprios trabalhos, tem a atualidade perene de todo grande pensamento.

Notas

1  No Brasil, data do final dos anos 1970 a tradução de O normal e o patológico, que é, com efeito, sua obra mais significativa. Publicou-se, tempos mais tarde, o pequeno Escritos sobre a medicina (2005) e, recentemente, os Estudos de história e filosofia das ciências e O conhecimento da vida, ambos em 2012.

2 Vale a pena aqui remeter o leitor à bela fotografia que abre a seção de “Artigos, discursos e conferências (1926-1938)”, primeira do livro, na qual Canguilhem aparece precisamente neste labor, empurrando o arado puxado por duas reses.

3 CANGUILHEM, G. citado por Jean-François Braunstein na Introdução à Obras completas intitulada “À la découverte d’un ‘Canguilhem perdu’”, p.112.

4 Canguilhem o reconhece na entrevista a François Bing e a Jean-François Braunstein, em 1991, publicada em Actualité de Georges Canguilhem, p.121.

5 Já em Le normal et le pathologique podemos ler, por exemplo: “Pelo menos potencialmente, as normas são relativas umas às outras num sistema. Sua correlatividade num sistema social tende a fazer desse sistema uma organização, isto é, uma unidade em si, senão por si e para si. Pelo menos um filósofo percebeu e trouxe à luz o caráter orgânico das normas morais na medida em que elas são, em primeiro lugar, normas sociais. Foi Bergson, analisando em Les deux sources de la morale et de la réligion, o que chama de ‘o todo da obrigação’.” (CANGUILHEN 2009, 185)

Referências

BRAUNSTEIN, Jean-François. Canguilhem avant Canguilhem. In: Revue d’histoire des sciences, 2000, tome 53, n°1, pp. 9-26.

BRAUNSTEIN, J.-Fr.; BING, Fr.; et alii. Actualité de Georges Canguilhem. Le Plessis-Robinson: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1998.

CANGUILHEM, Georges. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 2009.

CANGUILHEM, Georges. Vie et mort de Jean Cavaillès. Paris: Allia, 2004.

FOUCAULT, Michel. La vie: l’expérience et la science. In:___. Dits et écrits II, Paris: Gallimard, 2008, pp. 1582-1595 (texte361).

POLITZER, Georges. La fin d’une parade philosophique: le bergsonisme. S.l.: J. J. Pauvert Éditeurs, 1967.

Fábio Ferreira de Almeida – Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, Brasil.

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Ceará: economia/ política e sociedade (séculos XVIII e XIX) | Mário M. Viana Jr., Rafael R. Silva e Gabriel P. Nogueira

Divulgando os resultados de pesquisas acadêmicas recentes, este livro consiste na reunião de oito estudos que apresentam ao leitor reflexões renovadas sobre o Ceará dos séculos XVIII e XIX. Além de não estar organizado a partir da divisão tradicional em períodos, a coletânea tem a vantagem de dedicar a maioria dos seus capítulos à análise de aspectos relativos à capitania do Ceará, ajudando a suprir a carência da publicação de conhecimento atualizado acerca do passado colonial cearense. Nesse sentido, uma das suas contribuições mais originais é a utilização da expressão Siará grande para se referir ao Ceará dos primeiros séculos, que busca historicizar o passado através da recuperação do seu caráter processual, evitando projeções anacrônicas. Leia Mais

Pueblos indígenas. Interculturalidad, colonialidad, política – TAMAGNO (AN)

TAMAGNO, Liliana (Coord.). Pueblos indígenas. Interculturalidad, colonialidad, política. Buenos Aires: Colección Culturalia, Editorial Biblos, 2009, 206p. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 34, p. 397-402, dez. 2011.

Hace casi diez años, Liliana Tamagno nos proveía de una obra que iba a convertirse en una referencia ineludible para los estudios antropológicos e históricos sobre los pueblos indígenas en contextos urbanos: se trataba de Nam qom hueta’a na doqshi lma’. Los tobas en la casa del hombre blanco (2001). Si aquella obra se centraba específicamente en el caso de los grupos tobas que, provenientes de la provincia del Chaco, se habían asentado en la periferia transicional entre las ciudades de Buenos Aires y La Plata (Argentina), dando por tierra a través de las refl exiones vertidas allí con muchas ideas fuertemente arraigadas en el sentido común sobre la pérdida de identidad étnica, aculturación o exclusión, construidas desde la globalización y la desigualdad en las sociedades modernas, la compilación Pueblos indígenas.

Interculturalidad, colonialidad, política – objeto de nuestra reseña – continúa a la vez que renueva esta senda investigativa. La continúa en tanto se ocupa de algunas de las más relevantes problemáticas del campo antropológico de las últimas décadas, como la migración de las minorías a las grandes ciudades, sus formas de inserción en el espacio y la vida urbana multicultural, la reproducción de procesos de identificación étnica en espacios lejanos y culturalmente no afines con el de los migrantes. Y también la renueva en tanto compila en un volumen los avances de proyectos que han conformado y conforman la línea de investigación Identidad, etnicidad, interculturalidad, desarrollada en el Laboratorio de Investigaciones en Antropología Social (LIAS), perteneciente a la Facultad de Ciencias Naturales y Museo de la Universidad Nacional de La Plata (UNLP).

En este sentido, el libro reúne diversas investigaciones: algunas desarrolladas por Liliana Tamagno en los últimos años; otras, expresan las preocupaciones, de larga data, de académicos de reconocida trayectoria en el medio argentino, como Alejandro Balazote y Juan Carlos Radovich, o las recientes producciones de jóvenes becarios y doctorandos. Los proyectos han tenido y tienen como objetivo analizar la diversidad y el pluralismo en contextos nacionales, incluyendo la refl exión acerca de los modos en que la estructura de clase se articula con las relaciones interétnicas e interpretando las presencias actuales de los pueblos indígenas, en contextos neocoloniales, como el resultado de complejos y polifacéticos procesos de aceptación/ rechazo de los modelos impuestos o que se pretenden imponer desde lo hegemónico; sintetizan además el resultado de la relación con distintos referentes empíricos y en diferentes momentos de trabajo etnográfico, privilegiando la observación de las dinámicas en lo que tienen de creativo, de insospechado e incluso de asombroso.

Igualmente, los artículos que conforman este volumen se fundan en analizar situaciones particulares, referidas tanto al pueblo toba, como al mapuche, al huarpe y al mbya guaraní, en las que se ponen en evidencia las tensiones entre el discurso hegemónico sobre la interculturalidad y las prácticas que devienen de políticas concretas en los campos de la educación, la salud, la cultural, el patrimonio y el turismo. Demuestran además que el carácter crítico y propositivo que anima al término “interculturalidad” desde lo conceptual, se ve limitado por intereses de clase y por obstáculos epistemológicos que limitan la posibilidad de construir modos de relacionamiento exentos de racismo. De manera que lo que surge de las diferentes colaboraciones del libro no se limita a la mera comprensión y análisis de casos particulares, sino que procuran proyectarse al debate académico actual de las ciencias sociales, en especial a la discusión acerca de la sociedad argentina, sus tensiones, sus indefiniciones, sus crisis.

El prólogo de la obra, a cargo del reconocido antropólogo Miguel Alberto Bartolomé, subraya justamente este aspecto, enmarcando las producciones particulares en una profunda y esclarecedora refl exión sobre la pluralidad y fundamentalmente sobre la propia antropología argentina y latinoamericana.

Así, algunos de sus pasajes objetivan en palabras las preocupaciones que aquejan a sus autores cuando observan la realidad junto con miles de varones, mujeres y niños que sobreviven en condiciones de pobreza, violencia, discriminación, subestimación y racismo; cuando se encuentran frente a la criminalización de la miseria, frente a expresiones y actitudes que asocian la lucha contra la inseguridad con la lucha contra los pobres, frente a la limpieza de clase, ante los muros y las barreras que se levantan cerrando espacios habitacionales o líneas de fuga de posibles delincuentes, ante el recrudecimiento de la segregación y la desigualdad, ante el modo en que el ideario hegemónico gestado en los procesos de conquista y colonización se proyecta a nuestros días en un pensamiento que continúa siendo colonial. Otros párrafos, sin embargo, ponen en evidencia que, en tanto la historia es transformación, las demandas y los reclamos, los sueños y las utopías de los pueblos indígenas – y a pesar de ello incluso las diferencias que tensan sus organizaciones – se levantan como subversiones cotidianas que cuestionan la voracidad del sistema capitalista; un orden fundado en la competencia y contradicción entre unos bienes que son escasos y unas necesidades que se suponen infinitas. Ejemplo de ello es la lucha de los pueblos indígenas en defensa del territorio y de la naturaleza oponiéndose a explotaciones mineras, madereras, agrícolas y turísticas que atentan contra la biodiversidad y contaminan los suelos, el aire y el agua en grados impensados desde la lógica de la reciprocidad y desde el concepto de “ser en el mundo” que animó las tradiciones indígenas y que aún hoy está presente en la memoria de muchos de ellos, como se ha expresado dramáticamente, desde hace bastante tiempo y en diferentes regiones de Argentina, en los enfrentamientos entre los pueblos originarios, las políticas gubernamentales y los megaproyectos económicos.

La primera parte del libro, Territorios y memorias, contiene seis artículos. La sección se abre con un trabajo de Alejandro Balazote y Juan Carlos Radovich intitulado Turismo y etnicidad…, donde se indaga el impacto del turismo en la población mapuche localizada en el sur del territorio argentino como continuidad de las preocupaciones que, desde 1987, condujeron a estos autores a analizar la incidencia de los denominados proyectos de gran escala en la vida de los pueblos originarios. El artículo focaliza en los procesos identitarios y las luchas indígenas en el contexto de los procesos de inversión y desinversión de capital en la región de norpatagonia y sus relaciones con las disputas territoriales de pequeños productores criollos e indígenas.

El segundo artículo, Volver a la tierra…, de Carolina Mai dana, presenta la relación entre parentesco, migración y procesos de territorialización expresada en la conformción de los denominados “barrios tobas”, repensando el espacio físico y social en la superación de las dicotomías rural/urbano y local/global para así indagar y comprender la dinámica sociocultural de la población indígena toba en tanto integrante del pueblo qom. El tercer artículo, El mestizaje como dispositivo biopolítico, de Leticia Katzser, evisa críticamente censos, historiografías y monografías etnográficas y los interpreta como textos constitutivos y constituyentes de un régimen político específico, fundado en declarar la “extinción” del pueblo huarpe, una refl exión crítica que se proyecta a su vez al concepto contemporáneo de “indios emergentes”.

En el cuarto trabajo de esta sección, Las luchas por el territorio…, a cargo de Ana Cristina Ottenheimer, Bernarda Zubrzycki, Stella Maris García y Liliana Tamagno, se discute la tensión entre la población mbya guaraní del Cuña Pirú, localidad ubicada en la provincia de Misiones (Argentina), y la Universidad Nacional de La Plata, propietaria por donación de la Empresa Celulosa Argentina desde 1991 de las tierras habitadas por estos grupos indígenas. A lo largo del trabajo, los modos en que se ha ido estableciendo la relación y las concepciones que animan el tratamiento de la cuestión por parte de las autoridades de esta Universidad son analizados a la luz de una serie de consideraciones respecto de la identidad étnica, la interculturalidad, los derechos sobre el territorio, la concepción de la propiedad privada, lo legal y lo legítimo.

El quinto trabajo, Imágenes del ‘tiempo de los antiguos’… de Alejandro Martínez, discute el rol de la fotografía en la construcción de la memoria y la historia de los pueblos indígenas del Chaco argentino.

Las fotografías permiten al autor reconstruir la cotidianeidad de los trabajadores indígenas en los ingenios azucareros, las relaciones entre los indígenas y no indígenas y las condiciones de trabajo en esos establecimientos, presentando a los pueblos originarios como sujetos activos en la historia. En diálogo con los anteriores, el último trabajo de la sección, Saberes, ética y política…, de Liliana Tamagno, estudia el reclamo y la restitución de restos humanos por parte del Museo de La Plata, revisando críticamente algunas ideas fuerza que ordenaron el surgimiento, la constitución, el desarrollo y el afianzamiento de la identidad nacional y que aún perdura en el imaginario actual de una sociedad que se pensó sin indios y una modernidad que se imaginó sin diversidades, contradicciones y/o desigualdades.

La segunda parte del libro, Salud y Educación, que reúne cuatro estudios, se inicia con un artículo de María Adelaida Colangelo, La salud infantil en contexto de diversidad sociocultural, cuyo objeto central es recuperar el concepto de “interculturalidad” en su sentido crítico. La autora describe los modos en que el cuidado de la salud de los niños tobas pone en juego diferentes articulaciones entre la medicina tradicional-popular, la medicina oficial y los aspectos terapéuticos presentes en el ritual de la iglesia pentescostal. Por su parte, en Políticas públicas y prácticas educativas, María Amalia Ibánez Caselli se detiene en el examen de situaciones referidas a propuestas de educación intercultural bilingüe referidas al pueblo toba, preguntándose si la interculturalidad se practica y planteando que el concepto de interculturalidad se impuso en Argentina más como una moda a seguir que como el producto de las refexiones críticas y las sistematizaciones que supone toda planificación cuando de políticas de Estado se trata.

El tercer artículo, La interculturalidad desde la etnografía escolar, de Mariel Cremonesi y Mariel Cappannini, se detiene en los avances legislativos que proponen una “educación intercultural”. Desde una “etnografía del aula”, las autoras refl exionan sobre los modos de abordaje de la “diversidad” y la “identidad”, señalando contradicciones entre el discurso sobre la interculturalidad y las prácticas escolares. En Investigar en la escuela, Stella Maris García y Verónica Solari Paz describen el recorrido de una investigación antropológica guiada por la cuestión de si la escuela conseguirá poner en marcha una educación intercultural para atender a una población culturalmente heterogénea y con profundas desigualdades sociales. Frente a este interrogante, las autoras proponen entonces un modelo en el que el docente mismo se asuma en su identidad, un modelo que vincule diversidad y derechos y que, reconociendo la heterogeneidad de la comunidad a la que la escuela atiende, historice los procesos socioculturales que le dieron origen.

Se trata en definitiva de un libro intrépido a la vez que necesario, en tanto se atreve a problematizar y proseguir – más allá de lo establecido y sin ningún tipo de tapujo – un debate considerable para Argentina y, en una escala más amplia, para todos los países latinoamericanos: los sentidos de la diversidad y el pluralismo en relación al diseño y aplicación de políticas gubernamentales en diferentes campos y áreas. Libro aún más importante cuando, como en esta ocasión, posee el mérito de convertir la aparente insensibilidad de la más rigurosa investigación etnográfica en sentidas y afables situaciones de diálogo con aquellos hombres que nos relatan sus historias de dolor y alegrías, contenidas en la permanente resistencia a los dispositivos de poder en diferentes momentos de la gestación, la consolidación y el desarrollo del Estado-Nación.

Horacio Miguel Hernán ZapataEscuela de Historia – Centro Interdisciplinario de Estudios Sociales (CIESo), Facultad de Humanidades y Artes, Universidad Nacional de Rosario (UNR)/ Sección de Etnohistoria, Instituto de Ciencias Antropológicas (ICA), Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires (UBA). E-mail: horazapatajotinsky@ hotmail.com.

Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio – SILVA (AN)

SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p. Resenha de: ELMIR, Cláudio Pereira. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 273-279, jul. 2011.

Em agosto de 2011, completaram-se 50 anos desde a renúncia de Jânio Quadros da presidência da República. Este ato fundador, se assim podemos designá-lo, foi responsável, em parte, por estarmos comemorando, na sequência, os 50 anos da campanha liderada pelo governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, pela garantia da investidura constitucional do vice-presidente João Goulart no cargo deixado vago por Quadros. A campanha, ou movimento, da legalidade é definitivamente um levante gaúcho; o último, talvez (para aqui parafrasear o subtítulo do livro de Joaquim Felizardo, publicado pela Editora da UFRGS, em 1988). Este entendimento pode levar a crer — não como corolário necessário – que o patriotismo dos sulrio- grandenses, notadamente o de suas lideranças políticas, forjou o sentido do cumprimento da lei naquela circunstância, chamando a atenção da nação brasileira para, agora sim, uma necessidade inescapável.

A “coragem quase provocativa” de Leonel Brizola fez um presidente (SILVA, 2011, p. 11).

O livro de Juremir Machado da Silva dá voz às tantas vozes que ressoam essa história desde o momento em que o evento se fez acontecimento, no já longínquo inverno do ano de 1961. O autor, “[…] historiador, doutor em sociologia, jornalista, tradutor, romancista, professor universitário, colunista do Correio do Povo e apresentador da Rádio Guaíba” (SILVA, 2011, segunda aba do livro), traz em sua narrativa a polifonia do acontecimento. Por vezes, contudo, as vozes sobrepõem-se, e ao leitor fica difícil bem discriminar a origem exata da vocalização. De resto, dificuldade que alcança, com frequência, aos historiadores mais experimentados. A estrutura da narrativa — em parte determinada pelo critério cronológico, em parte subjugada às ações de Leonel Brizola – desdobra-se conforme o sabor da evocação errática do autor, não seguindo, portanto, um roteiro expositivo anunciado ao leitor. Este navega sem norte, porém, sem grandes surpresas.

Escrito no calor das comemorações do cinquentenário – atendendo, quem sabe, a “[…] essa estranha obsessão dos homens por datas chamadas de redondas” (SILVA, 2011, p. 218) –, o livro cumpre o desígnio de se interpor, na babel da história, como mais uma voz a compor o emaranhado discursivo que acompanha as efemérides no trabalho de construção da memória.1 Os “feitos” e os “fatos” nele encontram guarida e se imiscuem caprichosamente na narrativa. Neste trabalho de trazer à tona a “muita história” que a cronologia estrita requer, não é difícil encontrar as petites histoires (por exemplo, p. 118, 150, 170 e 214) que não cabem em trabalhos convencionais produzidos por historiadores acadêmicos já faz algum tempo. Nas palavras do autor: “Jornalistas sempre adoram anedotas sobre fatos históricos e fatos históricos como anedotas” (SILVA, 2011, p. 119). Se estas pequenas histórias que se conta – e se as conta muito no livro – não puderem ser verificadas ou demonstradas suficientemente, isso não importa.

Afinal, “[…] as lendas são sempre mais rápidas do que a verdade e quase sempre mais interessantes” (SILVA, 2011, p. 169). O império da voz do povo, quem sabe, pode nos eximir de nossas responsabilidades profissionais com o tratamento ponderado das versões urdidas, eliminando, inclusive, a necessidade de citar discriminadamente, no corpo do texto, as 55 obras lidas e as 25 pessoas com as quais o autor teve a oportunidade de “[…] conversar sobre os episódios”, ao longo de “um ano de trabalho” (SILVA, 2011, p. 223).

A escolha pelo método heterodoxo de inquérito aos documentos (entrevistas, jornais, programas de rádio, textos de memória) e à bibliografia reverbera em uma narrativa de justaposição, na qual a diferenciação do lugar de origem das fontes e o escrutínio das mesmas pelo autor não são capazes de produzir um exercício interpretativo nos moldes daquele que é feito usualmente no âmbito da crítica historiográfica. Ao citar, por exemplo, as memórias produzidas pelo Marechal Machado Lopes no final dos anos 1970 (ver capítulo 21) (SILVA, 2011, p. 189-198), o autor chama a atenção para erros de grafia de um sobrenome cometidos pelo militar em seu livro (Morgen, no lugar de Moojen); (SILVA, 2011, p. 194), embora não os localize expressamente, e ao fato de que “O narrador altera ligeiramente os fatos”; “Inventa outros fatos”; “Colore o passado”; “[…] comete […] anacronismo”2 (SILVA, 2011, p. 197). Entretanto, a resenha do livro do marechal, condensado este no referido capítulo, não contrapõe diretamente aos equívocos da memória – se assim pudermos entender – os fatos (segundo estabelecidos pela historiografia) ou outras memórias, mais exatas quem sabe. Um segundo exemplo diz respeito a uma conversa havida entre o autor e o Coronel Emílio Neme. O fato de o octogenário membro da Brigada Militar não se lembrar, em certo ponto do diálogo, em que ano teria ocorrido a Legalidade (SILVA, 2011, p. 147), deveria, desde o ponto de vista de um historiador habituado ao trabalho com fontes orais, ter demandado o estabelecimento de relações complexas no ato da interpretação da fala. De outra sorte, o princípio da alusão reina sobre o princípio da demonstração (por exemplo, p. 51). E, com isso, ficamos, novamente, com a etérea conclusão circular dita e redita intermitentemente no decorrer da narrativa: “Conta-se que tudo sempre depende de quem conta” (SILVA, 2011, p. 173). Aliás, “conta-se” excessivamente no livro.

Entretanto, não há apenas uma única ocasião em que o autor sugere captar o sentimento íntimo dos agentes sociais. Quando menciona um dos discursos proferidos por Brizola dos porões do Palácio Piratini, Silva estabelece uma analogia entre o então inquilino daquela casa e o governador que liderou a Revolução de 1930: “Talvez sinta a presença espiritual de Vargas enquanto sobe o tom do seu discurso” (SILVA, 2011, p. 65). Da mesma forma, mais adiante, quando diz: “Brizola comporta-se como uma mistura de esfinge e oráculo. Às vezes, tem o olhar perdido. Outras [sic], ordena maquiavelicamente isto e aquilo […]” (SILVA, 2011, p. 89). As conjecturas acerca do que passa na cabeça do jovem governador nas diferentes circunstâncias daqueles dias de tensão entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart continuam alimentando a imaginação do autor: “Em que pensa?” (SILVA, 2011, p. 132). Depois de algumas alternativas levantadas, assevera finalmente: “É mais provável que não pense em coisa alguma grandiosa, que siga sua intuição, sem metafísica nem grande arte, apenas com a determinação de um guerreiro, disposto a ser, se necessário, o último homem” (SILVA, 2011, p. 133). Aqui, como em outras – várias — passagens, insinuase o Brizola candidato a herói.

Não obstante algumas simulações de ironia no correr do texto acerca da biografia de Leonel Brizola, de maneira geral percebe-se que o tom da narrativa direciona-se no caminho de manter uma certa imagem difusa do líder político no Rio Grande do Sul, segundo a qual Brizola encarna alguns dos valores positivos do povo gaúcho. “Se fosse encostado na parede [pelo General Machado Lopes], cuspiria fogo pelas ventas. Afinal, [Brizola] era um gaúcho. E os gaúchos gostam de ver-se como indomáveis” (SILVA, 2011, p. 83). Caráter forjado na dificuldade da vida, órfão prematuro, Brizola responderia, nas ações de sua trajetória pessoal – e, especialmente, política – a um destino anunciado desde sempre. O governador do Rio Grande do Sul, na hora difícil da campanha pela posse de Jango, traria consigo, e fundiria em si mesmo, a imagem do pai que ele, a rigor, nunca conheceu. “Não seria impróprio imaginar que, encastelado no Palácio Piratini, em 28 de agosto de 1961, disposto a morrer pela Legalidade, Leonel de Moura Brizola […] pensava no seu pai, José Brizola, assassinado por resistir aos abusos do poder” (SILVA, 2011, p. 9-10). De fato não é fácil medir a distância que separa a retórica política das intenções mais íntimas de um homem. Mas é possível reconhecer nele, desde cedo, desde menino, “olhos cheios de determinação” (p. 16, 19 e 32). Nas palavras graves do autor:

[…] há homens que crescem na adversidade e fazem do risco a oportunidade de um salto para o futuro, homens como Leonel Brizola, saído dos confins do Rio Grande do Sul para escrever sua história em paralelo com a do Brasil, fundindo-se, por vezes, com ela, seguindo-a de perto, intuindo, quem sabe, que certas ações marcam para sempre uma vida e delas depende uma biografia (SILVA, 2011, p. 132).

O começo e o fim. O fim no começo. O destino predestinado.

A ilusão biográfica? No livro Vozes da legalidade, é possível reconhecer a opção por uma dicção francamente regional. Esta escolha se faz perceber tanto pela abordagem empreendida quanto pelas referências documentais e bibliográficas que a sustentam. No primeiro caso, a ênfase na figura de Leonel Brizola – sem ser uma biografia propriamente – ofusca o estabelecimento de relações em âmbito nacional que são fundamentais para compreender o processo histórico do qual se quer tratar. No segundo caso, o autor sustenta seus argumentos em bibliografia flagrantemente desatualizada e pouco especializada. Por outro lado, dedica-se um capítulo à Maria Teresa Goulart, esposa de Jango, atribuindo a ela uma importância questionável, ao dizer: “Maria Teresa não tem currículo. Tem biografia. Falta-lhe um biógrafo” (SILVA, 2011, p. 206).

O texto expressa o propósito de ser uma espécie de “conversa com o leitor”. É como se tivéssemos, pelo livro, mais uma voz a contar a história. As marcas de oralidade nele presentes são muitas.

É quase uma memória. A decisão de contar a história é mais intensa, no meu juízo, que a articulação sistemática das razões que explicam a mesma. Consoante com esse esforço, os lugares-comuns proliferam (2011, p. 185) e a narrativa precipita-se em interjeições (2011, p. 212) e em longas frases, com dezenas de linhas sem ponto (por exemplo, o início do capítulo 20). Não se sabe ao certo se, nesse caso, faltou um cuidado maior no processo de editoração, ou se, na verdade, trata-se de “escolha estilística” do autor.

O primeiro e o último capítulo remetem-se mutuamente. Em ambos, a discussão sobre o nome assume a centralidade da narrativa; mais no capítulo inicial do que no derradeiro. Contudo, é na última folha do livro que a decifração se dá. Tanto a do nome que sua mãe quis para Brizola, “Itagiba”, quanto aos outros, os quais ele efetivamente carregou pela vida: Leonel de Moura Brizola. Diz o autor: “Conta-se que a palavra indígena Itagiba significa braço forte e duro como a mais dura das pedras. Conta-se que o nome Leonel vem do latim e quer dizer pequeno leão (SILVA, 2011, p. 218). Sobre o nome do meio, Moura, faz-se uma digressão mais longa, associando o mesmo a uma localidade de igual nome em Portugal vinculada aos mouros: “Conta-se que o portador desse sobrenome é dotado de muita energia, como dona Oniva [mãe de Brizola], e tem espírito aguerrido” (SILVA, 2011, p. 219). Por fim, resta a menção ao sobrenome que o tornou conhecido: “Conta-se que o nome Brizola, de origem italiana, significa grisalho e que quem o carrega já nasce maduro” (SILVA, 2011, p. 219). Na inscrição do nome, o caráter. No nome, o destino. Novamente, o princípio determinando o desfecho.

Para concluir, algumas palavras sobre o nome do livro: Vozes da legalidade. Política e imaginário na era do rádio. Embora o título e a ficha catalográfica elaborada pela editora possam fazer supor, o “rádio” não é um personagem (tampouco um objeto de investigação) importante da narrativa. O “imaginário” é um termo que não se sustenta como articulador da abordagem empreendida. Já a expressão “era do rádio”, não obstante o fundamental papel desempenhado por esse meio de comunicação ainda no início dos anos 1960 e, notadamente, no evento em questão, é um designativo que faz justiça, a bem da verdade, às décadas de 1940 e 1950.

Notas

1 Vale dizer que esta não é a primeira vez que o autor se dedica a escrever sobre temas relacionados a efemérides. No cinquentenário da morte de Getúlio Vargas, o autor publicou um livro (romance) sobre o político (SILVA, Juremir Machado da. Getúlio. Rio de Janeiro: Record, 2004) e, em 2010 – passados oitenta anos do levante que levou Vargas ao poder – Silva publicou, pela mesma editora carioca, um romance sobre a Revolução de 1930 (SILVA, Juremir Machado da. 1930. Águas da revolução. Rio de Janeiro: Record, 2010). Note-se que, nestes dois casos citados, diferentemente do livro em exame, não se verifica uma opção editorial pelo gênero histórico ou historiográfico.

2 A tentação do cometimento de anacronismo parece rondar a todos quando tempos inconciliáveis se encarregam, segundo nossa particular vontade, de se fazerem unos: “Naquele agosto gelado de 1961, em Porto Alegre, ninguém podia imaginar que quase 30 anos depois haveria um Jânio sem o mesmo português, mas com a mesma megalomania moralista, o ‘caçador de marajás’, Fernando Collor, que com apoio das mesmas e outras elites, tentaria varrer a sujeira nacional, jogando-a para baixo do tapete, até ser enxotado por não ter tido, como Jânio, a sabedoria de cair fora” (SILVA, 2011, p. 53). Nas páginas 96 e 97, encontra-se, novamente, um comentário anacrônico, identificado pela narrativa como “nota de rodapé”, ainda que as referidas “digressões” ocupem lugar no corpo do texto, e não na parte inferior da página, como seria de se esperar de um texto acadêmico.

Referências

FELIZARDO, Joaquim José. A legalidade. Último levante gaúcho. 3ª ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.

LOPES, José Machado. O III exército na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Alhambra, 1980.

SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p.

Cláudio Pereira Elmir Professor do PPG-História da Unisinos. E-mail: [email protected].

Nervos da terra – Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP | Danilo Paiva Ramos

“Nervos da terra” é uma obra que nasce do desejo de Danilo Ramos refletir sobre as tensões e as experiências dos sem-terra do Assentamento Carlos Lamarca, em Itapetininga, São Paulo, implantado no ano de 1998, após inúmeras ações das famílias acampadas, desde 1996.

A história narrada pelo autor traz a marca do sujeito coletivo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a perpassar as histórias e memórias de cada um dos narradores, seja para legitimar a proximidade com o MST ou mesmo para negá-la. Leia Mais

Capitalismo Global: história econômica e política do século XX | Jeffry A. Frieden

Empolgante e concisa, contudo polêmica. A obra do professor Frieden é empolgante e concisa quanto ao capitalismo e seu dinamizador, o comércio internacional, mas é polêmica quando relata um difícil período vivido pela população do Congo sob tutela do rei Leopoldo II e também quando se refere a Lord Keynes em uma comparação com Schacht, economista alemão. Realmente teria sido mister fazê-la em ambos os casos? Suprimindo, momentaneamente, uma resposta para essa questão, faz-se, sim, necessário dar os devidos créditos ao autor de Capitalismo Global.

Professor titular da Harvard University, Jeffry A. Frieden, além de poliglota (fluente em francês, espanhol, italiano, português e marginally competent em russo, como destacado em seu curriculum vitae), é especialista em economia política internacional. Frieden traz em sua obra um ponto de vista diferenciado da história econômica e política do século XX. O autor busca a gênese do capitalismo global através da explicação e detalhamento dos desdobramentos históricos do comércio internacional. Comércio global que praticamente se iniciou no século XVIII, com o declínio do mercantilismo e a erupção da Revolução Industrial e das novas tecnologias (transporte, comunicação) dela decorrente, e estende-se até este início de século XXI. Leia Mais

Hobbes: Natureza, história e política – VILANOVA; BARROS (FU)

VILANOVA, M.G.; BARROS, D.F. Hobbes: Natureza, história e política. São Paulo: Discurso Editorial, 2009. Resenha de: CRUZ, Michael de Souza. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.2, p.192-195, mai./ago., 2011.

Hobbes: Natureza, história e política é uma coletânea de artigos de alguns trabalhos apresentados no Colóquio Internacional (que possui o mesmo nome do livro) realizado na USP (Universidade de São Paulo), em São Paulo, em outubro de 2009. Fruto da parceria entre CAPES e MINCyT a partir dos grupos de pesquisa da UNC (Universidad de Córdoba) e USP, o colóquio foi organizado em diferentes mesas temáticas, que foram seguidas pelo livro, contando com a participação de especialistas da filosofia hobbesiana da Argentina e do Brasil. Com o objetivo maior de estimular a troca de ideias entre os pesquisadores dos dois países (divulgar diferentes linhas de pesquisa, resultados e projeções), tal colóquio teve como resultado impresso tal livro, que retrata ao leitor a grandiosidade da filosofia de Thomas Hobbes de uma maneira perspícua. Os artigos são apresentados segundo os diferentes eixos temáticos: Hobbes e a Tradição, Religião e Política, Filosofia Natural e Política e O Legado de Hobbes na Contemporaneidade.

Após a apresentação dos editores, segue o artigo de Abertura: Hobbes, recente (p. 9-19), de R.J. Ribeiro. Em seu artigo, Ribeiro pretende mostrar ao leitor a atualidade da filosofia de Hobbes a despeito do temor gerado pela sua política (em especial, o Leviatã) aos seus contemporâneos. Como filósofo, o que Hobbes faz é levar a cabo o princípio de que “conhecemos o que fazemos”, desde a geometria ao contrato social (seus maiores exemplos de saberes teórico e prático). Contudo, o autor julga que a marca distintiva da filosofia hobbesiana é justamente o seu legado político: “se dependesse de sua ciência, Hobbes seria nota de rodapé” (Ribeiro, 2009). Hobbes é essencialmente um teórico da soberania que desnudou o que há de terrível no poder: a importância central do seu próprio uso. Entretanto, há que distinguir pavor (ou temor) de medo (awe), cabendo o uso desse último no exercício da soberania no Leviatã. Manter os súditos não em uma condição aterrorizada, mas em “reverente temor”, isto é, em um sentimento que está entre o temor e a reverência, eis a originalidade e a riqueza da filosofia política hobbesiana.

Na temática Hobbes e a Tradição, temos: Hobbes, Bodin e a liberdade como problema (p. 21-32), de D.F. Barros. Nesse artigo, o autor problematiza a tese cara a alguns intérpretes da filosofia de Hobbes que afirmam que a sua teoria política é fundadora da doutrina do liberalismo político. Tal como apregoam os defensores de tal tese, a função central do soberano hobbesiano é a proteção daquilo que seria mais germinal ao pensamento liberal: vida e propriedade. Entretanto, Barros replica: como conciliar o poder ilimitado do soberano em mandar (tal como uma “máquina despótica”) com um modelo de Estado destinado a guardar e proteger os direitos naturais do indivíduo? No artigo Leviatã e Oceana (p. 33-44), E. Ostrensky defende uma tese heterodoxa acerca do Leviatã: tratava-se de um experimento constitucional, isto é, um modelo político para uma nova ordem que se fazia necessária na Inglaterra pós-guerra civil. A defesa dessa tese passa pela análise de uma tese complementar que estabelece que os méritos e limitações do Leviatã como um experimento constitucional foram apresentados nas críticas de James Harrington em sua obra Oceana. Em favor da primeira tese, a autora estabelece: (i) a obra se apresenta como projeto científico genuíno, amparado num método rigoroso; (ii) oferece-se como ortodoxia a ser adotada nas universidades e contempla subcasos de soberania absoluta (adquirida e instituída). Em favor da segunda tese, estabelece que Oceana (obra dedicada a Oliver Cromwell) é o contra-ataque republicano ao modelo absoluto desenhado por Hobbes no Leviatã, criticando-lhe a concepção de que haveria liberdade num regime monárquico e percebendo na obra hobbesiana uma receita antiquada para a solução de conflitos. Em Pasiones e imaginación: tradición y modernidad (p. 45-60), M.L.L. de Stier pretende mostrar o que a teoria das paixões de Hobbes guarda em comum e em que sentido rompe com a teoria aristotélico-escolástica. No que diz respeito à primeira perspectiva, a autora atenta para o fato de que tanto Aristóteles e a Escolástica quanto Hobbes defendem que as paixões são basicamente movimentos e afecções involuntárias vinculadas ao prazer e a dor. Acerca da perspectiva de diferenciação das teorias, Stier joga luz no conceito de vontade: enquanto que na concepção aristotélico-escolástica ela é uma faculdade ou capacidade de querer, para Hobbes ela nada mais do que um ato ou um apetite último da deliberação.

Na temática Religião e Política, temos o artigo Hobbes y los usos políticos de La Trinidad (p. 63-82), de A.J. Coldero. Coldero trata em seu artigo de uma das questões mais delicadas da filosofia de Hobbes: o papel e o lugar da religião na commonwealth. E faz isso tratando de um dos problemas teológicos mais intrincados: a trindade. Tal como já expresso pelo título do artigo, o autor afirma o caráter instrumental da leitura bíblica hobbesiana, evidenciado pela sua forma “politizante” de interpretação das escrituras. Sendo assim, o próprio problema da trindade sofrerá essa instrumentalização. Não obstante, isso não exclui o exercício hobbesiano de uma leitura própria da trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Essa análise leva, segundo o autor, a uma tensão que não teria passado despercebida da análise de Hobbes, entre duas perspectivas trinitárias: econômica (aspecto histórico e centrado na divisão das pessoas) e ontológica (que faz referência a uma unidade divina “substancial”). Além disso, acerca da disputa interpretativa estabelecida entre Edwin Curley e Aloysius Martinich, Coldero segue a linha deste último; enquanto o primeiro defende uma ironia hobbesiana ao tratar da questão política (desacreditando no dogma trinitário, mas reafirmando a teoria da personificação), o último parte do reconhecimento factual da legitimidade da doutrina da trindade à época de Hobbes. A despeito da dita instrumentalização do religioso ao político em Hobbes, M.G. Villanova, em Desobediência de motivação religiosa (p. 83-95), trata a questão da religião em Hobbes sob outra perspectiva: a religião como motivação da desobediência civil. É sabido que, paralelo ao irrestrito poder do soberano, é admitido por Hobbes o direito de resistência, isto é, à defesa da liberdade vital e corporal. Contudo, sustenta o autor, o filósofo reconheceria também o direito à proteção de “bens imateriais”, a exemplo da crença religiosa. Assim como no direito de natureza pré-cívico, o mesmo pode-se dizer quanto ao direito de resistência do cidadão na commonwealth, ou seja, continua a pertencer a ele a avaliação quanto à conveniência de quando e como resistir ao direito de punir do soberano.

Na temática Filosofia Natural e Política, temos ¿Quién obedece al Leviatán? (p. 97-109), de D.J. Rosanovich. Em seu artigo, cujo título mais esclarecedor não pode ser, Rosanovich procura estabelecer quais são os “atores políticos” que têm lugar na teoria de Hobbes. A tese central do autor é que, na contramão do que proporiam, por exemplo, Locke e Kant, Hobbes recusa aceitar atores coletivos como elementos fundadores do Estado. Nesse sentido, em vez de uma pessoa jurídica ou de um povo, Hobbes afirma que uma multidão, isto é, um conglomerado de indivíduos, é logicamente anterior ao Estado. Recusa também, por conseguinte, a ideia de um pacto bilateral entre os indivíduos e o soberano na criação do Estado. Porque o pacto é somente entre indivíduos, o soberano é alheio a ele, razão pela qual o ato de instituição da soberania não pode ser desfeito. Entretanto, do fato de Hobbes recusar a constituição de agentes supraindividuais na formação do Estado, daí não se segue que o soberano não possa constituir mecanismos que gerem condições sociais aptas a favorecer a obediência dos súditos. Talvez o artigo de C. Balzi, Descripción de un animal artificial, o ¿por qué Hobbes escribió Leviathan? (p. 111-123), seja o mais polêmico e heterodoxo do livro no que toca à interpretação do sistema filosófico de Hobbes. O autor indaga-se acerca das razões históricas e intelectuais do filósofo ter escrito o Leviatã, visto que era uma obra que não parecia estar no itinerário filosófico hobbesiano (mas sim a tradução para o inglês do De Cive). Para Balzi, a criação do conceito de representação, o quadro sinóptico das ciências, o extenso aparato teológico e a valorização da retórica não são explicações suficientes para isso. Seria, na verdade, a fundamentação do conceito de Estado a grande tarefa do Leviatã – que não fora realizada nas obras anteriores. Entretanto, ao fundamentar a sua interpretação, o autor acaba por valorizar o quadro sinóptico das ciências do capítulo IX do Leviatã, em que Hobbes estabeleceria a completa autonomia da sua Filosofia Civil em relação à sua Filosofia Primeira. Assim, o Livro I da obra não seria mais um tratado antropológico que fundamentaria a política, mas tão somente uma parte negativa (pars destruens) do Leviatã. Já em Thomas Hobbes e o argumento dominador (p. 125-141), W.B. Lisboa faz de uma dificuldade filosófica que remonta a Aristóteles e aos os medievais um convite à compreensão do sistema filosófico de Hobbes. Sabendo-se que o argumento dominador (supostamente apresentado primeiramente por Diodoro Cronos; também analisado por Aristóteles no capítulo IX do De Interpretatione) conclui que “tudo o que é possível é atualmente ou será”, isto é, estabelece um determinismo universal, Lisboa trata de apresentar a defesa hobbesiana dessa conclusão a partir das premissas do próprio sistema do filósofo. Num primeiro momento, faz uma “reconstrução ontológica” do argumento hobbesiano, estabelecendo a necessidade do passado, bem como a dicotomia necessidade e impossibilidade – sendo a noção de possibilidade reduzida à primeira. Assim, para Hobbes, todo evento futuro terá uma causa necessária. Noutro momento, o autor faz uma reconstrução “lógico-metafísica” do argumento hobbesiano. Assim como possibilidade e necessidade, também há a identificação entre causas suficientes e causas necessárias no determinismo de Hobbes. Ademais, no que toca à determinação do valor de verdade dos enunciados, o instante de tempo em que se realiza o que diz a proposição é indiferente à determinação do seu valor de verdade – sendo um problema da temporalidade e limitação do conhecimento humano e não da constituição das coisas.

Na última temática do livro, O Legado de Hobbes na Contemporaneidade, temos Leviatã secreto: Hobbes e o Serviço de Inteligência (p. 143-152), de C.R.C. Leivas. Fazendo justiça à temática em que se enquadra, o artigo de Leivas é muito original ao fazer de Hobbes um pensador de uma questão típica das relações políticas contemporâneas: o Serviço de Inteligência. Hobbes seria um dos filósofos que veriam na espionagem e no Serviço de Inteligência uma necessidade para a segurança pública; porém, a concepção hobbesiana não se esgotaria nessa necessidade imediata de subsistência do Estado moderno: ela seria, com efeito, ensejada por uma fundamentação moral estruturada pelo imperativo de segurança a saúde do povo é lei suprema (salus populi suprema Lex). Ora, a boa visão política dos Estados modernos depende de um bom êxito de seus espiões na coleta de informações sigilosas. Assim, o Leviatã possui um Sistema de Inteligência para decifrar o poder invisível de inimigos do Estado através da coleta de informações e decodificação de códigos secretos, tudo em prol do imperativo de segurança salus populi. O artigo de N. Souki, Da guerra civil de Hobbes às guerras nossas de cada dia (p. 153-167), realiza uma daquelas tarefas que se nos parecem mais pertinentes ao compreendermos a filosofia política hobbesiana: uma vez que se trata de um clássico, seu estudo só ganha sentido se fizermos dos problemas e das respostas de Hobbes nossos problemas e, por que não, nossas respostas. Apesar da pertinente advertência que nos diz que o estudo de Hobbes deve circunscrevê-lo ao seu tempo (um período de guerra civil confessional), não estamos eximidos da tarefa de ler Hobbes como um “barulho de fundo” frente às condições da realidade política atual, partindo do seu conceito de guerra civil: eis a proposta da autora. Se considerarmos, tal como faz Hobbes, a guerra não como um confronto efetivo, mas como uma disposição de entrar em confronto, seremos então, tal como admite Souki, obrigados a reconhecer esse fenômeno na atualidade.

Em suma, Hobbes: Natureza, história e política apresenta ao leitor – desde aquele imerso em pesquisas especializadas sobre o autor àquele que tem dele um conhecimento mínimo – as diversas facetas da filosofia hobbesiana iluminadas por pesquisadores argentinos e brasileiros ao longo dos últimos anos. Desse modo, esse livro não somente representa o diálogo entre as diferentes pesquisas, mas a verdadeira originalidade, complexidade, profundidade exegética e atualidade da filosofia de Thomas Hobbes.

Michael de Souza Cruz – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Militares/ Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Su | Maria Celina D’Araújo

O papel dos militares na política do Brasil e dos demais países da América Latina, ao longo do século XX, é amplamente estudado, embora exista predominância do período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o da Guerra Fria, quando estiveram à frente do poder da maior parte dos países do subcontinente. Conquanto tenham sido um dos principais atores políticos dos países sul-americanos até meados da década de 1980, quando as ditaduras da região começaram a ser substituídas por governos civis, não perderam a grande relevância no cenário político interno e externo dessas nações. No livro “Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul”, Maria Celina D’Araújo1 analisa o papel contemporâneo das forças armadas no Brasil e nos demais países da América do Sul, com foco nas atuações em defesa dos regimes democráticos de direito, nas cooperações militares regionais, nos aspectos hodiernos da corporação. O supramencionado livro é dividido em duas partes principais, que tratam, separadamente, da América do Sul como um conjunto e do Brasil, individualmente, em oito capítulos. Leia Mais

The Politics of Survival: Peirce, Affectivity, and Social Criticism – TROUT (C-RF)

TROUT, Lara. The Politics of Survival: Peirce, Affectivity, and Social Criticism. New York: Fordham University Press, 2010. 362 p. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 157-165, jan/jun. 2011.

Several years ago, at a meeting of the Society for the Advancement of American Philosophy, Guatemalan philosopher Moris Polanco told me that even though he was interested in the thought of all the American pragmatists, he found most interesting the work of John Dewey because of its direct relevance to the sociopolitical questions that are most pressing in Latin America. Though I agreed with the importance of Dewey’s thought to such questions, it seemed to me that Peirce’s thought should not be underestimated in this regard. Even if Peirce did not write much explicitly about sociopolitical issues, and even if Peirce scholarship tended to neglect the potential sociopolitical relevance of his thought, it appeared to me that Peirce’s systematic thought could be fruitfully developed in that direction. Lara Trout’s The Politics of Survival is an outstanding work that develops Peirce’s thought precisely by showing its cogency to philosophical questions of social justice. In this sense, Trout’s seminal contribution should prove important to pragmatist scholars interested in social and political philosophy in Latin America and elsewhere.

Trout interprets and deploys Peirce’s philosophy, first, to explain how it can help us to understand the origins and workings of various forms of social oppression and discrimination and, second, to suggest ways in which such oppression and discrimination may be individually and socially overcome. In terms of social justice, Trout is specifically concerned with showing how nonconscious racism and, to a lesser extent, sexism arise and operate in the United States of America (USA). In other words, she is interested in studying how persons belonging to hegemonic groups, especially white people, in the U.S.A. may act on the basis of discriminatory beliefs to cause social injustice, even in cases when they are well-meaning and unaware of their own biases and prejudices. In the course of studying racism and sexism as specific forms of social injustice, Trout develops a general interpretation of Peirce’s philosophy that, I suggest, may be applied fruitfully to the analysis of other forms of sociopolitical injustice in diverse cultural contexts.

Trout introduces her argument by specifying the main premise of her work, namely, the compatibility between the affective dimensions of Peirce’s philosophy and social criticism. By “social criticism” she means “any type of critique, such as feminism and race theory […], that acknowledges the reality of oppression, as well as the theoretical and practical mechanisms by which oppression can be perpetuated.

I understand social justice to be the ultimate goal of social criticism.” (p. 2). Trout begins to show the compatibility between Peirce’s philosophy and social criticism by emphasizing that social justice – in the form of inclusivity of all reasonable inquirers and their perspectives in the community – is a necessary condition for the Peircean practice of science and that such justice is promoted by agapism and Critical Common-sensism: Taking as its ideal an infinitely inclusive community of inquiry, Peircean science requires social justice. As ideally practiced, it also demonstrates agapic love, whereby it embraces new ideas as sources for on-going growth and self-critique, even and especially when these ideas challenge existing beliefs. It follows, therefore, that the Peircean community of inquiry eschews exclusionary prejudice.

Moreover, Peirce’s epistemological doctrine of Critical Common-sensism (CCS) calls humans to expand self-control over their common-sense beliefs and provides conceptual tools to address gaps that exist between his communal ideal and the concrete realities of heterosexism, racism, sexism, etc., which undermine actual inquiry and growth in flesh-and-blood communities. (p. 3).

Expounding this intricate and mutually supportive relationship between science, agapic love, and Critical Common-sensism in Peirce’s philosophy and developing its implications for social justice becomes the focus of Trout’s analysis throughout the book.

The starting point of her argument is the recognition that human beings begin life as children – uniquely embodied beings immersed in a social, cultural, political, and natural environing reality – and that they can internalize habits and beliefs nonconsciously – that is, without conscious awareness – before they are able to criticize them. This is how nonconscious racism may arise among members of hegemonic groups such as whites, males, or heterosexuals for example. Without criticism of their own habits and their sources, these people tend to understand their own privileges as social norms (p. 4-6). In order to substantiate this view, Trout will offer a proactive reading of Peirce’s texts that foregrounds post-Darwinian embodiment themes and compatibilities with social criticism in his work.

Her definition of “affectivity” in fact highlights the post-Darwinian aspects of Peirce’s philosophy: By “affectivity” I mean the on-going body-minded communication between the human organism and its individual, social, and external environments, for the promotion of survival and growth. This communication is shaped by biological, individual, semiotic, social, and other factors. My treatment of Peircean affectivity includes feelings, emotion, instinct, interest, sympathy, and agapic love, as well as belief, doubt, and habit. (p. 9).

This definition involves Peirce’s understanding of the human person as an animal organism and the corresponding view of cognition and habit-taking as embodied and therefore affective.

Trout introduces five contributions of Peirce’s philosophy to social criticism.

First, Peirce’s phenomenology provides us with conceptual tools to understand how sociopolitical factors are constitutive of a person’s experience (p. 12). Second, his account of human cognition supports the social-critical position that no one can achieve a detached, disembodied, “god’s eye” view of the world (p. 12-13). Third, Peirce articulates the nonconscious influence that our habits can have on our reasoning processes (p. 13). Fourth, Peirce’s arguments to propose that all human beings have the reasoning and intellectual capacities required to grasp regularities in their environments and to form their own aims for conduct goes against the prevalent racist and sexist biases in the Western philosophical cannon regarding who is rational, intelligent, or objective (p. 14). Fifth, Peirce’s evolutionary conception of reason propounds that our belief-habits grow in complexity, and this growth can be steered towards a better understanding of social critical issues (p. 14). In turn, Trout points out that social criticism can make a significant contribution to Peirce’s work by identifying sociopolitical blind spots – nonconscious exclusionary habits through which non-hegemonic groups are oppressed – and by extending its scope: “Social criticism helps Peirce’s philosophy extend its reach by extending its inclusive ideals beyond the borders of an imagination limited by hegemonic viewpoints that are circumscribed by whiteness, maleness, economical security, heterosexuality, and so on” (p. 15).

Throughout the five chapters that follow this introduction, Trout develops these themes thoughtfully and convincingly. She is always careful to ground her assertions in Peirce’s own texts, sometimes by highlighting what Peirce argued explicitly and sometimes by developing his views in ways suggested by and compatible with his own writings.

In chapter one, entitled “Peircean Affectivity,” Trout lays the theoretical groundwork for her analysis of the sources and ways of functioning of nonconscious racism in the U.S.A. She begins by stating Peirce’s view of the human individual: “Peirce viewed the individual human organism as a body-minded, social animal who interacts semiotically with the world outside of her. He had little patience for the Cartesian portrayal of the individual as a disembodied, solipsistic knower with immediate epistemic access to truth.” (p. 25). She restates the definition of affectivity quoted above, and then she proceeds to describe the process of habit-taking, which is one of the processes that promotes organic survival and growth, in affective terms: “Human habit-taking is an affective venture, whereby individuals and groups communicate with their various environments in order to successfully cope and grow, without undue interruptions from environmental factors outside their control.” (p. 27).

Habit-taking is thus an embodied process – it is a way in which body-minded human organisms transact with their environments. Habits are embodied. In particular, habits as body-minded patterns of behavior are embodied as “patterns of nerve-firings” or as “nervous associations” as Peirce sometimes calls them (p. 27).

With this general background laid out, Trout then announces her own topic for inquiry: “The subtle and often unnoticed influences on human belief-habits that stem from two interrelated sources, the unique embodiment of each person and socialshaping.” (p. 29). Trout develops carefully the post-Darwinian theme of embodiment in Peirce’s philosophy and, notably, brings it into dialogue with the contemporary work of neuroscientist Antonio Damasio. For the sake of brevity, however, I will emphasize her treatment of how our habits may be shaped socially. In particular, I will discuss two concepts introduced by Trout, namely, “socio-political secondness” (p. 57-60) and “socialized instinctive beliefs” (p. 63-68).

Regarding the first concept, Trout presents two interrelated definitions. First she defines “social secondness” as “socially dictated environmental resistance” (p. 58).

This is environmental resistance due to “social conventions that are largely outside of one’s control” (p. 58). This definition is based on the category of experience that involves reaction and resistance, and that is usually associated with physical or biological environmental resistance but need not be circumscribed that way, even for Peirce. Second, she defines “socio-political secondness” as “social secondness that is not encountered equally by all members of society […] [but rather] involves constraint that is directed at non-hegemonic groups. It includes prejudice and discrimination based on factors such as economic class, race, sex, sexuality, and so on.” (p. 58).

Trout deploys this concept to explain how Euro-American whites may develop habits of “false universalization” that lead them to deny the reality of racism in the United States. The example is illuminating: People who are Euro American, born and raised in mainstream United States, are often not familiar with the socio-political secondness based on race. This is because mainstream U.S. society remains socio-politically structured to support and promote whiteness. Thus whites often experience an absence of socio-political secondness. This absence promotes habits of false universalization, whereby a Euro American experience – where race is not an obstacle – is conceptualized as the norm, both in mainstream U.S. society and in the belief-habits of white people.

False universalization occurs when a person or group assumes their experience is representative for all of humanity. When false universalization of a Euro American experience occurs, it can be difficult for whites to take seriously the testimony of people of color who report on the socio-political secondness they experience based on their race. Yet to deny the latter’s input regarding racism perpetuates a hegemonic norm that blocks inquiry and obstructs societal growth. (p. 59-60).

I suggest that this concept of “socio-political secondness” is key to be able to extend the range of application of Peirce’s philosophy to social and political problems related to systematic, societal prejudice based on race, sex, sexual orientation, economic class, and so on. It in fact provides a germane way to make Peircean analysis evidently and explicitly relevant to such problems in Latin America, for example.

When people of a specific ethnic or economic background are denied opportunities for education or employment due to social norms or even systematic policies they are experiencing “socio-political secondness”. Peirce’s philosophy provides the conceptual architectonics to be able to analyze in detail how such resistances arise and operate. In turn, understanding those ways of operating is necessary in order to be able to eliminate such resistances with the help of effective, conscious self-control and Critical Common-sensism.

The importance of self-control and Critical Common-sensism to constrain and guide the operation of socially generated habits is evident from Trout’s treatment of the second theme mentioned above, namely, “socialized instinctive beliefs”. She expounds Peirce’s use of the term “instinct” which “can be broadly construed to reflect both in-born habits, as well as socialized ones” (p. 63). Instincts are belief-habits that may be either naturally in-born or socially acquired, especially in childhood.

Trout then shows how a discussion of socialized belief-habits is implicit in Peirce’s discussion of the method of authority in “The Fixation of Belief”. Taking her cue directly from Peirce, Trout proposes the following: “Extrapolating socio-politically, I include in the category of ‘socialized instinctive beliefs’ ideas about race, sex, and other socio-political classifications. Socialized instinctive beliefs are included in one’s common-sense or background beliefs.” (p. 65). As a result, Instinctive beliefs not only take on common-sense certainty, they also often function non-consciously, that is, without one’s conscious awareness […] [I]instinctive beliefs promoting racism, sexism, and other social ills can function without the conscious awareness of those acting on them. At the same time, instinctive beliefs – at least in some cases – can be raised to conscious attention and scrutiny, which is an exercise of self-control undertaken by Critical Common-sensists. (p. 65-66).

This is why Critical Common-sensism, which brings logical self-control to bear on background instinctive beliefs, is crucial for the detection and elimination of pernicious social habits of prejudice and exclusion. This conclusion presupposes Trout’s discussion of “self-control” (p. 36-37) and the conditions of sympathy and agapic love for the detection of prejudice and elimination of habit to be possible through self-control (p. 37-38). Trout’s key insight is that self-control is both purposeful and inhibitory. Self-control enables people to have loving purposes that promote social justice. Sympathy and agape aid the inhibitory function of self-control by keeping us from rejecting testimony and remaining open to conversation concerning prejudice and oppression out of agapic regard for others.

Having laid out this groundwork on Peircean affectivity, in chapter two on “The Affectivity of Cognition”, Trout focuses on the embodied, affective nature of cognition as developed by Peirce in his Journal of Speculative Philosophy “Cognition Series” of the 1860s. Trout focuses on showing how, according to Peirce, human cognition is shaped at once by individual and social factors. Taking account of the epistemological relationship between the individual and the community is crucial to understanding human cognition. On the one hand, the individual must rely on the wider epistemological perspective that her community affords her in order to foster her own survival and growth. On the other hand, the individual can be a source of insight and discovery when the community holds false beliefs or when communal inquiry is mired and growth in knowledge is threatened. While most of the emphasis in the “Cognition Series” is on the former relationship of individual dependence, Peirce does hint at the latter relationship of “maverick” individuality that will be developed later, in the series of “Illustrations of the Logic of Science” (p. 69-70).

Trout’s central thesis in this chapter is that feelings, as cognitions, result from both individual and social influences – such as unique embodiment and communal education – and may become habits that function nonconsciously at the level of instinct or common-sense, sometimes in the form of prejudicial beliefs (p. 72). Throughout the chapter she develops a detailed, carefully argued elaboration of this thesis – both individual and social factors shape the belief-habits that become part of a human organism’s instinctive common-sense. Our individual embodiment, and the affective dimension of cognition that it involves, is crucial to our cognitive, epistemic development.

And we are especially vulnerable to the influence of social factors during child-development because we are dependent on our caretakers, their authority and trustworthy testimony, for survival. Both of these dimensions of development shape the politics of child development and habit-taking then.

Trout’s discussion of socialized affectivity and habit formation in relation to the politics of child development is noteworthy (p. 103-127). She argues that, for Peirce, to be logical, an individual must adopt a social perspective. Fixing beliefs and forming habits on the basis of strictly individual experience and perspective most likely leads to false beliefs and ineffective habits. Thus, logicality – the drive for adopting true, probable, or plausible belief – requires adopting a social/communal perspective, based on the wealth of collective experience and evidence. In the case of human organisms, survival itself requires adopting a social perspective. Children, in particular, depend on the guidance and testimony of caretakers for survival. Thus they must accept that guidance as they begin to adopt beliefs and form habits. The problem is that communal influence can shape both habits that foster and habits that inhibit growth. And children are too vulnerable to adopt a critical stance. This is how socialized, growth-inhibiting habits can arise and be incorporated at the level of instinct and common-sense so as to operate non-consciously and without criticism later in life. Racist and prejudicial habits can arise in this way. This creates a “coercive survival dilemma”, namely, that children must trust the testimony of their adult caretakers to survive, but this testimony may instill in them growth-inhibiting beliefs such as prejudices based on race, ethnicity, and gender.

However, Trout finds a “Seed of Hope” or rather, two seeds, in Peirce’s thought (p. 124-127). The first is that insightful, resilient individuals can develop critical perspectives on their own habits and the habits of the community. The second is that the method of science for the fixation of belief can prevent the communal formation of growth-inhibiting habits in the first place.

Thus in chapter three, “The Affectivity of Inquiry,” she moves to discuss the method of science as presented by Peirce in his “Illustrations of the Logic of Science Series” published in the Popular Science Monthly in 1877-78. She begins by emphasizing two aspects of Peirce’s method of science. First, Peirce presents a robust individual inquirer who is able to challenge her authoritative, hegemonic community’s beliefs. Second, Peirce presents the method of science as the preferred method for the fixation of communal beliefs (p. 128). A balanced relationship between the insightful, creative individual inquirer who challenges communal opinion and the community’s commitment to settle belief publicly is necessary for the successful application of the method of science.

The most insightful aspect of Trout’s discussion of Peirce’s method of science, however, consists in her pointing out some potential problems for the application of the method that Peirce leaves unaddressed in the “Illustrations” series. Trout conjoins the concept of “socio-political secondness” with that of “false universalization” to demonstrate that “hegemonically exclusionary accounts of reality result in societal-level exclusionary habits, which can be internalized conceptually by individual community members, such that the very concepts by which individuals think about their world can reflect hegemonic, exclusionary habits” (p. 129). This leads to a description of “socio-politically biased conceptualization” as follows: Socio-politically biased conceptualization occurs, for example, when the experience of a hegemonic group or groups (such as whites, men, the economically secure, etc.) becomes internalized as the falsely universalized concept of “human experience.” A byproduct of this exclusionary conceptual internalization, which can function non-consciously or instinctively, is the perception that non-hegemonic perspectives (voiced by people of color, women, the poor, etc.) are problematic conceptually, that is, crazy, over-reactive, off-base, or simply irrelevant. This can lead to the dismissal of non-hegemonic perspectives. (p. 129).

For example, a member of a racial minority who denounces prejudiced treatment may be dismis,sed as over-reactive or resentful by white people who sincerely believe that racism is over in the USA. Trout then explains how in the “Illustrations” Peirce leaves unaddressed the problem of how background “common-sensical” beliefs can operate nonconsciously to influence and bias the application of the method of science for settling communal belief (p. 129).

This leads to what Trout calls the “application problem” of the method of science (p. 146-149). When exclusionary, prejudicial, growth-inhibiting belief-habits are internalized nonconsciously by members of the community in positions of power, such beliefs become part of their internalized common-sense. As a result, even when people consciously pursue the method of science, they may discount or disregard, for the articulation of reality, the testimony or experience of oppressed people in the community. These prejudicial belief-habits, therefore, may thwart the application of the method of science, since crucial data –testimonies and experiences – are ignored.

Trout discusses the example of “craniology,” a pseudo-science that purported to demonstrate the superiority of the white race (p. 147-149).

In the “Illustrations” Peirce only hints at, but does not develop, the solution to the application problem. The solution is two-fold. First, it involves the model of agapic evolution, and especially, the agapic sympathy that individual community members offer to each other, in order to validate and respond to the testimony and unjust experiences of oppressed people. Accordingly, in chapter four, Trout discusses the Monist “Cosmology Series” and association writings of the 1890s. Second, the solution involves the active work of Critical Common-sensism to detect, criticize, and transform growth-inhibiting and exclusionary habits. Accordingly, in chapter five, Trout discusses Peirce’s doctrine of Critical Common-sensism of the 1900s.

In “The Law of Mind, Association, and Sympathy” (chapter four), Trout develops the idea that individual experience – via association by contiguity – and creativity – via association by resemblance – are a potential source of insight, novelty, and growth for the community; therefore, agapic love is the ideal that the community should seek in its relationship to its individual members, especially to insightful, creative ones who may resist communal habits and who may belong to non-hegemonic groups.

However, applying the agapic ideal in actual communities can be undermined by the functioning of nonconscious exclusionary background beliefs.

Trout defines sympathy as “the term Peirce uses to describe the law of mind as it functions in human communities” (p. 195). She distinguishes between two forms of sympathy, agapic and non-agapic. Regarding agapic sympathy she writes, “In its ideal agapic form, sympathy embraces as sources of growth the creative bursts of spontaneity that arise within the existing habit systems of a community.” (p. 195).

However, “Sympathy can also play out non-agapically, excluding opportunities for growth by rejecting new elements that arise from existing habits.” (p. 195). An example of exclusionary sympathy may be patriotism – patriotic citizens may love their country in a way that rejects any fair criticism of it and ostracizes the critics.

The resulting thesis is that nonconscious exclusionary sympathy can curtail the possibility of communal growth through agapic sympathy by undermining the perspectives of non-hegemonic groups or individuals who deviate from or challenge communal norms (p. 195-196). To substantiate her thesis, Trout describes the “motion of agape” as circular, involving two movements: “First, a creative projection of newness, and second, an embracing and stabilizing of this spontaneous novelty. When human sympathy is agapic, it completes the circle by allowing for both movements.” (p. 203). The creative projection can consist in the experiential feedback of creative or insightful individuals to the community about its habits. The embracing would then consist in evaluating this feedback with an attitude of care and concern for the individual, and revising or transforming communal habits or norms if necessary.

The second motion, however, is thwarted by exclusionary sympathy (p. 206-207).

This dynamic leads to a problem regarding the agapic ideal that is analogous to the application problem regarding the scientific method, namely, that nonconscious exclusionary belief-habits can curtail growth through the agapic ideal. This can happen even to individuals who think themselves to embrace the agapic ideal and to be anti-racist or anti-sexist (p. 222).

The critical evaluation of common-sense, therefore, is crucial to overcome the threat of nonconscious exclusionary beliefs. Thus, in “Critical Common-sensism, 1900s” (chapter five), Trout defends the following thesis: Critical Common-sensism (CCS) is an epistemological doctrine that calls for a critical examination of the common-sense beliefs that underwrite human cognition.

It is thus uniquely suited to address social critical concerns about discriminatory beliefs that can become ingrained within one’s background beliefs without her or his awareness. The self-controlled scrutiny of background/common-sense beliefs called for by Critical Common-sensism provides the missing piece in terms of the application problem faced by both the scientific method and the agapic ideal. (p. 229).

Trout is indeed preparing the ground for the ultimate upshot of her entire analysis, which is worth quoting at length: [W]hen Critical Common-sensism is ideally applied, it does not leave scientific and agapic ideals behind. Rather the strands of science, agape, and Critical Commonsensism weave into a tapestry of loving reasonableness, where the embrace of diverse perspectives promotes growth in knowledge and self-control. Thus Critical Common-sensism provides those in hegemonic groups with consciousness-raising tools that can help them address their blind spots towards discrimination faced by those in non-hegemonic groups. Scientific method and agape provide the epistemological and loving motivation to put this awareness into practice by resisting exclusionary instinctive beliefs despite how strong their influence can be. (p. 229-230).

The core of the argument is the following. Critical common-sensism, when working in unison with the method of science for the fixation of beliefs and with agapic love in human transaction, promotes the growth of the summum bonum, namely, loving reasonableness. In particular, the rigorous application of critical common-sensism for the identification and eradication of discriminatory, prejudicial instinctive beliefs solves the application problem that threatens both science as the guide to knowledge and truth and agapic sympathy as the guide to human transaction.

Recall that the problem consists in the threat that nonconscious discriminatory, prejudicial beliefs pose to the application of the method of science and the functioning of agapic sympathy in human communities. Critical common-sensism – through its tools of logical analysis, experience, experimentation in imagination, and testimony – addresses the problem by identifying and eradicating such threatening discriminatory biases. In order to do its work, Critical Common-sensism requires the cultivation of legitimate, critical doubt. This doubt is to be distinguished from Cartesian paper-doubt by the fact that it not only identifies dubitable belief-habits but also works consciously to transform or eliminate them as embodied, affective habits. That is, while paper-doubting is to act as if beliefs were merely contents of a mind separated from the body and is therefore to delude oneself by thinking that merely to doubt a belief-habit is enough to eliminate its effective influence over one’s actions, critical common-sensist doubting acknowledges that belief-habits are embodied and affective and that therefore especial critical effort is necessary to change or eliminate them.

In the kinds of sociopolitical contexts that Trout analyzes, critical commonsensist doubt takes the form of the “non-hegemonic hypothesis” to the effect that (a) when an oppressed individual or group claims that they are experiencing discrimination, their testimony and experiences ought to be a matter of agapic concern and (b) their claims deserve investigation by the communal application of the method of science. The cultivation of this form of doubt requires self-control. The cultivation of this “non-hegemonic hypothesis,” as supported by Peirce’s entire system of philosophy, is our main starting point for redressing some prevalent, though often nonconscious, forms of social injustice.

In her “Conclusion,” Trout first summarizes her central argument and, second, proposes a way to promote awareness and to address discriminatory belief-habits in contemporary US society, specifically in the context of elementary school education.

Trout closes her book in fallibilistic spirit, acknowledging further work to be done and reaffirming her deliberate choice of developmental telos, namely, Peirce’s ideal of “giving a hand toward rendering the world more reasonable” (p. 283).

Overall, the upshot of Trout’s analysis is that the coordinated, mutually supportive relationship between the method of science, agapic love, and Critical Commonsensism provides the way to overcome forms of social injustice that are brought about by nonconscious, hegemonic, prejudicial belief-habits in a community. She discusses some specific forms of social injustice in the USA, but her analysis provides a model to extend the application of Peirce’s philosophy to understand other forms in social injustice in a variety of cultural and historical contexts, including Latin American ones.

Daniel G. Campos – Department of Philosophy Brooklyn College — City University of New York/ USA. E-mail: [email protected]

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A Marinha Brasileira na era dos encouraçados/ 1895-1910. Tecnologia/ Forças Armadas e política | João Roberto Martins Filho

Até o outono da marinha veleira o Brasil podia ser considerado uma potência naval. O arsenal da Marinha e outros armadores empregavam madeiras e saberes há muito disponíveis para construir e manter grande variedade de navios. O avanço da Revolução Industrial trouxe o vapor e as estruturas metálicas; já a Revolta da Armada, no início da República, destroçou boa parte da Marinha brasileira, de modo que o seu poder naval no final do século XIX tornou-se uma sombra do que fora cinquenta anos antes. O livro do João Roberto Martins Filho investiga os caminhos, motivações e implicações do processo de modernização naval brasileiro, que, em meio à febre tecnológica dos encouraçados, procurou reposicionar a Marinha brasileira entre as potências mundiais. Leia Mais

Advinhas do tempo: êxtase e revolução – MATOS (ARF)

MATOS, Olegária Chain Féres. Advinhas do tempo: êxtase e revolução. São Paulo: Hucitec, 2006. 128p. Resenha de: MAGALHÃES, Rogério Silva de. Argumentos – Revista de Filosofia, n.6, p.165-167, 2011.

Acesso permitido apenas pela publicação original

 

 

 

 

Monuments, Empires, and Resistance: The Araucanian Polity and Ritual Narratives – DILLEHAY (C-RAC)

DILLEHAY, Tom D. Monuments, Empires, and Resistance: The Araucanian Polity and Ritual Narratives. Nueva York: Cambridge University Press, 2007. 484P. Resenha de: Chungara – Revista de Antropología Chilena, Arica, v.42 n.2, p.539-540, dic. 2010.

Este libro ofrece una nueva mirada sobre la organización sociopolítica y religiosa de los Araucanos en la región central sur de Chile entre 1550 y 1850, a través del análisis arqueológico de paisajes sagrados, fuentes etnohistóricas y las narrativas rituales de chamanes (machi) contemporáneos. Dillehay aborda los amplios contextos regionales, intelectuales y materiales del monumentalismo araucano desde diferentes ángulos, incluyendo la economía política, la historia cultural, el materialismo cultural, la ideología, la teoría de la práctica, el simbolismo y el significado. Los montículos de tierra ceremoniales (kuel) son monumentos estéticos, líneas temporales, monumentos conmemorativos, identidades e ideologías arquitectónicas. Ilustran cómo se desarrollaron los paisajes sociales como parte de una nueva organización política, muestran cómo los líderes políticos tradicionales y los chamanes sacerdotales habitaban espacios sagrados y cómo les conferían valor a estos espacios para articular sistemas ideológicos dentro de la sociedad en general. El mapa araucano de rutas y lugares sagrados conecta los kuel con el mundo espiritual, cosmológico y natural así como con la historia de estos lugares en un recorrido topográfico sagrado. La articulación del poder ritual, social y del conocimiento era, por lo tanto, esencial para la construcción y expansión de la organización política regional araucana. Esta organización resistió eficazmente el avance extranjero durante tres siglos -primero de los españoles y luego de los chilenos-, hasta su derrota definitiva en 1884. Dillehay demuestra cómo los Araucanos manipulaban los conceptos de espacio, tiempo, memoria y pertenencia para oponerse a los intrusos y expandir su poder geopo-lítico en una organización política unificada, a medida que cambiaban las relaciones interétnicas a lo largo de la frontera española.

Dillehay cuestiona las percepciones anteriores de los Araucanos como grupos patrilineales descentralizados de cazadores y recolectores enfrentados unos con otros. Muestra que los valles de Purén y Lumaco utilizaron modelos andinos de autoridad estatal y su propio esquema cosmológico para desarrollar una organización política agrícola regional compuesta por patrilinajes dinásticos confederados con un alto grado de complejidad social y poder político. Esta confederación de organizaciones geopolíticas cada vez más amplias se constituyó en primera instancia en el nivel local de multipatrilinaje (ayllarehue) y, finalmente, en el nivel interregional (butanmapu). Dillehay sostiene que la organización política era jerárquica, aunque al servicio de un sistema religioso y sociopolítico heterárquico horizontal en el que los líderes compartían posiciones de poder y autoridad. Dillehay cuestiona la idea de que el control político esté ligado a la acumulación de riqueza material y poder ritual. Los Araucanos apreciaban y rivalizaban en gran medida por el prestigio y el respeto y el control del pueblo, pero existían muy pocas diferencias materiales entre los distintos líderes araucanos hasta fines del siglo XVIII. El período de uso del kuel dependía de la capacidad de liderazgo y de la sucesión de linajes dinásticos. Hoy en día las alianzas entre los kuel establecidas a través del matrimonio y su distribución en los valles de Purén y Lumaco emulan la organización espacial y de parentesco de los linajes que habitan el valle.

Los montículos interactivos de aspecto humano construidos por los Araucanos entre 1500 y 1850 requerían rituales para apaciguar, ofrendas de chicha y sangre de oveja, y obediencia a la ideología panaraucana a cambio de bienestar, protección, fertilidad agrícola y predicciones futuras. Los montículos, volcanes y montañas son equivalentes conceptuales y están asociados con las necesidades araucanas de defensa, territorio, refugio, contención e identidad relacional con volcanes y espíritus ancestrales. Los kuel son parientes vivos que unen a los Araucanos de diferentes regiones y promueven la soberanía étnica. Los kuel eran enterratorios de chamanes y jefes, monumentos conmemorativos de ancestros y genealogía, señales de estatus para líderes de linaje y lugares de ceremonias, festividades y poder político. Los sacerdotes chamanes (machi) realizaban rituales colectivos en los kuel para obtener consuelo, curación y bienestar. Los líderes políticos y militares (Ulmén, longko toqui) utilizaban los kuel para sus discursos políticos. Estas performancias públicas reorganizaban los conceptos araucanos de culto a los ancestros, religión e ideología comunitarios en un marco más amplio y complejo para brindar apoyo a la organización política, y servían para reclutar mano de obra y soldados.

Si bien con Dillehay hemos documentado anteriormente y en forma independiente la práctica de los chamanes sacerdotales araucanos en los valles centrales del sur de Chile en el siglo XVII y en contextos contemporáneos, este libro es el primero en vincular las prácticas rituales sacerdotales de las machi con los montículos sagrados. El libro detalla cómo las machi contemporáneas se comunican con los montículos a través de ñauchi (alfabetización de montículos) y ofician de mediadores entre el montículo, la comunidad y otras deidades y espíritus. Los montículos son espíritus parientes que interactúan con machi contemporáneos, lugares de conocimiento donde las comunidades recuerdan su historia y expresiones materiales de la cosmología araucana. Los Araucanos contemporáneos de los valles de Purén y Lumaco continúan utilizando montículos para mantener relaciones entre pratilinajes y entre los vivos y muertos, el pasado, el presente y el futuro. Queda por ver el rol que los montículos y sus marcos sociopolíticos desempeñan en los movimientos contemporáneos de resistencia panaraucana.

Monuments, Empires and Resistance es un texto importante para arqueólogos y antropólogos interesados en los procesos demográficos, ideológicos y sociopolíticos asociados con el monumentalismo.

Ana Mariella Bacigalupo – State University of New York En Buffalo, USA. E-mail: [email protected]

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Hermeneutics, Politics and History of Religions | Christian Wedemeyer e Wendy Doniger

Assim como na área da Sociologia, da Arquitetura, da Economia e da Crítica Literária, pode-se dizer que existe uma “Escola de Chicago”, no estudo da história das religiões. Seus fundadores foram exilados europeus que trabalharam e permaneceram nos Estados Unidos até o final de suas vidas.

O primeiro deles, o alemão Joachim Wach, é pouco conhecido no Brasil, tendo sido publicada aqui apenas sua obra de Sociologia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1990. O segundo, o romeno Mircea Eliade, foi um escritor profícuo, com suas obras editadas por várias editoras do país. Ambos possuem histórias bem distintas, peso acadêmico diferente, o que se reflete, inclusive, na organização do livro em apreço, são duas partes dedicadas a Eliade e uma para Wach. A importância do legado deixado por esses pesquisadores é enfatizado pelos dezesseis autores reunidos, mas a principal contribuição é a avaliação crítica feita através de diversos ângulos e perspectivas. Leia Mais

A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel – NUNES (RFA)

NUNES, Edison. A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel. São Paulo: EDUC, 2008. Resenha de: VALVERDE, Antonio José Romera. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.22, n.30, p.299-302, jan./jun, 2010.

Se, como escreveu Otto Maria Carpeaux, “a bibliografia moderna sobre Maquiavel é imensa; menos em língua portuguesa”, com a publicação de A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel, de Edison Nunes, há que se rever a métrica de tal constatação, sobremaneira pela excelência da reflexão expressa acerca da densa obra do Secretário Florentino.

A originalidade é percebida desde a dedicatória, in memoriam, a Lorenzo di Piero de’ Medici, Clemente Settimo, Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai – respectivamente, ao príncipe ao qual Maquiavel dedicou Il Principe, ao papa que encomendou as Istorie Fiorentine, e aos amigos do Orti Oricellari, locus dos debates filosóficos políticos, que animaram a escrita dos sumarentos Discorsi sopra la prima Deca di Tito Lívio.

Objeto de tese doutoral, o livro de Nunes é resultante do trabalho árduo de fino pesquisador e de hábil escritor a suplantar conhecidos truísmos acerca da escrita e do estilo linguístico do Cidadão Florentino. O autor exerce o duro ofício de estudar Maquiavel e perspectivá-lo – desde a retórica e a ética até a ação política. O que não é tarefa para neófito, pois implica parcimônia e destreza metodológicas para vencer o ardil da construção maquiaveliana, que se movimenta de forma ora disjuntiva ora dilemática, às margens do contraditório, sob uma forma de raciocínio distinta da lógica estreita das deduções previsíveis, além de acertar contas filosóficas com o passado e a projetar o futuro da ciência política moderna, no movimento de acompanhar a teoria e a prática do dinamismo próprio do objeto de pesquisa: a política num tempo de criação, o tempo instaurador do Renascimento, sob o arco do Humanismo Cívico.

Grande parte da originalidade do livro em pauta reside na explicitação crítica da incorporação da retórica de talhe aristotélico, e pela recomposição da trama e da urdidura da extensa obra maquiaveliana, nos nexos entre retórica e conhecimento. A retórica como eloquência, como queriam os humanistas cívicos florentinos, considerada uma das ideias-força a mobilizar, desde Petrarca, o reconhecimento de que tal instituição era necessária para dar expressão às novas concepções e ações políticas surgidas nas cidades ao norte da Itália, do século XII e seguintes, como registrou Otto de Freising. As cidades redivivas ansiavam por autonomia em relação ao Império e à Igreja, autogoverno, retomada do regime político republicano e liberdade cívica. Porém, se Petrarca, na aurora do Humanismo Cívico Florentino, como querem Hans Baron e Eugenio Garin, principiou por criticar a dureza da retórica de Aristóteles, pois este “falava” mal, o resgate dos antigos romanos pelo “falar” bem, contra a dureza técnica do Estagirita, significou retomar, exemplarmente, Cícero, filósofo e político, e, por conseguinte, o entrelaçar das concepções de vita contemplativa e de vita activa, sob nova conjugação política. E para os humanistas cívicos, a segunda sempre tendeu a ser mais relevante. Nunes destaca a antecedência dessa discussão política, no encontro dos tempos, pelas recorrências constantes a Dante. No mesmo passo em que a política é analisada sob o viés trágico.

Se o sugestivo título da obra alude a um conhecido tango, o ritmo da exposição dos argumentos, à contra luz do que se escreveu criticamente sobre Maquiavel – sem milongas –, nada deixa a desejar. Lançando mão de metáfora orgânica, o autor ilumina o que a primeira parte do título sugere, mesmo não tendo sido escrita para este fim: “A figura resultante é a de uma árvore que, a partir do tronco, desse a ver apenas a um de seus galhos e, deste, um ramo que se desdobra novamente apenas para fazer surgir o único fruto visado; o restante permanece lá, somente que encoberto, como fundo” (NUNES, 2008, p.139) – felicíssima imagem.

Dividido em três capítulos amalgamados entre si, “A política e a condição humana”, “Conhecimento e retórica: os modos da verdade” e “Ação, responsabilidade e ética”, a matizar os meandros sinuosos e caleidoscópicos do pensamento ético político do Florentino. Algumas concepções de tempo, fortuna, os conflitos de humores dos grandes e do povo, as fontes e os modos de conhecimento da política, o lugar da retórica, os fins éticos da ação política, os nexos e os estranhamentos entre lei natural e virtude de talhe civil, a ação política e o espelhamento da responsabilidade, são temas recorrentes analisados ao correr da refinada análise.

O anêmico pensamento político brasileiro – se deveras existe, como inquiriu Raymundo Faoro – aditou muito com a edição deste livro original, esclarecedor sob muitos aspectos e traspassado de erudição. Em especial, o universo acadêmico, quase sempre em compasso de espera dos modismos europeus e norte-americanos. Se os ideólogos da política brasileira do passado, como Tavares Bastos, com pretensões difusas a certa envergadura liberal, não enfrentaram nem assimilaram, no detalhe, o pensamento de Maquiavel, os pesquisadores acadêmicos, durante grande parte do século passado, andaram a reboque de tal pensamento político e só recentemente principiaram por encará-lo por sua altura intelectual e inventividade. Praticamente, só foi possível ler Maquiavel, sem as peias da fortuna crítica, a pendular entre maquiavelismo e antimaquiavelismo, desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Não que não fosse possível lê-lo e assimilá-lo, anteriormente. Mas lê-lo pela obra em si, sem apropriações indébitas e incompreensões, fruto de prejulgamentos, é fenômeno acadêmico dos últimos 50 anos. Neste ponto, a obra de Nunes é modelar, sobremaneira pela correta assimilação da tradição crítica e síntese para além dela, a remeter o leitor aos escritos exemplares de Claude Lefort e de Gennaro Sasso. Sem descuidar das assertivas maquiavelianas compostas entre si “con una lunga sperienza delle cose moderne ed una continua lezione delle antiche avendo io con gran diligenzia lungamente excogitate et examinate, et ora in uno piccolo volume ridotte…”, recolhida de Il Principe (“Nicolaus Machiavellus magnifico Laurentio Medici iuniori salutem”. MACHIAVELLI, 1999, p.107-108), e ainda “perché in quello io ho espresso quanto io so e quanto io ho imparato per una lunga pratica e continua lezione, delle cose del mondo” (Nicolló Machiavelli a Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai Saluete. MACHIAVELLI, 1994, p.101), dos Discorsi.

À página final de A Política à meia luz, há uma passagem acerca do primeiro epitáfio ensaiado pelos amigos de Maquiavel: “movido pelo amor, sujou muita neve”. Cumpre lembrar o epitáfio da lápide de seu túmulo na Igreja Santa Croce, escrito a pedido da esposa, ao lado de outros homens ilustres de Florença: “Tanto nomini nullum par elogium”.

Referência

MACHIAVELLI, n.Il Principe e altre opere politiche. Milano: Garzanti, 1994.

————-. Opere. Tomo I. A cura de Rinaldo Rinaldi. Torino: UTET, 1999.

Antonio José Romera Valverde – Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP-FGV, São Paulo, SP – Brasil. E–mail: [email protected]

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[DR]

 

Política, cultura e classe na Revolução Francesa | Lynn Hunt

Originalmente lançado em 1984, mas publicado no Brasil apenas em 2007, o estudo da historiadora norte-americana Lynn Hunt intitulado Política, cultura e classe na Revolução Francesa oferece não apenas pertinentes contribuições ao exame de um dos eventos mais estudados da história mundial, como também apresenta uma original abordagem da política, vista de maneira indissociável das práticas culturais e sociais.

Quando Hunt começou a pesquisa que daria origem ao livro, esperava demonstrar a validade da interpretação marxista, ou seja, de que a Revolução Francesa teria sido liderada pela burguesia (comerciantes e manufatores). Os críticos dessa visão (chamados de “revisionistas”), afirmavam, ao contrário, que a Revolução havia sido liderada por advogados e altos funcionários públicos. Procedendo a um minucioso levantamento de dados sobre a composição social dos revolucionários e suas regiões de origem, Hunt esperava encontrar maior apoio à Revolução nas regiões francesas mais industrializadas. Contudo, ela constatou que as regiões que mais industrializavam não foram consistentemente revolucionárias, e havendo de ser buscados outros fatores para tais comportamentos como os conflitos políticos locais, as redes sociais locais e as influências dos intermediários de poder regionais. “Em suma, as identidades políticas não dependeram apenas da posição social; tiveram componentes culturais importantes” (HUNT, 2007:10). Leia Mais

Espaço e política – LEFEBVRE (BGG)

LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008, 192 p. Resenha de: MONDARDO, Marcos Leandro. Boletim Goiano de Geografia. Goiânia, v. 30, n. 1, jan./jun. 2010.

Espaço e política é um livro que reúne uma coletânea de artigos do filósofo Henri Lefebvre originalmente publicados em 1972 na França,1 contendo uma seminal análise e discussão “teórica” a respeito da produção do espaço e, notadamente, sobre o espaço urbano e a cidade. O autor propõe a elaboração de uma teoria sobre a problemática do espaço (teoria, aliás, que viria desenvolver mais a fundo em livro posterior),2 na qual busca desenvolver uma análise da totalidade dos elementos que produzem o espaço a partir da teoria marxista.

O livro contém sete artigos, dentre os quais podemos agrupar as discussões em duas perspectivas (não diacrônicas, mas sincrônicas) da teoria/problemática da espacialidade.

Na primeira parte do livro, percebe-se que os três primeiros artigos – “O espaço”, “Reflexões sobre a política do espaço” e “A cidade o urbano” – apresentam uma discussão mais “teórica”, do ponto de vista da conceituação do espaço mediante a construção de hipóteses sobre a “produção do espaço”, de sua definição e conceituação. Concebe, então, uma reflexão filosófica acerca da “reprodução das relações sociais de produção, em sentido amplo, por meio da construção do espaço urbano e da cidade na sua forma-conteúdo material e vivida. Assim, para o autor, produção significa também e sobretudo criação. Criação de obras (tempos e espaços incluídos) pelos e para os homens nas e pelas quais possam realizar e reconhecer a trajetória da formação do ser humano.

Na segunda parte estão concentrados os quatro últimos artigos: “Engels e a utopia”, “As instituições da sociedade pós-tecnológica”, “A burguesia e o espaço”, “A classe operária e o espaço”, em que o autor faz uma análise das “variáveis” que produzem o espaço, como as instituições, a burguesia, as classes e a utopia, cada qual com suas relações, conflitos, lutas e contradições.

Para Lefebvre, houve transformações na maneira como a cidade foi produzida na sociedade tradicional e como passou a ser construída na sociedade capitalista. Nessa última, segundo o autor, passa-se da produção das coisas no espaço à produção do espaço planetário. Avança-se da consideração clássica dos lugares de implantação industrial para o espaço inteiro, ou seja, ocorre uma mutação, pois o espaço (e não as coisas no espaço) é que passa a ser produzido, agora, em escala planetária, sendo por isso a mais-valia o motor dessa relação social mundial.

Lefebvre menciona que existem vários métodos e abordagens no que concerne ao espaço, e isso em diferentes níveis de reflexão, de recorte da realidade. Para ele, por exemplo, pode-se estudar o espaço percebido, isto é, aquele da percepção comum à escala do indivíduo e de seu grupo, a família, a vizinhança, aí compreendendo o que se chama de ambiente.

Uma das hipóteses levantadas é aquela que concebe o espaço como resultado do trabalho e da divisão do trabalho, pois ele é o lugar geral dos objetos produzidos, o conjunto das coisas que o ocupam e de seus subconjuntos, efetuado, objetivado, sendo portanto funcional de acordo com um conjunto ou setor de atividade. O espaço é, amiúde, o objetivo, ou melhor, a objetivação do social, das relações que a sociedade materializa a partir de uma intencionalidade.

Por isso, para o autor, o espaço tornou-se instrumental. Lugar e meio onde se desenvolvem estratégias, onde elas se enfrentam, o espaço deixou de ser neutro, geográfica e geometricamente, há muito tempo. Logo, o espaço não é neutro e nem inofensivo; pelo contrário, está – como considera Lefebvre – sendo cada vez mais instrumentalizado, ganhando novas formas, conteúdos e significados para se tornar estratégico, dotado de intencionalidades para ser utilizado como meio para se atingir a “dominação”. O espaço produzido é, portanto, o espaço projetado.

Em outra hipótese, o autor afirma que o espaço é significante, e comporta significados que são dotados de experiências e sentidos que produzem/influenciam nossos comportamentos. Trata-se daquilo que Lefebvre chama de espaço vivido, vinculado à prática social. Esse espaço vivido, também chamado pelo autor de mental, gera o espaço social que está relacionado às estratégias desenvolvidas na cidade. Dessa forma, hoje, o mental e o social se reencontram na prática: no espaço concebido e vivido. Demonstra, assim, a relação dialética entre o espaço mental (percebido, concebido, representado) e o espaço social (construído, produzido,  projetado). A produção do espaço concebe o espaço racional-funcional- -instrumental e o espaço vivido-concebido-mental.3 Há, portanto, uma intersecção entre o espaço da representação e a representação do espaço. O espaço, por isso, é ao mesmo tempo ideológico (porque político) e dotado de saber (pois comporta representações elaboradas)”.

4 Pode-se, consequentemente, denominá-lo racional-funcional, sem que tais termos possam separar-se, e funcional-instrumental, pois a função, no quadro global da sociedade “neocapitalista”, implica o projeto, a estratégia. Isso demonstra a capacidade que tem o espaço de ser racional- -funcional através da “representação do espaço”, e funcional-instrumental por ser o “espaço da representação”. Existe, em níveis diferentes, um amálgama na produção do espaço entre o espaço da representação e a representação do espaço, no desenvolvimento cada vez mais complexo das relações capitalistas alastradas na espacialidade.

Desse modo, a produção do espaço urbano perpassa pelo cotidiano dos sujeitos que são e produzem o espaço urbano. O cotidiano é elemento fundamental na construção das cidades e nas formas idiossincráticas de produção do espaço urbano, como considera também Carlos (2004). Corrêa (1995, p. 26), por sua vez, afirma que “O espaço é concebido como locus da reprodução das relações sociais de produção, isto é, reprodução da sociedade”, pois, como afirma Lefebvre(1999a, p. 39), “Quem diz ‘produção’ diz também ‘reprodução’, ao mesmo tempo, física e social: reprodução de um modo de vida”. Ou seja, como material, se (re)produz também um modo de vida, que comporta ideias, sonhos, desejos…

O espaço, então, para Lefebvre, não seria nem um ponto de partida – ao mesmo tempo mental e social, como na hipótese filosófica – nem um ponto de chegada – um produto social ou o lugar dos produtos – mas, e, sobretudo, “um intermediário em todos os sentidos desse termo, ou seja, um modo e um instrumento, um meio e uma mediação” [grifos nossos] (Lefebvre, 2008, p.44). Nessa hipótese, o autor considera que o espaço é um instrumento político intencionalmente manipulado, sendo, por isso, um meio nas mãos de “alguém”, grupo, classe, indivíduo, isto é, de um poder (por exemplo, Estado, Igreja), de uma classe dominante (comerciantes, imobiliários, industriais) ou de um grupo político que tanto pode representar a “sociedade” de um município, Estado ou o Mundo, quanto ter seus próprios objetivos, por exemplo.

Como mediação, um espaço pode se tornar instrumental e tanto permitir impor uma aparente e manifesta coesão (pela “violência”), quanto mascarar as contradições da realidade (sob uma “atmosfera” de coerência racional e objetiva). Ocorre no espaço uma regulação buscada, pretendida, projetada, o que não quer dizer obtida em sua objetividade, em sua “plenitude”. Esse espaço, concomitantemente funcional e instrumental, vincula-se à reprodução da força de trabalho pelo consumo. Na re-produção dos meios de produção faz parte a força de trabalho, pelo trabalho produtivo, que é o motor do consumo de massa. Sendo assim, o espaço na sociedade capitalista é, para Léfèbvre, o meio e o modo, ao mesmo tempo, de uma organização do quadro de consumo (e de vida), cuja reprodução da força de trabalho se manifesta por meio das contradições.

Por isso, a expressão “produção do espaço”, provavelmente cunhada por Lefebvreno final dos anos 60, visa responder aos processos de reprodução das relações capitalistas de produção. O espaço para Lefebvreconsiste no lugar onde as relações capitalistas se reproduzem e se localizam com todas as suas manifestações de conflitos, lutas e contradições. Existem, assim, contradições do espaço, mesmo se dissimuladas, escondidas ou mascaradas. As contradições do espaço advêm – para Lefebvre– do conteúdo prático e social e, especificamente, do conteúdo capitalista que, por extensão, expressão a dimensão política da luta, da disputa, do conflito entre, por exemplo, as classes sociais. Nesses termos, o espaço na sociedade capitalista pretende ser racional quando, na prática, é comercializado, despedaçado, vendido em parcelas. Sendo um espaço capitalista, é um espaço seletivo, espaço para aqueles que detêm o poder do consumo, que dá o “direito” à propriedade privada do solo e ao seu uso.

Assim ele é simultaneamente global e pulverizado, vivido e funcional, concebido e vendido, imediato e distante, estratégico e intencional, quadro da reprodução da vida e do consumo. Apresenta, portanto, um caráter paradoxal pois tenta definir um “aqui”: junto e ao mesmo tempo separado. É dessa maneira que ele é concomitantemente dominado (pela técnica) e não apropriado (para e pelo uso). Ele é imediato e mediato, ou seja, pertence a uma certa ordem próxima, a ordem da vizinhança, e uma ordem distante, a sociedade, o Estado, o capital.

Por comportar essa problemática, o espaço é eminentemente político. Ele é dotado de intencionalidades e sentidos e por isso é estratégico. Possui uma “ordem”, uma ordenação espacial, um arranjo e disposição que visam atingir certos objetivos, certo projeto. O espaço urbano – mas não só ele – é um projeto, é projeto através de sua instrumentalização técnica, racional e funcional e, amiúde, politicamente conduzido e produzido.

Nesse contexto, Lefebvre considera em seu livro Espaço e política que o espaço urbano tornou-se o lugar do encontro das coisas, das pessoas e da troca sendo, por isso, fundamental para a reprodução da condição humana. Portanto, excluir do urbano grupos, classes, indivíduos, implica também excluí-los da civilização, até mesmo da sociedade. É fundamental, nesse cenário, a luta pelo direito à cidade. O direito à cidade, de outros tempos e outros espaços, que não o do consumo e do mercado, que concebe o espaço vivido, o espaço da não segregação e do respeito e convívio com a diferença socioespacial.

O direito à cidade significa, portanto, a constituição ou reconstituição de uma unidade espaço-temporal, de uma reunião, no lugar de uma fragmentação. Ele não elimina os confrontos e as lutas, ao contrário; mas permite, dá o direito que as pessoas possam estabelecer trocas e relações, significa o direito dos cidadãos-citadinos e dos grupos que eles constituem (sobre a base das relações sociais) de figurar sobre “todas” as redes de relações sociais, os circuitos de comunicação, de informação, de trocas, de vivenciar experiências múltiplas no espaço urbano diferentemente produzido e diferencialmente apropriado.

Sobretudo, o livro Espaço e política de Henri Lefebvre é uma imprescindível contribuição para a reflexão e análise da problemática do espaço para aqueles estudiosos seja da Geografia, Sociologia, Filosofia, Arquitetura, História dentre outros que se preocupam com a produção da cidade e do espaço, notadamente do espaço urbano, das suas disputas e conflitos, pois é da política que emerge o espaço para Lefebvre.

Notas

1 LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville – suivi de Espace et poltique. Paris: Éditions Anthropos, 1972.

2 LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Éditions Anthropos, 1974.

3 Lefebvre (1974) desenvolveu plenamente, em livro posterior, essas “duas” características por meio daquilo que ele distingue no processo de produção do espaço como apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”); o primeiro, sendo um processo muito mais simbólico, é carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso; e, o segundo, mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca. Segundo o autor, “O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois ele implica ‘apropriação’ e não ‘propriedade’. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos, um ritmo ou ritmos, símbolos e uma prática”. Logo, “Tanto mais o espaço é funcionalizado, tanto mais ele é dominado pelos ‘agentes’ que o manipulam tornando-o unifuncional, menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora do tempo vivido, aquele dos usuários, tempo diverso e complexo” (Lefebvre, 1974, p. 411-412).

4 A produção do espaço não se limitaria apenas à produção física do capital, mas inclui também a produção da(s) forma(s) de vida da(s) pessoa(s), com suas ideias e representações, pois “A produção em sentido amplo (produção do ser humano por ele mesmo) implica e compreende a produção de ideias, das representações, da linguagem. (…) Os homens produzem as representações, as ideias, mas são ‘os homens reais, ativos’” (Lefebvre, 1999b, p. 44). Desse modo, o autor afirma que o conceito de produção é também uma representação porque abarca as relações sociais por meio da auto-reprodução do ser humano, ser social, espacial e temporal. O conceito de produção, nesse sentido, comporta as representações que interpretam as vivências e as práticas: “Las representaciones circulan, pero en torno a fijezas: las instituciones, los símbolos y arquetipos. Interpretan la vivencia y la práctica: intervienen en ellas sin por ello conorcelas ni dominarlas” (Lefebvre, 1983, p. 28). Assim, “(…) as representaciones son productos de la mente humana, de la división social del trabajo. Interpretaciones de la práctica, mutiládola o transponiéndola, se utilizam políticamente” (Lefebvre, 1983, p. 29).

Referências

CARLOS, Ana Fani. Espaço e tempo sociais no cotidiano. In: _____. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004. p.59-66.

CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço, um conceito-chave da Geografia. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da C.; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p.15-47.

LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos,1974.

_____. A cidade do capital. Rio de janeiro: DP&A, 1999a.

_____. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999b.

_____. La presencia y la ausencia: contribución a la teoria de las representaciones.

México: Fondo de Cultura Económica, 1983.

_____. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001  Resenha

Marcos Leandro Mondardo – Universidade Federal da Bahia

Salvar la Nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos – FUNES et. al (AN)

FUNES, Patricia. Salvar la Nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006, 440 p. Resenha de: MANSILLA, María Liz; ZAPATAT, M. H.; SIMONETTA, Leonardo C. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 29, p. 357-364, jul. 2009.

La década abierta en 1920 es sumamente rica en lo que respecta a procesos y problemas de singular relevancia que no sólo merecen ser estudiados por su importancia coyuntural sino también porque su fuerte impronta repercutirá en etapas posteriores a lo largo de la centuria. Es esta, además, una década prolífica en lo que a debates y generación de nuevas propuestas se refiere. Así, la doctora Patricia Funes ha decidido transitar estos diez años eligiendo uno de los tantos senderos posibles.

Salvar la Nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos es fruto de una ardua y profunda labor investigativa concebida inicialmente bajo las características y el formato propio de una tesis de doctorado, desarrollado en la Universidad Nacional de La Plata. Ahora, devenido en libro, tienen la posibilidad de circular con mayor libertad y de invitar a sus potenciales lectores a centrar la atención en torno a los contenidos e intenciones que adoptó la reflexión acerca de la Nación entre los intelectuales latinoamericanos por aquellas épocas.

En la primera parte de las tres secciones que componen la obra, la autora asienta las premisas de su trabajo, sus ejes problemáticos y el modo de abordar los mismos, mientras se va introduciendo en el análisis de los elementos y categorías generales a partir de los cuales gravita la investigación: años veinte, intelectuales y nación.

De acuerdo a Funes, se trata de una coyuntura que, comúnmente, ha quedado subsumida e invisibilizada en periodizaciones más amplias del tipo clásico como “1880-1930” o “período de entreguerras” – que invalidan cualquier reflexión de los procesos de cambios y continuidades – pero que, no obstante, posee una entidad propia que permite dotarla de nuevos significados que hacen posible individualizarla. Desde su perspectiva, los años 20 poseen un carácter coloidal y fundacional, en el que se originan múltiples tradiciones de pensamiento culturales y políticas que atravesarían el siglo XX latinoamericano.

La segunda parte del libro se detiene en el tratamiento y desarrollo de los argumentos centrales. Y un tercer apartado contempla las reflexiones finales. El libro también cuenta con un apartado con bibliografía seleccionada que evidencia un intento de síntesis de lo producido acerca del período y de incorporación de diversos enfoques y disciplinas que tienen por objeto de estudio a la sociedad latinoamericana del siglo XX – con especial referencia a la década de 1920 –, lo que permite proseguir con el estudio en profundidad de las problemáticas planteadas.

En efecto, la crisis de la Gran Guerra, la relativización de Europa como faro de la cultura y la creciente oposición a las agresivas políticas militares de Estados Unidos sobre la región fueron generando dudas, rumbos significativos y un novel continente de sentidos en el mundo de las representaciones, recortando la silueta de problemas e inquietudes comunes a un grupo de hombres de distintos países de América Latina que comenzaban a construir el colectivo específico de los intelectuales. La revolución, el socialismo, el comunismo, el antiimperialismo, el corporativismo, la democracia y la ubicación de esta parte del orbe en la cartografía de la modernidad fueron tópicos que recorrieron la reflexión de estos actores que se ubicaron desde el campo de la cultura y la sociedad. Pero, especialmente, recayó sobre ellos la tarea de pensar y crear interpretaciones y lecturas en torno a la Nación, entidad de sentido conformada desde múltiples visiones y ambivalentes significados al calor de una discusión que atravesaba tanto el plano filosófico-cultural como el político.

Apelando a un registro de análisis que podría caracterizarse como político-cultural, la historiadora entrelaza con soltura y fluidez la reflexión en función de dos grandes universos semánticos. Por un lado, los contenidos y significados inherentes de los discursos y representaciones que pujan por definir qué es la nación en la arena filosófica-cultural. Y por otra parte, se hace presente la intención en el plano político de los intelectuales de cristalizar solidaridades colectivas y (re)crear una “comunidad imaginada” vinculada a la determinación de precisar inclusiones y exclusiones. A ello se suman los enfoques específicos de la historia social, incorporando sobresalientes aproximaciones sobre las sociedades y los contextos que sostienen el accionar de dichos agentes.

En concordancia con su propuesta de análisis, no se contemplan sólo la producción de los intelectuales que se autodefinen abiertamente como pertenecientes a los diversos nacionalismos y como productores de acepciones más o menos felices sobre la Nación.

Por el contrario, el elenco de hombres visitados se amplia de manera sorprendente y, a la vez, sus postulados van siendo cruzados y confrontados no en función de países o de biografías sino a partir de un conjunto de problemas que permitan un acercamiento más explicativo al conjunto de debates antes aludido. En este sentido, la ponderación hermenéutica y metodológica de tres ámbitos específicos (México, Perú y Argentina) y de los personajes escogidos (Víctor A. Belaúnde, Jorge Luis Borges, Manuel Gálvez, Manuel Gamio, Francisco García Calderón, Manuel González Prada, Víctor Raúl Haya de la Torre, Pedro Henríquez Ureña, José Ingenieros, Vicente Lombardo Toledano, Leopoldo Lugones, José Carlos Mariátegui, Andrés Molina Enríquez, Alfonso Reyes, José E. Rodó, Ricardo Rojas, Luis Alberto Sánchez, Manuel Ugarte, Luis Valcárcel, José Vasconcelos, Alberto Zum Felde, entre otros), no sólo ofrece la oportunidad para tensar al máximo las dificultades para pensar América Latina en clave regional y brindar el andamiaje necesario para ver cómo cada uno de estos tópicos son tratados en realidades nacionales bien disímiles, sino también permite romper con aquellas visiones endógenas, ufanistas y cerradamente nacionalistas que coadyuvaron a configurar los imaginarios y resortes sobre los que reposaban las historiografías nacionales y abrir canales de diálogo entre distintas tradiciones. Cabe aclarar que la preeminencia dada a estos tres espacios dominantes, que se subordinan a los ejes sobre los que se ha configurado la interpretación, no obtura la peripecia de hacer referencia a otras realidades a lo largo de la obra, recurriendo a un método comparativo que enriquece de forma significativa los planteos a través del muestreo de diferentes tramas de producción intelectual.

La segunda parte del libro se detiene en el tratamiento y desarrollo pormenorizado de los nudos centrales, desplegados en torno a cinco acápites temáticos. En un primer momento se indagan las disímiles y complejas relaciones entre Nación, crisis y modernidad. Bajo el rótulo de “Salvar la Nación” – frase que emerge con insistencia en las más heterogéneas interpretaciones de comienzos de la década –, se piensa en los ejes de cada una de las interpretaciones de la Nación (el Inkario, las mayorías nacionales, la vida civil, la fuerza o la potencia, la religión católica, la historia en común) en función de dos tradiciones clásicas de los tiempos modernos: una idiosincrásica, y la otra constructivista. La hipótesis fuerte de Funes es que la Nación ya no es considerada como un atributo o un perímetro que acompaña o completa al Estado, sino que es tomada como el espacio de condensación de las complejidades y contradicciones sociales en el contexto de una modernidad esquiva y ecléctica pero advertible a todas luces.

En “La Nación y sus otros”, se pone de manifiesto el desplazamiento de una concepción intelectual de nación a partir de las categorías que imponían la tradición liberal (cuyo énfasis recaía en la noción de ciudadanía) y la tradición positivista (acentuando la idea de morfología racial) a una concepción que abrevaba en las consideraciones sociales y culturales. La tesis central de esta sección es que en esta década, el pensamiento latinoamericano buscó una hermenéutica que no clausurara ni el pasado ni el futuro y que contuviera fórmulas para ensanchar la Nación a partir de dos variables: en el tiempo (apelando al pasado, a las tradiciones y a los orígenes) y en el volumen social (al considerar al “otro” antes excluido, encarnado en las figuras del indígena y del inmigrante).

Por ende, el desafío radicó en conciliar en el proceso de incorporación a un conjunto de alteridades complejas y de distinta entidad: étnicas, culturales, religiosas, sociales y regionales.

En tercer lugar, la autora remarca la importancia que el pensamiento antiimperialista de posguerra tuvo en la medida en que constituyó un dilema que configuró un perímetro inclusivo a escala regional y señaló destinos y estrategias comunes para América Latina. Ya no sólo eran las otredades internas los “problemas” a resolver, sino que se sumaron las fronteras culturales y económicas que se recortaron frente al “otro” externo que obligaba a tomar posiciones frente o contra la dominación imperialista pergeñada desde Estados Unidos. A lo largo de “Antiimperialismo, latinoamericanismo y Nación”, se analiza el modo en que categorías como autonomía, autodeterminación, soberanía, independencia, patriotismo y nacionalismo eran puestas en jaque al tiempo que incitaban a reforzar el pensamiento de los intelectuales frente a los desafíos de un “afuera” imperialista.

En el capítulo “Lengua y Literatura: arcanos de la Nación”, se examinan las polémicas en torno del idioma, la presencia de la literatura nacional y la edificación de un canon literario, temas que muestran los sentidos que se imprimieron sobre la Nación. En esta línea, la consideración en los años veinte de los binomios culto/popular, moral/escrito, español (o castellano)/lenguas indígenas, entrelazados con la reevaluación del canon literario, la designación de precursores de la literatura nacional, la ampliación de autoridades y precedencias, las formas de datar y compendiar las historias se conjugan en implícitos y fuertes pilares sobre los que se apoya el discurso y los fundacionales imaginarios nacionales de la década.

Finalmente, en el quinto apartado, “Ser salvados por la Nación. Las búsquedas de una nueva legitimidad”, las protagonistas del debate son las ideologías políticas. Para Funes, la problemática de la definición de la Nación se consolida en el terreno intelectual paralelamente al proceso de debilitamiento o superación del orden oligárquico como correlato de la creciente complejización social y la aparición de actores sociales en la escena pública. Esto condujo a repensar los vínculos entre Sociedad y Estado, en una línea donde nociones como república, democracia, revolución, socialismo, corporativismo son leídos en otra clave, para hallar nuevos y alternativos principios de legitimidad bajo premisa de que es posible “ser salvados” por la misma Nación que se está discutiendo.

Más allá de la unidad en la coherencia y rigurosidad desplegadas para tratar cada problema, se suma otro elemento del orden metodológico que atraviesa los capítulos reseñados: la forma de organización interna. Invirtiendo el orden clásico de la exposición, cada apartado inicia con una clara explicitación de las conclusiones para luego desandar el camino que llevó a ellas. De igual modo, cada capítulo se halla encuadrado en el abordaje de distintos materiales: históricos propiamente dichos, que sirven de soporte material para rescatar la información empírica que configura, en criterios cronológicos, un proceso; teóricos, que colaboran para la comprensión, delimitación y evaluación de los problemas presentados; y fuentes, que son de gran utilidad puesto que permiten una aproximación más estrecha a lo producido por los diferentes actores y posibilitan contar con cierto número de documentos que ofrecen un margen de evidencia de las visiones y perspectivas en la coyuntura. El libro también cuenta con un apartado con bibliografía seleccionada que evidencia un intento de síntesis de lo producido acerca del período y de incorporación de diversos enfoques y disciplinas que tienen por objeto de estudio a la sociedad latinoamericana del siglo XX – con especial referencia a la década de 1920 –, lo que permite proseguir con el estudio en profundidad de las problemáticas planteadas.

La cuidadosa reconstrucción sistemática de las lógicas de configuración de los imaginarios nacionales en América latina durante los años 20 ha sido un desafío y al afrontarlo, la autora ha realizado una muy importante contribución al conocimiento de nuestra historia latinoamericana, manifiesta en una prosa ágil y bajo un tono que es capaz de ir y venir con soltura entre los diferentes aspectos del debate intelectual sin contradecir la lógica narrativa que pretende. Convergencias e integraciones de este tenor son, por cierto, estimulantes y una vez más, se ponen de manifiesto en la aplicación del método comparativo, estableciendo similitudes y diferencias que ese proceso global presenta cuando se lo aborda a escala de cada sociedad nacional. La tarea de repensar nuestros intelectuales ha operado aquí como una excusa para desandar las peripecias de la construcción compleja de la Nación. En este sentido, otra virtud que reviste el trabajo es que ha logrado superar por un lado, los postulados esencialistas y las naturalizaciones ahistóricas y, por otro, las interpretaciones funcionales y fatalistas.

En síntesis, se trata de una obra que se escribe desde la pluma de la innovación y de la imperiosa necesidad de transitar nuevos caminos y formas de escritura histórica acordes a los tiempos que corren, conjugando en su prosa la rigurosidad científica en el sentido “tradicional” – la utilización de la documentación más diver sa y exhaustiva posible, la severidad de la crítica, la teorización apropiada y operativa y la sólida claridad interpretativa, producto de años de investigaciones en historia latinoamericana del siglo XX – y la lectura amena – propia de quien domina el oficio de escribir de manera atractiva, seductora y provocadora –, con el laudable objetivo de “repensar” cuestiones que refieren a nuestros problemas más actuales, como el hecho de que “(…) la historia no sólo no finaliza sino que en nuestros países, hace mucho que recién comienza”. Y en ese transitar, es necesario sentarse a discutir a Latinoamérica y a la Nación sin tapujos y encorsetamientos, en diálogo abierto y plural, como balance y como proyecto.

María Liz Mansilla, Horacio M. H. Zapata e Leonardo C. SimonettaEscuela de Historia – Centro Interdisciplinarios de Estudios Sociales (CIESo) – Facultad de Humanidades y Artes – Universidad Nacional de Rosario, Argentina.

O Brasil tem jeito? | A. Ituassu

O título é sedutor. A proposta parece progressista. Entre os textos organizados estão autores como Luiz Gonzaga Belluzzo e Wanderley Guilherme dos Santos. Um transeunte ingênuo na livraria poderia até dizer que a presença de Miriam Leitão, Merval Pereira e Gustavo Franco forneceriam certa pluralidade à proposta dos autores. Se estiver com pressa, e não olhar a orelha do livro que “pretende servir de base para o cidadão nos pleitos que virão”, acaba até levando-o para casa. Confesso a minha desatenção.

Ao começar a folhear o livro em casa, dando-me conta do engodo, tentei me conformar com o argumento de que “afinal, trata-se de uma amostra do pensamento da intelligentsia brasileira”. Pesquisa de campo. No final, a sensação de estar diante de um “museu de grandes novidades” persistiu em uma obra que nada acrescenta ao atual debate sobre a conjuntura brasileira, e, no que visa a propor, comete erros e simplificações grosseiras. Leia Mais

Política o destino: cuestiones estratégicas en tiempos de crisis – DEL PERCIO (FU)

DEL PERCIO, E. Política o destino: cuestiones estratégicas en tiempos de crisis. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2009. Resenha de: COLOMBO, Agustín. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.1, p.116-117, jan./abr., 2009.

En esta oportunidad el profesor Del Percio con su ya característico estilo “indisciplinario” de abordaje nos acerca sus reflexiones sobre los temas que hace tiempo frecuenta en sus análisis. Pero esta vez haciendo especial hincapié en la política. Así Política o destino permite al lector servirse de reflexiones que abarcan temas como la inseguridad hasta la educación pasando por cuestionamientos relacionados con la preservación del medio ambiente, la sociología de las finanzas, como prefi ere denominarla el propio Del Percio, la corrupción y la estética femenina, entre otros.

Pero lo que claramente nos ofrece Política o destino es un planteo que semánticamente no permite la disyunción. De esta manera, el planteo de Del Percio se presenta como optimistamente político.

Como dice el autor en El pensamiento audaz como etapa superior del pensamiento crítico, el primer artículo que compone este libro: “[…] esta crisis que afecta al mundo nos brinda una excelente oportunidad para que la política vuelva por sus fueros con la clara consciencia de que no hay un destino marcado” (Del Percio, 2009, p.23). A su vez, corresponde destacar que Política o destino es un libro escrito desde el mundo académico para el mundo político, según el propio Del Percio.

En ese mismo capítulo el profesor Del Percio plantea el problema de la exacerbación del pensamiento crítico como un fi n en sí mismo. Así expone la necesidad de “marchar hacia un pensamiento audaz como etapa superior del pensamiento crítico” (Del Percio, 2009, p.17

En Seguridad sustentable e inclusión social, Del Percio vuelve a manifestar su optimismo político, considerando justamente a la política como praxis que otorgue las herramientas que permitan tratar de solucionar los temas vinculados con la criminalidad. En este sentido, el profesor Del Percio realiza un abordaje relacionado con la inseguridad como problema vinculado con la inequidad y la desigualdad social. En este capítulo el lector podrá encontrar también un especial tratamiento del problema de la delincuencia vinculado a la “droga”.

En Ética y prevención de la corrupción ensaya un análisis del fenómeno de la corrupción considerando especialmente distintos contextos socioculturales y económico-políticos. Asimismo, ofrece una tipología contemplando distintas manifestaciones de este fenómeno.

En otro de los capítulos que forman parte de Política o destino, intitulado Tributo a la Calidad Institucional, el profesor Del Percio trata de buscar respuestas frente a la aparente carencia de estudios científicos que exploren la potencialidad de la vigencia efectiva que puede tener la normativa tributaria en un medio social determinado. Asimismo, el autor ensaya respuestas contemplando la actualidad de la sociedad de consumo.

Frente a la problemática relacionada con el cuidado del medio ambiente, Del Percio analiza la constitución de la subjetividad, frente a la consumación de la Modernidad a la que estamos asistiendo según el autor, remontándose hasta sus orígenes y plantea la necesidad de “redescubrir al ser como una incontenible fuerza relacional oculta por el ente” (Del Percio, 2009, p.244). Desarrolla así en El Logos del Oikos la noción de “Metafísica de la relación”.

En Pero aún los niños vienen y preguntan, Del Percio aborda tal vez el problema al que ha dedicado la mayoría de sus refl exiones: La Educación. Allí manifi esta la necesidad de concebir a la educación como una praxis liberadora y fundamentalmente trata de diferenciar esta última de la Socialización. En este capítulo y en concordancia con lo que plantea en el capítulo anterior, el autor propone “[…] reformular tanto los contenidos de las asignaturas como el modo de enseñanza de las mismas en función de la relación como categoría fundante” (Del Percio, 2009, p.281).

El libro finalmente está compuesto por un Apéndice que incluye dos trabajos intitulados Del escote a la minifalda y ¿Reemplazan las organizaciones sociales a los partidos políticos?

Fiel a los planteos que acompañan a su autor, Política o Destino está impregnado de las motivaciones que siempre inquietaron a Del Percio: Forjar un pensamiento latinoamericanamente situado.

Agustín Colombo – Instituto de Altos Estudios Sociales Universidad Nacional de San Martín. Campus Migueletes. E-mail: [email protected]

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[DR]

Quaderni del Carcere: Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana | Antonio Gramsci

Uma obra pode ser considerada um clássico quando projeta influência para além de seu tempo e espaço. Assim pode ser definida a obra de Antônio Gramsci (1891-1937), cuja influência sobre as Ciências Sociais e Humanas pode ser medida pelo grau de apropriação que as diferentes matrizes e correntes epistemológicas fizeram de seus escritos.

A leitura de Gramsci sobre o desenvolvimento histórico da sociedade italiana e suas análises sobre os problemas culturais, sociais, políticos, econômicos e educacionais de seu tempo tornaram seu pensamento um importante referencial teórico sobre o século XX. Leia Mais

A história na política, a política na história | Cecília H. S. Oliveira, Maria Lígia C. Prado, Maria de Lourdes M. Janotti

A renovação dos estudos sobre política em História, ou simplesmente da História Política, tem sido gradativamente traduzida em artigos e obras inovadoras, iluminados a partir de conceitos, métodos e abordagens diferenciados em relação à História factual e elitista criticada pelo Annales no início do século XX. Por meio de novas pesquisas, a “nova” historiografia política vem mostrando ao historiador o quão vasto e interdisciplinar é seu métier, integrando o tempo – com diferentes ritmos – e fontes das mais diversas origens à cultura, à economia e às sociedades. A coletânea de artigos1 reunida pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e organizada por três importantes historiadoras é claramente uma manifestação desse quadro de ampliação dos estudos de história política, contendo quatorze artigos em cerca de 290 páginas. O conjunto propõe-se “interrogar os sentidos assumidos pela política na investigação histórica e na historiografia atual” (OLIVEIRA; PRADO; JANOTTI, p.10), dividindo a obra em seis partes, analisadas a seguir. Leia Mais

O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII | Laura de Mello e Souza

No ano de 2006, foi publicado um livro que surge de forma a significar um divisor de águas quando o tema em questão é o da política e administração na América portuguesa do século XVIII, como expresso em seu subtítulo. Trata-se do livro O Sol e a Sombra, de autoria da historiadora Laura de Mello e Souza, onde são aplicadas novas perspectivas analíticas sobre o tema da “administração” colonial, assentadas em interpretações que incitam ao debate e à crítica.

O título do livro já é capaz de sintetizá-lo muito bem. O sol e a sombra se refere a um escrito – utilizado no livro como epígrafe – do famoso padre António Vieira, em que se relaciona, metaforicamente, a imagem do sol e a sua sombra variável à prática administrativa no império colonial português. Em seu raciocínio, Vieira adverte que quanto mais distante o sol está, maior, portanto, será a sombra projetada. O jogo entre o sol e a sombra, de que fala Viera, refere-se àqueles que compõem os governos ultramarinos, onde as grandes variações das sombras, dadas por distâncias cada vez maiores, significam, metaforicamente, que os ministros projetam, em possessões coloniais, imagens extrapoladas dos reis, de quem são representantes.

O fato de os oficiais formarem vários laços hierárquicos no aparelho administrativo favorecia a centralização, ao mesmo tempo em que se construía o seu contraponto, já que os oficiais poderiam, por exemplo, tomar decisões segundo vontade própria, haja vista as grandes distâncias entre reino e conquistas, além de vários casos particulares não estarem previstos nas Ordenações. Tem-se, então, um quadro “incoerente”, “inconsistente”, “contraditório”.

Por outro lado, como um quadro considerado como “contraditório” conseguiu se manter durante tanto tempo? Para Laura de Mello e Souza a resposta reside no fato de se entender esse quadro como aparentemente contraditório. Para ela, essa aparente “contradição”, significa, na verdade, um ajustamento entre interesses da metrópole e interesses das porções coloniais, disso resultando elementos peculiares. Para chegar a essa visão concernente ao funcionamento da política e administração colonial, a autora buscou conciliar rigor teórico e uma profunda pesquisa empírica, frutos do transcurso de mais de dez anos dedicados ao tema.

Em um estudo de 1980, intitulado Desclassificados do Ouro, Laura de Mello e Souza já havia constatado o caráter ambíguo das ações políticas e administrativas das personagens representantes do centro decisório do poder, passando a denominar de “pendular” a prática em que as autoridades buscavam uma “justa medida”, inicialmente qualificada de “política do bater-e-soprar”. Daí que a autora destaca que em muitas situações havia a necessidade de se recorrer à violência, bater; sem, contudo, deixar de soprar, ação esta que significaria amenizar as dores da colonização através de soluções que se adaptassem às circunstâncias locais. Esse mesmo enquadramento acompanhou o processo de construção do poder inerente aos Estados modernos, devido a sua importância para a permanência e duração da administração que se configurava naquele momento.

Preocupando-se com o diálogo historiográfico, Laura de Mello e Souza destaca que o comprometimento na conciliação entre os interesses que orientavam as ações desempenhadas tanto pelas elites locais quanto pelos oficiais régios lotados nos quadros da administração significaria um pressuposto inaceitável segundo as concepções de análise de muitos intelectuais brasileiros que escreveram sobre o assunto há mais de meio século. Esses estudiosos, entre os quais a autora destaca Caio Prado Jr. e Raymundo Faoro, não cogitavam a possibilidade de haver uma combinação entre interesses metropolitanos e coloniais. Assim, as análises historiográficas relacionadas ao tema não davam conta de apreender as “contradições” inerentes à política administrativa na América portuguesa, ponto este diretamente relacionado aos impasses e limites do mando português.

A “busca de ações comuns”, segundo a autora, comportava o ajuste de dois aspectos: interesses particulares, assentados, por exemplo, em contrabando, arbitrariedades, conflitos de jurisdições; juntamente com a adoção de políticas que preservavam interesses de religião, justiça e fazenda, elementos mais diretamente relacionados ao Estado. Para Laura de Mello e Souza, portanto, esse quadro se refere a uma política capaz de conciliar tanto interesses do Reino quanto interesses das conquistas. Daí o seu caráter aparentemente “contraditório”.

No decorrer de seus argumentos, Laura de Mello e Souza busca contrariar as discussões prevalecentes sobre o tema ao exercer a função primordial do intelectual: incomodar. E incomoda na medida em que destaca ser através do estudo de casos específicos a importante maneira para se compreender as características da administração e política imperial portuguesa na região do Atlântico sul do século XVIII; para tanto, adverte a importância de situá-los em um contexto maior, por ela denominado de “enquadramento geral”. A autora, então, lança uma crítica à postura adotada por uma série de jovens historiadores brasileiros influenciados pelos trabalhos de António Manuel Hespanha, traduzida no exagero do estudo de casos particulares desconectados de um contexto mais amplo e na interpretação capaz de identificar o Antigo Regime nos trópicos, sem levar em consideração os significados que o conceito de Antigo Regime encerra.

As preocupações do livro não estão relacionadas às descrições pormenorizadas das instituições que viabilizaram uma política administrativa no Brasil, mas buscar compreender as significações do mando e sua formação estrutural no interior do império português, concretizados em ações de homens inseridos numa dada conjuntura. A historiadora ainda aponta Stuart Schwartz como sendo o autor pioneiro no trato mais técnico dos órgãos da administração portuguesa, devido ao lançamento de Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial (1979). Além de ressaltar o robustecimento da temática do mando através da comparação entre a política administrativa portuguesa no Brasil e a experiência espanhola na América, tal como nos havia apresentado Sérgio Buarque de Holanda em sua interpretação inovadora de Raízes do Brasil (1936).

Em sua primeira parte, o livro apura a crítica historiográfica: traça um panorama de importantes tradições analíticas brasileiras; analisa aspectos decisivos para a formação do século XVIII, que envolvem a descoberta do ouro na região das Minas gerais, a sua formação social e a montagem de sua estrutura administrativa e fiscal, bem como a formação de São Paulo e o delineamento de uma identidade paulista; discorre sobre a intensificação de trabalhos interessados pela temática da administração no império português; problematiza o Antigo Regime enquanto categoria analítica; e, por fim, situa a contribuição de Laura de Mello e Souza no processo de construção de uma “renovação de perspectivas” sobre o tema.

Já em sua segunda parte, o livro destaca o percurso do governador Conde de Assumar e de outros funcionários reais da região das Minas. Ao desvelar percursos individuais, Laura de Mello e Souza enfatiza as “contradições” inerentes às vivências das personagens que ajudaram a construir esta porção da América portuguesa. Vivências estas marcadas por dilemas e paradoxos, frutos da embaraçosa situação de estarem divididos entre a execução do poder central e o exercício deste poder ao sabor das circunstâncias delimitadas pelos poderes locais.

Sabe-se que as distâncias entre colônias e metrópoles foram marcadas por longas jornadas que levavam meses, e, às vezes, anos. Assim, essas grandes distâncias proporcionavam que a administração adotasse uma série de mecanismos inclinados às circunstâncias locais. Para Laura de Mello e Souza, a ambigüidade dos papéis desempenhados pelas personagens do mando colonial, recorrendo ora à violência ora à cessão, significava uma estratégia para manter a integridade de todo o império através do bom funcionamento da administração. Segundo essa perspectiva, era necessário combinar rigidez e brandura, tolerância e rigor, como forma de se impedir um desmoronamento da administração e, consequentemente, colocar em risco o domínio português sobre a colônia brasileira.

Neste sentido, o mar encerra dois aspectos importantes. Por um lado, o mar funcionou como um fator de distância entre a ordem e a sua realização, proporcionando distorções e anulações de determinações vindas de cima; por outro lado, o mar também funcionou como importante elemento de união, materializada nas políticas de combinação de interesses reinóis e coloniais, sendo esta concepção tributária à idealização de um império luso-brasileiro.

A metrópole deveria, então, executar uma política mais permissiva em relação ao ultramar. Daí que as ações das personagens, dadas no bojo da administração, somente podem ser compreendidas se enquadradas pelo contexto da política, caso contrário, perder-se-ia o significado dialético da questão. Para a autora, política e “administração” são elementos intrinsecamente ligados. Dessa forma, aponta-se como importante a compreensão das vicissitudes inseridas entre a violência e a tolerância exercidas pelos homens que formavam os grupos políticos brasileiros no período colonial.

O Sol e a Sombra, de Laura de Mello e Souza, é um livro necessário; seja por suas análises intentarem melhor situar as discussões acerca da política e administração no período colonial; seja por realçar a necessidade de um aprimoramento conceitual sobre o tema; ou por destacar a consciência de que um longo caminho ainda há de ser percorrido nesse campo, devido à falta de maiores avanços em estudos monográficos e o maior diálogo com a historiografia nacional. Não se trata de nenhum “regionalismo”, em que pese defender uma tradição historiográfica brasileira em detrimento de uma importante contribuição de trabalhos estrangeiros, mas de não se perder de vista o “enquadramento teórico”, ao combinar análises específicas e enquadramentos gerais, além de se buscar problematizar e questionar modelos explicativos, por meio da perspectiva dialógica.

David Salomão Feio – Universidade Federal do Pará.


MELLO E SOUZA, Laura de. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Resenha de: FEIO, David Salomão. Canoa do Tempo. Manaus, V. 2, n. 1, jan./dez, 2008. Acessar publicação original [DR]

Forças Armadas e Política no Brasil | José Murilo de Carvalho

As reflexões sobre a história das Forças Armadas no Brasil têm mudado seu foco nos últimos anos. Com maior zelo empírico e com menor propensão para apriorismos teóricos e políticos, um conjunto crescente de pesquisadores – composto de civis e militares, é bom que se diga – tem ampliado seus interesses, fazendo com que a historiografia sobre as Forças Armadas no Brasil cresça em quantidade e qualidade. Melhor ainda: o debate historiográfico tem sido enriquecido pela variação temática e pelo aperfeiçoamento teórico e metodológico, com proveitos recíprocos. Ao invés de esses pesquisadores se ocuparem quase exclusivamente com a intervenção militar na política, a instituição castrense é estudada como um todo, sem prejuízo de suas relações com a sociedade não fardada.

Nesse sentido, é oportuna a publicação do livro de José Murilo de Carvalho, “Forças Armadas e Política no Brasil” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005), coletânea de artigos e ensaios escritos pelo autor ao longo de mais de duas décadas de pesquisa sobre as forças armadas brasileiras. A estrutura do livro é dividida em três partes: a primeira delas, “História”, reúne os artigos mais “clássicos” e metodologicamente basilares das reflexões sobre a trajetória das Forças Armadas brasileiras no século XX. Leia Mais

Política, Arte e Cultura no Brasil (Anos 1940–1970) | ArtCultura | 2007

Expressivos profissionais das áreas de conhecimento histórico e afins aderiram, de forma renovadora, às mudanças de paradigmas metodológicos e temáticos, que ganharam maior consistência nos últimos tempos. Nesse sentido, ocorreu um afastamento das histórias estruturais e da escrita sintética ou holística. Por outro lado, têm proliferado estudos monográficos, muitas vezes inspirados pela abordagem da micro-história e por forte enfoque culturalista, não poucas vezes desprendidos das movimentações sociais e políticas mais amplas da própria história.

O dossiê que o leitor tem em mãos reúne diferentes textos, amalgamados pela temática Política, Arte e Cultura no Brasil (Anos 1940–1970). Seu título define, por si mesmo, que nossa compreensão sobre História Cultural agrega os novos aportes teóricos e as novas abordagens que alargaram o campo de conhecimento abrangido pela História. Mas que também, a par da perspectiva interdisciplinar que os caracteriza, considera que os macromovimentos da história estão relacionados aos micromovimentos e vice-versa. Leia Mais

A água, a lei, a política…e o meio ambiente | Christian Guy Caubet

Em um país com a riqueza natural do Brasil, a publicação de obras relacionadas à sua proteção e utilização deveria ser sempre cercada de interesse por parte da mídia, da comunidade acadêmica e das pessoas que têm responsabilidades na área de meio ambiente e desenvolvimento. Infelizmente ainda estamos longe dessa situação, mas a publicação do livro A água, a lei, a política…e o meio ambiente, do professor Christian Guy Caubet, da Universidade Federal de Santa Catarina, nos dá motivos para sermos otimistas sobre as reflexões a respeito da importância estratégica dos recursos naturais e da sua conservação e usos sustentável no Brasil. Aqui, a discussão sobre o meio ambiente tem historicamente ecoado preocupações e conceitos forâneos. A globalização e a velocidade do fluxo das informações com o advento da internet induzem a uma incorporação, às vezes a crítica, de idéias, valores e propostas que desconhecem a realidade e os desafios do Brasil.

No caso dos recursos hídricos, estar atento ao que eles representam para o desenvolvimento brasileiro é muito importante. Segundo o Plano Nacional de Recursos Hídricos, “cerca de 13,7% do total mundial de água doce estão disponíveis no Brasil, tornando-o, em termos quantitativos, um dos mais ricos em água doce no mundo.”1 Leia Mais

Política en el Atlántico a princípios de siglo XX – LLANOS (M-RDHAC)

LLANOS, Jaime Álvarez. Política en el Atlántico a princípios de siglo XX. Barranquilla: Ediciones Uninorte, 2003. 139p. Resenha de: ARANA, Roberto González. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.1, jun./dic., 2004.

Roberto González Arana – Ph.D. en Historia. Profesor del Departamento de Historia y Ciencias Sociales de la Universidad del Norte, en Barranquilla, Colombia.

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A política entre as nações: a luta pela guerra e pela paz | Hans J. Morgenthau

Coleção Clássicos Ipri vem conduzindo, desde 2001, a publicação de títulos internacionais inéditos ou esgotados da literatura especializada da área de relações internacionais no Brasil. Os volumes, que vêm acompanhados de prefácios redigidos por especialistas da área no Brasil, chegam ao mercado editorial em boa hora. A explosão de cursos de graduação na área, além do aumento da preocupação da própria sociedade com a chamada “agenda internacional” do país tem exigido uma compreensão muito mais sofisticada do sistema internacional e de seus impactos no plano doméstico.

A obra de Hans J. Morgenthau é a “jóia da coroa” da coleção, já que o volume é um divisor de águas na reflexão sobre a natureza e evolução da política internacional. Com efeito, a originalidade da obra está no seu objetivo de “descobrir e compreender as forças que determinam as relações políticas entre as nações” de forma sistemática, balizada por um arcabouço teórico que pretende ter um grande alcance explicativo da realidade internacional. Leia Mais

The Cash Nexus: Money and Power in the Modern World, 1700-2000 – FERGUSON (CSS0

FERGUSON, Niall. The Cash Nexus: Money and Power in the Modern World, 1700-2000. New York: Basic Books, 2001. 552p. Resenha de: SENGER, Elizabeth. Canadian Social Studies, v.38, n.2, p., 2004.

The Cash Nexus is an indepth study of the complex relationship between economics and politics from 1700 to 2000. Niall Ferguson, a professor at Oxford and New York Universities, analyzes this connection in North and South America, Europe, the Middle East, and to a lesser extent, Asia and Africa. This makes it a valuable resource for scholars all around the world. Further, Ferguson’s detailed notes for each chapter, and the extensive bibliography at the end of the book provide more than sufficient means to verify the validity of his evidence, and an avenue for further research on the part of the reader.

The book presumes an extremely broad base of knowledge on the part of the reader, literally from classical Greece Rome to 20th century pop culture. The Cash Nexus would be most appropriately utilized at a university level, perhaps even more suitably in postgraduate work. It would be an excellent resource for economics professors, and to a lesser degree for history professors. It is clearly a highly academic work, best suited as an instructor resource.

There are numerous charts, diagrams, graphs, tables, and a few cartoons. Most of the visuals are easily understandable, but there are a couple of problems. First, some of the graphs are so crowded with information as to be almost unusable. For example, Ferguson offers a comparison between the real national product indices of European democracies and dictatorships between 1919 and 1939 (pp. 366-7). A conglomeration of countries is presented in each graph, and because each is represented by a slightly different shade of grey the graphs are difficult to follow. Use of color and/or making these graphs bigger would enhance their readability and usefulness. Second, there are a number of historical political cartoons presented throughout the book. The quality of reproduction on a number of these is, regrettably, quite poor, hence their impact is diminished. Better reproductions, as well as some explanation of what we are seeing would add greatly to their value.

Ferguson’s major themes include government spending, taxation, debt, interest policies and the role of social classes. He also discusses political corruption, financial globalization, the boom and bust cycles of economies, the relationship of democracy and development, and global fragmentation. All in all, the book makes for fascinating and informative reading. His sense of humor lightens an admittedly heavy topic, and his insightful analysis of a very complex topic offers some innovative views. The Cash Nexus encourages and challenges the reader to consider economics in a variety of ways, and to seek solutions to the problems presented by twenty-first century world development.

Elizabeth Senger – Henry Wise Wood High School. Calgary, Alberta.

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The Fame of Gawa. A symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society – MUNN (IA)

MUNN, Nancy D. The Fame of Gawa. A symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society. Durham/London: Duke University Press, 1992. 331p. Reimpresión del original de 1986. Resenha de: MASSON,Laura E. Intersecciones en Antropología, Olavarría, n.4, ene./dic., 2003.

INTRODUCCIÓN

Mencionar el circuito Kula siempre fue para los antropólogos una referencia natural y obligatoria a Bronislaw Malinowski (1973 (1922)). Después de la publicación de The Fame of Gawa. A symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society esta referencia debe hacerse extensiva al valioso y original aporte de Nancy Munn. La trascendencia de este libro, publicado originalmente hace casi dos décadas y aún no traducido al español, radica en que concentra varias preocupaciones contemporáneas de la antropología, sin duda poco discutidas en Argentina. Desde una lectura fenomenológica de la teoría de la práctica, The Fame of Gawa presenta una mirada diferente de los modelos de intercambio del clásico circuito Kula. Munn aborda aspectos tales como la construcción sociocultural del espacio y el tiempo, los problemas políticos y morales de la jerarquía y la igualdad, y la descripción de procesos de creación de valor en un espacio inter-islas. El análisis incorpora una perspectiva de género que reconoce la influencia de Annette Weiner (1976), quien renovó los estudios antropológicos de la región Massim e introdujo esta perspectiva a las discusiones sobre el kula. Mientras que Malinowski realiza su análisis a partir de la/s institución/es, Munn prefirió hacerlo partiendo del valor simbólico de las prácticas sociales. El relato se destaca por su coherencia interna. Así, su preocupación por la totalidad se refleja tanto en el análisis de la producción de valor en Gawa, como en la estrategia de construcción y presentación del argumento.

El libro se divide en cuatro partes. La primera está dedicada a la exposición del marco conceptual donde son definidos los conceptos claves para el desarrollo de un modelo antropológico sobre la creación y la transformación del valor en Gawa -pequeña isla del nordeste, de la región Massim de Papua Nueva Guinea-. El objetivo último de Munn es construir un modelo antropológico de la práctica como proceso simbólico partiendo del análisis de un caso etnográfico. Analiza la construcción del “mundo inter-islas Gawan” como parte de un proceso más amplio de creación de valor a través del cual los miembros de esa sociedad están comprometidos en la construcción y control de sí mismos y de su mundo social. En términos metodológicos la autora manifiesta moverse desde formas abiertas de acto (“mera facticidad”) a “relaciones internas” que dan formas significantes a los actos y especifican la naturaleza del valor producido. Dicho movimiento se da a través del análisis y explicación de significados culturales implícitos en las prácticas. Práctica (y/o acción) social son conceptos claves en la obra de Munn, lo cual resulta interesante en un análisis de porte estructuralista. Según Munn su trabajo “joins phenomenological and certain kinds of structuralist emphases frequently regarded as mutually exclusive”.

En la Parte II, Food transmission and spatiotemporal transformation, Munn se dedica a analizar la formación dialéctica del sistema simbólico de significados constituida a partir de determinadas prácticas sociales que tienen la capacidad de producir resultados, lo cual determina su valor o su proporción diferencial de potencia para crear un resultado. En el caso Gawa, este resultado sería la capacidad relativa de las prácticas para expandir el control espaciotemporal de los actores y de la comunidad como un todo. El acto creador de valor por excelencia es la transmisión de comida. Su opuesto, el consumo directo por parte del productor, no sólo reduce el tiempo de duración de la comida, sino quedestruye su potencial de creación de valor. A partir de esta dialéctica básica la autora analiza la relación de hospitalidad kula (skwayobwa) -considerada la base del intercambio kula-, el intercambio kula y el tipo de conversiones subjetivas posibles a partir de un acto de transmisión de comida, teniendo en cuenta que la persuasión es inherente al acto de dar comida. En las relaciones de hospitalidad, la comida es la persuasión no verbal y está en el centro de la relación. Mientras que en el intercambio kula el medio más importante de persuasión es el habla, actividad productiva necesaria para obtener “shells”. En este caso “habla” se opone a “comida”. La capacidad de persuadir y de tener un control más allá de si mismo, se refleja en el énfasis de la noción de recordar -los Gawans conectan el recuerdo con el acto de transmitir-.

Los intercambios kula crean, con sus viajes, un espacio-tiempo emergente que trasciende las transacciones inmediatas. Así, prácticas tales como hablar, recordar, olvidar, etc., son de vital importancia en la producción de un mundo común donde el resultado deseado depende de la habilidad de persuasión del dador. En el capítulo 5, Fame, Munn define a la fama como una conversión subjetiva positiva a través de una transacción particular, que deriva de un conocimiento externo de un otro distante a la transacción. Es un potencial de influencia sobre los actos de una tercera parte. Como código icónico y reflexivo la fama es una forma virtual de influencia, a través de la cual el actor se conoce a sí mismo, siendo conocido por otros. Este tipo de interpretaciones pone de manifiesto el carácter relacional del análisis de Munn, ejemplifica la coordinación de experiencias para la construcción de un mundo común inter-islas y apoya su supuesto de que la trama de significados constituye la existencia humana y que la realidad social es fundamentalmente simbólica.

Los valores positivos y negativos producidos en la tensión dialéctica del sistema simbólico en relación al consumo y transmisión de comida emerge en otros contextos bajo la forma de signos corporales denominados “qualisigns”. Existe una relación entre actos de comida y cualidades del cuerpo. Por ejemplo, comer mucho produce sueño. La pereza del cuerpo se convierte en un ícono de la negatividad de este espacio-tiempo intersubjetivo creado por el consumo como opuesto a la transmisión de comida. Esta relación entre los actos de comida y determinadas características son un reflejo de lo que la autora denomina un nexo subyacente de significados que es clave para entender la transformación del valor en Gawa y que actúa en diferentes contextos. La autora propone pensar el nexo (entire nexus) como una fórmula icónico-causal subyacente formada en la potencialidad del modelo de acción, el cual emplea tensiones dinámicas entre valores positivos y negativos en el proceso de formación del self y del self-other. Munn denomina a ese nexo relacional un patrón (template) o esquema generativo, intentando transmitir el sentido de una guía, una fórmula generativa que subyace y organiza significados en diferentes procesos o formaciones simbólicas abiertas, y que está disponible como una forma constructiva implícita para el manejo de la experiencia.

Partiendo del argumento de que este patrón gobierna tres ciclos de intercambios centrales, la Parte III del libro -“Exchange and the value template”- está dedicada al análisis de los intercambios matrimoniales, intercambios mortuorios y entretenimientos comunitarios, cada uno formando un modo particular de espacio-tiempo intersubjetivo. Para el último caso Munn analiza los dos entretenimientos comunitarios básicos: danza Drum y Comb, concentrándose primariamente en las formaciones simbólicas básicas de las transformaciones de valor positivas en ambas danzas puntualizando la manera en que los Gawans aseguran que éstas pueden ser socavadas por actos negativos. Por lo tanto estas prácticas están directamente ligadas a la demostración y mediación de jerarquía. Los intercambios mortuorios, por ejemplo, se caracterizan por los qualisignos de valor de los ritos, ítems del cuerpo decorado, directamente ligados al cuerpo de los participantes y en ciertas ocasiones intercambiados entre ellos. En ambos ciclos de intercambio, totalidad y jerarquía-igualdad son aspectos que aparecen implícitos en las prácticas, pero son puestos en evidencia con gran claridad en el Capítulo 6, dedicado al análisis de los intercambios matrimoniales. Los parientes del lado femenino dan comida, los parientes del lado masculino dan una canoa. La pareja nodal actúa como una unidad, es el tercer elemento que ofrece un lado diferente de los otros dos y hace de ellos una unidad (similaridad con el prerrequisito ternario del intercambio kula). A su vez el intercambio de la canoa debe ser considerado, según Munn, como parte del sistema kula inter-islas.

Las ideas de totalidad e igualdad están íntimamente relacionadas entre sí. La sociedad Gawa es fundamentalmente una sociedad igualitaria, donde cada individuo tiene autonomía, pero a su vez esta autonomía debe ser limitada a fin de que no ponga en peligro la igualdad. En este punto es donde juega un rol preponderante lasubversión del valor positivo simbolizada en las prácticas de brujería. Las brujas son identificadas con lo femenino, siendo una de las posibilidades de regular la jerarquía entre los géneros dentro del sistema Gawa. El patrón subyacente no sólo posee una tensión dialéctica entre valores positivos y negativos, sino que también tiene la posibilidad de subvertir un valor positivo en caso de que éste amenace el principio de igualdad.

El modelo totalizante presupone pares de opuestos que no se limitan a la elaboración de una lógica de oposiciones binarias como en el estructuralismo levistraussiano, sino que son concebidos desde una perspectiva Dumontiana de englobamiento del contrario y actúan dentro de una estructura generativa de valor. En este último aspecto es donde el aporte de Munn resulta más significativo. Las definiciones de género de las conchas kula, modelo de las relaciones políticas entre hombres y mujeres, son un buen ejemplo. El hombre debe influenciar a la mujer para ganar su consentimiento para los fines masculinos. El elemento femenino es visto como un lugar independiente de control que tiene que ser influenciado. En este contexto la “superordenación” del elemento femenino es evidente. Pero la polarización de género masculino y femenino es englobada por un orden más comprensivo. Desde que en el kula un collar debe ser convertido en brazalete y viceversa, cada objeto produce al otro, conteniendo su opuesto una potencialidad de él mismo. A través de la potencialización mutua en la circulación actual, las conchas crean una totalidad autoperpetuante.

Lo que trata de mostrar Munn en este proceso es la igualdad de los principios femenino y masculino cuyas asimetrías son resueltas en términos de la mutua necesidad y potencialización actual de cada uno en un proceso circular reversible. Munn logra dar una visión integral de la vida social de ese grupo, tratando la realidad como fundamentalmente simbólica y basada en la supuesta existencia de un esquema subyacente generativo que actúa en varios contextos del mundo Gawa. Al considerar a la existencia humana como una trama de significados, todas las prácticas y entidades incluidas en ella tienen la misma importancia analítica -sean materiales como comida o canoa, o inmateriales como fama- en tanto todas son prácticas significantes.

El modelo elaborado por Munn parece ponerse verdaderamente a prueba en el último capítulo del libro: “Didactic speech, consensus, and the control of witchcraft”, donde la autora admite, aunque no explícitamente, que la sociedad Gawa no es una mónada cerrada como parecía mostrar su análisis hasta este momento. En este capítulo Munn analiza un conflicto que se desata en la comunidad como consecuencia de la construcción de una escuela. En capítulos anteriores menciona la actuación dentro de la comunidad de padres pertenecientes a la Iglesia, pero sin especificar nada acerca de cómo se produjo la inserción de estas “nuevas autoridades” dentro de las prácticas religiosas de Gawa y qué significado adquirió la Iglesia en la creación de ese mundo simbólico (para una crítica acerca de los estudios antropológicos sobre cristiandad y religiones nativas ver Barker 1993). A pesar de que el conflicto presenta elementos que hasta ese momento no aparecían en el análisis y que son “externos” a ese todo integrado planteado por Munn, la explicación del mismo reproduce la lógica de análisis utilizada en otro tipo de prácticas en Gawa. El cambio sólo es concebido como una transformación de un estado posible a otro (de un estado negativo para uno positivo). El conflicto es explicado como un problema de coordinación espacio-temporal que repercute sobre los valores del esquema de producción de valor dominante en Gawa. Por lo tanto, el elemento dinámico –esquema generativo– y el énfasis en lo vivido se reducen a posibilidades de transformación, pero nunca de cambio. Plus ça change, plus c’ est la meme chose? 

Referências

Barker, J. 1993. Christianity in Western Melanesian Ethnography. En: Conversion to Christianity: Historical and Antropological Perspectives on a Great Transformation, editado por Robert Hefner. University of California Press, Berkeley.   [ Links ]

Malinowski, B. 1973 (1922) Los argonautas del Pacífico Occidental. Península, Barcelona.   [ Links ]

Weiner A. 1976 Women of Value, Men on Renown. University of Texas Press, Austin.   [ Links ]

Laura E. Masson – Departamento de Antropología Social, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Olavarría, Buenos Aires, Argentina. Av. Del Valle 3757, Olavarría (7400). E-mail: [email protected]

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Global Systems – REES; JONES (CSS)

REES, David J.; JONES, Michael G. Global Systems. Edmonton: Arnold Publishing Ltd. 1999. 486p. Resenha de: BOYD, Kenneth. Canadian Social Studies, v.37, n.1, 2002.

As an educator I believe that students need to better understand the world they live in. In order to do this they have to be able to critically examine the political and economic systems that have brought about 20th century societies. If you are looking for a textbook to help students do this, then Global Systems is the one. Right from the beginning, Rees and Jones set out to explain the book’s purposes and make it very easy for the reader to understand what things they want to bring out.

Global Systems examines four political and economic issues with which 20th century societies are confronted. Part I traces the development of contemporary political and economic systems in theory. It accomplishes this by examining the values, beliefs, ideologies and thoughts upon which they are based. Models are used to assist in the understanding of these interrelationships and simple charts visually show the relationships between ideas. Part II looks at 20th century political and economic systems using case studies. These apply the theory and models used for understanding political and economic systems to case studies of different real-world democratic and non-democratic systems. The eight case studies deal with Canada, the United States, Sweden, Japan, Nazi Germany, the Soviet Union, the Russian Federation and China. After reading any one of these case studies the reader will have a very good understanding of all the issues. Interestingly, when certain points are raised in one case study they are compared to similar points in Canada. Models are used again, relating ideologies to political systems and economic systems and then relating political and economic systems to political economies. Part III deals with the challenges of the 21st century. The authors look at some contemporary issues and ideas including the examination of concepts such as nationalism, globalization, technology and information, global disparities, population growth and aging along with environmental protection.

Throughout the textbook the reader will find supplemental information, in the form of model icons, charts and related curriculum content, in the margins. The titles are coded by size, type and colour. This enables the reader to easily identify how the content is organized. Teachers will be able to easily create topic outlines of chapter content simply by following the hierarchy of headings. Review pages at the end of each chapter include a chapter summary along with questions and activities to assist learning. There are four pages of summary material inside the front and back covers for quick reference.

The Appendix provides the reader with a variety of ideas for studying, making notes, critical thinking, analyzing sources, essay writing and preparing for and writing exams. Some graphic organizers are provided as sample formats for organizing and learning new material. This textbook even has a web site dedicated to parts of it; readers simply key in a code supplied with the textbook. Overall the textbook is well written and the layout is exceptional with full colour. I highly recommend Global Systems for use as a classroom textbook or for one’s own reference.

Kenneth Boyd – Rosetown Central High School. Rosetown, Saskatchewan.

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O fim da utopia: política e cultura na era da apatia | Jacoby Russell

Resenhista

Ademir Luiz da Silva– Mestre em História das Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás.

Referências desta Resenha

RUSSELL, Jacoby. O fim da utopia: política e cultura na era da apatia. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001. Resenha de: SILVA, Ademir Luiz da. História Revista. Goiânia, v.7, 1-2, p. 177-180, jan./dez.2002. Acesso apenas pelo link original [DR]

Star-Spangled Canadians: Canadians Living the American Dream – SIMPSON (CSS)

SIMPSON, Jeffrey. Star-Spangled Canadians: Canadians Living the American Dream. Toronto: Harper Collins Ltd., 2000. 391p. Resenha de: NEIDHARDT, W. S. Canadian Social Studies, v.36, n.2, 2002.

Jeffrey Simpson is, of course, not only a widely read and highly regarded political columnist for The Globe and Mail, but also the author of several bestsellers about the Canadian political scene. In his most recent book, entitled Star-Spangled Canadians, he focuses on the experiences of that not insignificant group of Canadians who have left their Canadian homeland in order to pursue their dream in the United States.

Star-Spangled Canadians offers the reader almost 400 pages of text, endnotes, bibliography and index; unfortunately, there are no photos or illustrations. However, between a solid introduction and a thought-provoking conclusion, there are eleven informative chapters filled with lots of interesting information and much careful analysis. In Chapters 1 and 2 respectively entitled History and Differences the author provides his readers with a good historical background to his topic before turning to specific chapters dealing with: Race/Ethnicity; Crime; French Canadians; Brain Drain; Health; Academics; Entrepreneurship/Business; New York; and Entertainment/Journalism.

For anyone who is interested in this particular aspect of the Canadian-American relationship, Simpson has produced a most readable and solidly researched book. In fact, he interviewed nearly 250 expatriates as part of his extensive research. While some of his information is old, much more is new and this makes for some very worth-while reading. Simpson offers what are, perhaps, some rather unexpected conclusions, such as: that the United States is now more of a multi-cultural society while Canada has become more of a melting pot (pp. 89-91); that the image of America as a more violent society than Canada is only partially correct (p. 95); that the exodus of so many Canadians to the United States is more the result of greater opportunities in America than high taxes in Canada (pp. 156 – 157, 169-170, 246 -247); that the Canadian and American medical systems will look somewhat more alike a decade from now and Canadians and Americans will become even more alike too (p. 215); and, that the brain drain is not quite the one way street that many Canadians are led to believe, although there is little doubt that some of the best and the brightest Canadians have left in the past and are still leaving today (pp. 218, 239, 356). In Chapter 9, Simpson offers a detailed explanation of why the American business climate remains such a powerful magnet for many Canadians; and, in Chapter 11, he provides ample evidence that the big leagues in the worlds of entertainment and journalism still remain south of the border.

In Star-Spangled Canadians, Jeffrey Simpson has given us an excellent account of why and how so many Canadians have sought to pursue their dreams within the borders of the American republic; in fact, he estimates that at the end of the 20th century there were at least 660,000 former Canadians living in the United States (p. 7). However, the author also informs his readers that many of these Star-Spangled Canadians have, indeed, returned home over the years. Furthermore, he also tells us that while these expatriates ABC ‘s news-anchor Peter Jennings being one of the best known have made their homes and pursued their careers in the United States, many of them have actually remained Canadian citizens.

In his thoughtful conclusion, Simpson wanders a bit off his main topic and he spends considerable time speculating about Canada’s future relationship with her powerful continental neighbour. His suggestion that the United States will always be the most dominant country for Canada (p. 363) is, of course, hardly news. However, he does offer a keen insight when he shrewdly observes that whatever Canadians may think of their American neighbours, they have never been more like them. And not because Americans have changed to become more like Canadians, but the other way around (p. 343). Near the end of his book, Simpson (who incidentally was born in New York City and came as a nine-year old to Montreal with his parents) suggests to his readers that living beside the United States is both a challenge and an opportunity a challenge to preserve Canadians’ margin of distinctiveness, an opportunity to examine what the Americans are doing and adapt the successful aspects of American society for Canadian purposes (p. 362). This seems to me quite an accurate observation about what the future may be like. I also hope that Simpson will be proven a real visionary when he suggests that there is no reason why Canada cannot succeed. (p. 362).

Star-Spangled Canadians is obviously not a textbook. However, teachers and students alike can benefit greatly by reading this virtual gold mine of information about a hitherto much-neglected area of the Canadian-American relationship. This is the kind of book that deserves to be widely read and hopefully a copy will find its way into most school and public libraries and most certainly onto the shelves of every history department.

W. S. Neidhardt – Northview Heights S.S. Toronto, Ontario.

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Mercosul e Política | Marcos Aurélio Guedes de Oliveira

O cenário internacional dos últimos anos se apresentou para o Mercado Comum do Sul como palco de relevantes crises que chegam a pôr em dúvida a vida futura do bloco. Mesmo as visões de importantes nomes da academia ou da política dos países do Cone Sul tornam-se nebulosas ao olhar para o Mercosul e ao tentar perceber qual caminho tomará o bloco sul americano depois dos últimos acontecimentos.

Acompanhando as crises, é grande o número de informações e publicações que chegam aos leitores que não contemplam satisfatoriamente a essência dos problemas reais enfrentados pelo principal projeto de integração da América do Sul. Leia Mais

Shared Traditions: Southern History and Folk Culture – JOYNER (CSS)

JOYNER, Charles. Shared Traditions: Southern History and Folk Culture. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1999. 361p. Resenha de: SEIXAS, Peter. Canadian Social Studies, v.35, n.3, 2001.

When we think about the major political fault lines in Canada, we tend to think in terms of regions. The recent election was one more example of ideologically defined parties whose strengths and weaknesses divide along stark regional lines. The greatest challenge to national unity in the twentieth century has been Quebec separatism, while resentments in both the Maritimes and the West have been endemic. When we examine the United States in the 20th century, however, racial divisions, and not regional schisms, appear to be the most significant threat to the success of the national project. Since mid-century, moreover, after years of northward migration of the descendents of enslaved African Americans, the problem of race relations is no longer plausibly conceived-if it ever was-as an exclusively Southern regional issue.

Charles Joyner’s collection of essays, most of them previously published, offers at least two challenges to this picture of the American socio-political map. First, he claims that the South continues to be a distinct region, socially and culturally. Secondly, he argues that the apparent racial divisions in the South mask shared traditions which are the product of centuries of interplay among folk traditions which originated in Celtic, west African, Native, and other cultures. Thus, Joyner speaks without hesitation or apology of the essential character of Southerners (p. 150). Region provides a central organizing framework for the otherwise widely disparate essays in the volume.

A second theme helps to unite his chapters: the interplay between folklore study and the discipline of history. Joyner himself, as both a folklorist and a historian, straddles the two fields. Folklore study had its origins in the collection of folk tales, legends, ballads, dances and crafts, and in the study of such products as dialects, vernacular architecture, folk religion, food and labour (p. 152). From these beginnings, it branched into a quest for theoretical foundations and several of Joyner’s essays help the uninitiated (like myself) understand the development of the field. It has been consistent in its concern with the lives and culture of non-elites. It has been less so in paying attention to the larger social and political contexts within which folkways were embedded or in serious study of cultures changing over time. This is where history comes in. Pursuing his study of the South over the course of a lifetime, Joyner promises that two disciplines offer more than either one alone could deliver.

Shared Traditions is organized into five sections. After an introduction that sets the theme of Southern unity in diversity, the first section examines slavery in the old South. While these chapters make an interesting read, they have long been superseded by the work of Jacqueline Jones, Leon Litwack, Eric Foner, and Herbert Gutman (among many others) who do not even get footnotes. Three review essays on David Potter, David Hackett Fischer and Henry Glassie comprise the second section. A third section is a disparate collection of essays on the New South, examining Jews, music, dulcimers, and a local civil rights campaign. The fourth section theorizes folklore study and history. The final section, a single chapter, is a plea for cultural conservation on the Sea Islands, where luxury resort development has largely displaced a vibrant and successful black folk culture.

Will Canadian social studies teachers and educators be interested in this volume? I do not think that any Canadian curriculum is geared in a way that this volume will be of import for its substantive detail on the American South. Nor is the volume an economical way to catch up on recent historiography of the region. Nor, when it comes to exploring the pedagogical possibilities of folklore research, does it offer anything close to what the Foxfire books did in the 1970s. There is, however, a contribution here, on the methodological and theoretical issues surrounding the interplay of capitalist globalization and regional folk cultures. These are key historical forces that touch the lives of our students and their families, whether Canadian-born or newly immigrated. I suspect, though, that hard-pressed teachers will be able to find more economical sources to enrich their approaches to these issues.

Peter Seixas – Canada Research Chair in Education. University of British Columbia.

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Prime Ministers: Ranking Canada’s Leaders – HILMER (CSS)

HILLMER, J. L. Granatstein Norman. Prime Ministers: Ranking Canada’s Leaders. Toronto: Harper Collins, 1999. 234p. COUCILL, Irma. Canada’s Prime Ministers, Governors General and Fathers of Confederation. Markham, Ontario: Pembroke Publishers, 1999. 180p. Resenha de: GLASSFORD, Larry A. Canadian Social Studies, v.36, n.1, 2001.

What makes a great prime minister of Canada? What makes a poor one? What are the key factors that determine success or failure? For that matter, what do we assess, or measure: – length of time in office? – deeds accomplished? – disasters avoided? – popularity with the public? – accolades from political peers? – respect from subsequent historians?

The premise of the book by J.L. Granatstein and Norman Hillmer, two eminent Canadian historians noted for their contributions in the fields of national political, military and diplomatic history, is that the collective judgment of academic scholars is a sound means of determining the success of our country’s prime ministers. In 1997, they conducted a survey of 26 Canadian scholars – political historians mostly, with a couple of narrative political scientists thrown in – to determine a comparative ranking of the 20 individuals who have served as Canada’s prime minister. The respondents were asked to rate the PMs on the familiar scale of 0 (for total failure) to 10 (for enduring greatness). The results of their survey were published as a leading article in the April 21, 1997 issue of Maclean’s magazine. Granatstein and Hillmer then expanded that article into this 200-plus-page book, with individual chapters for each prime minister except the four immediate successors to John A. Macdonald, whose combined service from 1891-1896 is disposed of in one chapter.

Although actual point totals are not produced in either the original Maclean’s piece or this followup book, the authors tell us that the consensus of their panel of experts (which included themselves) pointed to William Lyon Mackenzie King as the top-ranked Canadian prime minister. Apparently 14 respondents placed King either first, or tied for first. The other two leaders earning their Great rating (an A-plus surely) were John A. Macdonald (2nd) and Wilfrid Laurier (3rd). A fourth PM, Louis St. Laurent, was awarded a near-Great grade, perhaps the equivalent of an A-minus. The High-Average (B?) leaders were Pierre Trudeau (5th), Lester Pearson (6th) and Robert Borden (7th) respectively, followed by the average (C?) prime ministers: Brian Mulroney (8th), Jean Chretien (9th), John Thompson (10th), Alexander Mackenzie (11th), R.B. Bennett (12th) and John Diefenbaker (13th). Two prime ministers, Arthur Meighen (14th) and Joe Clark (15th) scraped through with a Low-Average (D?) Rating. Those PMs adjudged to be failures (F for sure) were Charles Tupper, John Abbott, John Turner, Mackenzie Bowell and Kim Campbell.

How did this panel of professorial pundits arrive at their collective judgment? According to the Maclean’s article, they were not given precise criteria, but were asked to consider electoral success, national unity, success in achieving domestic or foreign policy goals, and leadership in cabinet, party and country. (p.35). These ratings, the authors report at the beginning of their book, were then averaged to form a ranked list. In addition to the numerical scores, each scholar was asked to write a commentary, justifying his or her rating (both p. 9). The comments of the academics were utilized throughout the five-page Maclean’s spread to buttress the authors’ own remarks. The book, while adhering to the prime-ministerial ranking of the earlier article, is more clearly the authors’ own creation, although an occasional panelist’s quote finds its way into the chapter-length biographies.

How did the experts do? The absence of actual point-totals tells us that this is not meant to be a scientific survey meeting rigid statistical criteria. Furthermore, upon what basis was the so-called panel of experts chosen? The authors are silent on the point, other than to note that five are relatively younger scholars, and that together, the panelists represent the several geographic regions of the country. An actual list of 25 names was appended to the Maclean’s article, indicating the presence of five female scholars amongst such luminaries as Michael Bliss, Craig Brown, Desmond Morton, Blair Neatby and Peter Waite. Seeing these names, we might ask where are the Greg Kealeys and Veronica Strong-Boags? Were representatives of the new Canadian historical establishment not polled in significant numbers or did they refuse to answer? We are not told. The lesson is clear. This is not rigorous social science analysis. It has been written as much for enjoyment as for enlightenment – and why not? Who said history should be so stuffy anyways? The joy of the reading is augmented by the inclusion of 27 political cartoons – some famous, some not – distributed throughout the book.

Surprisingly, a number of the better chapters are devoted to lesser PMs. Joe Clark and John Turner, frequently savaged in the popular press, merit full-length chapters that are evenhanded, leaning to sympathetic. Pierre Trudeau, still alive at the time of publication, and Jean Chretien, not yet a three-time election winner when the book went to press, receive the back of the authors’ hands, by comparison. Lester Pearson is praised; John Diefenbaker is, if not defamed, certainly panned. The chapter on R.B. Bennett is remarkably positive, given the panel’s low rating, but Robert Borden is, at best, damned with faint praise. Clearly, too, the authors expect Brian Mulroney’s eventual rehabilitation. The panel was harsh on Kim Campbell, but the authors less so – pointing out that the novelty of her gender first helped, then hindered her national political career. The one really bizarre rating by the expert panel was to place John Thompson tenth. He served scarcely more than 2 years in office, and never won an election as leader. Even the co-authors seem dumbfounded. In the Maclean’s article, they attribute his surprising showing to the recent appearance of a fine, modern full-length biography. (P,35). That professional historians could be so easily swayed casts more than a little doubt on the validity of the whole exercise.

One prominent aspect of the ranking must be challenged. William Lyon Mackenzie King was not our greatest prime minister, contrary to the panelists and co-authors. That honour must be reserved for John A. Macdonald. Both had flawed personal characters – King with his seances, ouija boards and crystal balls, Macdonald with his weakness for the bottle. Neither might even have made it to the office of prime minister in the current era of fishbowl journalism. Both built a great political party; Macdonald, however, also built a country – one which King admittedly helped to preserve. It is quite possible, though, to picture Macdonald managing the political crises faced by King. One cannot imagine King managing to pull off Confederation. He lacked the vision, and the personal charisma. King is deservedly among the top three leaders, on a par with his idol, Wilfrid Laurier. But one has only to consider the remarkable accomplishments of King’s successor, Louis St. Laurent, during his first half dozen years in office, to grasp the what- might-have-beens of Mackenzie King’s lengthy time in office. In describing St. Laurent, the authors note his one deficiency – an absence of deviousness. This quality King held in spades. King’s other specialty, as he mentioned once to an apprenticing Lester Pearson, was to focus on avoiding bad actions – no small achievement, but not the full measure of a truly great prime minister. The existence of the Canadian federation itself is John A. Macdonald’s legacy to us. He is still Number One.

The other book under review here, authored by Irma Coucill, is not in the same league as that by Granatstein and Hillmer, judged on the basis of the written content. The author presents one-page thumbnail sketches of Canada’s 20 prime ministers, 25 governors-general since 1867 (excluding Adrienne Clarkson, who had not yet been appointed), and 36 Fathers of Confederation, defined as those colonial politicians from British North America who attended at least one of the formative conferences in Charlottetown, Quebec or London. The first edition of this work appeared in the lead-up to Centennial year, which explains something about the boosterish tone of the mini-biographies. Unfortunately, the pages added for subsequent editions are sometimes marred by inaccuracies. Nunavut is mis-spelled on page 46, for example. However, the great strength of this book is not its print, but its visuals – that is to say, the marvellous full-page, black and white portraits of each leader, all drawn by the author, herself.

Read the first book for the challenge of critiquing Granatstein, Hillmer and friends’ assessments of our prime ministers. Browse the second one for the pleasure of Irma Coucill’s portraits.

Larry A. Glassford – Faculty of Education. University of Windsor. Windsor, Ontario.

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ociedade e política na Primeira República – JANOTTI (AN)

JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Sociedade e política na Primeira República. São Paulo: Atual, 1999. Resenha de: PACHECO, Ricardo de Aguiar. Anos 90, Porto Alegre, v.8, n.13, p.139-142, 2000.

Ricardo de Aguiar Pacheco – É mestre em História pelo Programa de Pós-Graduaão em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor na SMED/PMPA.

Acesso apenas pelo link original

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Historia económica, política y social de la Argentina | Mario Rapoport

Como é sabido, a Argentina é um dos principais parceiros estratégicos do Brasil. Acadêmicos de ambos países lamentam, contudo, profundamente, o limitado conhecimento de que ainda se dispõe desse vizinho. Afortunadamente, essa tendência está sendo substituída por uma sistemática aproximação e intercâmbio de pesquisas, experiências e projetos. Nesse sentido, com grande satisfação, temos recebido um dos últimos trabalhos sobre a evolução histórica contemporânea da Argentina.

O texto, dirigido pelo reconhecido professor e pesquisador argentino Mario Rapoport, contou com a colaboração de três distintos pesquisadores, Eduardo Madrid, Andrés Musacchio e Ricardo Vicente, todos ligados ao Instituto de de Investigación de Historia Económica y Social da Universidade de Buenos Aires. O trabalho inspira-se nas idéias de totalidade e longa duração da influente escola francesa de história, particularmente das exemplares monografias de Fernand Braudel. Leia Mais

Pontos e bordados: escritos de história e política | José Murilo de Carvalho

Em animada polêmica que movimentou o meio acadêmico em 1997, o historiador Boris Fausto admirava-se de que sua colega, Maria Sylvia de Carvalho Franco, autora do (arrisquemo-nos, vá lá) clássico Homens livres na sociedade escravocrata, tenha se aborrecido tanto com a inclusão de seu livro entre aqueles que Fausto achava merecerem ser chamados, justamente, de clássicos. Espantado com a reação da colega, Fausto escreveu: “Se perguntarmos a vinte especialistas na área de ciências humanas o que é um clássico, estou seguro de que a resposta será mais ou menos a seguinte: um livro muito relevante, marco de referência obrigatória para os trabalhos subseqüentes e que já realizou um percurso no tempo maior ou menor, conforme o caso, permitindo que a condição de clássico se afirmasse.” E acrescentava alguns exemplos de livros clássicos: Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr., Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. A lista encerrava-se com a dupla A construção da ordem e Teatro de sombras, de José Murilo de Carvalho.

Os que acompanham a trajetória de José Murilo de Carvalho já conhecem a maior parte dos artigos que estão reunidos em Pontos e bordados. Muito justamente, boa parte deles pode fazer companhia aos dois livros citados por Boris Fausto: são obras de leitura e referência obrigatória nos temas de que tratam. Leia Mais

Supermadre: la mujer dentro de la política em América Latina | Elsa M. Chaney

CHANEY, Elsa M. Supermadre: la mujer dentro de la política em América Latina. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1983. Resenha de: NADER, Maria Beatriz. Dimensões. Vitória, n.8, p.133-137, 1999. Acesso apenas pelo link original [DR]

A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822 – LYRA (RBH)[

LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Prefácio de Izabel Andrade Marson. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. 256p. Resenha de: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.14, n.28, p.2268-270, 1994.

Cecília Helena de Salles Oliveira – Universidade de São Paulo.

Acesso ao texto integral apenas pelo link original

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