O discurso de ódio nas redes sociais – SANTOS (REi)

SANTOS Marcos Aurelio Moutra dos e1608594580139 Discurso de ódio
Marco Aurélio Moura dos Santos. www.usp.br/gepim/pesquisadores.

SANTOS M A M O discurso de odio nas redes sociais Discurso de ódioSANTOS, Marco Aurélio Moura dos. O discurso de ódio nas redes sociais. São Paulo: Lura Editorial, 2016. Resenha de: BRANDÃO, Clyton. Revista Entreideias, Salvador, v. 9, n. 2, p. 6-68, maio/ago 2020.

A datar de sua popularização no Brasil, no meado dos anos 2000, a internet vem contribuindo, substancialmente, nos comportamentos dos sujeitos que compõem a alcunhada sociedade da informação. Esta, têm desencadeado significativas alterações na produção da economia, da cultura e nos modos de interação social. Esse indicativo reflete na vida contemporânea, na qual as mudanças, desde a modernidade até a contemporaneidade, anunciam transformações no comportamento.

O advento das Redes Sociais Digitais possibilitou a transposição de inúmeras formas de interações interpessoais decorrentes da vida offline para vida on-line. Indivíduos reelaboraram constantemente suas formas de se relacionar com o tempo e o espaço, criando novas maneiras de socialização em rede. A interação permitida pelo uso de dispositivos e as potencialidades das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) tem contribuído para repensar as dinâmicas sociais, de modo que, “[…] pensar a tecnologia, nesta era do pós-digital, significa implicá-la nas táticas e estratégias do poder.” (SANTAELLA, 2016, p. 11)
Assim, a criminalidade não é um fenômeno alheio a essas transformações. Como a rede é um espaço de socialização como qualquer outro, mediado por ações de indivíduos que fazem parte dela, a violação dos direitos humanos também ocorre neste espaço, agora com características sofisticadas por meio das tecnologias.

Por oferecer a ilusão do suposto anonimato e por tornar-se um ambiente de rápida veiculação de mensagens com um grande alcance de público, crimes que já eram executados na vida off-line foram transferidos para a vida on-line. Discursos de ódio e discriminatórios relacionados ao gênero, sexualidade, classe social, posicionamento político e religioso, cor e etnia são uma realidade na rede; estes, são caracterizados por “[…] qualquer expressão que desvalorize, menospreze, desqualifique e inferiorize os indivíduos. Trata-se de uma situação de desrespeito social, uma vez que reduz o ser humano à condição de objeto”. (SILVEIRA, 2008, p. 80)

Nessa contextura, temos o livro O discurso de ódio em redes sociais (2016), fruto de uma dissertação de mestrado defendida no Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU/SP). Trata-se de uma obra importante para entender o presente cenário da disseminação do ódio na rede online, assim como suas raízes, conceitos e questões jurídicas.

O livro é composto por cinco capítulos, incluindo introdução e conclusão, no qual o autor retrata os conceitos e elementos acerca do tema, os núcleos do discurso de ódio, o direito a diferença e a identidade e o discurso de ódio, e conclui fazendo uma análise no que concerne a legislação brasileira para crimes de ódio on-line.

Na introdução, Santos faz uma análise entre o ciberespaço e o discurso de ódio. Ele prossegue afirmando que as TICs, apesar de não ter utilizado esta denominação, possibilitou inúmeras maneiras de disseminação de informações entre sujeitos de lugares e culturas diferentes, formando, assim, uma “cultura participativa”. (JENKINS, 2009, p. 30) Contudo, mesmo a rede online sendo fomentadora no que tange a projeção de conhecimento dos indivíduos, também é um ambiente

“[…] fértil para a ampliação de aspectos conflituosos de realidade palpável e do relacionamento social, como o ódio e todas suas manifestações”. (SANTOS, 2016, p. 8)
No capítulo um, Santos discute os conceitos e elementos do discurso de ódio nas redes sociais na sociedade da informação. Ele faz um levantamento histórico e do pensamento filosófico para mostrar que “o ódio não é uma questão nova na sociedade”. (SANTOS, 2016, p. 23)

Continua a afirmar que para o entendimento desses discursos presentemente, é fundamental trazer àtona a discussão a respeito da natureza do mal. Para tal, apresenta definições de Freud (século XX), Arendt (1999), Glucksmann (2007) e Brugger (2007), no que tange o ódio e o mal desde a idade média até os dias atuais.

Para fundamentar o ódio, o autor traz André Gluscksmann citado por Santos (2016, p. 20) que declara:

[…] o ódio existe, todos nós já nos deparamos com ele, tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias da palavra. As razões atribuídas ao ódio nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, de liberar a vontade de simplesmente destruir.

Através da definição de Gluscksmann, Santos relata que caracterizar o discurso de ódio é uma tarefa difícil, pois este pode aparecer de forma implícita ou explícita; isto é, a intenção do agressor pode aparecer de maneira clara e objetiva ou subliminar.

Ao refletir sobre o mal, mas precisamente sobre a “banalidade do mal” (ARENDT apud SANTOS, 2016); o autor chega a conclusão de que o mal na atualidade se tornaria algo cotidiano, como um ato qualquer, ou seja, algo banal e disponível a todos, “[…] uma vez que o processo tecnológico atual denominado ‘sociedade da informação’, não parece a priori, ser capaz de romper com a in¬tolerância enraizada nas relações humanas, muito pelo contrário, parece apontar para a ‘banalidade do mal’”. (SANTOS, 2016, p. 26)

Ainda no capítulo um, Santos apresenta outros três conceitos: identidade e diferença – através dos estudos de Lévi-Strauss (2010) e Hall (2011); análise do discurso, trazendo as contribuições de Foucault; e redes sociais a partir das definições de Castells (2005) e Recuero (2012).

O conceito de redes sociais aparece sob a ótica de Recuero (apud SANTOS, ano, p. 114) que define como: “[…] agrupamentos humanos, constituídas pelas interações, que constroem os grupos sociais. Nessas ferramentas, essas redes são modificadas, transformadas pela mediação das tecnologias e, principalmente, pela apropriação delas para a comunicação”.

Nesse sentido, entende-se que as redes sociais são interações interpessoais que já existiam antes do surgimento e popularização da internet e, após o advento das TICs, foram reformuladas e modificadas, transformando-se em redes sociais digitais.

No capítulo dois, o autor traz os conceitos de intolerância, preconceito e violência, além de trazer uma abordagem jurídica acerca do discurso de ódio, perpassando pelos estudos em relação a dignidade da pessoa humana.

O conceito de intolerância vem frequentemente associado ao preconceito, tornando-os, assim, “conceitos vizinhos”, que podem ser definidos como atitudes de hostilidade nas relações pessoais, destinada contra um grupo inteiro ou contra indivíduos pertencentes a ele, e que preenche uma função irracional definida dentro da personalidade. Apresenta-se também a concepção de “intolerância selvagem”, de Umberto Eco (apud SANTOS, 2016, p. 131), que é caracterizada com raivosa, descontrolada, inexplicável e impulsiva, ficando nivelada a irracionalidade.

Tratando-se da definição de violência, ele traz o texto da Lei nº 11.340/2006, em seu Art. 7, que define as formas de violência:

A violência física, ou seja, a que ofenda a integridade ou saúde corporal; a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto estima ou que causa prejuízo e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; a violência sexual; a violência patrimonial, e ao final a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL apud SANTOS, 2016, p. 243).

Desse modo, compreende-se que a violência pode ser expressada e sofrida em diversas esferas internas e externas aos sujeitos, podendo ser um produto da natureza, no sentido de que é intrínseca à humanidade; e, para outros, um produto da história, que não é, portanto, natural ao homem.

No capítulo três, Santos aborda a diversidade cultural humana. Para ele, o debate acerca da diferença cultural entre as sociedades que compõem o mundo, a partir das concepções de (STRAUSS apud SANTOS, 2016), demonstra a impossibilidade de avaliar e julgar sociedades com base em instrumentos utilizados em outras sociedades, de forma que somente a própria sociedade poderia refletir sobre si mesma, julgando-se e avaliando-se. Ainda segundo o autor nenhuma cultura possuiria critérios absolutos que permitissem a realização de distinções entre os conhecimentos, crenças, artes, moral, direito, costumes, aptidões ou hábitos dos seres humanos de outras culturas, podendo e devendo fazer tais distinções, contudo, quando se tratasse de suas próprias manifestações culturais.

Nas conclusões, Santos ratifica que os crimes relacionados ao ódio, na esfera off-line e on-line, se transformaram numa questão estatal e sua repreensão reflete a preocupação quanto a influência deste fenômeno na vida social das coletividades.

Assim, não há como considerar os indivíduos como totalmente iguais e situados num espaço tempo fixo, uma vez que o respeito à condição humana aponta para a diversidade da própria condição humana. Ademais, o discurso do ódio se volta contra a diversidade humana, fere a atual Constituição Federal e, sobretudo, esgarçam a segurança na internet.

Referências
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

SANTAELLA, Lucia. Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2016. v. 1.

SANTOS, Marco Aurélio Moura dos. O discurso de ódio nas redes sociais. São Paulo: Lura Editorial, 2016.

SILVEIRA, Sérgio Amadeu; PRETTO, Nelson de Luca. (org.). Além das redes de colaboração: internet, diversidade cultural e tecnologias do poder. Salvador: Edufba, 2008.

Clyton Brandão – Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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Movimento Internacional da Educação Nova – VIDAL; RABELO (RBHE)

VIDAL, D. G.; RABELO, R. S. (Orgs.). Movimento Internacional da Educação Nova. Belo Horizonte: Fino Traço, 2020. Resenha de: PHILIPPI, C. C. Configurações, sujeitos e apropriações– notas sobre o livro “Movimento internacional da educação nova”. Revista Brasileira de História da Educação, v. 20, 2020.

Em que pesem as já existentes pesquisas historiográficas nacionais e internacionais a respeito do movimento de renovação escolar entre as décadas de 1920 e 1940, Diana Vidal e Rafaela Rabelo trazem ao tema novas perspectivas para entendimento e análise. Elas o fazem por meio da recente organização do livro Movimento internacional da educação nova, cuja publicação resulta de pesquisas vinculadas a diferentes projetos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua centralidade para os estudos na área é destacada já no prefácio de autoria de André Luiz Paulilo, para quem as “[…] perspectivas que o livro alcança não só atualizam problemas de pesquisa, [mas] também percebem aproximações entre grupos de intelectuais bastante heterogêneos e distinguem estratégias de consolidação de redes de circulação e difusão de modelos educativos e culturais” (Paulilo, 2020, p. 9).

Os capítulos trazem uma heterogeneidade de temas, escalas e sujeitos caros ao debate que se organizam em três blocos distintos: ‘sujeitos e redes’; ‘nacional e transnacional’; ‘propostas e apropriações’. No primeiro se aglomeram discussões em torno de trajetórias de educadores cujo papel foi central para a circulação da Educação Nova em diferentes países. Operam metodologicamente pelo estudo dos rastros de uma trajetória individual visando a constituição das redes a partir das quais tais sujeitos operaram. Em ‘nacional e transnacional’ se intenta rastrear as diferentes traduções dos princípios renovadores na América do Sul. Também nesse caso se privilegia o estudo da circulação internacional de ideias e sujeitos. Por fim, em ‘propostas e apropriações’ são aglomerados capítulos que tematizam os impactos da Educação Nova dentro e fora das instituições escolares.

É também cara às autoras a aproximação com as configurações sociais e políticas nacionais e internacionais. Nesse movimento, é possível delinear as esferas de ação de ligas e instituições específicas, tais quais a New Education Fellowship e o Bureau Internacional d´Éducation. Para seu entendimento, acionam o conceito de hub1, que entendem como um “[…] ponto de conexão de redes, local de encontro e passagem” (Vidal; Rabelo, 2020, p. 13). Constituiu-se, pois, como ponto de contato que permite convergências que colaboram para o entendimento das redes instituídas em torno da fórmula da Educação Nova e das ações feitas em seu prol como um dispositivo agregador.

Em ‘A seção brasileira da New EducationFellowship: (des)encontros e (des)conexões’, Diana Vidal e Rafaela Rabelo tematizam a instalação tardia de uma célula nacional da NEF2 no Brasil. A partir das movimentações engendradas em torno das tentativas de criação da seção mapeia-se a dinâmica da criação de redes – nem sempre convergentes – de educadores brasileiros. É em seus embates e rusgas que se afiançam constatações a respeito das disputas na busca por espaço dentro dos mesmos círculos de educadores brasileiros e estrangeiros3. A efetiva criação da seção, enfim, é condicionada pela aproximação entre Brasil e Estados Unidos em meio à configuração dada na Segunda Guerra Mundial. Também para Vidal e Rabelo (2020), a criação da referida seção deveu-se mais a essa aproximação do que propriamente a esforços de educadores nacionais. Tal cenário tem o efeito de favorecer a problematização das conexões que constituem a ampla rede de atores que a ele se vincularam, bem como de ressaltar a relevância das aproximações com os preceitos da Educação Nova e das viagens pedagógicas internacionais.

A movimentação dos atores políticos é também mapeada por Margarida Louro Felgueiras. Em ‘Dois portugueses no movimento internacional da Escola Nova: Faria de Vasconcelos e Antônio Prado’, ambos os sujeitos são colocados em relação e têm seus percursos internacionais mapeados. A autora, nesse movimento estabelece uma distinção entre a ‘Escola Nova’ como perspectiva e como movimento. Ao segundo credita a atuação de Adolphe Ferriére, responsável pela aglutinação de pessoas e políticas educativas em distintos países. É na elaboração dessa pedagogia que situa Portugal no século XX (Felgueiras, 2020, p. 49). No que se refere às trajetórias específicas dos sujeitos dos quais se ocupa, ressalta sua ocasional colaboração mútua, sobretudo no início do século, mas o posterior afastamento devido a divergências na atividade política (Felgueiras, 2020, p. 67).

É também na movimentação de um sujeito que Gary McCulloch se fia para rastreamento das formas pelas quais Fred Clarke contribuiu para a internacionalização de estudos e pesquisas educacionais. Ao tomar como fonte as ponderações e impressões feitas por contemporâneos, mobiliza seu arquivo pessoal e também os arquivos da Carnegie Corporation, do New Zeland Council for Educational Research e do Australian Council for Educational Research.O artigo traz o ganho de fazer pensar a internacionalização e globalização das iniciativas encabeçadas por Clarke antes dos governos nacionais e agências internacionais assumirem uma posição central nesse movimento. Traz também elaborações fortuitas sobre o papel da Educação Nova nos desdobramentos políticos da época. Para o autor, ela foi simultaneamente acionada como um fator de manutenção de continuidades e de estímulo a mudanças (Mcculloch, 2020, p. 90).

O bloco ‘Sujeitos e redes’ se encerra com o capítulo ‘Vertentes da Escola Nova em São Paulo: o ‘caso microscópico’ do Grupo Escolar Rural de Butantan’, de autoria de Ariadne Ecar e Diana Vidal. Nele, as autoras se utilizam da trajetória e das práticas da professora Noêmia Cruz para aquilatar discussões a respeito do ensino rural e das políticas públicas da educação no período. Rastreiam também as conexões entre as dimensões locais e transnacionais pelo estudo de suas práticas, o que permitiu perceber suas operações mesclando representações concorrentes de ensino rural e negociando seus significados (Ecar & Vidal, 2020, p. 108). Ressaltam, por fim, que os resultados da investida não assinalam para uma definição única de ensino rural, mas para um conjunto de entendimentos modulado também por pressões políticas específicas (Ecar & Vidal, 2020, p. 109).

Em ‘Nacional e transnacional’, Martha Cecilia Herrera, Silvina Gvirtz, Gabriela Barolo e Pablo Toro Banco se demoram sobre as reverberações do movimento pela Educação Nova na Colômbia, Argentina e Chile. Em ‘Apropriações e ressignificações da Escola Nova na Colômbia na primeira metade do século XX’, Martha Herrera sustenta que a maioria dos discursos educacionais do período no país retomou alguns dos postulados escolanovistas para elaboração de uma reforma da instrução nacional (Herrera, 2020, p. 115). Assim sendo, mapeia as distintas apropriações do movimento, situa suas imbricações e reconhece os embates entre os postulados escolanovistas e, sobretudo, educadores ligados à defesa da educação católica (Herrera, 2020, p. 124). Ainda para ela,

[…] Todas as tentativas de reformular os eixos sobre os quais a educação funcionava tiveram que passar, necessariamente, pela lógica do discurso da Escola Nova […]. É necessário entender esse movimento como uma corrente pedagógica cuja influência histórica e pertinência levou a colocar em circulação um ideário que […] foi apropriado e ressignificado em diferentes países do mundo […] (Herrera, 2020, p. 130).

A heterogeneidade de tempos, espaços e ideias do movimento é também ressaltada por Silvina Givirtz e Gabriela Barolo.Ao abordarem o movimento em território argentino, demarcam como ponto comum entre suas diferentes expressões a afiliação a postulados reformistas de origem europeia (Gvirtz & Barolo, 2020, p. 133). As autoras investigam o impacto e o percurso do movimento no país, deixando claro que sua temporalidade não estabeleceu uma correlação linear com os tempos da história política, embora existam atravessamentos entre eles (Gvirtz & Barolo, 2020, p. 134). Operam, por essa via, uma análise que contemplou as configurações da macro e micropolítica. Na segunda esfera, destacam algumas alterações no cotidiano escolar e nos discursos docentes. Ressaltam, por fim, que o movimento propunha a melhoria da escola moderna sem, contudo, questionar suas bases. Ainda para elas, foi essa característica que configurou os limites do movimento no sistema educacional argentino (Gvirtz & Barolo, 2020, p. 152).

Por fim, Pablo Toro-Blanco explora as mudanças demandadas dos docentes chilenos em termos afetivos, bem como sua interação com os crescentes graus de fundamentação científica do trabalhado professoral em‘Conselho de viajantes: a Escola Nova e a transformação do papel do professor no Chile (1920 – 1930) – um olhar conciso da história transnacional e das emoções’. Para tanto, entende a história transnacional como a história das conexões para além do âmbito nacional e operacionaliza a análise pela via de conceitos oriundos da história das emoções (Toro-Blanco, 2020). Em que pesem as distintas possíveis apropriações do arsenal pedagógico da Escola Nova, destaca a configuração de um cenário de mudanças de concepções sobre o fenômeno educativo no qual a psicologia infantil e juvenil assumiria um papel central (Toro-Blanco, 2020).

Geneviéve Pezeu inaugura o bloco ‘Propostas e Apropriações’ com o artigo ‘A coeducação vista pela Escola Nova nos anos 1920 e 1930 (entre Suíça, França e Alemanha) ‘. Nele, se pergunta a respeito dos posicionamentos a seu respeito por parte dos movimentos europeus pela Educação Nova. Para tanto, coloca em perspectivas algumas das ambiguidades encampadas em meio ao movimento sobretudo por Adolphe Ferriére (Pezeu, 2020). Mapeia os dois principais argumentos para definição do programa da coeducação no movimento escolanovista francês: o que mobilizou a regulamentação das relações sentimentais e o que avultou a idade ideal para o seu início. Situa uma configuração nacional e interacional que minou as experimentações inovadoras em prol da coeducação, o que fez com que suas iniciativas permanecessem na qualidade de exceções na França (Pezeu, 2020).

Ainda no movimento de análise das diferentes apropriações do escolanovismo, Maria del Mar Pozo Andrés aplica um modelo de estudo de suas recepções no capítulo ‘O método de projetos na Espanha: recepção e apropriação (1918 – 1936)’. Tal modelo estabelece fases para entendimento da recepção das propostas da Escola Nova no país, sendo elas a ‘observação’ da implementação dessas ideias nas escolas estrangeiras, a ‘tradução’ de obras clássicas, a ‘intepretação’ dos preceitos em obras independentes, a ‘adaptação’ dos conceitos e sua ‘apropriação’ pelo magistério, convertendo-se assim em uma cultura pedagógica compartilhada e popular (Andrés, 2020, p. 189 – 192). É esse modelo que a autora operacionaliza para abordar a construção do projeto como metodologia icônica da educação progressiva nos Estados Unidos e os posteriores significados em sua circulação e difusão para, por fim, perscrutar sua apropriação no cenário espanhol já nos anos 1930 (Andrés, 2020). Notifica uma rápida apropriação do método de projetos pelo professorado devido, entre outros fatores, a sua elasticidade conceitual e à possibilidade que imprimiu a um reduzido grupo de professores de produzir um conhecimento pedagógico (Andrés, 2020).

Por fim, o último capítulo do livro retoma o cenário brasileiro em estudo de Ariadne Ecar e Fernanda Franchini, de título ‘Esforços para uma educação nova em São Paulo: discursos e marcas na definição do cinema educativo (1920 – 1930)’. Nele, as autoras abordam apropriações de ideias estrangeiras a respeito do uso do cinema como recurso educativo e, em seguida, se debruçam sobre a instalação da ‘Exposição Preparatória do Cinema Educativo’ no ano de 1931, em São Paulo (Ecar & Franchini, 2020). Conforme as autoras, ela foi um recurso para convencimento a respeito da real possibilidade de uso do cinema como um eficiente recurso de ensino. Defendem ainda que, conforme a análise das fontes, o cinema na sala de aula definiu-se pelos propósitos de valorização dos processos produtivos e formação para o trabalho (Ecar & Franchini, 2020). Situam também os jogos de forças marcados pelos distintos projetos educativos nas décadas de 1920 e 1930, responsáveis pela progressiva centralidade que a instituição escolar assumiu como lócus de formação da nação (Ecar & Franchini, 2020).

A publicação ‘Movimento internacional da Educação Nova’ tem, pois, a relevância de não somente congregar estudos diversos sobre o tema, mas de elaborar uma profícua convergência de análises que permite aquilatar pontos de encadeamento centrais para o cenário educacional. Vale, nesse sentido, destacar a cuidadosa atenção dada à seleção de artigos e análises capazes de nuançar as configurações locais, regionais e internacionais. Essa atenção às diferentes escalas do movimento permitiu assinalar a atuação dos sujeitos políticos pela via das redes que mobilizaram, mas também perceber a formação de organizações institucionais em torno das bandeiras de renovação educacional. É também esse viés que torna possível perceber os significados em disputa e os pontos de estrangulamentos em meio à difusão internacional dos preceitos então defendidos.

Assim sendo, o livro vem para acrescentar perspectivar os movimentos renovadores e situá-los em sua configuração política e social sem, contudo, descuidar de suas apropriações. Vale também ressaltar o reiterado zelo em conceituar as diferentes faces da Educação Nova de acordo com os sujeitos que mobilizou e os territórios nos quais se embrenhou. Esse esforço, todavia, não teve a intenção nem tampouco o efeito de esgotar o tema ou de edificar um conceito estanque sobre as diferentes formas através das quais o movimento operou. Trata-se, portanto, de uma publicação que considera a produção historiográfica já solidificada a respeito do tema e convida a novas investidas de pesquisa e análise.

Referências

Andrés, M. M. P. (2020). O método de projetos na Espanha: recepção e apropriação (1918-1936). In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 189-208). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Ecar, A., & Franchini, F. (2020). Esforços para uma educação nova em São Paulo: discursos e marcar n definição do cinema educativo (1920-1930). In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 209-233). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Ecar, A., & Vidal, D. V. (2020). Vertentes da Escola Nova em São Paulo: o “caso microscópico” do Grupo Escolar Rural de Butantan (anos 1930-1940). In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 91-112). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Felgueiras, M. L. (2020). Dois portugueses no movimento educacional da Escola Nova: Faria de Vasconcelos e António Sérgio. In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 49-68). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Gvirtzm S., & Barolo, G. A Escola Nova na Argentina. Apontamentos locais de uma tradição pedagógica transnacional. In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 133-152). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Herrera, M. C. (2020). Apropriações e ressignificações da Escola Nova na Colômbia na primeira metade do século XX. In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 113-132). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

McCulloch, G. (2020). Fred Clarke, a Educação Nova e a internacionalização dos estudos e pesquisas em educação nos anos 1930. In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 69-90). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Paulilo, A. L. (2020). Prefácio. In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 7-10). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Pezeu, G. (2020). A coeducação vista pela Escola Nova nos anos 1920 e 1930 (entre Suíça, França e Alemanha). In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 175-188). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Toro-Blanco, P. (2020). Conselho de viajantes: a Escola Nova e a transformação do papel do professor no Chile (1920-1930): um olhar conciso da história transnacional e das emoções. In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 153-174). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Vidal, D. G., & Rabelo, R. S. (2020). A seção brasileira da New Education Fellowship: (des) encontros e (des)conexões. In D. G. Vidal & R. S. Rabelo (Orgs.), Movimento internacional da educação nova (p. 25-48). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.

Notas

[1] Ainda para as autoras, “[…] hub consiste em uma espécie de nó, que se situa no meio de várias trajetórias” (Vidal; Rabelo, 2020, p.13).

2 Sigla comumente utilizada pelas autoras para se referirem à New Education Fellowsip.

3 A esse respeito, são delineadas duas linhas de tensões principais. Na configuração internacional se sublinhas as disputas entre a New Education Fellowship e o Bureau Internacional d´Éducation. Nacionalmente, as dissidências entre a Associação Brasileira de Educação e a Federação Nacional das Sociedades de Educação dão o tom do tensionamento.

Carolina Cechella Philippi – Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) vinculada à linha de pesquisa Educação e História Cultural. Pesquisadora junto ao Programa de Extensão e Pesquisa Historiar a educação. E-mail: [email protected]

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Sobre o autoritarismo brasileiro – SCHWARCZ (RBHE)

SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro: São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: ENZWEILER, D. A., & CAREGNATO, L. Sobre o autoritarismo brasileiro. Revista Brasileira de História da Educação, n.20, 2020.

O livro resenhado, Sobre o autoritarismo brasileiro, de autoria de Lilia Moritz Schwarcz, tem como objetivo “[…] reconhecer algumas das raízes do autoritarismo no Brasil, que têm aflorado no tempo presente, mas que, não obstante, encontram-se emaranhadas nesta nossa história de pouco mais de cinco séculos” (Schwarcz, 2019, p. 26). Ao descrever a construção de certa história oficial do Brasil, a autora sinaliza como esse tipo de narrativa pode criar um passado mítico e harmônico, bem como, por outro lado, pode servir de base para a naturalização de estruturas autoritárias. Ancorada no objetivo central de sua obra, pontua pressupostos básicos na elaboração e perpetuação de uma história pautada em mitos nacionais, mostrando-se profundamente enraizados ao imaginário brasileiro atual, destacados nas entradas temáticas de cada um dos capítulos subsequentes. A autora é graduada em História pela Universidade de São Paulo-USP, possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade de Campinas- UNICAMP e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo-USP. É professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, editora e membro editorial de periódicos nacionais e internacionais.

A obra livro divide-se em 10 capítulos. Entre os capítulos inicial e conclusivo, há 8 capítulos temáticos variados, como descrevemos na sequência. Dentre tais elementos, pode-se destacar que, apesar das permanências e recorrências em relação a questões historicamente problemáticas no Brasil, conforme as temáticas abordadas, conclui-se que as novas ondas de autoritarismo não são semelhantes às de outrora. De acordo com as análises, os novos governos com tendências autoritárias, que se destacam em diferentes países nos últimos anos, dentre eles o Brasil, estão articulados a outras demandas.

No capítulo 1, ‘Escravidão e Racismo’, destaca-se que a escravidão, no Brasil, por ter sido um dos últimos países no mundo a aboli-la (via processo conservador), foi mais que um sistema de organização econômica, mas uma forma de moldar as condutas individuais. Aponta que há mudanças nas formas de manifestação do racismo: do discurso científico e biológico (darwinistas raciais) no período pós-emancipação, para um tipo de ideologia social. Conclui-se que, apesar das conquistas do movimento negro desde o século XX, da legislação e dos direitos adquiridos no século XXI, há muitas evidências estatísticas que indicam a perpetuação de práticas discriminatórias e racistas, apontando que avanços e novas conquistas ainda são necessárias.

Já no capítulo 2, ‘Mandonismo’, aponta que o modelo da família patriarcal pode ser compreendido a partir da análise do modelo colonial brasileiro. Utilizando-se de exemplos do caso açucareiro, sinaliza que há poucas mudanças para a época posterior, de ascensão do café na região Sudeste, na qual predominam lógicas muito semelhantes. Ao deter-se sobre o período republicano, destaca que permanece um perfil oligárquico no governo da nação. No decorrer do século XX, também há práticas decorrentes dos modelos descritos, dentre eles o coronelismo, presente nos dias atuais em algumas regiões brasileiras, perpetuando a relação entre mandonismo, concentração de renda e poder político. Contemporaneamente, também se evidencia que, pelas novas possibilidades frente às mídias sociais, surge a figura do político populista digital, uma espécie de ‘presidente-pai’. De acordo com as análises, a linguagem que herdamos do mandonismo encontra sobrevida na nova era dos afetos digitais, igualmente autoritários.

No capítulo 3, ‘Patrimonialismo’, destaca que, historicamente, o Brasil possui um tipo de déficit republicano. Salienta que há dois grandes inimigos no cenário nacional: o patrimonialismo e a corrupção. Para refletir sobre tais práticas, utiliza-se de estudos de variados sociólogos brasileiros para pensar especificidades locais, como a cordialidade, as práticas nepotistas e suas relações com a formação colonial brasileira. Como síntese, indica que a prática política nacional é fortemente marcada pelos afetos, resultando em um tipo de corporativismo. E, nessa lógica, assuntos relativos ao Estado tornavam-se, no limite, problemas de ordem privada. Com a Independência, criam-se algumas instituições, mas as práticas patrimonialistas não mudam de forma considerável. No período do 2º Reinado há uma nova versão da corte, resultando na formação de uma nobreza bem específica, denominada de ‘meritória’, com características distintas da nobreza europeia, marcadas pelo nascimento. No período Republicano, são criadas algumas instituições mais fortes, porém as práticas descritas permanecem. Como exemplo, destaca-se a força do coronelismo durante a 1ª República, bem como o voto de cabresto, prática político-cultural muito presente no respectivo contexto. Com a Constituição de 1934 e de 1988, por exemplo, há garantias legais consideráveis. Atualmente, ainda é possível localizar legados de tais práticas no cenário político nacional, especialmente pelos dados relativos às ‘bancadas dos parentes’. Também se destacam algumas dinastias que dominam o poder político em alguns territórios e as barganhas pessoais pelas emendas parlamentares para angariar votos nos espaços municipais como práticas ainda correntes.

Já no capítulo 4, ‘Corrupção’, destaca que a corrupção, junto ao patrimonialismo, seria um inimigo da república presente até os dias atuais. No Brasil, tais práticas mostram-se presentes tanto no mundo político quanto nas relações humanas e sociais. Nas análises, identifica conexões, em maior ou menor escala, da corrupção no cotidiano atual, enraizadas desde os tempos do Brasil Colônia e Império. Como exemplo, cita o modo particular de negociação e relação no período colonial, marcado pelo ‘jeitinho brasileiro’. Já no início da república, se destaca o coronelismo, que trata de uma combinação entre a consolidação do modelo republicano federalista e a ascendência das oligarquias agrárias, marcada pela prática do voto de cabresto. É somente após o ano de 1945 que o Estado brasileiro passa a legislar sobre corrupção, tanto na perspectiva do Estado, como sobre práticas individuais. Entretanto, pontua-se que, por exemplo, em 1964, os militares utilizaram-se do discurso contra corrupção como argumento para a tomada de poder, apesar de promoverem novos tipos de corrupção. Já no período da 3ª República, pós Constituição de 1988, destaca-se que as instituições passaram a funcionar melhor, articuladas às denúncias da imprensa. Assinala que a corrupção pode ser compreendida como uma forma endêmica de governar no Brasil. Pelo seu caráter de enraizamento histórico, pela falta de instituições públicas fortes e pela pouca transparência no trato com as questões públicas, a corrupção justifica a crise institucional e política atualmente vivida.

No capítulo 5, ‘Desigualdade Social’, destacam-se as variadas facetas da desigualdade no Brasil. De acordo com suas análises, as desigualdades têm uma herança que remonta ao passado colonial e indica que o Brasil é formado dentro de uma linguagem da escravidão que, somada à corrupção e ao patrimonialismo, esboça um quadro propício para a constituição de um país desigual. Na mesma perspectiva, destaca que a desigualdade social nunca foi centralidade nos projetos políticos que governaram o país. Atentando-se ao período colonial, demonstra-se que, juntamente aos parcos investimentos, o acesso à educação primária era privilégio de poucos. Durante a 1ª República e a promulgação da nova Constituição em 1891, poucas reversões consideráveis puderam ser evidenciadas. É somente na década de 1920, marcada pelo ‘otimismo pedagógico’, que a área educacional recebe novo alento, especialmente pelas experiências estaduais promovidas por expoentes do movimento da Escola Nova no país. Apesar de investimentos pontuais, a educação brasileira ainda era marcada fortemente por um dualismo: uma escola para as elites e classes médias e outra para as camadas populares. Destaca-se que a reforma Capanema e a tendência de urgentemente profissionalizar a massa trabalhadora, manteve e também fortaleceu tal dualidade do sistema educacional. Com a Constituição Federal de 1988, são estabelecidas duas prioridades para a educação nacional: universalização do ensino fundamental e erradicação do analfabetismo. Ao se comparar o Brasil com outros países latino-americanos, com semelhante passado colonial, o país vigora como um dos mais problemáticos, considerando-se seu déficit educacional. Conclui-se que a desigualdade social tem um impacto na vida educacional da população em idade escolar.

Já no capítulo 6, ‘Violência’, destaca-se que o Brasil, de acordo com estatísticas recentes, está entre um dos países mais violentos do mundo. Analisando a violência urbana, indica que, entre a década de 1980 e o ano de 2003, ocorreu um tipo de corrida armamentista, contida pela aprovação do Estatuto do Desarmamento nesse último ano. Apesar dessa constatação, a partir do ano de 2014, dados sugerem uma nova tendência ao armamento pessoal da população brasileira. Historicamente, o sistema escravocrata consolidou-se como uma maquinaria repressora. Apesar do curso histórico não poder ser explicado por fatores únicos, é possível averiguar padrões de continuidade perpetuados por práticas violentas anteriores. Sugere-se que a epidemia de violência que assola o Brasil deve ser compreendida pela análise de múltiplos fatores, para que o ceticismo em relação à segurança pública não leve a posturas radicais, tais quais as tendências atuais têm apontado. Com o gradativo aumento da violência, atrelada à sensação de impunidade, sobressaem-se tendências autoritárias. Outra faceta da violência no Brasil são as lutas do campo. Nelas, destacam-se a invisibilidade e a dizimação das populações indígenas do Brasil. Dos bandeirantes até a luta contra o agronegócio, os povos indígenas brasileiros têm sido sistemática e historicamente alvos de violências. Destaca que a luta de tais grupos se pauta por direitos historicamente negados. Nesse sentido, utiliza-se uma narrativa mitológica para tornar invisíveis tais sujeitos sociais em suas lutas.

No capítulo 7, ‘Raça e Gênero’, são abordados marcadores sociais variados, como raça, geração, local de origem, gênero e sexo, capazes de produzir diferentes formas de subordinação. As questões relacionadas aos negros se destacam: disparidade salarial, tempo de vida, violência urbana. Quando há outros elementos interseccionados, o quadro torna-se ainda mais alarmante. Dentre eles, destaca a epidemia da violência contra jovens negros das periferias urbanas. O Brasil, nesse caso, também promove um tipo de racismo dissimulado: apesar de a narrativa popular caracterizar o país pela sua capacidade de inclusão cultural, as evidências apresentadas indicam um grave quadro de exclusão social e racial. O racismo estrutural e institucional também se direciona às mulheres, especialmente pela violência sexual. A violência contra mulher e a própria cultura do estupro têm raízes que remontam ao período colonial, marcado por características patriarcais. Uma das justificativas que condicionam o ataque a alguns públicos é que quanto mais autoritários os discursos, maiores as necessidades de controle sobre o corpo, a sexualidade e a própria diversidade.

E no capítulo 8, ‘Intolerância’, se propõe a desconstrução da ideia de que somos uma nação avessa aos conflitos e pacífica na sua índole. Aponta que a ‘negativa’ também é uma forma de intolerância, uma vez que evita o confronto. Entretanto, hoje passamos a praticar o oposto: em um cenário polarizado, não há mais necessidade de ser pacífico, dando-se ênfase à intolerância e à violência. Assim, pontua que tendências autoritárias funcionam pela lógica dos ódios e dos afetos, pois a forma binária produz desconfiança em relação àquilo que não pertence à ‘própria comunidade moral’. Essa lógica reforçaria o ataque à imprensa, aos intelectuais, à universidade, à ciência, entre outros, dando lugar à exaltação do homem comum. Conclui-se que a intolerância que hoje impera em nosso país tem raízes variadas, de longo, médio e curto curso. A cordialidade nunca existiu, mas caracterizou-se como uma “[…] performance política e cultural, e não um retrato fiel da ausência de atritos e ambiguidades entre os brasileiros” (p. 219). De acordo com a autora, a resposta para a crise só virá de um projeto de nação mais inclusivo e igualitário, possível a partir de sua aposta na educação pública e de qualidade.

Em suas considerações finais, retoma a ideia de que há fantasmas do passado que, invariavelmente, sempre voltam a assombrar. Governos de tendências autoritárias, por sua vez, costumam criar a sua própria história, sem preocupação com fatos e dados históricos. Pela defesa de um passado nostálgico, ‘o tempo de antes’, conjuga-se um léxico familiar de afetos, projetando simbolicamente uma espécie de civilização, com ordem e harmonia social, mas que, de fato, jamais existiu: uma memória fora do tempo. A plenitude perdida, nessa perspectiva, tende a criar mitos, líderes supremos, típicos dos governos com tendência autoritária. Nessa perspectiva, diferenciam-se as tendências autoritárias do século XXI dos nazismos e fascismos presentes no século XX. Assim, defende-se uma educação pública com sentido republicano, para que o sentido democrático seja respeitado. Para superar nosso déficit republicano e evitar crises democráticas, tal qual a que vivemos atualmente, a educação seria uma forma de promover menos líderes carismáticos e mais cidadania consciente e ativa. Apesar dos efeitos das crises, em suas palavras, elas também podem abrir frestas para outras possibilidades.

A obra resenhada evidenciou um estudo histórico, com variedade temática, visando compreender a crise institucional e política que assola o país. Mostrou-se de extrema relevância para compreensão do cenário atual e das próprias raízes históricas que constituem esse quadro. Da mesma forma, defende-se a ideia de que só é possível mudar o futuro a partir de uma perspectiva histórica. Dentre as suas variadas contribuições, destacam-se as diferenciações acerca dos autoritarismos do século XX em relação ao século XXI. Ao desmistificar a tese do brasileiro cordial, também possibilita compreender o fenômeno da intolerância que assola o país. Assim, entende-se o porquê desse fenômeno e, da mesma forma, torna-se possível vislumbrar formas de resistência. Esses elementos destacam a urgência e relevância de estudar, analisar e combater o autoritarismo, conscientes de suas raízes históricas ainda presentes, como fantasmas, em nossa atualidade. E a obra analisada mostra-se potente para esse diagnóstico, enfatizando a centralidade da educação nesses movimentos.

Referências

Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras

Deise Andreia Enzweiler – Possui Graduação em Pedagogia (UFRGS). Especialização em Educação Inclusiva (Unisinos). Mestrado em Educação (PPGEdu-Unisinos). Doutoranda em Educação (PPGEdu-UNISINOS – Bolsista CAPES-PROEX). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Inclusão (GEPI-Unisinos- CNPq). E-mail: [email protected]

Lucas Caregnato – Possui Graduação em História (UCS). Especialização em História Regional (UCS). Mestrado em História (UPF). Doutorando em Educação (PPGEdu-Unisinos – Bolsista CAPES-PROEX). Presidente do Conselho Municipal de Educação de Caxias do Sul e coordenador do Núcleo de Acolhimento à Diversidade da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Retrato de un joven pintor: Pepe Zúñiga y la generación rebelde de la ciudad de México – VAUGHAN (RBHE)

VAUGHAN, M. K.. Retrato de un joven pintor: Pepe Zúñiga y la generación rebelde de la ciudad de México. Aguascalientes, MX: Universidad Autônoma de Aguascalientes, CIESAS, 2019. Resenha de: ACERVES, M. T. F. Retrato de un joven pintor: Pepe Zúñiga y la generación rebelde de la ciudad de México (Reseña). (2020). Revista Brasileña de Historia de la Educación, 20, 2020.

Retrato de un joven pintor: Pepe Zúñiga y la generación rebelde de la ciudad de México es una obra de la historiadora Mary Kay Vaughan. Ella reconstruye la vida de Pepe Zúñiga desde la perspectiva de la nueva biografía a lo largo de 423 páginas, una introducción y 10 capítulos. Vaughan es una historiadora que ha sido pionera en diversos campos en la historia, especialmente en la historia social de la educación en México.

Las diversas investigaciones históricas de la Dra. Vaughan muestran no sólo cómo ella ha utilizado diferentes miradas para examinar a la escuela como una institución fundamental en la modernización de México del Porfiriato a la época cardenista, sino también cómo la historia se ha transformado desde la década de 1970 al presente, de una visión marxista estructuralista a una perspectiva cultural y de género.

En su primer libro sobre la educación en México, El estado, las clases sociales y educación en México, 1880-1928 publicado en 1982 por la SEP y el FCE, se interesó por examinar cómo se construyó la política educativa durante el Porfiriato y en el gobierno posrevolucionario que estableció la SEP en 1921. Evaluó los alcances y limitaciones de la puesta en marcha de la política educativa de la educación vocacional, los libros de texto y el movimiento del nacionalismo cultural en la década de 1920.

En el libro colectivo Las mujeres del campo mexicano, 1850-1990 que editó junto con Heather Fowler-Salamini, publicado en inglés en 1994 y en español en 2004, utilizaron la categoría de género y pusieron en el centro del análisis a las mujeres del campo desde la Reforma liberal en el siglo XIX hasta el neoliberalismo de finales del siglo XX. Con esta obra rompieron con la invisibilidad e imagen sumisa de las mujeres de las zonas rurales. Examinaron cómo mujeres de diversas clases sociales y trayectorias enfrentaban, acumulaban, descartaba y reformulaban valores, conocimientos, experiencias, habilidades y costumbres. Entre los aportes de esta obra están el fino análisis de las cambiantes relaciones de género y las prácticas en la política agraria de la Revolución Mexicana entre 1910 y 1940. En concreto, Vaughan arguye que las nuevas políticas posrevolucionarias generaron cambios dentro de la familia patriarcal y contribuyeron a erosionar el poder de la familia patriarcal. Las mujeres y los jóvenes tuvieron nuevos espacios y funciones a través de una política desarrollista enfocada en la familia, que permitió su movilización y su empoderamiento. Los líderes revolucionarios burgueses extendieron la definición de domesticidad por medio de la modernización de la familia patriarcal y disminuyeron las desigualdades de género.

En su tercer libro La política cultural de en la Revolución: maestros, campesinos y escuelas en México, 1930-1940, publicado en inglés 1997 y en español en 2000, dio un giro substancial para analizar la política educativa de una perspectiva desde arriba a una mirada de abajo hacia arriba, para desmenuzar cómo se construyó, implementó y negoció el proyecto de la educación socialista. La política educativa progresista de la década de 1930 buscó nacionalizar y modernizar la sociedad rural. Desde una mirada posrevisionista de la Revolución Mexicana, que entreteje posturas teóricas subalternas, de género y culturales, Vaughan reconstruye con gran detalle las voces multifacéticas, el lenguaje revolucionario de los hacedores de la política pública, maestros, campesinos en dos regiones contrastantes Puebla y Sonora. Por medio de estos dos estudios de caso incorpora la noción de la racionalización de la domesticidad, debate sobre la construcción hegemónica del Estado posrevolucionario y deconstruye el ‘discurso oculto’ de los campesinos. Su argumento central “[…] es que la verdadera revolución cultural de los años treinta no se encontró en el proyecto del Estado sino en el diálogo entre Estado y sociedad que ocurrió en torno de este proyecto” (Vaughan, 2000, p. 42). En esta obra recibió el Herbert Eugene Bolton Prize como el libro más sobresaliente en la historia de América Latina en 1997, otorgado por la Conferencia de la Historia Latinoamericana de los Estados Unidos; también ganó el Bryce Wood Award de la Asociación de Estudios Latinoamericanos (LASA).

En 1998 editó junto con Susana Quintanilla, Escuela y sociedad en el periodo cardenista, para reflexionar por qué la educación socialista no tiene paralelo con ninguna otra reforma educativa en México, se preguntaron ¿es posible transformar el sistema educativo? ¿cuáles son las estrategias para lograrlo? ¿cómo se comportan las instituciones políticas y civiles en un proceso de transición? ¿qué cambia y qué permanece dentro de la escuela? Contribuyen al entendimiento cómo fue aplicado en diferentes entidades, regiones y comunidades. Ponen especial atención a las dinámicas y procesos locales que marcaron de manera distinta la implementación de la educación socialista.

Durante la década de 1990, en especial a finales de ésta, Vaughan fue una entusiasta promotora de los estudios culturales y de género en la historia de México, mientras se daba el álgido debate en la academia norteamericana sobre el giro lingüístico y de la nueva historia cultural. La nueva historia cultural brinda herramientas para analizar los discursos, prácticas y representaciones de hombres y mujeres en su contexto. Las narrativas de sus experiencias son un vehículo para entablar un diálogo entre las fuentes primarias y las discusiones teóricas sobre discurso, experiencia, género, memoria, narrativa y subjetividad. Esta interlocución se ha dado en el campo de la historia a partir de la influencia de la antropología cultural, invitó a los historiadores a examinar las formaciones socioculturales como textos y a poner atención en los usos del lenguaje y el análisis del discurso; promovió el acercamiento a la antropología y estimuló a los historiadores a considerar a los artefactos culturales como perfomativos, más que simples expresiones. La nueva historia cultural también fue receptiva a los postulados feministas; éstos sensibilizaron sobre los vínculos entre las vidas públicas y privadas y entre ficciones e ideologías. Así mismo la nueva historia cultural se acercó a los estudios literarios para examinar las nociones como intertextualidad (una historia siempre alude a otra historia) y la recepción de los lectores. Es precisamente en esta postura que Vaughan se ha identificado. Colaboró en el debate entre varios historiadores norteamericanos mexicanistas que reflexionaron en la perspectiva cultural, poscolonial, y de género. Este debate fue publicado en un número especial en el Hispanic American Historical Review llamado ‘La lucha libre’, en 1999.

En 2006 editó junto con Steve Lewis, The eagle and the virgin: cultural revolution and national identity in Mexico, 1920-1940. Esta obra colectiva se centra en un análisis cultural y de género para deconstruir cómo la nación es inventada y reinventada, examina como el proyecto masivo de la construcción del Estado se llevó a cabo entre los decenios de 1920 y 1940. Hay un fino análisis de cómo la identidad nacional se forjó entre diferentes grupos sociales, católicos, trabajadores industriales, mujeres de la clase media y comunidades indígenas. En este libro Vaughan sopesa los debates opuestos entre el águila (el Estado secular modernizador) y la Virgen de Guadalupe (la defensa católica de la fe y la moralidad). Argumenta que, a pesar de enfrentamientos violentos y discusiones álgidas, el repertorio simbólico creado para promover la identidad nacional y su memoria al final el águila y la virgen lograron coexistir pacíficamente.

En 2006 editó junto con Gabriela Cano y Jocelyn Olcott el libro colectivo Sex in revolution, publicado en español en 2009 bajo el título Género, poder y política en el México posrevolucionario. En este libro avanzó en los debates sobre la historia de mujeres y de género en México y en América Latina porque centró su análisis en el orden de género y los cambios generados por la Revolución Mexicana y el proceso revolucionario en la sexualidad, trabajo, familia, prácticas religiosas y derechos civiles.

En 2015, Vaughan publicó en inglés la biografía del pintor Pepe Zúñiga en la editorial Duke University Press y en 2019 la versión en español1. En este estudio biográfico ha sintetizado por qué los historiadores de la cultura han dado el ‘giro a la biografía’. Pero ¿qué implicó reconstruir la vida de Pepe con base en la nueva biografía que parte del “[…] principio de que las personas están situadas ‘dentro de las estructuras sociales y los regímenes discursivos, pero no están presas dentro de ellos’”? (p. 25, énfasis añadido). De acuerdo con la autora, esta perspectiva biográfica “[…] permite ver la manera en la que las personas negocian los procesos y los encuentros educativos” (p. 25). Para el lector y/o público en general, utilizar esta perspectiva podría parecer que implica una labor sencilla. Por el contrario, Mary Kay Vaughan emprendió un trabajo titánico. Con base en un andamiaje teórico y metodológico de la nueva biografía; del análisis de Nobert Elias sobre la generación alemana después de la posguerra y su rebeldía; las propuestas de Jürgen Habermas sobre la construcción de la esfera pública; de la filosofía fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, y una gran sensibilidad, reflexión histórica y gran empatía de la autora, ella logra entender y construir narrativas intersubjetivas para darle voz a personas que generalmente han quedado fuera de las grandes narrativas históricas. Es decir, en esta obra, Pepe, sus hermanos, sus amigos y la autora construyeron una narrativa intersubjetiva de la experiencia y la memoria selectiva, sensorial, emotiva y generacional. Con ese ejercicio de la memoria colectiva y de ir más allá de las entrevistas, de etnografías históricas y fuentes primarias (como la letra y melodía de algunas canciones, películas y producciones teatrales; textos escolares, libros, revistas, y las crónicas periodísticas de sus exposiciones; tarjetas postales; álbumes; y fotografías) y secundarias (como el arte, la educación, la música, lo urbano, historias sobre el deporte, ensayos sobre la cultura popular y las biografías de sus amigos artistas), Mary Kay Vaughan logra reconstruir cuidadosamente las experiencias de tres generaciones de las familias materna y paterna de Pepe; de los hombres y las mujeres, sus oficios, costumbres, su vida cotidiana, prácticas religiosas, su trabajo, su sensualidad, su sexualidad y de su entretenimiento en Oaxaca y la Ciudad de México.

Para lograrlo, la autora se nutre de varias historiografías como de la vida cotidiana; de la familia; del cine (del mudo, de Hollywood, alemán, italiano y mexicano); de la infancia; social de la educación (la escuela, los libros de texto, las escuelas vocacionales, la autoformación y la Escuela La Esmeralda); de la radio; de la música; del baile (como el fox-trot, tango, sima, Charleston, tap, rumba, danzón, exóticos –Tongolele—y el rock and roll); del teatro de Pánico; de la pintura (de la Escuela Mexicana de Pintura de realismo social, basada principalmente en la pintura mural y las artes graficas; del movimiento de ‘La Ruptura’ que no enfatizaba la política social y el compromiso democrático; y la ‘generación olvidada’ de pintores distinguidos de manera aislada, nacidos entre 1935 y 1945); historia de mujeres y de género; de las masculinidades; historia social del trabajo (de sastres, costureras y técnicos del radio), y por si no fuera suficiente, la historia de las emociones, de las sensibilidades y los afectos.

La autora las entreteje estas diversas historias con una historia transnacional y global de distintos procesos históricos de corta, mediana y larga duración para ubicar a Pepe, su familia, su barrio, amigos, escuelas, aprendizaje y sensibilidades en un ‘tiempo y espacio vivido’ en la ciudad de Oaxaca y la Ciudad de México. La narrativa intersubjetiva en esta obra se mueve en distintas escalas: la emocional – corporal – subjetiva– intersubjetiva, la familia, el barrio, las generaciones, el género, lo local, regional, nacional y transnacional.

Con base en este minucioso análisis, la autora identifica las experiencias que Pepe cuenta y sostiene que éstas aclaran cuatro procesos: 1) “[…] una movilización después de la Segunda Guerra Mundial por el bienestar de la niñez y el desarrollo personal […]”; 2) el florecimiento del entretenimiento; 3) “[…] la domesticación de masculinidad violenta relacionada con la política social y el cambio político, las cambiantes estructuras económicas, sociales, comerciales y con los medios masivos de comunicación […]” (p. 31). y 4) “[…] la formación de un publico critico de jóvenes en la década de 1960, mismo que después de 1970 catalizó el surgimiento de una esfera pública democrática de discusión política, de expresión artística y de entretenimiento. Esa esfera pública cada vez más democrática conformó y ha sido conformada por la apertura de los regímenes políticos y sociales, y por los cambios en los mercados y en las tecnologías […]” (p. 31-32).

Mary Kay Vaughan identifica los goznes, los quiebres, los turning points que Pepe Zúñiga experimentó y cómo “[…] su narración es, en sí misma, el entrelazamiento entre el proceso socioeconómico y los discursos aprendidos para interpretar este proceso” (p. 27). La autora sostiene que

La historia de Pepe muestra la manera en la que los medios de comunicación, sus mensajes y sus tecnologías, sugieren la formación de una subjetividad más crítica y exigente, y una nueva noción sobre los derechos, algo totalmente opuesto a lo que Habermas predijo en 1962 y más de acuerdo con la noción de Elias sobre un espacio cualitativo para la comunicación y el desarrollo personal en el período inmediatamente posterior a la Segunda Guerra Mundial. […] Los medios de comunicación, argumentaba él, creaban desdén y apatía hacia las instituciones públicas y la vida política (p. 32, 37)

Pepe Zúñiga proviene de una familia pobre de la ciudad de Oaxaca que migró a la Ciudad de México en 1943; él buscó y luchó su superación personal y profesional para cambiar la condición social de su familia. Para analizar estas transformaciones (familiares, culturales, educativas, laborales, emocionales y sensoriales), la autora examina distintos espacios de aprendizaje como la música, el baile, el barrio popular (Carmen Alto en la ciudad de Oaxaca y la Colonia Guerrero en la Ciudad de México), la familia (nuclear y extendida), las escuelas, la iglesia, el cine, la radio, el teatro, entre otros.

Considero que uno de los aportes más importantes de Mary Kay Vaughan en Retrato de un joven pintor es a la creciente historiografía de la historia de las emociones en Estados Unidos, Europa y América Latina. De acuerdo con la historiadora Laura Kounine, los cuatro hilos principales de la historia de las emociones son la emocionología (emotionology Peter Stearns y Carol Stearns); comunidades emocionales (Barbara H. Rosenwein); regímenes emocionales (William Reddy) y prácticas emocionales (Monique Scheer) (Kounine, 2017). En conjunto, estas metodologías examinan la forma en que las emociones se han definido, gobernado y expresado en una sociedad y período determinado y cómo han cambiado a lo largo del tiempo.

Investigar, documentar y analizar los cambios emocionales no es una tarea fácil. Mary Kay lo logra al demostrar y argumentar que “[…] hubo transformaciones en la domesticación de la masculinidad violenta, la suavización de la dureza masculina, y la feminización de su sensibilidad” (p. 44). Las fuentes que generaron estos cambios provinieron del cine, la escuela, los libros de texto, las canciones de Cri-Cri, entre otros elementos, los cuales dieron paso a la ‘ternura’. Gustavo Sainz utilizó esta palabra para describir “[…] el despertar emocional y el apalcamiento de su salvaje delicuente, el ‘Compadre Lobo’” (p. 48, énfasis añadido). Para Mary Kay Vaughan, éste es un sentimiento “[…] que estaba surgiendo entre la juventud de la Ciudad de México desde finales de la década de 1950” (p. 48). Para mi, aquí está el centro del argumento de la autora y su aportación significativa a la historia del movimiento del 68 y su rebeldía. En sus palabras, “[…] la misma privatización del sentimiento impulsó la apertura de la esfera política”. Y concluye que,

En gran medida, los jóvenes rebeldes de la década de 1960 generaron la presión, la subjetividad, y, a medida que maduraban, se convirtieron en los ciudadanos de esta democratización. Ellos, a pesar de que no lograron liberarse totalmente de los comportamientos y convenciones que denunciaban, contribuyeron a una transformación de la política, las conductas sociales y la expresión artística (p. 382).

Finalmente, considero que este libro establece puentes para entablar un diálogo desde la perspectiva histórica con las participantes de los movimientos de la ‘Diamantina Rosa’ y los performances del Colectivo de las Tesis de Chile que se han realizado en diversas ciudades del mundo, ‘Un violador en mi camino’, que han confrontado con mucha fuerza las prácticas patriarcales. Considero que las jóvenes de estos movimientos pueden aprender que ‘el patriarcado’ debe historiarse, ubicarlo en su contexto (tiempo y espacio). Por tanto, entender e identificar las transformaciones de las prácticas masculinas de poder, ayudará a no dar por sentado que el patriarcado es omnipresente. Por el contario, debemos preguntarnos cómo ha sido su construcción social histórica. Así lo hace Mary Kay Vaughan en esta obra al señalar los cambios y las herramientas (el cuchillo, las tijeras y el pincel) que utilizaron tres generaciones de los hombres Zúñiga para construir su masculinidad, ejercer la violencia, el poder y expresar sus sensibilidades.

Quedan muchas cosas más en el tintero, mi reseña es una probadita de este libro que recurre a una gran diversidad de perspectivas historiográficas, fuentes primarias y secundarias. Recomiendo su lectura no sólo para académicos interesados en la biografía y en la educación, sino también para un público más amplio.

Referências

Kounine, L. (2017). Emotions, mind, and body on trial: a cross-cultural perspective. Journal of Social History, 51(2), 219-230.

Vaughan, M. K. (2000). La política cultural de en la Revolución: maestros, campesinos y escuelas en México, 1930-1940. México, MX: Fondo de Cultura Económica.

Vaughan, M. K. (2015). Portrait of a young painter: Pepe Zúñiga and Mexico city ‘s rebel generation. Durham, NC: Duke University Press

Notas

1 Para el título en ingléses ver: Vaughan (2015).

María Teresa Fernández Aceves – Es doctora en historia de América Latina por la Universidad de Illinois en Chicago, con especialidad en historia de mujeres y de género. Se desempeña como profesora e investigadora en el CIESAS Occidente desde 2001. Su investigación se ha centrado en la historia laboral, la historia de mujeres y de género en México en el siglo XX. E-mail: [email protected]

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Inclusão & educação – LOPES; FABRIS (REi)

LOPES, M. C.; FABRIS, E. H. Inclusão & educação. Belo Horizonte: Autêntica: 2013. Resenha de: FREITAS, Márcia Guimarães de; SILVA, Lázara Cristina da. Revista Entreideias, Salvador, v. 8, n. 1, p. 7-26, jan./jun. 2019.

O livro Inclusão e Educação foi escrito por Maura Corcini Lopes e Eli Henn Fabris, ambas professoras doutoras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e participantes do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão (GEPI/CNPq), que é formado por pesquisadores de distintas universidades do estado do Rio Grande do Sul (RS). Esses pesquisadores têm em comum a pesquisa no campo da educação e o interesse em estudar a emergência da inclusão, alicerçando-se em uma perspectiva pós-estruturalista, que busca, principalmente na concepção de Michel Foucault e autores afins, pensar, entender e tensionar os campos discursivos em que a inclusão emerge. As autoras destacam que o GEPI está na retaguarda das discussões e questionamentos encontrados neste livro, e que esse grupo tem sido o precursor dos estudos que utilizam a abordagem foulcaultiana sobre o tema da inclusão.

A obra problematiza, numa perspectiva geral, a preocupação crescente com a inclusão, e especificamente com a inclusão escolar no Brasil, ao considerar que a inclusão ocupa um status de imperativo de Estado e torna-se uma das estratégias para que o ideal da universalização dos direitos individuais, no caso, a educação para todos, seja considerado como uma possibilidade. Inclusão como imperativo de Estado implica, pelo seu caráter impositivo, ninguém poder deixar de cumpri-la e nenhuma instituição ou órgão público pode refutá-la; significando, ainda, que deve atingir a todos, independentemente dos desejos dos indivíduos.

O texto busca olhar o tema inclusão provocando nele rachaduras que possibilitem problematizá-lo, sem limitar-se à mobilização pela obediência à lei, pelo caráter salvacionista ou pela necessidade de mudanças que são exigidas do país no tempo presente. Indo além, busca pensar a inclusão na perspectiva do interesse de ter nossas condutas dirigidas de forma mais coerente com a noção de educação para todos.

As autoras consideram que tensionar a inclusão inscreve-se na problematização do governamento e da governamentalidade.
Os estudos foucaultianos se concentraram em pesquisar como governamos os outros e como governamos a nós mesmos, tendo como objetivo examinar o aparecimento de diferentes práticas de governamento que organizam instituições e regulamentam condutas. De acordo com Veiga Neto (2002), as palavras governamento e governamentalidade seriam palavras mais adequadas para se problematizar os processos de regulamentação das condutas de uns sobre os outros, bem como das ações dos sujeitos sobre si mesmos.

O livro discute a inclusão como uma estratégia do Estado brasileiro para fazer acontecer um tipo de governamentalidade neoliberal alinhada com nosso tempo. Na contemporaneidade, a arte de governar se constitui de práticas de uma racionalidade econômica que opera, tanto sobre as condutas de cada indivíduo, quanto sobre a população que se quer governar. Nesse sentido, a escola passou a ser um espaço útil para o Estado, que, por princípio de governo, necessitava disciplinar e manter sob controle os indivíduos e segmentos sociais que ameaçassem a ordem social. Assim, nos séculos XIX e XX, desenvolve-se um modo de vida que exige que a escola seja capaz de educar indivíduos para a racionalidade, para a autocondução e o autogoverno, sendo o indivíduo responsabilizado pelo que lhe acontece e por gerir sua própria independência.

As autoras afirmam que, para entender a inclusão, é interessante conhecer os conceitos de normação e de normalização, pois ambos constituem, no presente, as práticas que determinam a inclusão. O primeiro conceito é típico de uma sociedade disciplinar, enquanto o segundo é típico de uma sociedade que uns consideram de seguridade e outros de controle ou de normalização. Importante é conhecer também o conceito de normalidade, utilizado entre os especialistas da saúde e da educação, sendo que todos esses conceitos partem da noção de norma.

O texto fundamenta-se em Ewald (1993, p. 86) para explicar o conceito de norma como “[…] um princípio de comparação, de comparabilidade, de medida comum que se institui na pura referência de um grupo a si próprio, a partir do momento em que só se relaciona consigo mesmo”. Pode-se entender que, além de ser instituída no grupo e pelo grupo, a norma tem um caráter fundamentalmente prescritivo. Lopes e Fabris (2013), buscando embasamento em Ewald (2000), afirmam que a norma, ao funcionar como um princípio de comparabilidade e de medida, age com a intenção de incluir todos, de acordo com critérios construídos no interior dos grupos sociais e a partir deles. Assim, pode-se dizer que a norma é criada a partir das variações do grupo de indivíduos que ela observa, classifica e normaliza. É uma invenção construída mediante observações baseadas nas relações estabelecidas entre os sujeitos, em suas formas de se comportar e de se desenvolver.

Como já dito anteriormente, nos dispositivos disciplinares, a norma atua na população por normação, o que significa que primeiro se define a norma e depois os sujeitos são identificados, sempre de forma dicotômica, como normais ou anormais, deficientes ou não deficientes, etc. Já nos dispositivos de seguridade, a norma atua por normalização, ou seja, parte-se do normal e do anormal, dados a partir das diferentes curvas de normalidade, para determinar a norma. Na contemporaneidade, a normalização é constituída a partir do normal nas comunidades e ou grupos sociais; ou seja, primeiro está dada a normalidade aos grupos, depois se estabelece o normal para esse grupo; e a partir desse normal instituído nesses grupos sociais, pode-se apontar o anormal. As técnicas de normalização objetivam fazer com que o indivíduo seja normalizado através da naturalização da sua presença, e se enquadre em uma das distribuições permitidas pela curva da normalidade, para que seja permitido seu reconhecimento frente à sociedade. De um modo geral, é o que Foucault chama de processo de normalização através da inclusão.

Na atualidade, a inclusão se materializa como uma alternativa econômica para que os processos de normação e normalização se efetivem, e outras formas de vida não previstas –empreendedorismo, autossustento e autonomia– se expandam, visando a minimizar os prejuízos causados por práticas discriminatórias a determinados segmentos da população ao longo da história.

As autoras consideram que os termos exclusão, inclusão e in/exclusão são leituras possíveis no presente, e que Foucault (2003), ao diferenciar os movimentos de exclusão, reclusão e inclusão, enfatiza as práticas sociais que caracterizam os chamados indivíduos a corrigir – os loucos, os deficientes, os perigosos, entre outros. Esses indivíduos, antes chamados de anormais e incorrigíveis, passam a ser tratados como alguém a recuperar.

Assim, tais sujeitos deixam de ser excluídos. No entanto, sem que haja rompimento das práticas de exclusão e reclusão, a inclusão se apresenta como uma forma econômica de cuidado e educação da população. Salienta-se, no entanto, que, na inclusão delineada nos séculos XX e XXI, formas sutis e muitas vezes perversas de exclusão e reclusão estão implicadas. Ou seja, na modernidade, há uma “[…] reinscrição e uma ressignificação das práticas de exclusão e reclusão na lógica dominante da inclusão” (p. 62).

O texto analisa também a educação especial e seu lugar nas práticas de inclusão, optando, não pelo desenvolvimento de um histórico da educação especial, e sim pela análise da educação especial a partir das políticas públicas. As autoras propõem uma discussão, mostrando que existem múltiplos significados para a expressão políticas públicas. Assim, ao se referir à educação especial, as autoras intencionam mostrar que, desde os seus primórdios, quando a educação especial está dentro de uma concepção terapêutica clínica, está inscrita numa reação de inclusão, pois, em sua origem, significa uma nova forma de governar, mobilizada pelo capitalismo de inspiração keinesiana; que é o estado de bem-estar social, tendo como uma das características mais significativas a implantação e o fortalecimento de políticas sociais por meio de serviços de atendimento à população.

As autoras salientam que as características das legislações, como o espírito de solidariedade, que marcou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 4.024 de 1961; o espírito de profissionalização, que marcou a LDB nº 5692 de 1971; e o parecer do Conselho Federal de Educação nº 848/72, marcado pelo espírito de desenvolvimento de potencialidades dos indivíduos, denotam que, na base do atendimento especializado e da própria educação especial, podese perceber condições de possibilidades para que, no século XXI, a inclusão se insira como preocupação central e como uma das finalidades da educação nacional para as pessoas com deficiência (educação especial). O texto baseia-se em Varela (2002) para dizer que o surgimento da educação especial origina-se das pedagogias disciplinares e corretivas, caracterizadas pelo processo contínuo de normalização sobre o corpo, buscando sua correção e adestramento.

Por fim, as autoras fazem algumas conexões entre os diversos usos e significados de inclusão que circulam no campo da educação brasileira, salientando que a dispersão analítica dificultou uma abordagem e a definição no campo analítico e, por isso, optaram por apresentar interpretações mais abertas, de cunho sociológico, político e filosófico, que determinam as possibilidades de surgimento dos usos da inclusão no campo da educação do presente.

Referências

EWALD. François. Foucault, a norma e o direito. 2. ed. Lisboa: Vega, 2000.

VEIGA-NETO, Alfredo. Coisas do governo… In: RAGO, M.; ORLANDI, L. B. L.; VEIGA-NETO, A. (org.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

Márcia Guimarães de Freitas – Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]

Lázara Cristina da Silva – Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]

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La guerre de ecrivains (1940-1953) – SAPIRO (RBHE)

SAPIRO, G. La guerre de ecrivains (1940-1953). Paris: Fayard, 1999. Resenha de: CAMPOS, N. de. La guerre des écrivains. Revista Brasileira de História da Educação, 19, 2019.

Esse livro, escrito pela socióloga francesa Gisèle Sapiro, foi publicado em 1999. Ele é decorrente de sua tese de doutorado, defendida em 1994, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), sob a orientação de Pierre Bourdieu. Essa obra tem 807 páginas, contando introdução, nove capítulos, conclusão, anexos, agradecimentos, bibliografia, índice de nomes e sumário. Ela se organiza em três partes: lógicas literárias do engajamento (primeira parte), constituída com três capítulos; instituições literárias e crise nacional (segunda parte), formada por quatro capítulos; a justiça literária (terceira parte), contendo dois capítulos. A delimitação temporal inicial tem relação com a Ocupação da França pela Alemanha e a assinatura do armistício; já o período final está associado à segunda Lei de Anistia, “[…] após o que, sem desaparecer, as questões literárias, nascidas na crise, cessam de dominar a vida literária” (Sapiro, 1999, p. 17).

A investigação dessa socióloga tem como principal preocupação “[…] por em evidência a especificidade da conduta dos escritores no contexto da Ocupação, à luz das representações e das práticas próprias dos meios literários” (Sapiro, 1999, p. 9). De acordo com ela (1999, p. 9), “[…] a questão importante é por que e como os escritores respondem a essa demanda?” Assim, sua abordagem é diferente de outros estudos que explicam o engajamento dos escritores a partir de uma perspectiva centrada na política. Nas palavras da autora (1999, p. 10), “[…] contra a tendência a dissociar essas duas dimensões, este livro entende que se esclarece uma pela outra, ao inscrevê-las em uma abordagem mais global dos ambientes literários e de seus modos de funcionamento naquela época”. Conforme Gisèle Sapiro (1999, p. 12), “[…] durante a Ocupação, o campo literário viu serem abolidas as condições que lhe asseguravam uma relativa independência, em particular a liberdade de expressão”. Os escritores, na avaliação de Sapiro (1999, p. 11), “[…] não escapam à lógica das lutas. Mas a guerra dos escritores não é o puro reflexo da guerra civil. Como todo universo profissional, o mundo literário tem seus códigos, suas preferências, suas regras do jogo e seus princípios de divisão próprios”. Diante disso, indaga essa pesquisadora (1999, p. 12): “[…] que ocorre com a autonomia literária em período de crise? Sob que forma sobrevive e que resistência se opõe às pressões externas?”.

A partir de muitos textos publicados nos jornais da França, de correspondências e entrevistas, assim como em interlocução com extensa literatura das ciências humanas, em particular da sociologia dos intelectuais e da história intelectual, a autora mostra como os escritores engajaram-se e tomaram posições políticas. Ela descreve que havia quatro tipos de lógicas sociais que coexistiam no campo literário e que induziam relações diferentes entre literatura e política. A primeira é denominada de lógica estatal, em que estavam as frações detentoras do poder econômico e do poder político. A segunda lógica coincide com o polo de grande produção, próxima do jornalismo, lugar da lógica mediática. Em seguida, aparece a lógica estética, em que estariam os escritores com forte poder simbólico. Esse grupo tende “[…] a se distanciar da política e da moral” (Sapiro, 1999, p. 13). Por fim, existiria o polo dos escritores de vanguarda, grupo formado a partir do interesse em produzir uma literatura subversiva, engajada. Essas quatro lógicas são tipos ideais. Logo, como bem destaca a socióloga (1999, p. 13), “[…] essas diferenças lógicas, inexistentes em estado puro, encarnam-se mais ou menos nas práticas e nas instituições”. Essas lógicas são associadas às quatro instituições analisadas nesse livro: Academia Francesa (lógica estatal); Academia Goncourt (lógica mediática); Nova Revista Francesa – NRF (lógica estética); Comitê Nacional dos Escritores (lógica subversiva/política).

A primeira parte tem como preocupação explicar as lógicas literárias eos engajamentos dos escritores. A parte seguinte mostra como as quatro lógicas encarnam-se nas quatro instituições estudadas (Academia Francesa, Academia Goncourt, NRF e Comitê Nacional dos Escritores). De acordo com Sapiro (1999, p. 16), “[…] dotadas de uma razão social e de uma identidade, essas quatro instâncias ilustram as lógicas estatal, mediática, estética e política”. Por fim, na terceira parte, o livro discorre sobre os efeitos da crise após o período de Ocupação, pois “[…] eles determinam largamente os modos de reestruturação do campo literário” (Sapiro, 1999, p. 17). Essa descrição é estrutural, como bem reconhece essa socióloga. Porém, essas tendências podem ser observadas nas especificidades dos diversos níveis e na encarnação das lutas onde se confrontam as diferentes concepções de literatura e as diversas compreensões do papel social do escritor.

Em termos mais precisos, a primeira parte trata do debate entre os escritores a respeito do papel social do intelectual. A partir da discussão em torno do ‘gênio francês’ e dos ‘maus mestres’, a autora reconstitui um profundo e complexo debate entre os escritores para defender diferentes posições do intelectual. Conforme assinala Sapiro (1999, p. 106, grifo do autor), “[…] é em nome do ‘gênio francês’ que são conduzidas as lutas que estruturam o campo literário na primeira metade do século XX”. Cada um desses elementos serve de pano de fundo para a socióloga mapear as posições dos mais diferentes escritores, em específico, o confronto entre a politização do campo cultural e a luta pela sua autonomia frente aos interesses da política e da moral. Ao final dessa parte, ela destaca duas trajetórias exemplares (François Mauriac e Henry Bordeaux) que “[…] ilustram a articulação entre a clivagem geracional, a oposição entre autonomia/heteronomia e as divergências ideológicas” (Sapiro, 1999, p. 207). Essas individualidades, pertencentes à Academia Francesa e com origens sociais e religiosas semelhantes, tomaram posições distintas. Mauriac tornou-se um defensor dos escritores denominados de ‘maus mestres’, situação considerada atípica ou improvável por Sapiro. De outra parte, Bordeaux promovia a campanha contra os escritores classificados de ‘maus mestres’.

A segunda parte do livro indica como esse debate inscreveu-se em cada uma das quatro instituições francesas. Ela elege um capítulo para cada instituição, trazendo riqueza de detalhes. Embora as análises estejam divididas em partes, não há abordagens isoladas de cada uma das instituições. A autora sintetiza uma tendência predominante em cada espaço, a saber, o senso do dever (Academia Francesa); o senso do escândalo (Academia Goncourt); o senso da distinção (NRF); o senso da subversão (Comitê Nacional dos Escritores). Antes de analisar cada uma dessas instituições, Sapiro sintetiza a ideia dessa parte do livro em duas páginas e meia. Ali, ela anota que busca mostrar como, no seio desses espaços literários, os escritores se confrontavam na luta pela definição da identidade da instituição e do papel que ela deveria exercer no período de crise nacional.

Desse modo, essa parte mostra como esses espaços institucionais definiram as posições individuais. Ao mesmo tempo evidencia as mudanças das instituições, particularmente a movimentação da NRF, fundada em 1909. Posteriormente, essa revista passou a aproximar-se do grupo da literatura engajada, cuja expressão contundente é a trajetória de André Gide. Apesar disso, o livro mostra a permanência da posição da Academia Francesa, muito embora trate do caso atípico de François Mauriac que aderiu à literatura subversiva. Já no início, Sapiro (1999, p. 249) afirma que, “[…] das quatro instituições que nós estudamos, a Academia Francesa é a que participa mais diretamente, por meio de seus membros, da vida política oficial”. Essa instituição, criada em 1635, agrupa as frações dominantes da classe dominante, donde se exerce o controle sobre o campo literário. Assim sendo, as lutas políticas dessa comunidade estavam associadas ao combate aos escritores que se posicionavam no polo altamente politizado, aqueles que pretendiam transformar a literatura em luta política (grupo do Comitê Nacional dos Escritores).

A Academia Goncourt, criada em 1903, expressa o modelo de senso do escândalo, pois, nascida com interesse em salvaguardar certa autonomia do campo literário e contrapondo-se ao modelo mais tradicional de literatura da Academia Francesa, logo se vê no permanente jogo entre as forças dos diferentes campos sociais. As trajetórias de seus integrantes e as premiações concedidas evidenciam forte presença de autores oriundos da imprensa francesa. Ao longo do texto, Sapiro mostra as alterações da própria instituição, especialmente nos momentos mais críticos, como a Ocupação, quando esse espaço do campo literário não deixou de pronunciar-se e tomar posição no campo intelectual. A autora identifica uma tendência dessa instituição, um tipo ideal, sem deixar de historicizar as disputas internas, os posicionamentos conflitantes entre os seus integrantes, assim como o imiscuir-se nas disputas do campo político. Ela procura demonstrar como a ideia de autonomia/heteronomia do campo literário é o mote da discussão na instituição, ganhando ares peculiares no momento crítico da história francesa dos anos de 1940.

Na sequência, Sapiro centra sua análise no movimento da NRF, criada em 1909. Embora, o recorte de sua análise seja o contexto da Ocupação alemã e o período da Liberação, sua escrita retrata a pretensão de André Gide no momento de criação dessa revista, bem como os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial. Apesar de o senso de distinção constituir o horizonte de identidade dessa instituição, os casos exemplares de Gide (rumou à resistência literária) e Drieu La Rochelle (aderiu ao grupo colaboracionista) evidenciam como o problema da autonomia/heteronomia conformava as representações e as práticas da instituição e de seus integrantes.

Por fim, a partir da tipologia – senso de subversão -, a autora descreve e explica a ação do Comitê Nacional dos Escritores. Nesse grupo, constituído por integrantes de diversos subgrupos, encontrava-se o principal espaço de resistência literária. A partir de um conjunto de escritos, seus integrantes promoviam intervenções no âmbito da política, destacando-se seus posicionamentos de combate à literatura não engajada que era reivindicada pela Academia Francesa, pela Academia Goncourt e pela NRF. A partir dos anos de 1930, esse comitê tornou-se um espaço de congregação de grupos distintos, como, por exemplo, comunistas, católicos progressistas (François Mauriac, Jacques Maritain), confrontando-se aos valores nacionalistas que já estavam presentes no contexto do caso Dreyfus (final do século XIX), mas que ganharam ares mais dramáticos com a ascensão de Hitler e o avanço das bandeiras defendidas pela extrema-direita. Enfim, ao longo da obra, Sapiro descortina em detalhes como o comitê ofereceu “[…] aos escritores os meios de lutar com suas armas próprias, reativando a dimensão subversiva da literatura e assegurando à Resistência intelectual o seu prestígio” (Sapiro, 1999, p. 467).

Se nas primeiras partes há intensa exposição para explicar os posicionamentos das quatro instituições e mostrar ‘a guerra dos escritores’, a última retrata o período posterior a agosto de 1944, quando Paris foi libertada. A autora identifica que essa condição redundou na recomposição do campo intelectual, sobressaindo-se o problema do papel da literatura e do escritor. É sintomático daquele momento o fato de a revista Tempos Modernos ocupar o lugar da NRF, cujo mote seria a defesa da literatura engajada em oposição à literatura pura. Sapiro mostra que essa disputa inscrevia-se na concorrência entre gerações de escritores, na oposição entre moralistas e defensores da literatura pura e na clivagem ideológica esquerda e direita. Aqui está presente a disputa pelo controle do próprio campo dos escritores. O comitê é oficialmente institucionalizado, incorporando todo capital simbólico do período de Resistência na clandestinidade. Assim, esse espaço procura constituir-se como o lugar autorizado para dizer o que é a literatura e qual deve ser o papel do escritor. E, mais do que isso, dizer que ao escritor está atribuída a missão de reconstrução da própria França.

Depois da derrota da Alemanha, conforme atesta Sapiro (1999, p. 17, grifo do autor),

A noção de ‘responsabilidade do escritor’ está no coração das lutas. Saído da sombra do Comitê Nacional dos Escritores pretendia-se instaurar uma nova deontologia do ofício do escritor. Mas seu poder de excomunhão é rapidamente contestado. Abalados por divisões internas, as instâncias nascidas da Resistência se encontram confrontadas às instâncias tradicionais, entendendo que devem reencontrar seus lugares e tomar parte na reconstrução nacional.

Porém, como bem mostra esse livro, as primeiras fissuras internas desse comitê ocorreram entre comunistas e não comunistas. Além disso, as divisões internas foram demarcadas por outras divergências, como, por exemplo: entre membros oriundos da zona Norte (região ocupada pela Alemanha) e zona Sul (região ‘livre’, governada por Pétain); entre antigos e novos integrantes; a controversa ‘lista negra’ – publicação dos nomes dos escritores apoiadores da Ocupação e do regime Vichy. Ao final dessa parte, a narrativa mostra como as instituições literárias se reconfiguraram no novo momento da França, em particular, no contexto de reconstrução nacional. Ou seja, como se estabeleceram as disputas entre Academia Francesa, Academia Goncourt e Comitê dos Escritores para definir o papel social da literatura e do escritor, sem deixar de indicar as clivagens internas, em específico, do comitê. Embora o recorte final da obra seja 1953, Sapiro não deixa de indicar que os efeitos dos debates da Ocupação e da Liberação ganharam sentidos diferenciados no contexto da Guerra Fria, reinserindo o problema da posição do escritor e das instituições literárias no âmbito das questões políticas, isto é, reapareceria o problema da autonomia/heteronomia do campo cultural.

Por fim, é importante ressaltar que esta síntese apresenta a ideia geral da obra e os elementos centrais de cada parte. Esse livro que se inscreve no âmbito da sociologia dos Intelectuais é fecundo ao campo de pesquisa das ciências humanas. Ademais, merecem destaque as possibilidades de diálogo com áreas mais específicas, particularmente, com a história intelectual. O campo intelectual (sociologia dos Intelectuais) é um dos temas principais de Giséle Sapiro que já tem algumas produções traduzidas e publicadas no Brasil. O problema dos intelectuais ou do campo intelectual é objeto bastante revisitado, nos últimos anos, por diversos pesquisadores brasileiros. Assim, espera-se que esta resenha tenha sintetizado o conjunto das principais ideias dessa obra de fôlego e estimulado o leitor a acessá-la, pois ela poderá ser bastante útil para ampliar os horizontes de pesquisa nas ciências humanas, especificamente, na história intelectual e história dos Intelectuais.

Referências

Sapiro, G. (1999). La guerre des écrivains (1940-1953). Paris, FR: Fayard.

Névio de Campos – Pós-doutorando (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris); Pós-doutor em História (UFPR); Doutor em Educação (UFPR); Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, Brasil. Pesquisador Produtividade CNPq. E-mail: [email protected]

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A invenção do recreio escolar: uma história da escolarização no estado do Paraná (1901-1924) – MEURER (RBHE)

MEURER, S. S.. A invenção do recreio escolar: uma história da escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Curitiba: Appris, 2018. Resenha de: MORAES, L. C. L., GOMES, L. do C., & MORAES E SILVA, M. O lugar da educação das sensibilidades e dos sentidos – apontamentos sobre o livro A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Revista Brasileira de História da Educação, 19. 2019.

A obra A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924) foi publicada no ano de 2018 pela editora Appris. Escrita pelo professor Dr. Sidmar dos Santos Meurer, tal obra trata-se da pesquisa realizada por ele durante o mestrado, desenvolvido na linha de história e historiografia da educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O autor apresenta aos leitores um livro que tem o propósito de colocar os recreios escolares no Paraná, no início do século XX, como objeto de investigação histórica. Para alcançar tal intento, a obra divide-se em apresentação, prefácio, introdução, duas partes principais compostas de três subtítulos cada, tópico conclusivo e, ao fim, um capítulo dedicado à apresentação das fontes primárias da pesquisa.

Sidmar Meurer graduou-se em educação física pela UFPR em 2005, obteve título de mestre em Educação pela mesma universidade em 2008 e defendeu seu doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2019. O autor é professor assistente no setor de educação da UFPR, atuando na formação de professores e no âmbito da pesquisa, no qual faz investigações sobre escolarização, história da educação, história da escolarização, história da educação dos sentidos e das sensibilidades e história da educação do corpo.

A apresentação, registrada pelo próprio autor, complementa-se pelo prefácio, escrito pelo professor Dr. Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, o qual foi orientador de Sidmar Meurer durante a graduação, o mestrado e o doutorado e atualmente é docente titular do departamento de ciências aplicadas à educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG. No prefácio, Taborda de Oliveira reconhece as contribuições e qualidades do trabalho realizado pelo seu orientando, indicando a

importância da obra para o campo da história da educação. Cabe destacar que as ponderações levantadas, tanto na apresentação quanto no prefácio, trazem à tona a pretensão da obra como um todo, que é fazer com que o leitor reflita sobre o fenômeno social da escolarização, mais especificamente sobre a história do recreio no Paraná na temporalidade de 1901 a 1924.

A introdução traz como premissa o olhar e o cuidado do autor ao manusear as documentações das instituições de ensino. Esse tipo de procedimento possibilitou a construção da narrativa de sua investigação, a qual, conforme enfatizado pela própria autoria, apresenta preocupações com as práticas e ações típicas da ambiência escolar, que ainda não eram uma problemática para os estudos de uma historiografia mais tradicional da educação. Com o intuito de embasar o entendimento do leitor sobre o trato com as fontes, Meurer explora trechos dos relatórios de docentes, apresentando inúmeras interpretações e potencialidades desses exemplares. O autor potencializa tais fontes em diversos momentos, manifestando as peculiaridades do período, da escola e dos comportamentos, o que acaba por auxiliar a responder e/ou alimentar um debate sobre os diversos elementos que contribuíram para a consolidação dos recreios nas escolas paranaenses no início do século XX.

A parte I, intitulada ‘Justificativas pedagógicas para os recreios escolares; expectativas sociais para a escola primária’, inicia-se com o subtítulo ‘Forjar a ‘alma’, descansar o ‘espírito’, fortalecer o corpo: a educação como empreendimento moral, intelectual e físico’, que trata das pretensões tanto dos professores quanto dos políticos para com as implementações e reformas do ensino primário, além de enfatizar como surgem os denominados ‘recreios’ e/ou ‘intervalos’. Para realizar tal feito, o autor utilizou-se de relatórios de docentes, disponíveis no Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná/DEAP-PR, provenientes de diversos lugares do Paraná, deixando explícitas as metamorfoses das ideias sobre o entendimento do que e de como seria a escola primária em um período de republicanização, a qual deveria prezar por uma educação do físico, do intelecto e da moral e cívica, surgindo, então, a intenção de desenvolvimento integral do aluno.

A autoria aponta que nesse período existia certa confusão de significados e propostas em relação aos recreios. Afinal, eram atribuídos tempos distintos em cada instituição e o espaço (jardins, salas de aulas, quarto, pátio) e os exercícios implementados (gymnastica, respiração, canto, declamação) também variavam. Na sequência de seus argumentos, o autor indica que o tempo do recreio foi adequando-se às demandas que o ensino primário em reforma procurava, ou seja, a um projeto de escolarização que proporcionasse conhecimentos úteis a uma vida ativa e prática.

Já o segundo subtítulo, intitulado ‘A escola primária como instituição cardeal da sociedade paranaense: quando um projeto de escolarização pretende ser motor de mudança social’, baseia-se em dois conjuntos de fonte: os relatórios de autoridades do ensino paranaense e a revista A escola. A autoria apoiou-se em tais materiais para contextualizar o período de reforma do ensino primário, que deveria ser alicerçado de acordo com a tríade da formação física, intelectual e moral dos alunos. A preocupação apresentada nos documentos sobre a educação gratuita e universal, bem como a formação de indivíduos conscientes, aborda tópicos relevantes para se refletir sobre o processo de organização escolar, a relação entre educação e política e as questões relacionadas ao papel utilitário da educação.

Para esmiuçar esse amplo repertório de colocações, Meurer apresenta algumas referências na área da história da educação, destacando as contribuições de Marta Carvalho, numa perspectiva interpretativa de documentos das instituições de ensino, atribuindo à escola a preparação de mão de obra, e de Mirian Jorge Warde, que chama atenção para a ampliação do sentido e a função dada à escola, indo ao encontro de um entendimento de que a ação reguladora da instituição está mais associada à construção de hábitos, desenvolvimento de comportamentos e sensibilidades humanas. Diante dessas duas concepções, o autor apresenta fontes que favorecem a posição levantada por Mirian Jorge Warde.

O autor menciona que, para explicitar sua percepção, foram acionados os trabalhos de Jean Hérbrard, que tratam da escola francesa, e conceitos de ‘ferramentas mentais’, de Lucian Febvre. Com base em tais concepções, Meurer indica que a escola do período de republicanização desejava produzir maneiras de sociabilidades e construir conjuntos de sensibilidades e espírito prático que poderiam levar a sociedade a um suposto progresso. Os recreios surgiram como parte desse projeto de construção de sensibilidades, vistos como uma prática útil e necessária.

Em ‘Os recreios escolares e a ‘marcha do ensino’: por uma escola ‘moderna’, ‘útil’ e ‘atraente’’, última fração da primeira parte da obra, sobressaem-se resquícios do material empírico utilizado, que contém, além dos citados anteriormente, artigos do jornal A República, trecho da revista Pátria e Lar e um texto do médico José Maria de Paula. Contudo, o autor lembra que a escola era alvo de críticas oriundas dos segmentos médicos, pedagógicos e políticos, sobretudo por apresentar um ensino marcado pela memorização de conteúdo sem praticidade. A desaprovação mais eminente, constatada por Sidmar Meurer, relaciona-se à falta de cientificidade no ensino. Essa discussão repercutiu na racionalização de uma rotina escolar mais estruturada da qual o recreio fazia parte, contando, nesse momento, com o apoio de pressupostos pedagógicos para ser legitimado.

Todavia, o autor, analisando os discursos médico e pedagógico, indica que os médicos culpabilizam os professores pela pouca aproximação do ensino com aspectos científicos. Muitos dos relatórios traziam breves declarações que englobavam nomes influentes no âmbito pedagógico, como Spencer, Pestalozzi, Froebel, Rousseau e Locke, demonstrando pelo menos uma ligação e/ou uma tentativa com tópicos mais científicos para serem abordados na escola, como psicologia, ciências naturais e higiene. Meurer reconhece ainda que os documentos analisados apontavam que o público infantil apresentava especificidades que deveriam ser levadas em consideração no processo de ensino na escola primária paranaense.

A segunda parte do livro, intitulada ‘Dispositivos de institucionalização e normatização dos recreios escolares. Tempos, espaços e modos de proceder’, apresenta o quarto subtítulo, denominado ‘Da conformação dos espaços, um lugar para recrear – os pátios de recreio’. Para adentrar os espaços que se constituíram durante o período, o autor retoma as noções e os significados de recreios e/ou das formas de se recrear que foram encontradas na pesquisa. Tais significações apresentam uma ligação com a modernização do ensino, porém, sem pertencer ao currículo escolar formal, utiliza-se de um momento pedagógico, constituído por atividades de canto, exercícios de ginástica e desenhos. Meurer chama atenção para que se entenda o processo de mudança nos recreios como um movimento não linear. Além disso, o autor dá sentido de institucionalização ao recreio, pois, com o passar do tempo, aquele se diferencia de outros componentes escolares.

Entretanto, a disponibilidade de recursos para se investir em um espaço para os recreios era escassa e o movimento de instalações de grupos escolares, com o intuito de modernizar o ensino paranaense, acabou por ganhar força, surgindo como novo modelo para o processo de organização de um sistema público de educação. A Escola Xavier da Silva, primeiro grupo escolar do Estado do Paraná, teve relatórios de seus docentes frequentemente analisados pelo autor, visto que a instituição buscou realizar uma ampla reforma educacional, revelando preocupação com espaços específicos para os recreios, o que a tornou um exemplo a ser seguido. Foi somente em 1915, com o Código de Ensino, que ocorreu a normatização do recreio com seu respectivo espaço, recuado para as laterais e para os fundos das estruturas, que deveria seguir parâmetros de higiene e ser arborizado e composto de flores. Por fim, o autor demarca que os fatores e desejos que compunham esse espaço foram racionalizados, priorizando-se os aspectos higiênicos e estéticos, vistos como potencializadores da percepção dos alunos, que dispunham de esperada espontaneidade e intuição imprescindíveis para a modernização do ensino.

O quinto tópico, intitulado ‘Da contagem e demarcação do tempo de recrear – a passagem dos ‘intervalos’ ao ‘recreio’’, trata especificamente da delimitação temporal para os recreios. Uma fonte bastante explorada pela autoria, nessa parte do livro, foi o Código de Ensino do Estado do Paraná de 1915. Documento este que apresentava inúmeros elementos para se pensar a organização escolar, desde o controle temporal das atividades até as determinações de séries graduais do ensino. Mesmo com todos os pontos colocados por essas normatizações, que tinham o propósito de dar caráter mais educativo e disciplinar às escolas, poucas eram aplicáveis às outras instituições escolares. Com todo esse processo de mudanças e anseios por ‘inovações’, conforme enfatiza o autor, tentou-se, no modus operandi da época, constituir um conjunto de sensibilidades em relação ao tempo (otimizado) na escola a partir do pleito legal.

Por fim, no último subtítulo do livro, denominado ‘Modos de proceder na escola – os recreios como rotina escolar’, analisou-se o recreio sob a perspectiva dos modos de comportamento e das funções dos envolvidos nesse determinado tempo e espaço que salvaguardavam sua distinção perante os demais componentes curriculares. Ao se entender que todo espaço com a aglomeração de pessoas denominava-se ‘recreio’, passou-se a prescrever ações que diferenciavam os ‘recreios’ dos períodos de entrada e saída das aulas. As novas significações produzidas em relação a esses intervalos visavam atender às demandas fisiológicas e psicológicas dos alunos, além de enfatizar uma noção de recompensa pelo desempenho obtido nas atividades escolares. Abria-se também uma lacuna para que se utilizasse essa gratificação como castigo, apoiando-se na privação deste quando fosse necessária. Posteriormente, o recreio passou a tratar-se também de um espaço-tempo apropriado para a realização da merenda/alimentação.

Ao retomar alguns trechos dos relatórios, o autor enfatiza que os recreios passaram a conter uma disciplina diferenciada da exigida em sala de aula, consistindo em um ordenamento não silencioso, permitindo brincadeiras, atividades espontâneas e a concentração de todas as classes em um único espaço e tempo, sob a fiscalização dos agentes das instituições. Porém, conforme constata o autor, nada tem a ver com a disposição e o desenvolvimento da liberdade e autonomia do aluno, visto que todos os elementos constitutivos do recreio se unem para a formação de sensibilidades e na racionalização de um sistema que permite a aquisição de um ethos almejado.

Por último, em ‘Palavras finais – Pensar a escola e sua organização a partir de seus processos e práticas’, o autor faz ponderações sobre a sua pesquisa, apresentando reflexões para a área da educação. Diante disso, suas considerações finais apresentam aportes teóricos de filósofos como Michel Foucault e Theodor Adorno e dos historiadores Edward Thompson e Cristopher Hill. Um eixo importante do livro, que é válido mencionar, reporta-se à diversidade dos materiais empíricos, utilizados na construção da narrativa do livro, fazendo com que as fontes guiassem as análises que foram distribuídas nas partes e que conseguiam embasar ao leitor o contexto relacionado à temática principal, além de responder às problemáticas evocadas antes de assinalar os saberes e sentidos mobilizados pela oferta dos recreios num projeto de escolarização paranaense.

A título de apontamentos finais, observa-se que a leitura da obra convida o leitor a repensar no desenvolvimento dos recreios no Paraná, além de possibilitar aos interessados na história da educação e das sensibilidades que tenham um material qualificado para embasar novos estudos, visto que o livro é amparado numa abordagem historiográfica que facilita a realização de futuros trabalhos com tais características, constituindo-se, portanto, em uma leitura atrativa para pesquisadores interessados na temática da escolarização e dos diversos processos de educação do corpo.

Referências

Meurer, S. S. (2018). A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Curitiba, PR: Appris.

Letícia Cristina Lima Moraes – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Leonardo do Couto Gomes – mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Marcelo Moraes e Silva – professor doutor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

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A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia – BENITO (RBHE)

BENITO, Augustin Escolano. A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia. Campinas: Alínea, 2017. Resenha de: MAGALHÃES, Justino. Revista Brasileira de História da Educação, n.18, 2018.

Este livro é uma tradução do título La escuela como cultura: experiencia, memoria, arqueologia, de Agustín Escolano Benito. A tradução foi feita por Heloísa Helena Pimenta Rocha (UNICAMP) e Vera Lucia Gaspar da Silva (UDESC). No Prefácio, Diana Vidal adverte o leitor que, pelo tema, pela escrita do autor e pelo enlevo da leitura, está perante um livro ‘inescapável’. Na Apresentação, as tradutoras previnem que, na migração entre as duas línguas, a tradução foi por elas pensada como interpretação e adaptação consciente, no esforço de “[…] compreender as reflexões do autor e torná-las compreensíveis” (Escolano Benito, 2017, p. 18).

O livro é composto por Introdução – A escola como cultura– e quatro capítulos: Aprender pela experiência; A práxis escolar como cultura; A escola como memória; Arqueologia da escola. Termina com Coda: cultura da escola, educação patrimonial e cidadania.

Qual é o objecto do livro que Agustín Escolano agora publica? Em face do título enunciado, através da comparação A escola como cultura, o que fica de facto resolvido no livro – o assunto escola ou o objecto cultura? E o que contém o subtítulo Experiência, memória e arqueologia, que relação há entre estes enunciados? Mais: Que relação entre o subtítulo e o título? O subtítulo reporta à escola ou à cultura? Ou aos dois termos, estabelecendo dialéctica através de ‘como’, ou seja, dando curso à comparação? Experiência, memória e arqueologia não são termos de igual natureza, nem de igual grandeza. Reportarão a um mesmo referente? A escola é parte da vida e foi experienciada ou mesmo experimentada pelos sujeitos, individuais ou colectivos. Daqui decorrem marcas que constituem memória – a experiência. A arqueologia reporta à materialidade e simbologia que ganham significado a partir de um olhar externo, deferido no tempo. A operação arqueológica permite a (re)significação de marcas que sejam apenas reminiscências.

A interpretação mais subtil para o título reside porventura na capacidade ardilosa e densa de Agustín Escolano em conciliar educação e história através da escola como cultura. A substância e o sentido da escola residem na cultura. Em cada geração, foi como cultura que a escola se substantivou, e foi como experiência que se tornou significativa. Para as gerações actuais, a escola é cultura e experiência, mas é também memória e arqueologia. Como refere o autor, a escola-instituição foi por diversas vezes questionada, mas a educação precisou (e precisa) da escola, como fica assinalado pela confluência de diferentes variações pedagógicas.

A história e a historiografia acautelaram essencialmente o institucional. Agustín Escolano entende, todavia, que é fundamental e significativo no plano educacionale de cidadania salvaguardar o cultural. A cultura escolar apresenta materialidade e historicidade, constituindo uma fenomenologia do educável e desafiando a uma hermenêutica como currículo e como representação. Dialogando com uma constelação de disciplinas é na etno-história que o autor encontra a ‘episteme’ e a matriz discursiva para o estudo que apresenta.

Pode aventar-se que este livro é um ensaio-manifesto. Agustín Escolano procura dar nota de uma genealogia e de uma evolução da cultura e da forma escolar, compostas por distintas dimensões processuais e orgânicas, e comportando descontinuidades, contextualizações, adaptações que não comprometeram o que frequentemente designa de ‘gramática da escola’ ou de ‘forma escolar’. Refere que esse historial está plasmado nas narrativas sobre experiências e modalidades orgânicas, nos restos materiais e arqueológicos sobre a realização escolar, nas memórias individuais e colectiva, enfim, na arqueologia como substância e método para a reconstituição e a interpretação do passado. Tal como a entende Escolano, a etno-história congrega estas distintas instâncias, devidamente apoiada na arqueologia, na fenomenologia e iluminada por um labor hermenêutico, aberto à complexidade e à interdisciplinaridade.

A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia contém uma história da escola, mas é sobretudo uma argumentação sobre a articulação entre escola e cultura e sobre a (re)significação da história-memória da escola como cidadania.

Na Introdução, o autor procura justificar o título do livro focando-se no enunciado ‘a escola como cultura’. Incide fundamentalmente sobre as práticas, posto que são inerentes ao escolar e, em seu entender, não têm sido objecto de um labor apurado por parte da teoria educativa e da história. Tal vazio constata-se no que reporta aos fundamentos, mas torna-se sobretudo notório no que respeita à recepção, seja esse vazio alocado às instituições ou à mediação e adaptação de conteúdos e práticas por parte dos professores, ou seja, por fim, às práticas incorporadas e apropriadas enquanto pragmática da educação. O autor chama a si o ensejo de dar a conhecer como a práxis escolar se constituiu em cultura.Inerente à práxis, sua evolução e sua conceitualização, está uma praxeologia resultante de uma depuração e de uma espécie de darwinismo que intriga o autor. Se em cada momento a pragmática educativa foi um habitus, há que analisar a evolução semântica desta constante.

No primeiro capítulo ‘Aprender pela experiência’, Agustín Escolano coloca a inevitabilidade da inscrição espacial e temporal das práticas, mas admite também a linha de continuidade, sem o que não será possível uma racionalidade inerente à prática. Partindo da figura do professor, reforça a noção de experiência como contraponto à focalização externa. Recorrendo a Michel de Certeau, refere que as circunstâncias não actuam fora de um racional. A constituição da práxis em cultura e da cultura em experiência são inerentes ao escolar – “Como instituição social, a escola abriga entre seus muros situações e ações de copresença, que resultam em interações dinâmicas” (Escolano Benito, 2017, p. 77). A cultura escolar congrega aspectos vários, incluindo a dimensão corporativa e a grande parte das práticas escolares integram um “[…] regime de instituição” (Escolano Benito, 2017, p. 88). A cultura empírica da escola constitui uma ‘coalizão’ nomeadamente entre ideais, reformas educativas, ritos e normas, práticas experiências profissionais.

No segundo capítulo ‘A práxis escolar como cultura’, o autor procura inquirir em que medida a pedagogia como ‘razão prática’ poderá explicar ou governar a esfera empírica da educação, pois que, como disciplina formal e académica, tem permanecido associada aos sectores político-institucional. Nesse sentido, a cultura empírica afigura-se como ingénua e não científica, e o seu valor etnográfico reside no plano descritivo, a que foi sendo contraposta uma racionalidade burocrática. Numa perspectiva sócio-histórica, a escola é uma construção cultural complexa que seleciona, transmite e recria saberes, discursos e práticas assegurando uma estabilidade estrutural e mantendo uma lógica institucional. Mas, para Agustín Escolano, em articulação com a cultura empírica da escola desenvolveram-se duas outras culturas: “[…] uma que ensaiou interpretá-la e modelá-la com base nos saberes (cultura académica) e outra que intentou governá-la e controlá-la por meio dos dispositivos da burocracia (cultura política)” (Escolano Benito, 2017, p. 119). Na sequência, retoma vários contributos que convergem na centralidade da cultura empírica associada ao ofício docente, seja referindo-se-lhe, entre outros aspectos, como arte e ‘tato’/ prhónesis, seja referindo-se à formalidade escolar como gramática e ao recôndito da sala de aula como ‘caixa-negra’. Centra-se, por fim, no binómio hermenêutica/ experiência, associado à narratividade dos sujeitos, para sistematizar o que designa de etno-história da escola, cujas orientações metódicas resume a: estranhamento, intersubjectividade, descrição densa, triangulação, intertextualidade.

O capítulo 3, ‘A escola como memória’, permite ao autor glosar o que designa de hermeneutização das memórias – assim as dos professores, quanto as dos alunos. São diferentes quadros em que o material e o simbólico se cruzam, permitindo sistematizar o que Agustín Escolano designa de ‘padrões da cultura escolar’: atitudes, gestos, formas retóricas, formas de expressão matemática. “A escola foi das instituições culturais de maior impacto no mundo moderno” (Escolano Benito, 2017, p. 202), pelo que a memória escolar é interpretação e pode ser terapia. Hermeneutizar as memórias escolares é retomar as pautas antropológicas de pertença e é valorizar uma fonte de civilização.

Se toda a obra vai remetendo para o CEINCE – Centro Internacional de la Cultura Escolar – do qual Agustín Escolano é fundador-director –, o quarto capítulo, ‘Arqueologia da escola’, é um modo sábio e fecundo de apresentar, justificar e conferir valor patrimonial e significado educativo a um Centro de Cultura e Memória da Escola, na sua materialidade e na profunda razão de ser como lugar de história e antropologização da história, e como fonte de subjectivação. Repegando a arqueologia como desígnio, são ilustradas de modo singular as virtualidades do CEINCE.

Em modo de epílogo, o autor escreve ‘Coda – cultura da escola, educação patrimonial e cidadania’, na qual dialoga com a moderna museologia, buscando lugar, sentido e significado para a preservação do passado. Que fazer com os testemunhos do passado? Agustín Escolano, com legitimidade e com a propriedade que lhe assiste, não hesita em contestar a estreiteza da memória oficiosa da escola, que poderá servir objectivos de governabilidade da educação e até alguns ensejos patrimoniais, mas o Museu investe-se de novo sentido na medida em que combine o racional e o emocional, tornando possível uma educação patrimonial. A memória escolar é pertença de todos e a todos respeita.

Por onde viajam o pensamento e a escrita de Agustín Escolano? Como constrói o discurso, alimenta o texto, fundamenta o argumento? Que unidade no diverso? Que dialéctica? Ensaio, manifesto, narrativa? Originalidade, glosa, réplica?

Este livro é formado por textos que têm um mesmo quadro de fundo. Há referências de assunto e de autores que se repetem, dando a cada capítulo uma unidade. Mas há uma trama, uma unidade de conjunto, uma sequência e uma ordem que consignam o livro. O argumento evolui para a arqueologia como materialidade-testemunho e como ciência-tese. Preservar e hermeneutizar – eis dois verbos-chave para (re)significar a memória escolar. A história da escola é formada por permanência e mudança.

Agustín Escolano dialoga antes de mais consigo próprio, gerando enigmas, esboçando uma trama, fazendo evoluir uma tese. Os autores que revisita (e são muitos – porventura todos os que, domínio a domínio, podem ser tomados como principais) são interlocutores cujos enunciados servem o texto do autor, sem prevalências nem rebates desnecessários. São personagens de uma peça maior, quiçá interdisciplinar, que é a cultura escolar, ou melhor, a escola como cultura. Agustín Escolano escreve sem reservas. Referenciou os principais autores e compendiou os assuntos nucleares. Mas, sobretudo, escreve com a propriedade que lhe advém de uma tão ampla como aprofundada cultura erudita e pedagógica. Escreve com a soberania que lhe assiste enquanto senhor de uma materialidade e de uma cartografia representativas do institucional escolar, tal como foi sendo constituído, concretizado, globalizado desde a Antiguidade Clássica.

A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia é fundamental e disso se apercebe o leitor desde a primeira página. Não é necessariamente um livro consensual, mas um bom mestre é-o enquanto senhor de uma verdade que serena e fomenta novas questões. Agustín Escolano é mestre-exímio. Assim o presente livro seja acolhido com as virtualidades que lhe cabem.

Justino Magalhães – Historiador de Educação. Professor Catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Investigador Colaborador do Centro de História da Universidade de Lisboa. E-mail: [email protected].

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Vozes em defesas da ordem: o debate entre o público e o privado na educação (1945-1968) – GOMES (RBHE)

GOMES, M. A. O. Vozes em defesas da ordem: o debate entre o público e o privado na educação (1945-1968). Curitiba: Editora CRV, 2018. Resenha de: BARBOZA, Marcos Ayres; TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut. O público e o privado na educação brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, 18, 2018.

As políticas de privatização da educação não são recentes no Brasil. Elas possuem uma historicidade. Essa proposta adquiriu ao longo dos anos significados diversos, buscando legitimar demandas diferentes dos grupos hegemônicos. Diante desse contexto, os estudiosos da história da educação não podem ignorar, em sua formação, os movimentos em defesa da privatização da educação, tendo em vista sua decisiva influência nas políticas para o setor, especialmente na atualidade.

Os grupos hegemônicos exercem pressão sobre as políticas públicas educacionais para que o investimento estatal seja direcionado para o setor privado. A compreensão desse movimento histórico é essencial no debate em defesa da escola pública e universal. O autor, em sua obra, analisa o debate sobre os anos de 1945 e 1968, entre a escola pública e privada, visando analisar as estratégias utilizadas pelos diferentes grupos sociais hegemônicos para a privatização da educação.

O autor, Marcos Antônio de Oliveira Gomes, atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá (UEM), lotado no Departamento de Fundamentos da Educação e membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Educação, na linha da pesquisa História e Historiografia da Educação. Participa do Grupo de Pesquisas em Fundamentos Histórico-Filosóficos da Educação – UFSC/CNPq – e do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade (UEM).

Para alcançar seus objetivos, organizou o livro em sete capítulos. No capítulo 1, ‘A Igreja diante do Estado Republicano: o repúdio ao liberalismo e ao laicismo’, o autor discute as origens do projeto de restauração católica. Segundo ele, o processo de secularização e de laicização, promovido no Estado brasileiro com a Proclamação da República (1889) e a consequente defesa do ensino laico, ascendeu ao estabelecimento de um amplo debate no interior da igreja, que visava o projeto de reforma e modernização do catolicismo no Brasil.

A tarefa seria a redefinição do papel da igreja na sociedade brasileira. Esse projeto de restauração foi reiniciado com a chegada das diversas congregações religiosas para atuarem em projetos assistenciais e educacionais. Essas atividades buscavam o fortalecimento da Igreja Católica na sociedade brasileira.

A Carta Pastoral, elaborada por D. Sebastião Leme, em 1916, como arcebispo de Recife e Olinda, marcou esse período de reforma religiosa no Brasil. Na Carta, D. Leme defendia que a reforma católica deve levar os cristãos a ter consciência de seus deveres religiosos e sociais. Para tanto, foi criada uma rede de instâncias apropriada ao debate e divulgação do pensamento católico, em especial por meio da revista A Ordem (1921) e do ‘Centro D. Vital’, criado em 1922 por Jackson de Figueiredo.

Essas instituições buscaram representar o pensamento católico por meio de um núcleo de intelectuais leigos que se apresentavam como os porta-vozes orgânicos dos interesses do catolicismo; dentre eles, destacou o trabalho intelectual de Jackson de Figueiredo e de Alceu Amoroso Lima, ligado ao ministro Gustavo Capanema, na época ministro da Educação e Saúde (1934-1945). Defendiam, entre outras coisas, a restauração dos valores morais e culturais. Era importante combater o liberalismo fundamentado em ideias pluralísticas e agnósticas, principais princípios de degeneração da ordem cristã, e, segundo a igreja, esse projeto, no campo educacional, defendia a implantação do ensino religioso para a recuperação moral dos indivíduos e da sociedade.

No capítulo 2, ‘O Epílogo de uma época: a crise dos anos 20 e a ruptura reformista’, o autor mostra que a Revolução de 1930 no Brasil possibilitou quebrar as estruturas arcaicas e esgotadas da República Velha. A crise externa pela qual passou o sistema capitalista mundial, decorrente da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, trouxe consequências negativas para a economia brasileira.

Segundo ele, foi necessário quebrar a hegemonia da oligarquia cafeeira. O golpe de 1930 significou uma rearticulação do poder dos setores dominantes com a finalidade de rever a estrutura econômica do país, pelo questionamento da ordem liberal e agravamento dos conflitos sociais.

Três movimentos sociais marcaram o período: o movimento tenentista; a Semana de Arte Moderna; e a revolução espiritual desencadeada pelo Centro D. Vital. Além deles, houve o crescimento da insatisfação das classes médias e da classe operária. Ainda não havialegislações de proteção dos trabalhadores e de assistência social. As eleições do primeiro período da Primeira República eram marcadas por fraudes.

Nesse cenário, surgiu o movimento da Escola Nova, em defesa de uma escola laica, voltada para o desenvolvimento da ciência e para atender às demandas da indústria, como uma maneira de democratizar as relações sociais. Esse discurso, no entanto, colaborava para a ocultação das desigualdades sociais. A igreja, por sua vez, também buscou a democratização e via o espaço educacional como um instrumento de poder. Os intelectuais ligados a ela propuseram uma formação moral para educar a sociedade. Num ponto, os escolanovistas e os católicos convergiam: defendiam, no debate educacional, a educação como um direito do cidadão, que competiam ao Estado a sua garantia e destinação de fundos orçamentários destinados ao seu funcionamento, inclusive a rede privada.

No capítulo 3, ‘O Mundo pós-guerra: o idioma desenvolvimentista’, o autor esclarece que a Segunda Guerra Mundial pôs em discussão o nacionalismo, o desenvolvimentismo, a reconstrução da paz, a democracia, a questão social, entre outros temas. Muitas dessas questões tomaram parte da política da Organização das Nações Unidas (ONU), e também pela ação de sua representante na América Latina, a denominada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada em 1948, após a Segunda Guerra Mundial.

O progresso econômico ocorreu em maiores proporções no governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1960), em particular com o favorecimento para a entrada de capital estrangeiro. Com o crescimento econômico, veio também a ampliação das disparidades regionais e desigualdades sociais. A ideologia do desenvolvimento nacional, preconizada pela CEPAL, foi defendida por intelectuais vinculados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado no governo de Café Filho, em 14 de julho de 1955.

Com a expansão da indústria veio uma forte reação operária em defesa de seus direitos. E, como o ‘fantasma da revolução comunista’ rondava o cenário nacional, setores empresariais, militares e setores da Igreja Católica organizaram-se contra os avanços dos movimentos sociais associados, na visão deles, ao comunismo. O movimento estava em defesa da ‘ordem’, das ‘tradições cristãs’ e da ‘propriedade privada’ e contribuiu para o estabelecimento do governo militar em 1º de abril de 1964.

No capítulo 4, ‘O diálogo com a república: a ação política da Igreja e a convergência com o Estado autoritário’, o autor afirma que o governo Vargas abriu espaço para a influência da igreja na área educacional. A igreja buscou ampliar os seus espaços para manter a supremacia espiritual. Muitas das reivindicações da igreja foram incorporadas à nova Constituição de 1934, por influência do pensamento de D. Leme e de Alceu Amoroso Lima, vinculados à Liga Eleitoral Católica (LEC).

O surgimento de novas correntes de pensamento no catolicismo, na década de 1950, significou um movimento de reestruturação do catolicismo no Brasil por meio da Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Operária Católica (JOC) e Juventude Estudantil Católica (JEC).

A criação da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), em 1952, possibilitou a elaboração de novos planos pastorais pela igreja e a fez se distanciar da política tradicionalista. Entendiam os bispos que o desenvolvimento econômico seria o caminho mais eficaz para combater o comunismo. Apesar das mudanças, na medida em que os movimentos sociais ganharam força, houve um despertar nos setores da igreja para a adoção de medidas conservadoras no combate à desordem social e ao comunismo, como a ‘Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade’, que impulsionou o golpe de Estado em 1964. Segundo o autor, esse discurso ideológico escondia as faces do autoritarismo, expresso com maior vigor pela ditadura.

No capítulo 5, ‘O golpe militar de 1964 e a estratégica de privatização da educação’, o autor defende que o Golpe de Estado de 1964 favoreceu o processo de internacionalização da economia brasileira. Em nome dos interesses do povo, a configuração autoritária do Estado possibilitou a criação indiscriminada de cursos superiores privados.

Na visão dos representantes do MEC, ligados aos grupos privatizantes, foi necessário direcionar recursos da educação pública para a expansão da rede privada de ensino. Concomitante ao avanço das políticas privatizantes, no ensino público superior se verificaram a demissão de reitores e a extinção de programas educacionais, professores e estudantes foram expulsos de suas respectivas instituições. Até as campanhas de alfabetização foram consideradas subversivas, em clara referência ao trabalho desenvolvimento por Paulo Freire.

Pelo acordo MEC-USAID (United States Agency for International Development), a organização da educação superior no Brasil objetivava formar mão de obra para atender às necessidades do mercado por meio de uma formação generalista. A proposta de educação idealizada estava subordinada aos interesses do capital, e, para consolidar essa visão, o regime militar contou com o apoio de intelectuais e de parte da imprensa.

No capítulo 6, ‘Fé e política: uma nova perspectiva dentro do catolicismo’, de acordo com o autor, a crescente disparidade entre ricos e pobres, a discriminação dos mais pobres e a violência contra os movimentos populares fizeram com que alguns intelectuais da igreja, como D. Hélder Câmara e Alceu Amoroso Lima, buscassem demonstrar as ações reacionárias e autoritárias do governo militar.

Diversos segmentos ligados à Ação Católica Brasileira elaboraram críticas ao modelo econômico da ditadura. A concepção liberal do Estado militar reduzia os direitos sociais. Na visão dos movimentos universitários vinculados àigreja era necessária a transformação das estruturas econômicas vigentes. A CNBB elaborou um documento em 1968 em que questionava as ações autoritárias da Doutrina de Segurança Nacional. Os setores progressistas da igreja questionavam as ações do Estado autoritário. Tal posicionamento significou perseguições e pesadas críticas dos militares e de seus aliados aos religiosos ligados aos movimentos estudantis.

No capítulo 7, ‘A escola como espaço estratégico para a consolidação dos projetos em disputa: a conciliação de interesses’, para o autor, na compreensão do debate entre o público e o privado na educação, que precedeu a primeira LDB n. 4.024 de 1961, os grupos em jogo entendiam a educação como instrumento necessário para provocar mudanças sobre os homens e a esfera social.

As orientações em defesa da escola privada reuniam a Igreja Católica e os proprietários das escolas privadas. Segundo esses dois grupos, os pais tinham o direito de escolher a melhor escola para o seu filho. No grupo em defesa da escola pública, havia três correntes: os liberais-idealistas, os liberais-pragmáticos e o grupo liderado por Florestan Fernandes.

A igreja lutava para que os pais tivessem a liberdade de escolha para os seus filhos entre o ensino laico ou religioso. Em vários artigos veiculados na Revista de Cultura Vozes (RCV) havia o discurso ideológico de que o público e o privado eram espaço de convergência. Dentro da perspectiva católica, o financiamento público da escola privada seria em função de uma delegação recebida das famílias e de uma missão recebida de Deus.

O Estado deveria oferecer às condições às escolas católicas, uma vez que o fim delas era a promoção do bem comum. “Ainda que a escola católica se caracterizasse como uma instituição nitidamente privada, o discurso a associava como ‘escola do povo’” (Gomes, 2018, p. 134, grifo do autor).

Nesse sentido, segundo o autor, a caracterização da ampliação da rede privada como um processo de democratização do ensino era um engodo, visto que não levava em consideração as condições de vida das populações pobres. Essa visão demonstra, com maior clareza, o caráter desigual da educação escolar no Brasil, ela não altera as relações estruturais excludentes, nem se pode compreendê-la como equitativa.

A concessão de recursos às escolas privadas era vista como uma ação de caráter democrático, pois estava em consonância com a política internacional. Para o autor, era incompatível uma educação democrática vinculada à manutenção de escolas privadas pelos cofres públicos. A democratização do acesso, em seu entendimento, ocorreu pela manutenção da escola pública pelo Estado. Nesse cenário, o investimento estatal de instituições escolares privadas se caracterizava, e ainda se caracteriza, como um retrocesso.

Nas ‘Considerações finais’ o autor afirma que vivemos em um contexto de hegemonia do discurso neoliberal, no qual se questiona o papel do Estado nos mais diferentes segmentos da sociedade. A educação aparece nesse discurso como um importante papel na redefinição da economia do país. Nesse cenário, a privatização da educação é veiculada nos meios de comunicação como um caminho possível de democratização da educação escolar. O debate sobre o público e o privado na educação brasileira, nos anos de 1950 e 1960, do século XX, ainda é um tema atual em nosso contexto histórico, uma vez que, no debate educacional, tem prevalecido o discurso liberal e privatizante. Para o autor, esse posicionamento mascara as mazelas e desigualdades sociais, tornando a educação ainda mais excludente e para poucos. É necessário, segundo ele, lutar em defesa da escola pública, garantindo o Estado como provedor dessa educação. Ela não pode se caracterizar como um serviço prestado, mas como um direito assegurado constitucionalmente. Para isso, o autor acredita na necessidade do fortalecimento dos trabalhadores da educação, bem como na participação da sociedade, buscando todos, em conjunto, denunciar os privilégios presentes em nossa sociedade e a defesa constante da educação pública e de qualidade, para todos.

A obra de Gomes é um importante estudo sobre o debate educacional entre o público e o privado na educação brasileira. Trata-se de uma obra de referência para os estudiosos da área de educação e afins que anseiam pela compreensão das estratégias utilizadas pelos grupos hegemônicos e sua luta para a privatização da educação brasileira, entre os anos de 1945 e 1968, sob a influência das teses liberais. A obra sinaliza para a importância do estudo dessas questões, em defesa da educação pública e para todos, já que o modelo de educação privatizada impõe a exclusão de significativos segmentos da população do direito à educação. A discussão é fundamental para a compreensão da história da educação no Brasil. Estudá-la é tarefa essencial aos trabalhadores da educação, uma vez que as teses neoliberais de privatização da educação adquirem significados diferentes de acordo com os grupos hegemônicos, principalmente no que se refere às pressões exercidas sobre o Estado para legitimar o direcionamento de investimento financeiro estatal da educação pública para o setor privado.

Marcos Ayres Barboza – mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2007). Aluno do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá, (PPE-UEM). Psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná, câmpus de Paranavaí. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: [email protected]

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – possui Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1996). Atualmente é professor associado no Departamento de Fundamentos da Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Religião, Filosofia, Educação, Educação Brasileira, século XVI, século XVII, século XVIII, Fundamentos da Educação, Jesuítas e Franciscanos. Líder do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: [email protected]

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A emergência da escola – GONDRA (RBHE)

GONDRA, J. A emergência da escola. São Paulo: Cortez, 2018. Resenha de: COSTA, A. L. J., & SCHUELER, A. F. M. A emergência da escola. Revista Brasileira de História da Educação, 18, 2018.

As reformas instauradas através da ação dirigente do grupo de conservadores que lideravam a construção do Estado Imperial, sob a administração de Luiz Pedreira do Couto Ferraz – (Regulamento das Escolas de Primeiras Letras da Província do Espírito Santo, de 1848, Regulamento da Instrução Primária na Província do Rio de Janeiro, de 1849, e Regulamento do Município da Corte, de fevereiro de 1854) – constituem o ponto de partida de A emergência da escola, que reúne reflexões sobre o governo das escolas, as casas de educação, os espaços, o tempo escolar, os sujeitos governáveis, os limites e a extensão do governo, os saberes disseminados e os modos de ensinar, os professores habilitados, as teias disciplinares do poder estendido através da imposição de um modelo de socialização escolar e as formas de resistência dos professores.

A análise da reforma de 1854 não surge aqui reduzida à interpretação do texto legal, mas desloca a atenção para as várias dimensões da lei como ordenamento jurídico, linguagem, prática social ordenadora das relações sociais e campo de expressão e de construção das relações e lutas sociais. Tratou-se de ‘acontecimentalizar’ a reforma, considerando-a na sua ‘singularidade’. Seguindo as pistas teórico-metodológicas, sugeridas por vasta obra filosófica e histórica de Michel Foucault, o ‘acontecimento’ reforma foi apanhado por meio dos processos múltiplos que o constituem, de maneira a compor um ‘poliedro de inteligibilidade’, cujo número de faces não é previamente definido e nunca pode ser considerado legitimamente concluído. Como argumentam os autores, a ‘instrução reformada’, através da proliferação de regulamentos, normas e leis educacionais no período, contribuiu para gerar uma efetiva ‘cultura da reforma’ no Brasil que, via de regra, operava de acordo com a retórica da ineficácia, insuficiência ou inexistência de iniciativas.

Segundo os autores, períodos de reformas são privilegiados para discussão de projetos de sociedade, quando geralmente os modelos vigentes se encontram em exaustão. Nesse sentido, o projeto de Couto Ferraz evidencia o esforço regulador do Estado, que se quer afirmar como único, envolvendo toda a sociedade em suas malhas. Por esse motivo decreta que nenhuma iniciativa particular poderia se estabelecer sem licença do presidente de província. Porém, a manutenção da liberdade de ensino é um exemplo de como a reforma não se faz por mera imposição, sendo necessária a negociação com interesses privados.

Na primeira parte, é analisado o modo como as ações de governar, moralizar, disciplinar, higienizar e civilizar o povo articulavam-se no projeto de reforma da instrução e da escola como fórmulas que condensavam ambiciosos objetivos de ‘governo das multidões’. A hipótese, então defendida, é a de que a instrução foi uma estratégia civilizatória de governo através da escola, máquina de civilizar, com vistas a constituir um modelo de formação do povo que funcionasse em sintonia com o modelo de sociedade aspirado. Governo que se materializava nos espaços das escolas; na definição dos indivíduos escolarizáveis, o público escolar; no esquadrinhamento de saberes a ensinar; nos métodos e materiais de ensino; nos tempos e horários discriminados; e, ainda, nos processos de formação, certificação, qualificação, seleção e controle do corpo de professores.

O governo dos professores foi analisado a partir da decomposição do processo de profissionalização em níveis ou temporalidades profundamente articulados. Um primeiro nível, o da formação anterior ou inicial (tanto prática, através da aprendizagem do ofício no interior da escola, quanto escolar, através da disseminação do modelo de formação pelas Escolas Normais), enfocou a análise dos requisitos e exigências considerados necessários para a realização do trabalho docente. Um segundo nível, o tempo de ingresso, foi examinado através dos aspectos do processo de seleção de professores. Por fim, o nível do exercício docente, no qual sobressai a investigação das forças que constrangiam o professor quando este já se encontrava em pleno exercício de suas funções. Nas palavras dos autores, esses três níveis de análise, as três temporalidades, dão a ver os dispositivos ativados para assegurar a modelação do ‘bom professor’, como expressão e modelo de virtude.

Formação científica, processos de seleção e regulação do ofício. A emergência da escola possibilita perceber como o modelo escolarizado de formação de professores primários foi legitimado com a criação da Escola Normal representada como dispositivo que asseguraria maior qualificação para esse novo profissional, o que era buscado por meio do conjunto de saberes prescritos, do tempo de dedicação aos estudos, das exigências e do controle pelos exames anuais. Entretanto, apesar da crença de que o modelo escolarizado era o que melhor servia, naquela época, houve continuidades e permanências em relação ao modelo de formação pela prática, pela utilização dos alunos aprendizes (professores adjuntos), no interior da escola, com o sistema de aprendizagem do ofício. O modelo de formação escolar não se impôs de forma linear e sem contradições e/ou contestações, não tendo sido aceito facilmente em todos os espaços sociais. Não por acaso, a convivência e, sobretudo, as disputas entre diversos modelos de formação docente se fazem ecoar, ainda, no presente, apontando para a complexidade das temporalidades históricas, para o peso de ‘tradições inventadas’ que buscam legitimar determinadas representações docentes.

Os professores, ao se apresentarem para os concursos e seleções, ou ainda para solicitar a isenção de provas e o ingresso no magistério pelas vias alternativas abertas pelos regulamentos (nomeações de adjuntos, pedido de vaga, entre outros), produziam representações sobre si, sobre a sua trajetória, seu perfil e sua adequação ao ofício pretendido. A prévia de si, documentada pelos atestados de moralidade, das certidões de batismo e das provas de concursos, contribuiu para a produção de representações sobre a docência, nas quais os candidatos procuravam produzir sua imagem próxima à do tipo ideal considerado ‘desejável’ pelas prescrições e normas então validadas.

A regulação do ofício não se fazia apenas no tempo de ingresso. Em exercício, novos dispositivos de governo dos professores entram em cena. Ao estudar as condições de aparecimento e de funcionamento das Conferências Pedagógicas, evento organizado com o objetivo de reunir professores primários para discussão de assuntos pertinentes à instrução e ao ensino, os autores nos ajudam a compreender aspectos dos projetos e debates relacionados à Instrução Pública, na segunda metade do século XIX, no que se refere à construção e à imposição de um ideal de professor. A hipótese defendida é a de que as conferências pedagógicas funcionavam como uma estratégia do Estado Imperial, para assegurar a homogeneização da classe docente, tendo em vista instaurar um bom modelo de professor, por meio do estabelecimento de um código profissional que deveria ser partilhado pelo conjunto do professorado. Para explicar o funcionamento desse dispositivo, a partir dos estudos de Foucault, os autores sintetizam os objetivos do Estado: conhecer, dominar e utilizar. “Conhecer as práticas e perspectivas do corpo docente. Dominar por meio do que se estabelecia pelas normas, sobretudo, o controle das discussões e encaminhamentos nos limites do que o governo define como ‘necessário e profícuo’, e utilizar o corpo docente para difusão do que era desejado por aqueles que se encontravam em pontos centrais e estratégicos do aparato escolar” (p. 75-76, grifo do autor). A própria prática de recompensar os professores, premiando-os pelos trabalhos apresentados, pôde ser entendida como dispositivo de ajustamento ao modelo de instrução forjado pelo governo.

Os professores, sujeitos governáveis, contudo, não se restringiam a participar das conferências, referendando os modelos impostos. No exame dos trabalhos e dos debates ocorridos em algumas conferências pedagógicas, os autores apontaram contradições, fissuras, brechas, opiniões divergentes, reações, produção de tensões, silenciamentos e censuras. No exame de tais encontros tornou-se possível perceber outros efeitos que as conferências terminaram por engendrar: a promoção de uma reflexão promovida pelos professores acerca do próprio dispositivo, sua organização e funcionamento. Demonstração, segundo os autores, do inesperado da norma, do impensado, de uma arte de superação por intermédio de ações dos sujeitos envolvidos. Assim, assistimos à movimentação dos professores, exercitando um papel bem determinado no próprio processo de configuração da profissionalização docente na Corte Imperial, ao interferirem no andamento das conferências em outros tempos e espaços, discutindo a respeito das políticas voltadas para sua própria formação.

O governo, por meio das escolas, não poderia deixar de fora, é claro, o controle preciso sobre as aulas, os livros, os saberes e os métodos de ensinar. Embora a aula e a cultura escolar possam ser concebidas como espaços de criação, são também lugares submetidos a prescrições, dispositivo de governo para atingir, de um mesmo modo, as pequenas multidões que passam a frequentar as aulas na Corte Imperial. Pela análise dos processos de adoção de livros escolares, especificamente os debates relativos ao compêndio Fábulas, de Justiniano José da Rocha, e, como contraponto, Lições moraes e religiosas, de José Rufino Rodrigues, os autores defendem a hipótese de que “[…] os livros funcionavam (e funcionam) como um dos principais instrumentos para concretização dos projetos educacionais em curso, sendo utilizados pelos professores como uma espécie de ‘guia’ no ensino dos saberes que se pretendia escolarizar, e, por extensão, dar a ver o que se pretendia dos alunos em suas práticas ordinárias” (p. 89, grifo do autor). Os livros escolares constituem, portanto, objetos privilegiados para se tentar compreender o que em determinado momento se pretendeu ensinar, os saberes prescritos, os modelos pedagógicos e os interesses sociais de determinada época.

A prescrição de saberes é objeto de investigação dos autores no que se refere à construção de um modelo elitista de ensino secundário, representado pelo Colégio Imperial Pedro II, cuja referência fundamental foi constituída pelo exemplo e pela influência cultural exercida pelas reformas educacionais e pelas culturas literária e humanística francesa, que circulavam e foram apropriadas e reelaboradas nos trópicos. O ensino secundário no Colégio Imperial Pedro II erigiu-se em espaço exclusivo das elites. Ao criar um modelo de escola graduada, seriada e mais alongada, esta passou a se constituir em um privilégio para poucos, visto que as classes populares não tinham condições de prescindir do tempo de trabalho. Funcionavam, assim, como sinal de distinção entre os mais polidos e os mais rudes, fazendo da escola mais um espaço de afirmação e de produção das hierarquias sociais.

O governo das multidões, das aulas, dos saberes, dos livros, dos professores também suscitou, no que se refere aos professores, movimento significativo, ações, intervenções e tentativas concretas de estabelecer e construir um ‘governo para si’. Ao analisar o conjunto de manifestos redigidos por um grupo de professores primários da Corte, no início da década de 1870, os autores afastam-se da sedução em erguê-los como monumento – embora aqueles professores tenham usado a prática de monumentalizá-los, por meio da reedição, fora do contexto inicial, das reivindicações neles contidas, como forma de promover a construção da categoria. Tais documentos se constituíram em instrumento necessário para a compreensão das formas de participação organizada de professores nos rumos da educação, naquele contexto histórico, em interlocução com o poder público e com a sociedade. Os manifestos, presentes ao longo da história da educação brasileira, são expressões de movimentos mais ou menos organizados, constituidores de identidades, tendo funcionado como articuladores de seus signatários. Como bem argumentam os autores, as práticas de ‘manifestar-se’ não podem ser encaradas como uma invenção exclusivamente republicana.

O estudo dos Manifestos dos Professores Públicos da Corte (1871) amplia o espectro de observação a respeito dos problemas e da situação do ensino na cidade Corte, bem como nos faz compreender as questões que mobilizavam os professores, em torno das quais eles buscavam forjar a organização e a associação do grupo como classe profissional. Tal iniciativa, a prática de manifestar-se, criou condições para o nascimento das primeiras associações profissionais, da imprensa pedagógica e para a construção de um movimento em direção ao associativismo docente, a uma espécie de autogoverno.

Para fechar a obra, um presente para os leitores, estudiosos, curiosos e pesquisadores da educação: as fontes primárias, documentos analisados no decorrer do percurso de pesquisa, foram transcritas, na íntegra, incluindo o regulamento da província do Espírito Santo (1848), o regulamento da província do Rio de Janeiro (1849), o regulamento da Corte (1854), além das preciosidades Cartas ao professor da Roça (1864), do professor primário Manoel Pereira Frazão, e Manifesto dos Professores Públicos (1871), assinado por este e outros dois companheiros de ofício.

A emergência da escola, obra coordenada por José Gondra e produzida em coautoria com a equipe de pesquisadores do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPHE/UERJ), composta por Pedro Paulo Hausmann Tavares, Marina Natsume Uekane, Inára Garcia, Angélica Borges, Giselle Baptista Teixeira, Pollyanna Gomes Pinho e Daniel Cavalcanti de Albuquerque Lemos, vem a público, editada pela Cortez após revisão e atualização feitas pelo autor, revelando a riqueza de um trabalho de pesquisa realizado de forma articulada e integrada, abrindo um vasto campo de possibilidades interpretativas e novos caminhos de investigação.

Leitura indispensável, não apenas para aqueles que desejam compreender os processos históricos de construção da instrução primária e da secundária no Rio de Janeiro oitocentista, mas para todos aqueles que estudam a ‘emergência’ da escola como um problema específico da modernidade – um problema de ‘governo’. Governo de multidões. Governo de professores. Governo de aulas e livros. Governo de indivíduos, tornados ‘alunos’. Governo de si.

Ana Luiza Jesus da Costa – Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2012). Professora de História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo/ FEUSP, onde atua nos cursos de Pedagogia e Licenciaturas e no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação/USP. Integra o Grupo Interdisciplinar de Ensino e Pesquisa em História da Educação (NIEPHE/FEUSP). E-mail: [email protected] http://orcid.org/0000-0001-6917-2917

Alessandra Frota Martinez de Schueler – Doutora em Educação (2002) e Mestre em História (1997) pela Universidade Federal Fluminense. Professora de História da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, instituição na qual atua nos cursos de Pedagogia e Licenciaturas. Vice-líder do Grupo de Pesquisa História Social da Educação/FEUFF. Participa também como pesquisadora associada junto ao Grupo de Pesquisa “Gêneros, Sexualidades e Diferenças nos Vários EspaçosTempos da História e dos Cotidianos” – GESDI, coordenado pela Professora Dra. Denize de Aguiar Xavier Sepulveda, no Programa de Pós-Graduação em educação e na Faculdade de Educação da FFP\UERJ. E-mail: [email protected]

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A liturgia escolar na idade moderna – BOTO (RBHE)

BOTO, Carlota A liturgia escolar na idade moderna. CAMPINAS, SP: PAPIRUS. Dóris Bittencourt Almeida Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil, 2017. Resenha de: Almeida, D. B. A liturgia escolar na Idade Moderna. Revista Brasileira de História da Educação, n.18(48) 2018.

“A escola é a sua existência. E, portanto, a escola é sua história […] para pensar na escola que desejamos, é necessário meditar na escola que recebemos” (p. 23). É a partir dessas palavras que Carlota Boto faz um convite ao leitor a ingressar em outra temporalidade e aprofundar os conhecimentos acerca da constituição do processo de escolarização, como fenômeno social que marca os séculos XVI e XVII, no continente europeu.

Ao mobilizar uma vasta quantidade de autores, clássicos e contemporâneos, a autora produz um texto que contempla dois atributos: densidade teórica e generosidade acadêmica. Preocupada constantemente em didatizar, a pesquisadora, aos poucos, mas em um crescente, esclarece ao leitor como emerge na Europa um novo modelo de escola, “[…] com uma fisionomia própria, que a diferencia de suas antecessoras” (p. 21). O livro destina-se a todos os interessados em história da educação, sobretudo, a estudantes e professores, envolvidos com o ensino/aprendizagem/pesquisa nesse campo de conhecimento.

Ainda na introdução, apresentam-se, para além dos objetivos, preceitos teóricos e metodológicos presentes na obra, como se pode notar na referência a Norbert Elias, no sentido de aproximar o discurso pedagógico à construção de um modelo civilizador europeu, entre os séculos XV a XVII. Metodologicamente, o texto se constitui por meio de revisões bibliográficas, estudo de textos de autores clássicos no período estudado.

O livro está dividido em seis capítulos, inicia pela reflexão acerca do contexto europeu renascentista que fomentou o advento do livro impresso e a constituição de um conceito moderno para a infância. Na sequência, uma discussão acerca do processo civilizador, engendrado na Europa, atrelado a uma nova concepção que se delineava referente à educação escolarizada. Nesse sentido, tematiza-se o pensamento pedagógico, preconizado por Erasmo, Montaigne, Vives e Comenius, considerando-se as afinidades entre todos eles. Por fim, apresentam-se os colégios jesuíticos e as escolas lassalistas, emblemas de muitos preceitos da educação escolar, dos quais somos herdeiros.

Em termos contextuais, a autora demonstra as condições que permitiram a emergência da modernidade europeia. Discute a relação entre escola, Reforma Protestante e cultura escrita. Importa lembrar que um dos princípios da Reforma Protestante era a leitura das Escrituras, que não mais passaria pela clivagem de qualquer mediador. O advento da cultura impressa também imprimiu alterações em relação aos modos de apreender o mundo, por meio de crescente formação de novas comunidades leitoras. O aumento de leitores, atrelado ao desenvolvimento da cultura impressa, paulatinamente, teve profunda ressonância no modelo de escola que se instituía, tendo em vista que o ensino se colocava entre duas práticas: a oralidade, herança do passado medieval, e a escrita, que representa a modernidade.

Ainda sobre o cenário europeu, o livro reconhece as inter-relações entre a gênese do capitalismo comercial, princípios de secularização e regulação de costumes. Todas essas são evidências que conduzem a uma maior privacidade nos estilos de viver, afetando diretamente os conceitos de família nuclear e os entendimentos que se tinha a respeito da criança. Mesmo ainda não se conhecendo em profundidade as singularidades da criança, percebiam-se suas diferenças em relação aos adultos e essas percepções inscrevem-se nesse ambiente da Europa dos séculos XVI e XVII.

Nessa perspectiva, enfatiza-se que a família moderna não dispunha de instrumentos para educar, sozinha, as gerações mais jovens. A escola, como instituição educativa, constitui-se como lugar intermediário entre família e escola, legitima-se e passa a ser solicitada pelas populações de diferentes países da Europa, a ela caberá “[…] instruir, formar, educar” (p. 21). E é assim que, em vários países da Europa, multiplicaram-se os colégios, assumindo significados distintos na modernidade. No passado, entre os séculos XIII e XIV, eram espécies de asilo para estudantes pobres, mantidos, sobretudo, por ordens religiosas. No início do século XV, passam a ter caráter formativo, mantendo um rigoroso sistema disciplina, aliando instrução e moralização, tendo como referências a proteção à criança, por meio do isolamento do convívio comunitário.

Constituída sobre dois pilares, ensinar saberes e formar comportamentos, a nova escola tem na produção de civilidades um eixo forte de sustentação, atrelado ao movimento humanista que se fortalecia a partir do século XVI, valorizando as individualidades, em um processo singular de secularização da vida humana. Assim, à educação, em uma perspectiva moderna, cumpriria produzir, transmitir e reproduzir determinado padrão cultural e intelectual das pessoas, por isso a importância do refinamento dos costumes, atrelado a determinado modo de ser europeu. É possível dizer que a cultura da escola moderna do Ocidente é imediatamente conectada ao processo civilizador.

De acordo com Boto, “[…] há uma pedagogia da escrita na Renascença” (p. 80), o reconhecimento das especificidades da criança faz emergir os manuais de civilidade, desde o século XVI que circulavam em larga escala, prescreviam e regravam os cuidados com essa infância, até então praticamente desconhecida, sob a máxima “[…] educar os filhos, torná-los civis” (p. 85). Entretanto não passa despercebido pela autora o fato de que, apesar do alargamento da ideia de infância, apenas algumas crianças serão atingidas por tal sentimento, filhas de nobres e burgueses, “[…] havia outra criança, aquela que é identificada ao povoe para a qual não há proteção” (p. 51).

Inúmeros foram os tratados que, sob o gênero de civilidade, tiveram lugar na produção impressa. O tratado de Erasmo, A civilidade pueril, foi o primeiro texto da era moderna dirigido às crianças, diretamente voltado à formação civil e às boas maneiras e que evidencia o surgimento da moderna sensibilidade social da infância.

Outro pensador a quem é dado destaque no livro é Montaigne. Entre seus postulados, condena o fato de o ensino das atitudes estar secundário em relação ao ensino de outros saberes. Sobre a didática de seu tempo, afirma que o aprendizado precisaria ter significados, “[…] saber de cor não é saber” (p. 81), a competência livresca, para ele, pode servir de ornamento, mas não de fundamentos. Defende a importância de um preceptor, destacado pela civilidade, mais do que por sua competência intelectual.

Na sequência, a autora inclui o pensamento de Vives, um dos poucos humanistas a se preocupar com a formação dos comportamentos e da instrução na perspectiva do ensino coletivo. Este acreditava no valor intrínseco das práticas de escolarização, quando a maior parte dos humanistas ainda condenava o ensino coletivo como algo que corromperia os costumes.

Considerado precursor de Comenius na sistematização dos métodos de ensino, censurava a escola de seu tempo, por não conseguir acompanhar o desenvolvimento da cultura letrada. Afirmou que “[…] pouco era ensinado, quase nada era aprendido” (p. 133). Enfatizava a necessidade de se fertilizar a memória com o exercício, bem como a importância do método, que confere significados ao processo de ensinar. Para Vives, o segredo do aprendizado estaria posto na capacidade de anotar as informações ministradas pelo mestre ou as informações colhidas no livro durante a aula.

Além disso, antecipava a ideia do edifício escolar construído para fins pedagógicos, como ícone do moderno conceito de escola. Discutia as condições arquitetônicas necessárias para o prédio escolar, tendo como características a vigilância e o isolamento. Por fim, ainda cabe lembrar que, para Vives, educar e ensinar eram habilidades que requeriam o conhecer os estudantes, bem como o conhecimento da matéria a ser ensinada. Sua obra abordava o cotidiano da escolarização, defendia o aprendizado pela imitação, daí a importância do exemplo de pais e mestres. Entusiasta do lugar progressista que a escola ocupava no tabuleiro social, dizia que lá também era lugar de fazer amigos. Considerava imprescindível observar comparativamente produções escritas do mesmo aluno em épocas diferentes para avaliar o desenvolvimento do seu aprendizado. Seguindo as ideias da produção de civilidades, afirmava que a escola era a instituição precípua para habilitar o sujeito a portar-se bem em sociedade.

Chega-se, então, ao século XVII, e os escritos de Boto realçam o pensamento de Ratke e de Comenius, pela relevância de ambos nas concepções de escola, sobretudo da didática. Ratke, precursor de Comenius, antecipa em 40 anos a idealização de uma escola para todos, pautada em um ensino coletivo. Assim como fez Vives e como fará Comenius posteriormente, Ratke desenvolve uma percepção das escolas de seu tempo, pautada em uma série de questionamentos. Procura compreender por que eram diminutas as iniciativas em prol da escolarização, por que as escolas que existiam não tinham sucesso e por que havia tanta evasão escolar. Acredita que boa parte desses problemas seria sanada se houvesse maior preocupação com os métodos de ensinar.

E, finalmente, Comenius comparece no texto, considerando as reflexões de seus antecessores, sistematiza o conceito de um saber estritamente pedagógico, materializado com a Didática magna. Para ele, “[…] o método era a chave para a escolarização moderna” (p. 186). Imbuído de princípios cartesianos de acumulação progressiva de conhecimentos, afirma a importância do encadeamento dos conteúdos, partindo do simples até atingir maior complexidade. Valendo-se da metáfora do relógio, prevê um reordenamento do tempo e do espaço escolar, assim, os alunos seriam divididos em classes conforme níveis de aprendizagem e as matérias, distribuídas por horários. É um precursor do método simultâneo, declara que o “[…] professor deveria imitar o Sol” (p. 188), e, assim, irradiar-se igualmente sobre todos os seus alunos. Critica aos exercícios de memorização que não viessem acompanhados pela prévia compreensão. É contrario ao excesso de horas na escola, acreditando que o exagero do tempo escolar acarreta perda da concentração. Desse modo, pode-se dizer que Comenius confere determinada precisão à vida escolar, por meio da colocação de regras claras que deveriam ser internalizadas por discentes e docentes.

O texto avança e apresenta concepções dos colégios jesuíticos, no século XVI, e das escolas para crianças pobres concebidas por La Salle, em fins do século XVII. Em comum, os discursos dessas instituições, que disciplinam o saber, modelam corpos e mentes, como produtos do pensamento pedagógico anteriormente discutido no livro. A autora afirma que os colégios jesuíticos constituem referência para pensar a acepção de colégio que ainda há hoje, e o modelo lassalista constitui iniciativa pioneira para projetar aquilo que tempos depois seria denominado de escola primária.

Entre os objetivos primordiais dos colégios jesuíticos, estava o de formar uma elite letrada, eram, portanto, instituições destinadas às camadas sociais superiores, preocupadas em adquirir uma cultura geral. As aulas eram organizadas em explicações teóricas e em disputas, desdobradas em preleção, repetição, declamação, memorização e imitações literárias. Como princípios básicos, a subtração do tempo de convívio familiar, a ambientação em um espaço especificamente pedagógico, tendo-se em vista que os colégios eram geralmente internatos. Pretendia-se criar uma espécie de ambiente purificado, marcado pela vigilância no sentido de moldar os estudantes. O primeiro colégio jesuítico estabeleceu-se na cidade de Messina, em 1548, teve como inspiração os métodos de ensino da Universidade de Paris, pautados na preleção e repetição. Em 1599, sistematiza-se o Ratio studiorum, por influência de Erasmo e Vives, sobretudo, constitui-se em um programa escolar, pautado na ordem e na divisão dos estudos. É o produto de dezenas de anos de debates, um texto produzido a partir da recolha do que se acreditava serem as experiências de ensino bem-sucedidas.

Com relação às escolas dos Irmãos das Escolas Cristãs, liderados por La Salle, explica-se que foram iniciativas originais para as crianças do povo, raras naquela temporalidade. Tratava-se de um projeto de ensino elementar para as camadas populares, entretanto atraiu crianças de outras camadas sociais. Denominadas escolas de caridade, fundamentadas nos ensinamentos de leitura, escrita e cálculo, concebiam o princípio da simultaneidade e sucessão do ensino. Assim, primeiro se aprendia a ler, só depois as crianças seriam apresentadas à escrita, sendo primeira a letra bastão e depois a cursiva. Por último, os cálculos. Todos esses ensinamentos aconteceriam em meio a um ambiente permeado pela catequese e civilidade. Boto explica que, diante da falta de conhecimento de como ensinar tudo a todos, procurou-se separar grupos de alunos liderados por monitores mais avançados, essa prática seria o embrião do ensino mútuo, método de ensino desenvolvido posteriormente. Em termos da liturgia escolar, valorizava-se o silêncio que reverenciava, ao mesmo tempo, Deus e a instituição. A escola colocava-se como um local intermediário da vida: entre os assuntos mundanos e os divinos estaria a essência do conhecimento.

O livro se encaminha para o final, e sua autora produz uma reflexão acerca da quase invisibilidade das transformações que acontecem nos processos de escolarização, no passado e no presente. A escola moderna cria, em alguma medida, seu ritual de organização, trabalhando simultaneamente saberes e valores, estabelecendo rotinas, disciplina, hábitos de civilidade, permeados de racionalização. Reforça a tese da inscrição da instituição escolar no processo de construção do Estado moderno. Alerta para a construção desse novo lugar social ocupado pela escolarização, em uma Europa que se urbaniza sob a égide do capitalismo comercial, da Reforma Protestante e do advento da cultura impressa. Nesse sentido, a escola é a instituição que se dá a ver como lugar primeiro do cultivo da racionalidade e da civilidade.

Para concluir, desafia o leitor a problematizar a escola contemporânea, conduz a pensar naquilo que pode parece natural a todos nós, sujeitos escolarizados, mas que carrega marcas da historicidade dos processos educativos. A liturgia escolar, que comporta ritualidades, é tramada pela autora, ao longo das páginas desse livro. Por meio de uma apropriação de sentidos do texto, que se traduz na resenha, pretende-se incitar o leitor a ir além dessas palavras e desenvolver a leitura da obra em questão. Encerramos, como iniciamos, trazendo as palavras de Carlota Boto, “[…] é preciso mudar o que estiver obsoleto. É preciso preservar o que considerar valoroso. É fundamental haver o fortalecimento de projetos políticos-pedagógicos democráticos. A transformação desejada é obra dos próprios agentes envolvidos na instituição escolar” (p. 293).

Notas

1. B Almeida foi responsável pela concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados; redação do manuscrito, revisão crítica do conteúdo e aprovação da versão final a ser publicada.

Dóris Bittencourt Almeida – Doutora em Educação, Professora Associada I de História da Educação da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. E-mail: [email protected]

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Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884) – FERRONATO (RBHE)

FERRONATO, C. J. Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884). Aracaju, SE: Edise, 2014. Resenha de: MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. ‘GLORIOSO TEMPLO DE SABEDORIA’: O Lyceu Provincial e a Instrução Secundária na Parahyba do Norte. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 17, n. 2 (45), p. 277-282, abr./jun. 2017.

O Lyceu Provincial e a instrução secundária na Parahyba do Norte. Esta é a temática central abordada pelo historiador Cristiano Ferronato no livro Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884), publicado em 2014, pela Universidade de Tiradentes e pela Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe. A obra é fruto de sua tese de doutoramento realizada junto ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, defendida em 2012. Atualmente, Ferronato atua como professor do curso de licenciatura em História e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes – SE. Nos últimos anos, realiza pesquisas sobre instrução no Nordeste oitocentista.

O livro que chega ao grande público discute as configurações da instrução secundária na então Província da Parahyba do Norte desde a oferta de aulas avulsas, enfatizando esse processo histórico do ensino liceal. Em 1836, foi criado o Lyceu Provincial da Parahyba do Norte, instituição de ensino secundário longeva, um precioso artefato da memória educacional paraibana que carrega consigo uma força de preservação, de interação e de germinação, representado pela elite provincial, ao longo do século XIX, como um ‘glorioso templo de sabedoria’1. A instituição carecia de um trabalho de fôlego, e Cristiano Ferronato nos brindou com este estudo que abrange 48 anos, visto que delineou seu recorte entre os anos de 1836, com a criação do Lyceu, e 1884, quando este foi transformado em Escola Normal. Nesse processo, além do ensino liceal, o autor discute as aulas avulsas públicas e particulares na Província. O livro é composto de cinco capítulos e nele, a partir das primeiras páginas, sentimo-nos convidados a bater à porta e entrar nesse universo instrucional, morada de tantas histórias.

‘Um tempo, um espaço e um objeto’. Neste capítulo inicial, o autor enfoca as questões teórico-metodológicas e, com base nelas, aponta a trajetória percorrida para a realização da pesquisa. Fiel à sua formação,estabelece um diálogo rico com o núcleo documental, composto por leis, regulamentos, decretos, correspondências, dados estatísticos, listas de alunos, programas de ensino, jornais, manuscritos, dentre outros, com destaque para os relatórios e falas dos presidentes de Província direcionados à Assembleia Legislativa. Respaldado pelos aportes teóricos e metodológicos de uma abordagem cultural, explora de forma fecunda o fenômeno da escolarização secundária, com o auxílio de formulações elaboradas por Bourdieu, como as noções de ‘configuração, representação’ e ‘poder simbólico’. Realiza também um maduro investimento no mapeamento dos estudos liceais no Brasil e em Portugal e na interlocução com a historiografia.Em consonância com a abordagem de Dolhnikoff, alavanca as elites locais à condição de elites políticas, partícipes de um ‘arranjo institucional’, que considera resultado das negociações entre as elites de diversas regiões da nova nação. Tal arranjo foi concretizado nas reformas liberais da década de 1830 e não foi modificado com a revisão conservadora dos anos de 1840, que não anulou a autonomia provincial. Ao tornar visível essa dimensão política, Ferronato traz à tona a complexidade das relações entre centro e regiões, no processo de construção do Estado nacional e nas experiências de escolarização secundária estudadas.

As primeiras configurações do ensino secundário, com suas aulas avulsas públicas e particulares e com a criação do Lyceu Provincial, são discutidas a partir do segundo capítulo. Problematizando esse processo,o autor aponta algumas análises importantes acerca do ensino superior no Brasil, mencionando a fundação dos primeiros cursos, a exemplo de Direito em São Paulo e Recife em 1827. Destaca também a influência da educação coimbrã na formação jurídica homogênea da geração inicial de administradores da nação recém-independente. Com a criação dos primeiros cursos no Brasil, ficava a cargo dessas instituições a formação da elite que ocuparia cargos na burocracia imperial. Nesse contexto, a constituição de instituições de ensino secundário era importante, pois auxiliaria na formação da elite local para atuar no aparato burocrático provincial.

Inicialmente, as aulas avulsas compunham o ensino secundário e eram denominadas pelo conteúdo a ser ministrado, ou seja, aulas de latim, de retórica. De acordo com Ferronato, com a criação do ensino liceal, houve uma organização, reunião ou complementação das aulas isoladas. Na província em questão, as referidas aulas funcionavam nas principais vilas e cidades, a exemplo das vilas de Sousa e Pombal, nas casas dos próprios professores. Os relatórios de presidentes da Província ou diretores da instrução pública contêm dados mais abundantes sobre o número de alunos matriculados e sobre os gastos para o seu funcionamento, não explicitando o cotidiano de funcionamento das mesmas.

Para Ferronato, a institucionalização do Lyceu Provincial influenciou a criação, em 1849, da Diretoria da Instrução Pública, uma vez que transformações se efetivaram com sua instalação, o funcionamento das aulas, sua localização, a utilização de relatórios etc. No entanto, essa nova forma de organização escolar coexistiu com a anterior até 1877, ano de extinção das aulas avulsas. Nessa convivência, o ensino liceal representaria o poder da capital, a Cidade da Parahyba, e a modernização do ensino secundário; já a outra modalidade de ensino, seria encabeçada pelo poder local, vista como uma organização tradicional. As aulas particulares, afirma o autor, funcionaram reservadamente na Província. É interessante destacar a relevância de trabalhar com as aulas avulsas públicas e particulares, especialmente por serem restritos os estudos sobre essa forma educativa.Vale ressaltar a riqueza dos organogramas e quadros sobre a Diretoria da Instrução Pública;sobre as aulas avulsas de latim em vilas e cidades da Província;sobre os alunos matriculados;os mapas de despesas com a instrução secundária;os salários dos professores, entre outros,estruturados ao longo do capítulo.

No livro, duas temporalidades ganham contorno com base na visão do autor. A primeira abrange a criação do Lyceu ocorrida em 1836, sua estruturação e sua consolidação, destacando-se os estatutos, elaborados em 1837 e 1846, e a tentativa de sua equiparação com o Colégio Pedro II. Essa fase estende-se até o ano de 1873, quando foi publicado o Decreto nº 5429, a partir do qual um processo de centralização do ensino marcaria o declínio e fim das aulas avulsas públicas no interior da Província. De 1873 a 1884, uma segunda fase se estruturaria, com um significativo aumento do número de alunos matriculados e com o fim de exames gerais de preparatórios nas províncias, em 1877. Um ciclo se findaria com a sua transformação em Escola Normal. Com a restauração da instituição, em 1885, passou a se denominar Lyceu Paraibano.

A ascensão do ensino liceal no Brasil é o foco do terceiro capítulo, no qual o autor examina diversos traços desse ensino no Império, mostrando que ele seria integrante de um projeto civilizatório mais amplo. Fazendo jus à memória da instituição em discussão,ele recua ao ano de 1831, com a criação do Curso de Humanidades, uma espécie de embrião da estruturação do ensino secundário. Um destaque é dado ao Ato Adicional de 1834, quando foi colocada nas mãos do governo provincial uma série de atribuições tributárias, coercitivas e legislativas, o que proporcionou a descentralização na gestão da instrução e impulsionou na Província o desenvolvimento do ensino liceal. O autor aborda também as discussões sobre os exames preparatórios no Brasil e na Parahyba do Norte como mecanismo de acesso ao ensino superior e, no tocante aos objetivos formativos dos liceus, um debate entre ensino técnico e estudos humanísticos.

Uma parcela da historiografia amalgamou uma representação sobre o Imperial Colégio Pedro II, criado em 1837, apresentando-o como uma instituição modelo para o ensino secundário no Brasil. Estruturando sua problematização, a partir do Lyceu Provincial da Parahyba do Norte, Cristiano Ferronato apresenta outra leitura dessa imagem. Ele identifica, com os programas de ensino, que a instituição não seguiu integralmente o modelo proposto pela Corte.

Nos capítulos finais entra em cena o ‘glorioso templo de sabedoria’, criado para formar a elite dirigente da Província. Inserida no movimento da Cidade da Parahyba e instalada no conjunto arquitetônico jesuítico, a instituição enfrentou inicialmente problemas decorrentes da falta de recursos financeiros, estiagens prolongadas, epidemias, poucos matriculados e ausência de prédio próprio. Apesar dos entraves iniciais, o Lyceu conseguiu se solidificar e tornou-se símbolo da instrução secundária. Com base em um levantamento dos livros que compunham a biblioteca da instituição, o autor confirma a perspectiva propedêutica, já que o acervo era composto por obras de filosofia, retórica, latim, entre outras. Com os agentes envolvidos nessa ação educativa, alunos, professores, autoridades e funcionários em geral, Cristiano Ferronato vai finalizando seu estudo. Descortina um espaço disciplinador, a íntima relação com o ensino das aulas avulsas e, dialogando com os estatutos do Lyceu, apresenta-nos as principais normatizações e atribuições propostas para o funcionamento cotidiano da instituição, com regulamentações sobre matrícula, exames, férias, premiações, deveres dos funcionários, dentre outras questões.

Felizardo Toscano de Brito, Manoel Pedro Cardoso Vieira, Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, Manrique Victor de Lima, Fr. Fructuosoda Soledade Sigismundo, Antonio da Cruz Cordeiro, Pe. José Ignácio de Brito Machado, Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, foram alguns dos professores que fizeram história na instituição e a partir dela. Um corpo docente composto por religiosos, advogados, médicos, literatos e por homens ligados à imprensa figura entre tantos outros nomes arrolados pelo autor. São eles os responsáveis pela instrução de parte da mocidade paraibana, isto é, os filhos da elite econômica e política da Província e também alguns membros de grupos intermediários, como chama a atenção Ferronato, os quais ocupavam cargos como presidentes de Província, deputados, diretores da instrução pública, professores do Lyceu, médicos da Santa Casa de Misericórdia e outras funções, como visto nos itinerários traçados no livro. Aí temos exemplificado o papel que lhes foi conferido ao adentrar essa casa liceal.

Estes são alguns aspectos que, analisados ao longo do livro, consolidam a abordagem inovadora apresentada. O autor abandona análises generalistas sobre a instrução no Brasil do Oitocentos, apresentada sob o signo da falta, e traz para o palco o processo educativo como uma prática social e histórica.A História da Educação, que tem passado por um prodigioso desenvolvimento, ganha, com a escritade Cristiano Ferronato, mais um trabalho que contribui de maneira criativa e fecunda para a reflexão sobre as configurações da instrução secundária na  Parahyba oitocentista. Apresentando-nos um cenário rico, complexo, inovador, o autor aponta caminhos que estão descortinando esse universo instrucional. As diversas qualidades do livro, aliadas a uma escrita atraente e instigante que suspende percepções simplificadas em favor de uma compreensão que atrela a escolarização secundária a um jogo social mais amplo, indicam-nos uma obra indispensável para os leitores interessados na história das instituições educativas no Brasil.

Nayana Rodrigues Cordeiro Mariano – Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, Brasil.

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Marcha contra o saber: o golpe militar de 1964 e o AI-5 na Universidade de São Paulo | C. Giannazi

RC Destaque post 2 11 Discurso de ódio

Marcha contra o saber, título mais eloquente não poderia ser dado para uma obra cujo foco é entender os impactos causados pelo regime militar no sistema universitário brasileiro. O livro é resultado da dissertação de mestrado1 de Carlos Giannazi, defendida em 1995 na Faculdade de Educação da USP. Sua motivação ao realizar a pesquisa foi a de levar à compreensão de como a ditadura transformou os setores da educação em inimigos privilegiados. A obra está dividida em prefácio (escrito por Vladimir Safatle), introdução, dois capítulos e conclusões. Algo que merece atenção é que os capítulos não possuem títulos definidos e carregam uma variedade de subtítulos sobre os casos que aconteceram durante o período abordado.

Giannazi reflete sobre os efeitos das arbitrariedades do regime para que não caiam no esquecimento e que suas consequências não continuem se prologando em silêncio na sociedade brasileira. Lançado em 2014, ano de 50 anos do Golpe de Militar, a obra permite que o leitor entenda que o saber se configura como um elemento de poder. Demonstra que não apenas as Ciências Humanas tinham sido constituídas como inimigas da ação da Ditadura, mas que o espectro das atitudes desta era muito maior, atingindo diversas áreas e setores educacionais. Leia Mais

Escuela y métodos pedagógicos en clave de gubernamentalidad liberal: Colombia, 1821-1946 – ECHEVERRI ÁLVAREZ (RBHE)

ECHEVERRI ÁLVAREZ, J. C. (2015). Escuela y métodos pedagógicos en clave de gubernamentalidad liberal: Colombia, 1821-1946. Medellín: UPB, 2015. Resenha de:  VÉLEZ, Beatriz Elena López; VELÉZ, Raul Alberto Mora. Escuela y métodos pedagógicos en clave de gubernamentalidad liberal. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 3 (42), p. 420-426, out./dez. 2016.

El libro de Echeverri es una investigación histórica y, como todo trabajo histórico, tiene como objeto el presente: las preguntas se formulan en relación con problemáticas que aquejan nuestro propio tiempo: problemáticas en torno a las cuales se recurre al pasado para examinar las condiciones de su emergencia, los procesos de su desarrollo en el tiempo y las características de su actual vigencia. Una historia que permite desentrañar algunos de los mecanismos mediante los cuales llegamos a ser lo que actualmente somos en los marcos de la educación y de la escuela.

El libro se divide en tres apartados. El primero presenta la problemática, los referentes conceptuales y la metodología de trabajo; el segundo, muestra las primeras concreciones de la construcción de la libertad liberal en la nueva república: la independencia, la emergencia de la constitución y, en ella, de la escuela misma; el tercer apartado, despliega los métodos pedagógicos en clave de construcción de la Gubernamentalidad liberal.

Un simple diagnóstico muestra que la escuela ha dejado de ser el espacio fundado por sociedades disciplinarias en un tiempo que, según Gilles Deleuze, dejó de ser el nuestro: ya no la caracteriza la máquina disciplinaria para el control minucioso sobre los cuerpos, los tiempos y los espacios con el propósito de lograr la sumisión de los cuerpos y de las mentes. La educación gira hacia el niño como centro del proceso formativo: constante proyecto político que amplía cada vez más sus derechos que los hace cada vez más protegidos, libres y autónomos pero más violentos e indisciplinados en una sociedad que parecieran confundir autoridad y autonomía en la relación que establece con sus niños y jóvenes.

La escuela deviene escenario de conflicto, violencia, falta de autoridad y, recientemente, de bullyng o matoneo. Para enfrentar esos problemas se multiplican las demandas para democratizar la escuela, lograr mayores cuotas de libertad y de autonomía y superar el fardo disciplinario del siglo XIX. Pero el autor pregunta ¿y si esa libertad que se invoca, antes que el mecanismo para solucionar los problemas actuales de la escuela, fuera el elemento subyacente que históricamente les ha dado emergencia y desarrollo?

La escuela, aunque conflictiva, indisciplinada y violenta, no carece de gobierno. Por el contrario, estos fenómenos objetivan un poder en el cual a la ampliación de derechos le son correlativos fenómenos, aparentemente perversos, pero en realidad estrategias de gobierno de la población. El autor plantea que la característica histórica de la escuela no es el autoritarismo de los maestros, la rigidez de los saberes o los rezagos de la máquina disciplinaria del siglo XIX, sino el concepto de libertad que circula socialmente para producir tipos específicos de experiencias y de prácticas de libertad en la escuela. En síntesis, la libertad fundamental para comprender la escuela del presente desde la perspectiva de las formas imperantes de poder liberal.

La libertad se reconoce como base para emprender una genealogía de los regímenes actuales de gobierno, porque la libertad se refiere a la estructuración del Estado moderno en el cual se ha desplegado un tipo de libertad, cierta manera de comprenderla, de ejercerla y de relacionarnos como sujetos libres. Libertad es materiales, técnicas y prácticas gubernamentales de gobierno de la población que tienen concreciones específicas en la escuela; y esta escuela es uno de los principales dispositivos para su construcción constante. El libro pregunta por las condiciones históricas de constitución y desarrollo de la escuela en el marco de la ‘gubernamentalidad liberal’. Por eso, el autor considera que pensar los problemas actuales de la educación, antes que reiteradas invocaciones por más democracia, libertad y autonomía, debe establecer cuál ha sido el papel de la libertad en el devenir histórico de la escuela desde la conformación del Estado nacional.

A esta inquietante pregunta le da una novedosa respuesta con los trabajos de Michel Foucault en torno a la Gubernamentalidad libera. Libertad es el elemento básico de la forma del poder liberal. La gubernamentalidad liberal se refiere al conjunto de instituciones, procedimientos, cálculos y tácticas que, por dar emergencia al Estado moderno, permitían ejercer una forma de gobierno cuyo blanco principal era la población, su forma mayor de saber la economía política y su instrumento técnico esencial, las políticas de ‘seguridad’. En fin, los tipos de racionalidad mediante los cuales se buscaban dirigir la conducta de los hombres a través de la administración del Estado.

La libertad es una construcción consciente utilizada como instrumento mediante el cual se regulan estrategias y técnicas de gobierno al mismo tiempo que con estas se intenta producir cada vez más libertad. En la modernidad, y hasta hoy, la libertad ha sido tanto el objetivo de gobierno como su instrumento constante; y la escuela uno de los dispositivos de su construcción constante. El gobierno no trata de imponer una ley, trata de disponer las cosas y utilizar las leyes como tácticas, es decir, por una serie de medios trata alcanzar algún fin previsto. En síntesis, gobierno es la práctica de conducir conductas con base en la libertad de los sujetos. La escuela es el dispositivo que articula la institucionalidad, los saberes y las personas para lograr una economía en la conducción de las conductas de las personas.

El autor se vale de este constructo foucaultiano como rejilla para mirar la historia de la escuela, así la libertad se construye y queda plasmada en diferentes registros que dan cuenta de los espacios fácticos de libertad: la legalidad nacional e institucional, los saberes y prácticas en las cuales los estudiantes adquieren cada vez mayor visibilidad y participación; Al mismo tiempo, la idea de libertad comienza a convertirse en construcción subjetiva, en una apropiación individual en el terreno de los imaginarios y de las concepciones: manipulación ideológica que produce la conducción de las conductas y es rastreable, por ejemplo, en conceptos reiterados y dispersos tales como autonomía, aprendizaje, conciencia, y la reiteración sin descanso de la misma palabra libertad, por ejemplo.

Echeverri utiliza dos categorías para explicar la producción constante de la libertad: ‘horizontalización de las relaciones’ y ‘el viaje hacia el sí mismo’. La primera muestra la manera mediante la cual los estudiantes adquieren, en el terreno de los derechos, de los saberes y de las prácticas, mayor visibilidad y participación en la escuela y la sociedad; al mismo tiempo, cómo los maestros son obligados a abandonar sus posiciones centradas en la dignidad de la función, para ganar autoridad por otras vías más ‘pedagógicas’. En la escuela se van horizontalizando las dignidades, por ejemplo, en las luchas contra el castigo, en las prescripciones de la pedagogía, en las reflexiones sobre la naturaleza y derechos de los niños de los diferentes saberes.

La otra categoría es ‘el viaje hacia el sí mismo’. La libertad no es solamente una expresión externa en el marco de la ley, es, mejor, una experiencia personal, un imaginario, una forma natural de estar en sociedad y de relacionarse con uno mismo, con el otro y con lo otro. Por eso, en la escuela se emprende, por vía de los métodos pedagógicos un camino hacia el interior de las personas, hacia su consciencia y opinión, para que cada quien se sienta cada vez más libre y en condición de exigir cada vez mayor libertad. El viaje hacia el sí mismo es el trabajo ideológico mediante el cual la idea de libertad se introyecta en cada individuo hasta convertirla en una forma normal y necesaria de estar en sociedad.

Hasta aquí el libro deja claro el problema, los referentes teóricos y la metodología que emplea. Con el segundo apartado, ‘Concreciones de la libertad en la Gubernamentalidad liberal: independencia, constitución y escuela’, el autor se interna en las formas republicanas de producción de la libertad liberal en lo que actualmente es Colombia: lo hace a partir de lo que el autor considera las primeras concreciones de libertad que, al mismo tiempo, son instrumentos para su construcción constante: la independencia, la constitución y la escuela. En esos elementos se muestra de qué manera la libertad comienza a tomar el espacio de la escritura, de la enseñanza, de la institucionalidad, de los discursos y de las acciones; en otras palabras, el libro muestra cómo la libertad se convierte en una regularidad discursiva; por esa vía, y por los senderos de la ley, se va transformando en un imaginario colectivo y en una forma de estar en sociedad.

Con este precedente pasa al cuarto apartado, es decir: ‘La libertad en cuatro modelos pedagógicos’. Estos modelos, tratados como métodos pedagógicos, sirven de hilo conductor para atravesar desde el siglo XIX hasta las primeras décadas del XX con base en la construcción constante de la libertad en la escuela. Los métodos pedagógicos le permiten a Echeverri ilustrar los modos en que la escuela hacía vivir la experiencia de la libertad tanto como concreción en el marco de los derechos y de las normas como en el marco de la construcción de la subjetividad. Método lancasteriano, método pestalozziano, Pedagogía Católica y Escuela Activa hicieron parte de un proceso de superposición y de relevos pedagógicos mediante los cuales se ha ido construyendo la libertad de manera cada vez más exhaustiva, según las necesidades de gobierno de la población que el poder liberal demanda como su condición de vigencia constante.

El método lancastariano es particularmente importante demostrar cómo un dispositivo de la construcción de la libertad por cuanto, contrariamente, en Colombia ha hecho carrera imágenes de un sistema disciplinario en el erróneo sentido de encierro, castigos infamantes y verticalidad autoritaria: máquina para lograr la sumisión de los cuerpos y de las mentes. Por lo contrario, el método lancasteriano encierra para hacer que las castas, sumisas al fundamento divino del poder, se acostumbren a la libertad e igualdad de la ley constitucional. Un método que, por primera vez, muestra que la posición en la institución y la sociedad dependen del progreso individual en competencia constante con los otros inmediatos, de la libertad individual.

El texto del profesor Echeverri es enfático en este punto, ¿cómo puede un sistema pedagógico buscar la sumisión de la población como fundamento del gobierno? No, la sumisión era precisamente lo que tenía que ser superado mediante la construcción fáctica e imaginaria de la libertad como forma de estar en la nueva sociedad democrática. El método lancasteriano sienta las bases, todavía de manera precaria y externa, para la construcción constante de la libertad, es decir, mediante la fórmula todavía vigente de otorgar derechos desde arriba para que se demande cada vez mayor libertad desde abajo para mantener la vigencia de la forma del poder liberal.

Pero la libertad requiere mucho más que mecanismos externos de ejercicio efectivo. Necesita convertirse en un imaginario que permanezca incuestionable individual y grupalmente, así las condiciones sociales parezcan negar la posibilidad de su concreción. Por ello, el modelo Pestalozziano, relevo histórico del lancasteriano, inicia el largo caminho hacia ‘el sí mismo’. Esto es, un modelo pedagógico que supera la tiranía del método externo para enseñarlo todo, y se adentra en la mente para reconocer los mecanismos del aprendizaje individual. La libertad allí no es solo una expresión del derecho con consecuencias sociales de igualdad, competencia y éxito, sino una forma de sentirse ‘uno mismo: lógicas que’ promueven experiencias personales de libertad e impelen a exigir cada vez mayores cuotas de libertad hasta convertirlas en sujetos.

En el apartado siguiente, se discute una posible impugnación a la hipótesis general: que la pedagogía católica transitaba a contrapelo de las ideas del liberalismo y la modernidad en general. El libro muestra que la Gubernamentalidad liberal no es un asunto de liberales y de conservadores, sino una forma general del poder en la cual, inclusive la oposición fragmentada del clero en Colombia, más que un freno definitivo a la Gubernamentalidad, fue un obstáculo que fuerza mayor empeño en las transformaciones. Por eso, concluye el autor, también la pedagogía católica es un dispositivo de la construcción de la libertad liberal aunque por un camino apenas diferente: una libertad con base moral en la religión católica.

La escuela activa, último modelo abordado en el libro, reconoce que no hace un aporte en el estudio de este modelo en Colombia, solo toma trabajos clásicos en la literatura educativa del país, para documentar la hipótesis de la construcción constante de la libertad liberal por vía educativa y pedagógica. En ella, el viaje hacia el sí mismo sigue su camino cada vez de manera más exhaustiva y en conjunción con más refinadas concreciones de libertad en la sociedad, el derecho y los saberes científicos. Es un camino por el cual se llega a las conclusiones que se presienten: el trabajo podría abarcar todo el siglo XX, inclusive lo que va del XXI, para mostrar que esa libertad, tecnología del yo, es una función de la escuela. Tanto así, que los niños y los jóvenes en la escuela han llevado esa libertad al extremo de horizontalizar las relaciones con los adultos, padres y maestros, y hacer visible en ella lo impensado: conflicto, violencia, falta de autoridad. Por eso, advierte el autor, para comprender esas problemáticas escolares quizás el camino no es invocar más democracia, sino reconocer el papel histórico que la construcción de la libertad liberal ha representado para que la escuela haya llegado a ser lo que es actualmente.

Estamos ante un libro de historia con profundas consecuencias educativas y pedagógicas. Libro novedoso que no debe ser abordado como novedad, interés pasajero, sino como un hito latinoamericano de reflexión. ¿Qué tipo de construcción subjetiva de la libertad produce efectos perversos en la escuela como falta de autoridad, apatía, individualismo, conflicto, violencia, por ejemplo?, ¿qué formas del poder horizontalizan las relaciones entre quienes deben agenciar la ley y los que deben ser ingresados a la cultura? El libro es un guiño para pensar detenidamente las concepciones de niños y de jóvenes que porta la sociedad y, tal vez, al reconocerlo nos daríamos cuenta de que la escuela es lo que hemos hecho de ella en las lógicas del liberalismo.

Beatriz Elena López Vélez – Decana Escuela de Educación y Pedagogía. Universidad Pontificia Bolivariana. Medellín, Colombia. Historiadora, Magister en Educación, Candidata a Doctora en Filosofía. E-mail: [email protected]

Raul Alberto Mora Vélez –  Universidade de Illinois, Ph.D. em Educação. E-mail: [email protected]

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O aracniano e outros textos – DELIGNY (REi)

DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução Lara de Malimpesa. São Paulo: 1 edições, 2015. Resenha de: MATOS, Sônia Regina de Luz. Revista Entreideias, Salvador, v. 5, n. 2, p. 97-102, jul./dez. 2016.

Inicialmente antes de escrever a resenha do livro O aracniano e outros textos (2015) é preciso descrever algumas linhas biográficas do autor, o educador francês Fernand Deligny (1913-1996). Desde já, cabe destacar que este livro é o primeiro e único livro do autor traduzido em língua portuguesa, pois ele ainda é pouco estudado no Brasil no campo da educação. O pensamento deste pedagogo é inclassificável, ele cruza os campos da filosofia, da educação, da arte e da literatura. Sua prática pedagógica contorna um processo de escritura que acontece continuamente durante as investigações e as experiências na área da educação junto aos autistas. Logo, a leitura deste livro nos convoca ao deslocamento de leitura, não tão somente em relação aos procedimentos de escrita que o pedagogo apresenta junto a arte literária, mas também, ao acesso a outra potência de agir em educação, ainda marginalizada dos espaços da pedagogia.

Então, conforme anunciado, aponto algumas linhas da biografia do professor Deligny, que desde 1927, trabalhou junto às crianças e aos adolescentes que eram classificados como inadaptados socialmente ou considerados “à parte da sociedade” (DELIGNY, 2015). Encontramos registros inéditos sobre sua experiência como educador no hôpital psychiatrique à Armentières. Esse trabalho aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial e desdobrou-se em outras experiências pedagógicas. Uma delas foi junto a clínica La Borde com o grupo de estudos do psiquiatra Félix Guattari. A partir de 1967, ele se instala na região de Cèvennes, construindo coletivamente uma rede de espaços de acolhimento e de investigação, que ele denominou de “rede aracniano” (DELIGNY, 2015).

As atividades educativas desta rede são influenciadas pela experiência de ensaísta, de poeta, de escritor e de cineasta. Deligny escreve e publica, constantemente, seus pensamentos pedagógico e investe nos conceitos das áreas de etologia e de antropologia.

Sendo assim, elabora um procedimento cartográfico a partir de traços, de linhas e de mapas que constituem os percursos dos movimentos do cotidiano dos autistas. A investigação cartográfica sobre a “experiência autística” (DELIGNY, 2015) deste educador é reconhecida como uma prática pedagógica inédita. Prática citada nos livros e entrevistas do filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) e do psicanalista Félix Guattari (1930-1992). Nesse sentido, cabe destacar que estes dois pensadores franceses, expressam a ideia de que Deligny assumiu profissionalmente uma vertente de atuação educativa próxima da psicanálise institucional, que percebem o autismo como uma produção singular de existência.

Na França, após dez anos de sua morte se retomam as investigações e os estudos sobre sua obra. A partir de 2007, a editora L’Arachnéen, publica um volume com algumas obras de Fernand Deligny e reedita outras. No Brasil, o trabalho deste pedagogo é pouco conhecido, somente em 2015 contamos com uma primeira tradução brasileira do livro que disponibilizo nesta resenha: O aracniano e outros textos (2015). O objetivo da resenha é mostrar alguns conceitos deste autor, do movimento aracniano e de suas experimentações pedagógicas com os autistas. Ainda é importante destacar que o livro não versa sobre uma transposição didática que apresenta modelos de práticas escolares junto ao trabalho com os autistas.

Diante destas palavras introdutórias, digo que o presente livro é composto por dois eixos de leitura, um primeiro é o texto O aracniano, redigido entre 1981 e 1982, contendo 59 fragmentos que nos remetem a mesma denominação do título do livro. Um segundo eixo de leitura é aglutinado ao subtítulo: Quando o homenzinho não está (aí) que é composto por 14 breves textos redigidos entre 1976 a 1982, em gêneros de ensaios e artigos. Ainda nesta publicação constam mapas do percurso dos autistas, produzidos entre 1976 e 1977. Além disso, há um conjunto de fotografias das instalações das crianças autistas que moravam no espaço aracniano, na região de Cévennes, em 1969.

Então, o primeiro eixo de leitura, o texto O aracniano é escrito em fragmentos e sua inspiração conceitual retirada do campo da etologia que estuda as espécies de animais, como as aranhas. O seu projeto pedagógico denominado de aracniano é coletivo e envolve as crianças autistas, as suas famílias e os educadores. Assim, todos vivem no mesmo espaço rural. Sendo que, este espaço rural é dividido em pequenos territórios, assim, cada território tece uma parte da linha da teia de aranha, que se transforma em uma rede que investiga o agir autista. Com isto, o movimento aracniano acompanha, descreve e escreve o espaço da “experiência autista”. (DELIGNY, 2015) Para registrar essa experiência, o grupo elabora a montagem de mapas que constituem os trajetos que as crianças autistas fazem em seu cotidiano. Os mapas acompanham a experiência das “linhas de errância de crianças ‘autistas’”. (DELIGNY, 2015, p. 41) Elas são errantes porque as crianças não funcionam pela consciência dos atos. Por meio desta prática investigativa, o pedagogo diz: “o meu projeto: dar à palavra aracniano – ao meu ver estonteante – um sentido digno de sua harmonia e de sua amplitude”. (DELIGNY, 2005, p. 22) Afirma-se assim, que o pensamento aracniano descentraliza as práticas pedagógicas do autismo das representações psicopatológicas e investe em rastrear e em apreender com as singularidades produzidas pelo projeto.

O segundo eixo de leitura do livro que é composto por 14 breves textos, se inicia com um texto de 1976. Ele foi redigido para um congresso de psicanálise e publicado em uma revista francesa e uma italiana, intitulado: Esse ver e o olhar-se ou o elefante no seminário. A escritura do artigo tem um tom de ensaio descritivo, pois apresenta um dos mapas que constituí o percurso dos autistas.

O texto descreve a invenção de vários símbolos que possibilitam a leitura e a interpretação cartográfica dos percursos das pessoas que viviam no espaço aracniano. Cabe destacar que ao mostrar o funcionamento cartográfico nos deparamos com um outro plano de vocabulário, tais como: linhas, anel, traçar, ângulo, entrelinhas, desvio, deriva, ideologia, microideologia, linguagem vacante, linguagem em falta e na falta de linguagem.

No outro texto O agir e o agido, escrito em 1978 para uma edição italiana, segue outra descrição de mapa, neste ele amplia as questões conceituais já demarcadas no texto anterior, porém remarca algumas críticas ao tipo de psicanálise que classifica o autismo e o determina como patologia. Posição essa que vai acompanhar outros textos em sua vida profissional.

Logo, outro ensaio: A arte, as bordas… e o fora. O ensaio, também é publicado em italiano, em 1978. Conceitualmente, Deligny mostra que “a linha e a linguagem eram de idêntica natureza” (DELIGNY, 2015, p. 148) e a linha expressa-se nos mapas dos trajetos do cotidiano dos autistas. Os mapas apontam alguns elementos da linguagem que a “experiência autista” (DELIGNY, 2015) produz e que essa experiência vive uma linguagem fora da relação direta e hierárquica entre sujeito e objeto.
Na redação do texto Carteira adotada e carta1 traçada, publicado por uma editora italiana, em 1979, ele diferencia sua relação com o Partido Comunista Francês e sua experiência na elaboração da cartografia junto ao movimento aracniano. Passa a valorizar essa última experiência porque ela não exige filiação ideológica.

A experiência no Partido Comunista Francês o víncula por meio de uma carta que representa a adoção de uma ideologia. Já com a experiência do movimento aracniano ele se vincula aos mapas do traço das “crianças cujos trajetos são traçados […] não tende de forma alguma para uma globalidade em que o absoluto ideológico se reencontraria, endêmico”. (DELIGNY,2015, p. 157).

A criança preenchida, divulgado em 1979, trata da relação topológica, que são as “áreas de estar” que expressam os movimentos topográficos dos autistas. Esses movimentos constituem os mapas e os trajetos registrados e interpretados como linhas errantes do agir autista. O pedagogo define dois tipos de “topos” ou registros dos espaços autistas, a topologia e a topografia. Os dois tipos de registros permitem traçar o agir autista que conjuga “ ‘o tempo’ fora do tempo” (DELIGNY, 2015, p. 163), pois esse agir funciona pela lógica do “topo” ou espaços que não se sujeitam a linguagem oral, espaços refratários a falação. Por meio da topologia e da topografia, ela aponta uma outra plasticidade pedagógica, que pode ser analisada a partir dos espaços ocupados pelo agir autista.

Ainda neste mesmo ano, o pedagogo publica em italiano um breve ensaio denominado Esses excessivos. Ele elabora uma resposta direta a academia que somente valida como produção intelectual a classificação e ou a posição de conhecimento mais universal sobre os estudos com os autistas. Ele se posiciona afirmando que não comunga com o que ele chama de falação intelectual em busca do universal e do verdadeiro. Ele defende que sua produção se faz a partir dos “topos”, ou seja, traça o espaço do agir autista, sem assumir um manual ou modelo que caracterize o autismo.

O humano e o sobrenatural é um texto envolto na ideia da vacância da linguagem das crianças autistas. Ele inicia o texto argumentando que elas desproveem da intenção de vagar e de balançar o seu corpo. Elas não acompanham o ato da consciência, o que elas fazem é o uso do seu corpo humano não como segregação, como faz o homem em muitos momentos da história da humanidade. A vacância da linguagem produz um espaço único de relação refrataria com a língua e com os gestos. Neste momento ele crítica o conceito de humanidade e linguagem humana.

A exibição é um título publicado em italiano, em 1980. O educador elabora sua posição desconfortável em relação a posição da psicanálise quando ela refere-se ao inconsciente e a linguagem dos autistas. Afirma que não compreende a língua psicanalítica.

Fala que essa língua não faz parte da língua do repertório aracniano, a língua que o interessa é de “quem vê um autista viver”. (DELIGNY, 2015, p. 180) Em 1978, escreve para um colóquio, em Paris, sobre o tema A liberdade sem nome e destaca que o autista tem a potência de ser refratário ao poder da língua do homem e que a potência da “experiência autista” (DELIGNY, 2015) se encontra no agir sem direcionamento ideológico e nada identitário. Trata-se, portanto, de um tipo de liberdade à deriva, de vivacidade desconhecida por nós, os homens.

O artigo Semblant de rien, refere-se a 1981, escrito em italiano.
A tradução dele não acontece para língua portuguesa porque é uma expressão francesa que dispara vários significados e o autor mescla o uso dos significados do título durante a sua escrita. A ideia da frase “semblante de rien” nos remete a ideia de um semblante significa o que? Para quem? Para quem o semblante não significa nada? Para os autistas. O semblante emite signos. Essa emissão sígnica não representa nada para eles. A língua que conhecem é a língua do agir em gesto, por isso, a expressão autística é uma língua estrangeira para os homens que vivem das palavras e sua verossimilhança com os signos.

No mesmo ano, publica numa revista francesa o ensaio com o título O obrigatório e o fortuito. O texto trata do tema da guerra, no período em que viveu em Armentières e “era professor primário encarregado de instruir crianças retardadas”. (DELIGNY, 2015, p. 198) O pedagogo se refere a ideia de que a obrigação é uma ação presente quando os homens estão diante da guerra e diante de instruções instituídas por culturas e instituições. E mesmo diante da guerra e das instituições a experiência do obrigatório chegava as crianças retardadas2 como um elemento desconhecido e sem referente.

Na data, em 1981, o texto Convivência é editado num congresso americano sobre o tema sexualidade e linguagem. O professor mostra que há um Ser subjetivado a linguagem da sexualidade, este Ser está escrito em letra maiúscula porque é determinado pela convivência do homem. Ele constata que com a “experiência autista” (DELIGNY, 2015), por ser refratária a subjetivação da linguagem, ela não é atingida por essa linguagem. Assim, a convivência autista se distingue da convivência do homem. Convivência, retirada dessa experiência autista que se encontra vinculada ao agir sem Ser subjetivado aos signos da sexualidade do homem.

A voz faltante, publicado em italiano, em 1982, faz parte do penúltimo dos textos escolhidos para compor este livro. O pedagogo escolhe apresentar o paralelo entre as palavras homofônicas na língua francesa: a voz (voix) e a via (voie). Em sua experiência no asilo, ele reconhece que o ato da ausência da fala por parte da maioria dos autistas produz outro efeito na relação com a linguagem. O efeito dessa relação passa pela via do traço e dos trajetos produzidos pelo “agir autista” (DELIGNY, 2015) que se faz pela linguagem não-verbal. Talvez, por isso à “experiência autista” (DELIGNY, 2015) acione algo estrangeiro e desconhecido ao humano. Se a voz é ausente, é um indicativo de que a investigação com os autistas exige uma via novo para se pensar a supremacia dada a linguagem oral na relação humana.

O último ensaio, compõem o segundo eixo de leitura do livro e ganha espaço como título: Quando o homenzinho não está (aí). A redação do texto refere-se aos fragmentos e as anotações de quem escreve um diário de pensamentos do tipo aracniano. As anotações versam sobre muitos conceitos já demarcados nos textos anteriores e sobre as vivências nos asilos e no movimento aracniano junto as crianças, principalmente junto ao Janmari, adolescente autista que o professor Deligny adotou.

Para finalizar, reintero que o livro é composto por várias singularidades conceituais de experimentações em pedagogia.

Uma das singularidades é que o livro se faz junto ao território de artes, tais como: escrita literária, fotos, imagens dos mapas, ou seja, ele flerta e se produz por meio de uma ínfima parte do pensamento do educador Deligny como um aracniano. O desafio da leitura deste livro é que ele escreve sobre práticas pedagógicas que trabalham com o radicalidade de investir no autismo como existência e com o rigor de retirar dela uma potência singular de vida, experimentando outro tipo de educação para o homem.

Poderemos desfrutar desta leitura como uma prática única que nos ensina a pensar como é uma pedagogia que se faz junto com o agir autista e não sobre o agir autista.

Notas

1 Ele utiliza como sinônimo de mapa.

2 Lembrando que este é o conceito usado pela literatura científica e especialidade nos anos de 1940. Deligny o usa de maneira a demarcar uma certa ironia e oposição a classificação institucional.

Sônia Regina da Luz Matos – Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

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Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da História e Filosofia da Educação como disciplina acadêmica – BONTEMPI JR. (RBHE)

BONTEMPI JR., Bruno. Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da História e Filosofia da Educação como disciplina acadêmica. Uberlândia: Edufu, 2015. Resenha de: BOTO, Carlota. Entre planos de aula e projetos de universidade: Laerte Ramos de Carvalho revisitado. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 3 (42), p. 353-359, jul./set. 2016.

Em boa hora é publicada a tese de doutorado de Bruno Bontempi. Trata-se de livro recém-saído do prelo, sob o título Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da História e Filosofia da Educação como disciplina acadêmica. Fruto de tese de doutoramento defendida na PUC de São Paulo, o livro reconstitui com maestria o percurso de uma investigação sólida, muito bem ancorada em fontes documentais diversas, que, a partir de inúmeros acervos, investiga a trajetória do intelectual, dando atenção à história oral, indagando o conteúdo de discursos de formaturas, cartas trocadas com os amigos e colegas, documentos administrativos, publicações periódicas, livros publicados por Ramos de Carvalho e artigos registrados no jornal O Estado de S. Paulo. Bruno Bontempi resgata aquilo que considera ser a “identidade cognitiva” da disciplina História e Filosofia da Educação, dada a partir de um processo de embates, conflitos e acordos entre os sujeitos que estavam à volta dela.

A pesquisa de Bontempi demonstra como se articulavam os processos de constituição de um campo do saber e de uma matéria de ensino, mediante a regência de Ramos de Carvalho.

Além disso, o estudo volta-se para indagar como essa prática da história da educação marcou e foi marcada pelo lugar social de Ramos de Carvalho enquanto articulista do grande jornal paulistano. Isso, segundo Bontempi (2015, p.16), teria dado à disciplina História e Filosofia da Educação “uma feição particular, inédita e diferenciada da que fora inicialmente forjada nos currículos dos cursos de formação do magistério”. A tese agora transformada em livro parte do pressuposto segundo o qual o estudo de uma disciplina acadêmica deve ter como alicerce, não apenas o estudo interno de seus temas, seus programas de curso e procedimentos didáticos, mas também as relações institucionais que cercam a constituição da mesma matéria, suas “interferências políticas e sociabilidades” (Bontempi, 2015, p.17).

Como bem argumenta Maria Lúcia Hilsdorf no prefácio da obra, a tese de Bruno comprova o rigor e o vigor da ação pedagógica e político-institucional de Laerte Ramos de Carvalho, posto que, como intelectual, ele conseguiu “demolir uma tradição disciplinar, construir outra, instituir um saber científico, ensinar novas práticas, constituir discípulos, colocar a história da educação no debate público e dar-lhe um novo significado” (Hilsdorf, apud, Bontempi, 2015, p.13).

Remetendo-se, no início do livro, à historiografia da educação brasileira, Bontempi evidencia o quanto a orientação de Laerte Ramos de Carvalho teria marcado toda uma geração de pesquisadores, os quais produziram obras clássicas, que, assim como o trabalho de seu orientador, também impregnariam a constituição e o percurso da história da educação brasileira. A tese de Bontempi possui, como hipótese central, a suposição de que as marcas na produção acadêmica no campo da história e filosofia da educação derivariam em larga medida de uma formação disciplinar distinta e da “preocupação com a formação de conhecimento novo em história por parte de Laerte Ramos de Carvalho” (Bontempi, 2015, p.33).

O trabalho elabora um minucioso estudo do discurso predominante na USP sobre sua própria missão. Desde a fundação, passando pelos anos 40 e chegando aos 60, havia a clara compreensão de um ideal civilizatório, como se a Universidade tivesse por meta regenerar o país de suas defasagens no que toca à cultura letrada. A análise dos discursos de formatura mostra as semelhanças existentes entre os ideais de universidade, mas mostra também as diferentes interpretações que tinham os universitários da época a respeito da vocação cultural da vida universitária. Assim, o discurso técnico-profissional dos politécnicos iria na direção contrária do discurso eminentemente propedêutico produzido pelos sujeitos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O discurso de Ramos de Carvalho, como representante de turma em sua formatura, no ano de 1942, por sua vez, abordava a dramaticidade do tempo de guerra que envolvia os formandos, o Brasil e o mundo naquela época. Assim, se havia um debate dominante, havia também vozes singulares; e Bontempi – como exímio historiador que é – sabe buscar tanto as similaridades quanto, sobretudo, as diferenças.

O livro também aprofunda a relação de Laerte Ramos de Carvalho com a pesquisa em história e com o campo da filosofia, tanto no âmbito da própria USP quanto de sua tensa relação com o Instituto Brasileiro de Filosofia. Para tanto, a pesquisa esmiuçou o modo pelo qual se constituíram as cátedras na USP e o conflito existente entre esse regime de trabalho e o sistema de contratos temporários celebrado para a recepção dos professores estrangeiros, em particular os da missão francesa. Depoimentos de intelectuais do porte de Florestan Fernandes e Antonio Cândido evidenciam o quanto os catedráticos escolhiam aqueles que consideravam ser os seus sucessores naturais. Entre os alunos, assim, o tratamento dado privilegiava relações que fariam parte de um aprendizado externo à sala de aula, o qual poderíamos chamar de “currículo oculto” da instituição, posto que estava para além das aulas, além dos seminários, representando o que Florestan Fernandes considerava ser um “treinamento muito mais avançado e muito mais rigoroso” (Fernandes, apud, Bontempi, 2015, p.109). Esse processo extra-classe tinha consequências: “a competência e qualidade intelectual que o assistente ostentava no momento de sua nomeação desfazia qualquer aparência de „compadrio‟ por ocultar o fato de que a própria excelência do escolhido era produto de uma educação especial e privilegiada” (Bontempi, 2015, p.110).

Laerte Ramos de Carvalho – como diz Bontempi – foi um desses “alunos incomuns” que assumiu a função de assistente de Cruz Costa por uma longa temporada na Universidade de São Paulo. Seu período como assistente durou de 1943 até 1955. Nesse período, Ramos de Carvalho seguia as diretrizes do programa de investigação de Cruz Costa, centrado no estudo da história das ideias no Brasil. Bruno Bontempi demonstra quais são as convergências de ideias entre os dois pensadores e quais teriam sido as premissas que singularizavam o trabalho de Ramos de Carvalho frente ao catedrático com o qual ele trabalhava. Já o Instituto Brasileiro de Filosofia, que era liderado por integrantes da Faculdade de Direito não reconhecia a relevância do trabalho de Ramos de Carvalho. Poucas são as menções a ele na Revista Brasileira de Filosofia; e, quando aparecia alguma remissão à sua obra, havia algum tom de desdém. As divergências que teve com Miguel Reale, do ponto de vista teórico e no que toca à atuação política, são também objeto do trabalho de Bontempi, mostrando as contradições entre esquerda e direita, bem como as tensões em cada um desses grupos no Brasil daquela época.

O livro resgata a intrincada relação existente entre o jornal O Estado de S. Paulo e a Universidade de São Paulo, desde 1934, quando de sua fundação. Como se sabe, Julio de Mesquita Filho pertencia a um setor das elites paulistas que criticava as então oligarquias, anquilosadas no PRP. Próximo da herança da Liga Nacionalista e dos integrantes do Partido Democrático, o jornal foi protagonista no movimento de 32, mas sempre com um tom crítico, pontuando com insistência a necessidade de se superar o modelo político então existente através de uma vasta ação cultural, que possibilitasse a ascensão de novos grupos ao poder. Para Julio de Mesquita Filho, havia de se criar uma nova elite: uma elite cultural, capaz de mobilizar os maiores talentos em todas as camadas da sociedade. Esse seria o papel da USP. Como diz Bontempi (2015, p.145) sobre o assunto: “à universidade, cujo centro integrador seria a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, caberia a tarefa de formar as elites ilustradas, único grupo social capaz de realizar positivamente a obra de regeneração política da sociedade brasileira, mas também de formar o profissional secundário e superior”.

A partir de 1946, Ramos de Carvalho torna-se colaborador do jornal O Estado de S. Paulo. Na ocasião, consta que dois filhos de Julio de Mesquita Filho teriam comentado com o pai sobre a qualidade acadêmica e didática de Ramos de Carvalho, que fora professor deles. Uma versão alternativa – mostra Bontempi – diz que outros ex-alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras que já trabalhavam no jornal, dentre os quais Lourival Gomes Machado, teriam convencido Mesquita Filho de que as ideias expostas por Ramos de Carvalho em suas aulas seriam bastante próximas dos ideais perfilhados pelo grupo d‟ O Estado de São Paulo.

Outro aspecto bastante original do trabalho de Bontempi é a discussão trazida a propósito da perspectiva de Laerte Ramos de Carvalho sobre o ensino secundário. Professor que foi de ginásios paulistanos, Ramos de Carvalho valeu-se da sua pena como articulista do Estadão para comentar sobre as insuficiências e sobre o que ele acreditava ser as irregularidades do ensino secundário paulista, em especial nos estabelecimentos particulares de ensino. Esses não eram submetidos a uma inspeção rigorosa do governo; e, além do mais, aviltavam a profissão de professor, com o esquema de “salário-aula”.

Em 1948, Laerte Ramos de Carvalho assumiu como assistente a cadeira de Filosofia e História da Educação. O trabalho de Bontempi demonstra que, desde então, a cadeira sofreria uma profunda mudança em seu funcionamento. Antes de Ramos de Carvalho, a matéria era ministrada por José Querino Ribeiro e Roldão Lopes de Barros, que imprimiam a ela apenas a estatura de ensino. Não havia para esses professores a articulação do ensino com a pesquisa ou produção do conhecimento. Bruno Bontempi faz um criterioso resgate da maneira pela qual os programas das disciplinas de Filosofia e História da Educação eram organizados. A despeito de não ter havido preocupação em formalizar as alterações no programa de curso oficial, os diários de classe evidenciam as mudanças que Ramos de Carvalho imprimiria à disciplina. Houve a inclusão e o desenvolvimento de inúmeros temas e problemas relativos à história da educação brasileira, dentre os quais a discussão contemporânea sobre os trâmites da LDB e a elaboração do Manifesto de 1959. Houve a substituição, por exemplo, das sabatinas por arguições. Houve a introdução de seminários e trabalhos práticos, que passam a ser considerados tão importantes quanto as preleções teóricas. Houve também a inclusão no curso dos textos clássicos, na tradição que vinha do modelo europeu adotado pelos professores da missão francesa. A partir dali os estudantes seriam contemplados com o acesso aos próprios escritos dos autores estudados; sem que houvesse, como anteriormente, o privilégio de comentadores.

Há preocupação, por parte de Bontempi, em vistoriar as redes de sociabilidades que engendravam relações institucionais e lugares de poder. Nesse sentido, são evidentes as estreitas relações de Laerte Ramos de Carvalho com dois intelectuais que também foram decisivos na história da Faculdade de Educação da USP: Roque Spencer Maciel de Barros e João Eduardo Villalobos. Ambos haviam sido alunos de Ramos de Carvalho no curso secundário e ambos teriam também um papel destacado de liderança intelectual tanto na futura Faculdade de Educação da USP quanto no jornal O Estado de S. Paulo.

O livro apresenta, de maneira extremamente arguta, as ideias centrais dos trabalhos teóricos de Ramos de Carvalho; em especial, daquele que se tornaria seu clássico e que foi apresentado como tese quando o docente concorreu a concurso de provimento da cátedra de Filosofia e História da Educação, em 1952: As reformas pombalinas da instrução pública. Esse livro – fruto de investigação rigorosa na Biblioteca Nacional, no Arquivo Histórico Ultramarino, na Biblioteca da Universidade de Coimbra e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa – desenvolvia a hipótese de que as reformas pombalinas traduziram – como diz Bontempi – o espírito de seu tempo, tomando, portanto, a fisionomia política do período histórico no qual estavam inscritas. A tese de Ramos de Carvalho foi reconhecida e aplaudida não apenas pelo campo da filosofia e da educação, mas fundamentalmente – nas palavras de Eduardo de Oliveira França (apud, Bontempi, 2015, p.237) pela “confraria dos historiadores”.

Finalmente, o trabalho de Bontempi ilumina o papel de Ramos de Carvalho como organizador de um amplo programa de pesquisas, que envolveu a elaboração de inúmeras teses, articuladas a um determinado modo de conceber a história, a educação e a periodização da história da educação. Ramos de Carvalho mostrava a necessidade de fazer com que a organização dos períodos nos quais se escreve a história da educação não fosse um decalque da periodização da história política. E isso seus orientandos aplicaram em seus trabalhos; com Jorge Nagle, por exemplo, mostrando o papel que os anos 20 tiveram na consolidação do que chamou de “entusiasmo pela educação”. O lugar do orientador Ramos de Carvalho era sistemático, envolvendo reuniões de seu grupo de pesquisadores, com pautas que envolviam partilha dos trabalhos dos pesquisadores entre si, troca de informações e possíveis reformulações conjuntas dos rumos de cada investigação.

Ao estudar o caso específico de Laerte Ramos de Carvalho, Bruno Bontempi recupera o que havia de melhor em sua geração, trazendo elementos preciosos para que se compreenda a história da Universidade de São Paulo e, mais particularmente, uma parte da história de um campo de investigação que posteriormente se bifurcou nas áreas de Filosofia da Educação e de História da Educação. Por isso, trata-se de uma leitura fundamental para quem estuda a história das disciplinas, para quem estuda a história das instituições e para quem queira compreender a universidade. Bruno Bontempi é um historiador ainda jovem; mas essa tese foi escrita em momento inicial de sua carreira. Por ser assim, é absolutamente surpreendente a maturidade de sua análise, a argúcia de seus comentários, a precisão de suas conclusões. Trata-se de um trabalho para ser lido por historiadores, por pedagogos e por todos que pretendam compreender melhor como se deu a história da universidade, tal como ela foi arquitetada em terras brasileiras.

Carlota Boto – Pedagoga e historiadora, mestre em História e Filosofia da Educação pela FEUSP, doutora em História Social pela FFLCH/USP e livre-docente em Educação pela FEUSP. Professora de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP. E-mail: [email protected]

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Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular – SKALINSKI JUNIOR (RBHE)

SKALINSKI JUNIOR , O. (2015). Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular. Curitiba: CRV, 2015. Resenha de: FIGUEIRA, Felipe Luiz Gomes; BARBOZA, Marcos Ayres. A influência de Alceu Amoroso Lima na pedagogia católica no contexto brasileiro início do século XX . Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 2 (41), p. 379-385, abr./jun. 2016.

O fim do Padroado no Brasil, que coincidiu com a proclamação da República em 1889, imprimiu no interior da Igreja Católica a necessidade de recomposição de seus quadros institucionais. Embora a Igreja conseguisse algumas concessões do Estado, a Constituição Federal de 1891, fundamentada em princípios liberais, não se mostrou favorável à influência da Igreja, já que determinou a proibição do ensino religioso nas escolas públicas, a laicização dos cemitérios, o fim a subvenção estatal a qualquer culto religioso, entre outras medidas.

Em seu projeto de reconstrução institucional, a Igreja Católica defendeu a inclusão da catequese, da pregação, de ações educativas e da imprensa nos meios sociais. Para defender seus interesses, investia na educação, reclamando o direito de fundar e organizar escolas, cuja finalidade seria formar e educar crianças e jovens conforme os valões cristãos.

Na defesa de seus interesses entre os diferentes segmentos da sociedade civil e política, congregou diferentes intelectuais. Entre os que a apoiaram e defenderam, grande destaque teve Alceu Amoroso Lima (1893-1983), mais conhecido pelo pseudônimo ‘Tristão de Athayde’. Ele se destacou como um dos principais representantes do pensamento católico nos meios culturais e educacionais do início do século XX.

A obra resenhada foi escrita por Oriomar Skalinski Junior, professor do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, como resultado de sua tese de doutoramento em Educação pela Universidade Estadual de Maringá, defendida em 2014. Intitulada Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular, a tese teve como finalidade analisar a contribuição desse intelectual católico para a renovação dos interesses políticos católicos, entre 1928 e 1945, com base em suas relações com o Estado e sua produção teórica. Sua versão em livro está organizada em três capítulos.

No primeiro, ‘O Brasil na aurora do século XX: intelectuais, hegemonia e educação’, o autor destaca o papel exercido pela Igreja Católica na educação. O fim do Padroado trouxe grandes desafios e novas demandas de ordem social, organizacionais e políticas. Para ampliar a base de sua ação pastoral, da qual uma das grandes preocupações era a situação da classe operária em face das demandas do liberalismo econômico, a Sé Católica contou com o apoio de um grande contingente de padres e freiras da Europa.

A Igreja não criticava os aspectos econômicos e políticos das ações liberais, mas centrava-se no afrouxamento da moral em uma sociedade laicizada. Nesse contexto, a educação caracterizou-se como área estratégica para a construção da hegemonia do catolicismo. Foi preciso adaptar a população às demandas típicas da sociedade de mercado: as práticas comerciais e industriais, sofisticadas pelo avanço dos instrumentos de produção, exigiam uma mão-de-obra qualificada, mas a maioria da população em idade escolar ainda era analfabeta.

A disseminação de novos padrões culturais se faria por meio do desenvolvimento da leitura, da escrita e da aritmética, tendo em vista as habilidades intelectuais requisitadas para o desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro, o qual demandava a mobilização da sociedade como um todo. Assim, atribuía-se à educação um papel importante na organização desse novo projeto societário: “Tratava-se de modernizar as práticas pedagógicas a partir da ideia básica de que os avanços científicos e tecnológicos da época demandavam uma contrapartida educacional” (p. 40).

O sentimento nacionalista em defesa da educação ia além da simples alfabetização da população; “pretendia-se que a escola […] passasse por uma transformação em seus objetivos, seus conteúdos e em sua função social, tornando-se uma instituição capaz de formar o ‘caráter nacional’ e alavancar o progresso brasileiro” (p. 44). A partir de 1928, nesse processo de renovação da educação no Brasil e de defesa da formação moral e intelectual, o pensamento de Alceu Amoroso Silva ganhou proeminência como liderança intelectual à frente do Centro D. Vital.

No segundo capítulo, ‘A direção intelectual de Alceu Amoroso Lima como elemento renovador da pedagogia católica no Brasil (1928-1945)’, o autor discute a influência de Alceu Amoroso Lima junto às instituições católicas na ordenação da sociedade civil. A partir de 1920, a hierarquia da Igreja Católica vinha estimulando a participação de seus intelectuais nos diferentes segmentos institucionais da sociedade para garantir que o Estado fosse organizado com base em princípios cristãos.

Alceu Amoroso Lima, ao aceitar a direção do Centro Dom Vital em 1928, propôs à instituição o desenvolvimento de uma cultura católica superior. A organização de cursos e conferências temáticas ligadas à filosofia, à sociologia e à religião tinha como objetivo o fortalecimento da intelectualidade católica. Além disso, a criação de organizações e associações leigas vinculadas ao Centro Dom Vital influenciaria os diferentes segmentos da sociedade civil.

O movimento católico teve destaque a partir de 1930, particularmente após o golpe, quando os intelectuais católicos deram suporte e legitimidade ao Governo Provisório. Em 1931, como resultado dessa aliança, ocorreu o retorno do ensino religioso, em caráter facultativo, nos cursos primário, secundário e normal das escolas públicas. Os intelectuais liberais, na IV Conferência Nacional de Educação organizada pela Associação Brasileira de Educação em 1930, apresentaram uma nova proposta política de educação para o país. Entre os idealizadores desse movimento, destacaram-se Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. O conflito acirrou-se com a publicação do Manifesto dos pioneiros da educação nova, em 19 de março de 1932, nas principais capitais do Brasil. “No texto os reformadores da educação adotavam princípios marcadamente liberais e defendiam a escola pública, laica, gratuita e obrigatória” (p. 68). Os pioneiros argumentavam que a educação no país estava desarticulada e fragmentada, o que, do ponto de vista deles, era um obstáculo ao desenvolvimento econômico brasileiro. A nova política nacional de educação defendida pelos liberais era apoiada na adoção de métodos ativos “[…] baseada nos avanços dos campos da sociologia, da biologia e da psicologia” (p. 69).

Para consolidar os interesses da Igreja Católica em contraposição aos liberais reformadores da educação, foi criada a Liga Eleitoral Católica (LEC), da qual Alceu Amoroso Lima era secretário. A ideia era captar apoio político em defesa dos interesses da Igreja Católica, congregando importantes intelectuais socialmente representativos e segmentos da classe média. O movimento conseguiu a inclusão de importantes conquistas na Constituição de 1934: apoio financeiro do Estado à Igreja; proibição do divórcio, reconhecimento do casamento religioso, ensino religioso nas escolas públicas e subsídios estatais para instituições escolares católicas. Essas medidas, entre outras, contribuíram para criação de um estabelecimento de ensino superior católico na capital do país.

O primeiro passo foi a criação da Ação Universitária Católica (AUC) em 1929, a qual segundo Alceu Amoroso Lima destinava-se a complementar a formação e a educação religiosa de seus participantes e prepará-los para a vida pública. Em 1946, nascia a Universidade Católica do Rio de Janeiro, resultado dos esforços empreendidos desde a fundação do Centro D. Vital, passando pela Ação Universitária Católica, pela Juventude Universitária Católica e pelo Instituto Social do Rio de Janeiro. Em 1947, a Santa Sé conferiu à instituição as prerrogativas de pontifícia, o que a igualava às demais universidades católicas do mundo.

O pensamento progressista de Alceu Amoroso Lima, fundamentado nos princípios da democracia cristã defendida por Jacques Maritain, fez com que a relação entre ele e o recém empossado Dom Jaime de Barros Câmara (1894-1971) como arcebispo da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1943, após a morte de Dom Sebastião Leme, fosse abalada. Dom Jaime Câmara defendia um posicionamento mais tradicionalista em relação aos simpatizantes das ideias socialistas. A ideia era combater o comunismo. “Nesse cenário Alceu Amoroso Lima concretizou sua opção pela defesa da liberdade como valor basilar para qualquer organização social, condenou o Estado Novo e convocou os intelectuais católicos para a defesa da democracia” (p. 89), posicionamento defendido em suas principais obras: Debates pedagógicos (1931) e Humanismo pedagógico (1944).

No terceiro capítulo, ‘Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica em Debates Pedagógicos (1931) e em Humanismo Pedagógico (1944)’, o autor analisa a primeira obra do pensador católico: Debates pedagógicos (1931). Trata-se de uma coleção de artigos sobre educação, em particular sobre o retorno do ensino religioso às escolas públicas, nos quais ele se contrapôs às ideias liberais do laicismo no sistema pedagógico republicano. Na visão de Amoroso Lima, essas ideias provocaram uma cisão entre instrução e educação, comprometendo a formação dos alunos. Era preciso, segundo Skalinski Junior, investir em uma pedagogia católica. Alceu Amoroso Lima defendia a renovação dos métodos pedagógicos em favor de uma pedagogia integral, visando o desenvolvimento dos diferentes aspectos da potencialidade humana e a elevação espiritual da personalidade.

Amoroso Lima, em seu projeto de ação pedagógica católica, tinha a universidade como destaque. A pedagogia liberal havia, em seu entender, exaltado as ciências experimentais ou sociais em detrimento das ciências filosóficas e religiosas. Por meio da cooperação com a Igreja, restaurar-se-ia a unidade filosófica da universidade e se recuperaria a universalidade cultural e a espiritualidade cristã em face da confusão mental típica do ‘modernismo’ liberal.

As ideias liberais dominantes no campo da educação, segundo Amoroso Lima, contribuíam para que o aluno ficasse órfão da educação moral e religiosa, tão importantes para a formação do corpo e do caráter. A volta do ensino religioso nas escolas públicas seria, portanto, fundamental para a superação da ‘atmosfera de indiferentismo moral e religioso’ decorrente das práticas educacionais liberais, alicerçadas no que o autor chamava de naturalismo pedagógico e de sociologismo pedagógico. Segundo Amoroso Lima, tais abordagens arrastavam a inteligência ao estado de desordem e ao enfraquecimento geral. Era preciso “[…] corrigir os desvios derivados do laicismo republicano, efetivamente, um primeiro passo para a restauração intelectual e moral dos espíritos afetados pelo naturalismo, pelo materialismo e pelo agnosticismo” (p. 108).

Na parte da análise dedicada à obra Humanismo pedagógico: estudos de filosofia da educação (1944), Skalinski Junior discute seus desdobramentos para a educação e a prática pedagógica. Segundo Amoroso Lima, o trabalho pedagógico ocorreria com base em princípios de ordem geral e especiais. A centralidade do processo educativo seria o próprio indivíduo, isto é, “[…] o desenvolvimento pleno de sua humanidade, ou seja, o seu desenvolvimento como pessoa” (p. 112).

Para Amoroso Lima, a prática educativa defendida pelo liberalismo republicano tinha uma tendência negativa: a mutilação da educação e da formação humana. Além disso, ele se posicionava contra o comunismo: essa visão de mundo contribuiria para a descristianização da escola. A retomada do ensino religioso nas escolas públicas possibilitaria o desenvolvimento integral do indivíduo: físico, intelectual e espiritual. Nesse sentido, a educação moral e religiosa cristã como parte da preparação pedagógica da população ajudaria na edificação das qualidades da razão, da vontade e do temperamento.

O papel civilizador da universidade, de acordo com Amoroso Lima, seria a integração entre a vida cultural e a vida prática. Nesse contexto, o professor teria papel de destaque: mais que um transmissor de conhecimentos, ele seria um formador de personalidades. A família também teria uma missão importante. Para ele, “[…] a escola deveria ser o prolongamento da família, bem como o laço que a ligaria ao Estado, no que diz respeito às questões formativas” (p. 118).

Os fundamentos da educação cristã eram defendidos por Amoroso Lima como caminho para a superação do liberalismo, do laicismo e do materialismo produzidos pela sociedade burguesa. Esses fundamentos fortaleceriam a vida espiritual e o papel da família, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento integral da pessoa, em seus aspectos físico, intelectual e espiritual. Desse modo, visando restaurar a ordem moral de forma a garantir a unidade social, na prática humanista pedagógica proposta, Amoroso Lima enfatizava os fundamentos espirituais e religiosos do catolicismo, a defesa da liberdade em detrimento da autoridade, contrapondo-se ao “[…] esfacelamento das tradicionais instituições e a desorientação das consciências […]” (p. 131).

Na ‘Conclusão’, Skalinski Junior afirma que as proposições pedagógicas de Alceu Amoroso Lima correspondiam ao objetivo de impulsionar as potencialidades humanas com base em uma ação educacional integral. Para tanto, eram necessárias a retomada e a recomposição dos valores cristãos na formação do caráter da pessoa, do ‘caráter nacional’. “Suas ações em favor da cultura católica, em diferentes âmbitos das sociedades política e civil, contribuíram para a difusão e para o fortalecimento de um conjunto de valores que entremearam as ações da militância católica para os fins educacionais” (p. 143).

Escrita em uma linguagem clara, direta e objetiva, fundamentada em Antonio Gramsci (1891-1937), abordando o início do século XX, a obra é uma referência importante para os estudos no campo da historiografia da educação brasileira. Mais ainda, interessa aos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento porque analisa um dos mais prestigiados e influentes pensadores católicos desse período que, dialogando, com diferentes segmentos da sociedade civil, visava atualizar o discurso e a ação pastoral da Igreja na sociedade globalizada.

 

Felipe Luiz Gomes Figueira – Professor de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná – Câmpus Paranavaí. Mestre em Educação (UEL, 2012) e Doutor em Educação (UNESP-Marília, 2015). Líder do Grupo de Pesquisa Bildung. E-mail: [email protected]

Marcos Ayres Barboza – Psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná – Câmpus Paranavaí. Mestre em Educação (2007) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá/UEM-PR Estudante do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: [email protected]

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Três 3-6-9-12 Diventare grande all’epoca degli schermi digitali – TISSERON (REi)

TISSERON, Serge. 3-6-9-12 Diventare grande all’epoca degli schermi digitali. Brescia: La Scuola, 2016 (153p). Resenha de: FATIN, Monica. Revista Entreideias, Salvador, v. 5, n. 1, p. 123-127, jan./jun. 2016.

O livro 3-6-9-12 Diventare grande all’epoca degli schermi digitali,1 de Serge Tisseron, ainda não traduzido no Brasil, reafirma algumas ideias sobre tecnologia e crianças a partir dos usos das telas nas diferentes “idades da infância”, que constam no título do livro, 3-6-9-12. A discussão já se anunciava na trajetória do autor, que foi um dos responsáveis pelo relatório da pesquisa “A criança e as telas”, publicado pela Academia das Ciências, em 2013 na França, e pelo Manifesto “Il bambini e gli schermi”.2 O interesse do autor não é discutir o que as mídias fazem com as crianças ou o que as crianças fazem com as mídias, mas o que acontece nesse “meio”, com uma abordagem que foge da simplificação e renuncia às tentações de “idealizar ou demonizar” as tecnologias. Um convite para educadores conhecerem as mídias e discutirem com as crianças ensinando-as a distinguirem contextos e situações.

Em tempos como estes, em que certas polêmicas se forjam em argumentos dicotômicos, a contundente voz do autor ao falar das “idades da infância” em relação às telas – da televisão, do videogame, do computador, do tablet e do celular/smartphone – é muito coerente com o lugar que o psiquiatra, doutor em psicologia e pesquisador da Universidade Paris VII ocupa. Consciente da complexidade que envolve a relação mídia e infância, ele defende a mediação adulta na negociação com a criança sobre suas escolhas e esclarece que as modalidades de uso de telas a partir da fórmula 3-6- 9-12, que além de se referir às idades e etapas da vida das crianças, também se relaciona às fases da escolaridade infantil e representa um ponto de partida para discutir quando e como introduzir as telas na vida das crianças para aprender a usá-las corretamente.

Embora a reflexão tenha como ponto de partida perguntas de pais e professores, Tisseron não lhes diz o que fazer e convida o leitor a mobilizar-se, a ler, a buscar entender, a estar com as crianças, a observá-las, a compreender suas necessidades e seus medos, pois “o problema das mídias digitais se resolve juntos, não sozinhos”, como responsabilidade nossa, da sociedade civil e das instituições.

Na introdução, Tisseron chama atenção para quatro pontos: “Nunca deixar uma criança com menos de 3 anos diante de televisores; não permitir o uso de videogame em console antes dos 6 anos; acompanhar as descobertas da internet entre 9 e 12 anos; não deixar navegar de forma ilimitada sem que tenha alcançado a idade para poder fazê-lo sozinho”(2016, p.16). Tal radicalidade inspira-se no pensamento arendtiano, sem excluir as crianças do mundo nem abandoná-las a si próprias retirando delas a oportunidade de fazer algo novo, e sim preparando-as para a tarefa de renovar o mundo que compartilhamos com elas.

No capítulo um, a ineficácia das campanhas contra os riscos ligados às telas é discutida diante do forte apelo comercial e de interesses de grupos de comunicação que se apoiam em publicidades enganosas, além do argumento das telas representarem também uma forma de fuga dos problemas da vida cotidiana. Para Tisseron é mais importante encorajar boas práticas que denunciar os perigos, sempre considerando a complexidade de nossas relações com as telas, para além de ser contra ou a favor, e reforça suas indicações em 3 direções: autorregulação; alternância; e acompanhamento.

O apelo é para transformar nossas relações com as telas de forma conjunta, sem responsabilizar ou culpar crianças ou adultos mas explicitando os discursos e trabalhando juntos.

No capitulo dois, o autor defende a fórmula 3-6-9-12 ponderando o quanto a tecnologia digital tem transformado a vida pública, os hábitos familiares e a nossa própria intimidade. Enfático, afirma que antes dos 3 anos a criança precisa construir suas referências espaciais e temporais, seu conhecimento de mundo e de si própria em interação com o ambiente, e os novos objetos digitais fazem parte desse aprendizado tanto no ambiente familiar como escolar. Diferencia as possibilidades de uma tela interativa e não interativa, o papel dos jogos tradicionais, da oralidade, e da cultura do livro nas experiências sensório-motoras e na construção narrativa das crianças pequenas, e apresenta pesquisas feitas com crianças com menos de 3 anos sobre as desvantagens do uso de telas não interativas e suas incidências sobre a linguagem e aprendizagem. Enfatiza as necessidades da criança em cada etapa: descobrir as possibilidades da compreensão de mundo (3 a 6 anos), descobrir as regras do jogo social (6 a 9 anos), explorar a complexidade do mundo e das relações (9 a 12 anos) e questionar as referências familiares (12 em diante). Elenca vantagens e perigos das telas em cada etapa e como elas podem contribuir e preparar a criança “para a sociedade da informação em que a reflexão estratégica, a criatividade e a cooperação são faculdades essenciais”.

(TISSERON, 2016, p. 40) Entre os riscos que o autor aponta, dos 6 aos 9 anos o uso da internet pode fragilizar certas referências que a criança está construindo e que são indispensáveis, entre elas a distinção entre espaço íntimo e espaço público e a noção de ponto de vista do outro. A violência nas telas é um risco para todas as idades, e 9 dos aos 12 anos o autor se refere ao uso excessivo das telas que pode ser indício de outros problemas subjacentes, como baixa autoestima, ansiedade social, violência escolar, etc. que podem desencadear outros problemas.

No capítulo três, ao propor de um percurso para todas as idades, Tisseron enfatiza que “a educação não consiste em proteger e controlar uma criança, mas em ensiná-la, progressivamente, a defender-se e orientar-se por si” (2016, p.45). No entanto, para conseguir tal propósito, enquanto a criança pequena precisa ser protegida e distanciada dos perigos, a capacidade de assumir certos riscos é essencial para o adolescente desenvolver a autonomia, pondera o autor. Em ambos os casos, o diálogo sempre é importante.

As propostas fundamentam-se nas possibilidades de aprendizagem em cada idade e no confronto com certos discursos do senso comum. Em qualquer idade é importante escolher os programas junto com as crianças, limitar o tempo de consumo, convidá-las a falarem sobre o que veem ou fazem encorajando as suas produções.

No capitulo quatro, as redes sociais são entendidas como instrumento que favorece a construção da individualidade e a descoberta das regras do jogo social entre os adolescentes. Tisseron busca desconstruir ou validar certos discursos sobre as práticas no facebook, problematiza o mito que considera os adolescentes extraordinariamente criativos na internet, destaca a falta de conhecimento da natureza do contrato que firmam sem ler, e adverte sobre o grande número de sintomas de depressão e insônia entre os adolescentes que se intensificam em quem já possui tais tendências. Entre as explicações possíveis, o autor menciona a dificuldade do adolescente administrar a própria identidade, por vezes apresentada de modo idealizado e em comparação com outros perfis, questão relacionada ao capital social e às diversas formas de pertencimento nas redes.

As ponderações sobre “o bom uso da rede” são discutidas no capítulo cinco, a partir dos mecanismos do “desejo de extimidade”.

(TISSERON, 2016, p. 75) Diante da exposição da intimidade que torna público alguns elementos da vida íntima, o autor discute as razões do querer mostrar-se, a busca de aceitação nos diferentes clicks, os modelos de autoestima, as “virtudes” da invisibilidade, o anonimato, e outros modos de ver, seduzir e relacionar que as redes propiciam. Tensiona argumentos sobre renuncia à vigilância dos filhos/alunos, e sobre os usos sociais das redes nas instituições educativas, discutindo diversos espaços, regras, formatos e critérios a serem construídos conjuntamente para ampliar as possibilidades do dispositivo. Diante da educação indireta das redes sociais, ressalta o papel da mídia-educação.

No capítulo seis, o autor redimensiona as transformações discutidas nos capítulos anteriores num quadro mais amplo da cultura, relacionando as práticas da cultura do livro às da cultura das telas – para além da contraposição ligadas aos saberes, às aprendizagens, ao funcionamento psíquico e à construção de relações. Destaca as “quatro revoluções da tecnologia digital”, ou seja, revolução “nas relações com os saberes”, “em relação à aprendizagem”, “revolução psicológica” e “revolução das relações e da sociabilidade” e a suas complementariedades.

No capítulo sete, o autor destaca o papel da educação voltada à dimensão do digital desde a infância e as formas de aprendizagem em cada idade, sugerindo a construção de propostas como uma sucessão de momentos capazes de remotivar os estudantes de todas as idades.

Nas conclusões uma síntese sobre o dispositivo tratado no livro com destaque à mediação adulta: “seria inaceitável que as crianças hoje com três anos devessem aprender sozinhas a apropriar-se das telas, exatamente como fez a maioria dos adolescentes de hoje, a seu risco e perigo”. (TISSERON, 2016, p. 133) Certamente, as ideias do autor inspiram muitas reflexões.

Poderíamos questionar a radicalidade de evitar as telas antes do 3 anos e a provável discussão diante dos diversos interesses que movem a cadeia produtiva das produções televisivas para crianças pequenas. Importa notar que o autor nem chega a ponderar sobre a qualidade que tais programas deveriam ter nessa idade, diferente de quando se refere às idades das telas. É na tensão entre “vantagens e perigos” que se expressa a complexidade dessa relação, para além da discussão semântica. Se é notável o ineditismo de tal reflexão em relação às faixas etárias referidas, não podemos perder de vista a importância de relativizar certas fronteiras. Muitos argumentos sobre a mediação entre crianças e telas e papel da família/escola dependem sempre do contexto sócio-econômico-cultural em que se inserem, bem como das diferentes formas de acesso e apropriação das tecnologias, que são diferentes de uma cultura para outra. Interessa vislumbrar a possibilidade de diálogo a partir do nosso lugar e da nossa singularidade cultural, inclusive para “estranhar o familiar” e problematizar certas práticas que nos parecem tão naturais, mas que só o distanciamento crítico possibilita por em questão.

Notas

1O original foi publicado em francês, em 2013 com o título 3-6-9-12 Apprivoiser les écrans et grandir, que pode ser traduzido por Domesticar as telas e crescer.
Na tradução italiana feita por P. C. Rivoltella, em que se baseou esta resenha, o título pode ser traduzido por Tornar-se grande na época das telas digitais.
2Pode-se fazer download do manifesto e do cartaz original no site do autor . Na versão italiana está disponível em: .

Traduzimos o manifesto para língua portuguesa e está disponível no site do Grupo de Pesquisa Núcleo Infância Comunicação Cultura e Arte, NICA, UFSC/CNPq .

Monica Fantin – Professora Associada do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Uma dobra no tempo: um memorial (quase) acadêmico – PRETTO (REi)

PRETTO, Nelson de Luca. Uma dobra no tempo: um memorial (quase) acadêmico. Ilhéus-BA: Editus, 2015. Resenha de SOMBRA, Laurenio Leite. Revista Entreideias, Salvador, v. 5, n. 1, jan./jun. 2016.

Ler Uma dobra no tempo, de Nelson Pretto, é uma experiência particular. O subtítulo do livro aponta para um “memorial (quase) acadêmico”. De fato, tudo partiu do Memorial Acadêmico, escrito por ele, como requisito para progressão de carreira na Universidade Federal da Bahia (UFBA), para professor titular. Mas o próprio Pretto lembra que recebeu uma crítica em sua defesa do mestrado: “apesar da linguagem jornalística, está bom” (p. 80). Lendo o livro, percebo que o examinador acertou meio sem saber: a linguagem é “jornalística” porque ela tem uma imensa e desavergonhada capacidade de comunicação: se as “regras da ABNT” estão aqui, nem nos lembramos delas, apenas entramos numa conversa longa e animada em que a gente se enreda numa vida verdadeiramente repleta de construções de diversas ordens, de sucessos e fracassos que são contados com a mesma verve, com um jeito gostoso que não nos poupa sequer de sorrisos e algumas gargalhadas. E qual a regra que diz que um texto acadêmico não pode ser assim? A comunicação de verdade é muito mais do que aquelas regras de “mensagem-emissor-receptor-resposta” com um pouco de ruído: ela pressupõe um nó imenso e complexo de pessoas que contribuem mutuamente, que compartilham ideias, que entram também em conflito. Pressupõe, enfim, uma polis que não se traduz em uma assembleia geral, mas em uma rede de pessoas interagindo e construindo coisas. O que a torna, inevitavelmente política.

Se isso se dá em um casamento indissolúvel com a educação, o propósito de formação ganha um colorido novo: significa incluir o educando nessa rede, escutar o seu desejo, dar-lhe possibilidades que ele não teria de outro modo, lhe conectar. Significa a abertura de não saber o que vai resultar disso, mas a imensa convicção de que esta rede aberta só pode ser profícua, só pode resultar em pessoas melhores, mais interessantes, quem sabe mais cidadãs.

Pois bem: esse casamento indissolúvel de educação (ampliada) e comunicação (ampliada) parece que une a múltipla vida profissional desse físico que se tornou cada vez mais educador, desse educador que foi sempre um comunicador. É nesse contexto que a gente pode ver aquele jovem de 20 e poucos anos “gastando” um período inteiro da disciplina de Física para ensaiar Galileu de Brecht com os alunos do Colégio Marista (p. 50); ou promovendo semanas de debates, no mesmo Colégio, para “julgar” a aventura nuclear do governo militar com os alunos, experiência que, claro, mereceu uma bronca dos próprios militares (p. 51-52). É nesse mesmo contexto que o vemos, desde cedo, inserido num processo de “despelegação” do Sindicato dos Professores no Estado da Bahia (Sinpro) (p. 60-61), inserção política que iria se desdobrar numa participação ativa no Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no futuro exercício como assessor do reitor e parceiro Felippe Serpa, nos oito anos como diretor da Faculdade de Educação (Faced) da UFBA, e mesmo nas duas campanhas (fracassadas?) para reitor na mesma Universidade.

Por fim: esse casamento de educação e comunicação produziu os vários modos de conexão com os quais estamos a acostumados a acompanhar Nelson Pretto. Nele se inseriu sua atuação no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em Brasília, para pensar o livro didático (p. 89-96); lá, a derivação para outras temáticas, como a educação a distância, a discussão da educação via satélite, a televisão educativa; a sua passagem para a FUNTEVÊ no Rio de Janeiro (p. 97-109); o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), onde participou ativamente de projeto de TV e vídeo, embrião da futura TV USP (p. 113-118); na volta para casa, na atuação como assessor de Felippe Serpa, o esforço de construção de uma rede na UFBA como embrião do acesso à internet (p. 151-158), os esforços para conectar as diversas universidades; como diretor (p. 185-228), participou da elaboração de um plano diretor para a Faced, da reforma da Biblioteca Anísio Teixeira, de uma adaptação arquitetônica do próprio espaço da Faced, depois o projeto Tabuleiro Digital em Salvador e em Irecê. No meio de tudo, uma ampliação cada vez maior dessa articulação educação-comunicação e a ideia, cada vez mais consolidada, de uma “ética hacker” (p. 245-250), que viraria currículo, aprofundamento teórico, participação em comitês políticos e muita discussão.

Ler o livro de Pretto é perceber, de modo muito concreto, que é possível articular seriedade acadêmica, compromisso político, articulação permanente com os pares da mesma e de outras universidades, e tudo isso sem perder o humor. Quem não quiser se comprometer, sugiro que não o leia.

Laurenio Leite Sombra – Doutor em Filosofia (UFBA) e Mestre em Filosofia (Unb).

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História da escola dos imigrantes italianos em terras brasileiras – LUCHESE (RBHE)

LUCHESE , T. Â. (Org.). (2014). História da escola dos imigrantes italianos em terras brasileiras. Caxias do Sul: Educs, 2014. Resenha de: MOTIM, Mara Francieli; ORLANDO, Evelyn de Almeida. História da escola dos imigrantes italianos em terras brasileiras. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 1 (40), p. 413-419, jan./abr. 2016

O livro História da escola dos imigrantes italianos em terras brasileiras, organizado por Terciane Ângela Luchese, é fruto de investigações produzidas pelo grupo de pesquisa História da Educação, Imigração e Memória, da Universidade de Caxias do Sul. Além de textos de pesquisadores de universidades italianas, a publicação reuniu trabalhos sobre as experiências escolares de imigrantes italianos e seus filhos, entre o final do século XIX e início do século XX, nas regiões Sul e Sudeste. Esta obra permite um olhar para a escolarização desses sujeitos, caso a caso, contribuindo, conforme destaca Emilio Franzina no prefácio deste volume, para uma possível revisitação da história imigratória italiana no Brasil, em seus processos de interação e desenvolvimento.

Nesse panorama das discussões a respeito dos processos culturais dos imigrantes, no primeiro capítulo do livro, Lúcio Kreutz aborda o tema Identidade étnica e processo escolar. Na conceituação do autor, o pertencimento étnico expressa uma composição entre sujeitos e grupos, cujas práticas, ao longo do tempo, vão se reconfigurando, podendo diferenciar e determinar uma organização social. Ele enfatiza que o étnico não é uma herança constituída, mas sim um processo, uma vez que culturas não são realidades mudas. Dessa forma, afirma que a pesquisa sobre a escola nesse contexto étnico é de fundamental importância, uma vez que tal ambiente pode ser produtor ou reprodutor da cultura.

Kreutz apresenta um balanço histórico sobre como a etnia e o processo escolar foram sendo tratados e afirma que, entre os diversos projetos, perpassa a construção de uma nacionalidade, manifestada na Europa no final do século XVIII e que chega à América, pouco tempo depois, como uma construção monolítica, sem diferenciação étnica. O autor defende que a escola precisa compreender como o étnico se constrói nas práticas sociais, não podendo quantificar um valor para determinadas culturas, mesmo que estas tenham conseguido se impor nos processos históricos concretos.

No segundo capítulo, “Governo italiano, diplomacia e escolas italianas no exterior”, a pesquisadora italiana Patrizia Salvetti discute a legislação da Itália em relação às escolas subsidiadas no exterior.

Abordando a Lei Crispi, de 1889, explica que um de seus objetivos era a construção de uma política italiana no exterior com subsídios destinados à instrução dos imigrados italianos. Ela aponta algumas divergências nesse financiamento, principalmente em relação às escolas laicas e às escolas confessionais. A problemática girava em torno de conflitos não resolvidos entre Estado e Igreja, na Itália, os quais foram exemplificados no artigo com base em relatórios como o de Pasquale Villari (1901). Salvetti afirma que a Sociedade Dante Alighieri, uma das principais organizações colaterais do governo, tinha como função acentuar e organizar essas relações escolares entre a Itália e o exterior.

Em seguida, a autora analisa a Lei Tittoni, de 1910, na qual se tentou amenizar a relação entre Estado e Igreja, estabelecendo o ensino religioso como facultativo e financiando escolas confessionais. Ela afirma que a Reforma Gentile, de 1923, ocorrida no contexto do regime fascista, não modificou sensivelmente a organização das escolas no exterior, porém, sua administração passou a ser controlada, em sua maior parte, por funcionários ligados ao Partido Nacional Fascista. Por fim, salienta que até os dias de hoje as escolas italianas no exterior são a principal forma de difundir a língua e a cultura desse país.

No terceiro capítulo, “Instrução pública e imigração italiana no estado do Espírito Santo, no século XIX e início do século XX”, Regina Helena Silva Simões e Sebastião Pimentel Franco propõem uma discussão sobre a educação capixaba e a relação entre os imigrantes italianos que chegaram ao Espírito Santo, no período de 1850 a 1920.

Por meio de relatórios da província e do estado do Espírito Santo, os autores demarcam o contexto da instrução pública nas terras capixabas, onde, desde 1850, existia um discurso a favor da educação, considerando o contexto da grande diáspora italiana na segunda metade do século XIX e suas consequências, como o preenchimento dos vazios demográficos no Espírito Santo. Não obstante esse discurso, os autores ressaltam as diversas dificuldades da instrução pública local e destacam a pressão que, ao desembarcar no Espírito Santo, os imigrantes italianos exerciam sobre o governo no sentido de garantir a educação de seus filhos, embora suas colônias estivessem localizadas na parte mais desassistida da instrução pública.

À pesquisadora Maysa Gomes Rodrigues coube o capítulo 4, “Imigração e educação em Minas Gerais: histórias de escolas e escolas italianas”. A autora aborda a educação mineira, entre o final do século XIX e início do século XX, como um lugar em que foi possível relacionar a escolarização italiana e a formação cultural de outros espaços. Ela utilizou como fontes os acervos da Secretaria do Interior e da Secretaria da Agricultura e Obras Públicas, além de Relatórios dos Presidentes da Província, de Inspeção de Ensino, Mensagens dos Presidentes do Estado, jornais e estudos feitos sobre a imigração em Minas.

O contexto educacional mineiro e sua escolarização, com base nos regulamentos consultados, não se referem a escolas de imigrantes ou escolas estrangeiras. Assim, a autora constata que, nos núcleos coloniais, que tinham por objetivo a assimilação étnica, as escolas públicas foram um meio de oferecer a instrução oficial. A ênfase do texto recai sobre essa modalidade de ensino nas colônias como um caminho da nacionalidade brasileira para os filhos de imigrantes, embora, como destaca a autora, existisse uma escola mantida por uma Sociedade Italiana que se destinava a atender uma camada privilegiada economicamente de italianos de Belo Horizonte. Dessa forma, a autora põe em evidência que ambas as realidades escolares foram importantes no processo de instrução desses imigrantes, e de modo geral, na educação de Minas Gerais.

“A formação das escolas italianas no Estado do Rio de Janeiro (1875 – 1920)”, constitui o capítulo 5, escrito por Carlo Pagani. O autor chama a atenção para a presença de imigrantes italianos em quase todas as áreas mais importantes do Rio de Janeiro, os quais contribuíam para o desenvolvimento industrial, para os movimentos operários, além de trabalhar na produção de carvão e no comércio, na área central. Pagani descreve o cenário da escolarização destes imigrantes e das escolas italianas no Rio de Janeiro, considerando sua relação com a educação primária italiana, no final do século XIX. Em ambos os casos, ele aponta um grande número de analfabetos e, com base na legislação, demonstra que os resultados da escolarização no período, no Rio de Janeiro, não foram muito satisfatórios.

Destaca a influência anarquista na imigração italiana, que, nas reivindicações fabris, deparava-se com o analfabetismo dos operários e passava a promover a escolarização dos líderes. Consultando relatórios de escolas italianas no exterior, além de jornais do período, o autor constrói a origem das escolas italianas em algumas cidades cariocas. Essas instituições de ensino foram fruto das necessidades desses imigrantes, que colaboraram para a escolarização de massa, atendendo a toda a população próxima destas escolas, sejam elas italianas ou não.

No capítulo 6, “Acondicionamento das escolas de primeiras letras paulistas no período que compreende os anos de 1877 e 1910”, Eliane Mimesse Prado descreve o processo de criação das escolas de primeiras letras em São Paulo, as quais eram frequentadas pelos imigrantes peninsulares e seus descendentes. A autora explora o processo de imigração em alguns dos núcleos coloniais paulistas. Constam no texto quadros comparativos a respeito da criação dos núcleos coloniais entre 1877 e 1907, em São Paulo. A autora chama a atenção para o grande número de imigrantes e para a demanda de criação de um número maior de escolas de primeiras letras, nem sempre atendida pelo governo, o que levava os próprios colonos a organizar e criar escolas.

Os esforços desses imigrantes também eram sustentados pelos religiosos, de forma que a educação acabava por adotar funções mais amplas, regidas pelos preceitos do catolicismo. Algumas dessas instituições de ensino foram resultantes de iniciativas coletivas, com o apoio do governo italiano, por meio das Sociedades de Mútuo Socorro. Mesmo com iniciativas escolares específicas, a autora constata que uma grande parcela desses imigrantes e de seus filhos esteve nos bancos escolares das instituições públicas de ensino de São Paulo.

No capítulo 7, “Escolas da imigração italiana no Paraná: a constituição da escolarização primária nas colônias italianas”, a pesquisadora Elaine Cátia Falcade Maschio apresenta um panorama do processo imigratório italiano no Paraná. A autora explica que esse processo teve início na região litorânea, primeiramente na Colônia Alexandra e posteriormente na Colônia Nova Itália. Além de enfrentar a má administração dessas colônias, os imigrantes não se adaptaram à região e foram realocados nos arredores da capital, na produção de produtos cultivados na terra e comercializados em Curitiba.

Caracterizando a educação primária no Paraná com base em relatórios e regulamentos, Maschio constata que inúmeros foram os abaixo-assinados desses imigrantes solicitando escolas e, com a demora no atendimento dessas solicitações, eram organizadas instituições de ensino particulares, comunitárias ou subvencionadas. Além dessas modalidades escolares, a autora apresenta as escolas étnicas, mantidas por associações ou por instituições religiosas. Maschio deixa claro que, nesses locais, procurava-se manter e difundir a italianità com base principalmente na moral católica, mas, mesmo assim, predominavam as escolas públicas, pois esses colonos também valorizavam a aprendizagem da língua portuguesa. Um destaque do texto é que, com as reivindicações para abertura de escolas públicas, esses imigrantes contribuíram para o processo de expansão do ensino primário paranaense em geral.

Clarícia Otto, responsável pelo capítulo 8, “Escolas italianas em Santa Catarina: disputas na construção de identidades”, apresenta as escolas como estratégias para a manutenção de uma identidade cultural. Otto explica que as primeiras iniciativas escolares para esses imigrantes catarinenses foram particulares e que, no final do século XIX, essas ações passaram a ser da Igreja Católica, da diplomacia italiana e do governo republicano brasileiro. Otto defende que o processo escolar foi resultante de uma articulação com outros campos, como o político, cultural e religioso, os quais influenciaram as estruturas sociais desses sujeitos.

Pautando-se em um conjunto de correspondências, Otto ressalta ainda a disputa pelo controle do campo educacional entre uma organização religiosa e a Dante Alighieri. Com as medidas nacionalistas do governo republicano brasileiro, esses conflitos foram ainda maiores, sobretudo a partir de 1911, quando a inspeção escolar em Santa Catarina passou a ser efetiva, o que levou muitas escolas estrangeiras a ser fechadas. A autora conclui o texto marcando que, mesmo com os investimentos na construção de uma educação nacional, as diferenças culturais continuaram a existir, sendo colocadas em pauta em 1975, no centenário da imigração, para despertar o sentimento de ser italiano.

O último capítulo do livro, dos pesquisadores Terciane Ângela Luchese e Gelson Leonardo Rech, “O processo escolar entre imigrantes italianos e descendentes no Rio Grande do Sul (1875 – 1914)”, é destinado ao processo escolar desses sujeitos nas terras gaúchas, destacando as

Iniciativas escolares, suas organizações e especificidades. Segundo os autores, no processo imigratório italiano no Rio Grande de Sul, os imigrantes saíram da Itália como excluídos e chegaram ao Brasil como civilizadores. Durante o Império, na Província de São Pedro do Rio Grande, as políticas educacionais constavam apenas no papel e não nas práticas; com a proclamação da República e a influência de um grupo gaúcho calcado no positivismo, a escola passou a ser vista como um local de modernização. Assim, a expansão do ensino primário no Rio Grande do Sul, por iniciativa do Estado, das Igrejas, associações e/ou particulares, tornou-o um dos locais brasileiros com o menor índice de analfabetismo em 1920.

Os autores destacam ainda as escolas étnico-comunitárias rurais, que surgiram pela necessidade e pela ausência de escolas nas colônias, as escolas étnicas, mantidas por associações, geralmente laicas, que recebiam subsídios do governo italiano, e as escolas mantidas por congregações religiosas, que, mesmo não sendo consideradas étnicas, mantinham os valores culturais do país de origem da congregação. As escolas públicas também foram muito requisitadas pelos imigrantes, principalmente para a aprendizagem do português, mas estas também eram marcadas por características étnicas.

O leitor interessado em conhecer o processo escolar dos imigrantes italianos e seus descendentes, no final do século XIX e início do século XX, encontra nos capítulos deste volume uma rica reflexão a respeito da relação entre esses sujeitos, o governo brasileiro, o governo italiano e a Igreja Católica. A obra é significativa para os estudos de história da educação brasileira, por trazer à tona diversas fontes históricas que possibilitam um aprofundamento em estudos na área, além de descrições que permitem traçar algumas características destes imigrantes na construção de uma nova vida no outro lado do Atlântico. Além disso, por se tratar de uma obra que reúne pesquisadores de diferentes lugares, ela apresenta uma multiplicidade de práticas e de representações da educação e da cultura italiana em diferentes contextos de produção. Essa perspectiva plural permite ampliar as lentes para compreender melhor os modos de ser e se fazer italiano em diferentes espaços.

Mara Francieli Motin – E-mail: [email protected]

Evelyn de Almeida Orlando – E-mail: [email protected]

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O lunar de Sepé – Paixão, dilemas e perspectivas na educação – SAVIANI (RBHE)

SAVIANI, Dermeval. O lunar de Sepé – Paixão, dilemas e perspectivas na educação. Campinas: Autores Associados, 2014. 181 p. Resenha de: SILVA, Sarah Maia Machado. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 15, n. 3 (39), p. 321-327, set./dez. 2015.

Com muitas obras significativas publicadas, atualmente Dermeval Saviani é professor emérito da Unicamp e coordenador geral do grupo nacional de estudos e pesquisas ‘História, Sociedade e Educação no Brasil’ (HISTEDBR). É Doutor em Educação pela PUC de São Paulo (1971) e Livre Docente em História da Educação pela Unicamp (1986). Entre 1994 e 1995, realizou estágio sênior na Itália. Condecorado com a medalha de mérito educacional do Ministério da Educação, também recebeu da Unicamp o Prêmio Zeferino Vaz de Produção Científica em 1997. Foi contemplado, por duas vezes, com o Prêmio Jabuti: em 2008, pela publicação do livro História das ideias pedagógicas no Brasil e, em 2014, pela publicação de Aberturas para a História da educação. Em 2012, recebeu pelo GT de História da Educação da Anped a Estatueta Paulo Freire, homenagem dedicada aos pesquisadores indicados pelos grupos de trabalho.

A obra O Lunar de Sepé – Paixão, dilemas e perspectivas na educação está organizada em doze capítulos e faz parte da coleção ‘Educação contemporânea’, da editora Autores Associados. Essa coleção abrange trabalhos que abordam o problema educacional brasileiro de uma perspectiva analítica e crítica. Educação e paixão são dois termos que movimentam os capítulos da obra, visto que são termos que têm uma relação: a educação pode ser considerada apaixonante e a paixão pode significar padecimento. O livro trata dos dois sentidos da palavra paixão.

A obra, que apresenta coletânea de estudos feitos por Saviani, em conferências realizadas em diferentes momentos, aborda o sofrimento dos educadores, colocando em xeque as contradições configuradas nas vicissitudes, nos dilemas e nos paradoxos enfrentados por eles no empenho em assegurar à população o direito à educação. Nesse sentido, a obra apresenta possibilidades para a realização de um trabalho significativo, resultado da dedicação apaixonada à educação.

No prefácio, Saviani destaca a motivação para a realização dessa produção, que, segundo ele, tem uma ligação intelectual e emocional; sua curiosidade intelectual destaca São Sepé, cidade do Rio Grande do Sul com nome de santo, santo este desconhecido da biografia de santos católicos. Então, a partir do poema popular ‘O lunar de Sepé’, o autor infere que a canonização de Sepé se deu não por um processo no Vaticano, mas pelo imaginário popular. O trabalho se intensifica com o VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, momento em que Saviani elaborara um estudo sobre a migração de sete povos das missões, tendo como eixo o poema ‘O Lunar de Sepé’. Ao satisfazer sua curiosidade, o autor também oferece uma homenagem à cidade natal de sua esposa. O prefácio apresenta ainda a estrutura geral da obra, bem como um breve relato sobre cada capítulo.

‘O Lunar de Sepé e a derradeira migração: a educação jesuítica entre as coroas de Espanha e Portugal’ é o título do primeiro capítulo, que apresenta na íntegra ‘O lunar de Sepé’, poema citado por Maria Genórica Alves, mestiça descendente de índios missioneiros. O poema está publicado no livro Contos gauchescos e lendas do Sul (1999) por J. Simões Lopes. Nesse capítulo, o autor retrata o fenômeno das migrações, elucida que as migrações ocorrem pela expansão do comércio, o que conduziu muitos povos do ocidente europeu a se lançar nas grandes navegações, visando à conquista de novas terras. O autor recua no tempo para trazer à tona as missões jesuíticas; assim, destaca que, em 1492, ocorre a descoberta da América por iniciativa espanhola e, em 1500, ocorre a chegada dos portugueses ao Brasil. Saviani fecha o capítulo com a seguinte reflexão: Que modelo educativo poderá dar conta dos conflitos e das contradições que atravessam o fenômeno das migrações neste tumultuado mundo em que vivemos?

O segundo capítulo, ‘Vicissitudes e perspectivas da pedagogia no Brasil’, a palavra ‘vicissitudes’, conforme o autor, retratada no prefácio do livro, sugere as dificuldades, os contratempos, as contrariedades, as crises, as provocações, os incômodos vividos pelos professores. Saviani enfatiza que, para a intencionalidade da realização da prática educativa, a pedagogia surge como uma teoria que deve orientar essa intencionalidade. Para o autor, desde a chegada dos jesuítas ao Brasil, temos a preocupação em desenvolver ação educativa de forma intencional.

De acordo com o autor, o termo ‘pedagogia’ está ausente da problemática pedagógica desde a expulsão dos jesuítas. Assim, no plano educacional de Nobrega, no Ratio Studiorum e nas reformas pombalinas, não aparece o termo ‘pedagogia’.

Saviani expõe, durante o capítulo, as vicissitudes que transcorrem no curso de pedagogia e na sua instauração, e indica que a primeira reformulação do curso de pedagogia aparece com a nossa primeira LDB, lei 4024/61, no parecer 251, de 1962. Nessa reformulação, manteve-se a duplicidade de bacharelado e licenciatura, assim como o núcleo básico do currículo formativo, e houve a dissolução do esquema 3+1. O autor destaca que as vicissitudes pelas quais passava a pedagogia conduziram à organização, na I Conferência Brasileira de Educação realizada em 1980, do Comitê Pró-participação na reformulação dos Cursos de Pedagogia e Licenciatura, transformado, em 1983, na Comissão Nacional pela Reformulação de Cursos de Formação de Educadores (CONARCFE), que, em 1990, se converte na Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope). Em 2006, a pedagogia aprova as suas Diretrizes curriculares nacionais, aspecto apontado por Saviani como a oitava vicissitude da história da pedagogia no Brasil. O autor também assinala que o espaço apropriado para a realização de estudos e pesquisas educacionais amplos são as faculdades de educação.

No terceiro capítulo, ‘Pedagogia, paixão e crítica’, texto organizado para a aula inaugural de 2011 no curso de pedagogia da Unicamp, o autor se coloca em diálogo com os calouros do referido curso. Destaca a importância e o fascínio deles pelo ofício que chama de apaixonante: a pedagogia, que tem como objetivo a produção da humanidade no homem, e, nesse sentido, ele destaca o sentido dual da palavra paixão. Para abordar essa dualidade, Saviani aponta a paixão de ser professor em cinco estações em seu texto: 1.ª) a estação ‘Educação na Grécia’ elabora a perspectiva rígida e de sofrimento de que se reveste a educação; 2.ª) a estação ‘Educação em Roma’ apresenta a relação de entusiasmo pela educação e também de sofrimento, a relação de menosprezo à exaltação da educação, ambos os polos sintetizados na paixão; 3.ª) a estação ‘Educação na idade média’ assinala a decadência da cultura clássica e o surgimento das universidades e dos mestres livres; 4.ª) a estação ‘Educação moderna ou burguesa’ apresenta a constatação de uma escola institucionalizada e de uma educação miserável e precária; 5.ª) a última estação, ‘Educação no Brasil’, destaca a paixão do educador e seu padecimento, e a contradição de uma política educacional mais preocupada com as estatísticas do que com a qualidade da educação. O autor revela que é desejável estimular, nos estudantes de pedagogia e nos próprios pedagogos, o entusiasmo e a dedicação pela causa da educação, mas devemos atentar a uma postura ingênua que pode trazer o resultado contrário do que se quer de um ofício apaixonante como a pedagogia.

No capítulo seguinte, ‘Ética, educação e cidadania’, o autor aborda a trilogia ética, educação e cidadania, colocando a educação literalmente no centro do debate, remetendo às suas obras para elaborar alguns conceitos, como o de educação. Conforme o autor, a educação não apresenta a ética nem garante a cidadania, mas ela institui a humanidade no homem. O texto apresenta uma descrição sobre o homem, a educação e a ética e seus valores. Saviani coloca a educação escolar como um aspecto necessário para o desenvolvimento da cidadania, que juntamente com a ética, formam a trilogia apontada pelo autor. Tendo em vista essa trilogia, ele considera a sociedade burguesa e a divisão de classes, expondo as determinações sociais e históricas ali expressas, aspecto importante para a compreensão dos impasses recorrentes na sociedade atual capitalista e burguesa. Diante desse contexto, a ética, a educação e a cidadania, para o autor, converter-se-ão na expressão plena do desenvolvimento da existência humana.

No quinto capítulo, ‘Dilemas e perspectivas da formação de professores no Brasil’, o autor apresenta a situação atual da educação e a formação de professores; para tanto, retoma aspectos sobre a educação no século XX. O autor expõe cinco dilemas na formação de professores a partir de pareceres, resoluções e diretrizes nacionais. Os pareceres não denotam elementos que garantam uma formação de professores consistente. Além de apresentar os dilemas, o autor descreve as perspectivas da formação docente no Brasil, que ele coloca como desafios a serem enfrentados na formação de professores, principalmente a fragmentação e a descontinuidade das políticas educacionais. As condições do trabalho docente é outro ponto decisivo na formação, pois assim aparece o valor social da profissão. A garantia de uma formação consistente assegura condições adequadas de trabalho, e para tanto se deve olhar para os recursos financeiros correspondentes.

‘O direito à educação’ é o sexto capítulo, em que se apresenta a educação como direito proclamado, diferenciando os direitos civis, políticos e sociais. Para debater essas diferenças, o autor analisa as medidas tomadas pelo Estado perante o direito à educação.

No sétimo capítulo, o tema é ‘O paradoxo da educação escolar: análise das expectativas contraditórias depositadas na escola’. ‘Que escola queremos?’ é a questão que o autor analisa para elaborar os paradoxos que circulam no âmbito da sociedade no que se refere à educação. Saviani aponta que queremos uma escola que forme para a cidadania, e assim explora o paradoxo da escola cidadã, o paradoxo da escola imparcial, o paradoxo da escola igualitária e o paradoxo da escola equalizadora. O autor enfatiza que o desafio posto pela sociedade capitalista à educação pública poderá ser enfrentado com a superação da sociedade capitalista. Explica que a educação está intrinsecamente relacionada com os meios de produção capitalista e que, contraditoriamente, nela há elementos para a transformação do capital.

No oitavo capítulo, ‘Importância da filosofia para a educação’, o autor recorre à filosofia para compreender a situação atual da educação, marcada pela crise de paradigmas, pois considera a filosofia e a história como produção da própria existência humana no tempo. É a partir da filosofia que se acompanham reflexiva e criticamente as propostas educacionais e seus fundamentos e o homem se coloca como sujeito histórico.

‘Politecnia e a formação humana’ é o debate do nono capítulo, em que a noção de politecnia e de trabalho são o referencial. Saviani entende o conceito de trabalho como princípio educativo, ou seja, toda organização educativa se dá a partir do trabalho e do entendimento da realidade do trabalho. O homem se constitui enquanto homem a partir do trabalho, pois é preciso produzir sua existência. Nesse sentido, o que define a existência humana é a realidade do trabalho, e o autor assevera que a realidade da escola deve ser analisada por esse ângulo. A ciência atinge uma parcela pequena da humanidade nas formas anteriores de sociedade, e é na sociedade moderna que a ciência vai alargar o conjunto da sociedade, pois a potência material é incorporada ao trabalho social produtivo. Isso porque o domínio da ciência corresponde ao conjunto da sociedade; assim, o currículo escolar elementar precisa considerar essencialmente o domínio da linguagem escrita, sendo composto pelo domínio da linguagem, da matemática, das ciências naturais e das ciências sociais. O autor considera que não podemos perder de vista o caráter transformador e revolucionário da educação diante de um momento em que, mais do que nunca, é necessário lutar e resistir para a transformação da sociedade, caminhando na possibilidade de que todos os homens se beneficiem do desenvolvimento das forças produtivas.

O décimo capítulo aborda o futuro da universidade entre o possível e o desejável. Saviani define que a universidade se encontra com dois futuros possíveis. O primeiro é que a universidade se verga às imposições do mercado. Com essa possibilidade, o autor constata que a universidade corresponde à tendência dominante e aponta ser um futuro indesejável. O segundo tem a sua possibilidade condicionada à reversão da primeira, o que implica projetos econômicos em torno da vida social atual. E inversamente ao primeiro, esse futuro não é previsível e sua visibilidade é problemática, mas desejável. A partir dos aspectos históricos da educação, o autor desenha o quadro em que se configura a educação superior no Brasil, afirmando estar ela submissa aos mecanismos e às demandas do mercado, sendo este um aspecto mundial que também se manifesta no Brasil.

‘Pós-graduação em educação, interdisciplinaridade e formação de professores’ é o décimo primeiro capítulo, no qual o autor segue discutindo a educação superior em nível de pós-graduação e resgata o significado e a implantação da pós-graduação no Brasil, abordando sua estrutura organizacional. A organização da pós-graduação no Brasil acontece com o parecer n. 9.77 do Conselho Federal de Educação em 1965. Trata-se de um parecer que trata da conceituação dos estudos pós-graduados, com base em experiências americanas. Para a abordagem crítica sobre a interdisciplinaridade e a abordagem científica da educação, Saviani analisa a estrutura curricular da pós-graduação. O autor problematiza a banalização da questão interdisciplinar recorrente na atualidade e explica o que é ciência da educação a partir das disciplinas psicologia, sociologia e história da educação. As abordagens disciplinares e interdisciplinares correspondem a um movimento analítico, abstrato, necessário para se passar à síncrese, movimento empírico, e ao concreto, a síntese do todo (caótico), conforme descreve o autor baseado na intuição do todo (articulado) apropriado pelo pensamento. Saviani afirma que este é o caminho para constituir uma ciência da educação. O capítulo ainda abre uma discussão sobre a formação docente e a pós-graduação, o resgate da história da educação a partir da colônia, apresenta como se deu a formação de professores.

E o capítulo final, décimo segundo, elenca ‘A importância da educação no projeto de desenvolvimento do País’. A questão do financiamento da educação é abordada pelo autor nesse capítulo final, no qual expõe que a relação entre educação e desenvolvimento pode ser considerada a partir de três distintas concepções: educação pelo desenvolvimento, educação para o desenvolvimento e educação como desenvolvimento. Como conclusão, destaca o Plano Nacional de Educação, como estratégia importante para tornar real a qualidade da educação pública. O autor enfatiza que dois eixos do PNE são necessários para isso: o financiamento e o magistério. A questão docente é primordial, pois dela depende o alcance das metas voltadas para a melhoria da qualidade na educação básica.

O livro é direcionado especificamente aos professores que sofrem com a questão salarial, com constrangimentos morais e materiais; professores sobrecarregados de aulas, que atuam em situações de precarização na escola. Saviani coloca em pauta o debate crítico sobre as questões educacionais e convoca a união das forças representativas dos professores, alunos e pais, na busca de uma educação de qualidade para a transformação da realidade social, política e cultural da sociedade em que vivemos com tantas desigualdades. Trata-se de uma obra de referência, alicerçada em compromissos éticos e políticos sólidos, preocupada com a elevação da cultura científica para todos, no sentido da tranformação da sociedade e do universo educativo. Para tanto, o autor se fundamenta nas matrizes culturais e filosóficas clássicas e no marxismo, reafirmando a necessidade da luta, da resistência, para a construção de uma sociedade coletiva para todos.

Desiré Luciane Dominscheck – Doutoranda em Educação linha de Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Membro do Grupo de estudos e pesquisa: HISTEDBR, Professora do História da Educação- Centro Universitário Internacional-Uninter. E-mail: [email protected]

Sarah Maia Machado Silva – Doutora em Educação :Linha Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas -Unicamp, membro do grupo de pesquisa Paideia. E-mail:[email protected]

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Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva – PETIT (REi)

PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. 2. ed. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2009. Resenha de: MUNIZ, Dinéa Maria Sobral; VILAS BOAS, Fabíola Silva de Oliveira. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 152-157 jul./dez. 2015.

Michèle Petit é antropóloga e tem obras traduzidas em vários países da Europa e da América Latina. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva foi a primeira lançada no Brasil (2008) e recebeu o Selo “Altamente Recomendável” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Além dessa obra, a Editora 34 também publicou A arte de ler: ou como resistir à adversidade (2009) e Leituras: do espaço íntimo ao espaço público (2013). A edição brasileira de Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva estabelece o convite à leitura desde a capa, em tom azul forte, com uma xilogravura de Moisés Edgar, do Grupo Xiloceasa (SP). A “orelha” do livro, escrita por Marisa Lajolo, é igualmente convidativa, pois ressalta o fato de que a leitura integra a pauta de diferentes agendas brasileiras, o que torna o livro mais que oportuno no país, e por esse motivo, certamente, interessará àqueles “[…] fascinados pela alquimia que, através das palavras impressas, aproxima as pessoas umas das outras, descortinando novas paisagens do universo que compartilhamos.1” O sumário da obra, além do prefácio escrito por Petit especialmente para a edição brasileira, apresenta quatro seções: “As duas vertentes da leitura”, “O que está em jogo na leitura hoje”, “O medo do livro” e “O papel do mediador”. No prefácio, a autora declara que, antes de vir ao Brasil pela primeira vez, desde que participou, em Paris, no ano 2005, das comemorações do “ano do Brasil na França”, começou nutrir a esperança de conhecer o país.

Na ocasião das comemorações, assistiu a concertos e exposições, descobriu telas do pernambucano Cícero Dias, leu lendas contadas por Clarice Lispector, seguiu relatos de J. Borges e J. Miguel, através de suas xilogravuras, de modo que essas (e outras) experiências alimentaram o desejo de estar em terras brasileiras.

Também no prefácio, Petit, a fim de contextualizar o desenvolvimento das pesquisas apresentadas, analisa o processo da democratização do ensino na França e suas armadilhas. Para a antropóloga, a inserção de jovens oriundos de camadas populares e marginalizadas nos segmentos secundário e universitário sempre fora conduzida a passo forçado, sem a oferta de meios pedagógicos que de fato os acolhessem. A observação de suas formas de viver e estudar permitiu constatar que eles não tinham acesso à cultura escrita, faziam anotações malfeitas e ilegíveis, apresentavam desconhecimento total das bibliografias, não pesquisavam em bibliotecas.
Esse bloqueio extremamente prejudicial dos jovens em relação à leitura só foi ultrapassado “graças a mediações sutis, calorosas e discretas ao longo de seu percurso” (p. 11). A biblioteca, nesse cenário, figurou tanto como um espaço de formas de sociabilidade, que os protegia das ruas, quanto um local profícuo para que estabelecessem uma relação mais autônoma com a cultura escrita e mais singular com a leitura.

Na primeira seção, “As duas vertentes da leitura”, Petit toma depoimentos de pessoas de diferentes níveis sociais, nos meios rurais franceses, e apresenta duas concepções de leitura de onde deriva cada vertente: uma marcada pelo grande poder atribuído ao texto escrito e outra marcada pela liberdade do leitor. A prática de leitura individual e silenciosa era incomum para esses sujeitos, pois boa parte dos entrevistados evocou lembranças de leituras coletivas, em voz alta (escola, catecismo, internato), ocasiões nas quais era possível controlar o acesso aos textos escritos, seus conteúdos, seus modos de dizer. Opondo-se a essa concepção e prática de leitura como “controle”, Petit adverte:

[…] não se pode jamais estar seguro de dominar os leitores, mesmo onde os diferentes poderes dedicam-se a controlar o acesso aos textos. Na realidade, os leitores apropriam-se dos textos, lhes dão outro significado, mudam o sentido, interpretam à sua maneira, introduzindo seus desejos entre as linhas: é toda a alquimia da recepção. (p. 26)

Por acreditar na vertente que focaliza a leitura como elemento essencial à formação de um espírito crítico e livre, considerado a chave de uma cidadania ativa, a autora argumenta a favor do poder que a leitura tem para provocar um deslocamento da realidade, ao abrir espaço para o devaneio, no qual tantas possibilidades de interpretação podem ser cogitadas. Nesse sentido, Petit defende que a leitura instrutiva não deve se opor àquela que estimula a imaginação; ao contrário, ambas devem ser aliadas, uma vez que “contribuem para o pensamento, que necessita lazer, desvios, passos para fora do caminho.” (p. 28). Por fim, Petit discute e caracteriza o leitor “trabalhado” por sua leitura como um sujeito ativo, que opera um trabalho produtivo à medida que lê, inscreve sentidos na leitura, reescreve, altera-lhe o sentido, reemprega-o, mas que se permite, também, ser transformado por leituras não previstas.

Em “O que está em jogo na leitura hoje em dia”, segunda seção da obra, a antropóloga lança ao leitor questões disparadoras: “Por que é ler é importante? Por que a leitura não é uma atividade anódina, um lazer como outro qualquer? Por que a escassa prática de leitura em certas regiões, bairros, ainda que não chegue ao iletrismo, contribui para torná-los [os jovens] mais frágeis?” (p. 60). Pensando inversamente, Petit interroga: “de que maneira a leitura pode se tornar um componente de afirmação pessoal e de desenvolvimento para um bairro, uma região ou um país?” (p. 60).

Para a autora, tais questões envolvem uma série de ângulos e registros. Contudo, a verdadeira democratização da leitura engloba a concepção dessa como um meio para se ter acesso ao saber, aos conhecimentos formais, sendo capaz, assim, de modificar o destino escolar, profissional e social das pessoas. Passa também pelo aspecto da leitura como uma via privilegiada para se ter acesso a um uso mais desenvolto da língua, pois essa pode, por vezes, constituir-se “uma terrível barreira social” (p. 66). A linguagem e a leitura têm a ver, ainda, com a construção de si próprio como sujeitos falantes, pois a leitura pode, em todas as idades, “ser um caminho para se construir, se pensar, dar um sentido à própria existência, à própria vida; para dar voz a seu sofrimento, dar forma a seus desejos e sonhos”. (p. 72).
Petit também retoma nessa seção a ideia da hospitalidade da leitura literária, da literatura como um lar. Para ela, os jovens que leem literatura são os que mais têm curiosidade pelo mundo real, pela atualidade e pelas questões sociais. Dessa forma, a leitura permite ao sujeito conhecer a experiência de outras pessoas, outras épocas, outros lugares e confrontá-las com as suas próprias, ampliando, assim, os círculos de pertencimento e criando um pouco de “jogo” no tabuleiro social. (p. 100).

Na terceira parte, intitulada “O medo do livro”, Petit problematiza que, se por um lado a leitura é a chave para uma série de transformações e o prelúdio para uma cidadania ativa, ela também suscita medos e resistências que encontram representação na seguinte voz comum: “É preciso ler”. A partir dessa relação ambivalente com a leitura, a autora cita exemplos de pessoas de diferentes regiões, muitas do campo, que, para ler, enfrentaram obstáculos, tais como a falta de domínio da língua e de acesso aos textos impressos, acessível apenas para representantes do Estado e da Igreja. A leitura era, assim, arriscada para o leitor, que poderia se ver privado de sua segurança ao pôr em jogo “tanto as fidelidades familiares e comunitárias como as religiosas e políticas” (p. 110).

Petit finaliza o capítulo desenvolvendo esta questão central: agora, definitivamente, como nos tornamos leitores? Para além do que provoca em termos da estrutura psíquica, a autora responde que a leitura é, em grande parte, uma história de família, de presença de livros e de adultos leitores; é, também, o papel da troca de experiências relacionadas aos livros (ler em voz alta, com gestos de inflexão da voz); pode ser, ainda, uma máquina de guerra contra os totalitarismos, contra os conservadorismos identitários, contra os querem imobilizar o outro a qualquer custo; enfim, a leitura é “uma história de encontros”. (p. 148).

A última e quarta conferência, “O papel do mediador”, destaca a importância de cada um que atua como mediador de leitura, seja ele um professor, um bibliotecário, um livreiro, um amigo e, até mesmo, um desconhecido que cruza o nosso caminho.

Para Petit, um mediador funciona como um elo entre o leitor e o objeto de leitura e “pode autorizar, legitimar um desejo inseguro de ler ou aprender, ou até mesmo revelar esse desejo.” (p. 148).

Os entrevistados participantes da pesquisa apontaram professores e, mais frequentemente, bibliotecários como seus principais mediadores. No caso dos professores, chamou a atenção um fato: mesmo muito críticos em relação ao sistema escolar, os jovens sempre lembravam um professor singular, que transmitia sua paixão por um livro, seu desejo de ler, fazendo-os, inclusive, gostar de ler textos difíceis. Após elencar excertos dos entrevistados sobre seus professores, Petit afirma que “para transmitir o amor pela leitura, e acima de tudo pela leitura de obras literárias, é necessário que se tenha experimentado esse amor.” (p. 161). Sobre os bibliotecários, a autora os define como pontes para universos culturais mais amplos. Assim, o iniciador aos livros é aquele que ajuda o outro a ultrapassar os umbrais em diferentes momentos do percurso, “é também aquele que acompanha o leitor no momento, por vezes tão difícil, da escolha do livro, aquele que dá a oportunidade de fazer descobertas […]”. (p. 175).

Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva, de Michèle Petit, é, certamente, uma obra de grande relevância por sua temática, pela abordagem sensível e profunda do assunto e pelo evidente conhecimento da causa da autora sobre variadas questões relacionadas à leitura. Petit consegue arrematar, por meio das reflexões apresentadas, o quão importante é compreender a leitura como um elemento capaz de transformar sujeitos e retirá-los de um contexto de exclusão e segregação, dando-lhes novas perspectivas de vida.

Notas

(1) Trecho retirado da orelha do livro.

Dinéa Maria Sobral Muniz – Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFBA Coordenadora do GELING (Grupo de estudo e pesquisa em Educação e Linguagem). E-mail: [email protected]

Fabíola Silva de Oliveira Vilas Boas – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFBA. E-mail: [email protected]

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Números naturais e operações – PIRES (REi)

PIRES, C. M. C. Números naturais e operações. São Paulo: Melhoramentos, 2013. Resenha: O ensino de matemática nos anos iniciais: notas de leitura de uma proposta didático-pedagógica. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 158-161 jul./dez. 2015.

Os baixos índices que o Brasil tem apresentado em avaliações em larga escala que medem as habilidades de leitura, escrita e matemática têm gerado uma série de debates e intervenções na educação brasileira. Se por um lado, é possível problematizar tais avaliações, mostrando como muitas vezes elas ignoram aspectos locais e servem para padronizar a educação, por outro, é inegável que esse desempenho merece uma reflexão teórica e exige que medidas sejam tomadas. Nesse sentido, programas variados (tanto públicos como privados), entre os quais podemos destacar aqueles vinculados à formação docente, têm sido pensados para auxiliar os/as professores/as em suas práticas em sala de aula. A coleção Como eu ensino, da Editora Melhoramentos, pode ser considerada como um desses instrumentos, já que objetiva “sintetizar o conhecimento mais avançado existente sobre determinado tema, oferecendo ao leitor-docente algumas ferramentas didáticas com as quais o tema abordado possa ser aprendido pelos alunos” (p. 5).

O livro Números naturais e operações, de autoria da professora da PUC/SP Célia Pires, insere-se nessa coleção a fim de apresentar ao seu público-alvo (docentes dos anos iniciais do ensino fundamental) propostas de trabalho e reflexões teóricas sobre como ensinar os números naturais e as operações básicas. Para isso, o livro está organizado em cinco capítulos, que abordam temáticas diferentes, relacionando-as ao cotidiano da sala de aula. Nesse sentido, o livro é didático tanto quando aponta o que pode ser feito com os/as alunos/ as, como quando pretende ensinar o/a docente a organizar sua prática. Isso é feito, porém, com o devido embasamento teórico, pois a obra não pretende ser um guia de atividades, mas sim uma proposta de formação docente.

Dessa maneira, o primeiro capítulo do livro faz uma breve síntese da história dos números e mostra alguns dos sistemas de numeração construídos pela humanidade ao longo do tempo, articulando tais sistemas com a construção de estratégias que permitissem o cálculo das operações aritméticas. Dos egípcios ao sistema indo-arábico, são mostrados os modos de funcionamento, as vantagens e limitações de alguns dos sistemas criados.

O modo como as operações eram realizadas também é apresentado em alguns desses sistemas, com o objetivo de explicar que aquilo que fez com que o sistema indo-arábico tivesse sucesso foi o fato de possibilitar a criação de algoritmos para a resolução das quatro operações básicas, algo que não era possível nos demais sistemas. Embora faça um bom percurso pela história da humanidade tendo como eixo as mudanças nos sistemas de numeração, nem sempre a explicação sobre os diferentes sistemas é clara.

Se esse for o primeiro contato do/a docente com a história dos sistemas, a compreensão sobre como funcionam alguns deles pode ficar incompleta, sendo necessário que os/as professores/as busquem outras fontes para complementar as informações.

Dando prosseguimento à retomada histórica que marca os dois primeiros capítulos, o livro apresenta, em seguida, “Algumas histórias sobre abordagens didáticas dos números naturais e das operações”, dessa vez, focando na história da área de conhecimento “educação matemática ou didática da matemática” no Brasil.

Para isso, a autora resgata alguns momentos marcantes dessa história em nosso país, a partir da década de 1940. É interessante notar como são usadas fontes diversas para contar essa história: da década de 1940 e 1950, são escolhidos três artigos de professores/a que atuavam em sala de aula; nas décadas de 1960 e 1970 são escolhidos livros que mostram a influência da psicologia (particularmente de Piaget) na educação matemática; para mostrar a luta por uma educação democrática na década de 1980, é analisada a “Proposta curricular para o ensino de matemática”, elaborada pela Secretaria de Estado de São Paulo; por fim, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) são apresentados para mostrar as tendências da matemática nos anos 1990. A ideia de usar fontes variadas é bastante interessante, particularmente ao se trazer para o debate, artigos escritos por docentes em outros momentos históricos. Contudo, essa seleção acaba produzindo pouco diálogo com outras abordagens também existentes no país.

Os três capítulos subsequentes são divididos levando em conta a ideia de que é necessário que o/a professor/a compreenda três aspectos das disciplinas que leciona: 1) o conteúdo dessa disciplina; 2) a didática do conteúdo da disciplina; 3) o currículo da disciplina.

Assim, os “Conceitos e procedimentos matemáticos que envolvem números e operações” são o tema do terceiro capítulo do livro.

Para explicar o conteúdo “Números”, a autora recorre aos axiomas de Peano, a fim de definir as características aritméticas dos números naturais. As propriedades das quatro operações básicas são explicitadas em seguida. Retomando esses conceitos essenciais, o livro atua no sentido de auxiliar os/as docentes a compreenderem melhor o objeto a ser ensinado na sala de aula, dispondo de mais ferramentas para apresentá-lo aos/às seus/suas alunos/as e sanar eventuais dúvidas.

Ainda com esse objetivo, são apresentados, no capítulo seguinte, estudos que ajudam a compreender como o/a aluno/a aprende matemática. Partindo da pesquisa base de Piaget, que mostrou que as crianças constroem esquemas próprios de pensamento, são apresentados/as teóricos/as que contribuem para a compreensão de como se dá a aprendizagem matemática. Além de Piaget, as pesquisas desenvolvidas por Contance Kamii, Michel Fayol, Gray e Tall, Lerner e Sadovsky e Vergnaud são sintetizadas pela autora, sempre com o objetivo de auxiliar na compreensão do modo como os/as estudantes pensam as relações com a matemática.

Destaque-se a forma como as noções de campo aditivo e campo multiplicativo (abordadas por Vergnaud) são apresentadas, articulando- as à resolução de situações-problema. Dessa forma, não apenas os conceitos são entendidos, mas vê-se o modo como eles podem auxiliar na construção de práticas mais problematizadoras na sala de aula. Cabe registrar, também, o destaque dado às pesquisas brasileiras ao final do capítulo. Obviamente, é impossível que uma obra resgate a variedade de pesquisas produzidas em nosso país, no âmbito da educação matemática, mas a seleção feita mostra como temos caminhado nas pesquisas sobre números e operações.

O último aspecto abordado refere-se à organização do currículo. Aqui, a autora recorre aos princípios básicos de organização de um currículo ao propor três momentos para a construção do mesmo: 1) a definição das expectativas de aprendizagem que se pretende construir; 2) as hipóteses relativas às possibilidades e desafios inerentes à idade dos/as alunos/as; 3) as atividades hipoteticamente interessantes para possibilitar a construção das expectativas anteriormente mencionadas. Aparentemente, recorre-se àquilo que sido nomeado no campo do currículo, como teorias tradicionais para discutir como construir um currículo. Essa visão tem sido criticada por desconsiderar as relações de poder que envolvem a construção desse artefato cultural e por tomar os dados da psicologia de forma pouca problematizadora. A autora justifica isso, porém, afirmando que há mais concordâncias do que discordâncias no que tange à definição das expectativas de aprendizagem.

Assim, ela lista o que se espera nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, tanto quanto aos números como quanto às operações.

Com relação aos números, são sugeridas, em seguida, atividades para ajudar na consolidação dessas habilidades. Situações como análise da função social do número, situações-problema em que seja preciso usar números para resolvê-las, contagens, escritas numéricas e observação das regularidades nelas presentes, são algumas das atividades apresentadas. Tal como foi feito com os números, também são sugeridas atividades para a construção das operações do campo aditivo e multiplicativo. Destacam-se nessa parte as atividades de resolução e análise de problemas e estratégias lúdicas e participativas de construção dos fatos básicos.

Coadunando com perspectivas presentes em textos oficiais (como, por exemplos, os PCN), as propostas são facilmente aplicáveis no cotidiano da sala de aula e podem auxiliar na construção das habilidades supracitadas. Porém, há pouco avanço em relação ao que está presente na maior parte dos livros didáticos analisados pelo Programa Nacional do Livro Didático, por exemplo.

Em síntese, o livro Números e Operações cumpre uma importante função na divulgação de pesquisas e atividades que subsidiem as práticas docentes no ensino fundamental. Embora em certos momentos haja pouco aprofundamento teórico e repetição de atividades comumente encontradas nos guias de ensino, de modo geral, o livro pode auxiliar nas reflexões sobre as práticas exercidas em sala de aula, bem como na formação inicial e continuada de professores/as. Aliado a outros materiais de estudo e a políticas públicas de investimento na educação básica, a obra pode contribuir com o objetivo maior de alcançar a qualidade na educação brasileira, no que se refere à matemática.

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Rádio, arte e política – COSTA (REi)

COSTA, Mauro Sá Rego. Rádio, arte e política. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. Resenha de: CORDEIRO, Salete de Fátima Noro. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 162-171 jul./dez. 2015.

Mauro Costa reúne, nessa obra, vários de seus artigos, cuidadosamente selecionados para levar o leitor à reflexão sobre a importância e dinâmicas do rádio, ao longo do tempo até o contexto contemporâneo. No primeiro artigo, “Rádio Arte e Política”, o mesmo que dá título à obra, logo marca o tom da sua escrita, colocando o rádio, desde sua origem, como um meio universal que atinge grandes contingentes da população e, portanto, um instrumento cultural, artístico e político que pode chegar a qualquer cidadão, instruído ou não. Apresenta o rádio com seu caráter plural, sendo usado, tanto numa perspectiva autoritária, – a exemplo da rádio nazista e fascista na Alemanha e Itália respectivamente –, como libertária, a exemplo da radiodifusão nos EUA no início do século XX e das rádios livres na França e Itália em meados da década de 1970. O rádio ganha notável reconhecimento da população, uma vez que a comunicação passa a acontecer ultrapassando as barreiras geográficas, o que significa dizer que as pessoas começaram a se comunicar a longas distâncias sem a interferência do Estado ou de empresas. Em estilo contraventor ou reacionário, expande-se, principalmente quando começa a se difundir e servir de meio de comunicação livre nos EUA (comunicação entre rádios amadores).
Nesse caso, o Estado intervém através do “Ato do Rádio” legislação que obriga os rádios amadores a tirar licença e só permite a comunicação por ondas curtas, sob a alegação do Congresso americano de “interferências maliciosas”. Mera coincidência em relação aos atos de criminalização das rádios comunitárias nos dias atuais, tanto nos Estados Unidos como em diversas partes do mundo.

Essa restrição definia uma faixa do espectro muito limitada para uso, sob pena de multa para quem infringisse as regras, o que levou a um movimento pela liberdade de comunicação, produção e arte.

A luta pela liberdade de expressão através das rádios caminhou junto com sua clandestinidade, dando origem a criação de um repertório cada vez mais variado, entre eles, a emissão de propaganda, música e narrativas orais. Muitas rádios, ainda hoje, continuam clandestinidade, ou seja, sem licenças, pela grande burocratização das instituições reguladoras e pelos interesses políticos dos proprietários de rádios comerciais, que dificultam sua regulamentação.

Na França e na Itália, até os anos 1970, todas as rádios eram estatais. Somente após esse período é que as rádios comerciais começaram a surgir. Mauro Costa cita o exemplo da rádio “Alice,” uma rádio livre que surge em Bolonha, na Itália (1976-1977), como um projeto estético-político, sendo considerada contraventora para a época e tendo como um dos seus fundadores o ativista Franco Berardi (Bifo). Torna-se a primeira rádio livre de Bolonha, onde a contrainformação passa a ser o principal instrumento no desmascaramento do discurso do poder. O mesmo grupo que organiza a rádio “Alice”, organiza também a revista Altraverso, um grupo que, em meio aos movimentos políticos da época, buscava fazer uma outra política, ou pelo menos, constituir maneiras diferentes de fazê-la, através dos meios de comunicação, promovendo a circulação de informação e comunicação. Política e informação caminhavam juntas no pensamento desse grupo, onde, “informações falsas produzem eventos verdadeiros” (p.65).

Do ponto de vista teórico, Mauro Costa, apresenta os sentidos e significados, ou melhor, não sentidos e não significados, que envolvem a perspectiva de fazer uma rádio contraventora, que transmite contrainformação, que interage com ouvintes e que transmite silêncio. Embasado em Burroughs e Deleuze, toma a palavra como vírus e, dessa maneira, a palavra se espalharia e dominaria as narrativas e discursos, exercendo papel condicionante e de controle. Segundo ele, nós, seres humanos, já não comunicamos por nós mesmo, pelas nossas percepções, pelo real, mas pelo que a palavra fez da linguagem, “pedaços de linguagem” que vão se articulando e esparramando. Já não é o ser humano que fala, mas a palavra, o vírus. O que cria uma distância entre as palavras e a experiência. A mídia instituída fala por cada um de nós e nos retira a potência da linguagem, da comunicação. Segundo ele, o que vale é a experiência direta, adâmica, a que está antes da palavra, no silêncio. O vazio precede a palavra. Sentido e não sentido fazem parte de um mesmo agenciamento. Vazio é espaço de privilégio, onde os artistas estão no ato da criação, no momento da poiésis, onde esquecem os códigos, ultrapassam os limites da linguagem instituída e criam o inédito, o singular e o novo.

Esse lugar potente, que rompe com o instituído dando abertura para o nonsense, para a criação, é o que almejava a rádio “Alice” em termos de potência política, “ético-estética”. O silêncio do rádio é quebrar, abrir, fechar, cortar, interromper a linguagem feita da palavra vírus, escapar do controle, interromper a comunicação, linguagem que fala por todos. Abrir espaço para a construção de novas linguagens, possibilitando outras maneiras de comunicar, de pensar, de criar, de estabelecer relações outras, com valores pertencentes a cada um e aos seus coletivos.

A rádio “Alice” é uma rádio subversiva. “O problema real é o de criar novas condições culturais, cotidianas, vivenciais, relacionais, psíquicas para que um processo de auto-organização da sociedade possa se livrar das correntes do comando capitalista…”(67).

Ela está relacionada a uma política emergente, instituinte, micropolítica que não está relacionada a nada até então instituído, nem aos movimentos de direita nem de esquerda, nem ao capital, nem ao movimento trabalhador. O modelo político estético criado pela rádio “Alice”, potencializa a criação de zonas de auto-organização, onde cada coletivo passa a pensar e a descobrir sua expressão.

Ela remete diretamente, através da sua ousadia da sua performance e de seus repórteres, à invenção de linguagens e expressões, à uma outra arquitetura de rádio.
A “rádio Alice” é descrita como uma experiência paradigmática de comunicação, caracterizada sob uma abordagem teórica de lógica de sentido fundamentada em Deleuze e Guattari. Os meios políticos dessa rádio estão basicamente na forma, e não necessariamente no conteúdo, valorizando uma política de contrainformação, que se dá através de um rádio teatralizado. Foi uma experiência marcada pelo nonsense, cheia de paradoxos, fluxos, intensidades do ato de comunicar. Os meios radioelétricos deram o suporte para uma nova perspectiva de tempo que foi instaurado, uma comunicação instantânea, que valorizava um tempo contínuo através dos meios, a exemplo do uso do próprio telefone, que estabelecia uma comunicação em rede através da publicização da ligação ao vivo.

Pela primeira vez, aqueles que mobilizavam os movimentos político- artísticos e estéticos estavam utilizando uma mídia eletrônica e criando uma rede através das pessoas que circulavam pela cidade, pelos eventos e pelas manifestações. A comunicação podia acontecer através do rádio e do telefone que eram utilizados para criar interação com público ouvinte. Ela acontecia em tempo real, antes mesmo do surgimento da web, cobrindo uma diversidade muito grande de eventos e com uma proposta de produção de conteúdos e uma linguagem cheia de ineditismos.

Mauro Costa ainda menciona a publicação de um livro de Bifo, onde aparece, explicitamente, a intencionalidade da criação de uma política do movimento, com caráter não linear, mas múltiplo, convergindo para as mídias e para o rádio. Os escritos de Bifo são importantes pois falam das rádios livres da época (Itália e França) sob uma perspectiva de ruptura, muitas vozes no ar, mostrando que a cultura minoritária estava florescendo através do rádio.

Depois do fechamento da rádio “Alice” (1977), Bifo refugia-se na França e continua sua mobilização e militância através da escrita, ampliando a discussão do rádio até o surgimento do movimento da cibercultura, onde faz uma análise da internet como uma nova protagonista do sistema e das relações de poder, como em sua obra Mutazione e Cyberpunk (1994).

As rádios livres criavam essa dinâmica, trazendo o inusitado para a programação, compartilhamento com o público, potencializando um ambiente propício para a efervescência cultural.

No entanto, a sua legalização, imposta pelo governo italiano, causou o seu esfacelamento e sua completa derrocada. No momento em que o governo submete a existência das rádios livres a um estatuto, a sua institucionalização acaba com sua essência e sua liberdade.

Exigir conteúdos, audiência e qualidade retirava das emissoras sua liberdade criativa, a autonomia de produzir o que quisesse, sem a preocupação com expansão ou audiência. Esse é o panorama geral das rádios livres e da sua regulamentação também no Brasil.

Aqui, para pensar o funcionamento e legalização das rádios comunitárias, foi instaurada a Comissão de Comunicação, Tecnologia e Informática do Congresso Nacional que leva à aprovação da Lei nº 9.612, em 1998. Cabe ressaltar que a maioria da bancada parlamentar estava direta ou indiretamente ligada a empresas de rádio e televisão, o que deixa sua marca indelével na legislação.

As barreiras criadas pela legislação geram morosidade nos processos, fazendo com que muitas rádios permaneçam na clandestinidade, mesmo realizando um trabalho intenso e relevante em suas comunidades. Nas palavras de Mauro Costa, são “verdadeiros centros culturais populares” (p. 91), deles participando pessoas de todas as idades e gêneros, mas principalmente jovens. São as rádios que chegam e suprem o vazio deixado pelas políticas públicas de cultura, esporte, lazer, trabalho, entre outras, principalmente no que está relacionado às demandas da juventude.

Essa comunicação que nasce à margem da lei, produz uma outra realidade e emerge daí a presença, envolvimento e participação marcante dos jovens. O Ministério da Cultura, sensível a essa realidade e à necessidade de estimular a produção cultural envolvendo as tecnologias que estavam chegando naquele momento, cria os Pontos e os Pontões de Cultura e projetos para o desenvolvimento da cultura em comunidades populares.

Foi dentro desse contexto que aconteceu um evento denominado Radiofórum, no ano de 2008 em Londrina- PR, onde intelectuais de diversas áreas se reuniram pensando numa rádio que mexesse, sacudisse, fizesse um rebuliço com o instituído modo de pensar e de fazer rádio no Brasil. No momento em que as tecnologias digitais disponíveis propiciaram a transição para a incorporação das tecnologias da informação e comunicação e a criação das rádios web, o desejo desse grupo foi de construir uma rádio que ultrapassasse o modelo de transmitir informação (tempo, clima e trânsito), que realmente fosse um elemento provocador no sentido de quebrar esse cotidiano e principalmente, fazer pensar.

A partir do surgimento da internet, são criadas as rádios web, muitas delas impensáveis do ponto de vista político. A internet surge como espaço alternativo tanto para quem quer ouvir e acessar, como para quem quer produzir e disponibilizar conteúdos.

Tanto as rádios web como os sites de músicas, acabam sendo um local privilegiado de produção cultural dos jovens, pois eles são os primeiros a chegar e se engajar quando dos projetos de rádios comunitárias, por exemplo. Isso mostra, por um lado, um vácuo nas políticas públicas que não contemplam a população jovem em suas necessidades, principalmente em relação à cultura. Os jovens no Brasil fazem parte de uma massa de excluídos, de desempregados e de um grupo que faz aumentar os índices de violência.

As rádios livres e comunitárias estão diretamente ligadas a modos de resistência e, atreladas à tecnologia digital, vêm oferecer formas de produção de arte e cultura, e consequentemente, a produção de um trabalho imaterial.

No livro, Mauro Costa baseia-se em Toni Negri e Michael Hardt (xxx) para falar dessas formas de produção, trazendo para o centro do debate, as maneiras de cooperação ou colaboração que lhes são inerentes. A inteligência coletiva que é produzida através das redes não dispensa a necessidade de corpos e mentes. Muito pelo contrário, é formada por eles, trabalhando de maneira conjunta, tudo graças a essas tecnologias digitais que permitem o trabalho em rede, sem os constrangimentos espaço-temporais. É nas fendas, nas brechas, que essa parcela de excluídos do trabalho formal encontram táticas de sobrevivência diante do que as tecnologias digitais propiciam e da construção dessa inteligência coletiva, encontram maneiras de desenvolver outras atividades produtivas.

“Várias atividades produtivas vêm se articulando desta maneira, principalmente nos setores da juventude, estes que estão em situação de crise na relação como trabalho juridicamente regular” (p. 91). Para exemplificar essas formas de trabalho imaterial propostas ou criadas pela juventude, o autor registra três experiências: as rádios comunitárias, o hip-hop e a produção de artes plásticas por coletivos independentes.

A primeira experiência descrita pelo autor são as rádios comunitárias, e traz como exemplo a rádio web Musicadiscreta, que produz programas sobre música, acontecimentos e personagens de vários estilos musicais até passeios etnomusicais; a Rádio Pacífica- NY-EUA, uma rádio comunitária nos Estado Unidos que, bem diferente da legislação daqui, permite que rádios comunitárias operem em rede, tudo com financiamento dos ouvintes. Cita ainda o site Sussurro, uma biblioteca musical de acesso livre criada pelo professor da UFRJ Rodolfo Caesar, que disponibiliza músicas e documentos, artigos, programas de rádio, uma variedade de conteúdos e gêneros musicais. Como, por exemplo, a Boomshot- SP, criada por um fã do hip-hop, que frequenta os espaços desse ritmo e faz das pessoas aí presentes seus entrevistados. Seus programas realizados ao vivo ficam disponíveis para download no site. Na onda do hip-hop, e seguindo a proposta de compartilhar conteúdos livres, o autor cita Bocada Forte, Rap Nacional e Só Pedrada Musical, que também possuem a característica de serem espaços alternativos, não seguindo padrões instituídos ao modelo da indústria fonográfica, onde os artistas trocam, compartilham e disponibilizam suas músicas, seus mixtapes. Suas músicas circulam pelas redes globais, onde muitas vezes ficam conhecidos, ganham prestígio na comunidade e são chamadas para fazer seu trabalho, instaurando-se assim, circuitos paralelos de construção de cultura.

A segunda experiência é o contexto de produção e circulação do hip-hop, que apresenta-se como contracultura, já que sua existência não está vinculada ao apoio de nenhuma organização institucional. Todo o processo de construção da música acontece através de uma auto-organização do coletivo, que promovem encontros, eventos, oficinas, onde uns vão passando/compartilham as técnicas e saberes para/com os outros.

A terceira experiência citada por Mauro Costa refere-se ao Coletivo Imaginário Periférico. Trata-se de um grupo de artistas plásticos, que desenvolve seu trabalho dentro de uma linguagem contemporânea de arte. Também não está atrelado a nenhum órgão ou entidade instituído no campo da cultura ou da arte, como por exemplo, escolas ou museus, mas é um grupo que se auto organiza através de eventos de arte e ateliês coletivos. É a partir desses espaços, mais alternativos, que as trocas e as aprendizagens acontecem.

Seguindo essa lógica de produção e compartilhamento, inúmeros sites são criados na web, dando oportunidade de acesso a uma grande variedade de produções sonoras, gêneros radiofônicos, programas de radioarte e radiodrama, documentários sonoros, paisagens e poesia sonoras, além da possibilidade de abertura de canais para discutir essas produções artísticas, teóricas e culturais.

Dentro dessa perspectiva plural de produzir rádio, o autor discute acerca do pensamento sobre a escuta, o som e a arte do rádio, um campo teórico pouco explorado ou inexistente. A Utilização do rádio, limitado muitas vezes ao campo da música, como em “arte dos ruídos” de Luigi Russolo e “a libertação dos sons” de Edgar Varèse, se por um lado buscava renovar a arte musical, restringia a liberdade de escuta do que seriam os elementos fundamentais para as experiências sensoriais, da busca do ruído como som em si. Segundo Mauro Costa “a não separação de uma arte do rádio ou da escuta, da arte da música, impediu, até recentemente, o desenvolvimento de critérios de leitura (de audição) próprios dela” (p. 22). Isso quer dizer que toda a codificação ou busca de pureza nos ruídos só prejudicou o desenvolvimento de outras maneiras de perceber, tratar, produzir sons e desenvolver uma teoria da escuta.

Ele traz exemplos de compositores que vão buscar suas experiências sensoriais nos estúdios de rádio, nas experiências acústicas que esse meio proporciona, resgatando inspiração e técnicas para desenvolverem suas composições, como o caso de Pierre Schaeffer que desenvolve a sua “música concreta”, proporcionando o desenvolvimento do pensamento sobre a escuta livre, ou de François Bayle, que a partir dessa senda, inicia os trabalhos que levam ao estudo da percepção auditiva ligada à cognição. Por fim, cita o compositor e teórico da educação Murray Schafer, que cria o conceito de “paisagem sonora” contemplando aspectos estéticos e ecológicos que envolvem os ambientes sonoros. A ecologia acústica, estudo desenvolvido por esse intelectual, propõe uma educação da escuta, uma atenção consciente do ambiente sonoro em que habitamos, através da educação que atingiria um grande contingente, que envolveria, pelo menos, três aspectos: desenvolver uma melhor percepção sonora desses cidadãos e dos espaços que habitam; tomar consciência de que cada um de nós somos coautores da produção sonora que nos cerca; e da percepção da produção de poluição sonora (esse programa teria ambição de abranger a educação e a saúde pública). Por outro lado, a educação da escuta do ambiente a nossa volta, encaminharia novos desafios de percepção sonora, abrindo para outras “linguagens musicais pós-tonais”, “ritmos não regulares” e desenvolvimento cognitivo. O interesse por essa área do conhecimento levou o autor a aprofundar os estudos, levando em consideração a criação de novas narrativas e principalmente de uma experiência estética, dando origem, então, a vários eventos e projetos, como o Laboratório de Rádio da UERJ/ Baixada, na Faculdade de Educação.

O livro ainda contém uma entrevista com Murray Schafer, onde aborda a origem do projeto “paisagens sonoras das cidades”, um projeto mundial que saiu de uma proposta de ensino no Departamento de Comunicação da Universidade Simon Frazer, no Canadá, e toma com espaço de trabalho a própria cidade.

O projeto estuda não apenas os sons musicais, mas qualquer tipo de som, ruído que faça parte do cotidiano, ou o que ele chama de “paisagem sonora”. Essa é entendida como algo dinâmico, móvel e, portanto, merece ser estudada, já que esses sons cotidianos estão mudando e afetando o comportamento dos cidadãos. O primeiro desses estudos foi feito em Vancouver/Canadá, e os restantes em outras cidades do mundo, evidenciando a diferença sonora presente em cada uma delas.
O rádio passa a ser entendido como um meio onde essas experiências podem ser compartilhadas e estimuladas. Isso tudo, segundo Mauro Costa, pode levar a um aprofundamento da experiência sonora ao ponto de falar em um “rádio fenomenológico”, que seria um tipo de rádio com uma programação com menor interferência possível ou sem interferência de quem o faz (colocar o microfone em um espaço e não interferir, apenas transmitir para outros espaços), o que levaria à criação de singularidades acústicas/ sonoras expressando a paisagem de cada lugar a partir dos sons que são específicos e característicos de cada região ou localidade.
O texto de Mauro Costa ainda ressalta o brilhantismo e ineditismo nas composições e instalações musicais de John Cage e relaciona seu pensamento ao de Deleuze e Guattari em muitos aspectos, entre eles a concepção de uma lógica pervasiva, que vai equiparar som e silêncio, quebrar a noção de espaço e de tempo da modernidade (tempo presente, passado e futuro) e dar espaço para o acaso, onde qualquer coisa pode acontecer durante a elaboração da obra, não havendo predominância de qualquer interpretação ou qualquer gosto do artista. Estabelece um paradoxo entre silêncio e som, caracterizado pelo tempo de duração, onde “nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não esteja pregnante de som.” (p. 51) O conteúdo de sua construção musical reúne sons musicais e ruídos registrados a partir dos meios eletrônicos, uma música inédita “sem propósito, aleatória, intempestiva, rompendo a barreira entre arte e vida, a música e os sons da vida, das ruas, do cotidiano-aprender a ouvir o mundo” (p. 40).

A perspectiva de Cage trata da desconstrução do compositor/autor diante dos equipamentos de áudio, especialmente o rádio, ou seja, é retirada a centralidade do artista no processo de criação. Entre as várias obras sonoras, criadas por Cage, fica marcante a diversidade na introdução, apresentação ou utilização do rádio. Ele acreditava que a música do futuro seria produzida a partir de instrumentos elétricos, sendo o rádio um dos principais instrumentos de trabalho do artista. Cage é considerado o inventor da radioarte, antes mesmo de ser criado esse conceito.

É discutido na obra de Mauro Costa, o rádio com grande potencial educacional, mas que enfrenta dificuldade de se desprender dos modelos padronizados e comerciais de fazer a programação.

Muitas vezes os programas têm um conteúdo revolucionário, mas seus formatos reproduzem padrões, não apresentam outras estéticas possíveis, outras vozes que destoem de um modelo predeterminado, ampliando as experiências possíveis nesse campo.

A leitura dessa obra é interessante para todos aqueles que estão buscando experiências outras de produzir conteúdos sonoros e comunicação; para aqueles preocupados com a construção de uma educação de resistência, colaboração e, ao mesmo tempo, de sensibilidade da escuta.

Salete de Fátima Noro Cordeiro – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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La Inmortalidad de nuestras Culturas Milenarias – BERGAGNA (ER)

Comunidad Estudiantil Universitaria de Pueblos Originarios 2016 Discurso de ódio
Membros da Comunidad Estudiantil Universitaria de Pueblos Originarios (CEUPO) em [2016].  www.facebook.com/ceupo.unsa/

CEUPO La immortalidad de nuestras culturas milenarias Discurso de ódioBERGAGNA, María Alejandra. La Inmortalidad de nuestras Culturas Milenarias. Salta: Comunidad Estudiantil Universitaria de Pueblos Originarios (CEUPO), 2013. Resenha de: ZAPATA, Laura Marcela. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.40, n..3, jul./set., 2015.

El estudio de los procesos culturales implicados en las prácticas educativas desarrolladas en situaciones de interacción interétnica se ha multiplicado en los últimos años. El encuentro interétnico en el ámbito escolar bien puede ser interpretado como la interacción de dos sistemas de comunicación, el indígena y el occidental, cuya mutua inteligibilidad demanda un esfuerzo meta-comunicativo. Aunque sea fundamental para que algún aprendizaje tenga lugar, buena parte del trabajo meta-comunicativo corre por las vías del lenguaje implícito. Por ello, pocas veces las instituciones educativas se comprometen en su explicitación reflexiva, máxime cuando la dominación étnica, precisamente, obtiene su eficacia de este y otros silenciamientos. La tematización del conjunto de reglas que ordenan la interacción y la interpretación, al interior de un proceso escolar, también llamada reflexividad, ofrece grandes oportunidades para conocer, desde el punto de vista de los actores sociales, la naturaleza y significado del orden social y las posibilidades para su transformación.

El texto La inmortalidad de nuestras culturas milenarias retrata de manera sensible y certera una experiencia educativa de carácter reflexivo, orientada a explicitar, desde el punto de vista de los docentes no indígenas y de un grupo de estudiantes indígenas, los pactos simbólicos que organizaban el proceso de aprendizaje en el ámbito universitario, que llevaban a los estudiantes al fracaso académico y a la deserción. Se trata de un pequeño pero sugestivo libro digital aparecido el año 2013 en la provincia de Salta, noroeste argentino, editado por la Comunidad Estudiantil Universitaria de Pueblos Originarios (CEUPO) de la Universidad Nacional de Salta (UNSa), y compilado por la trabajadora social, profesora de la UNSa y coordinadora del Servicio de Orientación y Tutoría de la Facultad de Ciencias de la Salud, María Alejandra Bergagna.
Dos grandes bloques organizan el texto. Mientras que Bergagna, Verónica Vila, psicóloga perteneciente al Servicio de Orientación, y Juan M. Díaz Pas, un estudiante avanzado de la carrera de Letras de la UNSa, escriben una amplia introducción, “Escritores originarios: la apropiación de la voz”, catorce estudiantes indígenas son los autores de la segunda parte del libro. Ellos son: Osvaldo ‘Chiqui’ Villagra, Ervis Díaz, A.C. Cielo, Sol, Emanuel Tapia, Marcos, Lidia, Magy, Vilma, Graciela, Rix, Robustiano Ramos, Amílcar y Anahí. Sus lugares de origen se hallan entre el Chaco Salteño-Jujeño (adonde residen grupos guaraníes y wikyi) y la Puna Jujeña (habitada, entre otros, por grupos kolla).

En la primera parte los autores describen el servicio de tutoría por el cual un grupo de estudiantes universitarios avanzados no indígenas acompañó, durante los años 2012 y 2013, a un grupo de estudiantes indígenas en su aclimatamiento institucional. A través de la organización de un Taller de Comprensión y Producción de Textos – del que participaron cinco tutores/as, estudiantes universitarios avanzados, no indígenas – se propusieron aproximar el lenguaje científico y académico a los estudiantes originarios, con objeto de facilitar su comprensión. En el transcurso del taller tutores/as y coordinadores/as hicieron varios descubrimientos. Primero, que los lazos entre la escritura y el poder se expresaban en las dificultades que tenían los estudiantes para comprender el discurso académico. Segundo, que esa incomprensión era el fruto de una “[…] estrategia de exclusión social más o menos evidente, más o menos formulada como proyecto” (Bergagna, 2013, p. 27). Tercero, y quizá el hallazgo más significativo, que

[…] no basta con enseñar a ‘comprender’ (es decir a leer, a consumir) los sentidos elaborados por otros, es necesario colaborar para que todos o muchos más accedan a ‘producir’ esos sentidos, a formularlos con su propia voz, en sus propios términos, según su propio ritmo, con el estilo de una lengua que los identifique con aquello que dicen (Bergagna, 2013, p. 28-29).

Los coordinadores, impulsados por los estudiantes indígenas, abandonaron el lenguaje científico como objeto. Se concentraron en la “escritura creativa”; eludieron las nociones de “aprobado/ desaprobado” para calificar la escritura de los estudiantes y en su lugar trabajaron con los conceptos de “edición” reflexiva: “[…] elaboración de estrategias de adecuación discursiva al contexto de participación, a los objetivos perseguidos por los participantes, a las representaciones mentales de los eventos de escritura y a las intenciones puestas en juego” (Bergagna, 2013, p. 33-34). De ello derivaron algunos de los tópicos sobre los que versó la escritura de los estudiantes: “[…] qué es ser kolla, qué es ser wicky [sic] o guaraní en la universidad nacional de Salta a principios del siglo XXI” (Bergagna, 2013, p. 36). Veamos entonces cómo respondieron a esta pregunta en la segunda parte del libro los autores wikyi, guaraní y kolla.

Además de una entrevista realizada por estudiantes secundarios de la ciudad de Salta a Osvaldo ‘Chiqui’ Villagra, predominan en la segunda parte del libro textos autobiográficos que se intercalan junto a relatos tradicionales (que describen el coquena, el origen del maíz, el origen del río Pilcomayo, las luciérnagas, entre otros). La lengua que usan los estudiantes para escribir es el español, aunque algunos textos (relatos tradicionales) son traducidos de manera simultánea a sus lenguas maternas, wikyi y guaraní. La mayoría de los autores firman sus textos recurriendo a sus nombres de pila (Celeste, Amílcar) o, aun, a sus sobrenombres (Magy, Rix), como si la comunidad de sus lectores pudiera reconocerlos, como lo hacen sus parientes y vecinos, a través de estas señales que emergen en el seno de la interacción cara a cara.

Consideradas en conjunto las autobiografías muestran lo inconmensurables que resultan los sistemas de aprendizaje propios de las culturas de los pueblos de los que provienen los estudiantes universitarios con respecto a la enseñanza escolar y universitaria. Veamos cómo producen estos autores esa ininteligibilidad en la que se halla comprometida su propia sobrevivencia en el ámbito universitario. Osvaldo Villagra, estudiante avanzado del Profesorado en Ciencias de la Educación de la UNSa, perteneciente al pueblo wikyi de la comunidad La Puntana, ubicada en el departamento de Rivadavia, Provincia de Salta, explica cómo aprendió a nadar y a pescar:

Uno de mis grandes desafíos cuando tenía apenas 6 años de edad era aprender a nadar, junto con otros chicos de la comunidad lo hacíamos en ‘pelhat´ilis’ que en español sería lagunas – aguas estancadas dejadas por las lluvias o el río -, y siempre con la presencia de una persona mayor, como primera regla; aprender a nadar a la perfección y luego sumergirse dentro del agua sin abrir los ojos ya que el agua es turbia, solo hay que guiarse con las manos y brazos. Antes de ir al río tenía que recibir una aprobación para poder hacer la otra parte más difícil, la de nadar en el río, y conocer los secretos del agua, es decir, reconocer su movimiento para detectar las partes profundas y menos profundas, así poder atravesarla hasta el otro lado, cruzar y nadar por la noche. Todo esto es para luego no tener tanta dificultad a la hora de aprender a pescar (Bergagna, 2013, p. 48).

De esta explicación entendemos varias cosas sobre el sistema de enseñanza-aprendizaje local. Primero, los aprendices de la cultura wikyi son entrenados en los mismos contextos donde desempeñarán sus funciones una vez que hayan adquirido la pericia necesaria para ejecutarlas. Se trata de un conocimiento total que incluye una compleja teoría sobre el entorno y una delicada práctica, indisociables. Segundo, la división del trabajo del grupo (que separa a hombres de mujeres y niño/as de adultos/as) garantiza que todo miembro pleno de la comunidad acceda a los conocimientos mínimos que garanticen su sobrevivencia. El acceso a ese conocimiento no es objeto de monopolio de una elite que se lo reserve para sí como medio de dominación. Tercero, la función instrumental del aprendizaje (aprender a nadar para aprender a pesar y saciar una necesidad vital) no se haya disociada del valor lúdico y recreativo del entrenamiento, que se presenta ante el niño como un “gran desafío”.

Los autores originarios no oponen de manera tajante el sistema nativo de aprendizaje – holista y comprensivo – con respecto al sistema escolar occidental – abstracto, violento y compartimentalizado. La jerarquía, más o menos elaborada, está presente en todas las experiencias, nativas y escolares. Se trata más bien de la significatividad asociada a los nuevos saberes, a eso que Jean Lave denomina “aprendizaje como participación en comunidades de práctica” que se hacen inteligibles al sujeto, le dan un lugar en el mundo, transformando al mundo y él/ella en un solo movimiento.

Lidia, por ejemplo, cuenta cómo la emocionaba leer poesías en los actos escolares, a los que su madre asistía orgullosa, y que antes de los diez años comenzó, incluso, a escribir un libro sobre su vida (Bergagna, 2013, p. 121); Graciela, con ayuda de su familia, desde muy pequeña “leía todo lo que tenía a […] [su] alcance” (Bergagna, 2013, p. 127); y, Amílcar antes de ir a jardín de infantes aprendió junto a su abuela a leer el cartel que estaba frente a su casa, que decía en letras grandes “Municipalidad de Santa Victoria Oeste” y en letras chicas: “Por un futuro mejor”. Según estos autores, leer o escribir surgía del esfuerzo que hacían para ganarse un lugar digno al interior de un mundo en el que su presencia era requerida, deseada y reclamada.

Esta no es la experiencia de la mayoría de los escritores que aquí reseñamos. Muchos de ellos asocian el aprendizaje de la lecto-escritura con el “aprendizaje de la letra” y a este con el dolor de cabeza, el aburrimiento, la limitación de las horas de juego junto a los pares para hacer la “bendita tarea”, a situaciones de humillación colectiva, a través de los ejercicios de lectura en voz alta en el aula o en la casa frente a los compañeros, parientes y amigos, y a ejercicios que demandan como condición la soledad, el aislamiento del grupo de amigos o de la dinámica familiar. La posibilidad legítima de ser objeto de castigos y de desaprobación pública, a través de órdenes impartidas con gritos, por parte de maestros/as y familiares adultos, para muchos de los estudiantes está en íntima relación con los libros y las bibliotecas. Por ejemplo, Vilma señala en su texto: “De a poco empecé a leer pero nunca me sentía contenta con lo que leía porque me sentía incapaz de leer como mi maestra. Pero igual no me ponía a practicar, porque decía: ¿de qué me sirve leer?, es como que estaba confundida todo el tiempo” (Bergagna, 2013, p. 125).

Relatos auto-biográficos de estas características son los que predominan en la segunda parte del libro. Los textos son el resultado parcial de lo que sucedió con el Taller que organizó el Servicio de Orientación y Tutorías de la UNSa. En la primera parte Bergagna cuenta que durante los primeros encuentros los estudiantes manifestaban desinterés por el discurso científico que les era presentado como objeto de trabajo. La letra críptica aparecía como la representante de un mundo que denegaba persistentemente su presencia efectiva, como miembros de pueblos originarios, en la Universidad. Los desconocía como agentes capaces de producir significado en los términos de una voz, ritmo y estilo propios. Ante este desinterés por parte de los estudiantes originarios los coordinadores modificaron los términos en que era pensado el taller y abandonaron la “enseñanza magistral”, dicen haberse concentrado en la “escucha” (Bergagna, 2013, p. 37).

De ello emergieron varias iniciativas por parte de los estudiantes. Organizaron una feria universitaria donde mostrar sus ropas, bailes, canciones y productos que fabricaban con sus manos. Comenzaron a dictar cursos de idioma y cultura wikyi en la escuela secundaria que dependía de la UNSa. Finalmente, organizaron el CEUPO que le dio una representación política en el ámbito universitario. Escribir sobre los derroteros, muchos veces violentos, a través de los cuales estos estudiantes habían llegado a la universidad, transformó al taller y el propio concepto de escritura. Usada como performance junto a otras actividades expresivas, apareció como un instrumento a través del cual modificar los términos en los cuales la exclusión y la denegación eran incluidas como principios implícitos de interacción y base de la enseñanza-aprendizaje en el ámbito universitario.

La enseñanza universitaria simplemente ignoraba a quiénes tenía frente a sí, los saberes que portaban y sus culturas de origen, considerándolos simples receptores pasivos de un conocimiento magistral. Se trata de un principio que pocos estudiantes (indígenas o no indígenas) logran problematizar. Este grupo lo hizo sosteniendo que sus culturas de origen eran “milenarias” e “inmortales”. El título del libro, una afirmación existencial y política, presenta la intención de este grupo de estudiantes: que la institución reconociera su origen étnico como propiedad y principio ineludible para su existencia efectiva en el medio universitario.

Si la transmisión de la cultura supone una teoría acerca de cómo es producido y reproducido el conocimiento por parte de los miembros de un grupo social, es decir, si entendemos a la cultura como un lugar adonde se elaboran epistemologías, entonces hay en los escritos de los autores indígenas de este libro un esfuerzo por mostrar sus propias maneras de aprender y enseñar diversas dimensiones de su cultura y de su entorno. Comprendemos, de la mano de los estudiantes, que en nuestras Universidades conviven diversas epistemologías. Reconocerlas, como condición de nuevos aprendizajes, es un primer paso, y en esta línea se halla el libro que reseñamos. El segundo paso es el diálogo, en igualdad de condiciones, de diversas epistemologías que conviven, de hecho, en el ámbito universitario. Esto es una materia pendiente para la enseñanza universitaria y para la investigación. Como sostiene Alcida Rita Ramos, para el caso de la Antropología Social, las teorías nativas acerca del saber y las teorías académicas podrían no sólo dialogar sino, incluso, fertilizarse mutuamente, colaborando en la institución de una verdadera “ecumene teórica”, una congregación de teorías sociales. Ello transformaría, enriqueciendo, nuestra manera (homogénea y autoritaria) de producir conocimientos.

“La inmortalidad de nuestras culturas milenarias” es fruto del proyecto “Interculturalidad e inclusión en contextos regionales. Un análisis de las dimensiones vinculadas al ingreso a la universidad en estudiantes indígenas”, que fue desarrollado en la UNSa con el apoyo de la Secretaría de Política Universitaria del Ministerio de Educación del estado nacional argentino. Escrito a partir del método “Sistematización de Experiencias”, se trata de un esfuerzo intelectual por mostrar los desafíos culturales y políticos comprometidos en las prácticas educativas cuando son desarrolladas en situaciones de interacción interétnicas. De ello surge el valor por comentar su aparición y promover su lectura.

Referencias

BERGAGNA, María Alejandra. La Inmortalidad de nuestras Culturas Milenarias. Salta: Comunidad Estudiantil Universitaria de Pueblos Originarios (CEUPO), 2013. 153 p. E-Book. [ Links ]

Laura Marcela Zapata – Es antropóloga social. Investigadora adscripta al Centro de Antropología Social, Instituto de Desarrollo Económico y Social. Profesora del Departamento de Ciencias Sociales de la Universidad Nacional de José C. Paz. E-mail: [email protected]

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Remuneração Variável de Professores: produzindo um superador de metas – EVANGELISTA (ER)

EVANGELISTA, Simone Torres. Remuneração Variável de Professores: produzindo um superador de metas. Rio de Janeiro: ComPassos Coletivos, 2013. Resenha de: VALENTIM, Igor Vinnicius Lima. Remuneração Variável: subjetivação e produção do professor-vendedor. Educação & Realidades, Porto Alegre, v.40, n.3, jul./set., 2015.

A remuneração variável em si não é uma novidade. A importação de políticas neoliberais para o setor público e até mesmo para a área da Educação no Brasil também não o são. Mas a equação se torna mais complexa e preocupante quando se criam políticas que unem remuneração variável como instrumento para gerir a educação e o trabalho de docentes em escolas públicas.

Simone Torres Evangelista nasceu e sempre residiu no Rio de Janeiro. Filha de pai motorista e de mãe artesã e costureira, sempre estudou na rede pública de ensino. Pedagoga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre e doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Simone trabalha há mais de quinze anos na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ). Nos dois primeiros anos na Administração municipal, atuou como agente administrativo e, a partir de então, ocupou o cargo de professora, atuando como regente, coordenadora pedagógica, para além de cargos na gestão, tanto em Coordenadoria Regional de Educação (CRE) quanto na própria Secretaria Municipal de Educação (SME).

O livro Remuneração Variável de Professores: produzindo um superador de metas mergulha no universo das políticas de gestão da educação pública do município do Rio de Janeiro, com especial atenção aos impactos trazidos pela adoção da remuneração variável como política de gestão do trabalho docente. O que sentem os professores e professoras? Como lidam com essa política? Como isso afeta o trabalho que realizam, seus cotidianos, saúde e vidas? Essas são algumas das fundamentais perguntas que esse livro busca aprofundar.

A obra tem como principal objetivo analisar os impactos – na produção de subjetividades – da adoção da remuneração variável por desempenho como parte da política de gestão da educação e do trabalho dos professores da rede municipal de educação do Rio de Janeiro.

Utilizando-se de uma abordagem conceitual apoiada em autores como Deleuze, Guattari e Foucault, a autora compreende a remuneração variável de professores da PCRJ como uma política de subjetivação, ou seja, de produção de subjetividades. Neste sentido, em um trabalho denso e coeso, analisa as legislações que regem o trabalho docente na rede carioca, lócus bem escolhido por adotar essa política desde a eleição do atual prefeito Eduardo Paes e da consequente nomeação de Claudia Costin como Secretária Municipal de Educação à época.

Para além do estudo documental, a autora vai a campo em prosseguimento à pesquisa teórica já publicada por Educação e Realidade (Evangelista; Valentim, 2013), vivendo períodos de observação participante e realizando diversas entrevistas com docentes da rede.
No capítulo um, Mudanças na Gestão do Trabalho Docente, Evangelista analisa diversas mudanças relacionadas à gestão do trabalho ao longo da história. A obra tem um mérito digno de reconhecimento e, muitas vezes, raro nos dias atuais: vai aos originais de Taylor e de Ford para mostrar a atualidade de suas proposições e políticas, apontando, por exemplo, que Taylor já propunha a remuneração variável como indutora de comportamentos desejados pelas empresas.

Passeando por teorias administrativas mais recentes como o Toyotismo proposto por Ohno, a autora bebe em Foucault e aponta que ainda que possa ser admitido que as relações laborais sejam um pouco menos coercitivas que no início do século vinte, isso ocorre porque se percebe que é mais lucrativo que o poder seja exercido de modo mais tênue sobre os corpos. Esse capítulo também aborda transformações do capitalismo e indica efeitos do neoliberalismo na gestão do trabalho no setor público, para além da análise de diversos aspectos trazidos pela emblemática Reforma Gerencial da Administração Pública Brasileira e o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE). A partir da racionalidade administrativa presente no PDRAE, o capítulo mostra diversas mudanças no cenário da educação pública brasileira, na autonomia docente e na avaliação da educação brasileira.

Dois aspectos levantados pela autora são centrais para o debate proposto pelo livro: o aumento da responsabilização e as mudanças na avaliação educacional brasileira. Com relação ao primeiro aspecto, a autora salienta que com a reforma educacional trazida pela LDB (Brasil, 1996) aumenta-se a responsabilização, “[…] que atribui o fracasso escolar à falta de competência da escola e de seus professores, desconsiderando que a ação educativa é afetada por problemas estruturais” (Evangelista, 2013, p. 47). Aponta ainda que “[…] mais que uma reforma gerencial, o que se viu foi um mecanismo de reformatar os papéis dos servidores públicos e suas subjetividades, assim como ocorreu com os trabalhadores de empresas privadas com o advento da reestruturação produtiva do capitalismo” (Evangelista, 2013, p. 49).

Já com relação ao segundo aspecto, é fulcral notar que a avaliação educacional passa a incluir a cultura da performatividade (Ball, 2005), utilizando julgamentos, comparações, exposições de resultados e indicadores como mecanismos de controle. A utilização de provas de avaliação em massa, com suas consequentes políticas contemporâneas no Brasil, não deixam dúvidas de que cada vez mais a avaliação passa a se basear em números, convertendo a vida em morte (Ferreira, 1996) ou, nas palavras da autora, “[…] o uso do IDEB promove uma quantificação do desempenho das diversas instituições de ensino público do país e também um ranking das mesmas, na medida em que faz com que cada uma passe a ter um índice como objetivo, um número como meta maior” (Evangelista, 2013, p. 49).

Por fim, o capítulo mostra que apesar da remuneração variável, como política de gestão da força de trabalho, já ser usada há dezenas de anos, a novidade está justamente quando essa política, oriunda da gestão de organizações privadas voltadas exclusivamente para o lucro, chega a ser utilizada para a gestão do trabalho docente nas instituições escolares públicas, feito que, na SME/RJ, teve início em 2009.

O capítulo dois olha para a prefeitura do RJ como organização. Passando rapidamente por um breve histórico, a análise da estrutura organizacional conduz os leitores a compreender um pouco mais a respeito de como a SME se insere dentro do governo. Traz informações relevantes a respeito da então secretária de Educação, responsável pela implantação da remuneração variável como política de gestão do trabalho docente. Essas informações apresentam especial interesse já que, na sequência, a autora analisa a política educacional da SME iniciada desde então, tentando caracterizar a nova política de remuneração docente da PCRJ como supostamente meritocrática.

É no capítulo três que Evangelista avalia profundamente o plano de cargos, carreira e remuneração dos professores da PCRJ, bem como as mudanças introduzidas juntamente com a remuneração variável. Aponta como as metas de desempenho vão sendo introduzidas para a rede municipal de educação, com base no IDEB de cada unidade escolar. Junto com a responsabilização, é introduzido o prêmio para aqueles professores lotados em unidades escolares que atinjam suas metas, ou melhor, as metas estabelecidas para eles pela Administração Municipal, de cima para baixo.

Ao descer mais um degrau na profundidade da investigação e olhar para as legislações pertinentes à implantação da remuneração variável para professores da PCRJ, é possível notar como a prefeitura do RJ não relaciona o prêmio apenas ao atingimento das metas relacionadas ao IDEB, mas também ao número de ausências dos professores durante o ano letivo.

Que mérito então essa política supostamente meritocrática aborda? Nas palavras da autora,

[…] toda a legislação que regulamenta a nova política de remuneração variável por desempenho se baseia em uma gestão do trabalho que bonifica pelo suposto mérito de elevar o desempenho escolar dos alunos, medido pelo alcance das metas do IDEB ou IDERIO por unidade escolar. Essa ideia consiste em atrelar desempenho escolar, controle do absenteísmo e estímulo financeiro, aplicando o método de eficiência de Taylor à administração de pessoal. Método que, teoricamente, está longe de preocupar-se com as necessidades humanas. Com esse método, o que a PCRJ pretende, com sua nova gestão, é uma reconfiguração dos papéis funcionais através de estímulos e sanções que moldam comportamentos, fazendo surgir novas subjetividades ao levar o docente tomar para si metas que são da SME/RJ (Evangelista, 2013, p. 87-88).

Na mesma linha de argumentação, a autora afirma, ainda, que

[…] [h]á uma tendência de julgar e responsabilizar os docentes por uma situação que, muitas vezes, lhes foge ao controle, já que seu desempenho é medido através dos resultados dos estudantes nas avaliações externas (Evangelista, 2013, p. 89, grifo da autora).

A parte mais rica da obra está compartilhada com os leitores no capítulo quatro. Nele, a autora relata a pesquisa de fôlego que fez com professores de pelo menos cinco escolas da rede municipal do Rio de Janeiro, com o intuito de investigar como a remuneração variável por desempenho da PCRJ impacta a vida dos docentes. A autora chegou a fotografar marcas de tiros nas paredes de uma escola, conversou com professores da rede a respeito da remuneração docente, do plano de carreira, da mudança na remuneração docente na PCRJ e, obviamente, da remuneração variável e seus impactos no cotidiano desses professores.

São numerosas as polêmicas trazidas pela embasada pesquisa da autora que, sem romper as fronteiras da ética e preservando as identidades dos participantes da investigação, traz diversos exemplos de como a política implantada estimula a venda da educação, tratada como mercadoria.

Foram vivenciadas situações nas quais foi percebida a atuação de professores doentes para não perderem o prêmio. Surgiram também, nos diálogos trazidos pela obra, questões relacionadas à perda da autonomia docente, à utilização de cadernos pedagógicos (apostilamento) e ao direcionamento da prática em função das avaliações em massa, via treinamento de alunos. Apareceram também condutas de professores que sugeriam a seus alunos que fizessem provas a lápis, entre outras. Não seria exagerado o entendimento de alguns que consideram que a utilização da manipulação de resultados para garantir um adicional ao salário fere a ética na educação, reduzindo-a a mera mercadoria e estimulando um utilitarismo que enterra o compromisso social da função docente. Mas o livro não traz o intuito de culpabilização. Muito pelo contrário. A análise é fiel ao seu quadro teórico-conceitual ao apontar a triste constatação de que esses comportamentos são estimulados na medida em que se implanta uma política como a analisada.

Talvez um dos mais tristes efeitos da obra seja constatar como a política de remuneração variável premia o entendimento do estudante como meio, e não mais como finalidade da educação. E isso não ocorre sem o sofrimento dos professores. Se de um lado fazem o que podem para tentarem assegurar uma parcela adicional em sua baixíssima remuneração, de outro sofrem ao controlarem os colegas, os estudantes e a se controlarem cada dia mais em prol de objetivos e metas das quais nem sequer participaram da construção. Nas palavras de uma das professoras participantes da investigação:

[…] eu acho que eu não tô sendo mais eu, eu professora. Eu fico muito ansiosa por querer um dinheiro a mais (Evangelista, 2013, p. 153).
Outro depoimento é ainda fundamental para ilustrar o argumento aqui analisado: […] eu me sinto assim muito angustiada, é uma coisa que eu não consigo me adaptar. Quer dizer, eu me adapto, mas eu não aceito. Não acho que prêmio é bacana (Evangelista, 2013, p. 153).

A pesquisa mostra casos de problemas na saúde de professores e até de desistência e de burnout (Codo, 1999). A temática do adoecimento docente não é nova, porém, cabe observar-se – em estudos futuros – em que medida vem se intensificando com a nova política, principalmente em um momento que o valor do professor, na visão da Administração Pública, parece estar cada vez mais reduzido a ser um permanente superador de metas.

Nas palavras de Deleuze, “[…] não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas” (Deleuze, 1992, p. 212). Não se pode mais esperar para quebrar com a naturalização de políticas e objetivos que foram estabelecidos por outras pessoas e organizações e que não potencializam a vida. É fundamental nos questionarmos mais a respeito das implicações daquilo que fazemos, muitas vezes sem nos dar conta, daquilo que concordamos, inclusive quando silenciamos.

Em um mundo dominado por mercados de compra e venda, os índices que medem a qualidade da educação também estão à venda. E custam cada vez menos aos cofres públicos, comprometendo cada vez mais o cotidiano de professores e estudantes e a própria qualidade da educação se esta for compreendida como ligada à formação de cidadãos críticos.

Não importam as condições de vida dos estudantes, nem as condições de trabalho nas escolas, nem tantas outras numerosas influências no desempenho de um estudante. Também não importa o tipo homogeneizante e conteudista de avaliação realizado. Os estudantes foram convertidos em meios para avaliar o trabalho docente, como se seus desempenhos dependessem única e exclusivamente dos trabalhos destes professores e professoras. E, igualmente grave, como se suas notas em avaliações em massa pudessem ser relacionadas apenas à qualidade da educação. Só importam os resultados obtidos pelos estudantes nas avaliações em massa. Essa é a qualidade naturalizada por todos sem ter sido sequer discutida.

Construímos cotidianos nos quais a pressa é cada vez maior e a reflexão pouco valorizada e até mesmo criticada. Este livro é leitura obrigatória não apenas para professores, mas para estudantes, pais e todos aqueles que desejam um entendimento da educação pública que estamos produzindo. Ele nos dá a oportunidade de refletir que não existem completos inocentes com relação ao sistema educacional contemporâneo. Embora a responsabilidade daqueles que elaboram políticas cruéis tais como aquelas aqui apresentadas seja inegável, cada atitude nossa, inclusive a de permanecer em silêncio ou de não questionar aquilo que (vi)vemos, ajuda a construir, ainda que pelo consenso ou pela passividade, o que nem sempre temos a coragem de criticar em nossas atitudes.

Obra corajosa, não só pelo tema, mas por escancarar os mecanismos utilizados para tentar contornar pressões, conseguir remunerações minimamente dignas – que nunca se tornam justas perante a responsabilidade que têm. Por ouvir os professores e construir sem medo o triste modus operandi da educação pública carioca em nível municipal hoje. Resistências e possibilidades? Submissão e complacência? Tudo parece desesperador quando se pensa na educação que se está construindo, bem como nos meios e políticas utilizados. Nos hábitos e subjetividades.

A pesquisa aponta o caráter doente e criador de doenças de nossa sociedade. Traça conexões entre políticas de gestão, subjetividade, adoecimento e culpa. São desnudadas as políticas de subjetivação em curso, ligadas à gestão do trabalho e da vida, como importantes elementos na construção de modos de ver, sentir, estar e trabalhar que conduzem grande parte das pessoas a enfermidades que não são apenas físicas, mas sociais, econômicas e, simultaneamente, existenciais.

Este livro é um contra-ataque em prol de subjetividades mais comprometidas com outros mundos e valores, diferentes daqueles hoje dominantes em nossas sociedades doentes, construídas por relações baseadas na repetição, na morte, na competição.

Não parece coincidência que os meses de agosto e setembro de 2013 testemunharam mais uma greve dos professores da municipal do Rio de Janeiro. E uma das reivindicações foi justamente relativa ao fim da remuneração variável. Entretanto, com um sistema judiciário de cegueira muitas vezes duvidosa, a greve foi declarada ilegal.

Por fim, espera-se que a obra possa servir como estímulo na direção de lutas, mobilizações e resistências em prol da produção de outras subjetividades e da construção de outras concepções de educação e de vida.

Referências

BALL, Stephen. Profissionalismo, Gerencialismo e Performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v. 35, n. 126, p. 539-564, set./dez. 2005. [ Links ]

BRASIL. LDB. Lei 9394/96. Lei de Diretrizs e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996. P. 27833. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2014. [ Links ]

CODO, Wanderley (Coord.). Educação: carinho e trabalho. Petrópolis: Vozes, 1999. [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. [ Links ]

EVANGELISTA, Simone Torres. Remuneração Variável de Professores: produzindo um superador de metas. Rio de Janeiro: ComPassos Coletivos, 2013. [ Links ]

EVANGELISTA, Simone Torres; VALENTIM, Igor Vinicius Lima. Remuneração variável de professores: controle, culpa e subjetivação. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 3, p. 999-1018, jul./set. 2013. [ Links ]

FERREIRA, José Maria Carvalho. Pedagogia Libertária Versus Pedagogia Autoritária. 1996. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2014. [ Links]

Igor Vinicius Lima Valentim – É professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Jan Hus – cartas de um educador e seu legado imortal – AGUIAR (RBHE)

AGUIAR, T. B. Jan Hus – cartas de um educador e seu legado imortal. São Paulo: Annablume; Fapesp; Consulado Geral da República Tcheca, 2012. 444 p. Resenha de: NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Cartas de Jean Hus: Indícios de uma intenção educativa. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 15, n. 2 (38), p. 309-314, maio/ago. 2015

Partindo da proposta epistemológica de Carlo Ginzburg (1989), no ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário1, Thiago Borges de Aguiar procurou, em sua pesquisa, conhecer e interpretar a ação educativa de Jan Hus, pregador e importante intelectual, que viveu na Boêmia e morreu condenado pela inquisição em 1415. Ele procura os indícios de um educador, que esteve presente através de suas cartas. “Destas chegaram até nós cerca de uma centena, escritas no período de 1404 a 1415, com aproximadamente 80% em latim e o restante em tcheco” (AGUIAR, 2012, p. 39). Em que sentido essa documentação pode expressar a perspectiva educativa de Hus? É preciso ter em mente que a análise de fontes narrativas, como as cartas, sofre a interferência de nossos padrões conceituais, nem sempre compatíveis com a realidade em que foram concebidas. Presente, pois, esta ‘recomendação metodológica’, de aproximação com o passado medieval, dentro do que é possível ao pesquisador de hoje, o autor buscou por meio de dados, aparentemente negligenciáveis, remontar uma realidade complexa, seguindo pistas que poderiam elucidar a rede de relações em que o clérigo boêmio estava inserido, e o discurso educativo presente em seus escritos.

A primeira edição da correspondência de J. Hus foi realizada no século XVI, pelo reformador Martinho Lutero, intitulada Epistola Quadam Piissima et Eruditissima Iohannis Hus. Outras edições foram publicadas seguidamente. Destas Aguiar trabalhou diretamente com duas: a que chamou Documenta, editada por Frantisek Palacký no século XIX, e a outra Korespondence, publicada em Praga em 1920 por Václav Novotný. Tanto o Documenta quanto a Korespondence possuem traduções para o inglês. Grande parte das cartas foi escrita na prisão, no período em que Hus esteve cativo na cidade de Constança. Como a publicação de Lutero foi a precursora da preservação da correspondência, é preciso considerar que parte delas pode ter sido perdida.

O autor analisa a forma de se escrever cartas no século XV, destacando que, nessa época, o manuscrito deixou de ser um objeto quase sagrado, tornando-se um veículo de transmissão do saber. Essa mudança foi notória a partir do século XII com a organização das universidades. Outra importante transformação narrativa foi o aumento significativo da escrita pessoal, privada. Em relação à correspondência hussita, partes dessas cartas também podem ser consideradas pastorais, endereçadas a uma comunidade específica, ou seja, aos praguenses, especialmente os que frequentavam a Capela de Belém, espaço de pregação e vivência direta do clérigo boêmio. Outra parte considerável, um total de 107, é constituída por cartas pessoais que esperavam por resposta. Nessas fontes, o autor procurou indícios de uma intenção educativa em Hus, pois ele correspondeu-se com todas as camadas sociais da época. “Hus era professor da Universidade de Praga e pregador da Capela de Belém. Esses dois lugares marcaram os espaços a partir dos quais ele participou de uma rede de relações, por meio da correspondência.” (AGUIAR, 2012, p. 97). Suas cartas são consideradas pelo autor como artifícios de ensino. Nelas teria a intenção de aconselhar; continuar seu trabalho intelectual; elaborar uma refutação às diversas acusações que lhe foram imputadas; defender a verdade; dar continuidade à sua tarefa pastoral. A produção escrita de J. Hus é imensa, incluindo, além das cartas, diversos sermões, textos devocionais e teológicos. Entre estes, o mais conhecido e discutido no âmbito acadêmico é o Tratado sobre a Igreja (Tractatus de Ecclesia). Nesse texto, afirmou que o pontífice não seria o chefe da Igreja Universal, motivo fulcral em sua condenação à morte como heresiarca, pelo Concílio de Constança no século XV. Uma característica de seus escritos é o uso da língua tcheca e não somente do latim. Devido a isso, sua produção também possui grande valor linguístico. Na busca pelo educador, o autor afirma que Hus realizou ação educativa por meio de sua produção escrita e de seus sermões. Em sua feroz oposição à Bulla indulgentiarum Pape Joannis XXIII, construiu parte de sua argumentação por intermédio de seus sermões na Capela de Belém, e de debates realizados na Universidade de Praga, o que lhe valeu, mais uma vez, a excomunhão2. Outra aproximação discursiva é com Paulo de Tarso. Assim como Paulo, Jan Hus educava por meio de cartas, escrevendo por estar distante. Nelas também afirmava que poderia morrer por defender a verdade, assim como Cristo o fizera. “Ele precisa escrever para pregar e defender seus princípios” (AGUIAR, 2012, p. 168). Parte importante da produção das cartas hussitas, segundo o autor, foram suas narrativas de viagem. Em agosto de 1414, o clérigo da Boêmia anunciou sua decisão de aceitar o convite do rei Venceslau e ir à Constança. Em seu trajeto, enviava cartas detalhadas sobre as cidades pelas quais passava, e a forma como era recebido. Com sua prisão em Constança, seu estilo de escrita sofreu alterações. Aguiar analisa, então, como os temas prisão e morte tornaram-se constantes em sua correspondência. Sua concepção de ensino adquiriu, ainda mais, um viés religioso. Ao escrever ao povo da Boêmia, enfatizava a importância da salvação e do louvor a Deus.

Thiago Aguiar oferece importante contribuição de cunho histórico, quando analisa as cartas enviadas a partir do dia 18 de junho de 1415, data da formulação final da sentença de morte na fogueira. “Neste período entre 18 de julho, quando recebeu a versão final de suas acusações, até 6 de junho, quando ocorreu seu julgamento, condenação e morte, encontramos vinte e cinco cartas escritas por Hus” (AGUIAR, 2012, p. 205). Nestas narrou pormenores de seu julgamento e a impossibilidade de defesa, criticou a desorganização do Concílio, a incompetência e fragilidade intelectual de seus adversários. Elas serviram também como possibilidade de se defender, já que não obteve em Constança espaço real para explicar seu pensamento, expresso em seus escritos. Essas fontes singulares revelam a memória de seus últimos dias e sua convicção de luta pelo que considerava verdade.

Na terceira parte do livro, o autor desenvolve o que chama de construção de um educador por seu legado. Neste âmbito, demonstra como aqueles que foram influenciados por Hus reelaboraram seu legado em diferentes épocas e contextos. Um dos primeiros biógrafos de Hus foi Petr de Mladoñovice, também responsável pela preservação de suas cartas. Mladoñovice foi seu aluno na Universidade de Praga, tendo sido escolhido pelo nobre Jan de Chlum, a quem Hus dirigiu parte de sua correspondência, para acompanhar o clérigo da Boêmia até Constança. Após a morte de Hus, tornou-se professor na Universidade de Praga, assumindo aos poucos papel de destaque entre os Utraquistas3. Seu relato sobre J. Hus é intitulado Historia de sanctissimo martyre Johanne Hus4, primeiramente publicado em Nuremberg em 1528, também por influência de Lutero. Como o próprio nome revela, essa narrativa foi fundamental na construção de Hus como mártir. O mártir defensor da verdade. “Preservar a memória e a verdade por meio do fiel registro do que aconteceu durante o Concílio de Constança foi uma intenção e pedido do próprio Hus” (AGUIAR, 2012, p. 248). Em suas cartas, sempre repetia que não era um herege, e sim um defensor do que era a verdade. Petr de Mladoñovice é o responsável pela divulgação do que a tradição diz que seriam as últimas palavras do mestre Hus: “Tem piedade de mim, ó Deus, eu me abrigo em ti” e “[…] em tuas mãos eu entrego meu espírito”. Uma clara analogia aos últimos momentos da crucificação de Cristo, narrada no evangelho de São Lucas.

A partir da página 274, Aguiar passa a construir o trajeto da expansão da memória de Hus além de sua terra natal, ou seja, a Boêmia. Mesmo com as cinco cruzadas enviadas a essa região, após a eleição do papa Martinho V em 1418, a memória da vida e do sacrifício de Hus, e de seu companheiro e principal discípulo Jerônimo de Praga, também condenado à morte na fogueira em Constança, não parou de crescer. A igreja da Morávia, de influência hussita, é resultado do grupo conhecido como União dos Irmãos. Jan Amós Comenius (1592-1670), destacado educador, foi um de seus mais famosos bispos.

Sem dúvida, o mais importante divulgador do legado de Hus foi Martinho Lutero (1483-1546). Leitor dos escritos hussitas, ele o considerava um verdadeiro cristão. Foi, como já afirmado, o primeiro a publicar suas cartas. Essa divulgação da memória escrita de Hus ocorreu justamente na época do Concílio de Trento (1545-1563), claramente como uma advertência contra a injustiça. Os elogios de Lutero a Hus elaboraram, ao longo do tempo, outra imagem desse personagem, para além de mártir e defensor da verdade: a de precursor do protestantismo, ao lado de John Wycliffe (1328-1384). Lutero afirmou, no prefácio à segunda edição das cartas, que se Hus tivesse sido um herege, ninguém sob o sol poderia ser visto como verdadeiro cristão. Outro escritor protestante que contribuiu para a rememoração de Hus, como precursor reformista, foi John Foxe, que viveu na Inglaterra ainda no século XVI. Aguiar analisa a importância desse autor, entre outros, na introdução do pensamento hussita entre os protestantes. Foxe foi um dos primeiros a traduzir para o inglês os primeiros escritos sobre Hus, sendo também autor do Livro dos Mártires.

Na discussão sobre as traduções da obra de Hus, o autor diz que “[…] cada nova publicação das cartas de Hus é uma nova leitura, acrescentando interpretações e propondo mudanças na compreensão desta correspondência” (AGUIAR, 2012, p. 288). Na França, destaca a figura de Émile de Bonnechose (1801-1875), que publicou, em sua época, dois importantes livros sobre Hus. Entre eles, a biografia intitulada “Os Reformadores Antes da Reforma: Século XV”. Nessa obra, aparece uma nova imagem dos hussitas, como defensores da liberdade de consciência. O contexto da França revolucionária e anticatólica foi fundamental nessa nova reelaboração. Outra contribuição de Thiago Aguiar foi a apresentação de grande parte da historiografia tcheca sobre a reforma na Boêmia. Para ele, “[…] existiram muitos Hus, dependendo da época que se escreveu sobre ele” (AGUIAR, 2012, p. 301). As fontes são as mesmas, mas cada historiador reconstruiu o próprio personagem.

Outro destaque é o uso da figura de Hus como símbolo nacional, representação identitária para o povo tcheco. O nacionalismo do século XIX e a luta pelo fim da anexação ao Império Austro-Húngaro contribuíram para a rememoração do legado desse personagem. As várias mudanças políticas no mapa da região, a criação da Tchecoslováquia e da futura República Tcheca buscaram também em J. Hus uma simbologia, revelando a longa duração do imaginário sobre ele. Essa busca pelo Hus histórico o recriou através de um discurso laudatório e até apologético. Em relação à área da educação, ele também foi visto como o educador da nação tcheca. Outro viés do legado do clérigo da Boêmia foi a construção de sua primeira estátua em 1869 e de seu memorial em 1915. Por fim, o autor procura, no legado imagético de Hus, sua herança cultural. Dividindo a análise em rostos e cenas, Aguiar faz uma rápida discussão sobre algumas representações escultóricas, desenhos, gravuras e imagens construídas desde a idade média. Entre elas, destacou as de mártir, santo, intelectual pregador e defensor da verdade. Percebe-se a inter-relação da narrativa escrita com a imagética. De que maneira Hus é lembrado nos dias de hoje? É importante sua contribuição na área da educação?

Como um personagem é uma construção contemporânea, o livro em análise pode ser visto como um novo olhar, uma nova leitura sobre o clérigo da Boêmia, garantindo uma contribuição da historiografia brasileira, por meio de Thiago Aguiar, na rememoração e reconstrução discursiva de Hus, um indício de seu legado imortal.

Notas

1GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

2O papa enviou a sentença de excomunhão maior, que foi tornada pública em 18 de outubro de 1412.

3 Utraquistas é um dos nomes atribuídos ao grupo dos Hussitas, posteriores à morte de Jan Huss, que defendiam o oferecimento da comunhão com o pão e com o vinho (sub utraque specie) também para os

leigos. O utraquismo foi condenado como heresia pelos Concílios de Constança, Basiléia e Trento (AGUIAR, 2012, p. 245).

4 O relato de Petr foi publicado na Boêmia apenas em 1869 por Palacký, sendo posteriormente revisto, a partir de novas fontes, em 1932 por Novotný. Esta última edição é base para a tradução de Matthew Spinka em 1965. Essa versão é a que foi utilizada pelo autor (AGUIAR, 2012).

Renata Cristina de Sousa Nascimento – Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Participante do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos – UFPR). Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Mestrado em História). E-mail: [email protected]

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Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930) – SOUZA et al. (RBHE)

SOUZA, R. F.; SILVA, V. L. G.; SÁ, E. F. (Org.). Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930). Cuiabá: EdUFMT, 2013. 326 p. Resenha de: ERMEL, Tatiane de Freitas. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 15, n. 1 (37), p. 343-349, jan./abr. 2015.

A obra intitulada Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870- 1930), organizada pelas pesquisadoras Rosa Fátima de Souza, Vera Lúcia Gaspar da Silva e Elizabeth Figueiredo de Sá é fruto do projeto de pesquisa ‘Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930) – CNPq’, coordenado por Rosa Fátima de Souza. Publicada em 2013, consiste em um trabalho de fôlego, composto por nove capítulos, escritos por 23 autores, envolvendo 15 Estados brasileiros: Acre, Maranhão, Piauí, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O objetivo principal deste estudo visa compreender o processo de institucionalização das escolas graduadas em diferentes Estados, modos de circulação e apropriação de inovações e modelos pedagógicos.

No primeiro capítulo, ‘A escola modelar da República e a escolarização da infância no Brasil: reflexões sobre uma investigação comparada em âmbito nacional’, de autoria de Rosa Fátima de Souza, temos uma apresentação geral dos estudos, com explicação do projeto e as categorias de análise: o primeiro aborda os grupos escolares na História da Educação no Brasil e sua constituição como objeto de estudo. O segundo abarca questões teórico-metodológicas da história da educação comparada. No terceiro é apresentada a trajetória de pesquisa a partir dos quatro grupos temáticos organizados pelos pesquisadores: “[…] GT1 – Estudo do significado das iniciativas de adoção e das práticas geradas pelo método intuitivo e seus desdobramentos e inflexões a partir da difusão da escola nova; GT2 – exame da materialidade da escola primária graduada pelo estudo da cultura material escolar; GT3 – análise das representações sociais sobre os grupos escolares; GT4 – estudo da institucionalização da escola graduada nos vários estados do Brasil, considerando as reformas educacionais, a expansão das instituições escolares, a organização pedagógica e a relação entre os vários tipos de escolas primárias – escolas isoladas, reunidas, grupos escolares e escolas municipais, estaduais e privadas” (SOUZA, 2013, p. 38).

No quarto e último tópico, a autora coloca pontos importantes para a discussão da escola primária graduada e o desenho de uma nova agenda de investigação, privilegiando as análises comparadas, uma revisão das interpretações instituídas sobre o modelo de grupo escolar e a consideração do sentido de modernidade educacional, instituído na escola primária.

O segundo capítulo, ‘Os grupos escolares nas memórias e histórias locais: um estudo comparativo das marcas de escolarização primária’, de autoria de Antônio Carlos Ferreira Pinheiro, Antônio de Pádua Carvalho Lopes, Luciano Mendes Faria Filho e Fernando Mendes Resende, aborda os grupos escolares como acervo educacional brasileiro, priorizando os Estados de Minas Gerais, Piauí e Paraíba. Analisa essas instituições e seus movimentos de rompimento, modernidade e nova tradição educacional e escolar. Ainda, discute os grupos escolares enquanto foco nas pesquisas universitárias, na década de 1990, trazendo a necessidade de constituição de lugares de memória, de acordo com as reflexões propostas pelo historiador Pierre Nora.

Os autores buscam registros dos grupos escolares nos livros de história local e na perspectiva dos memorialistas. O material analisado compreende livros de história local (município, cidade) de 1910 a 2000 e livros de memória, de 1940 a 2000, totalizando 196 exemplares. O material aborda a fundação e a descrição física dos grupos escolares; seus primeiros professores; a memória de ter sido aluno; novas práticas pedagógicas; cultura material e cultura escolar; fiscalização do trabalho docente e eficácia do ensino; assim como a competição que os grupos escolares terminariam por estimular com outros tipos de escola. Os autores identificaram a fundação dessas instituições como momento marco na história da educação do município/cidade e a presença do nome lavrado nos prédios, que nem sempre eram adequados. Sobre os/as primeiros/as professores/as, eram descritos/as como exigentes, caprichosos/as, dedicados/as e eficientes. As memórias de alunos priorizaram os pioneiros, os nomes de colegas, os dias de prova, as transgressões às normas e idas à diretora. Com relação às práticas pedagógicas nos grupos escolares, destacam a formação e qualificação nas Escolas Normais, dentro dos princípios de inovação, modernização e atualização do professorado.

No terceiro capítulo ‘A escola primária e o ideário Republicanista nas mensagens dos Presidentes dos Estados (1893-1918)’, os autores José Carlos Araújo, Rosa Fátima de Souza e Rubia-Mar Nunes Pinto, analisam a relativa amplitude nacional a respeito da institucionalização dos grupos escolares no Brasil, a partir das mensagens dos presidentes das províncias. A investigação compara o ideário republicanista veiculado em dez Estados e um território (Acre), nos respectivos anos de instauração dessas instituições. Ainda, problematiza os modelos de república existentes e os princípios do federalismo. As mensagens analisadas entre 1895 e 1926, via de regra, são descritivas em relação ao andamento administrativo anual. A novidade escolar brasileira, desde o final do século XIX, foi a reunião de escolas em um só prédio, o ensino agrupado em centros populosos e a inadequação dos prédios e a falta de mobiliário. Os autores concluem que as mensagens apresentam os grupos escolares como modelo, a instrução primária como instrumento civilizatório, a necessidade de modernizar o método de ensino e o número elevado de escolas isoladas, apresentando um modelo de desigualdade e disputas entre poderes municipais e estaduais.

O quarto capítulo, ‘O Federalismo Republicano e o financiamento da Escola Primária no Brasil’, de autoria de Jorge Nascimento e Lúcia

Maria Franca Rocha, tem como objetivo analisar o financiamento da educação em 11 Estados, estabelecendo uma comparação entre cinco deles – Bahia, Goiás, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Sergipe. Salienta um silêncio dos estudos sobre financiamentos na historiografia, destacando que essa questão era central nos discursos sobre a instrução primária (edifícios escolares, pagamento dos docentes e outros servidores). A análise da documentação evidencia que os maiores gastos com a instrução pública eram com os edifícios escolares, sendo também significativos o com a inspetoria escolar (passagens/diárias). O financiamento da instrução pública também vinha de associações de homens entusiasmados, assinalando construções pelas associações de profissionais liberais, campanhas para arrecadações e doações de mansões, como, por exemplo, o Grupo Escolar Valadão, inaugurado em 1918, construído pela iniciativa particular e depois doado ao Estado.

O quinto capítulo, ‘A expansão da Escola Primária Graduada nos Estados na 1ª República: a ação dos poderes públicos’, de Alessandra Frota Martinez de Schueler, Elizabeth Figueiredo Sá e Maria do Amparo Borges Ferro, analisa a atuação marcante dos poderes locais (indivíduos, grupos sociais, familiares e municipalidades) nos processos de criação e implementação de escolas em suas diferentes modalidades. Foram 11 Estados abordados (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Bahia, Rio Grande do Norte, Maranhão, Sergipe, Piauí, Acre), merecendo destaque a participação mais efetiva dos municípios de Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo na criação dos grupos escolares e na manutenção de prédios próprios. Neste capítulo, as autoras não apresentaram claramente os Estados abordados, necessitando o leitor buscar ao longo do texto os marcos espaciais do estudo.

O sexto capítulo, de Elizabeth Miranda Lima e Maria Auxiliadora Barbosa Macedo, ‘A institucionalização do modelo de Escola Graduada’, analisa a institucionalização da escola graduada no Brasil em seu o processo de circulação, recepção e apropriação do modelo pedagógico nos Estados do Acre, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e Rio de Janeiro. As autoras destacam a força material e ideológica dos grupos escolares no Brasil, dividindo o estudo em quatro grandes eixos: a crença na instrução primária como instrumento de melhoria individual e de progresso econômico e social; a organização e a institucionalização da educação primária com modelos e modalidades de escola, prevalecendo a modalidade de escola primária elementar e escola primária complementar, distribuídas em áreas rural e urbana; as finalidades educativas e organização curricular na escola primária republicana visavam melhorar o ser humano e a sociedade, promovendo o valor unificador atribuído pela república à educação; as avaliações e exames como marcos de encerramento, ordenamento e homogeneização. A análise comparada dos Estados apresenta traços comuns, regularidades e particularidades, principalmente quanto à visão de educação como via de progresso social. Também, destaca o currículo ideal de nacionalidade: língua portuguesa, conhecimentos matemáticos, educação física, lições de coisas (saúde, higiene e ciências) e saberes vinculados ao mundo do trabalho (agricultura, marcenaria, jardinagem e artes domésticas).

O sétimo capítulo, ‘A criança, educação de escola (São Paulo, Nordeste do Brasil, 1890 1930)’, de Marta Maria de Araújo, examina a institucionalização da escola primária republicana em São Paulo, Sergipe, Maranhão Piauí, Rio Grande do Norte e Bahia, a partir da leitura de fontes documentais diversas. Primeiramente, destaca o papel modelar atribuído ao Estado de São Paulo. Apresenta os diferentes modelos de escolas públicas – preliminar, primária, elementar, grupo escolar, escola modelo, escola reunida, escola isolada, escola singular, externato, escola proletária, escola superior, escola de leitura, escola rudimentar, escola ambulante, escola rural – como prolongamento da forma política republicana, ou seja, de reprodução, no plano da escolarização, da ordem social vigente (disciplina, ordenamento, hierarquia). Para finalizar, salienta a diferenciação dos programas, tempo de curso e formação do professor, criando a distinção em que cada tipo de escola recebia um modelo social de aluno, sendo a escola modelo e o grupo escolar exemplos de superioridade.

No oitavo capítulo, ‘Modernidade metodológica e pedagógica do método intuitivo: Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo (1906-1920)’, de Vera Teresa Valdemarin, Gladys Mary Ghizoni Teive e Juliana

Cesário Hamdan, são analisadas as reformas educacionais, a comparação ao modelo europeu e americano e a discussão e aplicação do método intuitivo em vários Estados do Brasil. As autoras apontam que o marco inicial da circulação de ideais e difusão de modelos foi protagonizado pelo debates de Leôncio de Carvalho e Rui Barbosa (1879 a 1886). É identificada uma dicotomia entre dois polos, ou seja, os indicadores de inovação versus as dificuldades para implementá-la. A situação compreendia novos atores, territórios e dispositivos legais, como, por exemplo, o Estado de São Paulo e a Reforma da Escola Normal. As autoras analisam o método intuitivo a partir de impressos, modelos, práticas e interpretações, como na revista Eschola Publica, de São Paulo; os relatórios dos grupos escolares, de Minas Gerais; as reformas de Santa Catarina e a filiação à pedagogia moderna e seus principais ícones: Pestalozzi, Compayré, E. Rayot, Jules Paroz, Horace Mann, Celestin Hippeau; Buisson, Spencer, Gustave Le Bon e, especialmente, Norman

Allison Calkins. Para concluir, salientam as tensões entre o pretendido e o realizado, sendo que o analfabetismo da maioria da população conduz para uma redução de tempo e programa, a obrigatoriedade e a autonomia didática.

O último capítulo, ‘Cultura material escolar (Maranhão, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) 1870-1925’, de César Augusto de Castro, Diana Gonçalves Vidal, Eliane Peres, Gizele de Souza e Vera Lúcia Gaspar da Silva, atenta seu olhar para o estudo da cultura material. Os autores mostram a conexão entre inovação pedagógica e inovação material que, desde o século XIX, atribui a aquisição de novos objetos à qualidade do ensino, descartando antigos para dar lugar aos novos. Os autores demarcaram cinco tipos de fontes: carta do professor e da escola; documentos administrativos (como lista de materiais, almoxarifado, inventários); relatórios; jornais; e legislação. Organizaram as categorias de análise em: mobília, utensílios de escrita, livros e revistas escolares; materiais visuais, sonoros e táteis; para ensino, organização/escrituração da escola; prédios escolares; material de higiene; trabalho dos alunos; indumentárias; ornamentos; honrarias; jogos e brinquedos. Dois quadros elaborados pelos autores são significativos para compreensão do estudo, o primeiro sobre instrumentos e suportes para o ensino da escrita (almofadas, borrachas, canetas, penas, tinteiro, entre outros) e o segundo sobre suportes para escrever (lousa, papeis, cadernos, quadros, entre outros). As conclusões mostram a existência de uma relativa uniformidade em relação à cultura material e os Estados pesquisados, no entanto, esse elemento faltou ser explorado na escrita como um todo, trazendo exemplos e discussões ao longo do texto.

No intuito de finalizar minha incursão e abordagem acerca da obra, como toda a resenha propõe, reforço a sua importante contribuição para a história da educação primária brasileira, no momento de sua construção física e ideológica. O direcionamento do olhar, não apenas para as escolas modelo e grupos escolares, mas para a permanência e significância numérica das escolas isoladas, por todo o território nacional, consiste em um movimento produtivo de pesquisa na área. O estudo comparado de 15 Estados, descrevendo uma relação constante entre unidade e diversidade, consiste em um desafio que deve ser encarado por mais pesquisadores, abarcando temas, teorias, metodologias, fontes e problemáticas que ainda silenciam ou pouco se comunicam nesse vasto terreno de possibilidades.

Sinalizo, ainda, a necessidade de avanços, no sentido de seconfigurar uma cartografia acerca da escola primária no Brasil, na perspectiva da longa duração. A publicação de uma obra como esta, ao contrário de um sentimento de fechamento, torna mais visíveis os vácuos existentes, as incompletudes e os caminhos que urgem serem percorridos.

Tatiane de Freitas Ermel – Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS e bolsista Capes-Prosup. Mestre em Educação PPGE/PUCRS; Licenciada e Bacharel em História FFCH/PUCRS. E-mail: [email protected]

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A formação de padres no nordeste do Brasil (1894-1933) – BARRETO (RBHE)

BARRETO, R. A. D. N. A formação de padres no nordeste do Brasil (1894-1933). Natal: EDUFRN, 2011. Resenha de: SANTOS, Laísa Dias Santos ; LIMA, Solyane Silveira. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 15, n. 1 (37), p. 335-341, jan./abr. 2015

Ao descortinar os fundamentos, bem como os modelos escolares que dirigiram e orientaram a formação sacerdotal, no Seminário Sagrado Coração de Jesus, criado em 1913 em Sergipe, e no seu precursor, o Seminário Nossa Senhora da Conceição, fundado em 1894 na Paraíba, o livro procura estabelecer um estudo comparativo entre os referidos seminários, as distintas etapas pelas quais passaram essas instituições e os produtos dessa formação. Nesta obra, produto da tese de doutoramento de Raylane Andreza Dias Navarro Barreto, dois personagens ganham destaque. O primeiro é Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques, primeiro bispo da Diocese de João Pessoa, fundador do Seminário da Paraíba e mentor intelectual do segundo personagem, Dom José Tomás Gomes da Silva, primeiro bispo da Diocese de Aracaju, bem como bispo fundador do Seminário Episcopal Sagrado Coração de Jesus.

Por meio do método histórico comparativo aplicado à educação, a autora investiga as ações de Dom Adauto e Dom José, como ficaram conhecidos, revelando que o modelo de formação dos seminários de João Pessoa e Aracaju constituiu não só sujeitos voltados para a catequização, ‘recrutamento de fiéis e solidificação da fé’, ou seja, padres que atuaram no púlpito da igreja, mas também padres-professores, padres-militantes, padres-jornalistas, padres-escritores, padres-políticos, enfim, intelectuais que atuaram dentro e fora da Igreja Católica Apostólica Romana.

O estudo detalhado, profundo e complexo, realizado por Barreto em sua obra, permite que o leitor adentre nos seminários, convidando-o a conviver com os padres de Dom José e Dom Adauto no período de 1894 a 1913. Para tanto, o leitor deve passar por cinco capítulos. Neles, a autora dialoga com o sacrossanto e ecumênico Concílio de Trento (1781),

Azevedo (1963), Leite (1945), Hansen (2001), Ratio Studiorum (1952), Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), Matos (2002, 2003, 2004), Hauck (1992), Pratta (2002), Alves (2001, 2002), Nogueira (1985), Sangenis (2004) e Miceli (1998). Além disso, utiliza as noções comparativas de ‘modelo escolar’, segundo Araújo e Barros (2004), para pensar a estrutura organizativa da instituição, e ‘intelectuais’, de acordo com Jean François Sirinelli (1996). Inspirada pelos estudos deste autor, Barreto considera que a noção de intelectual pode ser definida de duas formas. A primeira, mais ampla e sociocultural, envolve os criadores, sujeitos que participam da ‘concepção artística e literária ou do progresso’ e os mediadores, que contribuem na difusão e expansão do que foi criado. Já a definição mais estreita de intelectual refere-se aos engajadores, sujeitos que se unem a uma causa, sendo conhecidos pela sociedade por se colocarem a serviço dela. A própria consideração da autora sobre as noções de modelo escolar e intelectuais torna-se de grande relevância para pensar as questões propostas pelo livro, pois, como assevera Barreto,

[…] o modelo escolar aplicado nos Seminários brasileiros criados após a política de laicização tratou-se de um modelo com uma matriz única (com formação em seminários e objetivos predispostos pela Santa Sé), embora adaptada, em alguns pressupostos, à realidade local e que, por sua estrutura formativa (privilegiando não só o espiritual e o moral, mas também o intelectual), foram responsáveis por gerações de “intelectuais” (professores, jornalistas, escritores, etc.) que alavancaram a educação escolar no Brasil, nas três primeiras décadas da República, quando, na teoria, o Estado era laico, ou dentre outros fatores, não mais contava com o auxílio da Igreja para o ensino público no país (BARRETO, 2011, p. 49).

É com base em tal pressuposto que a autora elabora os capítulos que compõem a obra. Desse modo, no primeiro capítulo, intitulado ‘Ponto de partida para a investigação histórica da formação sacerdotal no Brasil’, ela realiza um apanhado histórico sobre a formação dos sacerdotes brasileiros a partir de momentos chave na definição e estruturação dessa constituição, enquanto no segundo, nomeado ‘Em que fundamentos doutrinários assentou-se a formação sacerdotal dos tempos modernos?’, são abordados os fundamentos doutrinários que sustentaram a formação de padres romanizados. ‘Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques e Dom José Tomás Gomes da Silva na construção de seus edifícios institucionais católicos’ é o terceiro capítulo. Nele, é construída uma análise dos perfis biográficos dos bispos Dom Adauto e Dom José, como também da identidade institucional, forjada pelos seminários de João Pessoa e Aracaju. No quarto capítulo, intitulado ‘O procedimento formativo no Seminário Nossa Senhora da Conceição de João Pessoa e no Seminário Episcopal do Sagrado Coração de Jesus de Aracaju’, Barreto revela os procedimentos de formação, implementados nos seminários, mostrando semelhanças e divergências entre os modelos e organização escolar. Por fim, no quinto capítulo, que recebe o título de ‘Os padres de Dom José e Dom Adauto’, a autora identifica, por meio do método prosopográfico (biografias coletivas), a identidade cultural e educacional produzida pelas duas instituições.

Ao fim dos capítulos, Barreto apresenta de forma singela e detalhada um conjunto de informações que traçam a biografia, a inserção nos seminários, as funções, as formações dentro e fora dos muros da Igreja Católica, a produção intelectual e a carreira sacerdotal dos 185 seminaristas (141 no Seminário de João Pessoa e 44 no Seminário de Aracaju). Vale ressaltar quão rica foi essa iniciativa para aqueles que se interessam pelas marcas deixadas por esses seminários nos campos religioso, formativo educacional e intelectual.

Inicialmente, a autora explica a conjuntura pela qual passou a Igreja Católica, acreditando que é da experiência que despontaram os alicerces para o melhor modelo de formação sacerdotal. Assim, ela chama a atenção para o ano I da Era Cristã, da qual emergem as raízes da Igreja Católica Apostólica Romana, iniciada por Cristo e dirigida por seus seguidores, em uma ordem que compreende os apóstolos como pioneiros, seus sucessores, os ‘padres apóstolos’, e mais tarde os papas. Entre os séculos II e V a igreja passou por um processo de expansão, tanto no que diz respeito à estrutura física quanto pela propagação na Europa da doutrina cristã elaborada pelos padres da igreja, como também pelo caráter mais intelectualizado dos seminaristas.

Ao adentrar o período que compreende os séculos V ao XV, a autora destaca os novos rumos que a Igreja Católica foi obrigada a tomar, acalorada por uma busca constante de poder, que começaria a ser disputado com a recém-fundada igreja de Martinho Lutero (1483-1546), idealizador da Reforma Protestante. Barreto ressalta que os intelectuais do Concílio de Trento estabeleceram uma reformulação no processo de formação de futuros padres. A proposta, segundo ela, ao citar Pierrard (PIERRARD, 2002, p. 256 apud BARRETO, 2011, p. 75), seria “[…] um ser isolado, embora colocado no coração do mundo, cuja perfeição deverá exceder a dos religiosos e cuja acção terá de estar constantemente associada à de Cristo”. Para tanto, essa nova formação inicial aconteceria em um seminário e seria complementada nas universidades, a exemplo do Colégio Romano, elevado à categoria de Academia em 1556.

Assim, outra importante contribuição trazida pelo livro é, decerto, a atuação dos padres incumbidos do ministério do ensino, em especial a Companhia de Jesus, que, atuando ao mesmo passo que outras ordens religiosas, intensificou a presença da igreja na Europa, na Ásia, na África e na América a fim de (re)conquistar os fiéis num período que se seguiu de grandes descobertas científicas, mudanças ideológicas, laicização e enfraquecimento/repartição da igreja. Como destaca a autora, não obstante, o Brasil do início de século XX também passou por essas mudanças ideológicas, políticas e religiosas, e, assim como no mundo, romanizado pela igreja, “[…] adere ao ultramontanismo e intensifica sua reforma que tem como principal ponto de partida a (re) formação de seus quadros eclesiásticos” (BARRETO, 2011, p. 90). Para liderar essa mudança, um novo perfil de padre deveria ser criado: ele deveria ser jovem, com competências evidentes, advindas de famílias de prestígio, a maioria delas de origem rural. O Seminário Nossa Senhora da Conceição, de João Pessoa, e o Seminário Episcopal do Sagrado Coração de Jesus, em Aracaju, dirigidos, respectivamente, pelos bispos Dom Adauto Aurélio de Miranda e Dom José Tomás Gomes da Silva, foram resultados desse processo de mudanças. Embora em tempos distantes, a autora destaca que ambos agiram como intelectuais criadores e engajadores, na medida em que operaram como estrategistas, disseminando os fundamentos teológicos doutrinários e proporcionando, dessa maneira, estabilidade à igreja romanizada.

Assim, sustentados pelos referenciais religiosos da época, Dom Adauto e Dom José pintaram os edifícios institucionais diocesanos com uma organização administrativa composta por reitor, diretor espiritual, prefeito e vice-prefeito, padres-professores e ecônomo, este último cargo encontrado apenas no Seminário de João Pessoa, como observou a autora. Outro aspecto bem abordado foi a organização escolar traduzida pelo rígido processo de admissão como também pelos saberes a serem perpassados e as condutas inculcadas nos cursos inferiores e superiores que em 1927 foram redistribuídos em três cursos: o Preparatório, o Filosófico e o Teológico; os espaços e os edifícios, ora construídos, ora incorporados a outras instituições; a imposição de severas regras comportamentais; e a precisão do tempo e horário. Além disso, a autora apresenta o método de ensino, marcado indistintamente pela mistura do método tradicional, que se dava por meio da decoração e repetição, com o método intuitivo, que consistiria na pedagogia dos sentidos e da observação, o qual, segundo o decreto n° 981, deveria prevalecer dentre qualquer outro.

Por tudo isso, o livro deixa uma forte contribuição para a História da Educação, pois possibilita um fértil caminho de problematização entre o real dos seminários e o idealizado pela Santa Sé e o Estado. Ao perceber que dentro dos seminários de João Pessoa e Aracaju havia uma cultura escolar que se adequava às peculiaridades locais e à ‘pedagogia do exemplo’, que por vezes se apresentavam semelhantes às prescrições religiosas e educacionais dispostas, a autora assevera que tais aspectos proporcionaram aos padres ordenados pelos seminários uma atuação intelectual multifacetada. Demonstrando, no capítulo cinco, que Dom José e Dom Adauto, como intelectuais, formaram, nos seminários em que atuaram, um perfil de padre, com funções múltiplas, em que a missão pastoral está associada a outros tipos de trabalho, fosse dentro ou fora da igreja, nas associações culturais ou educacionais, na impressa ou na política, no púlpito ou nos livros, conclui que

As similitudes encontradas na formação ministrada aos seminaristas e nas ações dos padres ordenados pelos dois Seminários diocesanos católicos com sua estrutura formativa, privilegiando não só o espiritual e o moral, mas também o intelectual, foram responsáveis por gerações de “intelectuais” que alavancaram a educação escolar no Brasil, nas três primeiras décadas da República, quando em teoria, o Estado era laico (BARRETO, 2011, p. 234).

Dessa maneira, a autora comprova que o método uniforme de organização pedagógica, vinculado à construção de uma pedagogia própria, constituiu-se no modelo escolar adotado pela Igreja Católica, que pretendia desenvolver uma educação integral (que coadunasse o intelectual, moral e o espiritual) para a formação eclesiástica. Portanto, comprova a tese de que os seminários diocesanos católicos, a partir da sua estrutura formativa e de uma educação integral, foram responsáveis por gerações de intelectuais que alavancaram a educação escolar no Brasil nas três primeiras décadas da república.

Com o estudo realizado, Barreto deixa importante contribuição para se avançar na reflexão sobre a formação de padres no Nordeste brasileiro, mostrando que a temática é muito mais complexa e vai além da questão religiosa: ela se projeta no campo das mudanças educativas, políticas, culturais e ideológicas, continuando como uma história inacabada, repleta de objetos de estudos a serem investigados. Desse modo, a formação de padres nos seminários de João Pessoa e Aracaju, da maneira com que foi abordada pela autora, aponta a necessidade de se repensar o papel dos padres, da Igreja, do Estado e da instituição educativa nas primeiras décadas do período republicano. Certamente, uma obra de referência para os que se interessam pelo tema.

Laísa Dias Santos – Mestranda em Educação pela Universidade Tiradentes com Bolsa Capes/FAPITEC/SE. Graduada em Serviço social pela mesma instituição. É membro do Grupo de Pesquisa Sociedade, Educação, História e Memória- GPSEHM, e sócia da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE). Tem experiência com Metodologia da História Oral, narrativas de histórias vida e memória. Atualmente vem consolidando pesquisas sobre a Escola primária sergipana no período entre 1930 e 1961. E-mail: [email protected]

Solyane Silveira Lima – Pós-Doutoranda em Educação na Universidade Tiradentes (UNIT). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2013) com Estágio Sanduíche na Universidade de Lisboa (2012). Mestre em Educação (2009) e Graduada em Pedagogia (2005) pela Universidade Federal de Sergipe – UFS. Membro da SBHE (Sociedade Brasileira de História da Educação) e do GEPHE (Centro de Pesquisa em História da Educação/UFMG). E-mail: [email protected]

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Práticas pedagógicas para a inclusão e a diversidade – CUNHA (REE)

CUNHA Eugenio Professor e jornalista e colunista do DIA Foto Divulgacao Discurso de ódio
Eugênio Cunha. Professor e jornalista e colunista do DIA. Foto: Divulgação.

CUNHA E Praticas pedagogicas para inclusao e diversidade Discurso de ódioCUNHA, E. (Org.). Práticas pedagógicas para a inclusão e a diversidade. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2011. Resenha de: Resenha de: BRITO, Jessica de; ORLANDO, Rosimeire Maria. Revista Educação Especial, Santa Maria, v.28, n.51, p.241-244, jan./abr., 2015.

A participação das pessoas com necessidades educacionais especiais (NEE), na sociedade, é recente, principalmente por ter sido levado em conta pressupostos arraigados sobre anormalidade e deficiência ao longo da história da humanidade. Desde longe, do período da era clássica aos tempos atuais, muitas foram as concepções cultivadas sobre as pessoas com deficiência, bem como de seu papel na sociedade. (JANNUZZI, 2006)

Em consequência dessas concepções, o processo de direcionamento das pessoas com NEE à educação lentamente vem sendo conquistado, juntamente com o da população em geral, e, partindo deste fato, o livro Práticas pedagógicas para inclusão e a diversidade, organizado pelo autor Eugênio Cunha – professor, pesquisador e integrante do grupo de pesquisa em Políticas Públicas de Educação da Universidade Federal Fluminense – GRUPPE/UFF/CNPq – reúne experiências e práticas ocorridas em seu cotidiano docente sobre alunos com NEE. A obra é constituída, de modo geral, pela importância da educação inclusiva, sendo esta temática hoje em dia bastante discutida na academia.

Organizado em onze capítulos, o livro tece reflexões sobre a diversidade na escola e na sociedade, currículo inclusivo e a estimulação dos alunos com NEE, sobre as etapas da atuação docente, bem como sobre a importância da família no processo de inclusão escolar e social.
No âmbito da historicidade, no primeiro capítulo, intitulado “Um pouco sobre diversidade, escola e inclusão”, Eugênio Cunha utiliza-se de uma linha do tempo para explicar como a educação inclusiva esteve/está presente em todas as épocas e lugares, enfocando que, mesmo para as pessoas com NEE, a escola é lugar de suma importância para o desenvolvimento social e cognitivo delas, capaz, por sua essência, de cumprir a mais elevada destinação social do saber: o aprendizado do saber sistematizado.

Quando o assunto é currículo escolar inclusivo, o autor, em seu segundo capítulo, intitulado “Um currículo inclusivo”, ressalta que este deve estar articulado com as dinâmicas sociais provenientes dos educandos, ter como ponto de partida o cotidiano do aluno. Além disso, ressalta a importância da construção de um currículo com a participação da equipe escolar, abrangendo desde professores até gestores e familiares, ou seja, uma equipe que efetive a funcionalidade do currículo para a vida escolar e social do aluno.

No terceiro capítulo, intitulado “O que estimular no aluno?”, o autor destaca as habilidades que todos os alunos, incluindo aqueles com necessidades especiais, devem aprender dentro da escola, sendo elas: Afetividade; Socialização e ludicidade; Linguagem e comunicação; Educação Psicomotora; Música e Arte; e contar com uma boa alimentação. A par de tais habilidades, o autor acredita que o professor poderá atuar, de forma eficaz, para superar tanto as dificuldades de si mesmo como a de seus alunos com NEE.

Em seu quarto capítulo, “Teoria e prática: utilizando ideias pedagógicas para educar”, discute a questão de que a escola contemporânea não pode ser inflexível e estanque, já que a inteligência dinamicamente está em constante adaptação e, por meio de estímulos, mune-se de habilidades emocionais, cognitivas e criativas. Por isso, os professores necessitam tanto do conhecimento que adquirem em razão do exercício da prática docente quanto das diversas teorias pedagógicas que dão suporte ao trabalho. Nesse contexto, Eugênio Cunha põe em destaque as teorias de Piaget, Vygotsky, Ausubel e Paulo Freire.

Nos capítulos quinto e sexto, intitulados, respectivamente, “Estágios da aprendizagem discente” e “Etapas da atuação docente”, o autor revela-nos que há quatro estágios da aprendizagem, sendo o primeiro o estágio diretivo – que depende invariavelmente da presença do professor; o autônomo – em que o aluno adquire a capacidade de aprender novas habilidades por iniciativa própria; o criativo – que abarca modificações operadas pelo aprendiz, que vão desde executar novas tarefas até manusear materiais e, por último, o estágio colaborativo – com produções individuais ou em grupo, socializando o saber produzido, tanto pelo educando quanto pelo educador. Já em relação às etapas da atuação docente, o autor enfoca três etapas do trabalho pedagógico, sendo a primeira a observação, que é uma das etapas do método científico, em que os elementos observados são catalogados e organizados para, posteriormente, serem analisados. A segunda etapa é a avaliação, sendo esta objetiva, ou seja, que compreende o comportamento do aluno diante dos instrumentos de ensino e aprendizagem. Esta etapa torna-se, desse modo, um mecanismo de melhoria nas decisões que virão a seguir, pois está direcionada à aprendizagem discente. A última etapa é a mediação, que é aquela na qual o professor utiliza-se de atividades que permitirão o melhor desenvolvimento do aprendente, ou seja, o que mais interessa a este.

Sobre “O que é preciso saber? Um olhar sobre algumas necessidades especiais mais comuns na escola”, o sétimo capítulo ressalta algumas observações que podem auxiliar os professores na sua prática. Discute temas importantes como o Autismo, a Síndrome de Down, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDHA), Transtornos Emocionais, dentre outras. Colabora sobremaneira ao trazer à tona algumas atividades interessantes a fim de aguçar, além da motricidade e do cognitivo, a criatividade e a afetividade de seus alunos com e sem NEE.
Com tais considerações, leva o leitor a concluir que a família sempre deve estar presente na escola para que a inclusão seja efetiva, já que a tríade escola, família e sociedade favorece a formação de todos os alunos. Os capítulos oitavo e nono, intitulados “Família e escola” e “O afeto e suas três dimensões: pessoal, social e pedagógica”, dá enfoque à emoção como uma das forças motrizes do processo de inclusão do aluno com NEE na escola.

Para finalizar, os dois últimos capítulos, décimo e décimo primeiro, respectivamente com os títulos “Breve histórico de políticas inclusivas” e “Propostas de atividades”, Eugênio Cunha apresenta um trajeto das políticas destinadas à educação especial no Brasil, propondo algumas atividades práticas que poderiam ser apropriadas pelos professores, bastando, para tanto, utilizar-se de criatividade para que tomem corpo e, assim, contribuam para a prática inclusiva.

As discussões encontradas nesses textos revelam ao leitor uma visão mais clara sobre a Educação Inclusiva, enfatizando-lhe a importância para o processo de inclusão de alunos com NEE dentro da escola.

Enfim, ao recebermos alunos com NEE em nossa sala de aula, perguntamos: Como educá-los? Como incluí-los? Em seu livro, Eugênio Cunha aponta os elementos que podem colaborar na busca de respostas para tais perguntas nitidamente importantes na área educacional. As discussões levantadas no livro proporcionam ao leitor inúmeras reflexões, sobretudo em relação às práticas pedagógicas que devem ser consideradas para esse alunado e, também, sobre os conteúdos curriculares a serem utilizados para ele, ressaltando os anseios e desejos desses sujeitos que, assim como todos, têm o direito à educação e à cidadania.

Jessica de Brito – Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Educação. E-mail: [email protected][email protected]

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Educação básica, educação superior e inclusão escolar: pesquisas, experiências e reflexões – CARVALHO et al. (REi)

CARVALHO, M.B.W.B. de; COSTA, V.A. da; MIRANDA, T.G. (Org.). Educação básica, educação superior e inclusão escolar: pesquisas, experiências e reflexões. Niterói: Intertexto, 2012. (Educação e vida nacional n. 6). Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 1, p. 225-229, jan./jun. 2015.

O livro “Educação básica, educação superior e inclusão escolar: pesquisas e reflexões” é resultante da 2ª Reunião Anual Projetos CAPES-PROESP/PROCAD –NF ocorrida em dezembro de 2011 cujos objetivos foram: divulgar os Projetos CAPES-PROESP/PROCAD-NF, uma parceria entre a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Federal Fluminense (UFF) quanto aos estudos de políticas educacionais e a formação de professores. O tema foi “formação de professores e autonomia docente: desafios à escola pública” e, além das instituições envolvidas nos Projetos citados, contou com a participação da secretaria de estado da educação do Maranhão, das secretarias de educação dos municípios de São Luís/Maranhão, Imperatriz/ Maranhão e Niterói/Rio de Janeiro, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e a comunidade em geral.
A obra trata de abordagens diversas da inclusão. Os autores são professores das instituições participantes da reunião, do Departamento de Posgrado e Investigación, Dirección de Educación Superior, Serviços Educativos Integrados al Estado de México (SEIEM) e alunos da pós-graduação em educação da UFMA e da UFF. A maior parte dos estudos nela apresentados está concentrada na escola de educação básica e na universidade. Movimentos sociais também são discutidos no que diz respeito à luta das pessoas com deficiência pela educação. Ainda compõe a obra anexo contendo resumos de projetos de dissertação e de iniciação científica articulados ao PROESP e PROCAD que, abordando a inclusão, enfocam: as salas de recursos multifuncionais; o projeto político pedagógico de um escola de ensino médio; a formação de professores da educação infantil e a implementação da política de inclusão em um escola pública.

Como subtemas, são discutidos: formação e trabalho de professores; legislação e/ou diretrizes políticas; relação entre políticas e cultura institucional e prática escolar; projeto político pedagógico; educação de pessoas com deficiência intelectual e múltipla; acesso e permanência de pessoas com deficiência na educação superior e o percurso da educação especial até o direcionamento para a inclusão.

A perspectiva da educação inclusiva trouxe para o debate as condições da educação pública para acolhimento de TODOS, inclusive os que apresentam deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Acolhimento esse que deve significar acesso, permanência e sucesso na aprendizagem.
Assim, a socialização de estudos que problematizam a inclusão pode trazer contribuições importantes para a sua efetivação.

Segura, no capítulo “Acompañamiento Formativo: ¿qué connotaciones tiene en procesos de formación de profesionales de la educación?”; Costa, com “formação de professores e educação inclusiva” Silva-Perdigão, no texto “Rita, a professora que foi escutada”; Oliveira, no capítulo “A política de educação inclusiva e suas implicações na formação inicial de pedagogos(as)” e Sousa, no trabalho “Inquietações do pedagogo no cotidiano das práticas pedagógicas na educação inclusiva” discutem formação e trabalho docente com diferentes abordagens e em contextos diversos.

Segura com uma investigação sobre o assessor técnico pedagógico discute dimensões na formação dos profissionais da educação e o acompanhamento formativo como uma atitude no sentido de colaboração com o outro promovendo situações dialógicas e reflexivas referentes a questões dos processos educacionais contemporâneos.

Costa problematiza a inclusão com seus fundamentos, demandas e desafios. A autora reflete sobre dimensões centrais na formação de educadores, quais sejam: autonomia, originalidade, espontaneidade e sensibilidade, dentre outras.

Silva-Perdigão discorre sobre a escuta de uma das professoras participantes da pesquisa “Escuta e orientações a pais e professoras de crianças com sintomas de hiperatividade, impulsividade e atencionais” realizada no período de 2010 a 2011 sob a sua coordenação.

Demonstra a importância de ouvir professores sobre o trabalho com a perspectiva da educação inclusiva.

Oliveira aborda a disciplina educação especial no curso de Pedagogia discutindo a inserção dessa disciplina no currículo e suas contribuições para os alunos do curso, segundo os seus depoimentos.

Sousa, em capítulo baseado na sua dissertação de mestrado, apresentada na UFMA, relata a organização do curso de Pedagogia para a formação de professores para a inclusão, a partir dos professores e alunos.

O conjunto de estudos sobre formação e trabalho docente reflete a importância do tema para o processo de implementação da inclusão nas escolas públicas em que o professor tem sido um dos principais responsáveis.

Carvalho, em “Legislação específica da educação especial: suas possibilidades na inclusão escolar” e Silva, no capítulo “Tensões e desafios a partir da política de educação especial na perspectiva inclusiva” refletem sobre a legislação e diretrizes políticas tomando como marco as orientações para a educação inclusiva.

Carvalho analisando Resoluções do Conselho Nacional de Educação e o Decreto 7.611/11 indica o potencial dos dispositivos legais para uma educação para TODOS discutindo as ambiguidades e lacunas ainda existentes neles.

Silva, em trabalho baseado na sua dissertação de mestrado intitulada “Política de Formação de Professores e Inclusão Escolar” apresentada n UFMA, parte das diretrizes estabelecidas na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, incluindo a Resolução n°04/2009 CNE/CEB e o Decreto 6.571/2008 para compreender suas repercussões no debate sobre inclusão e relacionar às matrículas de alunos público-alvo da educação especial nas classes comuns.

Leme, no seu artigo “O que a escola inclusiva deve ter? Tecendo articulações entre as políticas e as percepções dos professores do ensino médio” baseado na dissertação de mestrado intitulada “Inclusão em educação: das políticas às práticas do cotidiano escolar” apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) verifica relações entre diretrizes internacionais, planos de educação no Brasil e a cultura institucional e a prática de uma escola de ensino médio da rede estadual.

Damasceno e Pereira no capítulo “Democratização da educação – o projeto pedagógico e a organização da escola inclusiva; experiências de escolas públicas/RJ” examinam a experiência de duas escolas do município de Nova Iguaçu/RJ quanto à inclusão.

Pintor no capítulo “Projeto espaço integrado de desenvolvimento e estimulação (EIDE) na rede municipal de ensino de Niterói/ RJ-Período 2008-2009” baseado em sua tese de doutorado, narra a pesquisa realizada sobre avaliação do Projeto EIDE.

A autora discute ações referentes a alunos com deficiência intelectual e múltipla, tema pouco contemplado em pesquisas. A investigação apresenta contribuições importantes na medida em que aborda atuação intersetorial voltada para o desenvolvimento dos alunos citados e depoimentos das famílias e dos profissionais envolvidos no processo.

Chahini e Rosa nos capítulos “Políticas afirmativas para o acesso de alunos com deficiência à educação superior” e “Caminhos e desafios da educação inclusiva na UEMA”, respectivamente, discutem a inclusão na educação superior no que se refere ao acesso e permanência de alunos com deficiência.

Chahini discute a lacuna relativa às pessoas com deficiência existente nas políticas afirmativas e Rosa descreve a experiência da UEMA em inclusão com a implantação do Núcleo Interdisciplinar de Educação Especial (NIESP).

A inclusão de pessoas com deficiência na educação superior alcançou maior visibilidade nos últimos anos, no que diz respeito ao acesso e permanência dessas pessoas nesse nível de ensino e como objeto de estudo. A concentração de matrículas da educação especial no ensino fundamental com um número inexpressivo no ensino médio e na educação superior demonstra um dos problemas da área: a não continuidade da escolarização do público-alvo da educação especial. Tal fato indica a importância da realização e divulgação de estudos com essa temática.

Silva no capítulo “Luta pela inclusão educacional de pessoas com deficiência no Brasil: movimentos sociais, paradigmas e políticas públicas” focaliza a trajetória da educação especial, destacando a participação de movimentos sociais no processo.

A importância dos movimentos sociais para as conquistas obtidas na educação é reconhecida pela sociedade brasileira e se faz presente até a atualidade. Podemos encontrar uma crescente organização das próprias pessoas com deficiências com uma evolução de, como diz a autora, do campo filantrópico para o campo dos direitos humanos.

A educação de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, anteriormente mais restrita a ambientes segregados, vai paulatinamente sendo incorporada aos mesmos ambientes que as demais pessoas. Assim, as diretrizes políticas para a educação especial brasileira adotam o caráter complementar ou suplementar, e não mais substitutivo.

Essas diretrizes tomam maior impulso em meados dos anos 2000, medidas são adotadas com aprovação de legislação, programas de formação de professores, disponibilização de recursos para implantação de salas de recursos, dentre outras. Diminuem consideravelmente as matrículas em escolas ou classes especiais, e a experiência de todos estudarem juntos na mesma sala de aula vai se consolidando ao longo da década.

Os temas abordados compõem o quadro atual da educação brasileira com as demandas provocadas pela perspectiva de uma educação para TODOS, inclusive os que apresentam deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/ superdotação. O momento é de avançarmos na perspectiva da educação inclusiva, desenvolvendo experiências e pesquisas que problematizem a inclusão nas suas diversas formas. Nesse contexto, a pós-graduação em educação, em particular, pode dar valiosas contribuições nas suas funções de formação e pesquisa. É esse o objetivo da obra analisada, socializar resultados de investigações, reflexões e experiências que têm como foco principal a inclusão.

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O professor e a educação inclusiva: formação, práticas e lugares – MIRANDA; GALVÃO FILHO (REi)

MIRANDA, Theresinha Guimarães; GALVÃO FILHO, Teófilo Alves (Orgs.). O professor e a educação inclusiva: formação, práticas e lugares. Salvador: EDUFBA, Salvador, 2012. Resenha de: BORDAS, Miguel Asngel Garcia: Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 1, p. 221-223, jan./jun. 2015.

A presente coletânea tem como questão central problematizar os sentidos, significados e intencionalidades que vêm se materializando na relação entre o professor e a relação inclusiva, enfocando três aspectos dessa complexa realidade: a formação do professor, que hoje supõe transcender antigas e superadas seguranças e paradigmas; a sua prática, que deve possibilitar a interação crítica e criativa entre pessoas singulares, cada vez mais presentes nas salas de aula, e os lugares que, com frequência nos dias de hoje, rompem os muros e paredes da escola tradicional, para abarcarem novos e mais profícuos espaços e tecnologias para aprendizagem, visando a construção de uma sociedade e escola inclusivas.

O conjunto dos artigos desta obra contempla múltiplas questões que entrecruzam o campo da educação inclusiva, tendo como referência o professor, em diálogo polifônico de saberes. O trabalhos apresentados reúnem ideias, resultados de pesquisas e relatos de experiências, que suscitam questionamentos e posicionamentos distintos em relação aos temas abordados, possibilitando o aprofundamento do debate sobre ações educacionais, voltadas para uma educação escolar de qualidade, que possa promover formas de inclusão.

A questão proposta é analisada sob a ótica de diversas experiências construídas durante o desempenho da trajetória profissional de seus autores. Contudo, o leitor poderá observar que os autores mantiveram uma importante relação pedagógica e política entre o social e o educacional, na busca de aprofundar as reflexões referentes a educação inclusiva, principalmente em relação a formação docente, suas práticas e lugares de atuação, para uma educação especial na perspectiva do novo paradigma inclusivo.

Os artigos apresentados nesta coletânea estão agrupados em três blocos, de acordo com os tópicos discutidos no evento. No primeiro bloco estão os que tratam da Formação Docente e dele constam, os trabalhos relativos a : resultados de pesquisas sobre formação docente ( Jesus e Effgen, Martins e Pimentel); princípios teóricos e fundamentos para a formação docente (Crochík, Díaz e Costa) e caminhos percorridos por grupos de pesquisa na formação profissional e produção do conhecimento ( Silva e Miranda ).

O segundo bloco aborda questões relativas às práticas pedagógicas para a educação inclusiva, suas possibilidades e tensões.

Ele é composto de nove artigos, dentre eles cinco analisam o uso da Tecnologia Assistiva (TA) como recurso para favorecer a o desenvolvimento da pessoa com deficiência. Oliveira e colaboradores, Passerino discutem o uso da comunicação alternativa. Silva descreve a áudio descrição (AD), criada com objetivo de tradução intersemiótica criada com objetivo de tornar materiais como filmes, peças de teatro, espetáculos de dança, programas de TV em diferentes realidades é analisada por Galvão Filho, Miranda e por Castro e colaboradores. Os demais textos deste bloco referem-se a pesquisas sobre a prática de inclusão: o uso de jogos com crianças hospitalizadas (Barros e colaboradores); o ensino da ortografia para crianças cegas ( Martinez); a comunicação e o aluno com surdo cegueira ( Galvão ) e práticas municipais de inclusão ( Oliveira).

O Terceiro bloco denominado Lugares, refere-se aos espaços em que ocorrem as práticas pedagógicas, destinadas às crianças e aos jovens com deficiência. Tradicionalmente, essas pessoas eram segregadas em instituições especializadas e escolas especiais ou ficavam isoladas no seio familiar e sua escolaridade limitava-se as séries iniciais do ensino fundamental, pois a sociedade não lhes garantia condições para progressão escolar e inclusão social. Com o avanço das ciências e a promulgação de dispositivos legais, é assegurada a educação da pessoa com deficiência, que vem alcançando níveis elevados de escolaridade, atingindo a universidade, alcançando o mercado de trabalho. Nessa importante perspectiva estão os artigos de Anjos, Barbosa Santos, Carneiro Santos; e Souza e Santos que pesquisam a inclusão no ensino superior, a partir da realidade das Universidades que foram estudadas. Pereira, Passerino e Del Masso discutem a relação da pessoa com deficiência e o trabalho.

Ainda nessa reflexão sobre os lugares da educação inclusiva, Mendes e Malheiro questionam o atendimento educacional especializado, proposto na atual política educacional para ser realizada em salas de recursos multifuncionais, como modelo único de apoio a inclusão escolar do aluno com deficiência, em contraponto destaca- -se o texto intitulado O letramento de surdos em escolas especiais em Salvador, de autoria de Teixeira e Marinho. Esse ponto escola regular X escola especial é polêmico e não há consenso e, desta forma temos o entendimento de que estes textos, assim como o conjunto de todos os trabalhos aqui apresentados poderão servir, sem sombra de dúvida, para ampliar as reflexões de forma crítica com fecundidade e profícua fertilidade.

Miguel Asngel Garcia Bordas – Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação. E-mail: [email protected]

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Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana – KUSCH (ER)

KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana. Buenos Aires: Ediciones Castañeda, 1978. Resenha de: MENEZES, Magali Mendes de; VAZ E SILVA, Neusa; DORNELES, Leonardo Castro. Esboço de uma antropologia filosófica americana. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.39 n.4 oct./dec., 2014.

A obra intitulada Esboço de uma antropologia filosófica americana apresenta a problemática de pensarmos o(s) sentido(s) do humano desde a realidade latino-americana. Rodolfo Kusch, filósofo argentino, parte do pensamento popular, permeado por sabedorias marginalizadas para mostrar a riqueza e diversidade de um pensamento. A cultura e sua relação profunda com a terra são elementos centrais desta obra.

ara tanto iremos analisar a trajetória seguida pelo pensador nesta obra para mostrar uma reflexão que traz contribuições importantes para pensarmos a educação e sua relação com o pensamento filosófico. Destacamos também a importância de resgatarmos a obra de um filósofo ainda pouco conhecido no Brasil, mas fundamental no debate sobre a interculturalidade e suas implicações no contexto latino-americano.

Günther Rodolfo Kusch nasceu e faleceu em Buenos Aires. Era filho de alemães radicados na Argentina. Graduou-se em filosofia pela Universidade de Buenos Aires em 1948. Atuou no Ministério da Educação de Buenos Aires na área de Psicologia Educacional e orientação profissional.

O propósito do autor na presente obra é organizar uma antropologia tendo como base as experiências do povo, formuladas a partir do silêncio que permeia a fala popular, que nem sempre é visível. Kusch busca pensar à margem da preocupação de uma definição de ser humano, que é própria da história do pensamento filosófico ocidental. Objetiva desconstruir o que já foi dito acerca do homem americano, no entanto, não afirma nem indica nenhum outro tipo de definição acerca do humano. Ou seja, numa perspectiva heideggeriana, o filósofo enfatiza um humano incompleto, um ser não mais metafísico, mas que se constrói na exata medida que se faz. Kusch não tem a pretensão de resolver o problema do homem moderno a partir dos povos campesinos. O que deseja é recolocar o problema desde as origens de nossa sociedade, pois os povos do campo são um exemplo daqueles que romperam a homogeneidade da cultura dominante.

No primeiro capítulo da obra, intitulado Geocultura do Pensamento, Kusch analisa a importância da geocultura, afirmando que o pensar dos grupos humanos está condicionado pelo lugar, ou seja, faz referência a um contexto estruturado mediante a intersecção do geográfico com o cultural. Apresenta uma nova dimensão de cultura tomando-a não só como acervo, mas como atitude. Cultura é, sobretudo, decisão, afirmação existencial de um coletivo. É desse modo, que o autor coloca que todo diálogo de alguma forma é intercultural, implicando processos necessários de negociação com o Outro.

Um diálogo é antes de tudo um problema de interculturalidade. A distância física que separa os interlocutores e as voltas retóricas para entenderem-se, fazem referência a um problema cultural. Entre os interlocutores tende a existir uma diferença de cultivo, não no sentido de grau de culturalização construído por cada um, ou seja, que um seja mais culto que o outro, e sim antes de tudo no estilo cultural, ou melhor, no modo cultural que se encarnou em cada um (Kusch, 1978, p. 13). A cultura encarnada mostra uma existência tecida pela dimensão cultural, pelo cultivo de um cotidiano feito por indivíduos e coletivos.

No segundo capítulo, O mito no pensamento popular, Kusch considera que é no pensamento popular e não no pensamento culto, que estão contidas as linhas gerais de pensar o humano em sua totalidade. Suas reflexões têm como base, entrevistas que realiza com pessoas simples do campo que orientam sua vida a partir da tradição mítica presente em suas culturas. Neste momento, o filósofo expõe sua metodologia de trabalho que consiste em quatro pontos fundamentais: 1) determinar as unidades simbólicas (aqui poderíamos traçar uma relação com as unidades de sentido); 2) a estruturação destas unidades; 3) as linhas de sentido que propiciam uma conexão entre estas unidades; e por último, 4) o contexto simbólico de todo discurso. Kusch salienta que o informante da pesquisa não é visto como um objeto a ser pensado, mas como um sujeito que define o próprio olhar interpretativo (e muitas vezes imperativo) do pesquisador. É assim que Ceferina e Sebastiana, interlocutoras de Kusch nesta obra, surgem não como personagens que emprestam voz a cultura popular, mas como traços fundamentais que nos ajudam a compor este esboço do humano. Esboço é um “[…] conjunto de traços iniciais, provisórios, qualquer trabalho ou obra em estado inicial”1; o humano é, portanto, esta obra inicial, incompleta, que no diálogo com o outro vai se reafirmando. O humano aqui não é um projeto pronto, é este fazer-se constante, amparado por uma terra que dramatiza a existência de cada um de nós.

A questão do humano aparece em sua obra não apenas para formular novas respostas a questão histórica da Filosofia, mas para fazer ressoar um silêncio que perpassa o sentido do humano. O esboço também é feito de silêncios que não são o resultado de um abafamento da voz dos povos, da imposição da mudez, mas resistência, de uma existência que fala pelo simples fato de estar (conceito este extremamente significativo para Kusch), arraigada a um solo que a nutre. Nesta obra acompanhamos o trabalho de um pensador em ler o cotidiano, no desafio de uma hermenêutica que coloca o pesquisador mesmo sob suspeita. Assim, a forma como as pessoas vão lendo a si mesmas, surge no texto em sua transparência, traçando novos sentidos a realidades que parecem já tão pré-determinas. Não há apenas algo a ser revelado na fala de suas interlocutoras, é a própria fala que define o movimento dos olhos de quem a lê. Este é o desafio de um pensador em penetrar estas realidades inventando caminhos poéticos (talvez nada metódicos na visão da academia).

Ao longo de sua narrativa faz-se notar que para Kusch o novo está no popular e no indígena e não no chamado saber culto. Ao buscarmos um pensamento popular percebemos a possibilidade de descobrir um pensamento próprio, americano.

No capítulo terceiro, Mito e Racionalidade, Kusch continua tomando como referencial as entrevistas com representantes das culturas campesinas para analisar o mito e a racionalidade. Para o autor, no pensamento popular há uma religação com o absoluto, uma conjugação, um estar sendo; aspecto este que foi perdido pela cultura ocidental. Para recuperar o mistério de nosso estar temos que recuperar os sentidos de nossos símbolos e nossa relação com o solo, que de certa maneira traduzem a vinculação com o absoluto. Assim o filósofo nos apresenta uma diferença entre o mito narrado (oralidade) e o mito vivido. No mito narrado (objetividade), que se faz verbo, percebemos uma defasagem da palavra, e novamente o autor nos fala de uma palavra que transcende a si mesma, revelando um vazio, que não é ausência de sentido, mas algo que não cabe dentro da palavra. O mito vivido pode ser pensado como ritual, onde não se relata nada, apenas se vive. Desse modo, ele é anterior à palavra, quando esta chega, chega já em atraso. No entanto, estas duas dimensões se complementam. A narrativa também fala de uma realidade que expõe, na visão de Kusch, uma ontologia do contrato social. Ou seja, o que chamamos realidade se sustenta numa visão contratual da inteligência.

Se instrumentaliza uma teoria do conhecimento para determinar a solidez da realidade que, ao final de contas, já estava dada desde sempre por uma estrutura contratual. Uma vasilha servirá sempre para tomar líquidos e nisso estamos todos contratualmente de acordo (Kusch, 1978, p. 53).

No quarto capítulo, Os arquétipos da economia popular, o autor enfatiza que a análise do popular fica em muitos momentos exclusivamente reduzida a uma dimensão econômica. As relações de trocas, de comercio que fazem parte do cenário popular (e são elementos fundamentais para entendermos este contexto) não podem se reduzir ao aspecto econômico, como um meio de sobrevivência diante de uma realidade que se mostra carente. O problema do homem assim seria transferido para um problema de coisas e é isto que se fez no ocidente nestes últimos tempos. Vive-se praticamente em um mundo coisificado, pois o pensamento e nossas preocupações se centram no econômico, convertendo-o em fator determinante de toda e qualquer leitura sobre o meio popular. O autor manifesta a necessidade de não só preocupar-se com a distribuição dos bens, mas adequar o econômico ao humano. Afirma que a ênfase no desenvolvimento é o mal da América Latina e postula que o fracasso em atingir essa meta se deve muito à ansiedade de impor-se uma hegemonia cultural. Propõe alguns caminhos para reflexão, embora não tenha o objetivo de dizer como deve ser a economia, apenas apresenta linhas gerais na esperança de dissolver o econômico no cultural. Conclui o capítulo afirmando que a fome não é só de pão, mas de uma incompletude do humano que dificilmente pode ser saciada.

No quinto capítulo, O arcaico no pensamento, o arcaico é compreendido como aquilo que escapa a determinação, ou melhor, “[… ] aponta a uma determinação que se opõe ao tipo de determinação que exige uma consciência crítica” (Kusch, 1978, p. 74). Afirma que o arcaico aponta para algo que não exige uma consciência crítica, pois é um saber que está no nível do simbólico, ou seja, fora do âmbito da ciência. Enquanto a ciência tenta delimitar o objeto, o símbolo transcende ao determinado. Ao longo do capítulo o autor analisa detalhadamente a estrutura do símbolo e sua consolidação no ritual. É neste momento que podemos perceber as influências do pensamento de Paul Ricoeur na reflexão de Kusch.

O sexto capítulo, O que passa com o estar? Kusch parte de toda a fundamentação abordada nos capítulos anteriores para redimensionar o estar. Inicia contextualizando nossa América, ressaltando a base de nossa cultura assimilada, nossos hábitos de pensamento, em face à cultura que moldou nossa forma de estar no mundo. Movemo-nos entre as perspectivas populares, indígenas e a ocidental, contexto no qual se funda nosso modo de pensar como intelectuais. É dentro deste contexto que nos interrogamos a respeito de nosso estar. Nota-se a exigência colocada pelo autor em buscar a compreensão do que passa com o pensamento em geral, percebendo o humano que o sustenta com vistas a superar o vazio intercultural dentro do qual nos movemos.

Kusch alerta para o fato de que somos marcados pela ocidentalização e em consequência, analisamos a realidade (com suas diferenças) a partir de um ponto de vista já internalizado, que surge como a única referência possível para pensarmos. O racional implica certa coerência e lógica dentro de um modo de pensar. Desse modo, pensar de outras formas significa agir irracionalmente, fora de uma ordem estabelecida que não aceita novas racionalidades. O pensamento popular nos apresenta outro modo de ser e isso nos exige outra postura filosófica e novas metodologias que sejam capazes de reconhecer o saber popular como um pensar legítimo. Dentro de uma lógica ocidental, construímos o saber ancorado na necessidade de definição, devemos sempre responder a pergunta pelo que é. Porém, no pensamento popular, como descreve nosso autor, tudo está, nem tudo é determinável, pois com relação aos deuses, por exemplo, não se pode afirmar isto é. Para recuperar o mistério de nosso estar temos que penetrar nos símbolos e no solo (gravidez de nosso pensar), e assim, recuperar nossa vinculação com o absoluto. Kusch interroga se a necessidade deste resgate se dá por que “[…] esta cultura está enferma de ser e perdeu o mistério de seu estar?” (Kusch, 1978, p. 99). O estar é tema de profunda análise ao longo de todo o capítulo sexto e continuará iluminando o restante da obra.

No sétimo capítulo, O humano na América, Kusch parte de duas interrogações: Como se desenvolve o homem na América? Que é o humano a partir do popular? Segundo ele, falta uma antropologia nova que não reduza o homem a compartimentos, mas que recupere sua essencialidade. Seu propósito é o de assumir o pensamento popular em toda sua profundidade, ou seja, esboçar uma antropologia do homem americano fora do julgamento já formulado pela cultura ocidental. Para tanto, devemos partir do descobrimento do humano desde seu próprio acontecer, regressando à consciência natural; isso implica em um recomeço. Neste capítulo o autor estabelece a distinção entre pensar e filosofar. Afirma que o pensar se refere a uma tomada de consciência, mas que é assistemática, enquanto que a filosofia assume apenas o papel metodológico (com suas regras), e apoio de nossa universalidade.

No oitavo capítulo, A importância do lugar filosófico, Kusch destaca a necessidade de que seja consolidada, no campo da filosofia, uma antropologia. Coloca que a antropologia filosófica consiste na intuição do ser humano como uma referência ao sentido do humano. Enfatiza que a concepção de homem, presente no ocidente, não a exaure. Devemos considerar a circunstância especial de estar na América, partindo não de abstrações já colocadas, mas do concreto ainda não refletido adequadamente. O autor afirma que assumir o lugar filosófico de onde se fala, ou seja, pensar a partir da América não significa apenas considerar o aspecto geográfico, mas vincular a reflexão em torno da circunstância, do dado, que permite a gestação deste pensar. O mistério da verdadeira Sofia, da fé ou da esperança, se dá quando recuperamos a globalidade do pensar, nesse processo perdemos a segurança que a racionalidade proporciona e entramos no terreno do simbólico.
No capítulo nono Fenomenologia da afirmação, o autor parte da afirmação de que o pensamento supõe um ato de concretização. Daí que, pensar os objetos e as coisas mostra-se como possibilidade para atingir a objetividade. Toda afirmativa inclui aquele que afirma. O ato em si de afirmar é de certa maneira afirmar-se, buscar a si próprio. Kusch analisa toda a ambiguidade do ato de afirmar algo e de afirmar-se a si mesmo, uma vez que esse ato carrega a subjetividade que conduz ao mistério. Sua reflexão orienta à suposição de uma alteridade, ou seja, afinal, quem funda o fundamento?

A vida humana transcorre nesse movimento que parte do que não se pode afirmar para o afirmável. Refletir então sobre o viver poderia nos levar a uma vida autêntica. Ao analisar o termo viver, o autor não define o que seja a vida, pois este termo transita entre o estar e o ser, entre uma área do impensável e do pensável. Por trás do conceito de vida há sempre “uma consciência de invalidez ontológica” (Kusch, 1978, p. 124).

No décimo capítulo, Estar-sendo como jogo, o autor centra aí toda a reflexão sobre o saber viver. Em que consiste então o jogo do viver? A fórmula de “estar-sendo” parece ser a chave para significar o viver. O jogo é a possibilidade que busca, indefinidamente, a coincidência feliz que constitui o humano em sua profunda liberdade e, ao mesmo tempo, condenação de não atingir o seu fundamento. Assim, percebe-se que não há diferença entre os humanos, independente de sua cultura e de seu contexto. A diferença está somente no modo de assumir o jogo do viver. A variabilidade das civilizações está justamente neste aspecto. Cada povo ensaia o mesmo jogo para as distintas áreas da objetividade, ou seja, outro modo de dizer isto é. Talvez o homem inverta a fórmula de ser homem e, ao invés de efetivar o estar sendo, caía na armadilha do ser para estar.

No último capítulo, O jogo e a prática do humano na América, o autor ao tentar determinar outro modelo do humano, analisa uma nova perspectiva de ver e tratar as dimensões humanas, como a educação, a cultura, a economia. Dedica vários parágrafos analisando a finalidade concreta da educação e em que ela consiste. O mesmo cuidado dispensa ao sentido da economia aclarando-a através das experiências vivenciadas.

Retoma a questão do humano, porém, nos diz que ao definirmos de uma única maneira o seu sentido, estaremos perdendo mais uma vez algo que para Kusch é fundamental: o humano deve ser pensado na sua relação sempre inacabada com o solo, ou seja, em sua dimensão existencial da cultura. Devemos desse modo, realimentar a transitoriedade do fundante, ganhar a inseguridade para atingir a plenitude do humano e, segundo o autor, a nossa própria missão na América. Isso supõe o campo das possibilidades do estar sendo. Toda reflexão aponta a uma gama do humano, mas também a sua indefinição radical, pois o fundamento nunca se concretiza. Conclui a obra em análise, afirmando que devemos assumir o paradoxo do viver e sua sacralidade.

A obra de Kusch nos desperta a pensarmos a partir de uma postura que se aventura a sair de perspectivas filosóficas determinadas e fechadas do ocidente, superando padrões de pensamento que impedem a invenção de uma América descolonizada e de sujeitos que pensam desde seu contexto.

Nota

1 Houaiss. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Objetiva, 2009. p. 1196. verbete Esboço.

Referências

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Objetiva, 2009. [ Links ]

KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana. Buenos Aires: Ediciones Castañeda, 1978. [ Links ]

Magali Mendes de Menezes – Doutora em Filosofia, professora/pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, FACED, área de atuação Filosofia da Educação. Presidente da Associação Sul Americana de Filosofia e Teologia Interculturais (ASAFTI). E-mail: [email protected]

Neusa Vaz e Silva – Doutora em filosofia Ibero-americana. Pesquisadora na área de filosofia Intercultural. Autora do livro: Teoria da Cultura de Darcy Ribeiro e a Filosofia Intercultural, Ed. Nova Harmonia. E-mail: [email protected]

Leonardo Castro Dorneles – Mestre em Processo e Manifestações Cultural, graduado em Filosofia. Atua nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase em Interculturalidade. E-mail: [email protected]
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História da educação indígena e colonialidade – PESOVENTO et al. (RBHE)

PESOVENTO, A; SÁ, N. P.; SILVA, S. J. História da educação indígena e colonialidade. Cuiabá: EdUFMT, 2012. Resenha de: QUINTERO, Sara Evelin Urrea. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 3 (36), p. 325-330, set,/dez. 2014.

Los pueblos indígenas, sus saberes, tradiciones, formas de ser, hacer y habitar el mundo han estado silenciados o nombrados desde voces occidentales en la mayor parte de la historia; fenómeno que hapermitido construirla en clave europea, desde sus tiempos y espacios constituyendo como lo señala Lander (2000 apud PESOVENTO 2012) una gran narrativa universal.

En la superación de la visión eurocéntrica/colonizadora de esta narrativa, han venido configurándose nuevos marcos teóricos que permiten una lectura desde otras ópticas, haciendo emerger estúdios tanto de los mecanismos de imposición y colonialismo de las culturas, como de las resistencias de las mismas.

El libro História da educação indígena e colonialidade1 de Adriane Pesovento, Nicanor Palhares Sá y Sandra Jorge da Silva (2012, p. 11), se presenta en esa perspectiva utilizando como “[…] fundamento os conceitos relativos à colonialidade, como defendido por Lander (2005), Castro Gómez (2005), baseado em Quijano (2005)”. Para hacer sobresalir la presencia y la resistencia de los pueblos indígenas en la Provincia de Mato Grosso del siglo XIX.

A través de 7 capítulos los autores discuten el proceso educativo colonizador que supera lo escolar, creando mecanismos de subyugación los cuales incluyen discursos, prácticas e imaginarios; legitimadores del modelo modernizador eurocéntrico, como el único posible y verdadero.

En el primer capítulo titulado ‘Saberes locais e o processo civilizatório pós-colonial’ los autores dilucidan un interés por comprender los saberes indígenas a través del reconocimiento de la marginalización a la cual fueron sometidos. Partiendo del concepto ‘gnosis fronteriza’ de Walter Mignolo (2005 apud PESOVENTO, 2012) se presenta un abordaje al conocimiento desde las ópticas historicamente subalternizadas, más que desde las lógicas colonizadores las cuales han opacado y despreciado los saberes diferentes al proyecto epistemológico occidental. Sin embargo, es reconocida la dificultad del acceso a las fuentes, pues estas, en el caso indígena, son dispersas y escasas, además, el silencio es latente en este asunto; es por ello que la búsqueda por comprender esa historia de la educación, inicia entrelazándola con la perspectiva occidental para hallar en registros (como el realizado por Antonio Pires de Campos) y discursos oficiales indicios o datos que posibiliten ampliar la mirada reconociendo la presencia y el saber indígena. Este primer capítulo se vincula con el segundo ‘Aspectos da educação e colonialidade indígena’ ubicado espacio-temporalmente en la capitanía de Mato Grosso, fundada en el año 1748, teniendo al frente a Don Antônio Rolim de Moura. Los estudios, a través de los escritos de Don Antônio permiten comprender los imaginarios construidos por los colonizadores frente a los indios, escritos que los describen como brutales, salvajes, y sin raciocinio por su desinterés frente a la adquisición de bienes propios (teniendo en cuenta que para los colonizadores lusitanos, la ambición y el deseo de vivir com ‘comodidades’ era símbolo de civilidad). Los autores describen algunas medidas educativas del momento, como la sugerencia de enviar índios para Europa, quienes aprenderían a comportarse civilmente, convirtiéndose a su regreso en maestros de los demás, y la catequización por parte de los Jesuitas (A pesar de esta sugerencia la presencia de la Compañía de Jesús no es muy significativa en Mato Grosso; según los autores lo anterior no implica que no hubiese religiosos en el área, por el contrario es posible encontrarlos aún hoy). En este capítulo se reconocen las intenciones políticas detrás de las educativas, en el marco de um período cruzado por las luchas de dominación y ocupación del território entre españoles y portugueses. Por lo cual, para la capitanía Matogrossense y el Directorio de los Indios era fundamental la utilización de

los indígenas como ‘guardianes de las fronteras’, tornándolos fieles al rey de Portugal.

Para el análisis de los aspectos de la educación, los autores recurren al documento donde se informa sobre la creación de comitivas para la búsqueda de Minas de oro y destrucción de Quilombos, organizado por el señor Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres.

Las descripciones de este viaje permiten conocer un modelo de educación de las comunidades próximas al Rio do Piolho, en donde moraban indígenas, cerca de viviendas de negros, generando relaciones y trocas culturas. Citando a los autores, es posible afirmar que fue “[…] na confluência de culturas que se dava a educação por meio de trocas apropriações e ressignificações dos diversos elementos próprios de cad povo, tecendo e tramando suas histórias para além dos domínios ocidentais e dos saberes coloniais” (PESOVENTO, 2012, p. 35) configurando una circularidad de significados, que pueden ser pensados como micro resistencias.

Finaliza el segundo capítulo reconociendo la permanencia de la colonialidad en el siglo XIX, a pesar de no existir ya el colonialismo com respecto a Portugal. Tal como lo define Mignolo (2004 apud PESOVENTO, 2012) el proyecto para la modernidad no existe sin colonialidad, por lo cual en Mato Grosso que camina hacia esta debieron ser aniquilados y sustituidos los saberes y tradiciones indígenas considerados como saberes incivilizados. Lo anterior sustenta la necesidad de educar al indígena a través de la Catequesis y el trabajo.

El tercer capítulo ‘Thereza Cristina: de colonia militar a colônia indígena’, presenta no sólo los mecanismos colonizadores, sino las resistencias que el pueblo Bororo-coroado generó frente a los processos educativos colonialistas tanto en manos de los militares como posteriormente de los salesianos. Los autores presentan un estudio de los informes oficiales de la época (presentados desde la dirección de la Colonia, la presidencia de la provincia de Mato Grosso, la dirigencia del Directorio de los indios, entre otros entes gubernamentales) que permiten encontrar en los objetivos de la creación de la Colonia (año 1887) um proyecto modernizador que garantizaría el progreso de la provincia de acuerdo con los imaginarios eurocéntricos, en el cual la integración del indígena como mano de obra, serviría en la explotación de la vasta riqueza natural mato-grossense; integración que se daría en tanto e pueblo indígena estuviese ‘civilizado’.

Bajo un ideal evolutivo los indígenas pasarían de un estado primitivo y bárbaro a uno civilizado y euro-céntricamente ‘adecuado’, proceso del cual el colonizador se sentía responsable, esto justificaba no sólo la fuerza utilizada sino la imposición de una cultura sobre otra. Sin embargo, tal como es señalado en el libro, este proceso de subyugación  subalternización no se dio pacíficamente en la colonia Thereza Christina, a pesar de las prácticas violentas y la vivencia al lado del colonizador ‘civilizado’, el proceso educativo (civilizador) era insuficiente; incluso con la posterior incursión de las misiones catequizadoras salesianas y la educación de los hijos indígenas, que servirían como intérpretes, no se consiguieron los objetivos planteados por las élites de la época.

En la misma línea de análisis, en donde el trabajo se constituye no sólo como el medio educativo sino como el objetivo mismo en el proceso civilizatorio, se presenta el cuarto capítulo ‘O trabalho como possibilidade de educar os indígenas’. A través del estudio de registros históricos (informes y correspondencias oficiales de la época) es realizada una reflexión teórica sobre el trabajo y la educación indígena como conceptos enlazados en la colonización de los pueblos indígenas mato-grossenses. Educación que no se limita al escenario escolar, constituyéndose en un fenómeno que permea discursos y prácticas cotidianas buscando inserir a los indígenas en el mundo occidental a través del trabajo y para este mismo, ya que era reconocida la necesidad de mano de obra en la explotación de la riqueza natural del estado. Sin embargo, los autores encuentran cautelas y silencios en los documentos frente al uso de mano de obra indígena, presentándose como uma recomendación que auxiliaría la ‘civilización’; permitiendo visualizar nuevamente el imaginario colonialista, que ubica a sus autoridades em estatus de héroes, redentores de la provincia, velando por el progreso y el buen curso de Mato Grosso hacia la modernidad.

La cultura tradicional indígena calificada como bárbara, primitiva, perezosa y salvaje, reforzaba la idea de inferioridad con respecto al colonizador, que era dotado por tanto de legitimidad para ‘civilizar’ estos pueblos a través de diversas formas: la fe cristiana, el trabajo, la fuerza e incluso la violencia, como lo relatan los autores en este capítulo.

Dichos procesos civilizadores poseen, además, un claro interés em borrar las huellas de las tradiciones indígenas que estuviesen en contra de las formas eurocéntricas, sin embargo algunas voces pueden ser descubiertas, aún, en registros oficiales, para desentrañar saberes y costumbres de los pueblos indígenas; es así como en el quinto capítulo ‘Imbuére: educação Apiaká’ , los autores recurren al documento Sobre los usos, costumbres y lenguaje de los Apiaccás, y el descubrimiento de las nuevas minas en la provincia de Mato Grosso, publicado por e Instituto Geográfico Brasileiro en el año 1844, para estudiar los mecanismos utilizados en la enseñanza, y el sentido que los Pueblo indígenas daban a la educación. Es importante señalar que la publicación de este documento se da en el marco de la búsqueda por crear uma identidad nacional, con la incorporación de los indígenas a través de su ‘civilización’.

Los autores, reconocen en el documento un proceso educativo que se da en la vida misma de los Apiaká, no se reduce a la idea occidental de control de los procesos de aprendizaje, pues este se genera en la cotidianidad, en la interacción, transmisión y recreación de sus sabere tradicionales, por lo cual describen las diversas prácticas educativas y la importancia de ellas en la permanencia de la cultura a través del tiempo.

La creación de imaginarios sociales se constituye, también, en uma herramienta educativa; es así como en el sexto capítulo ‘Um nome Occidental para un Terena: Alexander Buenose presenta la configuración de una imagen del indígena ‘civilizado’ que comprende su lugar en la jerarquía social y lucha por los intereses colonialistas en Mato Grosso de finales del siglo XIX. De acuerdo a los autores, el estúdio sobre este capitán, altamente influyente debido a su origen indígena y posteriores acciones militares, trasparece los mecanismos de construcción de modelos de comportamiento para los indígenas, que permitirían no sólo la ‘pacificación’ y ‘civilización’ de estos, sino la creación de un ambiente tranquilo para la sociedad no india, en tanto demostraría la capacidad de las élites en transformar los hábitos, costumbres y conductas indígenas.

El capítulo final titulado ‘A educação pós-colonial em O Selvagem’ cierra esta publicación presentando un estudio sobre la historia de la educación indígena a partir del documento O Selvagem de Couto de Magalhães (apud PESOVENTO, 2012) de finales del sigl XIX; el cual representa un registro valioso para la comprensión de la propuesta civilizatoria de este período. Los autores señalan cómo e amplio conocimiento de Magalhães sobre el territorio mato-grossense le permitía hablar con mayor facilidad sobre las características de los pueblos indígenas y por tanto de sus ‘necesidades’ educativas, visión que estaba dada desde un lugar colonialista y occidental, el cual, a través de una racismo epistemológico, negaba los saberes y mecanismos de transmisión y aprendizaje de los indígenas, para imponer las formas eurocéntricas de educación, que a su vez se presentaban como las redentoras de la cultura en el proceso de modernización de Mato Grosso.

Esta publicación consigue, a partir de los anteriores estudios, su propósito de hacer emerger la historia de la educación indígena desde dos ópticas diferentes, tanto la educación para el indígena como herramienta fundamental en los procesos ‘civilizatorios’ y colonizadores, como aquella propia de los pueblos indígenas que hacía resistencia a la imposición eurocéntrica, y velaba por la permanencia de la cultura y saberes locales. Es por ello que el libro Historia da educação indígena e colonialidade se hace relevante y cobra notable importancia para la historia de la educación mato-grossense y brasilera, y para la apertura investigativa hacia nuevos territorios y objetos de pesquisa.

Notas

1Estudio originado de las discusiones e investigaciones realizadas en el Grupo de

Pesquisa en Educación, Historia y Memoria (GEM) de la Universidad Federal de

Mato Grosso.

Sara Evelin Urrea Quintero – Licenciatura em Gestão Educativa pela Universidade de San Buenaventura –USB (2011). Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade

Federal de Mato Grosso (PPGE/IE/UFMT) pelo Convênio Organização dos Estados

Americanos (OEA) Grupo COIMBRA. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), integrante do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória (GEM) da UFMT. Email: [email protected]

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Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930) – SOUZA et al. (RBHE)

SOUZA, R. F.; SILVA, V. L. G.; SÁ, E. F. Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930). Cuiabá: EDUFMT, 2013. Resenha de: SÁ, Jauri dos Santos. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 3 (36), p. 319-323, set,/dez. 2014.

Por uma teoria… reúne as reflexões de um grupo de pesquisadores de distintos estados brasileiros que se ocuparam da investigação em perspectiva comparada, com ênfase na escola graduada, no período compreendido entre 1870 e 1930. Às pesquisadoras Rosa Fátima de Souza, Vera Lucia Gaspar da Silva e Elizabeth Figueiredo de Sá coube a difícil tarefa de selecionar e organizar uma amostra desse material, síntese de parte da produção desenvolvida ao abrigo do projeto de pesquisa Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930), coordenado por Rosa Fátima de Souza.

O projeto original envolveu 15 estados brasileiros, interligando 27 pesquisadores doutores, organizados em 17 Programas de Pós- Graduação em Educação. Com tamanha pluralidade de experiências, a produção foi organizada em quatro grupos temáticos, que, reunidos neste livro, sistematizam a produção dos GTs, refletindo sobre a difusão da escola nova, a cultura material escolar, as representações sociais sobre os grupos escolares ou a institucionalização da escola graduada nos vários estados do Brasil.

O primeiro texto, ‘A escola modelar da República e  escolarização da infância no Brasil: reflexões sobre uma investigação comparada em âmbito nacional’, de Rosa Fátima de Souza, nos oferece uma análise comparativa sobre o processo de institucionalização das escolas graduadas nos diferentes estados brasileiros participantes da investigação, expondo ao leitor o universo da pesquisa. Ao “[…] inquirir sobre as características fundamentais desse tipo de escola, o modo pelo qual ele foi apropriado e se consolidou no Brasil, as alterações sofridas ao longo do tempo e os fundamentos de sua legitimidade” (SOUZA, 2013, p. 24), a autora nos propõe uma reflexão acerca da compreensão dos problemas educacionais e das soluções consideradas para os mesmos.

O segundo artigo, intitulado ‘Os grupos escolares nas memórias e histórias locais: um estudo comparativo das marcas da escolarização primária’, de autoria de Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, Antonio d Pádua Carvalho Lopes, Luciano Mendes de Faria Filho e Fernanda Mendes de Resende, discute a questão do ‘acervo’ histórico educacional, particularmente o mineiro, o piauiense e o paraibano, relacionando, comparativamente, a ‘cultura histórica’ numa perspectiva analítica em torno da ideia da ‘cultura educacional’. O artigo trata da fonte escrita a partir das obras de memória e de história dos municípios, forjadas por ‘historiadores de não ofício’, que, no entanto, “[…] por estarem mais próximos do seu lugar de origem exercem papel relevante junto a sua comunidade” (PINHEIRO et al, 2013, p. 96).

José Carlos de Souza Araujo, Rosa Fátima de Souza e Rubia-Mar Nunes Pinto são os autores do terceiro artigo do livro, ‘A escola primária e o ideário republicanista nas mensagens dos presidentes de estado: investigações comparativas (1893-1918)’, que propõe uma ampla análise a respeito da institucionalização dos grupos escolares no Brasil, examinando o discurso político de diferentes estados da federação em relação à instrução pública. Para tal empreendimento, orientam-se pelas Mensagens dos Presidentes dos Estados, questionando sobre a relevância dessa modalidade de escola, sobre as distintas realizações educacionais ou, ainda, se é possível afirmar a existência de um projeto republicano de educação popular no período. As fontes investigadas pelos autores apontam para um processo não uniforme de organização e instalação dos grupos escolares nos Estados, resultado das particularidades políticoeconômicas e culturais, específicas de cada um deles.

‘O Federalismo republicano e o financiamento da escola primária pública no Brasil’, que constitui o quarto artigo, de autoria de Jorge Nascimento e Lucia Maria Franca Rocha, investiga o financiamento da Educação nos Estados durante a Primeira República. Para isso, utiliza, como fonte, as Mensagens Presidenciais de 11 unidades da federação, centrando a comparação em cinco deles. A primeira constatação apontada foi a de que houve uma diversidade de modelos de escolas implantadas em um mesmo Estado, sendo o dos grupos escolares gestado em São Paulo a principal fonte de inspiração. A partir daí, problematizam a questão do financiamento das escolas públicas, o impacto desse tipo de gasto nos orçamentos estaduais e, sobretudo, nos discursos produzidos no âmbito político. De caráter exploratório, o estudo primeiramente compara números, observando-se, como traço comum, o discurso do crescimento dos gastos com a educação na Mensagens, ainda que nem sempre os dados apresentem proporção uniforme. Não obstante, incorpora também as iniciativas privadas e associativas que abordam o problema do financiamento da educação.

O quinto capítulo, ‘A expansão da escola primária graduada nos Estados na primeira república: a ação dos poderes públicos’, de Alessandra Frota Martinez de Schueler, Elizabeth Figueiredo de Sá e Maria do Amparo Borges Ferro, registra que, apesar da paulatina centralidade adquirida pela escola primária graduada nos distintos estados da federação nas primeiras décadas republicanas, não se observou sua diminuição nas mesmas proporções em relação à hegemonia da escola isolada ou singular.

Em ‘Institucionalização do modelo de escola graduada’, o sexto capítulo do livro, as autoras Elizabeth Miranda Lima e Maria Auxiliadora Barbosa Macedo apresentam uma primeira aproximação comparativa do percurso de institucionalização da escola graduada no Brasil, especialmente referente ao processo de circulação, recepção e apropriação do modelo pedagógico. Tendo como base as pesquisas realizadas nos estados do Mato Grosso, Rio de Janeiro, Acre e Goiás, as autoras identificaram diferentes modelos de oferta e organização da instrução pública, onde predominou “[…] a modalidade de Escola

Primária Elementar e Escola Primária Complementar, distribuídas em áreas rural e urbana” (LIMA; MACEDO, 2013, p. 182). Embora materializada em distintos formatos, foi na monumentalidade e no funcionamento didático-pedagógico dos grupos escolares que  modernidade educacional do período republicano era visível, ainda que a oferta do ensino primário permanecesse, quantitativamente, com as escolas isoladas.

Marta Maria de Araújo é a autora do sétimo artigo do livro, ‘A criança, educação de escola (São Paulo e Nordeste do Brasil, 1890- 1930)’, que examina a institucionalização da escola primária republicana, em São Paulo e nos Estados do Nordeste – Sergipe, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Bahia. As fontes investigadas centram-se em decretos, leis, mensagens governamentais, regimentos, relatórios de diretor-geral da instrução pública etc. Os propósitos da autora são de recompor as modalidades de escolas postas e repostas no período, assim como cotejar as similaridades nas suas propriedades gerais e nas suas particularidades e variantes.

O oitavo capítulo, ‘Modernidade metodológica e pedagógica: apropriações do método de ensino intuitivo nas reformas da instruçã pública de Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo (1906-1920): ideias e práticas em movimento’, de Vera Teresa Valdemarin, Gladys Mary Ghizoni Teive e Juliana Cesário Hamdem, registra o movimento de irradiação das ideias pedagógicas difundidas no Brasil ao final do século XIX, tendo o método de ensino intuitivo como o “[…] elemento pedagógico imprescindível para estabelecer diferenciações entre o futuro desejado e a realidade a ser modificada” (VALDEMARIN; TEIVE; HAMDEM, 2013, p. 240). Adotando a lógica comparativa, as autoras analisam a circulação do método intuitivo nos Estados de Minas Gerais,

Santa Catarina e São Paulo, considerando as diferenças como elementos constitutivos. As análises demonstram que o método de ensino intuitivo estabeleceu lugares de irradiação de ideias e práticas, apoio interpretações comuns, contribuindo para pôr em circulação ideias de distintos autores.

Em ‘Cultura material escolar: fontes para a história da escola e da escolarização elementar (MA, SP, PR, SC e RS, 1870-1925)’, nono artigo do livro, os autores César Augusto de Castro, Diana Gonçalves Vidal, Eliane Peres, Gizele de Souza e Vera Lucia Gaspar da Silva examinam algumas fontes indicativas da materialidade da escola primária brasileira. Variando o período eleito para a pesquisa, entre a segunda metade do século XIX até o ano de 1925, os autores definiram cinco tipos de fontes: carta de professor, da escola; documentos administrativos; relatórios; jornais e legislação, documentos com potencial de revelar pistas de determinados objetos escolares.

Buscando favorecer “[…] o entendimento das possíveis táticas de apropriação diversificadas e até discordantes dos múltiplos dispositivos da cultura escolar” (CASTRO et al, 2013, p. 295), os autores desse último artigo tratam de identificar os modos de produção e disseminação de um modelo de escolarização no Brasil, a partir da comparação entre os distintos estados, retratando, por meio da materialidade escolar, os investimentos que mantinham e faziam funcionar as escolas públicas.

O leitor interessado em conhecer as diversas experiências concretizadas nas muitas realidades do país encontrará nessa obra uma rica coletânea de artigos. O livro assume, conforme as palavras das organizadoras1, “[…] o desafio da comparação […]” (SOUZA; SÁ, 2013, p. 15), oferecendo um bom panorama das pesquisas sobre a história da escola primária no Brasil, orientadas por quatro grupos temáticos: representações, práticas, apropriações e materialidades.

Notas

1 Rosa Fátima de Souza é professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no Departamento de Ciências da Educação e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Campus de Araraquara. Vera Lucia Gaspar da Silva é professora do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAEd) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Coordenadora do Museu da Escola Catarinense entre 2004 e 2008. Elizabeth Figueiredo de Sá é coordenadora do grupo de Pesquisa História da Educação e Memória – GEM-IE-UFMT, pesquisadora na área da História da Educação no Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa em História da Educação (NIEPHE) da FEUSP. Atua como professora adjunta no Instituto de Educação e no Programa de Pós-Graduação da UFMT

Jauri dos Santos Sá – Arquiteto. Doutor em Arquitetura pela Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona/Espanha. Atualmente desenvolvendo estagio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Participa do Observatório de Educação – projeto Núcleo em Rede na mesma instituição. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]

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Secretaria de Educação Básica. Caderno de Educação Especial – A alfabetização de crianças com deficiência: uma proposta inclusiva – BRASIL (REE)

BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Caderno de Educação Especial – A alfabetização de crianças com deficiência: uma proposta inclusiva. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Brasília, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Marli dos Santos de; BEZERRA, Giovani Ferreira. (Pro)posições do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa para a Educação Especial: uma proposta inclusiva? Revista Educação Especial, v.27, n.50, Santa Maria, p. 777-780, set./dez., 2014.

O caderno de educação especial A alfabetização de crianças com deficiência: uma proposta inclusiva constitui-se como um dos vários materiais criados pelo Ministério da Educação para auxiliar os docentes em relação às novas exigências do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Tal pacto se apresenta como um compromisso formal assumido pelo governo federal, estados e municípios, a fim de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do ensino fundamental.

Organizado em seis capítulos, o caderno busca discutir sobre a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, sob a ótica de diversos autores/as: Tícia Cassiany Ferro Cavalcante, Ana Gabriela de Souza Leal, Wilma Pastor de Andrade Sousa, Carlos Antonio Fontenele Mourão e Rafaella Asfora. As orientações propostas neste caderno buscam ampliar e potencializar as possibilidades de ensino e orientar a utilização de jogos e brincadeiras em contextos inclusivos de alfabetização. Entretanto, o material se restringe somente à alfabetização de crianças com deficiência de ordem motora, cognitiva e sensorial (visual ou auditiva), não abordando casos de altas habilidades, nem os transtornos globais do desenvolvimento.

O capítulo I, intitulado A pessoa com deficiência motora frente ao processo de alfabetização, apresenta uma breve caracterização do que é a deficiência motora, focalizando as discussões nos alunos com paralisia cerebral. Argumenta-se que esta se coloca como uma das principais causas de deficiência motora presente nas escolas.

Em seguida, descreve que a falta de recursos de acessibilidade e de comunicação das pessoas com deficiência nem sempre está relacionada estritamente à questão financeira, uma vez que o professor pode utilizar sua criatividade para construí-los e/ou realizá-los. Enfatiza, ainda, que a Comunicação Alternativa e Suplementar (CAS) possibilita a erradicação das barreiras de comunicação presentes na escola, ocorrendo de forma eficaz à medida que o professor cria laços com o aluno, conhecendo-o em suas especificidades.

O capítulo II, Pensando a alfabetização da pessoa com deficiência intelectual, discute alguns aspectos históricos da deficiência intelectual, demonstrando que a escola não está adequada para atender as diferenças de crianças sem qualquer deficiência e, sobretudo, para atender (sem segregar) as necessidades das crianças com deficiência.

Em seguida, destaca que a deficiência intelectual não pode ser encarada como uma condição estática, e nem apenas sob a ótica dos impedimentos que a pessoa nessa condição pode ter. Descreve que o trabalho docente, juntamente com o apoio da família, deve estar direcionado para a perspectiva de que a criança aprende em sua interação com o mundo, mediante as oportunidades a ela destinadas, no decorrer de sua trajetória de vida, sendo capaz de se comunicar, se alfabetizar, enfim, de aprender.

Seguindo com as discussões, o capítulo III, Estratégias de ensino na alfabetização da pessoa cega e com baixa visão, inicia discutindo que, durante a história das pessoas com deficiência, no Brasil, a cegueira foi sempre caracterizada pelo impedimento e incapacidade do sujeito. Em seguida, apresenta uma caracterização da deficiência visual, demonstrando que a visão não é a única forma para a locomoção e interação com o mundo, e que as pessoas com deficiência são iguais às demais em relação a suas capacidades produtivas e relacionais, podendo desenvolver ações em várias esferas da sociedade, desde que lhe sejam ofertadas as condições necessárias. Desse ângulo, não basta somente a escola apresentar a escrita braille à criança com deficiência visual, pois esta, sozinha, não garantirá a sua alfabetização, sendo necessário que o professor utilize vários instrumentos que desenvolvam e explorem os demais sentidos.

No capítulo IV, A alfabetização da pessoa surda: desafios e possibilidades, discute- se que a alfabetização da pessoa surda em Língua Portuguesa é encarada como um dos grandes desafios de escolarização desses sujeitos. Ressalta-se que a perda total ou parcial da audição não significa incapacidade cognitiva, sendo que as condições e situações ofertadas à pessoa com surdez influenciam em seu desenvolvimento, bem como em suas relações escolares e sociais. Nesse sentido, para que ocorra a alfabetização da pessoa com deficiência auditiva, é necessário que ela visualize seu professor, intérprete e/ou professor intérprete, estabelecendo uma relação de confiança, sendo-lhe um direito a comunicação e o esclarecimento de todas suas dúvidas. Logo, é necessário que os professores dominem a Língua Portuguesa, bem como a Língua Brasileira de Sinais, para que, primeiramente, a partir desta última, se consiga alfabetizar a pessoa com deficiência auditiva, proporcionando-lhe a comunicação e o aprendizado.

O capítulo V, O Atendimento Educacional Especializado nas Salas de Recursos Multifuncionais, inicia situando o leitor historicamente acerca das muitas conquistas em relação aos direitos das pessoas com deficiência, sendo que o direito à educação e a aprendizagem devem ocorrer em um sistema educacional inclusivo, que disponha de recursos e serviços especializados para que a pessoa com deficiência se desenvolva com igualdade de acesso e permanência às escolas comuns.

Nessa direção, o Atendimento Educacional Especializado (AEE), que acontece em salas de recursos multifuncionais, no contraturno, coloca-se também como um importante direito conquistado a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de uma Educação Inclusiva, oficializada em 2008. Na sequência, o capítulo apresenta algumas definições sobre o público-alvo do AEE, sobre os materiais disponibilizados nas salas de recursos multifuncionais de tipo I e II, salientando que cabe ao profissional do AEE trabalhar de modo articulado com o professor da escola regular.

Finaliza-se o capítulo com diversas sugestões acerca do trabalho que o profissional especialista deve realizar com os alunos com cegueira, baixa visão, surdez, deficiência física e deficiência intelectual.

Encerrando as discussões do Caderno de Educação Especial, o capítulo VI, Compartilhando, é subdividido em três tópicos e não trata especificamente sobre uma deficiência em particular. Nesta ordem, aborda-se uma sequência didática acerca de um projeto desenvolvido por uma professora com alunos surdos do 1º e 2º anos do ensino fundamental; apresentam-se relatos de experiências de uma professora sobre a inclusão de um aluno com paralisia cerebral, bem como relatos de outra professora sobre a inclusão de uma aluna com Síndrome de Down em uma turma de 1º ano do ensino fundamental; e, por fim, aborda-se o uso de jogos para a alfabetização numa perspectiva inclusiva. Ao término do livro, aparecem, ainda, algumas sugestões de leituras para que o leitor/professor possa refletir mais sobre a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva.

Percebe-se, todavia, com a leitura do Caderno de Educação Especial, que esse material disponibilizado aos professores alfabetizadores apresenta algumas lacunas.

Primeiramente, no que diz respeito à brevidade das abordagens que compõem o material, visto que as orientações feitas aos professores ocorrem minimamente sobre algumas especificidades dos alunos com deficiência, não havendo nenhum outro material no contexto do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa que contemple a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Além disso, não se discorre sobre as possibilidades de alfabetização dos alunos com altas habilidades e com transtornos globais do desenvolvimento.
Nesse sentido, ao se considerar o objetivo de se alfabetizar todas as crianças, é necessário subsidiar os docentes tanto no que se refere aos materiais diversificados, quanto, sobretudo, em sua formação. De forma análoga, outra questão que merece atenção diz respeito à responsabilidade demasiadamente atribuída ao professor. O Caderno de Educação Especial, em sua totalidade, dirige-se aos professores como sendo os únicos responsáveis por criar materiais e recursos diversos para contribuir no processo de alfabetização das crianças com necessidades educacionais especiais, desconsiderando-se que este trabalho deve ser realizado de modo conjunto, pela instituição escolar e por demais profissionais que apoiem o trabalho pedagógico especializado.

Como apreciação final, pode-se dizer que pensar a alfabetização de todas as crianças da rede regular de ensino exige, de início, uma compreensão de totalidade por parte dos elaboradores desses materiais de formação docente, bem como das políticas educacionais, sobretudo no que tange à Educação Especial na perspectiva de Educação Inclusiva. Afinal, este “Pacto de Alfabetização” deve ser firmado com todas as crianças brasileiras, respeitando-as em suas diferenças e necessidades.

Marli dos Santos de Oliveira – Acadêmica do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPNV), Naviraí, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected][email protected]

Giovani Ferreira Bezerra – Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPNV), Naviraí, Mato Grosso do Sul, Brasil.

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Jogo e educação – BROUGÈRE (REi)

BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 2003. LEAL, Luiz Antonio Batista. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 2, p. 177-183, jul./dez. 2014.

Gilles Brougère é professor de Ciências da Educação na Universidade Paris XIII e desde os anos 1970 se dedica aos estudos sobre o universo infantil e a ludicidade. Neste livro, estuda as relações entre jogo e educação e procede a uma profunda análise sócio-antropológica para chegar às suas conclusões acerca do lugar do jogo no universo infantil e na natureza humana.

No primeiro capítulo do livro, o autor aborda o jogo principalmente do ponto de vista da filosofia da linguagem, busca a etimologia da palavra e conclui pela polissemia do termo. Segundo Brougère, a cultura lúdica torna possível a aprendizagem do lúdico.

Isto é, a pessoa que participa da cultura, aprende a jogar. Distingue também o jogo em três acepções centrais: a. O jogo como atividade lúdica, tanto do ponto de vista do sentimento de quem participa desse tipo de atividade, como pelo seu reconhecimento objetivo; b. O jogo como uma estrutura ou sistema de regras (existe e subsiste de modo abstrato independente dos jogadores); c. E o jogo como material ou objeto (tal como jogo de xadrez e outros), podendo ser associado também ao termo “brinquedo”.

Considerando, como Wittgenstein, que as palavras são atos, Brougère afirma o caráter polissêmico do termo “jogo”, proveniente, pois, de diversas culturas com seus modos próprios de conversar e criar formas de jogar ou brincar (sem distinguir estes dois termos).

Nesse sentido, a noção de jogo para o autor provém da compreensão do seu lugar em diferentes contextos sociais, sendo por ele considerado como um fato social.
Para o autor, a psicologia vai se utilizar da ideia de jogo como uma noção proveniente do senso comum, trabalhada pela sociedade, pela língua e sem críticas. Mesmo Piaget, segundo Brougère, nesta obra, não chega a estabelecer um conceito de jogo. A psicologia, assim, vai fazer um uso comum do termo em diferentes estudos, designando-o em um certo número de comportamentos e situações.

Na perspectiva da contribuição da filosofia, Brougère vai ao pensamento de Aristóteles para sustentar que desde a Antiguidade a ideia de jogo e jogar é uma oposição complementar ao trabalho.

O jogo não tem um fim em si e está submetido ao trabalho que o justifica – significa, pois o espaço para o relaxamento necessário.

Thomas de Aquino introduz no universo cristão, a ideia de jogo como imposição divina que orienta o homem ao trabalho e à especulação contemplativa: “Procuramos o repouso do espírito através dos jogos, seja em palavras, seja em ações. Portanto, é permitido ao homem sábio e virtuoso propiciar-se esses relaxamentos algumas vezes”. O jogo tem a finalidade do repouso, justifica Aquino: “se o jogo carregasse em si sua finalidade, deveríamos jogar sem parar o que não poderia ser” (p. 28).

Para os psicólogos, a maioria deles, o jogo também não é fim, mas um meio de estudo e interpretação de casos e situações psíquicas para a compreensão do comportamento humano.

Para muitos pedagogos, também, o jogo é um meio para se chegar a aprendizagens específicas e contribuir para o desenvolvimento humano.
É com tal espírito que Brougère se aventura neste livro à compreensãodo “jogo”, indo em busca de suas configurações mais primitivas e em diferentes culturas, para depois relacionar essas ideias com o fenômeno educativo.

No segundo capítulo, então, vai tentar entender como se configura e se instala, na modernidade, a ideia de jogo como oposição complementar ao trabalho. Sem preocupar-se com uma cronologia histórica, desfila concepções de jogo oriundas de diferentes culturas que define o jogo numa rede de analogias e experiências distintas.

É assim que apresenta o jogo em Roma, por exemplo.

Na sociedade romana o jogo se instala como treinamento e espetáculo. Derivado de jocus (divertimento, jogo de palavras), há transformações de conceitos de uma esfera a outra, podendo ganhar outras conotações, a exemplo do termo ludus que também designa escola. Ludus, por assim dizer, designou concomitantemente uma atividade livre – que é o jogo -– e uma atividade dirigida – que é o trabalho escolar. O autor vai à raiz das palavras e seus usos para entender essa oscilação: um dos sentidos usuais de ludere, por exemplo, é “se exercer”, ludus também define “exercício” em oposição ao que é luta em aplicação real. Assim, antes de ser um jogo, ludus é uma técnica, um exercício; sendo assim, uma atividade semfim prático e que segue ao lado da ação propriamente dita.

“Ludere consiste em fazer o simulacro da caçaou da guerra ou realizar esta ou aquela série de gestos da vida prática, sem nenhuma outra preocupação a não ser os gestos e fazê-los bem, dedicando-se apenas a mostrar sua graça ou caráter expressivo, através da dança, por exemplo” (p. 36). O jogo reproduz, pois, os gestos da realidade, servindo também para ensinar a fazer esses gestos – exercício; representa diversão e estudos infantil; como também, tanto o lugar onde se dão esses estudos como a escola de gladiadores. Reconhecese, assim, a fusão de sentido num só termo – jogo. O jogo aparece aqui como fingimento, imitação de uma situação real. O simulacro impele os gladiadores para o jogo. “O público é central aí: é um espetáculo, um combate para o público antes de ser um combate real. Mais do que salvar sua pele, o gladiador deve agradar a um público que solicita a morte do vencido, a menos que este tenha seduzido apesar de sua derrota”. A decisão pela morte é do público. O fim do combate/espetáculo não define a morte do vencido. O duelo é mais acompanhado de encenação exótica e teatralização do que realismo.

Os jogos também têm uma dimensão religiosa, são rituais, presentes oferecidos a deus e, portanto, devem ser obedecidas regras ritualísticas. O espectador encontra-se no lugar de deus, e o financiador dos jogos, no mesmo movimento, oferece alegria e relaxamento aos homens e a deus. São jogos que têm com frequência fins políticos.

O jogo na Grécia vai assumir um caráter de concurso ou competição.

A palavra Agon, com efeito, traduz essa ideia. A palavra Paidia, deriva de criança e jogo infantil, diversão e também luta e concurso. Justamente nesta cultura se instalam em 776 a.C. os Jogos Olímpicos que podem ser analisados a partir da seguinte triangulação: a. Como expressão de um dinamismo vital; b. Para racionalizar a relação dos mortais com as divindades; c. Como elemento estruturador da comunidade – na transmissão da cultura e seus valores.

O jogo, ou paidia vai tornar-se o fundamento da educação – paideia, para os gregos. Paideia não se limita à infância, mas prossegue por toda a vida.
Em síntese, para as duas culturas mais próximas à nossa, o jogo se mostra em duas direções: em Roma, como espetáculo, na Grécia, como um concurso ou competição. O núcleo comum é o simulacro e o exercício, o que até hoje guardamos em nossa cultura.

Brougere ainda neste capítulo passa a analisar o jogo numa cultura aparentemente distante da nossa – a cultura e o jogo asteca no México, século XVI e XVII.
O jogo naquela cultura foi tido como atividade séria, ao mesmo tempo guardando um sentido de renovação cósmica e objetivo de civilização. A simulação lúdica é um meio de expressão cultural.

O termo jogo, para os astecas, provem do vocábulo tlachia que designa o ver, o olhar. Para o autor, há uma dimensão antropológica original do jogo e o jogo tem uma função social – um sentido social traduzido no “como se fosse verdade”, no simulacro. A simulação lúdica, seja na religião, nos ritos em geral, é um meio de expressão cultural, uma linguagem, um ato social, por assim dizer.

Da Idade Média à Moderna, vamos perceber desenvolvida uma noção de lúdico no seu sentido frívolo. O lúdico vai estar presente principalmente nas festividades religiosas, fundadas no fingimento, como o carnaval, por exemplo.

Na Idade Média, religião e vida social estavam relacionadas às atividades lúdicas – o jogo tem espaço nos ritos carnavalescos.

E os jovens estão no centro dessa manifestação, tendo sido muito valorizada a cultura popular naquele período. Os grandes mestres também ensinavam de maneira lúdica, através de adivinhas e problemas de aritmética com enunciados jocosos. O jogo e a festa se marginalizaram em contrapartida ao jogo oficial e aos poucos se foi assumindo em oposição ao trabalho, como atividade frívola.

O jogo tem no período da Idade Moderna uma conotação de frivolidade, em forte oposição ao trabalho, como atividade de relaxamento.

Incna prática infantil, o jogo mantém a característica de futilidade um novo interesse a partir de uma reavaliação da infância. Quando ele será associado à categoria da seriedade sobre outras bases.

Em síntese, cada sociedade determina e legitima seu conceito de jogo.

É com o Romantismo que vamos assistir à ruptura da visão frívola de jogo. Nessa época, ela passa a ser relacionado à educação e à visão das crianças.

A criança surge como representante da natureza, boa e pura ao nascer, como apregoava Rousseau. E os românticos, então, passam a atribuir ao jogo esse caráter educativo, de artifício pedagógico, com um valor educativo, controlado pelo educador. Com a revolução romântica, o acesso ao saber e à educação é percebido de uma nova maneira. Vê-se a criança dotada de um dinamismo interno e a infância deixa de ser renegada. Nesse sentido, caberia ao adulto deixar fluir a educação dessa criança, desse vir a ser, em liberdade. Também a observância da sensibilidade infantil e sua espontaneidade no processo de desenvolvimento fazem surgir o interesse de estudo desse indivíduo, fazendo emergir a psicologia infantil ou do desenvolvimento. É justamente nesse quadro que aparece um pensamento cientifico que irá justificar novas relações entre o jogo, o desenvolvimento e educação infantil.

No final do século XIX, a humanidade assiste ao nascimento da psicologia da criança e na sua esteira novos discursos sobre o jogo e a educação. Para Brougère, o novo discurso científico incorpora princípios e quadros teóricos de outras ciências.

A teoria da recapitulação, surgida nesse contexto, pode ser resumida à metáfora das idades ou da vida, ou seja, à tentativa de comparar a vida da humanidade à vida do indivíduo. Assim como o indivíduo, a humanidade teria também uma infância, uma maturidade e uma velhice “A antiguidade torna-se a infância da humanidade. A época moderna é superior porque é ascensão à maturidade. A metáfora é orientada em um sentido: utiliza-se as idades do indivíduo para valorizar ou desvalorizar certos períodos da historia” (p. 80). Essa é uma tendência que surge com os românticos e que é incorporada pela ciência moderna. Em alguns autores, a metáfora se inverte, utilizando-se as idades da humanidade para se compreender as épocas ou fases da infância.

Na esfera da psicologia infantil, Piaget funda a sua psicologia evolutiva com forte influencia da biologia. Para Piaget, trata-se de orientar-se pela criança, pela gênese, para compreender a inteligência adulta. A gênese nesse caso pode ser a do indivíduo como a das próprias ciências, ou seja, da historia da inteligência das espécies.
Muito embora Piaget não reproduza a teoria da recapitulação nos fundamentos da sua própria teoria, o seu pensamento surgiu num contexto em que a biologia era a ciência mais valorizada e ele mesmo como biólogo buscava explicar o fenômeno da inteligência mediado por modelos biológicos, considerando a psicogênese como parte da embriogênese. Piaget não estuda o jogo em si, mas como uma atividade espontânea da criança que permite a interpretação de suas representações em diferentes fases, levando à compreensão de suas funções semióticas.

Também em Freud, o jogo é um mecanismo de interpretação da subjetividade infantil. O jogo, em Melanie Klein, é uma técnica para se chegar à cura analítica. O jogo, como o sonho, fornece o conteúdo simbólico, sobre o qual o analista irá se debruçar e proceder à análise – é a principal via de acesso para se chegar ao inconsciente da criança, reconstruindo sentidos a partir de uma conjunção de materiais.

A psicologia, em suma, assim constituída de bases românticas e na biologia, constrói uma ciência sobre o jogo, como um fenômeno natural, ocultando sua dimensão social e concedendo-lhe o lugar da expressão espontânea, própria, natural da criança. É nesse bojo que Froebel e Claparède, por exemplo, associam tais princípios à pedagogia.

Veremos, então, surgir um campo de conhecimento educativo – a pedagogia – que vai se utilizar de princípios provindos da moderna psicologia infantil e, numa perspectiva que também associa o romantismo às bases da biologia, faz emergir um novo conceito de jogo e de educação infantil.

No final do século XIX, o jogo adquire um estatuto educativo que convém abordar. São três as acepções que assume: como recreação, como artifício para fazer emergir o desejo de aprender e como exercício físico. Duas ideias estão presentes na recreação: a) Jogos organizados pelos professores – momento educativo sem deixá-lo a espontaneidade da criança; b) Como momento de liberdade concedida à criança – um momento educativo enquanto tal e sem qualquer intervenção adulta.

O debate sobre a importância que se deva atribuir ao jogo se faz num quadro tradicional no qual se associa recreação ao jogo, constituindo-se em uma contribuição à educação física e a forma de diversão conferida às lições e exercícios. O jogo está presente apenas através dos jogos disciplinados, controlados, vigiados, dirigidos, organizados. Não há espaço para valorização da espontaneidade no âmbito de um jogo considerado em si educativo.

Concluindo, o livro de Brougère sobre o jogo e suas relações com a educação constitui-se numa obra de referência para a ciência pedagógica, pois permite enxergar o conceito de jogo e de educação infantil sob uma visão científica rigorosa. O autor faz um traçado histórico muito pertinente, recorrendo às bases do surgimento da ciência que se ocupa do desenvolvimento infantil, tecendo análises críticas sobre as diversas teorias e teóricos que con0struíram suas concepções sobre o jogo.

Luiz Antonio Batista Leal – Centro de Formação em Artes/ FUNCEB. E-mail: [email protected]

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A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia: uma expressão religiosa, pedagógica e barroca no mundo colonial – CASMIRO (RBHE)

CASMIRO, Ana Palmira Bittencourt. A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia: uma expressão religiosa, pedagógica e barroca no mundo colonial. Campinas: Editora Librum e Navegando, 2012. Resenha de: TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; BARBOZA, Marcos Ayres. Aspectos pedagógicos da procissão de cinzas da Ordem Terceira de São Francisco no Brasil colonial. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 2 (35), p. 301-307, maio/ago. 2014.

A primeira Custódia Franciscana no Brasil foi fundada em Olinda, em 1585; e a Ordem Terceira de São Francisco de Salvador, em 1635, constituída por representantes da alta sociedade colonial. As ordens terceiras, associações religiosas de leigos, caracterizam-se como confrarias ou irmandades, tendo sido constituídas para a prática da caridade. Dentre suas finalidades, no período colonial, destacavam-se: os fins espirituais e a aquisição, administração e a aplicação de seu patrimônio; funcionavam como agentes de solidariedade, congregando anseios comuns frente à religião e à realidade social. As irmandades agiam no sentido de integração e algumas delas desfrutaram de grande poder político.

O livro A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia, escrito por Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro, resultado de seus estudos de pós-doutoramento realizados na Faculdade de Educação da Unicamp, em 2011, sob a supervisão do Prof. Dr. José Luís Sanfelice, analisa a Procissão de Cinzas da Ordem Terceira de São Francisco da Bahia, e mostra os aspectos estéticos, iconográficos e pedagógicos envolvidos no contexto histórico-cultural do Brasil Colônia.

No capítulo 1, O Altar, o trono e o ensino: os religiosos e a educação, a autora analisa a relação entre o poder do Estado e o poder eclesiástico na configuração do Brasil Colônia. Trata-se de dois poderes que, no campo das relações sociais, agiam mutuamente. O Estado apoiava-se na Igreja para legitimar o seu poder; e a Igreja visava conformar a ação do Estado. Este não desprezava o papel da religião para legitimar a classe dominante e a justificação de seus interesses, especialmente de sua prosperidade material por meio da Providência Divina.

De acordo com a autora, o Estado afirmou seu poder por meio da ação social das ordens religiosas, na medida em que a Igreja reservou para si o trabalho missionário, a catequese, o ensino religioso, o ensino escolar, a missa, os sacramentos, as procissões, a evangelização, entre outras atividades. Ficou responsável também pela educação: articulou a educação religiosa com a educação para as ciências e para as humanidades para subordiná-la à fé católica.

O capítulo 2, O Brasil Colonial como parte do Império Português, discute a organização social e econômica do Brasil Colônia. Destaca que as culturas açucareira, mineira e pecuária, entre outras, contribuíram para o surgimento de novas camadas sociais, baseadas em classes de interesses antagônicos, em que o tráfico e o comércio de escravos impulsionaram a produção de riquezas coloniais.

Segundo a autora, a preservação do status quo de uma pequena parcela da sociedade colonial configurou-se com base no sacrifício de indígenas e escravizados africanos. Os escravos, por exemplo, eram tratados como gado, inclusive, marcados com ferro em brasa; além disso, quando chegavam à colônia, eram separados de suas famílias, acorrentados, colocados em depósitos, tinham suas cabeças raspadas e vendidos nas ruas. Ao fugirem, após a captura, eram amarrados e chicoteados; muitos deles, diante da crueldade insuportável, cometiam suicídio.

Nas fontes pesquisadas, a autora entende que a classe dominante era formada pelos portugueses e seus descendentes, constituíam a nobreza metropolitana, com domínio do poder político e econômico. Por outro lado, a maioria da população, os escravos, era responsável pela produção de riquezas, submetida a trabalhos forçados e destituída de quaisquer privilégios. Nesse contexto, as ordens religiosas, além de serem detentoras de privilégios, agregavam muita riqueza e ostentação, inclusive, as classes dominantes patrocinavam as ordens religiosas para disseminação da cultura cristã e de seus interesses. O clero também pertencia à nobreza. Muitos deles eram oriundos da classe dominante, o que marcou o lugar social dos religiosos com características elitistas.

No capítulo 3, A expressão barroca e fé colonial, a autora assinala que a evangelização do Brasil expandiu-se a partir do Concílio de Trento (1545-1563), por meio da instalação de bispado, inúmeras paróquias, capelas rurais, missões, associações, irmandades e ordens terceiras. As diretrizes jurídicas e ideológicas do poder eclesiástico foram instituídas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707, elaboradas por uma equipe de religiosos jesuítas cujos objetivos legitimavam e conformavam o caráter evangelizador e colonizador do Brasil.

Para ela, a ação ideológica e a mentalidade da Igreja e do Estado Português contribuíram para o processo de conservação da sociedade em classes. No que se refere à educação, a Igreja ofereceu oportunidades desiguais, expressou preconceitos, justificando-os em nome do Evangelho. As ordens religiosas, como os carmelitas, mercedários e franciscanos, proporcionavam aos não brancos o ensino de primeiras letras, o ensino profissionalizante, a catequese e a cristianização.

Para ingressar na carreira eclesiástica e em algumas irmandades, afirma a autora, era necessário que os candidatos fossem cristãos velhos e brancos legítimos. As ordens religiosas eram classificadas e, nas procissões, tinham lugares marcados, de acordo com a posição social; porém, o espaço das irmandades “[…] era o único lugar onde o cristão de qualquer cor ou etnia podia sentir-se seguro” (CASIMIRO, 2012, p. 81). As irmandades não se caracterizavam somente como uma forma de manifestação religiosa, mas também como a possibilidade de acesso à cultura dominante pela obtenção de privilégios, graças e indulgências, uma vez que a organização da Igreja naquele período era caracterizada por uma religiosidade informal fundamentada na intimidade com os santos, cultos exteriores, festas religiosas, procissões e romarias.

No capítulo 4, A Pedagogia barroca colonial: os franciscanos na dilatação da fé e do Império, a autora propõe que a religião e a educação tiveram papel determinante na formação cultural do Brasil, mediadas pelas manifestações artísticas barrocas. Essa relação ocorria por meio dos sermões, da literatura, da música e das artes plásticas. Para cada classe, existia um processo de evangelização e uma educação. Os filhos dos brancos estudavam em colégios e seus estudos eram complementados em Portugal. A maioria da população, os não brancos, recebia rudimentos das primeiras letras, o ensino profissionalizante, a catequese e a cristianização. Os franciscanos atuavam na educação missionária, na educação de primeiras letras e na formação de seus quadros.

De acordo com a autora, a partir de 1707, todas as ordens terceiras, dentre outras instituições religiosas, passaram a ser regidas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Havia uma série de pré-requisitos para fazer parte dos quadros da ordem: pureza de sangue, cor da pele e a situação socioeconômica. A enorme quantidade de bens adquirida pela Ordem estudada por ela, ao longo do período colonial, tornou complexa a administração de seu patrimônio, que se caracterizava de maneira centralizada, hierárquica e burocratizada. Os recursos vinham de duas fontes: uma de doações dos bens encapelados, esmolas, doações de joias e objetos sacros, profissões, promessas e coleta de dinheiro, e a outra, oriunda da aplicação desses bens em aluguéis, foros, juros, laudêmio etc. Nos atos litúrgicos, nas festas, solenidades e procissões religiosas, o que predominava era a estética barroca, luxuosa, de fausto e esplendor, tudo em conformidade aos propósitos pedagógicos da Igreja contrarreformista.

No capítulo 5, As procissões coloniais como fenômeno pedagógico, religioso e humano, a autora afirma que os atos litúrgicos, as festas e solenidades civis no Brasil Colonial apresentavam uma luxuosa estética de caráter barroco, em suas formas, fausto e esplendor. A riqueza decorativa e diversificada das procissões religiosas respeitava as formas de expressão da época, bem como o ordenamento e a sedimentação social que conformavam os poderes instituídos.

Ela destaca que as procissões tradicionais da Bahia sobreviveram até em torno de 1940, são elas: Senhor dos Navegantes; Nossa Senhora da Boa Virgem; Senhor dos Passos da Ajuda; Senhor Bom Jesus da Paciência; Senhor Bom Jesus dos Passos da Regeneração; Senhor da Redenção; Enterro do Senhor; Ressurreição; São José, São Benedito; São Francisco Xavier; Corpo de Deus; Nossa Senhora do Carmo; Nossa Senhora da Boa Morte; Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo; São Pedro Gonçalves; Nossa Senhora da Conceição da Praia.

Em seus estudos, verificou que os fiéis eram obrigados a comparecer nos atos litúrgicos, nas festas e solenidades. Nos casos de desobediência, aplicavam-se punições pecuniárias, castigos, excomunhões e, em casos graves, açoites, degredos e galés. Os aspectos pedagógicos envolviam a educação do corpo e da espiritualidade, por meio de práticas que impunham medo, ameaças, admoestações e punições.

No capítulo 6, Aspectos religiosos e pedagógicos da procissão de cinza dos Terceiros Franciscanos, a autora propõe que as procissões na Bahia Colonial envolviam artistas e artífices de diversas naturezas na produção de imagens, roupas, joias, cabelos, pintores, andores, faixas, decoração das ruas, entre outras. Elas possuíam um caráter didático, destinavam a despertar a piedade e a fé cristã.

A procissão da penitência ou da ‘Quarta-feira de Cinzas’, segundo ela, caracterizou-se como um dos importantes eventos religiosos franciscanos do período colonial. O objetivo da procissão era penitencial; além disso, os aspectos pedagógicos da ordem eram vinculados à história da Ordem, que envolvia as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e cardeais (prudência, justiça, temperança e fortaleza).

Para ela, o declínio das ordens terceiras seguiu o mesmo fim das ordens primeiras, regulares e do poder da Igreja, ainda mais, pela expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759. Pode-se afirmar que as procissões coloniais acompanharam o estilo estético da época. A procissão extinguiu-se em 1864, sendo que, aos poucos, aboliram-se os ornamentos e as alegorias luxuosas. A espiritualidade dos terceiros franciscanos caracterizou-se como uma espiritualidade de pessoas que vivem no mundo. Tinha como ideal a mensagem da pobreza franciscana; no entanto, aceitava toda a riqueza destinada aos altares, mediante vultosas quantias, joias e imóveis. Essa foi, segundo a autora, a pedagogia que se configurou no contexto da Bahia no período colonial.

Na Conclusão, ela defende que a mensagem pedagógica presente nas procissões objetivava persuadir os fiéis pelo seu aspecto teatral. Essa pedagogia suscitava a ideia do pecado, a penitência e a ideia de salvação. Configurou-se uma concepção de educação de conformação religiosa que subordinava a educação à fé para a ‘Maior Glória de Deus e da Igreja’. As imagens do ‘Senhor Morto’, de Santa Margarida de Cortona e do conjunto escultório de São Francisco de Assis recebendo as ‘chagas’ de Cristo Crucificado tinham um forte apelo pedagógico, confundindo obediência a Deus com obediência ao patrão.

A análise da Ordem Terceira de São Francisco da Bahia feita pela autora caracteriza-se como uma importante contribuição ao campo da História e da História da Educação no Brasil, ao relacionar religião, educação e arte, em um contexto social de interesses antagônicos. Nele, a religião configurou-se como um instrumento poderoso de dominação, em que a educação do fiel impunha a obediência pela penitência, com a diferença de que, para cada classe social, havia uma evangelização e uma educação, contraditoriamente ao espírito de pobreza idealizado pelo movimento franciscano em suas origens, por envolver espiritualidade, luxo e fé. O livro nos mostra que a indistinção entre religião e vida política tem uma longa história no Brasil. A leitura do livro nos fornece pistas para a discussão sobre as origens remotas da mistura entre vida religiosa e vida política.

Trata-se de uma leitura recomendada aos pesquisadores que pretendem aprofundar o entendimento das relações entre Estado e Igreja, entre religião e política, tão presentes em nossa história. A autora explora um corpus documental que é praticamente desconhecido dos pesquisadores da área. O livro apresenta um conjunto de documentos que podem ser mais amplamente pesquisados.

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – Doutor em Educação pela UNICAMP (1996). Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá/UEM-PR, Líder do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: [email protected]

Marcos Ayres Barboza – Psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná Câmpus Paranavaí, Mestre em Educação (2007) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá/UEM-PR Estudante do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: [email protected]

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História de la Educación Adventista: uma visión global – GREENLEAF (RBHE)

GREENLEAF, Floyd. História de la Educación Adventista: uma visión global. Forda: Editora: Associación Casa Editora Sudamericana, Adventus, 2010. Resenha de: CARVALHO, Francisco Luiz Gomes de; CARVALHO, Dayse Karoline S. S. de. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 2 (35), p. 295-299, maio/ago. 2014.

Floyd Greenleaf é doutor em História pela University of Tenessee e sua obra tem marcas indeléveis de alguém que tendo participado da história da educação adventista reflete a partir de um lugar especial, do participante, que busca na investigação escrever a história além de debater assuntos fundamentais.

A primeira parte (Los Comienzos 1872 – 1920) compreende os primeiros nove capítulos e indica que neste período a Denominação se institucionalizou de forma a ter êxito no cumprimento da evangelização que fundamentava sua missão. Destaca-se a importância atribuída aos escritos de Ellen G. White para o surgimento das instituições educacionais adventistas e estabelecimento dos princípios fundamentais que lançaram as bases para a organização, identidade e propósito deste empreendimento denominacional.

A primeira parte do livro discorre sobre o surgimento das primeiras escolas, as dificuldades enfrentadas no estabelecimento das instituições escolares com princípios singulares, bem como inventaria as direções tomadas pela administração eclesiástica a fim de fazer da educação adventista um empreendimento pragmático e idealista com marcas próprias. Pois que,

Nada podría ser más idealista en términos filosóficos que basar la educación en la creencia de que los seres humanos necesitan la redención espiritual porque han caído del estado perfecto en el que fueron creados por Dios y de que es preciso que las instituciones educativas sirvan a la missión de la iglesia, […]. (GREENLEAF, 2010, p. 51).

Fica assinalado nesta primeira parte que o projeto denominacional e suas marcas foram produto não somente da filosofia de Ellen G. White e da disposição administrativo-eclesiástica, mas também do contexto cultural dos Estados Unidos que no século XIX apresentava-se permeado por uma tendência pragmática que começou a ser filosofia prevalecente na educação estadunidense. Afinal de contas,

Apoyándose en la filosofia del francés Jean Jacques Rousseau, el suizo Johann Pestalozzi y el alemán Friedrich Froebel, una generación de educadores de los Estados Unidos, dirigidos por John Dewey, debatieron la naturaliza de la niñez, las necesidades de los niños y su función en la sociedade, todo lo cual dio lugar a nuevas prácticas educacionales (GREENLEAF, 2010, p. 82).

A segunda parte do livro congrega os capítulos de dez a catorze e intitula-se Los Años Intermedios (1920 – 1945). Atenção é dada às dificuldades enfrentadas pelas instituições educacionais no período entre as duas guerras mundiais nos mais diversos contextos. Habilmente sucinto, mas com esmero de historiador, Greenleaf flagra o impacto das tensões sociopolíticas no incipiente sistema educacional adventista. Assim que, “Las escuelas compartián elementos en común pero no eran uniformes porque reflejaban las sociedades en las que funcionaban y respondián a las necesidades de su contexto cultural” (GREENLEAF, 2010, p. 223).

Diversas informações são apresentadas acerca de como as importantes mudanças sociais, políticas, econômicas e filosóficas ocorridas neste período afetaram a concepção de educação acalentada pelos lideres denominacionais, bem como seus desdobramentos influenciaram os rumos do empreendimento educacional. Afinal, “[…] las instituciones educativas y los docentes adventistas no deberían aislarse del campo más amplio de educación que trasciende los límites de la iglesia” (GREENLEAF, 2010, p. 303).

A segunda parte da obra se fecha com os reflexos das tendências de modernização que impactaram a educação adventista em seus diversos níveis. À época, a educação denominacional tinha três objetivos que a distinguiam, a saber: a) manter “dentro” da igreja os filhos de adventistas; b) preparar obreiros denominacionais; e c) ser pioneira na evangelização em países não cristãos e em desenvolvimento.

Años de Realizaciones y Desafios (1945 – 2000) titula a terceira parte e encerra a obra. Nela o autor com bastante escrutínio capta os principais desafios da educação adventista no período acima demarcado e indica que o que sempre esteve como pano de fundo das provas enfrentadas era o conceito de sistema educacional e sua fundamentação filosófica confessional.

Para o autor, o grande crescimento da educação superior adventista no mundo se bem que foi supervisionado pelo Departamento de Educação da Denominação, se produziu especialmente segundo as disposições dos governos que, por sua vez atuaram balizados pelo marco nacionalista pós-guerra. Tal realidade demandou medidas denominacionais cujo principal objetivo era gerar “[…] una similitud de prácticas educativas en la educación denominacional […]” (GREENLEAF, 2010, p. 380).

Ao registrar as dificuldades enfrentadas pelas instituições educacionais adventistas em países governados por regimes socialistas, especialmente aqueles com perfil restritivo e intolerante ao Cristianismo, o autor apresenta que, mesmo em ambientes adversos a educação adventista conseguiu implantar-se e lograr aparente êxito. Para tanto, o empreendimento denominacional não protagonizou movimentos de vanguarda, mas se aproveitou de concessões governamentais, como também identificou as fissuras das politicas socioeconômicas para delas desfrutar. Em suma, “[…] la educación adventista había sido parte de una resistencia silenciosa y pacífica […] más poderosa que la filosofia y la política del autoritarismo y la exclusión” (GREENLEAF, 2010, p. 456).

Entre os assuntos que ocuparam a pauta dos debates denominacionais e que exerceram uma forte pressão externa sobre o controle denominacional da educação destacaram-se: a liberdade acadêmica e a ajuda financeira do Estado. Se por um lado, a administração eclesiástica adotou uma postura restritiva e regulatória a fim de manter sob domínio a pesquisa e publicação de conhecimento dos professores dos mais renomados Centros Universitários Adventistas, por outro promoveu a criação de Institutos de Pesquisa e fomentou encontros acadêmicos. Tal estratégia contribuiu para consolidar crenças fundamentais da Igreja, ratificar a limitação de liberdade acadêmica e formular uma cosmovisão bíblica segundo a qual se reconhece o valor dos estudos científicos para as aulas nas instituições educacionais adventistas, no entanto, nega “[…] a la ciencia el derecho de ser el árbitro final de la verdad cuando los investigadores percibían desarmonía entre la interpretación de la Biblia y la información empírica […]” (GREENLEAF, 2010, p. 465).

No que se refere à ajuda governamental, a Igreja ao longo do tempo oscilou em suas recomendações e posturas, em alguns momentos proibindo em outros autorizando. Tal oscilação só pode ser mais bem compreendida à luz das concepções escatológicas que os adventistas mantém em seu escopo doutrinário.

Ao fazermos um balanço avaliativo podemos indicar as contribuições da obra, bem como seus pontos deficitários. Entre as contribuições no campo da história da educação adventista e historiografia, destacamos as seguintes:

  1. a) Com acuidade primorosa o autor flagra como o paradigma norte-americano de matriz colonial se constituiu como modelo para as escolas adventistas ao redor do mundo apesar das adaptações empreendidas. Mas com louvor, assevera as nuances das mudanças do modus operandi que se afirmaram nas mais diversas partes do mundo;
  2. b) Indica-nos vários paralelismos que caracterizaram as instituições educacionais adventistas no seu berço de nascimento (Estados Unidos da América), todavia, destaca que, mesmo entre as similitudes há diversidade na aplicação da filosofia expressada por Ellen G. White.
  3. c) Especialmente significante é perceber o empreendimento denominacional estreitamente relacionado às teias complexas do processo histórico em curso na segunda metade do século XIX na sociedade estadunidense, especificamente no que tange às reformas educacionais implementadas na época.
  4. d) autor aponta as tensões do processo histórico da expansão mundial de uma educação fortemente calcada em processos civilizatórios de moldes coloniais.

Entre os débitos da obra e que se configura inerente àquelas que pretendem apresentar a história na perspectiva global é passar por alto personagens e eventos que se abordados na perspectiva da micro-história ou mesmo do paradigma indiciário, certamente teriam o protagonismo reconhecido.

A abordagem das questões referentes aos confrontos culturais, étnicos e religiosos típicos de uma empreitada evangelizadora de moldes coloniais é feita na perspectiva triunfalista dos princípios e valores ocidentais propagandeados pelo empreendimento denominacional.

O autor não entrega em ‘pratos limpos’ seu referencial teórico, no entanto, o leitor atento perceberá que a obra rompe com a concepção histórica de explicações fundadas somente nos argumentos de cunho espiritual e orientados pela força matriz do sobrenatural, típicas do fazer histórico do insider da Denominação religiosa. Ao exercitar a acuidade o leitor identificará que o livro é iluminado por uma concepção histórica que considera o ‘ir o devir’ e que se apresenta atenta às tensões recorrentes do processo histórico, além de questionar as fontes revelando suas contradições. Além da dialética que subjaz o fazer do historiador, é possível identificar as marcas de reverberações weberianas que se entremeiam na tessitura da história institucional adventista.

Francisco Luiz Gomes de Carvalho – Doutorando em Ciência da Religião (UFJF), Mestre em Ciências da Religião (PUC-SP). E-mail: [email protected].

Dayse Karoline S. S. de Carvalho – Mestre em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP) Especialista em Psicopedagogia (UNASP). E-mail: [email protected].

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Os caminhos (da escrita) da História e os descaminhos de seu ensino: a instituição do ensino universitário de História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934-1968) – ROIZ (RBHE)

ROIZ, Diogo da Silva. Os caminhos (da escrita) da História e os descaminhos de seu ensino: a instituição do ensino universitário de História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934-1968). Curitiba-PR: Editora Appris, 2012. Resenha de: ROIZ, Simone Toneli Oliveira. A institucionalização do ensino universitário de História no Brasil. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 1 (34), p. 281-284, jan./abr. 2014.

A história do ensino universitário brasileiro de História ainda é um tema muito pouco investigado em nossa historiografia, inclusive, a de cunho educacional. Temos procurado escrever mais a história de nossas universidades, sem, contudo, atentarmo-nos para o fato de que nossos cursos universitários não têm sido historiados com a mesma preocupação e regularidade, de modo a conhecermos como foram fundados, de que maneira ocorreu seu desenvolvimento, e que diálogos (ou não) se estabeleceriam entre eles. Ao que tudo indica, esse quadro está sendo revisto, como mostram estudos, a exemplo do que aqui está sendo resenhado.

O trabalho de Diogo Roiz, publicado em 2012, teve origem em sua dissertação de mestrado defendida em 2004. Tal como indica o autor, desde aquele período, o trabalho foi ganhando maior envergadura, sendo publicado em revistas especializadas e complementado com outras pesquisas, que o autor procedeu entre 2005 e 2008. Seu texto é precedido por um Prólogo, escrito por Teresa Maria Malatian, no qual a autora destaca os méritos do livro e da trajetória do autor; por uma Apresentação, escrita por Marieta de Moraes Ferreira, que mostra a importância do ensino de história, em contraponto com a ainda lamentável escassez de estudos no que se refere à institucionalização d ensino universitário de História no país; e por um Prefácio, escrito por Ivan Manoel, em que são estabelecidas relações interessantes entre a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Colégio Pedro II, em 1838, e a criação da Universidade de São Paulo, de sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e seu curso de Geografia e História em 1934, com vistas a apresentar como se pensou, ensinou e escreveu a história entre esses dois períodos, e como foi pensado o ofício de historiador no país.

No conjunto, esses textos introdutórios demarcam a importância de estudos como esse, que visam explorar o aparecimento do ofício de historiador no país, de modo a inquirir como foi pensado o trabalho do historiador profissional, o que seria definido como obra histórica e como se faria a pesquisa nesse campo de estudos. Além disso, alertam para a escassez de estudos e as poucas, ou remotas, relações que se procurou  estabelecer entre a história do ensino de história no Brasil e a criação dos cursos universitários de História, a partir dos anos 1930.

Note-se que, nesse período, foram criados os seguintes cursos: em 1934, o curso de Geografia e História da Universidade de São Paulo (USP); em 1935, o curso de História da Universidade do Distrito Federal (extinto no início de 1939, em função da criação da Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil); em 1938, o curso de Geografia e História da Universidade do Paraná; e, em 1939, o curso de Geografia e História da Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil (UB), que teria por função (no âmbito do projeto de centralização do ‘Estado Novo’) a organização e a padronização dos currículos dos cursos das Faculdades de Filosofia no país. Mas, como indica esse estudo, nem por isso teria ocorrido uma total padronização curricular nos cursos das Faculdades de Filosofia, ao comparar as mudanças curriculares do curso de Geografia e História da USP com o da UnB.

É tendo em vista questões como essa que o estudo de Diogo Roiz se propôs a demonstrar como se estabeleceu um conjunto de regras para o funcionamento dos cursos das Faculdades de Filosofia; de que maneira foram ocorrendo mudanças curriculares no curso de Geografia e História, de modo a torná-los cursos independentes em meados dos anos 1950; por fim, quais as experiências de ensino e pesquisa que se procurou colocar em prática no curso durante os anos de 1930 a meados de 1950. Com base nesse painel, o autor fez, na segunda parte de seu estudo, uma análise sobre as tentativas de escrita da história das civilizações em geral e da brasileira em particular, por meio de estudos pormenorizados das trajetórias de Alfredo Ellis Júnior (que foi professor na cadeira de História da Civilização Brasileira do curso de Geografia e História, durante o período de 1938 a 1956), de Sérgio Buarque de Holanda (que substituiu esse docente a partir daquele ano, e lá permaneceu até 1968) e de Eduardo d’Oliveira França (que foi professor na cadeira de História da Civilização Moderna e Contemporânea entre 1942 e 1968). O autor justifica esse recorte, tendo em vista o período em que durou o regime de cátedras na instituição.

Ao lado desse problema, percebe-se uma nítida tentativa de verificar como foram estabelecidas certas relações de gênero na instituição e no interior do curso nesse período. Para tanto, ao destacar como ocorreu o processo de institucionalização do curso de Geografia e História, fundamentando-se no modelo de legislação que foi posto em prática no período, o autor evidencia as disputas que se firmavam em torno dos concursos para as cátedras do curso, nas quais as mulheres eram preteridas, em função de uma corporação masculina que se implantou no curso, desde o início de seu funcionamento nos anos 1930. Nesse aspecto, a leitura desse primeiro capítulo se enriquece, ao ser feita junto com o apêndice número um do livro, onde o autor faz um exaustivo levantamento dos alunos matriculados e formados nos vários cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paul entre 1930 e 1950, para mostrar que o número médio de mulheres formadas era sempre maior que o de homens. Ao adentrar o curso de Geografia e História no primeiro capítulo, ele mostra que, nas defesas das teses, os números não eram muito diferentes. O grande fosso estava justamente na disputa pelas cátedras. Ao se referir a elas, o autor dá o exemplo da disputa que se abateu em relação à cadeira de História da Civilização Americana, pela qual disputaram o concurso dois homens e uma mulher (Alice Canabrava). Mesmo tendo ela tirado as médias maiores, foi preterida no concurso e a vaga ocupada pelo professor interino da cadeira cujas notas foram menores que as dela.

Foi a partir desses pontos que o autor se propôs a estudar as mudanças curriculares do curso entre os anos de 1930 e meados de 1950, quando estes viriam a se tornar independentes, em função da aprovação de lei federal em 1955. No capítulo, o autor destaca as mudanças curriculares de 1938, 1942, 1946 e de 1956 no curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Sua chave interpretativa está em destacar e comparar o período anterior e o posterior a 1939, quando então se estabelece a Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras, com seu curso de Geografia e História, de modo a verificar como se deu o processo de centralização curricular no período. Para além dessa problemática, o capítulo ainda dá indícios de como a pesquisa era colocada em prática no período, tema que recupera e desenvolve no terceiro capítulo, para mostrar que as mulheres se não eram preteridas durante esse processo inicial, em que eram assistentes das cadeiras, o eram quando tentavam disputar as cátedras nos concursos.

Com esse contexto traçado, o autor procurou inventariar as obras e as tentativas de escrita da história que ocorreram com Alfredo Ellis Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Eduardo d’Oliveira França, quando foram catedráticos no curso de Geografia e História. Mesmo nesse ponto, o autor não deixa de lado a referência às disputas e as relações de gênero, inquirindo e demonstrando como esses docentes viam as mulheres e sua participação nas disciplinas e nas cadeiras do curso.

Portanto, ao destacar como ocorreu o processo de institucionalização do ensino universitário de História, esse estudo contribui para que possamos conhecer melhor a história de nossos cursos universitários, sugerindo caminhos teóricos e metodológicos para a investigação da história de um curso universitário, além de contar um pouco da história dos cursos de Geografia e História no país.

Simone Toneli Oliveira Roiz – Professora do curso de Pedagogia na FIAMA, unidade de Amambai/MS. Mestre em Educação pela PUC/PR. Participa dos grupos de pesquisa: Cultura e Instituições educacionais (Unesp) e Teoria, metodologia e interpretações na história da historiografia no Brasil. E-mail: [email protected]

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Historia de la Educación en Chile (1810-2010) – SERRANO (RBHE)

SERRANO, Sol; LEÓN, Macarena Ponce de; RENGIFO, Francisca (Orgs.). Historia de la Educación em Chile (1810-2010). Santiago: Editora Taurus, 2012. Resenha De: GARRIDO, Felipe Andres Zurita. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 1 (34), p. 273-279, jan./abr. 2014.

Las publicaciones editadas bajo el nombre Historia de la Educación en Chile (1810 – 2010) son resultado de la investigación La educación ante el riesgo de fragmentación social: ciudadanía, equidad e identidade nacional (2008-2011) financiados por el Consejo Nacional de Investigación Científica y Tecnológica (CONICYT), como así también patrocinados por el Ministerio de Educación y la Pontificia Universidad Católica de Chile. La investigación fue realizada por un amplio y diverso grupo de investigadores dirigidos por la historiadora Sol Serrano.

A modo de consideración inicial, según las organizadoras, este trabajo no correspondería a una ‘historia general’ de la educación chilena, en tanto no tendría la pretensión de abordar todos los periodos y problemas de dicho fenómeno, por el contrario, declaran centrarse exclusivamente en identificar las motivaciones detrás de la instalación y extensión de la escuela, como así también del valor otorgado por diferentes actores a la destreza de la escritura, en otras palabras, su objeto de análisis central radica en responder el por qué y en qué circunstancias la escuela se fue haciendo ‘necesaria’. Por lo mismo la indagación se inicia ‘antes’ de que la escuela existiese fácticamente, apuntando así a recoger la ‘especificidad’ del fenómeno de la instalación y ampliación de la educación en Chile.

También es interesante informar que en este trabajo no hay uma intención por relevar a autores individuales en la elaboración de cada capítulo, de hecho estos no aparecen asociados a un o una autora em particular en gran parte del escrito, intentando así cuidar la idea de ‘obra unitaria’ a un trabajo realizado por varias personas.

En esta reseña se presentará y analizará el contenido de los dos primeros textos de esta colección publicados hasta ahora. El Tomo I Aprender a leer y escribir (1810 – 1880) aborda la características más sobresalientes de la educación desde la llegada de lo conquistadores españoles al actual territorio de Chile hasta fines del sigl XIX cuando lo educativo se mostraba como la política fundamental del Estado. El Capítulo I: Entre la oralidad y la escritura aborda el valor que tuvo la escritura en la ampliación y afianzamiento del Imperio Español em tanto poderosa ‘herramienta burocrático/administrativa’ vital en el control y organización del tiempo y el espacio colonizado, como así también ‘herramienta evangelizadora’ clave en el proceso de imposición del cristianismo. También se aborda la complejidad del encuentro de uma cultura letrada (española) y una cultura oral (indígena).

El Capítulo II: Una nueva comunidad política se centra en analisa el lugar que ocupó la educación en el contexto del proceso de independencia de Chile. Al instalarse un sistema político republicano qu concebía a su población como portadora de la soberanía popular, la educación pasó a ser considerada como la herramienta vital en la ‘formación moral del ciudadano’. Por esta razón, el naciente Estado jugó un claro papel en la organización y provisión educacional para la población. Esta es reconocida como la primera política propriamente pública del Estado chileno, que fue cimentando el camino de l instalación de un Estado Docente y un sistema nacional de educación, donde la Iglesia y la sociedad civil también tenían un espacio de participación importante.

El Capítulo III: Cuántos somos, cuánto saben. Estadística y alfabetización se centra en el análisis del rol jugado por la estadística como herramienta científica de cuantificación de la población y sus características. En ese marco, la escolarización y alfabetización como objetos de medición sufrieron cambios interesantes en la forma de ser abordadas.

En el Capítulo IV: Escuela, comunidad y Estado nacional se revisa la vinculación entre el Estado y la comunidad en torno a la figura de la escuela. Resalta en esta revisión la figura de un Estado que inicialmente más bien acompaña el esfuerzo y deseo de las comunidades locales por tener escuelas para sus hijos, autorizando el funcionamiento y financiando parte del costo de las mismas.

El Capítulo V: Hogar y estrategias familiares frente a la escuela s centra en la pregunta de por qué los niños y niñas no asistían a la escuela o lo hacían con mucha dificultad. A ojos del Estado y de los promotores de la escolarización esto se debía a una falta de compromiso de las familias con el desarrollo de sus propios hijos. Se plantea que la baja matricula y baja asistencia a la escuela se debía más bien a que esta se enfrentaba a la necesidad de las familias por sobrevivir económicamente, en tanto que su estructura precisaba del trabajo de los niños, mientras que por otra parte, el leer y escribir no eran habilidades necesarias aún para trabajar.

En el Capítulo VI: La escuela chilena en territorio mapuche se estudia el papel que jugó la escuela en el seno de dicha población indígena, desde las escuelas misionales creadas desde la época colonial hasta las escuelas del Estado chileno establecidas después de la intervención militar de este último en dicho territorio. En este proceso se muestra cómo la escolarización no fue identificada como una herramienta importante por las familias mapuches hasta antes de la ocupación militar, como así también se analiza cómo el Estado no construyó una política educacional específica para esta población debido fundamentalmente a que se esperaba una ‘integración’ que escondía un creciente proceso de invisibilización de la especificidad cultural del Pueblo Mapuche.

El Capítulo VII: Nuevos actores y nuevos vínculos trata de identificar las transformaciones que fueron realizadas en el proceso de ampliación de la escolarización y la alfabetización, centrándose en la emergencia de nuevos actores y dispositivos, tales como Preceptores, Visitadores e Inspectores, Textos Escolares, Aula. Estos nuevos actores y nuevos materiales son abordados en su complejidad interna y sus dificultades inherentes a un proceso fundacional y de incipiente expansión.

En el Capítulo VIII: Enseñar y aprender se abordan los diferente sistemas de enseñanza utilizados en esta etapa inicial de la escuela, poniendo énfasis en aquellos identificados como los más apropiados y más utilizados en la práctica pedagógica. También se aborda la estrutura curricular y características de los textos escolares entregados a los estudiantes en la escuela.

El Capítulo IX: El balance del siglo releva las características principales que tuvo la escolarización y la alfabetización hasta fines de siglo XIX. Dentro de estas resalta el carácter activo que jugó la población en la demanda social que hizo posible que el Estado levantara escuelas a lo largo del territorio. Se releva además el carácter diferenciado que tuvo la instalación de la escuela, tanto desde una perspectiva geográfica como social. También se identifica como algo importante el carácte centralizado que tuvo la dirección de la escuela en manos del Estado, tanto como oferente y a la vez como regulador. El Tomo II La educación nacional (1880 – 1930) aborda las características y problemas principales de la educación chilena en el passo del siglo XIX al siglo XX. En un contexto de grandes transformaciones económicas y sociales la escuela se comenzó a extender a lugares y sujetos nuevos. En dicho contexto la escuela creció y se institucionalizó, ayudó a democratizar al país en tanto se amplió su cobertura y permitió la emergencia de nuevos actores letrados, sin lograr transformar eso sí las estructuras de una sociedad económica y socialmente desigual.

En el Capítulo I: Liberalismo, democracia y nacionalismo de Sol Serrano se analiza el lugar que ocupó la educación en el contexto político de cambió del siglo XIX al siglo XX, caracterizado por la redefinición del Estado en un contexto de competencia regional y mundial, como así también por la ampliación y complejización del ordenamiento político marcado por la emergencia de nuevos actores. En esta línea, la educación asumió un lugar central en la discusión del tipo de país que se pretendia construir al cumplirse el primer Centenario de la Independencia.

El Capítulo II: Un Chile escolarizado y alfabeto de Macarena Ponce de León analiza las contradicciones y complejidades del importante proceso de ampliación de la cobertura escolar y alfabetización de la población, lo que contrastaba con los altos niveles de ausentismo y deserción escolar de los estudiantes de las familias más pobres del campo y la ciudad.

En el Capítulo III: Escuela y hogar de Francisca Rengifo se aborda la forma en que el Estado y la clase dirigente miró la pobreza de la población chilena. Frente a la situación de precariedad que impedía a las y los niños llegar a la escuela, se asumió el desafío de establecer política de carácter social viabilizadas a través de la institución escolar diversificando así las tareas de la misma. De esta manera, la acción estatal, en asociación a la iniciativa privada de corte caritativo, se reflejó en una limitada asistencia en salud, alimentación y vestimenta a una parte ínfima de los estudiantes más necesitados.

El Capítulo IV: Una nueva pedagogía: la lectura y los saberes de la escuela primaria de Rodrigo Mayorga recoge las discusiones en torno a los lineamientos pedagógicos a utilizar en la escuela, donde es posible observar la intención de ir avanzando desde una comprensión del aprendizaje en base a la memorización a un modelo más reflexivo y creativo. Esto se expresa de manera compleja y a veces contradictoria em la incorporación de lineamientos pedagógicos foráneos junto a la inclusión de nuevas asignaturas y herramientas de enseñanza de la lectoescritura.

En el Capítulo V: Institucionalización de la escuela primaria de Pilar Hevia se analiza el creciente proceso de diferenciación del especi educativo a través del establecimiento de normativas sobre la organización espacial y temporal del mismo. Junto a esto se analizan también transformaciones llevadas a cabo dentro de las escuelas mismas como la inclusión del mobiliario y el cuaderno, que marcaron el establecimiento de una organización material específicamente dedicada al proceso de enseñanza y aprendizaje.

El Capítulo VI: La fuerza de la patria: educación física y ritos cívicos de Josefina Silva y Alejandra Concha aborda las discusiones que acompañaron la incorporación y formalización de la asignatura escolar de Educación Física en la escuela. Estas discusiones se articularon d manera concreta con los proyectos de construcción de la nación y de la ciudadanía en boga.

En el Capítulo VII: El preceptorado como actor social de Iván Núñez y Julio Gajardo se analizan los cambios acaecidos en la formación, organización gremial, condiciones laborales y participación socio-polític de las y los docentes. En el cambio de siglo, este grupo tuvo la capacida de articularse y comenzar a influir en la orientación y elaboración d políticas educacionales, reflejando así su complejización y acumulació de poder en un contexto de ampliación y burocratización crecientes del sistema educacional.

En el Capítulo VIII: Sin tierras ni letras de Daniel Cano se aborda el papel de la escuela en el territorio mapuche apropiado por el Estado. Si bien la población mapuche sometida al nuevo orden político no asumió la escolarización de forma masiva, sí hubo un grupo minoritario que accedió a la escuela convirtiéndose en los primeros mapuches letrados. Estos, poseedores de la herramienta de la escritura, en el futuro y desde posiciones diferentes asumieron liderazgos dentro de su comunidad en la defensa de sus intereses.

En el Capítulo IX: La educación en el pensamiento del movimento obrero se aborda la mirada y valor de la educación que asumieron las organizaciones de trabajadores asociados de orientación anarquista y socialista. Se revisa la complejidad de la mirada hacia la escolarización por parte del movimiento obrero, como así también se reflexiona sobre el carácter letrado de muchos de sus líderes y de la mirada específica com que se evaluó la posesión de dicha destreza.

El Capítulo X: Liceo de hombres. El Estado de pantalones largos aborda la fundación, orientación académica/curricular, ampliación de la oferta, formación de docentes específicos e institucionalización de la escuela secundaria masculina. También se estudia el rol jugado por la misma en la formación de una reducida y a la vez significativa intelectualidad que actuó en el espacio público y productivo, mostrándose como ejemplo de un limitado proceso de movilidad social.

En el Capítulo XI: El liceo fiscal femenino se trabaja la especificidade que asumió la tardía y finalmente explosiva ampliación de la escuela secundaria femenina, marcada por la activa participación de las famílias en su dirección, como así también por el impacto sufrido a nivel social a partir de la emergencia de mujeres cada vez más educadas, tanto en e espacio profesional como político.

Finalmente en el Capítulo XII: La educación para el trabajo se analiza la compleja relación entre escolarización y trabajo, ressaltando principalmente la idea de que el sistema productivo de forma mayoritari no requirió de trabajadores instruidos, situación que favoreció a que la formación educativa no entregara una posibilidad de ascenso o mejoramiento social a los trabajadores, centrándose más bien en u ejercicio de alfabetización y moralización de estos sujetos, evidenciándose así el divorcio entre lo educativo y lo socioeconómico.

Desde una mirada panorámica, se puede afirmar que este trabajo presenta la fortaleza de lograr mantener la estructura de una obra unitária a pesar de ser el resultado de un trabajo colectivo, de esta forma, no se trata del agrupamiento de diferentes capítulos, sino que mantiene la coherencia y unidad necesarias para abordar aquello que es su foco de análisis: cómo y por qué la escuela y la escritura se fueron haciendo necesarias y qué circunstancias especificas la hicieron posible. Esta revisión se hizo a través de la consulta de un amplio e interessante conjunto de fuentes, donde resalta el riguroso y esclarecedor trabajo com indicadores estadísticos de una amplitud temporal importante. Por otra parte, este es un trabajo que presenta ideas e hipótesis propias, que se ponen en diálogo con parte importante de la producción historiográfica nacional e internacional. Si bien hay omisiones importantes, como uma revisión a la Educación Universitaria y a la Educación Pre-Escolar, lo que podría llevar a proponer una modificación del título de este trabajo a Historia de la Escolarización en Chile, se reconoce la calidad y profundidad de las ideas y reflexiones contenidas en el mismo, las que abren caminos de análisis y estudio muy interesantes, tanto para investigadores chilenos como de otros países.

Felipe Andres Zurita Garrido – Profesor de Historia y Ciencias Sociales y Magíster en Educación por la Universidad Academia de Humanismo Cristiano. Estudiante del Doctorado Latinoamericano en Educación de la Universidad Federal de Minas Gerais. Participa del Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (GEPHE) de la UFMG. E-mail: [email protected]

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FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE. Grupo de Trabalho Educação & Saúde (REi)

FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE. Grupo de Trabalho Educação & Saúde. Resenha de: VIEGAS, Lygia Sousa. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 171-175, jan./jun. 2014.

Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de saúde e educação. São Paulo, 2012¹

Mais do que esperada, a publicação de “Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de saúde e educação”, capitaneada pelo Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade, foi mesmo comemorada por importantes setores da educação e da saúde, por representar um passo significativo no enfrentamento da patologização de crianças e adolescentes com dificuldades escolares.

Na introdução, os autores explicitam o que entendem por medicalização:

o processo por meio do qual as questões da vida social – complexas, multifatoriais e marcadas pela cultura e pelo tempo histórico – são reduzidas a um tipo de racionalidade que vincula artificialmente os desvios em relação às normas sociais a um suposto determinismo orgânico que se expressaria no adoecimento do indivíduo. (p. 14)

Citando exemplos de educação medicalizada, merece destaque a síndrome de burnout, que escamoteia as péssimas condições de trabalho a que professores estão submetidos; e a dislexia, suposta doença neurológica que impediria o aprendizado da língua escrita, explicação frágil nos termos da racionalidade médica, mas que cala o rico debate sobre a complexidade sócio-histórica envolvida nessa aprendizagem.

Ciente da importância desse debate, tal Fórum tem protagonizado a crítica à lógica medicalizante presente nas propostas hegemônicas de diagnóstico e tratamento daqueles que aprendem e se comportam de modos diferentes. Nesses debates, não é raro que, diante de casos emblemáticos, o Fórum seja interpelado por uma pergunta: “que fazer?”. Essa questão, nada simples, reporta à dimensão teórico-metodológica; envolve estudo, debate, (auto) crítica, reconfiguração, experimentações, disposição para (re)pensar… Em uma palavra, envolve trabalho.

Para realizá-lo, foi montado o Grupo de Trabalho Educação & Saúde, equipe interdisciplinar e multiprofissional2, que, durante aproximadamente um ano, reuniu-se sistematicamente, tendo por objetivo propor recomendações de como entender e atender tais situações sem recair no olhar medicalizante. Resultado de intenso trabalho, eis um documento riquíssimo, integralmente disponível no site do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, deixando clara a ausência de interesses corporativos.

Desde o início, chama atenção a linguagem ao mesmo tempo adequada e acessível, fundamentada na intencionalidade dos autores: que ele seja apropriado por profissionais que estão na ponta dos serviços de saúde e educação e que recebem crianças de quem se suspeita da capacidade de aprender e se comportar adequadamente.

Assim, dialogam diretamente com professores, médicos, psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos e enfermeiros, primeiro por meio de uma carta, e ao final, de uma despedida. Nesse diálogo, situam o aumento exponencial de encaminhamentos de alunos para serviços de saúde, situação reveladora da lógica medicalizante, pois parte da suposição de que as dificuldades vividas na escola decorrem de problemas dos alunos, mormente orgânicos.

Decorrência desse reducionismo, a pessoa, “de aprendiz passa a ser entendida e acolhida como doente” (p. 5).

Contrapondo-se a essa visão, as Recomendações se pautam em ao menos duas viradas teórico-metodológicas: primeiro, a concepção de aprendizagem como processo multideterminado, atravessado por diversos fatores que desembocam nas condições sociais. Como decorrência óbvia, diante de uma criança que fracassa na escola, para além de aspectos individuais, outros devem ser considerados, com destaque para os históricos, políticos, econômicos, sociais, pedagógicos, institucionais e relacionais.

A segunda virada é a percepção de que a superação do olhar medicalizante implica em não focalizar apenas o que falta à criança (atenção, disciplina, alimento, coordenação motora), mas buscar suas potencialidades, ponto de partida para qualquer mudança significativa. E buscar potencialidades implica em se conectar com o sujeito singular, e não operar com a ultrageneralização que sustenta os manuais normativos.

Partindo dessa compreensão, os autores buscam afetar a atuação profissional em três âmbitos: ético-político (já que se apoiam numa tomada de posição e engajamento nas políticas públicas); acadêmico-científico (pois formulam estudos e argumentos teóricos sobre o tema) e técnico (uma vez que fornecem instrumentos potencializadores de práticas de educação e saúde).

Antes de elencar as recomendações propriamente ditas, deixam claro: este não é um manual fechado de diagnósticos e condutas. Ao contrário, trata-se de documento aberto, que partilha um conjunto de experiências interessantes na educação e na saúde, a fim de potencializar escolas e serviços de saúde na criação de práticas não medicalizantes. Assim, apresentam capítulos diferentes para os seguintes campos3: escolas; cuidados em saúde; fonoaudiólogos que trabalham com leitura e escrita; interação de profissionais em rede de serviços, setores e com a comunidade; e políticas públicas.

Ao adentrar no tema do fracasso escolar, os autores relatam uma curiosa situação vivenciada pelo GT: ao ouvir a opinião de educadores, foi notável que, se as escolas tendem a operar com a individualização, encaminhando alunos que aprendem ou se comportam de formas diferentes para os serviços de saúde; elas, ao mesmo tempo, reconhecem a importância de parceria respeitosa e democrática na direção de superar as dificuldades enfrentadas não apenas por alunos, mas também pelos educadores, todos cientes de que a escola oferecida está longe de ser a desejada. Ou seja, eles sabem que o número de alunos em sala de aula, a arquitetura da escola, as políticas educacionais, os materiais pedagógicos, o salário e as condições de trabalho afetam a aprendizagem e o comportamento dos alunos, o que significa reconhecer que os alunos não são o foco do problema. Dessa discussão, depreende-se que há nas escolas terreno propício à consolidação de práticas não patologizantes, que podem ser bem recebidas nas escolas também porque nelas há a aposta na potencialidade da escola em lidar com as dificuldades.

Analisando especificamente o capítulo “Recomendações para a escola como espaço potencial”, destaca-se a crítica à busca de culpados, que focaliza apenas as faltas de todos, produzindo efeitos imobilizadores. E pergunta: “Não seria interessante mudar a lógica da culpa para a busca de possibilidades de compreensão dos envolvidos no processo ensino-aprendizagem e ampliar as intervenções e ações na escola?” (p. 43) Sendo a escolarização um fenômeno complexo, a recomendação é a busca de estratégias que reconheçam essa complexidade.

Rompendo a ideia de receita, apostam que casos singulares devem ser analisados em sua singularidade, que, ao mesmo tempo, deve ser compreendida no conjunto de aspectos envolvidos. As recomendações concretas são: implicar a escola como um todo na construção de projetos pedagógicos; discutir e refletir coletivamente sobre iniciativas e estratégias bem sucedidas; planejar estratégias grupais; articular os interesses de alunos e o de professores no planejamento das atividades pedagógicas; aprender e ensinar a conviver com a diferença.

Apesar de haver capítulos específicos para as diversas áreas envolvidas, há um capítulo que recomenda a parceria entre equipes, serviços e comunidade. Os autores sabem que tal proposta não é simples, sobretudo frente à sobrecarga de trabalho de todos; à dificuldade de trabalhar de forma partilhada; e por vezes à falta de autonomia dos profissionais e equipes. No entanto, o argumento em seu favor é consistente: acionar diferentes saberes e perspectivas caminha na superação da fragmentação das práticas dominantes.

Entender tais dificuldades, em realidade, é parte do trabalho, e por isso há no documento sugestões de como lidar com elas.

Finalmente, vale enfatizar a importância do capítulo voltado para as políticas públicas, pensadas a partir da defesa de sua construção a partir da plena participação popular. Assim, recomendam a atuação junto aos conselhos de classe, sindicatos, instâncias de controle social, buscando abrir canais de comunicação com o poder público, bem como o amplo debate, esclarecendo a população sobre a complexidade envolvida nas políticas públicas de atenção às dificuldades de escolarização, sobretudo quando com contornos medializantes.

Vale ressaltar que, ao longo das Recomendações, os autores generosamente trazem diversas sugestões de leitura e vídeos para subsidiar a compreensão do tema, além de sugerirem algumas possíveis práticas. E deixam claro, tanto no começo, quanto no final, que se trata de um documento aberto, o que significa que ele é apenas um passo na direção da reunião de recomendações de práticas aos profissionais.

Mas esse não é um passo qualquer. É um passo fundamental, pois abre uma nova trilha, que agora pode ser percorrida e ampliada por outros profissionais, dando continuidade à consolidação de caminhos outros, que possam de fato acolher e enfrentar as dificuldades, mas apoiados no respeito às diferenças. Sem concebê-las como doenças.

Notas

1. Disponível em . Acesso em: 24 de abril de 2013

2. Compuseram o GT profissionais de antropologia, fonoaudiologia, medicina, pedagogia e psicologia, das seguintes instituições: Associação Palavra Criativa/IFONO, Centro de Saúde Escola “Samuel Barnsley Pessoa” da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas (UNICAMP), Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Psicologia da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP), Campus Assis, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar, Instituto SEDES Sapientiae, Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisa em Psicologia Escolar e Educacional, Rede Humaniza-SUS, Serviço de Psicologia do Hospital do Servidor Público Municipal e União de Mulheres do Município de São Paulo.

3. No âmbito da presente resenha, serão destacados os aspectos relativos à educação, por ser este o foco da Revista Entreideias. No entanto, reconhecemos a riqueza e profundidade do material apresentado nas Recomendações no campo da saúde.

Lygia Sousa Viegas – Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFBA. E-mail: [email protected]

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A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito – COELHO (REi)

COELHO, J. R. A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito. Rio Grande do Norte: Editora Sapiens, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Ariane Rocha Felício de. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014.

A obra de José Ramos Coelho, filósofo e doutor em psicologia clínica, tem como proposta principal mostrar como a psiquiatria está ampliando seu campo de conhecimento e atuação para todos os aspectos da vida humana, levantando um debate em torno da temática da medicalização. As questões próprias das pessoas e da sua existência estão sendo postas como algo relacionado à bioquímica cerebral, podendo ser, com isso, lidadas apenas com indicação de fármacos. O modo pelo qual a crítica à medicalização da existência se dá é, tomando os gregos clássicos como exemplo, a partir de uma alusão a um espetáculo teatral, no qual estão envolvidos os personagens, o cenário, a trama e os atos, contextualizando criticamente as práticas dos médicos, sobretudo dos psiquiatras, a partir de uma perspectiva filosófica. Numa linguagem de fácil compreensão e com uso frequente de metáforas e ironias, o livro discute a morte do sujeito enquanto ser pensante e dotado de sentimento e sensibilidade, através de uma “cura” das suas inquietações por meio de fármacos.

Fortes emoções, sentimentos intensos, dor, alegria, falta de concentração, etc. Tudo isso está sendo concebido como doenças mentais ou como sinal de algum distúrbio. Nesse sentido, Ramos traz na sua obra que a psiquiatrização da existência está suscitando um grande aumento no número de casos de doenças mentais ao longo de todo o mundo, usando como exemplo o autismo, o qual passa por um crescimento significativo dos casos. O modo pelo qual a medicina contemporânea, sobretudo psiquiatria, está concebendo o homem é, em realidade, o sintoma de uma mudança mais ampla e profunda, uma vez que as ciências médicas não estão à parte da sociedade, mas são, também, o reflexo dela.

O contexto médico-hospitalar está refém do que Ramos denomina de “pharmacolonialismo”. Se com o avanço tecnológico a medicina conseguiu progressos significativos para o controle e a erradicação de algumas doenças, outras novas estão surgindo e/ ou sendo inventadas pelo marketing da psiquiatria. No protocolo seguido pelos médicos e psiquiatras, parece que aquele ser humano “cuidado” é o que menos importa no cenário. Ir de encontro a essa perspectiva é a grande luta presente no livro, ele convida o leitor a refletir criticamente acerca da medicalização de todos os aspectos da vida, se portando contra o fenômeno, sendo a favor da singularidade, da autonomia e partindo para uma defesa contundente da vida.

Ramos nos põe a pensar que a doença no cenário atual está sendo analisada de forma descontextualizada. O enfoque principal é o agente patogênico ou a desordem e desequilíbrio na saúde que possa estar causando tal manifestação, negligenciando o adoecer como um processo. É como se a doença fosse considerada como uma fatalidade que ocorreu ao indivíduo, como se a pessoa fosse uma vítima de um infortúnio indesejado que a acometeu. O autor ressalta que a doença está presente num contexto, que pode ser oriundo de um conflito vivido pela pessoa ou do ambiente externo do qual ela faz parte; salientando que esses fatores estão sobrepostos e não atuam sozinhos.

É interessante pensar na reflexão que Ramos faz sobre os diferentes momentos vividos pela psiquiatria: antes vivíamos a história do horror, em que as torturas eram permitidas e o internamento era a saída mais plausível; hoje vivemos uma busca voluntária por um tratamento, na tentativa de aliviar os sintomas apresentados, de procurar seu papel social, ser escutado e cuidado. Dentro desse último momento é que Ramos afirma que a subjetividade contemporânea se sustenta: no primeiro momento o paciente, sentido algum tipo de mal-estar, se envolve na relação, buscando ser ouvido/assistido; no segundo, o conteúdo presente no seu discurso é “decodificado” a partir de um saber médico já pré-estabelecido, no qual a fala só se torna inteligível no momento em que é nomeado ou inserido em algum tipo de doença ou patologia; no terceiro, após a análise dos sintomas e sinais apresentados, o paciente é diagnosticado no seu mal-estar, classificado e batizado; finalmente no último ato, ele é medicado no intuito de voltar ao seu sadio e normal.

Usando o mito da caverna para elucidar sua crítica, Ramos afirma que quando a pessoa chega ao consultório médico a fim de buscar ajuda, ela julga não saber sobre sua própria história, não compreender o que se passa com ela. Ramos alega que isso ocorre, pois ela foi acostumada a pensar assim, muito embora ressalte que a pessoa que carrega consigo aquele mal-estar é também quem porta o conhecimento sobre sua própria angústia, seu próprio sofrimento; o fato é que não se tem noção desse conhecimento, pois, por vezes, as pessoas não conseguem acessá-los. No consultório, a pessoa encontra um especialista que supostamente (e os dois lados supõem isso) detém o conhecimento apropriado sobre o que está se passando e, com isso, é capaz de curá-la.

O autor ressalta que o perigo dessa doação dos cuidados da sua vida para um especialista pode estar na maneira com a qual o psiquiatra lida com isso. A quem ele está servindo? Ao paciente ou ao sistema? Ramos salienta que o psiquiatra pode assumir posturas diferentes. Pode se posicionar no sentido do não-saber e dialogar com a pessoa que o procura, estando aberto para a escuta, voltando seu trabalho para o esclarecimento, permitindo que o outro se conheça, possibilitando liberdade do sujeito. Por outro lado, o profissional pode se posicionar ao lado do sistema, facilitando a permanência da pessoa no lugar de alguém “cego” sobre sua própria vida, classificando-o dentro de alguma patologia e indicando o melhor fármaco a ser administrado.

Ramos tem o cuidado de não culpabilizar o médico/psiquiatra pelo possível posicionamento de surdez diante da pessoa que o procura. Ele salienta que o médico também está preso dentro do sistema (estão também aprisionados nele), que é regido pelo pharmacolonialismo. Caso se distancie dessa lógica e atue de outra maneira, o médico pode sofrer consequências reais, tais como ser processado por negligência e descaso. Com isso, muitos profissionais continuam seguindo o protocolo do sistema, pois isso lhes imuniza e assegura.

Ramos questiona o conceito de saúde, visto como a capacidade em manter-se em equilíbrio, argumentando que o sistema pode se manter saudável mesmo com mudanças, existe a possibilidade de adaptação dessas modificações. Além desse argumento, também salienta outro, através de uma metáfora com um skatista, concluindo que a doença poderia ser vista como uma tentativa do organismo de voltar para o seu equilíbrio. Ter saúde, então, não seria viver num preso modo que consensualmente é aceitável, mas poder sair do equilíbrio e depois equilibrar-se novamente, tendo domínio sobre isso, tornando a vida menos enrijecida.

A partir de uma historicidade rica e interessante através da filosofia, sobre concepção de saúde, Ramos salienta que o homem se situa entre a natureza e a cultura, perpassando-se entre os dois. A busca por precisão das ciências exatas, a exigência de cientificidade acaba inibindo esse confronto entre as duas instâncias citadas. A ciência da saúde segue esse rumo e tende a transpor os conflitos do homem a conhecimentos e técnicas dos estudos bioquímicos, tentando curá-los através de medicações. Sobre essa questão (uso de medicamentos), Ramos enfatiza o crescimento das indústrias farmacêuticas a partir da segunda metade do século XX e sua importância para a verdade seguida pelos psiquiatras: “a verdade como adequação do diagnóstico à doença, via medicação”, sem manifestar muita sensibilidade com o outro e sua história. Embora a ciência da saúde tenha a pretensão de uma objetividade, de uma exatidão, Ramos ressalta que não é possível medir através de instrumentos, como régua e esquadro, se uma pessoa se encontra doente, portanto, esse diagnóstico fica a critério da subjetividade do psiquiatra; salientando que as fronteiras entre o normal e o patológico nunca foram demarcadas.

Fazendo uma alusão à bíblia, o autor afirma que quem rege esse modo de classificar as pessoas entre doentes e sadios é o código geral de doenças mentais. É ele que traz o consenso dos psiquiatras daquilo que deve ser considerado normal ou anormal; Ramos questiona o critério de verdade, a cientificidade desse consenso.
O autor questiona também a objetividade científica do DSM, que é fundado em comportamentos observáveis, quantificáveis e testáveis, parecendo negligenciar que os humanos são dotados de cultura, valores e linguagens. Com o DSM e o CID, toda a atividade profissional do psiquiatra é ouvir a queixa do paciente e enquadrar o que ouviu em alguma categoria nosológica, enquadrando-o e medicando-o, o sentido do enredo do paciente não interessa muito.

Com isso, para o autor, a psiquiatria acaba deixando de lado seus próprios objetivos, acarretando nas palavras do autor, uma “morte da psiquiatria”, pois tal especialidade médica tem como objetivo estudar a alma humana (psique=alma; iatros=médico) e não atuar da maneira que a nova psiquiatria atua, numa afinidade considerável com a neurociência, medicina e genética, deixando de lado uma postura terapêutica prospectiva e uma sensibilidade que o tornaria capaz de sentir o outro.
Ramos faz uma crítica a respeito das medicações, que vai além de efeitos colaterais ou dependência química, o autor se reporta também à permissão para o desequilíbrio, uma vez que ameniza qualquer sentimento, autoriza que a pessoa se sinta assim. O revista entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014 169 medicamento atua como uma máscara da aparência da normalidade e causa também uma “despersonalização”, o que contribui fortemente para a morte do sujeito.

Nessa obra, o autor procura refletir e demonstrar sua crítica a respeito da visão unilateral (via medicamentosa) das questões humanas. Querer tratar os conflitos com medicamentos é, para Ramos, suprimir a pessoa enquanto sujeito, criador de si e das suas particularidades. Ademais, o autor crê na possibilidade de uma intervenção terapêutica eficaz que respeita o reino da subjetividade.

Ariane Rocha Felício de Oliveira – Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação. E-mail: [email protected]

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Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos – MOLL (ER)

MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. Resenha de: ZUCCHETTI, Dinora Tereza. A Educação integral no Brasil. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.38 n.4 out./dez., 2013.

A obra intitulada Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempo e espaços educativos é o resultado do trabalho teórico-reflexivo de 54 professores/pesquisadores e técnico científicos, que possuem em comum a experiência da gestão da política, da intervenção e do acompanhamento sistemático de práticas que compartilham dos pressupostos do que vem sendo pensado como Educação Integral, no país. O compêndio de 504 páginas é composto de três partes: Compondo matrizes para o debate, Possíveis configurações da escola, Vivências e itinerários em políticas públicas, totalizando 37 artigos que vêm precedidos por uma Apresentação, Prefácio e Introdução.

O tema central da obra, a Educação Integral, é apresentado como um esforço para instituir, em nível nacional, “[…] uma escola republicana, laica, obrigatória, gratuita e integral” (Lacerda, 2012, p. 17) que resgate o direito da educação pública de qualidade, para todos, conforme o previsto na Constituição Federal de 1988. Inspirada nos ideais de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire e seus sonhos em implantar escolas de dia inteiro, a Educação Integral se concretiza através do Programa Mais Educação, criado no ano de 2007, desde onde o Ministério da Educação cria estratégias para a ampliação da jornada e do currículo escolar.

Contornos mais precisos à Educação Integral estão previstos no Projeto de Lei nº 8035 (Brasil, 2010), que através do Plano Nacional de Educação para o período de 2011-2020 lança como meta oferecer educação em tempo integral em 50% das escolas públicas de educação básica. Por sua vez, estratégias orientam a progressividade do alcance do programa: a reestruturação das escolas públicas, o regime de colaboração na execução da política, a ampliação da gratuidade dos estudantes matriculados, a extensão da proposta às escolas do campo, considerando suas particularidades, entre outras.

Isto significa para Giolo (2012), o resgate de questões histórico-conceituais para o debate da Educação: “[…] o Brasil, finalmente, abriu-se politicamente aos interesses populares e está realizando ações educacionais de grande porte” (p. 98). O autor segue apontando para a necessidade de reformular as escolas públicas de educação básica, no que se refere ao tempo, espaços e formação docente, mas como o próprio adverte: vamos por parte! Sugestão que acolhemos nesta escrita, ao trazermos as discussões apresentadas por alguns dos colabores da obra.

Inicialmente, convém melhor situar o que, para Moll (2012, p. 27) funciona como um divisor de águas. Embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), prevê a ampliação do período de permanência na escola a critério dos sistemas de ensino, é efetivamente no ano de 2006 através Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e, em 2007, com o Plano de Desenvolvimento da Educação que é criado o Programa Mais Educação, através da Portaria Normativa Interministerial nº 17, de 24 de abril de 2007, regulamentado, posteriormente, pelo Decreto nº 7.083 de 27 de janeiro de 2010, que se criam as condições para uma educação ampliada. Trata-se, segundo Moll, de um esforço na composição de uma agenda para a Educação Integral, à qual se somam ainda o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE/FNDE) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE/FNDE).
Desta forma, explicita-se que o Mais Educação é o programa estruturante de uma educação que, ao ver seus tempos e espaços ampliados, não quer incorrer em “mais do mesmo”, conforme afirma Moll.

A identidade do Programa Mais Educação é a sua preocupação em ampliar a jornada escolar modificando a rotina da escola

[…]. Esse aspecto refere-se ao esforço para contribuir no redimensionamento da organização seriada e rígida dos tempos na vida da escola, contribuição esta reconhecida nos conceitos de ciclos de formação que redimensionam os tempos de aprendizagem e de cidade educadora, território educativo, comunidade de aprendizagem que pautam novas articulações entre os saberes escolares, seus agentes (professores e estudantes) e suas possíveis fontes. Esses últimos articulam as relações entre cidade, comunidade, escola e os diferentes agentes educativos, de modo que a própria cidade se constituía como espaço de formação humana (Moll, 2012, p. 133).

De outra feita, é consenso entre os autores que investimentos de natureza diversa nas escolas, entre eles, os físico-financeiros, em especial, àquelas que apresentam baixos índices de desenvolvimento na Educação Básica, dimensionam o caráter da discriminação positiva, de ação afirmativa, presente no Mais Educação. Nesta perspectiva, seguem os escritos de Arroyo (2012, p. 33) quando defende a Educação Integral como uma elevação da “consciência política de que ao Estado e aos governantes cabe o dever de garantir mais tempo de formação, de articular os tempos-espaços de seu viver, de socialização”. Ao mesmo tempo, o autor alerta para os riscos de uma Educação Integral, de baixa potência, ao afirmar que: “[…] uma forma de perder seu significado político será limitar-nos a oferecer mais tempo da mesma escolar, ou mais um turno – turno extra – ou mais educação do mesmo tipo de educação” (Arroyo, 2012, p. 33).

Por sua vez, Brandão 2012, ao discutir a partilha dos saberes e a educação que se oferece hoje, reverencia a Educação Integral na escola de dia inteiro, afirmando que:

Em nada esta proposta confunde-se com uma pedagogização da vida, ou uma espécie de expansão impositiva da cultura escolar, a outros redutos do cotidiano. Antes pelo contrário, trata-se de, em primeiro lugar, libertar a própria educação de seu pedagogismo utilitário que, ele sim, aprisiona a cada dia mais a própria escola entre momentos de um ensino centrado em uma progressiva árida funcionalidade (Brandão, 2012, p. 69).

Seguem Chagas, Silva e Souza (2012) realizando um estudo, mesmo que breve, das experiências em educação realizadas por Anísio Teixeira e suas escolas-parque, na década de 1950 e por Darcy Ribeiro e os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), em 1980. No encontro fecundo destes dois grandes educadores, os autores buscam contribuições para os fundamentos da Educação Integral, questão que aparece de forma recursiva na maioria dos textos que compõe o livro.

Assim, os diferentes colaboradores vão se posicionando e construindo seus argumentos no sentido de criar interfaces entre a ampliação do tempo escolar, a aposta num currículo integrado e integrador, em especial, contando com o apoio do entorno da instituição escolar e de parcerias com outras organizações governamentais e não governamentais e o terceiro setor na execução de uma política de Educação Integral.

Entretanto, do mesmo modo em que se produzem argumentos de defesa à implantação plena da Educação Integral, no Brasil, apresentam-se seus grandes desafios. A emergência de novos perfis profissionais ao lado da docência está entre eles. Isto é o que postula Leclerc (2012, p. 314).

A educação integral é mediatizada pelo trabalho dos profissionais da educação, das áreas sociais, culturais, do esporte e outras, dos educadores populares com saberes reconhecidos e estudantes universitários […] de modo a consolidar as demandas formativas ao sistema nacional de formação e aos programas nacionais de formação.

A parte as questões de fundo e suas reflexões teórico-epistemológicas, o livro apresenta um conjunto de experiências já realizadas, de norte a sul do país. Estas conformam diferentes modalidades de organização para os espaços/tempos, nas escolas de dia inteiro. Muitos relatos apontam para as possibilidades, outras para os desafios de tais empreendimentos.

Neste sentido, as questões apresentadas por Sperandio e Castro (2012, p. 327) relatam as ações ocorridas no estado do Espírito Santo e explicitam os desafios, as barreiras e as dificuldades na implantação de um novo desenho pedagógico para uma educação que considere “a dinâmica da vida urbana, onde se concentram aproximadamente 70% das escolas e matrículas e, a especificidade do campo”.

A realidade de Salvador (BA), relatada por Santos e Vieira (2012) nos coloca perante os problemas do espaço e da estrutura física das escolas enquanto premissas que não podem ser ignoradas na implantação do Mais Educação, bem como na garantia de uma educação integral de qualidade.

Goiás, por sua vez, opta por proporcionar o enriquecimento escolar destacando os Projetos de Atividades Educacionais Complementares que são desenvolvidos em espaços que ultrapassam a geografia da sala de aula. Neles se busca promover a integração do estudante com a comunidade escolar e familiar. “Estes projetos contemplam, diretamente, os diversos campos do conhecimento e estão ligados às áreas da arte, do desporto, da educação ambiental, da saúde e prevenção e integração social” afirmam Ferreira e Araújo (2012, p. 349).

Palmas (TO) aposta num modelo flexível, sendo que a execução de uma política de educação integral é apresentada como sendo anterior ao Programa Mais Educação. Há mais tempo a ampliação da jornada foi implementada, através de laboratórios de informática, de línguas e organizados espaços para práticas desportivas e culturais e o atendimento, segundo Souza (2012, p. 360) se dá “principalmente, por intermédio de convênios firmados com federações e associações na área esportiva e cultural”.

Outro arranjo institucional é apresentado por Apucarana (PR). Uma proposta educacional, local, que considera os Oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio proposto, em 2000, pelas Nações Unidas. Neste sentido, atividades nas áreas da saúde, assistência social, cultura, esportes, geração de emprego e renda, além de atividades educativas, norteiam a centralidade da educação integral de qualidade, para todos, assevera Silva (2012).

Goulart da Silva (2012), ao descrever as diretrizes conceituais e metodológicas do Programa Bairro-Escola de Nova Iguaçu (RJ), destaca a importância da intersetorialidade como eixo estruturante das ações. Educação, saneamento, segurança, saúde, habitação, cultura, lazer, assistência social são apresentadas como necessidades da cidadania que demandam intencionalidade na execução do Programa. Das dimensões metodológicas presentes nas oficinas de trabalho, destaca: o diálogo, a reflexão, o afeto, a ética, a aprendizagem, o lúdico e a estética.

Há ainda relatos de experiências que ocorrem em Belo Horizonte (MG), Diadema (SP), Santarém (PA), Santa Barbara d’Oeste (SP), Rio de Janeiro (RJ), Cuiabá (MT), que a seu modo descrevem comunidades educativas, cidades educadoras, projetos que consideram especificidades socioeducativas locais.

Desta feita, realizado o esforço de apresentar alguns fragmentos de uma obra extensa interessa-nos, também, resgatar certo viés de caráter socioeducativo que assumem as atividades que vem sendo realizadas pelo Mais Educação, entre elas as relatadas em especial, na Parte 3 da coletânea.

A escolha desta problematização, frente ao conjunto de questões que o livro apresenta, passa pelos interesses investigativos desta pesquisadora que vem realizando, nos últimos anos, investigações no campo da educação não escolar, da formação de educadores (sociais) e dos modos de socialização que se produzem no interior de projetos socioeducativos em meio aberto. Do encontro dos resultados destes estudos e frente aos debates em torno do Programa Mais Educação, abordados no livro, surge uma primeira pergunta: de que forma o Programa Mais Educação se articula, combina, colabora, com outros serviços sócio assistenciais oferecidos por organizações não governamentais, de terceiro setor e até pela própria escola, para compor o aumento da jornada escolar, com vistas a uma educação de tipo integral? Quem é este outro profissional da educação que atua na proposta da educação integral? Que formação este profissional, denominado de educador, oficineiro, demanda para poder cumprir as atribuições de uma nova arquitetura da educação brasileira?
De antemão tendemos a pensar que estas questões não estejam sendo discutidas nos fóruns de formação de professores e sequer estejam sendo debatidas no âmbito dos cursos de licenciaturas. Tampouco sendo refletidas enquanto articulações possíveis entre, por exemplo, entre atividades de extensão universitária e/ou o Programa Institucional de Iniciação à Docência – PIBID com o Mais Educação.

Tendemos as estas problematizações, também, por considerar a possibilidade de um maior (e salutar) diálogo entre as já conhecidas práticas de educação, os projetos socioeducativos em meio aberto e o Mais Educação. Os primeiros, ligados ao Ministério do Desenvolvimento Social, em geral, são executados por organizações não governamentais, por universidades e, de forma crescente, pelo terceiro setor e se caracterizam por acontecer na modalidade e turno contrários à escola, e estão voltados aos mesmos sujeitos que são afetos ao Programa Mais Educação.
Desde este contexto, ousamos pensar que haja pontos de convergência entre práticas socioeducativas em meio aberto e o programa Mais Educação. Muito embora, das ações, pode-se afirmar que não há a priori dialogo entre elas; situações que são relatadas por professores e educadores que atuam em ambos os espaços. Prerrogativa que se evidencia também no âmbito das políticas, nas diferentes esferas de governo, cujas práticas se dão de forma isolada mesmo que dirigidas aos mesmos sujeitos sociais.

Questões estas de aproximação que parecem também se evidenciar no campo teórico, em especial, quando alguns estudos apontam para uma certas convergências entre os projetos socioeducativos e o Programa Mais Educação. Vejamos: quer como socioeducativos em meio aberto ou através do programa Mais Educação estamos diante, nos dois casos, segundo Arroyo (2012, p. 35), de práticas de eminente caráter socioeducativo que se convertem em “[…] direito a proteção, cuidado e tempos de dignidade para a infância-adolescência populares”. Caráter este que se vê reforçado pela condição de política afirmativa e compensatória já experimentada, desde longa data, pelos projetos socioeducativos e outras políticas de assistência social.

Nesta linha de pensamento, seguem Dayrell et al. (2012) também partilhando de tal compreensão ao reafirmar que ao programa Mais Educação convergem as práticas de educação não escolar para dentro da escola.

De nossa parte permanecem muitas interrogações. Se, por um lado, as aproximações descritas acima são salutares, tensionadoras de ambas as ações, há de se perguntar também, no transcurso da execução do Mais Educação, se não há risco de criar novos abismos para a educação das classes populares. Alguns já são conhecidos nos socioeducativos em meio aberto que, hoje, mesmo que instituídos como política de estado vem sendo executados, quase que na sua totalidade, por organizações não governamentais e em especial pelo terceiro setor. Neste caso, carregam as lógicas da precarização do trabalho, de fazer mais com menos. Lógicas que operam, por exemplo, com a perda de direitos de trabalhadores, com a redução de estratégias de mobilização popular, entre outros.

Outrossim, e embora os questionamentos realizados faz-se importante registrar a grandiosidade e a importância da obra organizada por Moll (2012) que se destaca pela atualidade do tema, a pertinência do debate e o esforço em construir um arcabouço teórico que contribua para os estudos na área. Também merece registrar que os estudos e os relatos que compõem o livro têm o feito de alcançar aos leitores uma imensa lista de referências para pesquisa e maior aprofundamento teórico. Aos interessados no debate sobre a Educação Integral no Brasil, recomenda-se a leitura de Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos.

Referências

ARROYO, Miguel. O direito a tempos-espaços de um justo e digno viver. In MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 33-45.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O outro ao meu lado: algumas ideias de tempos remotos e atuais para pensar a partilha do saber e a educação de hoje. In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 46-71.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei n. 9394, de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB. Brasília, 1996. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2013. [ Links ]

BRASIL. Portaria Normativa Interministerial nº 17, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa Mais Educação. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2013. [ Links ]

BRASIL. Decreto nº 7.083 de 27 de janeiro de 2010. Dispõe sobre o Programa Mais Educação. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013. [ Links ]

BRASIL. Resolução/CD/FNDE nº 10, de 18 de abril de 2013. Dispõe sobre Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE/FNDE). Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013. [ Links ]

BRASIL. Lei nº – 11.947, de 16 de junho de 2009. Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE/FNDE). Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2013. [ Links ]

BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2013. [ Links ]

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Li n. 8035, de 2010. Aprova o Plano Nacional de Educação para o decênio 2011-2020 e dá outras providências. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490116>. Acesso em: 30 out. 2013. [ Links ]

FERREIRA, Jaime Ricardo; ARAÚJO, Seila Maria Vieira de Araújo. Ampliação de tempos e oportunidades no contexto escolar da Secretaria Estadual de Educação de Golias (GO) In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. [ Links ] P. 345-358.

GIOLO, Jaime. Educação em tempo integral: cinco dimensões para (re)humanizar a educação. In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 94-105.

GOULART DA SILVA, Maria Antonia. Diretrizes Conceituais e Metodológicas do Programa Bairro Escola de Nova Iguaçu (RJ). In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 380-412.

LACERDA, Maria do Pilar. Apresentação. In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 17-18.

LECLERC, Genuína. Programa Mais Educação e Práticas de Educação Integral. In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 307-318.

MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012.

SOUZA, Danilo de Melo. A Experiência em Palmas (TO) In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 359-367.

SPERANDIO, Adriana; CASTRO, Janine Matta Pereira de. Mais tempo na Escola: desafio compartilhado entre gestores, educadores e comunidade escolar da rede estadual de ensino do Espirito Santo (ES) In: MOLL, Jaqueline et al. Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P. 319-335.

Dinora Tereza Zucchetti – Doutora em Educação pela UFRGS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale. Bolsista Produtividade em Pesquisa (CNPq). E-mail: [email protected]

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Crossing boundaries: intercontextual dynamics between family and school – MARSICO et al (REi)

MARSICO, G.; KOMATSU, K.; IANNACCONE, A. Crossing boundaries: intercontextual dynamics between family and school. Charlotte, NC: Information Age Publishing, 2013. In: Revista Entreideias, Salvador, v. 2, n. 2, p. 259-265, jul./dez. 2013.

Crossing Boundaries: Intercontextual Dynamics Between Family and School é uma coletânea publicada em 2013 pela Information Age Publishing (IAP), organizada por Giuseppina Marsico (Universidade de Salerno), Koji Komatsu (Universidade Osaka Kyoiku) e Antonio Iannaccone (Universidade de Neuchâtel). O livro está organizado em duas seções, com cinco capítulos (1-5) na primeira seção e seis capítulos (6-11) na segunda. A primeira seção é intitulada Explorations of Regulatory Dynamics Taking Place During the Encounters of the Two Microsystems e a segunda Analyses of the Representations’ System Produced by the Actors in One Context (Family) Towards the Other Microsystem (School). Na última seção estão inseridos, ainda, três capítulos finais (Commentary; General Conclusion: Moving Be¬tween the Social Spaces: Conditions for Boundaries Crossing; e About the contributor).

A coletânea representa uma aproximação, um convite para o estudo dos processos educacionais a partir da perspectiva da psicologia cultural. O objetivo central da coletânea é analisar aquilo que acontece na zona de contato (border) entre a cultura familiar e a cultura escolar. O livro apresenta uma discussão sobre as fronteiras existentes entre esses diferentes contextos educacionais. Os autores propõem uma reflexão sobre os variados discursos que surgem na zona de fronteira e sobre o movimento de atravessá-las, observando o que acontece na vida cotidiana dos atores envolvidos. Ao analisarem o movimento entre os espaços sociais e os processos dinâmicos que acompanham o diálogo entre a família e escola, os autores recorrem aos diversos conceitos da psicologia cultural.
A presente resenha refere-se, especificamente, ao capítulo intitulado “Conclusão Geral – Movendo-se entre os espaços sociais: Condições para Atravessar as fronteiras” (General Conclusion: Moving Between the Social Spaces: Conditions for Boundaries Crossing) de autoria de Giuseppina Marsico. Esse capítulo situa-se no final da segunda seção do livro, na página 361 e trata do processo de atravessar as fronteiras entre a família e a escola.

Ao observarmos o contexto educacional brasileiro, é possível identificarmos uma fragmentação das vozes da família e da escola sobre o estudante, o que provoca uma separação e um distanciamento que não favorece o diálogo. Uma dificuldade relacionada à criança, ou adolescente, pode estar presente em meio aos dois contextos: o familiar e o escolar. Entretanto, verificamos uma tendência à fragmentação, como se fosse possível realizar tal separação. Muito comumente, a família responsabiliza a escola e a escola responsabiliza a família por situações que expressem alguma crise vivenciada no contexto escolar. Os signos relacionados à culpabilização e à demanda por ações estão presentes tanto na escola e quanto na família, diante da emergência do aluno-problema. Esses signos causam desconforto e costumam transitar de um lado a outro, ora no contexto familiar, ora no contexto escolar. Um aspecto que deve ser considerado nesse processo de (des)responsabilização diante das dificuldades apresentadas pelas crianças e adolecentes parece reverberar na dificuldade de ambos os lados da fronteira em sustentar a lei, o que acaba por delegar ao outro o exercício da mesma. Sendo assim, o diálogo que se estabelece na zona da fronteira, entre esses dois contextos, se apresenta como uma possibilidade cercada de tensão.

A escola brasileira ainda apresenta aspectos que favorecem o distanciamento de um diálogo entre a família e a escola, de uma forma reflexiva e que possibilita o movimento para as intervenções a partir das demandas e produções singulares do aluno. De modo geral, a escola se posiciona em um lugar assimétrico em relação à família, ocupando um lugar de poder. Marsico (2013) utiliza a metáfora da varanda (balcony) para indicar o lugar de poder ocupado pela escola. Segundo Marsico, na varanda se faz contato com o externo, há alguma forma de relação com o exterior, mas está presente certo empoderamento sobre o outro. À família, só é permitido o acesso à escola a partir de condições estabelecidas por esta última e, ainda assim, quando ocorre, não se dá de forma integral em virtude dos limites impostos pela mesma. Por mais que permita o acesso e tente proporcionar um diálogo a partir de uma escuta atenta ao que a família expressa, a escola se mantém no lugar assimétrico, que implicitamente envolve, também, uma posição de defesa.

Porém, tanto no contexto educacional privado quanto no público existem famílias que ultrapassam esses limites, essas fronteiras. No contexto privado, esse movimento pode ocorrer a partir de um signo de consumo, que reconfigura e desafia a assimetria da varanda, visto que reposiciona a família em uma condição de cliente que consome o serviço oferecido pela escola. Esta parece ser uma importante condição que permeia o diálogo entre a escola e a família no contexto privado.
Além disso, o que parece prevalecer é uma preocupação maior com as questões relativas à aprendizagem, considerando que a educação é guiada por fronteiras. Desde macrofonteiras, como os diferentes níveis a serem alcançados na educação formal escolar que revelam uma ideía de acumulação de conhecimento e avaliação de desempenho: do aluno espera-se que assimile o conhecimento proposto, sendo frequentemente avaliado em sua capacidade de apreensão deste conhecimento para em seguida progredir, ou não, para o ano escolar posterior. Essas macrofronteiras já sofreram diversas alterações semânticas ao longo da história recente da educação formal brasileira: o antigo jardim de infância foi renomeado como pré-escola, e agora educação infantil; o ensino primário foi transformado em ensino fundamental e assim por diante. Porém, muito pouco foi alterado no que se refere à lógica de assimilação e avaliação do desepenho acadêmico/escolar pelo estudante. Em outras palavras, mudou-se o semblante, não o conteúdo.

Ainda pensando nessas macrofronteiras, o modelo de progressão linear da educação formal reproduz uma lógica contrária à pro¬posta por Marsico. A educação formal baseada nesta lógica parece privilegiar o desempenho do estudante diante das expectativas criadas pela própria escola ao invés de fomentar as potencialidades deste mesmo estudante.

Tomando-se como referência um grupo de estudantes que estão situados em uma mesma macrofronteira, o sexto ano (antiga quinta série do Ensino Fundamental II) por exemplo, as histórias de vida, crenças pessoais, potencialidades de cada um constituem microfronteiras que são desconsideradas diante da visão homogeneizada desses sujeitos por parte da escola. Quando um aluno apresenta alguma demanda específica, nomeada como queixa escolar, essas microfronteiras são evidenciadas, influenciando no atravessamento das macrofronteiras. Como exemplo, um estudante que apresente conflitos em seu ambiente familiar que reverberam em seus relacionamentos com colegas, evidencia que dentro de uma mesma classe há diversos sujeitos singulares (microfonteiras) e que a partir de suas histórias pessoais podem apresentar dificuldades no desempenho escolar e na progressão para a série seguinte (macrofronteiras).

Quando um fenômeno como este ocorre (a queixa escolar) ou quando existe alguma questão, uma “etiqueta” psiquiátrica – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH); Transtorno Opositivo Desafiador (TOD); dentre ouros), ou comportamentos que geram incômodo na família ou na escola, o diálogo parece surgir como uma necessidade diante do não saber o que fazer em relaçâo a este quadro. Nestes casos, o diálogo se coloca como “condição” para o desenvolvimento do aluno, e às vezes, até para sua permanência na escola. Se por um lado, esse diálogo pode gerar maior trânsito nas zonas de fronteiras, por outro, é marcado por muitas implicações e resistências. As fronteiras se tornam mais fluidas quando há presença do diálogo, mas ao mesmo tempo surgem dificuldades de falar sobre os assuntos e pensar no que pode ser feito. As zonas de fronteiras se tornam, então, zonas de negociação.

Surge, dessa forma, a demanda real para o atravessamento da fronteira entre a família e a escola. É comum que a família busque ajuda da escola ou procure esclarecer aspectos importantes relacionados às eventuais dificuldades apresentadas pela criança ou adolescente. Do mesmo modo, frequentemente a escola procura a família para solicitar ajuda ou até mesmo encaminhar a criança para outros profissionais como, por exemplo, o parapedagogo:1 o médico, o psicólogo, o acompanhamente terapêutico e demais profissionais. Esses profissionais são convocados para responder às demandas de queixa escolar, que, na maioria das vezes, partem dos profissionais da escola ou da família, mas muito raramente dos estudantes.

Marsico desenvolve a ideia de que entre a escola e a família existe um terceiro lugar constituido pela fronteira entre os dois contextos e que emerge diante de situações que exigem o diálogo entre ambos os lados da fronteira. Em circustâncias nas quais a escola e a família são confrontadas a dar respostas sobre uma situação que desconhecem, como nos casos nos quais emerge um aluno-problema, observamos que esse terceiro lugar costumeiramente é ocupado pelos parapedagogos. Esses profissionais (médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais. etc) são convocados a responder, descrever e propor soluções para os conflitos que são supostamente o objeto de seu saber. Esses profissionais são, então, convocados a decifrar o enigma que se estabelece quando é identificado um “aluno-problema”.

A questão que se coloca é: em que medida esses profissionais que trabalham fora do espaço físico da escola (chamados “parapedagogos”, que apresentam consigo seus mais diversos tecnicismos) podem colaborar para a solução dos conflitos que acontecem na escola ou na família? Ao encontrarem uma classificação para os sintomas apresentados pelo estudante, e oferecerem uma etiqueta, não estariam reduzindo o fenômeno e criando marcas que podem afetar o desenvolvimento posterior da criança, ou do adolescente?

Atualmente, percebemos que a escola, no contexto privado, parece demandar e necessitar de outros saberes para responder a tais dificuldades, o que se torna importante na medida em que busca atravessar a fronteira do saber escolar/pedagógico e alcançar o diálogo com as outras áreas para ampliar as possibilidades de intervenção. Por outro lado, a escola parece vivenciar uma angústia do não saber, depositando muitas respostas nesses outros profissionais aos quais recorre, os parapedagogos. A atuação desses profissionais pode marcar a trajetória escolar e desenvolvimental do aluno. Em uma leitura acrítica de suas funções, os parapedagogos podem produzir rótulos, “colar” etiquetas diagnósticas aos alunos, que podem se perpertuar, desresponsabilizando os demais atores envolvidos no fenômeno, como a escola e os pais.

Um dos fundamentos mais caros à psicologia cultural é a concepção da cultura como um processo dinâmico em detrimento da noção de cultura como algo sólido repleto de construções simbólicas imutáveis e na qual o sujeito está inserido em uma relação de objeto, sendo um produto de sua cultura. A escola, ao longo da história, se traduz como uma das instituições que descrevem e representam os valores do tempo e da cultura coletiva. Em sua origem, como ocorreu com outra instituição social, a família, a lei oriunda da lógica patriarcal norteava as relações dentro e fora do contexto escolar. A verticalidade da lei, na modernidade, deu lugar à horizontalidade, na pós-modernidade, tradução da necessidade de reinvenção das soluções como consequência do declínio da autoridade.

Diante disso, podemos entender que a escola ocupava um lugar de saber e de poder. Com as mudanças da pós-modernidade, a escola começa a vivenciar uma crise em relação a tal saber e ao exercício da autoridade. Esta instuição, de modo geral, apresenta uma certa dificuldade e fragilidade nesse exercício, especialmente quando mantém uma relação de clientela com seus estudantes e com suas respectivas famílias. Dessa forma, destituida de seu lugar original, fica evidente o apelo que a escola faz à lei (externa). Não se trata de construir juízos de valor quanto a escola atual. A questão parace ser que, em um sociedade horizontalizada, a constituição das fronteiras já é marcada pela diluição, tornando a relação entre escola e família ainda mais tensa diante da falta de lei/autoridade, que gera corpos “sem gravidade”,2 “presas” fáceis para o discurso dos parapedagogos que diagnosticam e propõem a terapêutica para um sintoma do tempo encarnado no aluno.
Como já exposto, na escola privada o apelo à lei é feito muitas vezes pela via da medicalização. As crianças e adolescentes “problema” são abordadas por parapedagogos como neurologistas, psicólogos, psicopedagogos com o objetivo de reestabelecer a norma no desempenho escolar. No Brasil, diante dos últimos acontecimentos, observamos que na escola pública a questão parece ser da ordem não somente do restabelecimento da norma, mas da lei/ autoridade propriamente dita. Tem aumentado o número de casos em que a polícia é convocada pela escola, e comparece, para dar resoluções a conflitos que antes eram mediados e solucionados no contexto escolar. Como exemplo, recentemente, em uma escola municipal de Salvador- Bahia, a direção da instituição informou às famílias que, na presença de um conflito ou incômodo entre os alunos, os responsáveis deveriam se encaminhar para a delegacia para resolver a situação ou efetuar uma queixa formal. Aqui, já aparece uma questão que marca a vida e o imaginário das crianças e adolescentes: o “sujar” a ficha, o nome diante dos conflitos. Com uma queixa policial, aparece a ameaça da possibilidade do ato ficar registrado como um antecedente criminal, o que, na realidade, se refere à uma situação escolar, que deveria ser resolvida neste contexto e com os envolvidos no conflito.
Em resumo, diante dos argumentos trazidos por Marsico, parece não haver discordância no que se refere à necessidade de atravessar as fronteiras entre a escola e a família, através do estabelecimento de um diálogo que se transforme em uma ponte permanente entre os dois lados da fronteira. No entanto, notamos que essa condição se dá a partir de uma posição institucionalizada.

O calendário escolar contempla momentos de encontro entre a família e a escola, mas frequentemente esses encontros são carac¬terizados por um discurso prévio que aborda questões genéricas e que não contempla a singularidade do caso a caso de cada aluno. As reuniões de pais e mestres são o exemplo mais claro desta condição. Nesses casos, o conceito de varanda (balcony), traduz, com preci¬são, a posição assimétrica da escola com relação à família, pois é a primeira que determina o momento, lugar e a direção desse tipo de evento/encontro. Em contrapartida, na prática, a singularidade do aluno costuma emergir somente quando há o surgimento de uma crise que demanda o atravessamento das fronteiras. No restante dos casos, a singularidade costuma ficar silenciada pela suposta normalidade no desempenho do aluno, que na maioria das vezes o torna invisível à escola.

A pertinência do texto de Marsico reside, principalmente, na possibilidade de uma leitura singular do processo educacional, a partir da constatação de que a fronteira entre a escola e a família, ao fim de tudo, pode ser localizada, corporificada na própria criança ou adolescente. E é a partir dela que se constroem as pontes necessárias entre os lados da fronteira. O aluno seria, então, o terceiro lugar, marcando o “porquê” de atravessar a fronteira e mostrando o “como” esse movimento pode ser feito de forma a contemplar suas particularidades e sua trajetória escolar.

Notas

1 Termo criado pelos autores, usado pela primeira vez nesta resenha, para designar um conjunto de profissionais que têm sido cada vez mais presentes no entorno da escola: psiquiatras, neurologistas, psicólogos, acompanhante terapêutico, pediatras e psicopedagogos.

2 Termo utilizado pelo psicanalista Charles Melman em seu livro “O homem sem gravidade”, para se referir a agitação dos corpos na contemporaneidade em decorrência do declínio da lei.

Referências

MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.

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Gênero, etnia e movimentos sociais na história da educação – FRANCO (RBHE)

FRANCO, Sebastião Pimentel; SÁ, Nicanor Palhares (Org.). Gênero, etnia e movimentos sociais na história da educação. Vitória: EDUFES, 2011. (Coleção Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil, 9) Resenha De: FORDE, Gustavo Henrique Araújo. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 13, n. 2 (32), p. 249-255, maio/ago. 2013.

Há parcerias que apresentam resultados bastante profícuos: a Coleção “Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil” é um deles. Resulta de bem-sucedida parceria entre a Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em comemoração ao aniversário de dez anos de existência da primeira.

Publicada pela Edufes, a coleção comprova o êxito notável desse projeto editorial, que busca refletir parte das pesquisas realizadas na última década em História da Educação no Brasil, e leva o leitor a percorrer, de maneira ampla e profunda, diferentes temáticas localizadas em espaços-tempos diversos, sob análises a partir de variadas perspectivas teórico-metodológicas. O volume 9 da coleção, organizado pelos pesquisadores Sebastião Pimentel Franco e Nicanor Palhares Sá e intitulado Gênero, etnia e movimentos sociais na história da educação, é o objeto desta resenha.

O primeiro capítulo do livro, “Mulheres preceptoras no Brasil oitocentista: gênero, sistema social e educação feminina”, de autoria de Maria Celi Chaves Vasconcelos, investiga a construção social do gênero feminino a partir da educação doméstica, realizada por mulheres preceptoras no Brasil. A pesquisa analisa o sistema societário vivido pelas mulheres durante a segunda metade dos Oitocentos (1850-1889) e seus papéis sociais como preceptoras, professoras ou mães/mestras dos filhos, em diálogo com o tipo de educação permitida e/ou negada nessa modalidade educativa.

O artigo de Vasconcelos apresenta as diferenciações de gênero na educação e na infância de meninos e meninas do Brasil e identifica o perfil das mulheres preceptoras e as possibilidades que elas viam para a educação formal. As análises revelam que tais mulheres colaboraram para iniciar as primeiras rupturas na ordem estabelecida, no que diz respeito aos limites e às possibilidades femininas de trabalho, sustento e independência no Brasil dos Oitocentos.

O segundo capítulo, “Gênero e partilha desigual: a escolarização de meninas e meninos nas escolas mineiras do século XIX”, de autoria de Diva do Couto Gontijo Muniz, de boa inspiração poética, com epígrafe em que é citado poema de Carlos Drummond de Andrade, nos convida a questionar a lógica da partilha binária do sistema sexo/ gênero. Com esse fio condutor, a autora observa que as salas mistas constituem uma mudança ocorrida apenas no regime republicano do País.

As análises percorrem os conflituosos processos de instruções públicas, problematizando a lógica de partilha binária e desigual de gênero na instrução pública, que separava meninas e meninos com um atendimento escolar diferenciado, em conformidade com as legislações da época, dedicadas à organização e ao funcionamento das escolas mineiras. A autora finaliza o trabalho, concluindo que, mesmo que o percurso escolar dos meninos oferecesse possibilidades para o mundo do trabalho e da política e o percurso das meninas fosse destinado ao mundo do lar e da família, muitas mulheres não se sujeitaram plenamente às imposições educacionais e sociais da época, tendo optado pelo exercício profissional e pela autonomia financeira a partir do ingresso no magistério.

“O sistema coeducativo nas escolas protestantes em São Paulo (séc. XIX/XX)”, de Jane Soares de Almeida, é o terceiro capítulo do livro. Contextualizando os anos iniciais do século XX a partir dos princípios liberais e da educação marcada pelo conservadorismo dos anos pré-republicanos, a autora afirma que, a partir de 1870, escolas protestantes adeptas da coeducação buscavam ampliar a sua atuação no nosso país, pautadas em seus objetivos igualitários e democráticos, tendo como missão não apenas evangelizar, mas, igualmente, educar os indivíduos no âmbito da moral e da ética.

O artigo ressalta que as missionárias protestantes eram ativas defensoras de ensino igual para os sexos, tendo sido, inclusive, adotado o sistema de classes mistas sob o princípio da coeducação, o que favorecia a igualdade de oportunidades educacionais entre meninos e meninas. Todavia, finaliza concluindo que, apesar das classes mistas e da coeducação, meninos e meninas, na vida social, eram educados separadamente, e o lugar das mulheres seria o lar, fossem elas católicas, protestantes ou de qualquer outra orientação religiosa.

Com foco nos estudos de gênero, o quarto capítulo, “A instrução feminina na visão dos presidentes de províncias do Espírito Santo (1845 – 1888)”, de Sebastião Pimentel Franco, investiga a ação do Estado em favor da ampliação da oferta de escolarização para as mulheres no século XIX. A pesquisa estuda os primeiros passos dados na instrução pública do Espírito Santo oitocentista, pautada na garantia e na ampliação da oferta da escolarização primária às mulheres.

O artigo destaca que a ideia da submissão da mulher foi instalada na sociedade brasileira desde o início da colonização. A partir da terceira década do período oitocentista, com o advento da ideia de que a instrução tiraria o País do atraso e da incivilidade, diz o autor, a mudança desse cenário tornou-se favorável, uma vez que, para formar bons homens, era preciso formar boas mães. Na visão dos dirigentes dessa época, as mulheres eram a força motriz que impulsionaria a sociedade, sendo elas as formadoras e as educadoras das gerações futuras. Esse fato fomentou ações dos dirigentes da província do Espírito Santo, no sentido de garantir o acesso das mulheres à instrução e a ampliação do número delas no magistério. Assim, até o final do século XIX, o magistério primário se transformaria numa atividade feminina.

Em “Educação e perspectiva de gênero no novo mercado de trabalho vitoriense”, o quinto capítulo do livro, de autoria de Maria Beatriz Nader, é analisado o processo que favoreceu, em fins do século XX, que as mulheres vitorienses deixassem a vida doméstica em busca do mercado de trabalho. O artigo faz breve abordagem sobre a história da educação feminina na perspectiva dos estudos de gênero e descreve as alterações na formação instrucional e profissional das mulheres, no período pesquisado, com base no novo segmento profissional terciário representado pelas indústrias de base.

A autora destaca que, ao lado da modernização urbana, que trouxe novas oportunidades educacionais e profissionais às mulheres, impulsionando-as a saírem do âmbito doméstico e a lançarem-se no mercado de trabalho, o período de 1990 a 2000 foi marcado por um maior grau de escolarização feminina, o que contribuiu para que o trabalho doméstico se tornasse algo desprezível para as mulheres. Nader finaliza, concluindo que a qualificação profissional veio a ser significativa na vida das mulheres, na medida em que lhes permitiu maiores e melhores oportunidades no mercado de trabalho, que propiciaram a sua emancipação estrutural, financeira e familiar.

Marcus Vinícius Fonseca é o autor do sexto capítulo do livro, “Entre o cativeiro e a liberdade: a educação das crianças escravas nos debates sobre a Lei do Ventre Livre”, que trata das conexões entre o processo de abolição do trabalho escravo e a educação dos indivíduos oriundos do cativeiro, questão esta que, na análise do autor, mobilizou a sociedade brasileira durante o século XIX, possibilitando, inclusive, algum tipo de instrução para as crianças nascidas livres, de mulheres escravas, a partir da Lei do Ventre Livre, em 1871.

As fontes investigadas pelo autor apontam para a preocupação, na época, com a necessidade de os indivíduos oriundos do cativeiro serem submetidos a uma formação diferente daquela ocorrida no bojo da escravidão, sinalizando que os debates tratavam a abolição da escravatura e a educação dos indivíduos originários do cativeiro como ações paralelas e complementares, ou seja, indicavam que era necessário um processo de educação diferente daquele levado a efeito na escravidão, acompanhando a libertação do ventre; do contrário, as vítimas libertas da escravidão se converteriam em uma ameaça à sociedade.

“Entre a enxada e a caneta: a educação entre imigrantes italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul (Brasil)”, o sétimo capítulo, de autoria de Maria Catarina Zanini e Miriam de Oliveira Santos, investiga a importância da educação para imigrantes italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul, analisando o quanto a educação esteve presente na constituição das italianidades desse grupo étnico.

As análises demonstram que a família, vista como instância socializadora e compreendida dentro do contexto religioso e do mundo do trabalho, foi o elemento-chave para a sobrevivência desses imigrantes e descendentes, assegurando a transmissão do capital cultural e econômico e operando como espaço de socialização e preservação de práticas culturais e organizativas responsáveis pela existência cotidiana desses indivíduos.

Na época, o catolicismo de origem rural configurava-se como a religião trazida pelos imigrantes italianos, e muitas das ordens religiosas foram responsáveis por fundar escolas que ofereciam uma educação pragmática e positivista. O ensino, ali, desprezava o excesso de teorias, aproximando-se da visão expressa pelo ditado italiano “a enxada é o mais nobre instrumento do mundo, mais do que o livro e que a espada”.

O oitavo capítulo, “Uma escola luterana nas décadas de 1920 e 1930 no Rio Grande do Sul”, de Martin N. Dreher, registra que, no campo religioso, naquela época, a população estava dividida entre católicos romanos e evangélicos luteranos. Entre os luteranos, havia a instrução primária e a secundária. O ensino era bilíngue; a alfabetização se iniciava com a língua materna alemã e, posteriormente, sob a perspectiva do Estado Novo, as escolas comunitárias das colônias alemãs “desnacionalizavam” as crianças.

O artigo traz uma possível reconstrução do currículo da Escola Allemã de Montenegro, na qual grande importância foi dada ao estudo da organização social e política do Rio Grande do Sul; e, igualmente, apresenta uma possível reconstrução dos métodos de ensino utilizados nessas escolas comunitárias coloniais. No primeiro ano escolar, por exemplo, elas se pautavam no lema “escrever menos e falar mais”, evitando, assim, o método utilizado nas escolas brasileiras da época, que estava assentado em “desenhar” e “copiar”. O autor finaliza, apontando a riqueza dessas escolas, que formavam pessoas para o uso perfeito de dois idiomas e para uma futura vida profissional.

O nono capítulo, “Educação, negros e racismo em Mato Grosso na Primeira República”, de Nicanor Palhares Sá e Paulo Divino Ribeiro da Cruz, é uma importante contribuição para suprir a lacuna acerca da história da educação de negros e de mestiços indígenas com negros, em Mato Grosso.

Os autores revisitam conceitos como eurocentrismo, colonialidade do poder e racismo epistemológico. Afirmam eles que, na passagem do século XIX para o XX, o sistema escolar em Mato Grosso foi marcado pela discriminação contra negros, pardos e brancos pobres, ao hierarquizar a sociedade a partir de uma lógica racial e eurocêntrica, numa época em que a população mato-grossense era majoritariamente composta por mestiços de negros e indígenas – as duas raças inferiores, segundo esse pensamento europeu.

As análises dos autores indicam que essa bipolaridade entre brancos e negros influenciava a constituição dos materiais didáticos e das carreiras educacionais do magistério, contribuindo fortemente para o processo de subordinação cultural e simbólica do negro brasileiro.

Em “Educação e lutas populares na história mato-grossense”, décimo capítulo, Artemis Torres investiga a dimensão pedagógica das lutas e dos movimentos populares em busca de seus direitos. Apesar de possuírem um caráter educativo reconhecido, tais movimentos e lutas raramente estão entre os temas de interesse para pesquisa. O autor destaca que várias ações educativas vinculadas aos movimentos sociais estão presentes nos currículos das Faculdades de Educação.

Os movimentos sociais, nessa pesquisa, são compreendidos como instâncias formativas e organizativas potentes para as mudanças sociais. Em vista disso, o autor se debruça a investigar as lutas sociais dos trabalhadores em Mato Grosso, representados pelo movimento popular conhecido como “banditismo”, e outras lutas sociais, como as do movimento dos “sem-terra”, das associações de agricultores, do movimento dos “sem-teto” e dos sindicatos urbanos.

Marlúcia Menezes de Paiva é autora do décimo primeiro capítulo, intitulado “Movimentos de educação popular no Rio Grande do Norte (1958-1964)”. Ela investiga duas experiências educacionais populares. A primeira trata das Escolas Radiofônicas, uma experiência em educação e cultura popular de alfabetização pelo rádio, e a segunda trata da campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, um movimento de educação voltado para as camadas populares; ambas as experiências foram realizadas na cidade de Natal. As Escolas Radiofônicas, destinadas prioritariamente à população rural, estavam assentadas no tripé: professoras-locutoras, monitores e rádio. Já a campanha “De pé no chão também se aprende a ler” esteve baseada na construção de escolas com cobertura de palha e chão de barro batido.

Esse último capítulo do livro ressalta que essas duas experiências de educação popular desenvolviam, ao lado da alfabetização, uma ação pedagógica conscientizadora. As análises priorizam os processos de formação dos professores, os materiais instrucionais e os conteúdos ditos conscientizadores, concluindo a autora que ambas as experiências representaram significativos movimentos sociais populares.

Por fim, o livro Gênero, etnia e movimentos sociais na História da Educação, organizado com maestria, reúne onze artigos que nos oferecem um bom panorama das pesquisas em História da Educação, orientados por três núcleos temáticos (gênero, etnia e movimentos sociais). Todavia, eles estabelecem conexões entre questões de gênero, classe, etnia e lutas sociais, conferindo significativa aderência aos trabalhos. Após a leitura do volume, é possível dizer, com tranquilidade, que se trata de obra imprescindível àqueles e àquelas que se dedicam ao estudo nesses campos de investigação que permeiam os “Horizontes da pesquisa em história da educação no Brasil”, título da coleção que resulta da parceria entre a Sociedade Brasileira de História da Educação e a Universidade Federal do Espírito Santo.

Gustavo Henrique Araújo Forde – Doutorando em Educação – PPGE/UFES. E-mail: [email protected]

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Educação e Psicanálise | Rinaldo Voltolini

São inúmeras as tentativas de conexões e de diálogos entre os campos da psicanálise e da educação. Desde Freud, a psicanálise busca evidenciar uma nova face da educação, propondo uma outra relação entre os dois campos. Sabemos que se a versão profilática da interação já foi, há muito tempo superada, ainda restam interpretações funcionalistas que, em tempos de pedagogias tecnicistas, tornam cada vez mais necessária a discussão sobre as condições e as possibilidades das interfaces deste litoral.

Pois esta é a proposta do livro Educação e Psicanálise, do psicanalista e professor da Faculdade de Educação da USP, Rinaldo Voltolini. Atualizando reflexões de Freud e de Lacan para os dias de hoje, Rinaldo começa propondo uma profícua reflexão acerca dos termos educação e educar, demonstrando na argumentação que é: “[…] como posição discursiva e não mais como um campo outro de conhecimento sobre o qual se deveria aplicar a psicanálise que a educação encontra sua elaboração maior na teoria analítica” (Voltolini, 2011, p. 12-13).

O livro articula uma bela discussão acerca do propalado caráter impossível da arte de educar. Ora, educar, da mesma forma que governar e psicanalisar, é considerado um ofício impossível exatamente pelo paradoxo que se instala na posição daquele que se incumbe dessa tarefa. A discutida relação transferencial com o aluno, com os governados e com os analisantes, exige que o saber apostado na relação seja sempre suposto, pois quando a condição da falta se ausenta na mediação destas relações, ocorrem as fissuras transferenciais. A noção da impossibilidade, portanto, fica evidenciada na paradoxal posição de estar no lugar de suposto saber, porém, sem a apropriação imaginária desta condição, a fim de não impedir a presença da dimensão da falta e da castração.

A impossibilidade também está presente em outro tema caro à educação e à psicanálise, o mal-estar na cultura. A incompletude da satisfação pulsional e os avatares da civilização levam os sujeitos, não raras vezes, a depararem-se com a impossibilidade da civilidade absoluta. Neste sentido, a busca da potência e da não castração são as outras faces desse mal-estar constitutivo do humano.

O autor, imbuído de vasta experiência no trato com educadores e com instituições, filia-se ao pensamento freudiano, deixando decantar, em sua produção, a valiosa química que articula o indissolúvel par: prática e teoria. Ao referir-se ao mal-estar na educação, filho direto do mal-estar na cultura, Voltolini assevera que algo “cai” no percurso da construção da civilidade do sujeito a bem de poder viver em comunidade. Ele pontua aquilo que, tantas vezes, evoca questões nas instituições educacionais, ou seja, “sempre resta um resto” que resiste à dominação e à tipificação. Nos ímpetos selvagens, há alguma coisa que permanece, apesar da moral civilizada à qual somos submetidos, sendo justamente aí que esbarram as tentativas educativas que visam ao sucesso, pois tal resto resulta inalcançável do ponto de vista estrutural.

O interessante dessas articulações de Voltolini é que ele não se furta em explicar que não se trata de repensar a educação, a fim de mudar de estratégia pedagógica, não há em seu pensamento nenhuma ingenuidade posta a serviço de uma certa higienia na direção do mal-estar na educação. Isso porque, em suas ponderações, fica evidente que não há qualquer intenção em propor modos de esgotar o mal-estar na educação. Pelo contrário, o autor compartilha da noção freudiana de que o mal-estar é a condição de criarmos cultura e civilização. Quesito no qual o autor é categórico: caso o projeto pedagógico ambicione algum modo de esgotar a tensão entre o sujeito e cultura fatalmente irá fracassar. Sem a cultura nos restaria somente a barbárie, o gozo absoluto e destruidor, mas é justamente esse resquício que escapa aos movimentos civilizatórios e que norteia as possibilidades de gozo no âmbito da cultura.

Neste mesmo diapasão, reside a noção de que a educação é um campo cheio de paradoxos, cuja insatisfação constante deve ser tomada, como efeito da impossibilidade enquanto condição permanente do ato de educar. Kupfer (2007, p. 14) aponta que,
O sonho de uma educação psicanaliticamente orientada e por isso capaz de contribuir para o progresso da humanidade deixa de fazer sentido. Somos perversos de nascimento; o máximo que a educação pode fazer é esforçar-se para transformar o ‘humus de nossas piores disposições’ em algo que preste, e isso os educadores já fazem há séculos.

Aproveitemos para esta discussão, o fato de que as boas produções da cultura estão sempre a nos brindar com problematizações prenhes de questões caras às nossas inquietações. Exemplo disso é o clássico Laranja Mecânica de Stanley Kubrick (1971) – filme que narra a história de Alex, um jovem líder de uma gangue que comete uma série de atos de violência gratuita. Durante um dos episódios de vandalismo que sua gangue protagoniza, Alex é preso, porém recebe a opção de participar de um programa que pode reduzir o seu tempo na cadeia – um programa experimental para recuperar criminosos. O rapaz vira cobaia de experimentos para refrear os impulsos destrutivos do ser humano, que acabam levando-o à extinção do livre-arbítrio, desumanizando-o.

Kubrick (1971) explorou, na narrativa, a crítica que desenvolveu acerca do uso da terapia comportamental como um modo de acabar com o problema da delinquência, uma forma de reprimir totalmente os impulsos agressivos. Problematizou esse caminho, abrindo uma série de reflexões sobre os paradoxos contidos na tentativa de erradicar a dimensão pulsional do humano. Ao trazer à tona o assunto da delinquência, o diretor acabou por discutir, em diversas cenas, o contraponto civilização/barbárie. Através de inúmeros elementos estéticos que produzem, no espectador, um curto-circuito visual e que fazem alusão à condição estrutural de tensão entre o sujeito e a civilização, Kubrick revisita de diferentes formas o tema do mal-estar. Na exploração fílmica que faz, ecoam questões sobre o que pensar do humano quando as conquistas civilizatórias não garantem nada com relação à felicidade, tampouco com relação às interações com outros.

Podemos dizer que, em direção semelhante, o livro de Rinaldo Voltolini problematiza a tensão entre o sujeito e a cultura, atualizando-a através da discussão sobre o mal estar na educação atual. Conforme Voltolini, “A educação mais bem-sucedida é a que fracassa, permitindo que a nova geração introduza o novo” (Voltolini, 2010, p. 56).

O autor lembra que é em um certo fracasso da tradição, que se forja o novo da geração que chega. Para problematizar essa provocação, trazemos algumas filigranas de Hannah Arendt (2001) no livro Entre o Passado e o Futuro. Lá, a filósofa diz que a crise da educação revela, sobretudo, uma crise na relação do sujeito moderno com o passado e com a história. O problema, segundo ela, é que toda a educação necessita de uma dose de tradição. Isto é, será somente no encontro com o velho que a geração que chega poderá construir o novo, em termos de ação. Ao falarmos do novo, evocamos necessariamente os temas da herança e da transmissão, ou seja, tradição e inovação são invocados para pensar os laços na e da educação (Gurski, 2012).

Ora, uma das principais ideias que, há muito tempo, acompanha o conceito de educação vem ancorada na noção de liame entre os diferentes tempos, ou seja, na noção de continuidade da produção humana. A transmissão é o fino fio que liga, interliga e possibilita que passado, presente e futuro possam estar aninhados, dando-nos, a noção tão cara de que algo de nossos feitos continua na geração que chega. Neste sentido, gostaríamos de associar a fala do autor também a alguns fragmentos do desconstrucionismo [1] de Jacques Derrida.

O filósofo francês estabeleceu um genuíno diálogo com a psicanalista e historiadora francesa Elizabeth Roudinesco (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 9), através do qual apresentou o âmago de suas teorizações acerca do tema da herança: “Trata-se de escolher sua herança, segundo seus próprios termos: nem aceitar tudo, nem fazer tábula-rasa”. Ou seja, a melhor maneira de ser fiel a uma herança é ser-lhe infiel, isto é, “[…] não recebê-la à letra, como uma totalidade, mas antes surpreender suas falhas” (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 11).

Talvez possamos pensar que é deste modo que a psicanálise pode ser potente quando se encontra com a educação. Ao referir-se à impossibilidade estrutural da educação, a psicanálise aponta para algo maior que a figura do professor, por exemplo. O que implica perceber que a relação aluno-professor, longe de ficar restrita às questões relativas ao conteúdo ministrado e às boas intenções do docente, passa necessariamente por inúmeras questões inconscientes relativas ao sintoma e à posição na relação com o Outro [2] de cada um, no caso do professor e do aluno.

O autor mostra, na delicada trama que estabelece entre sua experiência enquanto psicanalista e educador e a tradição da letra freudiana, a facilidade com que esse impossível é tomado no registro da impotência pelos educadores; em geral mesmo como uma “[…] confirmação das dificuldades de uma educação específica qualquer” (Voltolini, 2011, p. 25). Nesse sentido, é muito recorrente que os professores paralisem-se narcisicamente frente às dificuldades dos alunos. Ao se deixarem levar pela simplificação da noção de educação e, muitas vezes, confundirem o ato de ensinar e o ato de educar, acabam por se sentirem meros instrumentos da absorção de conhecimentos. Tal processo os coloca em posição de não implicação com as dificuldades escolares do aluno.

Lajonquière (2010) sugere que talvez seja possível esperarmos outra coisa da pedagogia com relação à educação se apostarmos “[…] em gente comum disposta a falar com as crianças – ao invés de falar sobre elas de forma pedagógica – e convicta de que a educação está atrelada às mesmíssimas condições de possibilidade para vivermos na polis sem nos comermos uns aos outros” (Lajonquière, 2010, p. 123-124). Posição que infelizmente, sabemos que não é a tônica das instituições educacionais.

Nosso grupo de pesquisa [3] tem experienciado uma atividade de extensão com os adolescentes de uma escola pública no arquipélago da cidade, onde trabalhamos com cinema e psicanálise. Lá, nos deparamos com muitas das questões evocadas pelas letras de Voltolini, uma das mais impactantes foi justamente a facilidade com que o impossível estrutural inerente à tarefa de educar acaba submetido ao registro da impotência pelos professores e funcionários da escola. Era recorrente, no discurso dos professores, a queixa acerca das vicissitudes dos adolescentes. Dentre as questões trazidas, encontrava-se a falta de interesse ou ainda as dificuldades que apresentavam no aprender, sem que em nenhum momento, lhes ocorresse evocar qualquer questão acerca das possíveis implicações com tais fraturas e falências no que avaliam como os processos de ensino-aprendizagem.

Os domesticáveis eram logo tratados como alunos-problema e, uma vez com tal rótulo, toda a aposta do professor com relação a esse aluno, necessária a qualquer educação, desaparecia numa proporção inversa à construção de sua má fama, como se dele já não fosse possível esperar nada. Associava-se à constituição dos ditos alunos-problema a situação social e econômica desfavorecida das famílias da região.
Estes fatos, entre outros, revelam que precisamos constituir outros analisadores a fim de pensar as variáveis da educação, um acento que possa colocar em questão essas relações de modo a repensar condições que estão sendo percebidas como dadas no ambiente educacional. Entendemos que uma outra concepção de educação passa necessariamente pela possibilidade de resignificar condições atuais que estão postas na ordem do dia nas Instituição Educacionais.

Parece que é justamente acerca de um “outro” olhar que Voltolini argumenta, quando convoca a noção da falta e da castração, advindas da psicanálise, como operadores educativos. Ele adverte que, quando se trata de ensinar, existe uma limitação que não é uma limitação do professor, é uma limitação dada pela própria condição da falta.

Ainda que sejam indiscutíveis os caminhos que traçam a conexão entre a educação e a psicanálise, talvez caiba falar que em alguns momentos tal diálogo pode passar por fraturas. A proposta mais comum de debate entre ambas é atravessada por uma noção de ideais educativos que atropela e desvirtua as contribuições da psicanálise.

Kupfer, no livro Educação Para o Futuro: psicanálise e educação reitera a posição do autor de Educação e Psicanálise quando fala que discurso é o que faz laço social: “Desta perspectiva, educar torna-se a prática social discursiva responsável pela imersão da criança na linguagem, tornando-a capaz por sua vez de produzir discurso, ou seja, de dirigir-se ao outro fazendo laço social” (Kupfer, 2007, p. 35).
Parece-nos que Voltolini ressalta a potência das conexões da Educação e Psicanálise especialmente quando propõe que a psicanálise, ao produzir uma ressignificação do campo da educação está propiciando a quem se aventura em tal empreitada, uma circulação pelas diversas possibilidades que o encontro com o outro pode produzir. Dentre tais potências, sublinhamos o quanto a permeabilidade ao outro pode fazer com que da chamada experiência impossível do educar decante efeitos de sujeito.

Notas

1. Segundo nota de Roudinesco (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 9), o termo desconstrucionismo foi utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida, em 1967, no texto Gramatologia; é um termo retirado da arquitetura que significa a decomposição de uma estrutura. Consiste basicamente em desfazer um sistema de pensamento hegemônico ou dominante sem nunca aniquilá-lo, destruí-lo: “Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do UM […]”.

2. Para tratar da constituição psíquica, Lacan diferencia duas instâncias: o chamado “pequeno outro”, que seria o semelhante, o parceiro imaginário, e o “Outro” (grande Outro), que ele conceitua como a instância simbólica e, portanto, da linguagem, que determina o sujeito, sendo de natureza anterior e exterior a ele; lugar da palavra, do tesouro dos significantes (Lacan, 1985 [1954/55], p. 297).

3. Referimo-nos aqui às pesquisas que acontecem no âmbito do NUPPEC/UFRGS – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura que congrega professores e pesquisadores vinculados ao Instituto de Psicologia (UFRGS) e PPGEDU/UFRGS.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. [ Links ]

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que Amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. [ Links ]

GURSKI, Rose. Três Ensaios sobre Juventude e Violência. São Paulo: Escuta, 2012. [ Links ]

GURSKI, Rose. Meio Século de Mal-Estar. Zero Hora, Porto Alegre, 30 nov. 2012. (Caderno de Cultura) [ Links ]

KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação Para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2007. [ Links ]

LACAN, Jacques [1954/1955]. Seminário 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. [ Links ]

LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do Infantil: a psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Petrópolis: Vozes, 2010. [ Links ]

LARANJA Mecânica. Direção: Stanley Kubrick. Reino Unido, 1971. 1 DVD (138 min. [ Links ]).

VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. [ Links ]

Rose Gurski – Psicanalista, membro da APPOA, Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul; coautora dos livros Educação e Função Paterna (Ed. UFRGS, 2008); Debates Sobre Adolescência Contemporânea e o Laço Social (Juruá, 2012); autora do livro Três Ensaios sobre Juventude e Violência (Escuta, 2012).
E-mail: [email protected]

Alice Umpierre – Estudante de graduação em Psicologia (UFRGS), Porto Alegre/Rio Grande do Sul; bolsista IC/PROBIC-FAPERGS; pesquisadora do NUPPEC/UFRGS.E-mail: [email protected]


VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Resenha de: GURSKI, Rose; UMPIERRE, Alice. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.38, n.2 abr./jun., 2013. Acessar publicação original

Intelectuais e história da educação no Brasil: poder, cultura e políticas – ALVES (RBHE)

ALVES, Claudia; LEITE, Juçara Luzia. Intelectuais e história da educação no Brasil: poder, cultura e políticas. Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: MAIA, Manna Nunes. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 13, n. 1 (31), p. 261-266, jan./abr. 2013.

Nas últimas décadas, a produção em História da Educação expandiu-se consideravelmente”, como resultado do papel desempenhado tanto pela pós-graduação quanto por instâncias de organização, debate e divulgação da pesquisa histórico-educacional. Ao mesmo tempo, há um processo de inflexão dos modelos interpretativos, referenciais teóricos, objetos de investigação, objetivos, temáticas, fontes documentais, periodizações e metodologias de pesquisa da área.

Articulada a esses processos, houve a publicação de vários estudos que, ao analisarem aspectos da pesquisa histórico-educacional, têm permitido a problematização e (por que não?) renovação de categorias já consagradas. Entre elas, a categoria “intelectual” tornou-se objeto de investigação dos historiadores da educação, cujos trabalhos possibilitaram questionar o viés tradicional de abordagem histórica do tema. Propiciaram, portanto, superar análises que se centravam na exposição das ações e feitos dos considerados grandes personagens, de um lado, ou centradas em perspectivas que apagavam a ação dos sujeitos, de outro. Insere-se, nesses trabalhos, a publicação de Claudia Alves e Juçara Luzia Leite, intitulada Intelectuais e história da educação no Brasil: poder, cultura e políticas, que integra a coleção Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil, em comemoração aos dez anos de fundação da Sociedade Brasileira de História da Educação.

A primeira parte da coletânea procura iluminar o debate teórico com base nas contribuições de pesquisas dos autores que a compõem. No primeiro capítulo, Carlos Eduardo Vieira problematiza o conceito de intelectual a partir da análise das ideias e da trajetória do intelectual paranaense Erasmo Pilotto (1910-1992). A crença no protagonismo do Estado e no papel dos intelectuais, articulada à ideia de que o caminho para a modernidade seria trilhado por meio de investimentos na cultura e na educação, incentivou a militância de Erasmo Pilotto nos referidos campos, por meio da publicação de diferentes materiais, da ação enquanto educador, da criação de inúmeras instituições e grupos e, ainda, da ocupação de posições importantes na esfera política. Por meio do estudo dessa trajetória, o historiador põe em questão aspectos fundamentais do conceito em foco na coletânea, concernentes à construção da identidade dos intelectuais, envolvendo seu engajamento político e suas crenças na modernidade e no papel do Estado.

Em seu trabalho, Marlos Bessa Mendes da Rocha disserta sobre o Decreto-lei Couto Ferraz (1854) que instituiu, pela primeira vez, a educação como um sistema de política pública. Para analisar o referido decreto-lei, com foco na relação entre a história intelectual da política e a história institucional das práticas políticas, Rocha baseia-se em alguns pontos, dentre os quais: o vocabulário normativo da época; os axiomas herdados; os projetos de sociedade, Nação e Estado; a comparação entre o Decreto-lei Couto Ferraz e as leis que o antecederam e sucederam; a concepção de educação na época e a recepção da lei na sociedade. Além disso, o autor destaca a conjuntura da época, em especial o contexto intelectual em que as formulações do decreto-lei foram concebidas. Aqui, a questão conceitual margeia a história das ideias.

Na sequência, Claudia Alves analisa a formação da oficialidade do Exército no século XIX. Os sujeitos de pesquisa selecionados foram os intelectuais militares que desempenharam funções dirigentes e organizativas no Exército e em instâncias da sociedade e do Estado, atores não privilegiados na historiografia. Sem desmerecer o papel desempenhado pela Escola Militar e, a partir do conceito ampliado de formação (que englobaria a dimensão prática, dirigente e política), Alves demonstra que outros espaços no interior do Exército foram determinantes na formação da parcela intelectualizada da oficialidade durante o período investigado.

Amália Dias centra sua análise na dicotomia entre as funções de “intelectuais” e de “trabalhadores” que o magistério secundário enfrentou no pós-1930. De um lado, as leis e projetos implementados durante o Estado Novo puseram em marcha um projeto de profissionalização do magistério de ensino secundário, que o submetia aos parâmetros estatais, ao mesmo tempo que o requisitava como agente do “apostolado cívico”. Por outro lado, houve um movimento de reação organizada em sindicatos, efeito da condição de “trabalhadores do ensino” dos professores secundários, procurando garantir seus direitos e deveres. Nessa análise, Dias evidencia a defasagem entre o elevado prestígio social dos professores e a sua situação econômica, como trabalhadores assalariados, tratando de outra faceta da categoria intelectuais, associada à profissionalização do magistério.

A imprensa constituiu-se historicamente como locus de atuação dos intelectuais, estando fortemente imbricada à própria emergência social desse personagem no século XIX. Na segunda parte da coletânea, estudos que se debruçaram sobre a relação entre intelectuais e imprensa apresentam possibilidades de abordagem sobre esse aspecto. O capítulo de autoria de Bruno Bontempi Júnior aborda o Inquérito sobre a instrução pública em São Paulo, publicado em O Estado de São Paulo”, em que jornalistas e educadores teceram observações a respeito do ensino primário paulista. Uma série de aspectos validou a capacidade desses personagens de dissertarem sobre a situação educacional de São Paulo, que, somada à crescente influência do jornal mencionado, fizeram com que se produzissem e veiculassem discursos educacionais considerados legítimos acerca da situação e dos rumos da instrução pública nesse estado. Recorrendo à noção de expertos de Norberto Bobbio, o autor põe em questão a formação e o pertencimento dos respondentes ao Inquérito, que têm seus discursos potencializados pela ação do jornal.

Em seguida, Clarice Nunes reflete sobre como se tornou possível a afirmação de um grupo de mulheres como intelectuais na sociedade patriarcal do final do século XIX e início do XX. Em uma conjuntura de consolidação da imprensa como canal de difusão de ideias e de mudanças na indústria jornalística e literária, foram abertos espaços nas redações dos jornais e editoras para as mulheres. Por meio da publicação de seus escritos, algumas mulheres conseguiram ultrapassar as fronteiras da casa e da escola. Ou seja, ao se tornarem escritoras, as mulheres ganharam prestígio e visibilidade na sociedade, naquele período, constituindo um grupo novo, embora minoritário na categoria dos intelectuais, potencializado pelo trabalho no magistério.

Maria de Araújo Nepomuceno toma a revista Oeste como objeto de estudo e fonte de pesquisa. Iluminado pelos conceitos de Estado e intelectual de Antonio Gramsci, o estudo identificou que a citada revista foi, gradativamente, mudando sua proposta. Originalmente projetada no âmbito da “sociedade civil” para apresentar intelectuais goianos, a revista foi se constituindo em um veículo divulgador dos princípios político-ideológicos do Estado Novo e de propaganda de Goiânia e do interventor Pedro Ludovico. A ambivalência da atuação dos intelectuais, na sociedade civil e na sociedade política, transparece nas páginas do periódico.

Se a escrita é a forma de expressão evidente do intelectual, o livro é o objeto símbolo desse trabalho. A terceira parte da coletânea traz pesquisa que analisaram livros e seus escritores. André Luiz Bis Pirola faz uma reflexão sobre a obra didática Noções abreviadas de Geografia e História do Espírito Santo, escrita pelo professor Amâncio Pereira. Analisa-o como um documento privilegiado para compreender as disputas e as alianças em torno da correta leitura de história e de educação no esforço de forjar uma “identidade nacional”. Destaca os lugares de memória e os protocolos de pertencimento, em âmbito local, que organizaram a intelectualidade e os seus debates no processo de definição do cânone historiográfico.

No seu trabalho, Maria Arisnete Câmara de Morais estuda duas publicações da escritora Sophia Lyra: Vida íntima das moças de ontem e Rosas de neve. Nelas, Sophia Lyra exterioriza alguns questionamentos, costumes, linguajar, conflitos, problemas e a situação da mulher na década de 1930, assim como traça um painel dos hábitos, tradições e maneiras de ser da sociedade brasileira naquele período. Discorre, portanto, sobre vários assuntos latentes na sociedade na primeira metade do século XX. Por meio da análise desses ensaios, Morais consegue superar a recorrente noção de que as mulheres viviam alienadas da realidade do Brasil naquele período.

Dislane Zerbinatti Moraes toma como objeto de investigação os romances escritos por cinco professores-escritores entre os anos de l920 e l935. Apesar de terem interpretações e posições diferenciadas no campo do magistério, os autores analisados por Moraes têm em comum a utilização da ficção, mais especificamente do romance, como modo de expressão das tensões, expectativas e experiências desses intelectuais enquanto professores. Por conta disso, esses escritos destacam aspectos do contexto educacional da época, visando à produção de algum tipo de transformação na realidade escolar e à obtenção de reconhecimento profissional. O romance, como ferramenta intelectual, abre um campo de expressão de insatisfações, interditado no discurso pacificador dos historiadores da educação no mesmo período.

Marcus Aurélio Taborda de Oliveira analisa o compêndio História da América, de José Francisco da Rocha Pombo, que inaugurou uma tradição de reflexões críticas à colonização europeia na América Latina, considerando o ensino de história fundamental para conhecer o passado de opressão dos povos latino-americanos, resistir aos padrões civilizatórios e reverter o quadro de atraso da América Latina. Entretanto, essa forma de conceber a colonização não se repetiu nas demais obras do autor. O texto de Taborda coloca, então, em cena, contradições que marcam uma trajetória de vida e produção intelectual, na qual, por vezes, a grande originalidade pode estar no ponto de partida.

As relações entre educação, civilização e modernidade dão o tom dos textos da última parte da coletânea. Em seu estudo, Juçara Luzia Leite assinala que o pós-Primeira Guerra fortaleceu a preocupação sobre a influência do ensino de história nas relações entre povos e nações. No caso dos livros didáticos, sua função educativa e moralizadora aparece nos cuidados de agências de Estado, tratados inclusive em convênios internacionais. A participação de intelectuais, políticos e professores, na construção desses convênios, permite observar o sentido de missão que se autoatribuíam na construção de um projeto civilizatório. Com isso, as reflexões de Leite permitem-nos perceber nuançes do uso social do trabalho intelectual, envolvido por questões que marcam uma época.

Em seu trabalho, Maria Helena Câmara Bastos analisa a atuação de Manoel Francisco Correia, intelectual representativo dos debates que propugnavam o progresso da sociedade brasileira, defendendo avanços na instrução popular. Membro da elite intelectual e política da época, Manoel Francisco Correia pretendia promover os conhecimentos úteis ao progresso da sociedade, assumindo a tarefa de remodelar o imaginário e as práticas pedagógicas no país. Para isso, organizou as Conferências Populares da Freguesia da Glória, espaços privilegiados de discussão de ideias educacionais na cidade do Rio de Janeiro no período de 1873 a 1890. Aspectos da Modernidade, que se anunciam em fins do século XIX, podem ser apreendidos na análise desse intelectual.

Iranilson Buriti de Oliveira estuda algumas imagens construídas por Belisário Penna sobre a educação sanitária, problematizando as aproximações entre os saberes médico e pedagógico. Em uma conjuntura em que os médicos assumiram a responsabilidade de remediar e educar a população, preocupados em mudar a nação a partir da escola, Belisário Penna denunciou as precárias condições sanitárias da maioria das unidades da federação brasileira e fundou a “Liga Pró-Saneamento do Brasil”, em 1918. Oliveira procura compreendê-lo a partir dos seus escritos, mapas de viagem, fotografias, retratos, buscando captar sua perspectiva crítica, mas, também, suas angústias, medos, tensões. O texto convida o leitor a perceber o que a produção de um intelectual projeta como imagem de si.

Ao final, Maria do Amparo Borges Ferro analisa a figura e a atuação do padre Marcos de Araújo Costa na primeira metade do século XIX, que teve grande influência nos diversos setores em Oeiras, antiga capital do Piauí. Embora não tenha ocupado cargos ou funções na burocracia estatal, esse intelectual piauiense lutou contra a ameaça de retorno do Piauí à condição de dependência político-administrativa da província do Maranhão e se dedicou à educação do povo, usando o patrimônio herdado na fundação e manutenção de uma escola para garotos, que se tornou referência para toda a região, entre 1820 e 1850. O texto da autora instiga a atenção para sujeitos que utilizam sua capacidade intelectual para fazer história por meio da educação.

Na presente resenha, tentamos assinalar a contribuição dessa coletânea para os estudos histórico-educacionais. São autores de diferentes regiões do país e de competência reconhecida no campo da História da Educação, que, com suas especificidades, clareza de objetivos e delimitação precisa de suas questões, proporcionaram-nos uma leitura rica e nos dão a oportunidade de pensar, questionar e enriquecer futuros estudos na temática. Ao mesmo tempo, as análises empreendidas em cada estudo são de grande valia para os interessados no passado educacional brasileiro, abordado pelo prisma da ação de um grupo específico de agentes, os intelectuais.

Ao traçar um espectro da pesquisa sobre o tema, Intelectuais e história da educação no Brasil: poder, cultura e políticas traz uma contribuição particular aos estudos sobre a categoria intelectuais, em uma conjuntura em que emergem, cada vez mais, discussões teóricas e metodológicas em torno dela. O livro incentiva os historiadores da educação a fazerem uma (re)leitura de seus trabalhos sobre intelectuais, assim como estimula aqueles que pretendem trabalhar com essa categoria. Para isso, os trabalhos nele publicados indicam vias que podem ser exploradas: itinerários de formação; redes de sociabilidade; escritos; ligações com a formulação de políticas públicas de educação; iniciativas de escolarização lideradas; representações e práticas culturais; contextos sócio-educacionais; itinerários pessoais e coletivos; ambiência cultural; constructos intelectuais de época; lugares frequentados; ideários, leituras e representações.

Manna Nunes Maia – Pedagoga formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Mestre em Educação também pela Universidade Federal Fluminense (UFF).  E-mail:[email protected]

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O ensino de História da Educação – CARVALHO (RBHE)

CARVALHO, Marta Maria Chagas de; GATTI JÚNIOR, Décio (Orgs.). O ensino de História da Educação. Coleção Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil, v. 6. Vitória –ES: EDUFES, 2011. Resenha de: LIMA, Geraldo Gonçalves de. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 13, n. 1 (31), p. 255-260, jan./abr. 2013

O Ensino de História da Educação, organizado por Marta Maria Chagas de Carvalho e Décio Gatti Júnior, é o sexto volume da coleção Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil. Dedica-se à história disciplinar da História da Educação e seu ensino nos cursos de formação de professores (graduação) e de pesquisadores (pós-graduação stricto sensu), sendo composto por doze trabalhos que proporcionam ampla visão acerca da situação do ensino da referida disciplina.

O primeiro capítulo, de autoria de Claudemir de Quadros (Universidade Federal de Santa Maria), “Ensino com pesquisa, educação digital e formação de professores: possibilidades de ensinar e aprender acerca da História da Educação”, retrata uma experiência específica de ensino e aprendizagem em História da Educação e a sistematização de algumas problemáticas que orientam o planejamento de ensino. A experiência acontece no curso de Pedagogia do Centro Universitário Franciscano (Unifra) em Santa Maria – Rio Grande do Sul, entre os anos de 2007 e 2009, e perpassa as seguintes questões: processo de ensino e aprendizagem; promoção da curiosidade e da capacidade criadora como princípios educativos; educação digital; profissão docente.

Um dos organizadores do volume, Décio Gatti Júnior (Universidade Federal de Uberlândia), elaborou o capítulo “Intelectuais e circulação internacional de ideias na construção da disciplina História da Educação no Brasil (1955-2008)”, no âmbito da história disciplinar da História da Educação. Consiste na constatação do emprego de autores estrangeiros de manuais de História da Educação traduzidos para o português e que atingiram um alto índice de circulação nos cursos de Pedagogia: Franco Cambi, História da Pedagogia (25 indicações, 1ª edição em português: 1999); Mario Alighiero Manacorda, História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias (20 indicações, 1ª edição em português: 1989); Luzuriaga, História da Educação e da Pedagogia (10 indicações, 1ª edição em português: 1955); Francisco Larroyo, História Geral da Pedagogia (10 indicações, 1ª edição em português: 1970 – com dois tomos). O intuito da investigação consistiu em verificar a forma como esses quatro autores concebem a História da Educação e da Pedagogia, partindo do pressuposto de que esses manuais comportam posicionamentos historiográficos distintos, embasados em teorizações diversas, de ordem ontológica, epistêmica e política.

José Carlos Souza Araújo, Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro e Sauloéber Társio de Souza, da Universidade Federal de Uberlândia, discutiram a problemática “Haveria uma historiografia educacional brasileira expressa pelos manuais didáticos publicados entre 1914 e 1972?” Muito do que foi produzido a partir da expansão escolar, em meados do século XX, particularmente da formação de professores, sofreu grande influência de autores europeus. A produção de manuais didáticos, até os anos 1960, se caracteriza pela hegemonia do pensamento católico, embasada em orientação tridentina. Foram analisados dez diferentes manuais em circulação no período determinado, com a intenção de investigar a natureza, as interferências e as motivações, pelas quais foram produzidos. Os manuais explicitam os valores e o contexto da época em que foram produzidos, proporcionando a consolidação da ideologia, das concepções veiculadas e a construção de um conjunto de valores tidos como ideais, além de explicitar o público a que se destinam.

A seguir, José Roberto Gomes Rodrigues (Universidade do Estado da Bahia – campus de Juazeiro) discute “O ensino de História da Educação: um olhar reflexivo a partir da análise de planos e programas curriculares”, abrangendo a realidade de universidades de Belo Horizonte e da Bahia. A análise de planos e programas de ensino possibilita o entendimento de algumas questões referentes, destacadamente, ao papel que a disciplina História da Educação assume na formação de educadores em geral e de pedagogos em particular. O objetivo do capítulo consiste em contribuir para o debate em torno do processo instrucional da disciplina História da Educação e estimular questões relacionadas diretamente ao campo investigativo. Todo o conhecimento produzido na academia apresenta nova configuração ao ser ministrado de forma escolarizada. As atividades de ensino e aprendizagem exigem uma operacionalização diferenciada e institucionalizada conforme novos padrões. A disciplina História da Educação demonstra ser uma disciplina em constante embate entre a tendência à formalização e rigidez nos programas de ensino e a flexibilidade dos professores em tentar mudar a forma de ofertar a disciplina, com a introdução de novos temas.

Justino Magalhães, da Universidade de Lisboa, no capítulo “O ensino da História da Educação”, demonstra a necessidade de buscar as bases de uma reformulação do pensamento em torno da historiografia e a emergência de novos objetos de estudo a partir de determinadas influências ao longo do século XX. Surgem novos objetos, métodos e abordagens que proporcionam um diálogo entre a investigação historiográfica e o ato de ensinar. O ensino de História da Educação forma professores e pesquisadores, levando a uma gama de tendências, percebida no meio acadêmico e universitário. A História da Educação se manifesta, desde as décadas de 1960-1970, associada às ciências da Educação. A disciplina assume basicamente três naturezas possíveis: memória e patrimônio simbólico, discurso e prática historiográfica; disciplina de informação; componente epistemológico/domínio científico. Salienta-se a atualidade e a necessidade da História da Educação como componente de formação acadêmica, científica e profissional, no sentido de pensar a educação por meio da história.

Em seguida, Luiz Carlos Barreira, da Universidade Católica de Santos, apresenta o trabalho “Ensino de História da Educação na pós-graduação em Educação, no Brasil, na década de 1980: uma experiência revisitada”. Trata-se de uma reflexão sobre o lugar da disciplina História da Educação como parte das disciplinas básicas e obrigatórias dos cursos de pós-graduação stricto sensu, com base em quatro programas de ensino elaborados por professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na década de 1980. O autor traça, de forma panorâmica, as diversas tendências temáticas, metodológicas de ensino e pesquisa, percebidas no interior dos referidos programas. Assim, os citados programas de ensino demonstram a ideia de que, após a tomada de consciência dos processos de produção e de transformação da sociedade, é possível o empreendimento da reflexão acerca das condições sócio-históricas, destacadamente as de economia política.

O próximo trabalho, “Internacionalização de cânones de leitura: as Atualidades pedagógicas na Biblioteca Museu do Ensino Primário e o ensino de História da Educação”, de autoria de Maria Rita de Almeida Toledo (Universidade Federal de São Paulo – campus Guarulhos), ressalta a relevância da coleção Atualidades Pedagógicas, da Companhia Editora Nacional, em bibliotecas destinadas à formação docente em Portugal. Sempre houve uma intensa relação entre os mercados editoriais português e brasileiro. A Biblioteca Museu do Ensino Primário (BMEP) foi instalada em 1933 na Escola do Magistério Primário de Lisboa, sob a direção do intelectual escolanovista Adolfo Lima, com o objetivo de atender à formação de leitura dos professores primários. Entre os números que compunham o acervo da Biblioteca, estavam os livros da coleção Atualidades Pedagógicas, com significativa circulação de exemplares entre os docentes portugueses. Quanto aos exemplares de História da Educação da coleção Atualidades Pedagógicas em circulação no Brasil, apenas o volume de Paul Monroe foi disponibilizado no catálogo da BMEP, de Portugal, mesmo que Afrânio Peixoto tenha mantido estreita relação com o meio acadêmico português. Por ser um autor militante católico e, portanto, contrário aos interesses teóricos escolanovistas da BMEP, o volume de História da Educação de Theobaldo Miranda Santos não foi incluído.

A organizadora do volume, Marta Maria Chagas de Carvalho (Universidade de São Paulo), elaborou o trabalho “Por entre restos de memória: um relato sobre o ensino de História da Educação no curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da USP (1971-1997)”. Trata-se do relato de experiência referente ao período de atuação docente da própria autora, envolvida diretamente na organização do ensino da disciplina História da Educação. Concentra-se no depoimento e caracterização a partir de anotações acerca da militância institucional, redefinição da identidade e da organização da disciplina no curso. Com a crescente mobilização acadêmica, houve a gradativa inclusão dos estudos históricos da educação no currículo oficial do curso. A disciplina História da Educação assume constante e gradativamente a função formativa, possibilitando a construção de uma identidade imaginária do estudante.

Mirian Jorge Warde (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – campus Araraquara) escreve “Brincando nos campos do senhor: anotações para uma história da formação dos professores e do ensino da História da Educação no Brasil”. Segundo a autora, nas duas últimas décadas, houve uma dinamização da produção acadêmica em torno da História da Educação, ressaltando-se o surgimento de associações acadêmicas especializadas, o crescente lançamento de periódicos, assim como a organização de eventos nacionais e internacionais. Outro indício de seu crescimento como disciplina acadêmica consiste na realização crescente do número de pesquisas e o interesse cada vez maior do público em seus resultados. A partir desses pressupostos, a autora promove a investigação do perfil dos docentes em História da Educação em atuação nos cursos superiores brasileiros, respeitando alguns critérios como: o doutoramento como titulação mínima; uma constante e significativa produção acadêmica voltada exclusivamente para a área; a participação em associações e entidades representativas da categoria; a consulta a bases de dados como a plataforma Lattes do CNPq. Como resultado da análise empreendida, a autora confirma a existência de um grupo bastante heterogêneo em relação aos cursos de formação inicial (graduação) dos docentes de História da Educação no Brasil. Além disso, ressalta o momento atual de intensa renovação temática e metodológica, assim como a mobilização em torno da consolidação da disciplina História da Educação no meio acadêmico.

O trabalho, “Qual História da Educação ensinar?”, de autoria de Norberto Dallabrida (Universidade do Estado de Santa Catarina), funda-se no questionamento de qual disciplina escolar voltada para a história educacional deve ser ensinada, haja visto o recente crescimento e desenvolvimento da área no meio acadêmico/científico, demonstrando uma dinamização em torno de novos e desafiadores objetos de abordagem, assim como novas perspectivas teóricas e metodológicas. Há uma tendência notável para a microanálise, destacando-se a cultura escolar, existente em instituições escolares, bem como o exame das disciplinas escolares prescritas oficialmente e suas repercussões na prática cotidiana. Outra temática de destaque é a investigação de trajetórias profissionais de docentes. O propósito do capítulo consiste em repensar a seleção e organização dos conteúdos veiculados pela disciplina História da Educação ministrada nos cursos de formação de professores e de pedagogia, sobretudo.

A obra traz também a investigação intitulada “O período colonial nos manuais de História da Educação brasileira”, de Thais Nivia de Lima e Fonseca (Universidade Federal de Minas Gerais). A autora afirma que a maior parte dos livros voltados para a formação de professores, usualmente, categoriza os períodos da História da Educação brasileira com base em critérios políticos, sendo a classificação mais conhecida e difundida: colonial, imperial e republicano. O texto tem como objetivo analisar um conjunto de obras utilizadas nos cursos de formação de professores, assim como as obras de referência para a História da Educação no Brasil, voltadas especificamente para o período colonial (o menos investigado diante dos períodos imperial e republicano). Ressalta o aspecto de que, mesmo com as mais recentes remodelações da historiografia educacional brasileira, o período colonial ainda se mostra bastante defasado em termos de análise perante os outros dois períodos tradicionais (imperial/ republicano). Além disso, alerta que é fundamental maior cuidado no tratamento dado ao período colonial, sobretudo durante as aulas de História da Educação, de modo a desfazer os preconceitos difundidos entre os educadores, assim como estímular novas investigações acerca deste importante momento histórico do Brasil.

Finalmente, Zuleide Fernandes de Queiroz (Universidade Regional do Cariri) realiza, em “Ensinando História da Educação no curso de Pedagogia da Universidade Regional do Cariri”, uma análise da trajetória do ensino da disciplina no período compreendido entre 1998 e 2008. Seus objetivos são o registro, como historiadora da educação, da experiência de ensino da disciplina História da Educação e a análise dos efeitos de tal disciplina na formação acadêmica, demonstrando resultados voltados para o ensino e a pesquisa nas áreas de História, memória e políticas educacionais. A autora confirma a importância da constante renovação do ensino de História da Educação, ampliando os horizontes teóricos na formação acadêmica dos estudantes. Além disso, ressalta a necessidade do desenvolvimento de atividades de ensino articuladas à pesquisa.

Dessa forma, o volume seis da coleção Horizontes da pesquisa em História da Educação no Brasil enfatiza a necessária reflexão acerca dos elementos da história disciplinar da História da Educação e do seu ensino nos cursos de formação de professores, de nível superior, abrangendo cursos de graduação, e de formação de pesquisadores, nos cursos de pós-graduação (stricto sensu). Demonstra-se a existência de uma vitalidade de pesquisa em História da Educação no Brasil em geral e, particularmente, nota-se o surgimento de estudos e pesquisas sobre sua trajetória histórica disciplinar. Por sua vez, percebe-se também a ênfase de análises sobre as finalidades e os procedimentos metodológicos usualmente empregados no ensino da disciplina em diversos cursos na realidade educacional brasileira.

Geraldo Gonçalves de Lima – Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. É membro do GEPEDHE – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Disciplina História da Educação. Atualmente é professor do quadro efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM – Campus Uberaba).  E-mail: [email protected]; [email protected]

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Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial (Brasil, 1822-1889) – GONDRA (RBHE)

GONDRA, José Gonçalves. Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial (Brasil, 1822-1889). Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: PAULILO, André Luiz. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 3 (30), p. 235-241, set./dez. 2012

As dificuldades da compreensão histórica do que foi a educação no Império brasileiro são muitas e vão desde o trabalho cotidiano nos acervos públicos e as dificuldades de acesso à documentação até a sofisticada crítica da memória, constituída posteriormente, que o tema exige. É verdade que atualmente a tradição historiográfica republicana, que produziu o enorme vazio a respeito da educação organizada e mantida durante o Império no Brasil, foi superada por um sistematizado esforço de pesquisa e análise. A articulação de grupos de pesquisadores, em torno do período em eventos, como os Seminários de Fontes para a Pesquisa em História da Educação do Século XIX, e a publicação das conclusões de estudos sobre o oitocentos brasileiro vêm mostrando, há mais de uma década e com muita intensidade, que a educação brasileira oitocentista é um período fértil tanto para a problematização de questões atuais do campo educacional quanto da produção historiográfica.

No entanto, ainda há bastante o que fazer, conforme atesta o livro Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial (Brasil, 1822‑1889). O mais recente esforço para pensar a educação e a instrução nas províncias e na Corte é a obra organizada por José Gonçalves Gondra e Omar Schneider, que reúne, em 15 artigos, uma plêiade de 23 especialistas no estudo da educação no tempo do Império, com o objetivo de “[…] visibilizar as experiências em termos de educação e instrução desenvolvidas na complexa malha provincial e na Capital do Império […]” (p. 13). Trata-se do terceiro volume da coleção Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil, iniciativa da editora da Universidade Federal do Espírito Santo e da Sociedade Brasileira de História da Educação. Embora o título delimite o período 1822-1889 como recorte, e a proposta de organização dos capítulos tenha se efetivado em função da abrangência das iniciativas regionais então projetadas e desenvolvidas, as histórias que este livro traz não se prendem aos limites da história institucional e político-administrativa.

As orientações diversas da escrita e a própria diversidade dos autores preservam uma pluralidade de perspectivas que contribui para a compreensão das possibilidades de análise hoje presentes na historiografia. Entre outros, estão presentes investimentos de pesquisa sobre a educação dos índios amansados, sobre o uso dos métodos, dos espaços e dos tempos escolares e acerca das estratégias populares de educação ou de resistência ao modelo oficial de instrução. Cotejar esses diferentes interesses revela um importante trabalho com as categorias da análise histórica. Sob esse aspecto, perpassam o livro desde abordagens ancoradas na utilização de categorias como cultura escolar e forma escolar até a elaboração de instrumentos de análise muito próprios como o de processo escolarizador.

Outra chave de entrada para a leitura é o escopo dos textos. Nos estudos que estão reunidos em Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial, há, por um lado, o esforço de síntese e interpretação e, por outro, a organização de inventários empenhados na discussão historiográfica da pesquisa acerca da educação no período. Sobretudo nos textos em que predomina o primeiro tipo de expediente, é possível acompanhar a construção de quadros compreensivos capazes de mostrar os principais resultados das iniciativas educacionais dos governos provinciais. Para as províncias do Amazonas e Pará, Ceará e Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os autores indicam formas de abordar o processo de escolarização das suas sociedades e, principalmente, tecem relações entre o político e o cultural. De outro tipo é o entendimento que os mapeamentos da produção permitem ter. O levantamento dos estudos a respeito da história da educação no Maranhão e Piauí, no Rio de Janeiro, no Paraná, em Alagoas, em Goiás e Mato Grosso, e em Santa Catarina informa sobre a profusão dos objetos de pesquisa e dos meios de análise que vem sendo utilizada no trabalho com o oitocentos brasileiro. Por se tratar de uma diferença de ênfase e não de uma opção entre um expediente e outro, os 15 artigos reunidos neste livro auxiliam na tarefa de compreensão histórica, senão das realizações dos governos provinciais e da Corte, ao menos dos mecanismos explicativos que lhes indiciam as interpretações possíveis. Dessa perspectiva, o texto escrito por Maria Lucia Hilsdorf acerca de São Paulo é exemplar.

Mesmo que, de fato, se beneficie dos diferentes interesses de pesquisa e da pluralidade das perspectivas de análise dos seus autores, Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial é daqueles casos raros de coletânea cuja força está no conjunto, no arranjo obtido pelo livro. Conforme os organizadores esclarecem no prefácio, solicitou-se aos autores que procurassem contemplar a bibliografia existente sobre educação na região, mapear o tipo de documentação disponível e pensar as perspectivas e desafios para a pesquisa em história da educação e instrução nas províncias e na Corte. Outra orientação geral do livro foi observar o emprego dos termos educação e instrução à época. Considerando que, então, a distinção entre as ações sobre os variados aspectos da conduta dos sujeitos sociais e as medidas voltadas para organizar e legitimar a escola na sociedade brasileira pautaram o debate acerca das modalidades de intervenção educativa, sugeriu-se rever e observar o uso dos termos educação e instrução na literatura pedagógica do período. O resultado conseguido, efetivamente, contribui para melhor entendimento da organização do ensino nas províncias e na Corte Imperial e das premissas teórico-metodológicas da sua historiografia. Uma leitura transversal, articulada e integrada, das contribuições que o volume colige mostra-o bem, sobretudo nos quatro pontos indicados pelos organizadores.

Primeiro, a varredura que os artigos realizaram da bibliografia acerca da educação nas províncias e na Corte mostra um importante acúmulo de reflexões. Trata-se de obras que são já clássicos de referência, como nos casos do que José Veríssimo, José Ricardo Pires de Almeida e Primitivo Moacyr publicaram. Há, igualmente, um conjunto de obras que, provenientes do campo da história, tornaram-se referência fundamental para o trabalho com a história da educação, como O Tempo Saquarema de Ilmar Rhollof de Mattos e os trabalhos de Sidney Chalhoub e Eni de Mesquita Samara. No campo específico da história da educação, as produções de, por exemplo, Oscar Thompson, Archimiro Mattos, J. L. Rodrigues, João Craveiro Costa, José Calasans, J. B. Mello, José Mendonça e Abelardo Duarte constituem referências significativas para a historiografia das províncias. Principalmente, chama atenção a profusão das novas produções. Maria Stephanou, Maria Helena Câmara Bastos, Elomar Tambara, Luciano Mendes de Faria Filho, Heloisa Villela e Tarcísio Mauro Vago são nomes que, na última década e meia, vêm consolidando a pesquisa sobre a educação oitocentista com suas publicações. Seus estudos são amplamente referenciados nos artigos editados nesta compilação. Também as teses e dissertações elaboradas nos programas de pós-graduação das universidades de diferentes estados brasileiros vão contribuindo com novas perspectivas de estudo. Nesse aspecto, o levantamento realizado da produção aponta que, de Norte a Sul, há trabalhos representativos da renovação dos estudos sobre o Império. Além da rede de referências que articulam, é relevante dizer que as contribuições reunidas neste volume foram produzidas por autores que igualmente têm publicado trabalhos fundamentais para o entendimento da história da educação oitocentista. Junto aos organizadores, José Gonçalves Gondra e Omar Schneider, colaboraram Adriana Feitosa, Adriana Maria Paulo da Silva, Alessandra Schueler, Berenice Corsetti, César Augusto Castro, Cynthia Greive Veiga, Elizabeth Siqueira, Fátima Neves, Ione de Souza, Irma Rizzini, José Carlos Silva, Leonete Schmidt, Maria das Graças Loiola, Maria Lucia Hilsdorf, Mauricéia Ananias, Samuel Castellanos, Sandra de Abreu, Sônia Maria Araújo e Terciane Luchese.

Depois, o mapeamento das fontes disponíveis para pensar a educação nas províncias e na Corte Imperial esclarece acerca dos caminhos da pesquisa histórica a respeito da escola oitocentista. Sob esse aspecto, Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial constitui um testemunho do quanto têm sido diversificadas as estratégias dos historiadores para definir seus objetos de pesquisa. Todo seu conjunto repõe a profícua discussão sobre as fontes da história da educação que, da última década e meia para cá, orientou grande parte da renovação historiográfica no país. Por um lado, a cuidadosa lembrança dos limites impostos pelas fontes ditas oficiais, como o são os relatórios das inspetorias provinciais e suas comissões, as estatísticas e recenseamentos, as atas e a legislação, não deixa esquecer a necessária crítica das fontes. Por outro lado, acompanha a reflexão sobre o uso de outros tipos de documentação a necessária crítica dos métodos e das categorias de análise empregadas. Assim, mostra-se que o trabalho com impressos, inventários, prestação de contas, listas de compra e de despesas com educação, livros, utensílios e boletins escolares, cartões-postais, fotografias, abaixo-assinados, anais de congresso, entre tantas mais, não tem renovado apenas os temas de pesquisa e sua abordagem, mas a própria elaboração metodológica que a interpretação dessas fontes implica.

Há também a preocupação com as possibilidades e limites da pesquisa sobre os processos de escolarização durante o Império e os desafios que atualmente se impõem aos profissionais deste canteiro da história da educação. A varredura da bibliografia e o mapeamento das fontes que resultam do trabalho realizado para a composição do livro Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial delineiam-se numa espécie de estado da arte da investigação sobre os processos de escolarização do Brasil oitocentista. O avanço sobre os limites impostos pela historiografia produzida pelos renovadores escolanovistas e por uma certa história das ideias pedagógicas fica marcado tanto pela abrangência e natureza das fontes mobilizadas nas análises, quanto pela prática insistente da crítica historiográfica. No entanto, outras lacunas aparecem e, conforme orientação dos organizadores, são consideradas pelos autores. Não obstante a especificidade dos interesses e das expectativas de pesquisa em cada região, há preocupações muito gerais e indicativas dos espaços para a inovação. É recorrente, por exemplo, a constatação de que ainda se sabe pouco sobre a cultura material das escolas oitocentistas, compreende-se mal a história das redes de ensino constituídas fora das capitais e de que o conhecimento histórico sobre os processos de educação não formais continua precário. De outra parte, a pesquisa sobre a educação e os processos de aprendizagem entre escravos e libertos, as questões relativas aos povos indígenas, as dinâmicas educativas instituídas pelo viés do gênero, da etnia e da geração são igualmente campos ainda pouco lavrados. Também é significativo o número de relações que, segundo os autores, demandam investimento. Precisamente nesse sentido, reconhece-se o pouco que foi feito para se compreender, por exemplo, as relações entre as práticas prescritas e a atuação dos agentes do processo de escolarização; as táticas das populações consideradas escolarizáveis e as estratégias governamentais; a escolarização, a maçonaria e o ensino laico; e as relações das famílias e tutores com a questão da formação.

Finalmente, quarto ponto. A concepção do período em que a educação era um importante instrumento civilizador e a escola seu principal veículo se impõe às principais conclusões das pesquisas. Mesmo diante dos reduzidos números de atendimento escolar, foi por um hábil discurso acerca da educação que se procurou “superar a selvageria pela civilização” (p. 18), articular uma “estratégia civilizadora do povo” (p. 272) ou “promover os progressos civilizadores, materiais e políticos” (p. 446) da nação. E não só nos resultados, os estudos reunidos neste 3º volume da coleção Horizontes da Pesquisa em História da Educação expressam essa compreensão da época, a respeito das medidas tomadas para organizar as escolas e das ações efetuadas sobre a conduta de diferentes sujeitos sociais. Igualmente, os protocolos de leitura construídos pelos autores exploram o caráter civilizatório que então se queria dar à educação pública. A ênfase das análises nas iniciativas do poder público mostram sobretudo que a escola foi uma instituição constituída, justificada e disseminada no Brasil-Império como signo de civilização e progresso. Nesse sentido, além de delinear uma espécie de estado da arte da produção sobre a educação do período e apontar as ainda importantes lacunas da pesquisa, o livro organizado por Gondra e Schneider permite uma revisão das interpretações sobre as realizações da escola oitocentista no país. Trata-se, assim, de um livro útil tanto pelas referências de pesquisa e possibilidades de trabalho que sistematiza quanto pelas leituras que propõe.

A proposta deste volume determinou tarefas gerais a respeito do estudo da história da educação nas províncias e na Corte, que fizeram as análises individuais convergirem em pelo menos outros quatro aspectos. Por um lado, o trabalho de varredura e mapeamento se completa com a identificação dos grupos de pesquisa que atuam no estudo da educação no Império e dos arquivos e acervos que têm sido frequentados. Por outro, na reflexão sobre a história e a historiografia da educação à época, são insistentes a discussão da obra de Primitivo Moacyr e as preocupações com a distância entre o proclamado e prescrito em relação ao vivido e realizado. Assim, primeiro aspecto, o conjunto dos artigos compilados mostra uma rede de grupos de estudo e pesquisa, que indica a importância do trabalho coletivo na consolidação de um campo de investigação. Os relatos apontam que a atuação de pesquisadores vinculados ao GHIMEM/ MA, NEDHEL/MA, NEPHEPE/UFPE, GHENO/UFPB, HISTEDBR, CEDU/UFAL, GEPHE/UFMG, NEPHE/UERJ e GEM/UFMT, por exemplo, vem constituindo pontos de apoio e oportunidade de formação imprescindíveis para a consecução de investigações mais abrangentes e com capacidade comparativa. Decorre desse trabalho conjunto, um segundo aspecto das pesquisas sobre a educação oitocentista que os estudos demarcam com firmeza, o trabalho nos arquivos públicos estaduais. Os arquivos públicos de praticamente todos os estados do país são lembrados e têm uma parte do seu acervo analisada pelos autores. Terceiro aspecto: a obra de Primitivo Moacyr é presença marcante na análise de muitos dos artigos publicados neste livro. A compilação de fontes que ele produziu e as análises que articulou, num esforço de compreensão das iniciativas públicas na área da educação entre 1834 e 1889, são consideradas e discutidas em diferentes momentos e a propósito de diferentes províncias. Sobretudo, compreende-se, de diversas perspectivas, que as interpretações de Primitivo Moacyr precisam ser matizadas quando se quer analisar não só a história da educação no Império, mas também os programas a partir dos quais sua historiografia foi construída.

A respeito das preocupações com a sempre distante relação entre o prescrito e o realizado na educação brasileira, verificada em boa parte dos autores que colaboraram para as muitas realizações do livro Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial, um último comentário. Essa grade de leitura acerca da instrução do oitocentos é o que me pareceu mais próximo dos instrumentos de interpretação de uma história vista do centro, institucional e político-administrativa, presente no livro. Pretender compreender o alcance das iniciativas do poder público e as alterações nas práticas educativas a partir da análise da legislação, dos discursos da prática legislativa e de toda a série de documentos administrativos é operação que continua produzindo resultados. Ao lado do estudo das práticas e instituições da educação nas províncias e na Corte Imperial, o trabalho de reexame e de reescrita da história da educação daquele período atualmente em andamento, e de que este livro é um testemunho, tem sido feito em meio à abordagem desse tipo de documentação. No entanto, o trabalho com esse tipo de fonte não impede a elaboração de outras operações de leitura e interpretação. Nesse sentido e a título de exemplo, a reflexão acerca da relação que os vários grupos sociais que frequentavam a escola mantinham com seu funcionamento e com os mecanismos que aí estavam à disposição, ou sobre os que lhe resistiam, também visibiliza elementos tão fundamentais da situação concreta do fazer ordinário da escola, quanto os que foram manejados sob as vistas das instâncias do poder administrativo. Uma vez mais se trata de evitar a produção de um vazio, agora a respeito das tensões que se estabelecem na sociedade entre as suas várias instituições, entre diferentes grupos sociais e entre os múltiplos sujeitos que vivenciaram o cotidiano escolar.

No momento mesmo em que é revista, a história da educação e da escola oitocentista recebe, com a publicação de Educação e instrução nas províncias e na Corte Imperial, um tipo de contribuição que é característica dos períodos de reformulação dos problemas de pesquisa. Ao mesmo tempo em que insiste nos estados da arte e balanços, pratica modelos híbridos de compreensão dos objetos de investigação e sugere novos protocolos de análise e crítica.

André Luiz Paulilo – Professor na Faculdade de Educação Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

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Thompson: história e formação – BERTUCCI (RBHE)

BERTUCCI, Liane Maria; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; OLIVEIRA, Marcus Aurélio Taborda de. Edward P. Thompson: história e formação.  Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Resenha de: MAYOR, Sarah Teixeira Soutto. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 3 (30), p. 229-234, set./dez. 2012.

Partindo do pressuposto de que a produção de Edward Palmer Thompson pode ajudar, de inúmeras maneiras, a “indagar o fenômeno educacional” na contemporaneidade (p. 10), e de que pouco se recorre às obras deste historiador para pensar a história da educação no Brasil, o livro procura desenvolver uma reflexão sobre a educação, a escolarização e a sua história.

Cabe ressaltar a inserção acadêmica no âmbito da história da educação dos três autores do livro e o diálogo com as obras de Thompson em seus trabalhos. Liane Maria Bertucci é doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas e professora de história da educação na Universidade Federal do Paraná; Luciano Mendes de Faria Filho é doutor em educação pela Universidade de São Paulo e professor de história da educação na Universidade Federal de Minas Gerais; e Marcus Aurélio Taborda de Oliveira é doutor em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do programa de pós-graduação em história da educação e em lazer, na Universidade Federal de Minas Gerais.

O livro é dividido em três capítulos. Neles os autores dialogam com as contribuições de Thompson como historiador, com as noções-chave de cultura e experiência, para pensar a escolarização, e com a noção de “fazer-se”, construída pelo autor a partir do estudo da classe operária inglesa, a qual se mostra como possibilidade para pensar a cultura escolar.

Assim, no primeiro capítulo, intitulado “Thompson historiador: Teoria, método e fontes – contribuições para a história da educação”, o leitor tem acesso a “[…] um quadro de possibilidades de Thompson para pensar a produção do conhecimento histórico, seja na educação ou não […]” (p. 13). Já no segundo capítulo, “Experiência e cultura em Thompson: Contribuições para uma história social da escolarização”, o leitor encontrará a problematização do processo de escolarização como “[…] experiência histórica ainda aberta, e não predefinida […]” (p. 13). E por fim, no terceiro capítulo, “Formação como fazer-se, um legado Thompsoniano: Contribuições para a educação”, o livro se volta para a compreensão das formas como a escolarização

[…] pode produzir um sujeito que é, de alguma maneira, formado […] para perpetuar a sociedade, ao mesmo tempo que adquire uma base cultural que permite produzir as condições de resistência a essa mesma sociedade […] (p. 14).

Nos três capítulos, é realizado um diálogo com autores importantes do campo historiográfico, como Peter Burke, Eric Hobsbawm, Marc Bloch, Lucien Febvre e Carlo Ginzburg, assim como com autores que problematizam os currículos e as culturas escolares, a exemplo de Osmar Fávero, Ivor Goodson, Maria do Carmo Martins, André Petitat, Fernando Alvarez-Uria, Julia Varela e Diana Gonçalves Vidal. Há também o diálogo com outros dois importantes autores, principalmente em se tratando das noções de cultura e experiência: Raymond Williams e Walter Benjamin. Dentre as treze obras e textos de Thompson abordados no decorrer do livro, podem ser destacados: “A miséria da teoria” (1981), “A formação da classe operária inglesa” (1987), “Costumes em comum” (1998) e “Folclore, antropologia e história social” (2001).

Ao fim dos capítulos, os autores apresentam um conjunto de trabalhos publicados no Brasil sobre Edward Palmer Thompson e sua produção historiográfica. Vale destacar a importância desta iniciativa para o aprofundamento do debate para aqueles que se interessarem pelas contribuições desse historiador para a pesquisa em educação.

Os autores começam a discussão lançando as seguintes perguntas: “é possível pensar na possibilidade de um Thompson educador? Se sim, em que sentido” (p. 10)? Tomando o cuidado necessário de não “pedagogizar” o historiador, como os próprios autores ressaltam, com o “[…] intuito de preservar o contexto que viu nascer determinado conjunto de reflexões motivadas por um inventário muito particular de problemas […]” (p. 10), há um reconhecimento de que várias são as possibilidades para se pensar o fenômeno educacional e os processos de escolarização por meio do legado de Thompson, destacando-se o que os autores consideram como duas das noções-chave de seu pensamento: a de cultura e a de experiência.

Essas noções, trabalhadas pelo historiador, permitem um alargamento da própria noção de formação, o que de fato, torna-se uma grande contribuição deste livro. Os autores destacam uma ideia bastante defendida por Thompson, de que os diversos sujeitos se formam e se educam “[…] nas mais diversas circunstâncias em que vivem, seja no mundo do trabalho, da família, da comunidade de pares, do lazer, entre muitos outros […]” (p. 11). Nesta perspectiva, Thompson procurou demonstrar, utilizando-se de seus estudos sobre a classe operária inglesa, que as pessoas se autorreconhecem como um grupo com interesses próprios, a partir de suas lutas cotidianas, costumes, leis, práticas religiosas, entre outras.

Interessante destacar que o entendimento da formação para além dos limites da escola torna-se fundamental para a compreensão da própria cultura escolar e dos processos de escolarização, permitindo, assim, a ampliação do olhar sobre o fenômeno educacional. Este entendimento demonstra também a necessidade de se ampliar os olhares acerca dos próprios sujeitos, aspecto bem abordado pelos autores ao se referirem à noção de experiência de Thompson e à sua preocupação em estudar a vida cotidiana de homens e mulheres simples (p. 22). Recusando a superioridade do econômico sobre o sociocultural, o historiador questiona como uma abordagem exclusivamente economicista compreenderia aspectos desse cotidiano, como “[…] os ritmos habituais de trabalho e lazer (ou festas), […] os ritmos intrínsecos ao próprio ato de produzir […]”, as diversas crenças religiosas, entre outras formas de experiência humana (p. 28).

A própria consideração de Thompson sobre a amplitude das fontes e dos problemas torna-se de grande relevância para se pensar as questões propostas pelo livro. Como apontam os autores (p. 35):

[…] o fazer histórico de Thompson é um permanente questionar de nossa compreensão sobre o que considerar documento para o estudo histórico da escola e dos processos educacionais. Da legislação, tradicional, locus de pesquisa dos estudos da área, aos jornais diários de uma cidade, a gama de fontes e a forma de interrogá-las ganham nova perspectiva: aquela que aponta para a necessidade imperiosa de se perceber as relações e tensões sociais que um documento expressa; as marcas muitas vezes sutis das derrotas, as exuberantes expressões das vitórias dos que viveram e lutaram para construir a vida em sociedade.

O trecho final da citação revela um aspecto importante ressaltado pelos autores em outro momento do livro, quando relatam o que, segundo eles, seria uma grande lição deixada por Thompson: “[…] toda regulamentação da vida em sociedade é marcada por conflitos, cuja intensidade deve ser analisada nos termos de quem as viveu […]” (p. 43).

Assim, uma importante contribuição de Edward Thompson pode ser pensada em qualquer processo de formação. Ao propor que a história não é predeterminada, considerando a ação criativa dos homens e mulheres, contribui para pensar a escola, na medida em que aponta que sua ação não ocorre em um “vazio cultural”. Apropriando-se das ideias do historiador, os autores observam que a escola, ao se estruturar como instituição, age “[…] numa situação de grande densidade cultural, na qual as pessoas são produzidas e reconhecidas como sujeitos na e da cultura […]”, sendo preciso reconhecer, assim, “[…] que o processo educativo posto em ação na e pela escola entra em tensão com processos educativos já existentes […]” (p. 46).

Ao abordarem essa densidade cultural, os autores chamam a atenção para os processos históricos que constituíram e constituem a instituição escolar e a escolarização, também culturais, assim como as suas estratégias formativas. Como exemplo, citam a mobilização da sociedade a favor da escola, empreendida pela elite letrada, por meio da qual “[…] as culturas dos pobres e do aprendizado na e pela experiência deveriam ser abandonadas a favor das racionalizadas e racionalizadoras culturas escolares […]” (p. 47).

Os autores ressaltam, assim, que a emergência da escola criou novas formas e padrões de socialização, que tendiam a “[…] afastar as novas gerações, sobretudo das camadas mais pobres, da cultura cultivada pelos ancestrais […]” (p. 52); interrogam “[…] as formas pelas quais os tempos escolares vão ganhando legitimidade e provocando um crescente tensionamento do conjunto dos tempos sociais […]” (p. 61). Chamam a atenção, desta forma, para um longo percurso que precisa ser estudado, dando destaque ao modo como instituições sociais

“[…] vão inventando ou desautorizando tradições culturais e políticas as mais diversas, e sobre as formas como as escolas são chamadas a contribuir com a formação cívica e, por que não, com a espetacularização da política […]” (p. 61).

Com estas reflexões, o livro contribui para pensar novas possibilidades de pesquisa na história da educação e também para desnaturalizar a instituição escolar e os próprios processos de escolarização, inseridos em diferentes contextos históricos, marcados por inquietações de um tempo específico. Traz elementos também para pensar as dimensões da formação como “intimamente relacionadas ao conjunto das experiências dos sujeitos” (p. 52), uma das grandes possibilidades oferecidas pelos trabalhos de Thompson para pensar os estudos em educação. A noção de experiência, cunhada pelo historiador, implica o reconhecimento dos sujeitos como reflexivos, capazes de, em suas ações, construírem continuamente o movimento da história (p. 49).

E, no entendimento de uma educação que se faz nas relações sociais e que extrapola os limites da escola e da sala de aula, dimensão fundamental para a compreensão da própria instituição escolar, os autores retomam a ideia Thompsoniana de “fazer-se”, ou seja, os indivíduos são sujeitos de sua própria formação, de um processo que permite a ideia de emancipação (p. 66). Como observam os autores, fala-se de homens e mulheres, “[…] em sua vida material, em suas relações determinadas, em sua experiência dessas relações, e em sua autoconsciência dessa experiência […]” (p. 69).

Assim, outra importante contribuição é trazida pelo livro a partir das ideias de Edward Palmer Thompson: as diferentes formas de reação dos agentes, no caso os escolares, que precisam ser reconhecidas não como adesão cega às intervenções de diversas instâncias normatizadoras, mas como diálogo. Priorizando a experiência do indivíduo, que, como já referido, não se encontra em “um vazio cultural”, o diálogo “[…] deve considerar tanto a dimensão racional quanto a dimensão sensível postas em prática no ato de formação […]” (p. 71). A experiência consistiria, assim, em um elemento mediador, uma conexão entre processo histórico, determinações culturais e ação humana individual, em permanente tensão.

Entre a determinação e a apropriação, entre a estrutura e o processo, entre a singularidade e a generalização, medeia a experiência. Logo, esse autor não descartaria uma análise ideológica da cultura, mas não a reduziria também à lógica da conspiração, leitura que marca ainda hoje grande parte dos trabalhos em educação no Brasil. Ao propor a dialética entre educação e experiência o autor caracteriza o segundo termo como uma “exploração aberta do mundo de nós mesmos” (p. 80).

Desta forma, experiência é compreendida pelos autores como “[…] própria de indivíduos singulares e é incompatível com os cálculos que reduz homens e mulheres a insumos […]”. Ela é dialógica e “[…] se funda no ser sensível, que está em tensão permanente com as estruturas econômicas, políticas e sociais sintetizadas na cultura […]” (p. 84).

Finalizando, o livro sugere a importância de considerar a tensão entre formas de dominação e resistência, fundamental para se pensar a escola e a escolarização, já que “[…] os indivíduos são partícipes dessa luta, por adesão ou omissão, resistência ou conformação, mas o são em situação […]” (p. 91). Os autores problematizam as possibilidades de formação postas pelo mundo contemporâneo, pautadas pelas ideias de autoconsciência crítica, autodeterminação, autonomia, reciprocidade e mutualismo, que remetem à noção de autoformação trabalhada por Thompson, mas que ainda contrastam com um mundo que parece

[…] marcado pela heteronomia, pela indiferença, pela atualização sem precedentes das formas de dominação, seja pela força das armas ou pela educação dos sentidos, ou simplesmente pela negação do direito à dignidade a grandes contingentes da população mundial […] (p. 92).

E, assim, concluem que a formação, “[…] entendida como processo de autorreflexão, de autoconhecimento, de contínuo fazer-se, inclusive escolar, teria um lugar fundamental para que a sociedade pudesse se organizar em outras bases […]” (p. 93).

Nesse sentido, o livro cumpre o objetivo proposto e revela grandes contribuições para pensar a educação e a escolarização na contemporaneidade, a partir dos estudos do historiador Edward Palmer Thompson. A ideia de formação como um contínuo “fazer-se”, as noções de cultura e experiência e de educação para além do limite escolar podem possibilitar novos olhares para a própria escola e para os sujeitos que dela fazem parte, assim como para as tensões de uma cultura sempre em movimento, que não abarca apenas perspectivas de conformação, mas, como lembram os autores, possibilidades de reinvenção.

Sarah Teixeira Soutto Mayor –  Mestre em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do NUPES/UFMG (Núcleo de Pesquisas sobre a Educação dos Sentidos e das Sensibilidades), e do CEMEF/UFMG (Centro de Memória da Educação Física, do Esporte e do Lazer).  E-mail: [email protected]

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Novas tecnologias para ler e escrever: algumas ideias sobre ambientes e ferramentas digitais na sala de aula – RIBEIRO (REi)

RIBEIRO, Ana Elisa. Novas tecnologias para ler e escrever: algumas ideias sobre ambientes e ferramentas digitais na sala de aula. Belo Horizonte: RHJ, 2012. Resenha de: PINHEIRO, Daniel Silva Pinheiro; CALDEIRA, Marildes. Revista Entreideias, Salvador, v. 1, n. 2, p. 159-162, jul./dez. 2012.

Ao longo dos séculos, os processos de ler e de escrever foram redesenhados pelas modificações dos seus suportes e materiais. Passamos desde a argila, papiro e papel, bem como pelos formatos de rolo e códice chegando à atualidade em que temos à disposição as telas dos dispositivos digitais. Estes vêm exercendo forte influ¬ência nos modos de ler e escrever, alterando a própria estrutura textual, em que se apresenta na forma de hipertexto, cada vez mais multimodal no sentido em que podem combinar as diversas linguagens, tais como imagens, sons, códigos verbais, dentre outras.

Essas combinações multiplicam as possibilidades de comunicação para o sujeito, lhe permitem novas formas de interação social, assim como estimulam o aparecimento de novos gêneros textuais. Tal assertiva, implica numa ampliação e complexificação dos processos de letramento. É justamente considerando e discutindo estas questões que a Ana Elisa Ribeiro nos convida ao diálogo com o livro Novas tecnologias para ler e escrever.

A obra constitui-se numa organização das pesquisas acadêmicas realizadas pela autora e de suas experiências em sala de aula como professora de Português e de Produção de Textos. Trata-se de um trabalho que busca não somente esclarecer conceitos do campo da leitura e da escrita em meios digitais, mas que também traz relatos bem fundamentados, de atividades de leitura e escrita, usando o que ela denomina “ferramentas digitais”.

Ao descrever algumas experiências realizadas, em práticas de letramento digital, ou seja, situações de uso da escrita e leitura em meio digital, percebe-se que a pretensão da autora é viabilizar que seus leitores reflitam e sejam instigados a também experienciar estas e outras práticas similares em seus respectivos contextos. É evidente ao longo da obra que a mesma destina-se, especialmente, a professores que já trabalham ou pretendem trabalhar com produção textual considerando as questões emergentes no que diz respeito às tecnologias e ao letramento.

Apesar do enfoque prático, e de frequentemente ser empregado o termo “ferramentas” para designar os ambientes e dispositivos digitais, a autora avança para além da concepção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) enquanto simples suportes ou instrumentos e sustenta a importância desses espaços como potencializadores do trabalho crítico e colaborativo, favorecendo assim uma perspectiva que considera a escrita como processo e não como produto.

Ribeiro sustenta que a Web 2.0 é caracterizada especialmente pela participação dos sujeitos que concomitantemente produzem conteúdo e aperfeiçoam o próprio sistema. Também é peculiar ao contexto da Web 2.0 a intersecção entre os dispositivos digitais e a rede, a internet, o que aumenta significativamente as possibilidades de colaboração, de produção e publicação de textos. Temos ai, um avanço em relação à visão restrita das TIC como meras ferramentas, em seu texto, a autora evidencia sua compreensão das TIC enquanto potencializadoras da produção de saberes e culturas. Para além de suas próprias pesquisas a autora utiliza-se de alguns outros referenciais do campo da linguística e da comunicação para estruturar suas observações. São citados, por exemplo, Lucia Santaella, Manuel Castells, Pierre Lévy, Antônio Marcuschi, André Lemos, entre outros.

O livro é organizado em 12 pequenos capítulos que ao mesmo tempo em que tem seus temas interligados, oferecem a possibili¬dade de um caminhar não linear. O leitor possui a liberdade para escolher qual o assunto específico que lhe interessa ou em qual capítulo do livro quer iniciar sua leitura sem, com isto, ter sua compreensão comprometida.

Diante da nossa dificuldade em dissociar a priori o termo tecnologia do contexto que envolve exclusivamente equipamentos elétricos, a autora atenta para o fato de que o homem já há muito tempo age sobre a natureza modificando-a. Para isto, ele utiliza-se de recursos técnicos que originam tecnologias capazes de suportar e estruturar as ações humanas. Importa perceber isto, pois tal dificuldade pode ocorrer de maneira similar com relação à percepção das TICs, as quais também não são tão recentes – exemplo disto, é o rádio, cuja criação e utilização data de algumas décadas.

Por meio de uma observação histórica o que se percebe é uma relação imbricada entre tecnologia e sociedade, ambos sendo influenciados e influenciando-se mutuamente. É a partir desta relação que os sujeitos vão se apropriando das tecnologias, transformando seus usos e construindo novas necessidades.
Desta forma, o domínio da tecnologia da escrita exige o domínio conjunto de várias técnicas, isto, desde que predominavam o uso do lápis e papel chegando até os nossos dias de uso intensivo dos dispositivos tecnológicos digitais. Conforme a autora, os usufrutos são aprendidos, cada objeto de ler e suas configurações são apropriados pelos sujeitos por meio da experiência e experimentação. Considerando a argumentação feita até aqui, e as afirmações de Ribeiro, seria possível imaginar a existência de uma disputa envolvendo as tecnologias (novas e antigas) e as instituições formativas, tais como a escola. Contudo, ela argumenta que esse tipo de compreensão se constitui num equívoco, já que o que se percebe é uma reconfiguração das tecnologias e mídias para que se mantenham entre as opções do leitor. Com relação a escola, o que se faz necessário é um olhar outro no que diz respeito às mídias que precisam ser vistas como novos meios de fazer, propor e mesmo seduzir, tanto alunos quanto professores.

Também merece relevância apresentar a reflexão acerca do conceito e do contexto de utilização do termo letramento feito pela autora, bem como sua relação com a alfabetização. Ribeiro define o letramento como sendo os usos que as pessoas realizam da alfabetização que tiveram ou das práticas ligadas à cultura escrita em que estão imersas. Argumenta em torno da existência de agências de letramento, que seriam espaços de socialização de práticas de letramento, tais como a escola, o trabalho e a família. Além de empregar a concepção de graus de letramento, em que por meio das mais diversas agências os sujeitos podem adquiri-los em variados níveis. Esses termos e conceitos são fundamentais no campo dos estudos sobre as práticas de uso da língua e seus variados gêneros. Já que a humanidade sempre inventará novas formas de escrever, novos gêneros de textos e suportes de leitura é impossível afirmar que existam limites para o letramento. Desta forma, na atualidade, em que contamos com a internet e os dispositivos digitais, a autora julga como pertinente adjetivar o termo letramento com a palavra digital, isto, para indicar a escrita em ambiente online, em rede, utilizando-se de dispositivos digitais.

Visto que se inserem neste contexto sociotécnico como mediadores instituídos para isto, a escola e o professor são multiplicadores potenciais deste letramento digital. Para Ribeiro, é justamente a partir do momento que as agências de letramento, com especial menção – a escola, compreenderem a permeabilidade relativa que existe entre textos e dispositivos de ler que será possível formar leitores hábeis e aptos a qualquer experiência de leitura (p. 119), consequentemente será possível colaborar para emancipação humana.
Como eventos de letramento que podem ser trabalhados em sala de aula, a obra conta com a indicação de experiências, por exemplo, o trabalho com webjornais, que possui entre as suas principais características a não linearidade e a multimodalidade. Estas, no entanto, não são propriedades dos jornais da web, pois já existiam há algumas décadas. Os ambientes digitais intensificaram e ampliaram essas características, trazendo outras opções de combinação das linguagens, como o áudio e o vídeo, que não seriam possíveis no meio impresso.

Outra experiência envolvendo letramento digital relatada no livro de Ribeiro é o trabalho com Google Docs cujo enfoque está mais voltado a valorização da escrita. Esse recurso possibilita a produção de escritos elaborados colaborativamente, estando os sujeitos em tempos e espaços diferentes, basta estarem com algum dispositivo digital conectado a internet. Nesse trabalho, o professor tende a enfatizar o processo de escrita, ainda mais do que o seu produto.

Ribeiro também opta por relatar nesta obra o seu trabalho com os alunos envolvendo práticas de retextualização, as quais requerem um maior planejamento e o uso efetivo de algumas linguagens. Para exemplificar, a autora trás uma experiência que refere-se ao uso de programas de rádio, em que os alunos foram instigados a retextualizar na forma de material impresso, uma locução gravada de uma rádio web. Ribeiro sustenta que essas atividades podem ser remodeladas e promovidas em qualquer série, em qualquer etapa de ensino, só dependendo da criatividade da agência e do professor (p. 75).

Consideramos que a obra oferece uma leitura clara, objetiva e promove importantes reflexões sobre os processos de letramento, principalmente quando este é confrontado com as novas práticas de leitura e escrita mediadas pelos meios eletrônicos.

Daniel Silva Pinheiro

Marildes Caldeira

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Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade – ELIAS; SCOTSON (REi)

ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2000. Resenha de: LAZLORAHMEIER. Revista Entreideias, Salvador, v. 1, n. 2, p. 149-152, jul./dez. 2012.

Os estabelecidos e os outsiders nasceu de um estudo realizado por Norbert Elias e John L. Scotson durante aproximadamente três anos em uma área de construções suburbanas de uma grande cidade industrial próxima de Leicester, região central da Inglaterra, no final da década de 1950 e início da década de 1960. Durante esse período, Scotson era professor de uma escola dessa área, enquanto Elias trabalhava para um Programa de Educação de Adultos na região. Foi um trabalho desenvolvido através de dados coletados a partir de estatísticas oficiais, relatórios governamentais, documentos jurídicos e jornalísticos, entrevistas e, principalmente, “observação participante”.

Inicialmente o estudo buscava esclarecer os diferenciais de delinquência juvenil entre os bairros da região, mas, pouco a pouco, os problemas encontrados ali foram exercendo um determinado fascínio nos autores, devido a seu caráter paradigmático. Perceberam que os problemas daquele microcosmo eram comumente encontrados, em escala muito maior, na sociedade como um todo. Isso deslocou o interesse da pesquisa para um problema mais geral, o das relações de poder entre as diferentes zonas da comunidade.

Segundo Elias e Scotson, o deslocamento do foco da pesquisa evitou o que poderia ter sido uma perda de tempo, já que no terceiro ano da investigação os diferenciais de delinquência entre os bairros, que inicialmente os haviam norteado, praticamente desapareceram. Mesmo assim os dois bairros mais antigos conti¬nuaram a estigmatizar o bairro mais novo como uma área de alta delinquência. Entender o porquê das opiniões persistirem, apesar da mudança dos fatos, além de entender por que os fatos, em si, haviam mudado, foram questões que se apresentaram no decorrer da pesquisa.

O livro apresentado aqui foi fruto desse trabalho, o qual foi conduzido de maneira relativamente aberta, sem decisões preestabelecidas em relação ao problema a ser pesquisado, nem em relação a um prazo fixo, deixando-os livres para mudar o rumo da pesquisa da maneira que lhes parecesse mais interessante, o que, segundo os autores, ajudou a neutralizar qualquer ideia preconcebida sobre o que era ou não significativo no estudo de uma comunidade.

Com uma população de menos de 5.000 habitantes, Winston Parva – nome fictício dado à comunidade estudada – era dividida em três bairros, sendo a Zona 1 uma área residencial de classe média e as Zonas 2 e 3 áreas operárias. Os habitantes das Zonas 2 e 3 eram praticamente iguais em relação à sua renda, ocupação profissional, nacionalidade, ascendência étnica, “cor” ou “raça” e nível educacional. Todos os indicadores comumente usados como diferenciais estruturais das relações de poder apontavam para uma linha divisória entre a Zona 1 e as duas Zonas operárias, mas não foi o encontrado. A divisão estava justamente entre as Zonas 2 e 3, sendo que sua única diferenciação aparente era o fato de a Zona 2 ser um bairro operário antigo enquanto a Zona 3 era um bairro operário constituído recentemente.

Os habitantes da Zona 2 (chamada de “aldeia”), na maioria, eram membros de famílias que já viviam ali há algum tempo, duas ou três gerações, e sentiam-se estabelecidos, como donos do local. Os habitantes da Zona 3 (loteamento) haviam chegado há pouco tempo a Winston Parva. Os primeiros “imigrantes” chega¬ram atraídos pela oferta de empregos na região. Posteriormente, a partir de 1939, devido à mudança da situação do país, mais precisamente após a crise de Munique, chegaram também as famílias dos militares lotados num regimento próximo; depois ainda, com o bombardeio de Londres, uma fábrica de equipamentos londrina, juntamente com seus empregados, também mudaram-se para lá. Ainda, a expansão de algumas indústrias locais teve sua contribuição em atrair outras pessoas de diferentes partes do país.

O grupo recém-chegado era um grupo difuso, “anômico”, com famílias que não se conheciam, vindas de diferentes lugares da Inglaterra, famílias que, além de estranhas para os “aldeões”, eram estranhas entre si. O grupo da “aldeia” era extremamente integrado, coeso, “nômico”; era um grupo de antigos residentes, membros de famílias que se conheciam há mais de uma geração, que haviam criado um estilo de vida em comum e se orgulhavam disso.

Esse grupo coeso, que se conhecia há mais tempo, que tinha seus costumes, suas normas, viu chegar à sua porta um outro grupo, com pessoas de costumes e valores diferentes dos seus. Mais que isso, em um sentido metafórico, viu o outro adentrar à sua própria casa. Com o temor de uma “infecção” aos “bons” costumes, à tradição que tanto prezavam, à qual se identificavam e também eram identificados, os “aldeões” levantaram barreiras excluindo e humilhando os “inimigos”. Para isso desenvolveram como arma uma “ideologia” que enfatizava e justificava sua própria superioridade, e que rotulava os membros do outro grupo como sendo de categoria inferior. Essa ideologia de status disseminou-se e foi mantida por um fluxo constante de fofocas que se apegava a qualquer acontecimento, por mais isolado que fosse, capaz de reforçar a imagem negativa do grupo outsider, ao mesmo tempo em que se agarrava a qualquer acontecimento da “aldeia” que pudesse ajudar a engrandecer sua própria imagem.

O poder do grupo estabelecido era tão grande que, com o tempo, essa imagem de inferioridade foi capaz de penetrar até mesmo na autoimagem do grupo estigmatizado. Essa diferença de forças Elias atribui à diferença de coesão dos grupos envolvidos.

A alta coesão do grupo estabelecido permitia ao mesmo reservar a seus indivíduos posições de maior poder na sociedade, reforçando sua coesão e excluindo dessas posições qualquer membro de outro grupo, enquanto a falta de coesão do grupo estigmatizado tornava-o vulnerável.

É dentro desse contexto que, mais tarde, a delinquência juvenil surge, como forma de manifestação reativa dos jovens outsiders frente à exclusão e à coerção exercida pelos estabelecidos. A ausência de suporte familiar, assim como a ausência de políticas públicas que oferecessem atividades culturais, de lazer e de recreação a esses jovens, atividades encaradas como luxo pelas autoridades, contribuíram para a formação desse quadro. A delinquência e os atos de vandalismo passam a ser a forma particular que alguns jovens encontraram para manifestar o sentimento de inferioridade social largamente enraizado desde a sua infância, no interior de suas famílias e nas inter-relações com as outras crianças de sua comunidade. Evidencia-se aqui a relevância e o papel fundamental que atividades extraescolares e extraprofissionais, que gerem satisfação, têm na construção identitária dos jovens e em sua conduta social e escolar.

Isso reverberava também nos processos de aprendizagem dos jovens. No início da pesquisa, a maioria desses jovens figurava entre os piores alunos, tirando as notas mais baixas. Além disso, insubordinação com os professores, danos à propriedade escolar, brigas e uso de linguagem obscena, eram problemas frequentes.
Elias explica que, por mais que queiramos buscar um culpado para a situação por ele apresentada, é importante deixar claro que a relação estabelecida aconteceu ao acaso, não houve um plano deliberado de ação em um determinado sentido. A postura tomada, por exemplo, pelos “aldeões”, foi uma reação involuntária a uma situação específica, conforme a toda a estrutura, toda a tradição e visão de mundo da comunidade “aldeã”. “As tensões eram o concomitante normal de um processo durante o qual dois grupos antes independentes tornam-se interdependentes” (p. 64).

Temos é que entender a configuração das relações de poder, entender as configurações da comunidade, compreender a natureza dos laços de interdependência que unem, separam e hierarquizam indivíduos e grupos sociais. Não há como entender o “mau” comportamento sem entender o “bom”. Não há como entender o indivíduo sem entender a relação entre-indivíduos, que forma o indivíduo e é, ao mesmo tempo, formada por ele. Essa relação entre indivíduos, que formam uma comunidade, que formam o indivíduo, que vai formar novamente a comunidade é um padrão sempre mutante de relações entre as pessoas. Como uma dança. Nenhum dos grupos de Winston Parva poderia ter-se transformado no que era independentemente do outro. Evidencia-se nesse estudo o quão fictícios são os pressupostos teóricos que implicam a existência de indivíduos ou atos individuais sem a sociedade, assim como outros que implicam a existência de sociedades sem os indivíduos.

Winston Parva é apresentada aqui como um paradigma – como um modelo que indica a impotência com que as pessoas podem cair na cilada de situações de conflito por força de desenvolvimentos específicos. Ao demonstrar e, até certo ponto, explicar a natureza dessa armadilha, talvez o modelo nos ajude, sendo mais desenvolvido, a aprender pouco a pouco como desmontá-la e enfrentar melhor os problemas que ela suscita.

LazloRahmeier – Bacharel em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP.

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Brasil arcaico, Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930 – MONARCHA (RBHE)

MONARCHA, Carlos. Brasil arcaico, Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aguiar. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 2 (29), p. 267-280, maio/ago. 2012.

Carlos Monarcha é professor titular na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Araraquara. Autor dos livros A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões da modernidade brasileira (1990), Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes (1999) e Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação (2001). Atualmente coordena pesquisas sobre as “figurações da infância deficiente”, interrogando as estruturas teórico-metodológicas da produção científica sobre o “problema do anormal”.

O livro em epígrafe consiste um ensaio dividido em cinco partes: “A caminho”, “Melancolia e mal-estar”, “Torvelinho da vida moderna”, “À procura do indivíduo perdido e solitário” e “O discurso do inconsciente”. Além de um belo epílogo intitulado “Por um bravo novo mundo”. A primeira parte trata de novos projetos pedagógicos no século XIX, desde a Europa até sua circulação mundial. Na segunda, encontramos interrogações sobre os projetos da Escola Nova no Brasil republicano. Já na terceira parte, os leitores se deparam com uma reflexão sobre o tempo moderno e as idealizações de modelos cognitivos para as massas. E, finalmente, na quarta e na quinta partes, o autor deteve-se sobre os processos de medidas e classificações corporais e mentais e de difusão da psicanálise, respectivamente, observando a construção da normalização dos sujeitos, bem como de seus desvios.

Brasil arcaico, Escola Nova poderia ser só mais uma leitura entre as inúmeras que temos à nossa disposição sobre o tema da Escola Nova, não fosse a capacidade de o autor construir uma representação sensível e arguta desse tema, além de apresentar uma visão de conjunto, conferindo-lhe outro sentido e contribuindo para o debate acadêmico e para os interessados em geral. É uma leitura cujo ritmo é lento, detalhado e refletido, tal como o autor anuncia em seu prefácio (p. 16). Justamente pela polifonia de sua narrativa, que incorpora diversos discursos, sonhos e desejos do período, mas que ainda nos são caros. Monarcha escreve um “ensaio documentado” (p. 16) de uma história de sensibilidades, de formas de conferir sentido ao mundo, de sonhos postos em práticas, fundidos a instituições, corpos e personalidades de várias gerações. Mas antes de tudo é uma história de um problema, o da Escola Nova. Não simplesmente um problema de pesquisa sobre o qual ele se debruçou, teceu, desmanchou e refez outros pontos com destreza. Mas sim uma história que procurou compreender como esse problema foi construído, proposto e revisto ao longo da primeira metade do século XX, especialmente no decorrer das décadas de 1920-1930.

O autor traça inicialmente um panorama das transformações ocorridas no pensamento pedagógico ao longo do século XIX e no início do XX, que teriam uma forte relação com o desenvolvimento técnico e científico e com as transformações econômicas e sociais daquele tempo. A chamada Escola Nova “armou-se com o rigor epistemológico próprio da ciência analítica, ou seja, observação dos fatos, manejo do método experimental, quantificação e generalização da experiência” (p. 32). Essa hipótese é apresentada no primeiro capítulo da primeira parte do livro e se desdobra ao longo desse ensaio, sem que o autor se refira a ela o tempo todo, pois ele o faz na própria narrativa, carregada dos discursos de diferentes atores.

Assim, Monarcha busca compreender como se pôde constituir uma série de saberes sobre a infância, atravessados e atravessando os saberes pedagógicos desde fins do século XIX. Dessa forma, é fácil entender sua preferência por perseguir discursos dos precursores de uma pedagogia de massa, e pelos autores e atores que, ao firmarem uma “concepção de educação como atividade pessoal, espontânea e ativa, mas também, e sobretudo, como alento necessário para reerguer o mundo” (p. 46), acabaram por promover e participar de uma expansão planetária dos ideais, sonhos, desejos e sensibilidades próprios do movimento da Escola Nova.

Falamos de sonhos, desejos, sensibilidades, pois não é disso que se trata quando grupos humanos se mobilizam por alguma causa? Os exemplos descritos pelo autor indicam que grupos de intelectuais brasileiros se organizaram com base em uma sensibilidade que foi construída e retroalimentada pelo próprio movimento de sua constituição. E a formação de uma sensibilidade política atenta à infância e à formação das futuras gerações é um dos pontos que pretende ser explicado pelo livro. Se a educação das sensibilidades não é exatamente o foco desse estudo, ela toma parte importante em sua constituição. Ao procurar entender como foi possível a formação de inúmeros saberes científicos sobre a formação ética, psíquica e física da infância, o autor aponta para as possibilidades da educação de um tipo específico de sensibilidades para as crianças, nos idos das décadas de 1920 e 1930. Essa é a leitura que Monarcha faz da inúmeras reformas e propostas de reformas da educação que surgiram diante da “I Grande Guerra” e suas repercussões mundiais; reformas essas que compuseram importantes realizações na constituição da escola de massa.

É assim que somos introduzidos às propostas de intelectuais envolvidos num chamado “mercado planetário de ideias” (p. 57), quando da criação da Liga Internacional pela Educação Nova, que se apresentava como um movimento cumpridor do seu dever histórico na trama teleológica do progresso. Desse panorama internacional e geral, mesclado com observações de processos ocorridos no Brasil, que é apresentado nos quatro primeiros capítulos da primeira parte, somos conduzidos ao “Espírito novo no redemoinhar brasileiro”, capítulo cinco dessa seção. Nele o autor constrói a hipótese de que a geração de 1920, composta por produtores de bens simbólicos preocupados com uma revolução cultural, amparados numa clássica luta entre o antigo e o moderno, possuía uma dívida significativa com a geração de 1870. Essa hipótese reforça outros trabalhos que indicam essa mesma dívida intelectual, mas sua importância deve-se à indicação das tensões observadas pelos próprios escolanovistas no projeto de passagem de um imaginado Brasil arcaico e atrasado para um tão sonhado Brasil renovado e desenvolvido. Tensões explicitadas por reiteradas propostas de mudanças que reatualizavam os desejos da geração progressista e liberal do final do século XIX.

Na segunda parte, “Melancolia e mal-estar”, o historiador analisa o mal-estar das elites políticas e intelectuais diante das ruínas históricas de uma “República desfigurada”, título do primeiro capítulo dessa seção. As frustrações dos republicanos acabaram alimentando incertezas e um chamado “horror moral” desses grupos sociais diante da “população brasileira”, que ocupava uma vasta e confusa região denominada sertão. O autor (p. 92) define essa noção, baseado em relatos originais, como “terra de ninguém, habitada por homens e mulheres dotados de força rude, porém, inconscientes de si, confins subjugados pelo caos da natureza e afastados da ordem nacional”. O sertão aparece, nos discursos analisados, como signo de doença, um grande desejo de construir a nação por meio da educação, que regeneraria e curaria o corpo doente do país, que se disseminou no campo político e pedagógico. O sanitarismo, como processo de intervenção médica no corpo social, passa a ser tomado pela pedagogia e por projetos pedagógicos brasileiros.

Essa seria uma das bases para formação de uma “ficção científica”, que percebia a sociedade humana como um organismo vivo, constituindo-se uma ambiência capaz de desenvolver uma sensibilidade intelectual e política que orientou novos projetos políticos e propostas pedagógicas. Para o autor (p. 112), “o clima mental dos anos 1920 pôs em movimento a mística de regeneração dos costumes do governo e do povo”, que seria um pressuposto geral das movimentações sociais e políticas dos anos de 1910-1920 e da chamada Era Getuliana. A consciência nacional, para diferentes grupos escolanovistas, “seria construída por esforço concentrado de cultura” (p. 119). E esses grupos acreditaram ser preciso tocar e verificar os corpos, “esclarecer a alma coletiva e formar o espírito nacional” (p. 121). Era o princípio de elaboração de uma formação discursiva totalizante, que procurava constituir um Estado forte. Essa incursão do autor nos discursos de diferentes intelectuais brasileiros é importante para revermos algumas construções historiográficas míticas do caráter totalitário do governo Vargas, pois suas reflexões indicam que a formação de um espírito nacional pautado numa ideia de um Estado forte, ainda que reforçando certo tipo de liberalismo, é anterior à consagrada era totalitária dos anos de 1930.

Ao apontar os grupos envolvidos nesses projetos, o autor lança mão da noção de intelligentsia sem, entretanto, explicitar seu entendimento a respeito desse conceito. Na historiografia, é comum nos depararmos com o uso dessa noção funcionando mais como uma simples adjetivação do que como conceituação, mas dificilmente encontramos uma definição mais precisa do termo, tampouco sua importância para os objetos em análise, o que contribuiria para o debate historiográfico – especialmente na obra em questão, uma vez que o autor se propôs, num desafio heurístico, a trilhar outros caminhos e indicar novas abordagens sobre o tema da Escola Nova. A despeito disso, o trabalho deixa uma forte contribuição para a historiografia, indicando um fértil caminho de problematização das propostas escolanovistas, entendidas como integrantes de uma ampla rede política e social – com variadas manifestações culturais – que teria integrado intelectuais diversos e estimulado a elaboração de diferentes projetos político-pedagógicos para a população brasileira, que se espalharam tanto nas relações escolares quanto nas dinâmicas urbanas, as mais diversas.

Um exemplo disso pode ser observado na argumentação que se segue na terceira parte, “Torvelinho da vida moderna”. Esse é o conjunto de capítulos que mais se aproxima da recente produção em história da educação preocupada com a educação das sensibilidades e dos sentidos. O autor (p. 128) traça um percurso dos modernistas, que criaram uma espécie de fé no futuro e supunham “ter a percepção da transitoriedade da duração das coisas e das ideias” em meio a uma propagada era da velocidade. A “superação do Brasil arcaico” teria se dado por meio da conjugação de “aspectos do organicismo medieval com a energia e racionalidade moderna”, o que, para o autor (p. 136), configurou-se como uma ideologia do conhecimento. A “confiança na educação para a criação de um ser humano dotado de um código de sentimentos e interesses à cultura de seu tempo” (p. 139), por meio da ciência e da técnica, assumiu função ideológica de modernização, com um caráter de formação de representações e sentimentos em comum.

A tríade ação, prática e experiência tornou-se importante para o desenvolvimento da educação dos sentidos, via lição de coisas. Assim, diversos autores passavam a ter a convicção de que os sentidos e as sensibilidades são educados e poderiam ser mais bem orientados por meio de projetos pedagógicos. Nada de novo no campo da educação se pensarmos na tradição das lições de coisas mas essa postura tomou outra configuração no início do século XX. A ânsia de unir escola, vida e trabalho levou à consagração do “modelo formativo destinado a imprimir nas massas um jeito de ser e viver feito de experimentação e realismo por estar envolvido com os afazeres do mundo” (p. 179). Apresentando essas originalidades, em virtude também do ritmo da cidade industrial – que criava “novo estados de consciência e de alma” (p. 180) –, Monarcha (p. 173) revê os feitos dos escolanovistas, defendendo a tese de que o “chamado ‘movimento do Estado Novo’ não iniciou, mas fechou um ciclo de especulações e realizações aberto pela geração ilustrada de 1870”.

Nas duas últimas partes, “À procura do indivíduo perdido e solitário” e “O discurso do inconsciente”, é retomada uma série de saberes que mediram, diagnosticaram, examinaram, testaram, nomearam e classificaram os corpos e a psique de milhões de pessoas, adultos e crianças. Concomitante ao desejo de “aumentar a eficiência e o rendimento da ‘machina escholar’”, havia um esforço de fazer com que as pessoas fossem “transmutadas em documentos vivos para extração de dados caracteriológicos” (p. 218). As enquetes disseminadas naquele momento serviram de base para identificação de uma variedade de tipos mentais, como avançados, atrasados pedagógicos, retardados físicos médios, indisciplinados natos e débeis orgânicos para constituir as classes homogêneas.

O autor argumenta que os diferentes trabalhadores da pedagogia atuaram ativamente na sociedade por terem suas sensibilidades educadas pela grandeza da razão científica; tida como chave para o sucesso na criação de mecanismos efetivos para educação dos sentidos e sensibilidades das crianças, já que poderia transformá-las em um eficiente tipo racial, mental e social de um tão sonhado Brasil. Esse seria o “sintoma da certeza que acometia os peritos-funcionários dispostos a transpor muros e operar nos meios sociais e reorganizá-los com critérios de ordem de grandeza” (p. 236), preparando os jovens para suas respectivas funções sociais e econômicas, uma vez que cada tipo mental constituiria um tipo de trabalhador.

Eis que entram em cena a psicanálise e as ciências psi, que circularam por diversos setores culturais, como planos editoriais de livros científicos, colunas de jornais e revistas, romances e programas de rádio, bem como blocos carnavalescos. A discussão dessa parte nos impulsiona a pensar novos problemas e projetos de pesquisa interessados na história da educação do gênero e da sexualidade na escola, como a educação sexual defendida por Porto-Carrero e Deodato de Moraes, tanto na I Conferência Nacional de Educação, de 1927, como em publicações e cursos realizados na Associação Brasileira de Educação (ABE), mas também em pesquisas interessadas na educação da sexualidade na dinâmica cultural e social, que se desenvolveram a partir da década de 1920.

Além disso, a psicanálise foi utilizada como arma contra as afecções neuróticas e doenças mentais da criança, fracassos escolares e possibilidades de desenvolvimento de condutas criminosas. Para o autor (p. 290), “esse imaginário cientista da vida e do corpo era produzido por influentes nomencladores às voltas com ensaios de individualização de condutas incriminadas”, incrustando “a subjetividade num férreo esquema teórico ao Leito de Procusto” (p. 270). Tudo isso é realizado com base na análise de uma vasta documentação sobre clínicas escolares, testes psicológicos e outros projetos que produziram um conhecimento científico sobre a consciência a inteligência e as possibilidades de desenvolvimento das pessoas comuns.

Assim somos levados ao epílogo, “Por um bravo novo mundo”, e a rever a problemática do livro. Partindo de debates sobre Huxley, o autor percorre as experiências pedagógicas de anarquistas e comunistas, bem como as empreitadas dos desejos liberais. Somos convocados a realizar uma leitura do empreendimento da Fordilândia na Amazônia brasileira, como a realização de uma utopia moderna, intimamente ligada aos desejos de Roberto Mange (apud MONARCHA, 2009, p. 246), para quem “o operário formado é uma roda dentada que se adapta a qualquer sistema de engrenagens de formação idêntica”. Esses desejos de um mundo novo, anunciados por diversos saberes políticos, científicos e sociais, perpassaram e  foram perpassados pela pedagogia.

O autor reafirma, enfim, a tese da importância da pressão da base material sobre a esfera da cultura, sem, entretanto, realizar uma análise mecanicista. Para ele, as ciências surgidas e fortalecidas nesse momento constituíram-se como possibilidades concretizadas pela política e na política (p. 302). Donde a formulação das noções de educação para o trabalho, para a vida, para o desenvolvimento moral, para a cultura e preparo da alma humana, tão disseminadas em diferentes, e por vezes antagônicas, tradições políticas. Donde a anexação pela pedagogia da “arte de explorar diferenças” (p. 303), legado ainda caro aos educadores do século XXI. Em tempos da Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva e da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, esse livro possui um importante papel para reflexão da prática pedagógica contemporânea, uma vez que nos convida a compreender e observar problemas ainda por serem resolvidos. Pela relevância e atualidade do tema, pelo exemplo de tratamento metodológico da documentação e do problema, trata-se, pois, de importante publicação do campo da educação, da área da história da educação e, em especial, da história da educação das sensibilidades modernas, científicas e políticas.

Referências

Brasil. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília:

Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2007.

______. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008. Documento elaborado pelo Grupo de

Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial n. 555/2007, prorrogada pela portaria n. 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 7 de janeiro de 2008.

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Mestrando do Programa de Pós-Graduação: Conhecimento e Inclusão Social em Educação, na linha de pesquisa de História da Educação – FAE – UFMG. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]

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Investigando Piero – GINZBURG (RBHE)

GINZBURG, Carlo. Investigando Piero. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Resenha de: AGUIAR, Thiago Borges de. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 2 (29), p. 267-280, maio/ago. 2012

Recomendar a leitura de uma obra escrita pelo autor de O queijo e os vermes para o público brasileiro pode ser facilmente justificável pela qualidade já consagrada de sua produção histórica. No entanto, fazê-lo para os historiadores da educação no Brasil justifica-se por dois motivos. O primeiro consiste em fugir do lugar-comum pelo qual Ginzburg é visto por aqui: um autor da micro-história que propõe uma leitura das fontes a partir de um paradigma indiciário e/ ou da circularidade cultural. O segundo é o caráter de “aula-passeio pela arte de se fazer história” que essa obra possui.

A tradução da obra Investigando Piero, lançada em 2010 pela Cosac Naify, foi baseada na edição italiana de 1994. Ela é diferente da tradução publicada pela editora Paz e Terra, que até então circulava no Brasil, visto que esta última foi traduzida de outra edição italiana, a do ano de 1982. A nova tradução para o português, em oposição à edição que circulava anteriormente no Brasil, traz diversas imagens em cores, maior quantidade de figuras, inclusão de quatro apêndices, além da revisão do próprio texto.

Ginzburg propõe com esse livro uma discussão do comissionamento das obras de Piero della Francesca e da iconogafia nelas presente, evitando a discussão de aspectos propriamente formais, questões que deixa o autor para serem respondidas pela história da arte. Três obras de Piero foram escolhidas para esse trabalho: o Batismo de Cristo, a Flagelação e o conjunto de afrescos da igreja de San Francesco, em Arezzo.

Por que investigar Piero della Francesca? Pode um estudo histórico sobre esse pintor renascentista italiano trazer resultados relevantes? É o que se questiona o autor no início de seu prefácio à edição de 1981. Ele entende que, apesar de suas limitações no campo da arte, as condições para a pesquisa sobre Piero (escassas referências biográficas e pouquíssimas obras datadas) são um rico campo de pesquisa histórica. Entendemos que, para Ginzburg (p. 15), está justamente na dificuldade de se trabalhar com esse artista a possibilidade de convertê-lo num “caso de grande importância metodológica, até independente de sua excelência artística”.

O livro de Ginzburg também estabelece um diálogo com a obra de Roberto Longhi, seu conterrâneo, cujo título é Piero dela Francesca (Florença: Sansoni, 1963/São Paulo: Cosac Naify,2007). Comenta o autor que, apesar de ser um trabalho de peso, digno de nota pela qualidade do exame realizado diante de tão parca documentação existente, é inevitável que a obra de Longhi apresente algumas falhas depois de tanto tempo de sua primeira formulação (1927).

Em uma aula que Ginzburg ministrou durante um seminário de estudos da Fundação Longhi, cujo ensaio foi publicado como “Apêndice IV” da edição aqui resenhada, o autor afirma que seu livro consiste em uma homenagem à obra de Longhi, da única maneira que é possível fazê-la: discutindo-a e criticando-a. De certa maneira, investigar Piero é investigar Longhi, e fazer dele um “modelo e um desafio constante”, mesmo quando as conclusões d ambos seguem caminhos diferentes.

A discussão que é praticamente o pano de fundo de todo o livro de Ginzburg é a datação das obras de Piero. Em diálogo com Longhi, Ginzburg (p. 11) afirma que para este “a datação era um momento decisivo na análise de uma obra”. É esse procedimento, porém, que recebe as críticas mais contundentes do historiador italiano. Uma datação estilística permite afirmar apenas que uma obra é anterior ou posterior à outra. “Só é possível converter esse ‘antes’ e esse ‘depois’ em indicações cronológicas absolutas – talvez até ad annum – se a análise estilística se enganchar com elementos de datação externa” (p. 13-14).

São os “ganchos” em documentações concernentes e relacionáveis ao comissionamento e à iconografia das obras que permitiram ao autor (p. 24) “entrar num terreno, o da cronologia das obras, que os conhecedores [da história da arte] sempre reivindicaram como área sua”. E a resposta de Ginzburg (p. 25) aos críticos de seu livro é categórica nesse sentido:

Sem dúvida, o estilo é um fenômeno histórico e, enquanto tal, está ligado a um contexto temporal, em princípio verificável. Mas a datação dos fatos estilísticos pode se prender a uma cronologia absoluta, de calendário, apenas por meio de fatos extraestilísticos, como a data inscrita no afresco de Piero em Rimini, por exemplo.

Não me cansarei de repetir que, sem essa data, o afresco não poderia constituir um “gancho”, um ponto de referência indiscutível (pelo menos até prova em contrário) para a cronologia absoluta das obras de Piero. Isso não significa que a história da arte seja uma disciplina à deriva ou que o juízo dos conhecedores seja mais frágil que o dos historiadores. Porém, o caráter relativo das datações puramente estilísticas coloca claros limites à sua capacidade demonstrativa.

Por que, então, um historiador trabalhar com Piero dela Francesca? A resposta de Ginzburg passa por uma retomada de Lucien Febvre. Se este sugeria examinar plantas, campos de lavoura, eclipses da lua, por que não examinar pinturas? Além disso, para Ginzburg (p. 20), já está na hora de reunir historiadores e historiadores da arte num trabalho interdisciplinar, “cada qual com seus instrumentos e competências próprias, a fim de chegar a uma compreensão mais aprofundada dos testemunhos figurativos”.

Essa interdisciplinaridade, já proposta por Ginzburg em obras como História noturna ou Mitos, emblemas e sinais (história e morfologia), bem como em Nenhuma ilha é uma ilha (história e literatura), tende, tradicionalmente, a se traduzir numa apregoada justaposição de resultados de áreas diversas. No entanto, o historiador italiano propõe fugir dessa prática pouco produtiva, visto que as divergências em relação a problemas concretos, como a questão da datação das obras de Piero, são mais frutíferas do que as convergências entre as áreas. É por meio das divergências que se pode “recolocar em discussão os instrumentos, as áreas e as linguagens de cada disciplina. A começar, sem dúvida, pela pesquisa histórica” (p. 21).

O livro de Ginzburg (p. 24) serviu-lhe também como alimento para “uma reflexão sobre um tema mais geral – o da prova” –, com o qual ele afirma ter-se ocupado “várias vezes na última década, e de diversos pontos de vista”. Investigando Piero, nesse sentido, fornece subsídios para o diálogo com outras obras de Ginzburg, como Relações de força e O fio e os rastros, ou ainda, mais especificamente, com o ensaio “De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método”, publicado no Mitos, emblemas e sinais.

Vemos aqui como o Ginzburg investigador de Piero dela Francesa é muito mais do que o historiador que estudou a vida de um moleiro perseguido pela inquisição ou que reuniu Morelli, Freud e Sherlock Holmes num único texto, como ele aparece nos estudos de história da educação. É alguém que nos mostra que a construção histórica passa por uma discussão sobre o lugar da prova, diante de uma documentação escassa e da necessária interdisciplinaridade para a realização desse debate.

Mais do que isso, trabalhando com um assunto não tão próximo às temáticas mais recorrentes de sua obra, como os sistemas de crença e bruxaria, Ginzburg oferece, para quem está familiarizado com sua obra, uma oportunidade para ser enxergado por outro prisma. Visto trabalhar numa área na qual ele não circula com facilidade, Ginzburg, em seu livro, constrói sua argumentação com mais “cuidado”, deixando claramente à mostra as etapas do processo de elaboração de uma narrativa histórica valendo-se da análise de sinais que não saltam à vista num primeiro momento.

Investigando Piero está, portanto, recheado da metodologia indiciária e narrativa da escrita histórica de Ginzburg. Ao longo dos capítulos do livro, detalhes como o aperto de mãos de personagens nas obras de Piero são discutidos com historiadores da arte e documentos de época e analisados pela ótica de categorias como “convincente” e “implausível” (p. 38) à luz de critérios de análise como “exaustividade, coerência e economia” (p. 39). As conclusões que o autor (p. 140) constrói ao longo de quatro capítulos dividem-se entre comprovações e conjecturas, como comenta no final da análise do ponto mais controverso de sua obra, a identidade de um dos personagens de Flagelação:

a coerência interpretativa sem correspondências de fato sempre deixa uma margem de dúvida. Os documentos sobre a encomenda e a localização original, que no caso do Batismo permitiram que controlássemos a exatidão da interpretação iconográfica de Tanner, ainda não vieram à luz no caso da Flagelação; esperamos que algum dia apareçam. No aguardo de novas descobertas documentais, é preciso reconhecer que a interpretação acima apresentada é, em boa parte, conjectural. Tratando-se de um quadro anômalo em termos iconográficos, cujo destinatário e localização originais são ignorados, talvez seja difícil proceder de outra maneira.

Não apenas pela qualidade do exercício metodológico de Ginzburg e da ilustração de seu método indiciário de trabalho histórico vale a leitura de Investigando Piero. O exercício de autocrítica que o autor faz ao questionar seus próprios resultados com base em críticas externas é um rico exemplo de honestidade científica. No apêndice II de seu livro, Ginzburg (p. 245), ao discutir os limites da prova no campo dos estudos sobre a iconografia, apresenta “conclusões bastante autodestrutivas”, justificando que “a reflexão sobre um fracasso pode ser tão (ou talvez mais) instrutiva quanto a reflexão sobre um sucesso”. Embora termine afirmando que “preferiria de longe ter discorrido sobre um sucesso”, entendeu o autor (p. 259) que “conjecturas e refutações, ambas fazem parte da pesquisa”.

Seu fracasso constituiu num detalhe que descobriu mais tarde: a faixa vermelha que o autor (p. 258) demonstrou ser a “irrefutável e correta” interpretação de que Giovanni Bacci fora o comitente do quadro Flagelação e estava nele retratado não consistia numa faixa cardinalícia e sim num simples xale, ou um becchetto, “uma longa tira cujas pontas pendiam como uma espécie de turbante, amplamente usada na Itália quatrocentista”. O que Ginzburg pensava ser uma anomalia era, na verdade, uma série de elementos repetidos em outras obras da época. Embora essa descoberta tenha destruído boa parte de sua argumentação sobre a datação tardia do quadro, ela serviu ao autor como instrumento para novas descobertas a respeito de Piero e suas obras. Seu exercício de assunção de um erro apenas reforçou sua posição de que “a propensão a hipóteses arriscadas e o rigor na pesquisa das provas podem e devem coexistir” (p. 250).

Nesse sentido, Investigando Piero, obra que se poderia supor uma anomalia dentro do conjunto de escritos de Ginzburg, talvez um livro de deleite ou uma fuga para outra área, é um exemplo consistente do lugar da prova na pesquisa histórica e das amplas possibilidades de atuação do historiador que quer se arriscar a sair dos lugares-comuns.

Thiago Borges de Aguiar – Pedagogo e doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorando bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) na Faculdade de Educação da USP. E-mail: [email protected]

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Educação, Poder e Sociedade no Império Brasileiro – GONDRA; SCHUELER (ER)

GONDRA, José; SCHUELER, Alessandra. Educação, Poder e Sociedade no Império Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. Resenha de: LIMEIRA, Aline Morais; TEIXEIRA, Giselle Baptista. Repensando a educação no Império: uma síntese provisória e incompleta. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.37 n.2 maio/ago., 2012.

Este livro, que propõe pensar e repensar a educação no século XIX, compõe a coleção Biblioteca Básica da História da Educação Brasileira, cujo projeto é dedicado aos educadores do país. Integrando o primeiro recorte da série, Educação, Poder e Sociedade no Império Brasileiro dá a ver uma reflexão acerca dos projetos e experiências de escolarização a partir de suas relações com Forças, Formas e Sujeitos distintos. Como definem seus próprios autores, a preocupação é possibilitar uma melhor compreensão acerca de outros tempos e do presente, combatendo muitos esquecimentos e problematizando o que já foi narrado sobre aquelas vivências.

Para introduzir o leitor na sua escrita Gondra & Schueler refletem de forma bastante interessante acerca da definição do trabalho do historiador. Com isso, estabelecem as perguntas, exploram as questões, evidenciam os núcleos documentais, apresentam os limites do próprio livro, do período recoberto, da noção apropriada ao termo ‘educação’ e da ideia de Brasil, que são um dos aspectos principais que fundamentam o estudo. Ao mesmo tempo, balizam a proposta de síntese que deu vida ao projeto, e fazem isso problematizando a periodização estabelecida e a forma tradicional de marcar o tempo histórico brasileiro (colônia, império, república). Os autores afirmam-na insuficiente para explicar a complexidade das ações sociais vividas no século XIX, por isso mantêm-se sensíveis ao problema e assumem que a experiência educativa não se encontra “plenamente determinada” (p. 10) por estes marcos de uma história político-administrativa. Neste sentido, refletindo sobre a proposta de “nova síntese”, os autores observaram seu distanciamento em relação a certas reflexões produzidas sobre o século XIX que “pontuam nos manuais de história da educação brasileira” (p. 13) por apresentarem a educação oitocentista marcada pelas representações do atraso.

Nesta operação evidenciam a necessidade de pensar a história em sua historicidade. Diferente do que foi (e é) escrito acerca deste passado, os vestígios e pistas dão a ver embates, projetos, lutas e experiências. Ao cuidar em não reforçar teses generalistas, e evitando anacronismos, apoiaram-se em pesquisas acadêmicas atualizadas e em documentos diversificados que fizeram aparecer a instrução como “[…] um problema geral que mobilizou agentes e estratégias diversas” (p. 14). Com isso, os autores desconstruíram certas representações do Império Brasileiro que ainda ecoam na historiografia educacional.

Explicitando a noção de educação, Gondra & Schueler assumem como válida a compreensão de experiências educativas institucionalizadas e não institucionalizadas, de forma a dar a ver ações do convívio privado, sociabilidades, festas etc. Neste sentido, passam a estar inscritas na análise as iniciativas mantidas tanto pelo Estado como por igrejas, comerciantes, intelectuais, filantropos. É possível notar as referências aos novos estudos de história da educação que romperam com as perspectivas até então hegemônicas, que priorizavam apenas agências centrais na escolarização (o Estado e a igreja). Ao contrário, estiveram preocupados em destacar a existência de diversos outros tipos de processos educativos, formais ou informais. Da mesma forma, para dialogar com a ideia de Brasil também evidenciam outros afastamentos. Os autores apontam que “esta tarefa inacabada” de construir e forjar um país (p. 11) não foi obra atribuída exclusivamente à escola. Ao elaborar um conjunto de monopólios (tributação, moeda, educação escolar, justiça) e a busca por promover a unidade territorial e cultural o Estado pretendeu, portanto, construir uma nação, um Brasil.

Na estrutura do livro os autores nos apresentam suas escolhas acerca dos assuntos direta ou indiretamente relacionados ao tema da educação e os desafios de enfrentá-los em suas complexidades. São quatro capítulos que investigam as formas pelas quais se constitui o Brasil e a escolarização de sua população, as forças que investiram nesta maquinaria e seus modos de investimento, as estruturas da educabilidade e sua organização e os sujeitos destas experiências diversas.

Em Formas do Brasil e Formas da Educação, o primeiro capítulo, Alessandra Schueler e José Gondra deixam ver que a tarefa de pensar as formas de educação no Império implica refletir sobre o processo de construção do Estado Brasileiro. Neste sentido, o capítulo primeiro procurou oferecer um quadro geral das tensões sociais que ajudaram a consolidar o Estado Imperial e seus efeitos na “arena educativa” (p. 15).

Atentos aos movimentos da educação no Brasil daqueles tempos, os autores recuam na história e tecem observações relacionadas ao período colonial, o marcam como aquele em que se experimenta a diversidade de práticas educativas, e, ao mesmo tempo, a reorganização do ensino público oficial, com a reforma pombalina. A partir daí, nas décadas iniciais do século XIX, com a emancipação política de 1822, os processos de escolarização ficaram marcados pelas experiências sociais, culturais, econômicas e políticas de todo país. Eles mostram que a invenção do Brasil foi um projeto político manifesto no incentivo às instituições educacionais, culturais e científicas. Também nos fazem notar que a instrução surge como um dos direitos fundamentais de garantia individual dos cidadãos brasileiros, estabelecido pela constituição que definia a abrangência e os limites da cidadania. Neste caso, os critérios fundamentais para o exercício dos direitos de cidadão, civis e políticos, como observam os autores, passavam pela posse de atributos como liberdade e propriedade, a partir do qual estava excluída a maior parcela da população do Império: os escravos. De acordo com estas hierarquias, o direito à instrução primária, garantido pela constituição aos membros da sociedade política, foi sendo estabelecido sob intensas discussões.

Uma ideia que perpassa toda a obra reside no fato de que os processos de construção das formas de educação escolar no Brasil, no século XIX, não foram uniformes, indiferenciados ou contínuos, e muito menos que estiveram resumidos à ação do Estado. Isso resultou, portanto, na desigualdade de condições educacionais entre as províncias, na profusão de reformas, na complexidade de normas e nas tensões entre diferentes concepções e formas de educação, que foram múltiplas. Em As forças Educativas, segundo capítulo, os autores aprofundam a reflexão, dando visibilidade às principais forças organizadas que atuaram no terreno da instrução: o aparelho do Estado, as forças religiosas e as forças organizadas em sociedades (agremiações, associações, academias, clubes). Este conjunto de atores foi o principal responsável pela emergência dos equipamentos escolares e por uma vasta série de iniciativas de caráter educativo. Elaboram considerações importantes acerca do tenso processo de independência e ao mesmo tempo dos intensos debates sobre o modelo de Estado a ser implementado. No texto, destacam documentos que os deram a ver a forma e a força que o Estado pretendeu assumir para produzir a unidade territorial, cultural, política, social. São ordenamentos jurídicos que pretenderam estabelecer quem deveria frequentar as escolas, quem deveria ensinar, como deveriam ensinar e o conteúdo a ser ministrado.

Em Ação Religiosa evidenciam que a organização desta instância se deu por dentro do aparelho do Estado, numa relação de cumplicidade. Houve inúmeras iniciativas formais e não formais desenvolvidas por diversos grupos de religiosos (católicos, protestantes, espíritas, indígenas, orientais, do mundo árabe, afro-brasileiros), e estas atividades cumpriram papel decisivo na difusão da instrução e a aproximação com o Estado foi uma estratégia eficiente para o sucesso destas iniciativas. Ao tratar da Ação de homens ilustrados: sociedades, academias, grêmios, Gondra & Schueler reforçam a ideia de que a educação no século XIX foi pensada no plural, e que uma das forças que agiram em prol do projeto de educação foi representada pela ação da sociedade civil. No item Educar e instruir: as agremiações como instrumentos de civilização, o leitor observa que, para as elites dirigentes, os ideais e os discursos em prol da civilidade tornaram-se fundamento para uma série de projetos políticos e medidas administrativas que nortearam a constituição do Estado Nacional.

No terceiro capítulo da obra, Formas Educativas, a investigação dá mostras da heterogeneidade das formas educativas nos três níveis de ensino: elementar, secundário e superior. E, ao mesmo tempo, as condições particulares de desenvolvimento de cada um, já que a malha escolar esteve marcada por desigualdades, “como desigual era a própria sociedade” (p. 16). No que se refere às Escolas elementares, alertam que foi no século XIX brasileiro que se processou sua invenção e legitimação, “[…] ainda que iniciativas nesta direção possam ser evidenciadas desde o período colonial” (p. 82). Ao observar os discursos políticos de diferentes províncias brasileiras, dados a ver pelos Relatórios de Presidentes de Províncias (1835 e 1889), Gondra & Schueler apontam para a especificidade que a escola vai adquirindo: são criados estabelecimentos para homens e mulheres livres, escolas noturnas para trabalhadores, escolas de iniciativas privadas, subvencionadas pelo governo, ou mantidas pelo exército e marinha, bem como aquelas destinadas ao atendimento de alunos especiais, os institutos de cegos e de surdos-mudos. Abordando cada uma delas (“Internatos e asilos”, “Colégios e liceus”, “Faculdades e academias superiores”) os autores resumem afirmando que “[…] o princípio da escolarização foi pouco a pouco se capilarizando” (p. 107).

Intitulado Sujeitos da Ação Educativa, o capítulo IV teve o objetivo de apresentar e ressaltar as ações e a diversidade de atores envolvidos no cenário educativo daquele passado: mulheres, homens, negros, escravos, libertos, indígenas, ingênuos, crianças. Como observam os autores, são brasileiros, mas também são imigrantes, naturalizados, são famílias inteiras, são órfãos, abandonados. Em Professoras, recordam a importante atuação jesuítica na educação brasileira. Contudo, alertam que outras formas religiosas (como a dos franciscanos, carmelitas, oratorianos, beneditinos) também estiveram voltadas para as práticas de ensino no período de colonização portuguesa na América.

O que significava ser professor no Império brasileiro? Indagam José Gondra e Alessandra Schueler, e instigam a imaginação do historiador. Ultrapassando o aspecto imaginativo, apresentam um quadro que demonstra o intenso debate inscrito naquele período (e atual), “[…] já que diferentes modelos de formação de professores estavam em pauta” (p. 198). No tópico acerca das Meninas e mulheres, enfatizam a diversidade das experiências históricas vividas por estas personagens que contribuíram com as lutas pela educação formal e pelo direito do público feminino de exercer a docência. Destaca-se, por exemplo, a atuação das mulheres como responsáveis pela educação e instrução dos sujeitos nos espaços domésticos e familiares, e sua paulatina inserção nas salas de aula, em um momento permeado por diferenciações de saberes por questões de gênero.

Nas reflexões acerca dos personagens Negros daquela história, sejam livres, escravos, libertos, os autores evidenciam indícios de suas experiências nos processos educacionais no Brasil do século XIX, afirmando que muitos foram alfabetizados, matriculados em escolas públicas e particulares, bem como estiveram envolvidos com a criação de escolas. Estes vestígios autorizam o questionamento de ideias e teses há muito difundidas na história da educação brasileira: da completa exclusão dos negros dos espaços escolares. De forma semelhante apresentam, em Índios, as medidas estabelecidas pela política indigenista imperial, que tinham como objetivo “integrar” estes indivíduos ao “projeto de construção da nação e do Estado, fomentando o ingresso das populações no mundo do trabalho e a civilização dos costumes” (p. 256). E, ao contrário do que é possível supor, os autores informam que as discussões relacionadas aos indígenas foram intensas, assim como foi intensa a atuação de parte dessa população “diante das políticas ambivalentes do Estado” (p. 260). Já no item que finaliza o quarto capítulo, intitulado Crianças, é apresentado o processo pelo qual a infância passa a fazer parte da cena social. E, entre as medidas inscritas neste movimento da história, está a criação da instituição escolar. Partindo deste pressuposto, os autores deixam evidente o complexo debate existente, bem como a necessidade (também um desafio) de exercitar reflexão a respeito desta idade da vida e das questões que a envolvem.

Chegando ao fim desta leitura, é possível notar que os historiadores da educação cuidaram em apresentar a educação, o poder, a sociedade e o império em sua perspectiva relacional, como fenômenos resultantes da complexidade e da pluralidade dos processos históricos, da ação e das lutas entre forma, forças e sujeitos. Se este é um dos maiores Desafios para a História da Educação, a obra Educação, Poder e Sociedade no Império Brasileiro, torna-se uma ferramenta de reflexão, entre tantas outras, para que seja possível construir novos tempos, outros presentes e novas histórias. Ao mesmo tempo, emerge como uma significativa contribuição para as pesquisas atuais em história da educação brasileira, porque dá conta de trazer à análise a pluralidade das ações educativas, de retirar do silêncio muitos sujeitos sociais e por ser fundamental e ousado o paralelo que seus autores estabelecem com as questões do tempo presente, afinal, o tema educação caracteriza-se mesmo por sua incontornável atualidade. Ainda sim, esta leitura é imprescindível a todos os profissionais da educação do século XXI interessados em refletir mais profundamente sobre suas próprias práticas, que tem deixado de se perguntar somente como ensinar, para interrogarem-se sobre porque e para quem ensinar.

Aline Morais Limeira – Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – História da Educação, Rio de Janeiro. É pesquisadora bolsista da Fundação Biblioteca Nacional, E-mail: [email protected]

Giselle Baptista Teixeira – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É professora da Prefeitura de Duque de Caxias e professora substituta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, E-mail: [email protected]

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Jovens e Cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida – STECANELA (ER)

STECANELA, Nilda. Jovens e Cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida. Caxias do Sul: EDUCS, 2010. Resenha de: ROSA, Marcelo Prado Amaral. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.37 n.2, maio/ago., 2012.

O livro Jovens e Cotidiano é resultante do estabelecimento de elos entre a empiria e a teoria, tendo como objeto de análise a dimensão educacional não formalizada, pautado no diálogo entre a sociologia da educação e a sociologia da juventude, buscando interfaces como forma de compreender os processos informais da socialização juvenil. Tais entrelaçamentos foram possíveis através da ocorrência, ao longo da produção textual, de um diálogo em três dimensões, articulando as vozes dos interlocutores empíricos com os interlocutores teóricos e com os conhecimentos tácitos da própria autora, objeto de estudo e problema de pesquisa do projeto de doutoramento. Ainda, o livro apresenta três dimensões de abordagem que, mesmo integradas, oferecem contribuições originais e individualizadas sem prejuízo algum com relação ao todo, sendo as dimensões: discussão teórica sobre juventude; reflexão metodológica de pesquisa de acordo com a perspectiva etnográfica; e a construção dos itinerários de vida e dos processos identitários da juventude da periferia urbana de um município de porte médio do interior do Rio Grande do Sul. A leitura é recomendada para docentes atuantes em todos os níveis, graduandos e pós-graduandos da área de Ciências Humanas e Sociais e Licenciaturas em geral, além de todos os interessados em conhecimentos sobre os espaços não formais de educação.

A autora da obra, professora Nilda Stecanela, é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS), além de professora na Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul. Coordenadora do Observatório de Educação da UCS e do Programa Nossa Escola Pesquisa sua Opinião no Polo Rio Grande do Sul. Atua, principalmente, nas seguintes linhas de pesquisa: Gêneros e processos de socialização; Formação de professores para educação básica; Infâncias, juventudes e processos de socialização e Filosofia e história da educação. É autora e/ou organizadora de outras cinco obras, entre elas, Mulheres e direitos humanos: desfazendo imagens, (re)construindo identidades (2009); Interação com o mundo natural (2007); Construção de conceitos de Ciências (2006); Fundamentos da práxis pedagógica (2005).

A obra em questão se apresenta dividida em nove seções, organizadas de forma exemplarmente didática, a saber: introdução; capítulo 1 – A problemática do estudo; capítulo 2 – Os dilemas conceituais; capítulo 3 – Percursos metodológicos; capítulo 4 – Os percursos juvenis; capítulo 5 – Desafios interpretativos: o que comunicam as palavras sobre o cotidiano?; conclusões; referências; e, por fim, anexos. A obra completa apresenta 368 páginas. Ainda, os autores que inspiraram a forma de escrita do trabalho como um todo foram José Machado Pais e Alberto Melucci, o que proporciona uma escrita densamente descritiva pelos avanços e retrocessos realizados pela autora, além de emocionante, com conexões metafóricas com a poesia de Manuel de Barros, fazendo da exposição despida e ousada da escrita a característica peculiar da obra. Na seção dos anexos ainda são apresentados os perfis dos jovens entrevistados, o que possibilita ao leitor suscitar uma espécie de grau de empatia com os coautores1 do texto.

O primeiro capítulo do trabalho em questão – A problemática do estudo –, tem como objetivo situar sobre os caminhos percorridos para a construção do objeto, intenções e o problema de pesquisa que deram a direção do estudo. Este capítulo encontra-se subdividido em quatro seções.

m Caminhos e motivações para a definição do objeto, é exposta rapidamente a trajetória dentro do curso de mestrado da autora, em que se tem o princípio de um olhar para a dimensão não formalizada da educação a partir de indícios sobre a ausência do diálogo entre as trajetórias juvenis e os conhecimentos escolares. Ainda, aqui, é explicitado os marcos teóricos para o ajustamento focal deste estudo.

Já em Os objetivos, o problema e as hipóteses de investigação, é apresentada a definição do objetivo que norteou o trabalho, sendo “[…] conhecer e compreender as dinâmicas que envolvem os processos educativos não-escolares dos jovens de uma periferia urbana, a fim de possibilitar releitura das práticas educativas escolares” (p. 20), juntamente com a conceituação de periferia. Desta forma, a autora julga prudente o afastamento da escola para compreendê-la, navegando pelos usos temporais e espaciais que os jovens praticam na possibilidade de identificação de como e quais conhecimentos os mesmos constroem nas suas práticas culturais cotidianas. Sobre as hipóteses, a autora afirma categoricamente que não elaborou hipóteses prévias, evitando, assim, o condicionamento das lentes sobre o panorama da pesquisa, adentrando tal cenário munida de intuições.

Na subseção O cenário e os sujeitos da pesquisa, são apresentadas sucintas retomadas históricas da formação e desenvolvimento da cidade de Caxias do Sul e da comunidade O Reolon onde estão localizados os sujeitos da pesquisa, dezoito jovens de ambos os sexos, em situações divergentes em relação à escola, à família e ao trabalho. Para análise detalhada são reconstruídas as trajetórias de quatro jovens (capítulo 5). Em As fronteiras disciplinares, é declarada a característica de interdisciplinaridade do trabalho, tendo como porto seguro a Educação, justificando o entrelaçamento de disciplinas no hiato comunicativo existente entre a Sociologia da Educação e a Sociologia da Juventude. Sobre o distanciamento entre estas duas possibilidades da Sociologia, Abrantes (p. 26) expõe “[…] ocorre um distanciamento entre os “alunos” dos estudos sobre educação e os “jovens” dos estudos culturais, deixando transparecer, em várias situações, que não se está falando dos mesmos atores”. Os principais autores utilizados para a contextura teórica deste capítulo são José Machado Pais, Paulo César Carrano, Juarez Dayrell, Paulo Freire e Alberto Melucci.

O objetivo do segundo capítulo da obra – Os dilemas conceituais – foi contextualizar teoricamente os temas e conceitos implicados no estudo, baseando-se na produção sociológica sobre o assunto. Encontra-se subdividido de acordo com os subtítulos A pesquisa com jovens com base na sociologia do cotidiano, que focaliza a sociologia da vida cotidiana como perspectiva metodológica. Segundo Pais, quando se adota tal ponto de vista como propulsão para o conhecimento, se “[…] condena os percursos de pesquisa a uma viagem programada […] que facultam ao pesquisador a possibilidade de apenas ver o que seus quadros teóricos lhe permitem ver” (p. 31). Ainda, a autora aqui, apresenta como justificativas para adotar essa abordagem metodológica os aspectos de ser este um posicionamento de abertura ao inusitado, afastando-se da “lógica do preestabelecido”, procurando apreender algo que está presente de modo bruto; ao passo que procura transformar o cotidiano em durável admiração ou espanto, centrando sua atenção nos desaterros dos detalhes da vida cotidiana. Nesse capítulo, é colocado à vista o mergulho etnográfico realizado pela autora, visando à potencialização da decifração dos enigmas contidos nos trânsitos dos jovens participantes da pesquisa.

m Para além da hegemonia da forma escolar, os processos educativos não escolares, a autora tece a trama escolar através da história e procura compreender, através da trajetória dos jovens da pesquisa, a questão da exclusão social e escolar provocada tanto por fatores endógenos quanto exógenos à escola. Seguindo no texto, a autora se concentra nos alicerces da crise da escola. Aponta as mutações que a instituição escolar sofreu ao longo do século passado, na qual “[…] a escola passou de um contexto de certezas para um contexto de promessas, situando-se hoje num contexto de incertezas” (p. 43) e a “[…] invasão da escola pelo social, e o social invadido pela escola” (p. 45) e a “[…] nostalgia das representações que acreditam ser possível à escola dar conta de todas essas [qualificação escolar, educativa e de socialização] funções” (p. 48) como pontos nevrálgicos da mutação da escola. Para finalizar esse subcapítulo, concentra cuidados sobre o “saber de experiência feito” (p. 64) através da metáfora escola de borracha.

m A juventude possível reinventada pelas classes populares, a autora aborda as divergentes tipologias de passagem à vida adulta, problematizando, assim, a categoria juventude. Para isso, parte da perspectiva das transições, buscando tramar as culturas juvenis com as correntes teóricas da sociologia da juventude desenvolvidas por José Machado Pais: a corrente geracional e a corrente classista. Ao final, faz uma reflexão sobre a relação entre as biografias padronizadas e as biografias de escolha nos percursos da composição das identidades juvenis em contextos de pressão do cotidiano.

or fim, Nas cronotopias do cotidiano, o rolar das identidades juvenis, a autora encadeia as identidades juvenis com a articulação cronotópica do cotidiano, marcada principalmente pela dessacralização do espaço físico. É destaque nesse capítulo a estruturação dos subcapítulos, pois a leitura dos mesmos pode ser realizada independente da sequência temporal apresentada na obra sem o risco de incompreensões. As principais referências neste capítulo são Alberto Melucci, Rui Canário, Juarez Dayrell, François Dubet, Phillipe Áries, Jaume Trilha, Paulo Freire, Alfred Schutz, José Machado Pais, Pedro Abrantes Maria das Dores Guerreiro, Joaquim Casal, Michel Certeau, Marília Sposito, Gisela Tartuce, Mario Margulis e Marcelo Urresti.

No terceiro capítulo de Jovens e Cotidiano – Percursos metodológicos –, é apresentado os percursos metodológicos da pesquisa, incluindo as posturas assumidas pela autora em relação ao cenário da investigação. Este capítulo encontra-se seccionado em subcapítulos, a saber: Do estudo exploratório aos “inventários dos usos dos tempos”; Vozes que compõem o diálogo: a sociologia da amostra; A arte da escuta na pesquisa com o cotidiano; Da escavação do cotidiano à escovação das palavras: o tratamento dos dados.

No primeiro, a autora descreve suas incursões pela comunidade e imersões nas estratégias de abordagem da pesquisa. No segundo, a autora clarifica aspectos referentes à amostra do estudo. Já no terceiro, os aspectos-chave da escrita recaem sobre a “presença participante” (p. 145) e a “escuta sensível” (p. 146) da autora no cenário da pesquisa. O primeiro aspecto é tomado como um procedimento alternativo frente à impossibilidade de imersão na realidade dos jovens do estudo; o segundo, “evoca a habilidade do observador em perceber e respeitar a fala do outro […]. Para ser sensível, a escuta não deve compreender somente a audição, mas convocar os demais sentidos para perceber os gestos, os silêncios, as pausas, as emoções […]” (p. 146).

Na quarta e última seção, a parte mais densa do capítulo, pois, aqui, a autora organiza e trata os dados da pesquisa. O procedimento adotado para a análise e interpretação das narrativas dos jovens participantes da pesquisa é a análise textual discursiva. Neste subcapítulo, a autora descreve minuciosamente toda a sua trajetória dentro do procedimento adotado, desde a organização do corpus até a produção do metatexto que comunica os resultados a que chegou a pesquisa, tendo como norte a metáfora do mosaico. Neste capítulo, no decorrer da escrita da autora, são destaques os referenciais Alberto Melucci, Howard Becker, José Machado Pais e Roque Moraes.

No quarto capítulo, Os percursos juvenis, a autora apresenta os percursos juvenis por via das trajetórias de quatro jovens da pesquisa, reconstruídas na forma de mosaico. A voz dos interlocutores empíricos é trazida em primeiro plano e, a partir da descrição, são recompostas suas narrativas, orientadas por categorias emergentes na forma de trânsitos, agregando diferentes temporalidades e espacialidades. Assim como os outros capítulos, este também se encontra dividido em subcapítulos, a saber: Trajetórias de Preto: o “Educador do Cotidiano”; Trajetórias de DL: um MC de um grupo de Rap; Trajetórias de Benhur – B-boy de um grupo de Rap e, por fim, Trajetórias de Daiana: a jovem escondida na Caderno de segredos. As trajetórias, expostas aqui, compõem extratos da biografia dos jovens e não tem o objetivo de representar o mundo juvenil, “[…] mas podem representar um mundo juvenil, através dos quais outros casos poderão ser analisados a partir do efeito da reflexividade” (p. 165).

No capítulo Desafios interpretativos: o que comunicam as palavras sobre o cotidiano?, procurou-se informar as categorias que emergiram no campo de investigação, de modo a entrelaçar os sentidos das narrativas dos jovens, estando organizado em “unidades contextuais” (p. 323). A divisão capitular aqui é entre: Trânsitos com a pressão do cotidiano, Trânsitos com as biografias de escolha e Trânsitos com a escola da vida. Neste capítulo também existe a preocupação da autora em expor a incompletude do trabalho perante a gama possível de análises da realidade a partir da realidade. Houve o cuidado em nomear cada jovem participante da pesquisa a partir de suas próprias palavras ou dos significados que elas produziam no entender da autora. As referências base neste capítulo são Alberto Melucci, Rui Canário, Juarez Dayrell, Gisela Tartuce e Mario Margulis.

Nas Conclusões é destaque a tentativa da autora em manter um distanciamento do olhar sobre o conjunto de palavras que compõem o estudo, ou seja, procurou-se um afastamento das peculiaridades da juventude analisada para vislumbrar uma aproximação com o contexto jovem de modo generalizado. Pode-se evidenciar com este trabalho, que a moradia, educação e trabalho são os elementos que mais afetam diretamente o trânsito dos jovens da pesquisa, sendo a escola um dos primeiros recuos ante aos desafios na garantia da sobrevivência. Nesse cenário, de intensa pressão do cotidiano, aparecem como alternativas de descompressão as culturas juvenis, como a música baseada nos ritmos rap e rock e a religião, sendo possível assim vincular a cultura local dentro do contexto de mundo externo à periferia. Analisar as narrativas dos jovens permitiu conhecer as experiências criativas que os mesmos aplicam no seu contexto para viver numa sociedade em mutação. O desafio destes cidadãos é viver em um intenso movimento de reinvenção baseado na aprendizagem que se fundamenta na experiência não escolar, sendo assim possível afirmar que os jovens da periferia aprendem e ensinam, convertendo o conhecimento em ação a partir da ação cotidiana, “[…] relembrando que somos seres incompletos, e que a vida é uma escola […]” (p. 349).

Para finalizar esta resenha, o desafio imposto à autora nesta jornada pelo cotidiano dos jovens foi “compor uma sinfonia” (p. 148) partindo de acordes e notas musicais inaudíveis e talvez até descompassadas quando ouvidas individualizadas. Entretanto, com a regência musical empregada, eclode aqui com toda a dramaticidade, emoção e paixão, sem notas destoantes na partitura ou cacofonia na união do coro, uma composição de melodia harmônica ímpar que ao descer das cortinas se reconhece, através da entonação das palavras e na afinação do arranjo instrumental da orquestra, numa sublime trilha sonora sobre as dimensões não escolares da educação, digna das mais belas óperas.

NotaS

1 Para a autora, os sujeitos da pesquisa são os coautores do trabalho, pois somente através da escuta sensível das palavras dos sujeitos da pesquisa é que foi possível o surgimento de categorias nomeadas com expressões nativas, como pressão do cotidiano e escola da vida (exposição oral).

Marcelo Prado Amaral Rosa – Graduado em Química Licenciatura pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), campus de Frederico Westphalen. Especialista em Metodologia do Ensino de Química pela Universidade Gama Filho (UGF). Mestrando em Educação na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Rio Grande do Sul, vinculado à linha de pesquisa em Educação, Linguagem e Tecnologia, E-mail: [email protected]

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História inacabada do analfabetismo no Brasil – FERRARO (RBHE)

FERRARO, Alceu Ravanello. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São Paulo, SP: Cortez, 2009. Resenha de: RESENDE, Márcia Aparecida. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 1 (28), p. 243-250, jan./abr. 2012.

A presente obra faz parte de uma coleção da Editora Cortez dedicada à educação pública no Brasil – a “Biblioteca Básica da História da Educação Brasileira”, que apresenta duas séries temáticas envolvendo educação e escolarização nas pesquisas em história da educação. Alceu Ravanello Ferraro, doutor em ciências sociais, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), dedicou-se, desde os anos de 1980, à pesquisa sobre analfabetismo e escolarização em perspectiva sociológica, tendo publicado inúmeros artigos em periódicos da área da educação, como também capítulos de livros. Ainda atua como pesquisador do CNPq em universidades do Rio Grande do Sul.

É com base nos indicadores do estado e da situação educacional, obtidos por meio dos censos demográficos e das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs), feitos pelo IBGE, que o autor desenvolve seu estudo na referida obra, resguardando as limitações inerentes a indicadores obtidos por meio de censos demográficos que se baseiam em respostas tipo “sim” ou “não” que as próprias pessoas entrevistadas concedem às perguntas “sabe ler e escrever?” e “sabe ler e escrever um bilhete simples?”. Contudo, a informação censitária sobre a capacidade de saber ou não ler e escrever é a única característica educacional pesquisada para toda a população, desde o primeiro recenseamento nacional realizado no Brasil em 1872, permitindo traçar a trajetória de longo prazo do estado da educação brasileira. O autor fez a opção por trabalhar com taxas de analfabetismo para a população de 5 anos ou mais, por ser o único indicador comparável que pode ser construído desde o primeiro até o último censo demográfico, já que os censos de 1872, 1890 e 1900 levantaram dados para toda a população a partir de zero ano de idade.

Embora possa parecer, inicialmente, o estudo não se circunscreve à metodologia quantitativa de investigação, porque o autor trata as estatísticas como objeto de investigação, de questionamento, e não como algo dado. Assim também em relação às leis de reforma eleitoral, que suscitaram intensos debates sobre o voto dos analfabetos, Ferraro dedicou-se à análise dos discursos como forma de compreender os resultados em relação aos processos de alfabetização e escolarização.

Diante da reflexão sobre a pertinência ou não de ainda hoje se ocupar do analfabetismo absoluto, Ferraro (2009, p. 24) entende que “[…] este é o único indicador que permite traçar a trajetória secular do estado da educação no Brasil”. O analfabetismo absoluto refere-se à incapacidade de ler e escrever, enquanto processo de decodificação e codificação do sistema de escrita. A partir dos anos de 1950, o questionários do censo passaram a indagar se a pessoa era capaz de “ler e escrever um bilhete simples”, evidenciando uma preocupação com a prática social da escrita. Ferraro destaca a ênfase dada pela Unesco, desde 1970, ao conceito de “analfabetismo funcional”, que é a incapacidade de uma atuação eficaz do sujeito em sua comunidade, no que se refere aos usos da leitura, da escrita e da aritmética.

Nesse sentido, percebe-se uma visão ampliada do conceito de alfabetização, o que Ferraro define como “critério mais rigoroso de analfabetismo” (idem, p. 23), fazendo com que o número absoluto de analfabetos no Brasil seja duplicado. É o que ele caracteriza como “um novo tipo de analfabetismo”, associado às exigências do mundo industrializado em fins do século XIX, que estabelece padrões de distinção cultural e social pelo domínio ou não de certas capacidades vinculadas ao universo da leitura e da escrita. A esse respeito, Cook-Gumperz (2008, p. 13) afirma que “[…] a alfabetização é um fenômeno socialmente construído, e não a simples capacidade de ler e escrever”, acrescentando ainda que a literatura dos anos de 1990 trata de uma “multiplicidade de alfabetizações”, e passamos a compreender que a alfabetização tem muitas facetas” (idem, p. 14).

A obra está organizada em oito capítulos, que possuem relativa autonomia, podendo ser lidos e compreendidos de maneira independente. No primeiro, o autor problematiza a temática do analfabetismo na virada do milênio, mostrando que este ainda é um desafio do novo século. No segundo capítulo, é feito um retrospecto sobre o analfabetismo no Brasil, enquanto no terceiro o autor aborda a sua construção social como uma questão nacional e política. O quarto capítulo traz uma análise quantitativa do analfabetismo de 1872 a 2000, apontando o crescimento vertiginoso do número absoluto de analfabetos. No quinto capítulo, Ferraro aborda criticamente o Mobral como um projeto educacional do Regime Militar que cumpriu a função de difundir a ideologia oficial. Já o sexto capítulo trata do analfabetismo em uma perspectiva regional, apontando para o fenômeno das desigualdades. O sétimo capítulo procura responder a questão “quem são os analfabetos?”, analisando as relações de raça, classe social e gênero. Por fim, no oitavo capítulo, o autor discute a relação entre escola e analfabetismo, mostrando que este ainda é um fenômeno produzido pelos processos de exclusão na escola.

Inicialmente, Ferraro apresenta um breve diagnóstico quantitativo do analfabetismo no Brasil, no final do século XX e início do século XXI , tendo por base o censo 2000 e a Pnad 2005. De início, ele chama a atenção para o fato de que o número de analfabetos, em fins do século XX e começo do XXI, é preocupante: mais de 18,8% milhões de pessoas na população de 8 anos ou mais, segundo dados do IBGE, de 2000. Para se compreender melhor as dimensões desse número absoluto apontado pelo censo, é necessário analisar a distribuição regional do analfabetismo que, segundo o autor, ajuda a construir um significado social e político acerca da questão.

Considerando a dimensão regional, os dados apontam para uma acentuada desigualdade entre as unidades da federação, que o autor organiza em quatro grupos. O grupo 1, estados do Nordeste mais o Acre, reúne as taxas mais elevadas, superiores a 20%. Somente os estados da Região Nordeste somam 52,7% dos analfabetos no país. O grupo 2, Amazonas, Pará e Tocantins com taxas de 17,2 a 15,3%. O grupo 3, que compreende Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Amapá, Roraima, apresentou variações de 12% a 10,1%. Já o grupo 4, Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, as taxas mais baixas do país, de 8,6% a 5,2%. Pelo que se vê através dos dados, o fenômeno do analfabetismo no Brasil, no ano de 2000, mostra-se com uma forte desigualdade regional.

Na tentativa de compreensão da gênese da desigualdade regional, o autor faz uma análise da história quantitativa do analfabetismo. Assim, o primeiro censo, de 1872, revela uma taxa de 82,3% (para pessoas de cinco anos ou mais), o que no censo de 1890 se mantém, com um índice de 82,6%, demonstrando que a escolarização, até o final do Império, não tivera força para se instaurar como medida prioritária do Estado. A esse respeito Faria Filho (2007, p. 135) explica que a presença do Estado era muito pequena e pulverizada e que os investimentos feitos na instrução primária pelas províncias eram insuficientes para se alcançar os resultados desejados, embora houvesse um intenso debate em torno da necessidade de escolarização da população.

Sendo verdade que o Brasil ocupava, em fins do século XIX, a posição de “campeão mundial do analfabetismo”, como destaca Ferraro, também é fato que “[…] nem a própria escola tinha um lugar social de destaque, cuja legitimidade fosse incontestável” (idem, p. 135-136). Mas, para Ferraro, a instrução primária, que era uma necessidade fundamental do povo, foi pouco cuidada pelo Império, que “estava longe de corresponder a tão boa vontade”, citando Holanda (apud Ferraro, 2009, p. 126).

No período recenseado, 1872 a 1890, ocorre em todo o país uma generalização do analfabetismo, com pequenas variações nas taxas das províncias, não existindo, segundo o autor, qualquer disparidade acentuada entre as províncias, exceto os casos da província do Rio de Janeiro (sede da corte e da burocracia estatal) e das províncias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, que apresentaram taxas mais baixas no censo de 1890, o que Ferraro explica como decorrente da imigração europeia, que implantou o sistema de propriedades familiares, e não do trabalho assalariado.

No esforço de compreender a gênese do processo de regionalização do analfabetismo, Ferraro analisa o censo de 1920, uma vez que no censo anterior (1900) houve uma subestimação do analfabetismo nas muitas unidades da federação e, por conseguinte, no país como um todo, em função do sub recenseamento de extensas áreas rurais.

No comparativo com os censos de 1872 e 1890, o censo de 1920 revela queda nos índices de analfabetismo chegando a 71,2%, porém com elevação da diferença entre a taxa mais alta (Piauí, 85,9%) e a mais baixa (Rio de Janeiro, 53,4%), o que já aponta para a desigualdade regional, sendo que as dez posições mais elevadas eram ocupadas pelos estados do Nordeste mais o estado de Goiás. Um grupo variando de 68,8% a 64,7% abaixo da média nacional, que abrange a Região Norte, Mato Grosso, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, apresentou queda acelerada em relação aos censos anteriores, enquanto Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul continuaram se destacando com taxas bem mais baixas, 53,4% e 53,8%, respectivamente.

No período de 1920 a 1960, as taxas de analfabetismo no país continuaram em queda, passando da média de 71,2% para 46,7% entre pessoas de 5 anos ou mais. Contudo, a configuração regional mudou com a elevação dos índices nos estados e territórios da Região Norte, em função da crise da borracha na década de 1940/1950, e com o destaque para os estados de São Paulo, Santa Catarina e o novo Distrito Federal, que vieram juntar-se ao Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul nos índices de melhores taxas de alfabetização. A explicação para isso, segundo Ferraro, é a incorporação dos imigrantes europeus no sistema produtivo, na forma de propriedade familiar, principalmente em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, diferentemente do sistema assalariado. O caso do novo Distrito Federal explica-sepela concentração da população urbana no setor terciário. O caso de São Paulo é diferente: manteve altos índices de analfabetismo nos períodos anteriores, embora tivesse uma economia forte garantida pelo café, configurando-se como centro econômico do país desde meados do século XIX, com uma sociedade latifundiária e escravocrata. O autor defende que o surto industrial e o crescimento urbano, posterior à crise do café, contribuíram para a redução das taxas de analfabetismo no estado de São Paulo.

Na configuração regional do analfabetismo, os censos de 1960 a 2000 revelam um sucessivo agravamento da desigualdade entre os estados, com uma distância significativa entre o Nordeste-Norte e o Sudeste-Sul, o que reforça seu caráter histórico e social.

Segundo os estudos feitos por Ferraro, pode-se concluir que há uma associação estreita entre analfabetismo e latifúndio, uma vez que as taxas mais baixas de analfabetismo registraram-se em regiões coloniais, onde predominou a pequena propriedade familiar.

Nesse sentido, Kreutz (2007, p. 348) em sua pesquisa sobre escolas étnicas ou escolas elementares de imigrantes, no período de 1820 a 1939, afirma que:

Parte dos imigrantes provinha de forte tradição escolar em seu país de origem, era alfabetizada e cônscia da importância da escola, porém, não encontrando escolas públicas nem muitas perspectivas para verem atendido seu pleito, os imigrantes puseram-se a organizar uma rede de escolas comunitárias.

A regionalização do analfabetismo nos parece também relacionada com a forma desigual com que se desenvolveu o processo de escolarização primária no Brasil, conforme estudo de Faria Filho (2007, p. 139), que aponta, no final do século XIX, a “[…] existência de sistemas provinciais, e posteriormente estaduais, sistemas de ensino cuja complexidade era bastante variada, apesar da ausência de um sistema nacional de ensino centralizado […]”.

Na análise da trajetória histórica do analfabetismo, Ferraro discute as origens do fenômeno como uma questão pública nacional estreitamente ligada ao processo eleitoral. No processo de reforma eleitoral, coloca-se em debate o voto dos analfabetos por meio dos projetos Sinimbu e Saraiva. O autor pesquisou os Anais da Câmara dos Deputados referentes aos anos de 1878 a junho de 1880, concluindo que houve retrocesso para a cidadania com a exclusão do direito dos analfabetos ao voto. A Lei Saraiva, lei n. 3.029, de 9 de janeiro de 1881, reduziu a cerca de 1/8 o número de eleitores: “Uma lei que acarretou um enorme retrocesso político em termos da própria doutrina liberal” (Ferraro, 2009, p.80). Outro aspecto de grande relevância se coloca nesse debate, que diz respeito ao que Rui Barbosa denominou como “vilipêndio” que se sobrepôs e aderiu aos analfabetos como uma segunda pele, marcando-os como portadores da cegueira, da ignorância, da incapacidade e da periculosidade decorrentes da condição de analfabetismo.

Ferraro lembra Paulo Freire que, em 1968, denunciava a persistência dessa visão “distorcida” acerca do analfabetismo, quase oitenta anos após a Lei Saraiva. Paulo Freire (2007, p. 15) critica a visão ingênua que encara o analfabetismo “ora como ‘erva daninha’ […] ora como enfermidade […] ora como uma ‘chaga’ deprimente a ser ‘curada’, […] como a manifestação da ‘incapacidade’ do povo de sua ‘pouca inteligência’, de sua proverbial preguiça”.

Dessa forma, Ferraro evidencia a mudança de significado que ganhou o termo analfabetismo com a conotação fortemente negativa atribuída aos analfabetos, desde fins do século XIX. Por isso uma questão foi levantada pelo autor e discutida no sétimo capítulo, “quem são os analfabetos?”, o que exigiu o esforço de uma análise da interrelação de classe, raça e gênero na produção das desigualdades, mostrando que os efeitos de cada uma dessas dimensões precisam ser considerados na sua especificidade.

Encerrando, o autor esclarece porque a história do analfabetismo é inacabada, ou seja, houve um processo de reprodução do analfabetismo, visto que a universalização da alfabetização não correspondeu às expectativas ao longo do século XX, sendo que novos contingentes de analfabetos foram surgindo ano a ano. Então, “[…] não basta superar a exclusão da escola mediante a expansão e até a universalização do acesso. Importa transformar a lógica de exclusão que historicamente veio regendo o processo de escolarização das camadas populares” (Ferraro, 2009, p.195).

Com a investigação realizada, Ferraro deixa importante contribuição para se avançar na reflexão sobre o analfabetismo como um problema nacional, que assume o significado simbólico, representando o fracasso da escola e da própria sociedade. A historicidade mostra que a questão é muito mais complexa e vai além dos números; o analfabetismo tem raça, gênero, classe social e território bem definidos, continuando como uma história inacabada e um objeto a ser ainda muito investigado.

Assim, a obra pode contribuir para a compreensão crítica do analfabetismo como uma questão política de universalização da alfabetização, que deve ser pensada considerando a regionalização das desigualdades das oportunidades nas diferentes unidades da federação, em função de questões políticas e econômicas. É uma leitura necessária a todos que se interessam pela educação de nosso país, especialmente pela superação da lógica da exclusão na escola, que ainda não foi resolvida, mas que pode estar silenciada pelos discursos e números da pretensa universalização do acesso à escolarização. Dessa forma, a história do analfabetismo, da maneira como foi abordada por Ferraro, aponta para a necessidade de se repensar a própria história da escola pública no Brasil, que, com seus avanços e fracassos, não deu conta de universalizar as oportunidades de alfabetização e apagar o estigma que marca a vida dos analfabetos no país.

Referências

Cook-Gumperz, J. et al. A construção social da alfabetização. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

Faria Filho, L. M. Instrução elementar no século XIX. In: Lopes, E. M. T.; Faria Filho, L. M.; Veiga, C. G. 500 Anos de educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 135-150.

Freire, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

Kreutz, L. A educação de imigrantes no Brasil. In: Lopes, E. M. T.; Faria Filho, M.; Veiga, C. G. 500 anos de educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 347-370.

Márcia Aparecida Resende – E-mail: [email protected]

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Etnografia e educação: culturas escolares, formação e sociabilidades infantis e juvenis – DAUSTER et al. (REi)

DAUSTER, T.; TOSTA, S. P.; ROCHA, G.(Org.). Etnografia e educação: culturas escolares, formação e sociabilidades infantis e juvenis. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012. Resenha de: SANTIAGO, Flávio. Revista Entreideias, Salvador, v. 1, n. 1, p. 117-122, jan./jun. 2012.

A obra em destaque traz como temática principal a articulação entre os estudos da antropologia e educação, apresentando, através de experiência etnográficas, os encontros entre os aportes de ambas as ciências. Os autores e as autoras unem esforços no sentido de possibilitar a compreensão do significado da antropologia enquanto ciência que contribui para o entendimento dos processos educativos para além dos limites físicos da escola. Nesse sentido, tratam de questões como pluralidade cultural, discriminação e outras temáticas relevantes no campo pedagógico, explicitando as relações existentes entre a antropologia e a educação enquanto um desafio e uma necessidade de ambos os campos frente a princípios e práticas especificas destinadas a sujeitos concretos que por sua vez, são também portadores de singularidade e especificidades.

A atual relação existente entre antropologia e educação tem por meta responder às questões postas pela cultura no tempo presente, procurando o reconhecimento da diversidade social e cultural de diferentes grupos, possibilitando a abertura de um debate, reflexão e intervenção, que acolhe desde o contexto cultural da aprendiza¬gem, os efeitos sobre as diferenças culturais, raciais, étnicas e de gênero, até os sucessos e insucessos do sistema escolar em foco na ordem social em mudança. (GUSMÃO, 2011) A partir deste contexto conceitual pesquisadores/as e professores/as, com base em pesquisas etnográficas, são provocados a escrever ensaios que apresentem processos de sensibilização para a compreensão de outras formas de representação, classificação e organização do cotidiano, promovendo um exercício prático da interfase do encontro entre a antropologia e a educação.

Raúl Iturra inicia o livro com o capítulo “A epistemologia da infância: ensaios de antropologia e educação” desenvolvendo uma análise sobre a infância, a partir das relações sociais e da cultura a qual a produz, observando os processos de formações conceituais que baseiam as teorias sobre a infância. Segundo Iturra, epistemologia não são apenas um debate filosófico da origem inata, racional, empírica e dialética do saber dos conceitos e da realidade e seus fatos, trata-se de uma metáfora teórica de acadêmicos que devem lembrar as formas e maneiras que essa realidade é organizada e como é aprendida e transmitida entre gerações. A partir desta premissa, Iturra faz seu estudo da infância e da criança, verificando o direito canônico que é um documento que “educa” moralmente as relações e julga as formas em que o individuo deve se comportar na sociedade. Vale lembrar que as leis sociais surgiram desse documento. Com isso, as relações, a maneira que as crianças estão na sociedade são reflexos da maneira que os adultos as enxergam e julgam como elas têm que ser e estar na sociedade.

Para Iturra, a infância recebeu sua epistemologia conforme a cultura a qual vive e que toda criança nasce sobre os signos desta cultura, não se constituindo somente como um indivíduo isolado, mas sim sendo a síntese de sua ancestralidade, assim como mais tarde será também dos seus descendentes.

Gilmar Rocha nos apresenta a importância dos estudos de Margaret Mead, que percebe os processos de alteridade como forma de aprendizagem para o campo da antropologia e da educação. Para o autor, as etnografias de Margaret Mead são mais do que descrições dos costumes de povos primitivos, como sugere o sentido comum da palavra; são também vias de acesso à cultura do outro, às suas visões de mundo, e aos seus sistemas de significados. Do ponto de vista pedagógico, elas fornecem modelos alternativos de experiências para problemas relativamente semelhantes vividos nos Estados Unidos e nas sociedades contemporâneas. Se Mead elegeu a educação como um caminho possível para se aprender, e aprender com a cultura do outro, no sentido inverso, descobrimos em suas etnografias um caminho fecundo capaz de nos levar a pensar sobre nós mesmos e sobre nossa cultura educacional. No capítulo: Aprendendo com o outro: Margaret Mead e o papel da educação na organização da cultura, Rocha discute a importância dos estudos de Mead para o campo da antropologia e da educação.

Para Mead a educação utiliza uma metodologia que permite penetrar na cultura e na personalidade de uma sociedade e serve como instrumento de “engenharia social” a serviço da construção do caráter nacional.

Em seguida, Tânia Dauster, no capítulo “Escrever: formação e identidade num universo de escritoras”, faz um mapeamento dos processos de formação, construção de identidades e representações práticas de escritas de oito escritoras. A autora faz entrevistas em diferentes locais e ouve desde a vida pessoal das autoras até as suas publicações, desenvolvendo seu estudo a partir da metodologia etnográfica.

Lucilena Ferreira apresenta no capítulo “Sinal fechado: representações e práticas de leituras de alunos do ensino médio de uma escola pública carioca” um estudo etnográfico das representações e práticas de leitura de alunos do ensino médio de uma escola pública do Rio de Janeiro, tendo como foco, a influência do ensino de língua e literatura na relação dos alunos com a leitura. A abordagem teórica utilizada tem como base os trabalhos de Roger Chartier, na perspectiva da história cultural, que conceitua as identidades como esquemas construídos de classificação e julgamento que organizam a apreensão do mundo, sendo sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as geram.

Ricardo Viera no capítulo “Do lar à escola: a hegemonia das práticas escolares e a antropologia da educação em Portugal” apresenta a importância da antropologia para a compreensão de processos educativos e faz uma exposição do desenvolvimento da antropologia da educação em Portugal, com particular relevo para os de Raúl Iturra.

Na perspectiva de Viera a antropologia da educação deverá alertar e sensibilizar professores, agentes educativos, políticos e sociedade civil para a necessidade de construção de pedagogias devidamente contextualizadas, capazes de permitir o sucesso escolar para todos. Viera se aproxima muito ao pensamento de Gusmão (2011), quando afirma que existem grupos que devem ser reconhecidos em sua diversidade sociocultural, distinguindo qualitativamente as diferenças, ou seja, levar o olhar bem longe e tão profundo, de modo que se compreendam as propriedades do que é diferente, ou seja, a natureza do que seja diferente e o que constitui a diferença.

Viera apresenta as singularidades das crianças, demonstrando o processo pelo qual elas constroem e reconstroem o mundo. Salientamos que este processo não se trata de uma cópia, mais sim de uma reinterpretação do mundo, a qual se constroem a partir dos referenciais culturais de cada criança. A criança não é socializada num único contexto cultural.

Alexandre Barbosa Pereira, no capítulo “Jovem e ritual escolares” com base em uma pesquisa etnografia realizada no interior de escola pública, busca evidenciar as múltiplas relações empreendidas pela juventude contemporânea no ambiente escolar, abordando a questão do ritual como dispositivos de transmissão e perpetuação de conhecimentos. Em sua experiência etnográfica, Viera percebe que existe uma grande tensão entre a lógica dos docentes e a dos estudantes, a primeira prezando mais ordem as regras das instituições escolares e a disciplina, a segunda se pauta mais pela divisão, a gozação e a busca de quebrar regras institucionais. Um ponto fundamental para a compreensão destas tensões situa-se na questão da autoridade: Como se impor, como se fazer ouvir, como chamar a atenção e como motivá-la, essas eram as indagações mais levantadas pelos professores em sua tarefa de ensinar os jovens e inquietos alunos.

Em seguida no capítulo “Pelos mares da baía de Ilha Bela”, Anderson Tibau escreve um ensaio metodológico e etnográfico acerca do seu encontro com os professores e estudantes de ilha bela. O itinerário de formação de um pesquisador é repleto de desafios, surpresas, aspectos extraordinários, solidão, muitas situações de contato. Nadando a favor da corrente das experiências da cultura. Dentro desse processo metodológico, o olhar e o ouvir estão para a percepção assim como o escrever está para o pensamento. A investigação empírica pode ser dividida em duas etapas: a pri-meira seria o próprio trabalho de campo “a atividade in loco”, e a segunda corresponderia à escrita a distância dos fatos observados, o plano do discurso. No trabalho de campo, Tibau utiliza a fotografia como uma forma etnográfica de observação da cultura estudada. A fotografia é concebida como representação da realidade e suporte às anotações do diário de bordo, o que favorece a construção de uma narrativa visual que seja eficaz e contenha informações interpretativas acerca de uma determinada realidade. No capítulo seguinte “Cultura e cor na escola”: uma etnografia com adolescentes negros de elite, Sandra Pereira Tosa e Pollyanna Alvez apresentam uma etnografia realizada com adolescentes negros de elite, alunos do ensino médio de uma escola da rede particular do município de Belo Horizonte.

O estudo teve como objetivo central, compreender o processo de construção da identidade de adolescentes negros de elite. Identidade étnica como um caso particular de identidade social, sendo ela própria uma ideologia e uma forma de representação coletiva. Objetivou-se também compreender o sentido de pertença num jogo dialético entre a semelhança e a diferença – a identidade contrativa que abrange semelhança e diferença nos tempos com o/a ou outros/as. Para as autoras, a construção de etnografia na educação ou em qualquer outro campo, requer a realização de três atos de conhecimento, não necessariamente subsequentes, mas na maior parte do tempo integrados: dos saberes das antropólogas que lá chegarem, ou do olhar; dos saberes dos nativos com os quais convivemos e dialogamos, ou do ouvir; dos saberes resultantes desse encontro etnográfico, ou do escrever.

As autoras concluem com a pesquisa etnográfica, que as representações sociais em relação aos negros são carregadas de estereótipos negativos, sobretudo no que se refere sua corporeidade. O sentimento de pertencimento a uma identidade étnico-racial implica a aceitação de uma origem e a recusa do branqueamento, impregnada de valores eurocêntricos, como ocorreu no caso brasileiro. Por fim, o último capítulo “Educação quilombola entre saberes e lutas”, escrito por Neusa Gusmão e Márcia Lúcia de Souza, apresenta educação quilombola como uma demanda social que se insere nas políticas públicas brasileiras, se constituindo como uma luta por igualdade nas diferenças. Para as autoras pensar a educação quilombola seria buscar uma escola para a diversidade, em que professores e gestores tivessem em sua formação condições para o trabalho pedagógico com toda e qualquer expressão da diversidade cultural.

O conjunto de capítulos que compõe o livro Etnografia e educação: culturas escolares, formação e sociabilidades infantis e juvenis nos permite uma reflexão sobre as múltiplas interfaces entre a educação e a antropologia, possibilitando através dos aportes metodológicos de experiências etnografias, perceber as diferentes construções sociais relativas à cultura e ao processo de diferenciação dos indivíduos. Esse olhar antropológico voltado para o campo da educação permite uma ampliação de sentidos na medida em que as relações sociais na escola, os processos de transmissão de saberes no cotidiano, a formação de docentes atravessam as fronteiras dos espaços e das práticas educativas formais e não formais.

Referências

GUSMÃO, Neusa M. M. Antropologia, diversidade e educação: um campo de possibilidades., São Paulo, v. 10, p. 32-45, 2011.

Flavio Santiago – E-mail: [email protected]

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A polegarzinha: uma nova forma de viver em harmonia e pensar as instituições, de ser e de saber – SERRES (REi)

SERRES, M. A polegarzinha: uma nova forma de viver em harmonia e pensar as instituições, de ser e de saber. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. Resenha de: PINHEIRO, Daniel Silva; FIORELLI, Marilei Cátia. Revista Entreideias, Salvador, v. 1, n. 1, p. 113-116, jan./jun. 2012.

Os juvenis e jovens que ocupam as carteiras escolares na atua¬lidade se distinguem de seus antecessores por alguns motivos que chamam a atenção: conhecem os derivados, mas não os insumos utilizados em sua produção; não vivenciaram grandes guerras no Ocidente; tem sua longevidade em ascensão e seu próprio nasci¬mento foi meticulosamente programado.

Ambientando-se na França, Michel Serres começa seu texto tecendo argumentos para por em evidência quem são os alunos, a escola e a sociedade dos dias de hoje em que todos os “dedos das mãos” e toda a atenção voltam-se para os meios digitais, as tecno¬logias e seus aparatos. De maneira criativa, ele utiliza a expressão “Polegarzinha” justamente para enfatizar a agilidade com que tanto meninas quanto meninos utilizam seus dispositivos móveis para acessar a internet e os conhecimentos que ali encontram-se disponíveis – a opção por utilizar-se do termo no feminino para referir-se aos dois gêneros, sugere também esse efeito um tanto quanto generalizante que é característico dessa geração e mesmo da própria rede.

O preâmbulo, exposto pelo autor, dá conta de uma revolução digital que faz com que a relação pedagógica se altere tendo em vista especialmente a presença da Polegarzinha. Nesta primeira parte do livro, Serres busca situar quem é este novo indivíduo social, mencionado suas particularidades e conveniências. De acordo com ele, a Polegarzinha e o Polegarzinho manipulam várias informações ao mesmo tempo: “por celular tem acesso a todas as pessoas, por GPS a todos os lugares, pela internet a todo saber” (p. 19). Assim, é como se não mais habitassem o nosso espaço, o nosso mundo. Mas há ainda outra diferença que os singularizam – “Não tem mais a mesma cabeça” (p. 21). Serres apresenta então, uma série de descompassos presentes no cotidiano da Polegarzinha. Ele identifica que a própria consti¬tuição familiar se alterou já que a idade da mãe avançou 10 ou 15 anos na geração do primeiro filho, revelando que os pais dos alunos mudaram de geração. “Acompanham menos os filhos?” (p. 15), interroga-se ele. Além disto, o autor constata que os docentes hoje, ensinam a esses jovens em estruturas que datam de uma época onde não se reconhecem mais: “prédios, pátios de recreio, salas de aula, auditórios, laboratórios, os próprios saberes… Estruturas que datam de uma época, que enquadravam-se num tempo em que seres humanos e o mundo eram algo que não são mais”. Incluso nesse panorama de defasagem está a postura dos professores de “presunção de incompetência” (p. 63) para com os estudantes. Na contemporaneidade, no entanto, há uma grande probabilidade de os alunos investigarem previamente na internet os conceitos, o que recoloca esta relação e deve reverberar numa “presunção de competência” (p. 64), segundo Serres. Tendo em vista que este cenário social sofreu alterações nos modos de construção do conhecimento, o autor indaga-nos com três questões: O que, a quem e como transmitir? Seu objetivo com isto é destacar a relação da pedagogia com a evolução tecnológica. O saber tinha como suporte o corpo do professor-erudito, “uma bi¬blioteca viva: esse era o corpo docente do pedagogo” (p. 25). Com o avanço do tempo, surgem os rolos de pergaminho, livros, imprensa, e agora a rede internet: “a evolução da dupla, suporte-mensagem, é uma boa variável da função ensino” (p. 25).

Assim, Michel Serres apresenta um paralelo entre o surgimento da impressão e o das mídias atuais – onde já está tudo transmiti¬do, de certa maneira. A principal questão agora é como o aluno consegue assimilar o saber, assim distribuído. Uma de suas justi¬ficativas para esta observação é que com os livros e a imprensa a memória sofreu uma mutação – agora o conhecimento não precisa estar “armazenado”. Ele recorre, para fortalecer este argumento, a Montaigne, que prefere “uma cabeça bem constituída a uma cabeça bem cheia” (p. 27).

Serres conclui esta parte inicial se perguntando por que as coisas ainda não mudaram? Culpa a si próprio e os outros filósofos. E diz que gostaria de ter 18 anos para poder reinventar, recriar tudo, como os Polegarzinhos.

Na segunda parte do texto, cujo título é “Escola”, Michel Serres tenta compreender a cabeça da Polegarzinha ou o vazio que paira em seu lugar, citando a lenda de Saint Denis – que foi decapitado por soldados antes de chegarem ao topo da colina onde deveria ocorrer a execução. Saint Denis então pegou sua própria cabeça e, carregando-a, seguiu caminhando até o destino final. Utilizando-se dessa folclórica referência, Serres elabora uma interessante me¬táfora: a Polegarzinha senta em frente ao seu computador, como se sua cabeça estivesse à frente dela com as informações todas lá. Não precisa ocupar seu espaço dentro da cabeça com os dados, mas com as conexões desses dados, as faculdades mentais, é como se “nossa inteligência saísse da cabeça ossuda e neuronal” (p. 36); “nossa cabeça foi lançada a nossa frente, nessa caixa cognitiva objetivada” (p. 36). Novamente recorrendo a Montaigne, Serres entende que as redes possibilitam que a cabeça esteja mais bem constituída do que cheia e desta forma, como nunca antes, a Polegarzinha consegue “voltar sua atenção para a ausência que se mantém acima do pescoço” (p. 37). É neste espaço vazio, onde circula o ar, o vento, ou melhor ainda, onde em uma pintura clássica de Saint Denis há uma pequena luz, que se pode encontrar o ponto onde “reside a nova genialidade, a inteligência inventiva, a autêntica subjetividade cognitiva” (p. 37). No lugar do espaço vazio, antes cabeça, agora há o tumulto de vozes. A Polegarzinha ouve cada vez menos os professores porta-vozes. E ouve cada vez mais a todos os ruídos, todas as emissões de todos os pontos da rede. Trocam o silêncio, imobilidade e prostração dos modelos que denomina de “instituições-caverna”, pela balbúrdia ruidosa, descentralizada.

Serres afirma que a Polegarzinha procura encontrar o saber na sua máquina, e não mais nas bibliotecas e livros já previamente organizados, classificados, metrificados, hierarquizados. Que a difu¬são do saber não pode mais se dar com exclusividade em nenhum campus universitário. O conhecimento agora circula pelas redes, emitido e compartilhado por milhares de anônimos.

Na parte final, nomeada como “Sociedade”, Serres discute de maneira mais detida o espaço social onde a Polegar¬zinha está inserida, com a presença das tecnologias digitais e as constantes mudanças políticas, sociais e cognitivas potencializada por elas. O mundo social da polegarzinha aponta para questões de trabalho. Há uma busca e ao mesmo tempo um tédio, causado por um certo “roubo de interesse” (p. 65) de uma sociedade comparti¬mentada demais, sem o espaço inventivo, que restringe o espaço antes disposto para as utopias. A Polegarzinha, no entanto, não consegue dizer ao certo o que está ocupando este lugar, isto porque, aparentemente, tudo está proposto, transmitido. As relações nas redes sociais digitais, em que se contam aos milhares os amigos da Polegarzinha, são alvo de críticas pelos adultos que questionam estes números e estes conceitos de ami¬gos virtuais. Mas é uma maneira nova, única, pura das redes, que pertence a eles, à geração dos pequenos polegares. E o processo foi constituído sem base em exemplos anteriores, das sociedades, dos pais divorciados, dos partidos políticos e igrejas. São outras construções sociais. O caminho é apontado, novamente, por vozes que ecoam pelas redes. Estas parecem dar o tom de, quem sabe, uma época, de um segundo período oral, fruto da mistura – quem sabe um remix – com os escritos virtuais. Michel Serres, como poucos filósofos, ouve esse novo período oral que o virtual emana.

Daniel Silva Pinheiro – E-mail: [email protected]

Marilei Cátia Fiorelli – E-mail: [email protected]

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Formação do professor como agente letrador – BORTONI-RICARDO et al. (REi)

BORTONI-RICARDO, Stella Maris; MACHADO, Veruska Ribeiro; CASTANHEIRA, Salete Flôres. Formação do professor como agente letrador. São Paulo: Contexto, 2010. Resenha de: ARAPIRACA, Mary; BEZERRA, Raquel. Revista Entreideias, Salvador, n. 01, p. 133-137, jan./jun. 2012.

A pesquisa em Educação e Linguagem, no contexto brasileiro, tem sido de modo significativo alimentada por estudos que tematizam a leitura, desde os anos 80 do século passado, período em que se publicaram análises influenciadas pela psicologia e pelosestudos da cognição. (KLEIMAN, 1999; KATO, 1986; SILVA, 1987,1993) Essa perspectiva foi, paulatinamente, assumindo um tom mais sociológico, movimento inevitável, visto que seus corpora são em sua maioria constituídos eminstituição escolar, no cenário específico da aula de português.

Em paralelo a esse movimento, os estudos sociolinguísticos se desenvolviam no Brasil, e as noções de norma e variação linguísticas acabaram por ser considerados como categorias sem as quais não se poderia pensar o ensino-aprendizagem de português materno. Exemplo disso é a antologia de textos de pesquisadores brasileiros, organizada por Bagno, reunindo em 2002 trabalhos antigos (já publicados nas décadas de 60 e 70 do século XX) e outros elaborados em atendimento à convocação do linguista a oferecer reflexões sobre a noção de norma em dimensões variadas: O exame do conceito de norma, mesmo quando seguido do adjetivo lingüística, transpõe os limites dos domínios das ciências da linguagem, obrigando à sempre inevitável e salutar intersecção com outros campos de conhecimento, como a filosofia, a sociologia, a antropologia, a pedagogia, a história, para citar apenas os mais evidentes. Esta coletânea, me parece, mostra isso muito bem, sobretudo quando dela participam, além de uma maioria de lingüistas, pesquisadores das ciências sociais e das ciências da educação.

Nessa obra, dos dezessete artigos reunidos, se tematizam o conceito articulado a algum aspecto da educação brasileira em sua interface com a variação linguística e o ensino da língua materna.

Na reunião desses pesquisadores encontramos Bortoni-Ricardo apresentando “Um modelo para a análise sociolinguística do português do Brasil”, trabalho em que propõe que se considere o que chamou de “contínuos” no tratamento das variedades da língua falada no Brasil: o contínuo rural-urbano, o de oralidade-letramento e o de monitoração estilística. Posteriormente, e tomando por referência de análise esses continua, a autora organiza material didático para o curso Pedagogia para Início de Escolarização (PIE), sediado na Universidade de Brasília e destinado a professores normalistas da Secretaria de Educação do Distrito Federal, publicando-o em 2000 sob o título: Educação em língua materna – a sociolinguística em sala de aula, pela Parábola Editorial. Nessa obra, informa a autora, “fui fazendo uma seleção de conteúdo, principalmente nas searas da sociolinguística variacionista, da sociolinguística interacional e da etnografia da comunicação”.(BORTONI-RICARDO, 2005, p. 11) Revela-se com clareza a opção metodológica da pesquisa:

“eventos” ou “episódios” de interação linguística com falantes/informantes, registrados e transcritos, em clássico procedimento etnográfico, indicando adesão a uma vertente metodológica cuja aceitação no contexto dos estudos linguísticos não é pacífica: “a influência dos métodos etnográficos na coleta de dados para os estudos sociolinguísticos não se deu de imediato, nem tampouco é prática universal no âmbito da sociolinguística variacionista”. (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 214)

Essa decisão metodológica parece-nos indício de uma trajetória de pesquisa que, considerando o já mencionado contínuo oralidade- -letramento, tem no cenário escolar um contexto privilegiado de coleta de dados: convém salientar que o processo de urbanização no Brasil resultou em fenômeno que interessa igualmente à pesquisa sociolinguística variacionista e em educação. Bortoni-Ricardo (2005), em análise da contribuição de sua área ao desenvolvimento da educação, informa que desde a década de 70 do último século a sociolinguística assumiu a vanguarda entre as ciências sociais que tomam a questão educacional como reflexão, notadamente a vertente etnográfica de estudos sociolinguísticos educacionais e, a propósito disso, cita Cook-Gumperz (1987, apud BORTONI- -RICARDO, 2005, p. 119): O estudo de fenômenos linguísticos no ambiente escolar deve buscar responder a questões educacionais. Estamos interessados em formas linguísticas somente na medida em que, por meio delas, podemos obter uma compreensão dos eventos de sala de aula e, assim, da compreensão que os alunos atingem. interesse reside no contexto social da cognição, em que a fala une o cognitivo e o social.

É, pois, na perspectiva dos procedimentos etnográficos que analisamos Formação do professor como agente letrador, obra de Bortoni-Ricardo em parceria com Machado (mestre e doutora em educação e professora da Educação Básica) e Castanheira (pedagoga, atuante na formação de professores do ensino fundamental). A publicação se destaca por convergir práticas de pesquisa linguística etnográfica, princípios teóricos do sociointeracionismo discursivo, uma metodologia de ensino da leitura e análise de procedimentos didáticos que a tradição escolar trata como disciplinas. A proposição fundamental do trabalho é que a leitura é uma arquicompetência e que, por conseguinte, todo professor é um agente de letramento, de modo que lhe cumpre a tarefa de desenvolver as competências relativas à compreensão textual.

Parece fácil postular esse princípio do lugar epistemológico dos estudos linguísticos. É necessário considerar, no entanto, que a atuação docente na educação básica é um trabalho em que as fronteiras disciplinares precisam dissolver, recíproca e solidariamente, seus limites. O ensino da leitura é indício do que se afirma aqui.
Precisamente por essa razão, Formação do professor como agente letrador se inicia propondo uma “pedagogia da leitura”, ao tempo em que apresenta uma análise cuidadosa dos dados estatísticos revelados pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), instrumento oficial do governo cuja série histórica se inicia em 1990,e do Indicador de Alfabetismo Funcional, o INAF, do Instituto Paulo Montenegro. Os dados analisados resultam de procedimentos de avaliação que não concernem a conhecimentos de uma disciplina, mas de uma competência interdisciplinar por princípio.

A obra apresenta, no segundo capítulo, o que chama de matrizes de referência para a formação e o trabalho do professor como agente de letramento (p. 19 e seguintes), com dois conjuntos de descritores: o primeiro, elaborado pelas autoras na perspectiva da sociolinguística educacional, detalha competências relativas ao exercício docente das séries iniciais do ensino fundamental, com ênfase em alfabetização e letramento, mas preservando caráter multidisciplinar, uma vez que não se confinam práticas de letramento em compartimentos disciplinares; o segundo conjunto, baseando-se no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), descreve habilidades cognitivas relativas ao “ler para aprender”, e enumera procedimentos do trabalho de compreensão leitora de textos que apresentam diferentes formas de conhecimento – considerando-se a classificação adotada por Schneuwlye Dolz (2004), o “ler para aprender” identifica-se ao domínio social da transmissão e construção de saberes – preservando o princípio da leitura como arquicompetência interdisciplinar.

Para o agenciamento do letramento que cabe ao professor de toda e qualquer disciplina, as autoras apresentam, no terceiro capítulo, a noção de mediação pedagógica na compreensão leitora.

A essa altura, vêm à cena os protocolos de leitura, isto é, descrição minuciosa e microanálise de episódios de interação verbal entre professor e aluno(s), cujos turnos de fala são integralmente transcritos (marcados em sequência numérica, na ordem em que ocorrem) e pontualmente interrompidos por comentários analíticos feitos pelas autoras-pesquisadoras. Na base dessas análises está a noção de andaimagem (de “andaime”), do inglês scaffolding, “conceito metafórico que se refere a um auxílio visível ou audível que um membro mais experiente de uma cultura pode dar a um aprendiz”, evidentemente apoiada em Vygotsky, mas igualmente referenciada na sociolinguística interacional. (BORTONI-RICARDO; MACHADO; CASTANHEIRA, 2010, p. 26) O quarto capítulo expõe princípios de procedimento pedagógico muito semelhante ao do capítulo terceiro, mas sob a designação “leitura tutorial”, e provoca certo estranhamento, visto ser essencialmente uma repetição do anterior, na perspectiva da interação professor/aluno, mas acionando outras noções, como as de níveis de proficiência leitora e estratégias de leitura. Os capítulos cinco, seis e sete, designados “Aplicação da proposta de leitura tutorial como estratégia de mediação” e numerados de um a três, tem modo de exposição do procedimento distinto dos protocolos de leitura, isto é, são mais descritivos e injuntivos que analíticos.

O capítulo oito retoma a metodologia etnográfica primeiramente apresentada e, introduzidas as noções de letramento científico (“maneira de o sujeito raciocinar sobre os fatos científicos e as práticas sociais de conhecimento científico”) e alfabetização científica (“aprendizagem dos conteúdos, domínio da linguagem científica, memorização de terminologias”), passa a sistematizar alguns resultados de pesquisa que investigou contribuições da sociolinguística à introdução ao letramento científico em séries iniciais da escolarização básica. Os quatro capítulos restantes são protocolos de aula transcritos como o protocolo de leitura do capítulo terceiro, e são designados “Etnografia de uma prática de letramento científico”, numerados de 1 a 4.

A obra não apresenta nenhum comentário ou esclarecimento ao leitor sobre as diferenças entre os procedimentos de análise que apresenta, provavelmente porque tenha em vista mais ser uma referência didática para o trabalho de leitura em qualquer conteúdo curricular que um tratado sobre pesquisa sociolinguística e seus métodos. De qualquer modo, é um exemplo bem sucedido do caráter multidisciplinar e da vocação etnográfica da pesquisa em Educação, que tem na instituição escolar pública um cenário capaz de fornecer dados valiosos e úteis à compreensão da sociedade brasileira e sua transformação.

Referências

BAGNO, Marcos. Lingüística da norma.São Paulo: Edições Loyola, 2004.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola editorial, 2004.

_____. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolingüística e educação.

2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

KATO, Mary. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura: teoria e prática. Campinas, SP: Pontes Editora da Unicamp, 1989.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos de Pedagogia da leitura.

São Paulo: Martins Fontes, 1993. ______. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da leitura. São Paulo: Cortez, 1987.

Mary Arapiraca – Universidade Federal da Bahia. E- mail: [email protected]

Raquel Bezerra – Universidade Federal da Bahia. E- mail: [email protected]

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Memórias das Trevas: uma devassa na vida de Antônio Carlos Magalhães – GOMES (REi)

GOMES, João Carlos Teixeira. Memórias das Trevas: uma devassa na vida de Antônio Carlos Magalhães. São Paulo: Geração Editorial, 2001. Resenha de: TAFFAREL, Celi Zulke. Revista Entreideias, Salvador, n. 01, p. 139-143, jan./jun. 2012.

A obra de João Carlos Teixeira Gomes, membro da Academia de Letras da Bahia, poeta, jornalista, contista e ensaísta, um dos intelectuais mais respeitados da Bahia, é composta por 766 páginas das quais constam: uma capa onde consta um retrato de Antônio Carlos Magalhães (ACM) de óculos escuros que refletem militares enfileirados, seguindo-se nas orelhas do livro o anúncio da obra, o prefácio, a apresentação e mais sete capítulos com as conclusões.

Trata-se da história do jornalista que encarou o suposto Leão da Bahia, ou, segundo Teixeira Gomes “o feitor de um estado que vive nas trevas sob o domínio do medo e da intimidação”. O jornalista Teixeira Gomes enfrentou o então governador biônico da Bahia para que não se apagasse a chama do único jornal que ainda resistia ao cerco imposto pela fúria do delegado da ditadura. História que inicia em 1969, em plena vigência do Ato Institucional Número 5, quando Antônio Carlos, prefeito biônico de Salvador tenta silenciar o Jornal da Bahia encontrando em seu redator-chefe, o jovem Teixeira Gomes, uma sólida barreira. Acostumado a dobrar vontades a sujeitar consciência no grito, Antônio Carlos encontrou em Teixeira Gomes a disposição da resistência. A obra retrata como “a coragem e a dignidade prevalece, sobre a opressão e a tirania.

Memórias das trevas inicia com citações de clássicos entre os quais se destacam Victor Hugo com a frase “Uma sociedade de carneiros acaba por gerar um governo de lobos”.Culmina com Hannah Arendt com a frase “Não há esperança de sobrevivência humana sem homens dispostos a dizer o que pensam” e Karl Marx com a frase “Até hoje pensava-se que a formação dos mitos cristãos durante o Império Romano só havia sido possível porque a imprensa ainda não havia sido inventada”. “Hoje, a imprensa diária e o telegrafo, que difundem os seus inventos por todo o universo num abrir e fechar de olhos fabricam em um só dia mais mitos do que aqueles que se criavam antes em um século”. O prefácio escrito por Gilberto Felisberto Vasconcellos, em Petrópolis, março de 2000, inicia fazendo alusão ao livro de Euclides da Cunha Os Sertões e ao personagem o vingador, que permitirá ao leitor do livro tomar consciência do que há de épico e heroico na luta de um jornalista e intelectual contra a tirania de um governador empenhando em destruir o Jornal da Bahia de 1969 a 1975, sobretudo durante a ditatura de Garrastazu Médici, governador este, também prefeito biônico de Salvador, assinou a Lei de Segurança Nacional em uma época em que prisioneiros políticos eram torturados, mortos ou simplesmente desapareciam. Vasconcellos ressalta no prefácio que um dos muitos méritos do livro é um depoimento da gênese, e consolidação de um doge, ágrafo e truculento, que sempre usou de todas as armas para se manter no poder. O corajoso depoimento de Teixeira Gomes conferiu um excepcional significado ao texto como advertência democrática e lição de resistência. Registra-se neste livro, toda uma fase do jornalismo baiano e brasileiro, com farta documentação tornando-se um depoimento da maior envergadura no jornalismo nacional. Ressalta Vasconcellos que a face mais perversa da Bahia pode ser resumida neste embate que é reflexo do golpe militar de 1964 onde a sigla ACM tomou vulto com a ditadura e atingiu seu zênite com a democracia videofinanceira que expos o Brasil aos apetites neoliberais globalizantes e seus aliados internos. Ministro das Comunicações de José Sarney, ACM articulou de cima para baixo a comunicação de massa da democracia pós-militar sendo o braço forte do monopólio televisivo da Rede Globo instaurando no Brasil o “cabestro eletrônico” para sujeitar a consciência do povo.
Teixeira Gomes traça no livro um painel do servilismo da mídia diante do poder criticando de forma contundente as ideologias do PSDB e dos governos de Fernando Henrique Cardoso, promotor do casuísmo da reeleição e da dilapidação do patrimônio nacional.

Na apresentação, João Carlos Teixeira Gomes inicia com Shakespeare e sua frase “Os covardes morrem muitas vezes antes da própria morte”. Reporta-se ao patrono da imprensa Brasileira Jornalista Hipólito José da Costa, fundador do Correio Brasiliense, que em seu livro “Narrativas da Perseguição” oficializa uma das primeiras denuncias de um brasileiro contra a tirania e a opressão e onde se testemunha o triunfo da inocência sobre a opressão. O livro escrito por Teixeira Gomes conta uma saga de resistência, uma luta de sacrifícios e heroísmos que levou o Jornal da Bahia a defender a sobrevivência contra as perseguições que lhes foram sistematicamente movidas pela ditadura militar de 1964 e seu delegado na Bahia, prefeito de Salvador e Governador da Bahia Antônio Carlos Magalhães. O relato do livro está ancorado em farta transcrição de dados, datas e documentos. O livro trata da luta entre a liberdade e o despotismo. O livro demonstra que homem nenhum pode arrogar-se o direito (?) de constranger a consciência e a liberdade de seus semelhantes. Teixeira Gomes ressalta que durante toda a sua vida jornalística testemunhou a existência de um Brasil acuado e sofrido, malgovernado por suas elites políticas e econômicas, garroteado, em suma, em todas as suas potencialidades, pais rico para poucos e pobre para a imensa maioria de marginalizados sociais invariavelmente submetidos a catastróficas experiências econômicas que traduzem a arrogância dos governantes.

Destaca ainda que o maior risco deste final de milênio e início de um novo século é a dependência e submissão e a transformação em uma grande “senzala da globalização”. Os neocolonizadores chegaram com mais força do que nunca alerta Teixeira Gomes, sustentados pela espúria parceria globalizante interna. O Brasil continua impondo processos do passado colonial. Cinco séculos de exaurida expropriação, exauridos por todas as concessões permanecemos recipiendários. As parcerias internacionais não são em proveito dos dependentes. Abrimos nossa economia escancaramos ao capital externo, motivado pelos objetivos dos lucros, submetendo o Brasil à ordem capitalista privatizando patrimônio nacional. Destaca Teixeira Gomes que quando seu livro seguia para a editora, o jornalista Aloysio Biondi publicava o livro O Brasil p rivatizado – Um balanço do Desmonte do Estado (São Paulo, Editora Fundação PerseuAbramo, 1999)denunciando a maneira lesiva como o Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) vinha privatizando o patrimôniopúbliconuma operação predatória, socialmente lesiva aos interesses do pais. Destaca ainda Teixeira Gomes, o aumento do endividamento do país na era FHC, fechando- -se acordos com o FMI que majoraram tarifas de setores fundamentais, incrementando demissões e acelerando privatizações.

“Quando um pais não mais respeita os seus velhos é porque já chegou a uma etapa degradante de decadência moral”. Destaca Teixeira Gomes que nos umbrais do terceiro milênio o Brasil tem um povo sufocado pelo arrocho salarial, com a miséria e os guetos sociais se alastrando, Conclui ressaltando que a nação é grande demais para deixar-se abalar pelo desânimo. Valendo-se da poética de Nicolas Guillén destaca que “arde em nossas mãos à esperança.

A aurora é lenta, mas avança”. Sempre. Na sequencia do livro vamos encontrar no primeiro capítulo a descrição da união entre Antônio Carlos Magalhães a ditatura contra o Jornal da Bahia. Encontramos ainda a descrição do fascínio de Teixeira Gomes pela teoria marxista, pelo seu conteúdo humanístico, com uma reaçãoorganizada contra a brutal exploração capitalista imposta pela revolução industrial.

Faz menção aos estudos detidos de Marx sobre a situação do operariado europeu. E com base na teoria marxista, volta aos fatos concretos e a ditatura militar que encontra na Bahia seu interposto – Antônio Carlos Magalhães. No segundo capítulo, Teixeira Gomes trata do início das hostilidades entre Antônio Carlos Magalhães e o Jornal Da Bahia e demonstra a dificuldade de se escrever editoriais durante a ditadura. Com seguidas denúncias sobre as farsas do governo, Teixeira Gomes é julgado pela justiça militar. No capítulo III, trata-se, portanto do caso de um jornalista no banco dos réus, acionado pela Lei de Segurança Nacional e que vence Antônio Carlos Magalhães obtendo o caso repercussão nacional, solidariedade na imprensa e um convite para ser deputado que foi recusado.

Teixeira Gomes retira as lições da perseguição. O capítulo IV trata de descrever com riquíssimos detalhes como Antônio Carlos Magalhães consegue comprar o Jornal da Bahia e a saída de Teixeira Gomes, agora com a saúde combalida, da redação do jornal. O período de trevas que viveu a Bahia é documentado em farto material jornalístico, fotos que demonstram como as três décadas de poder, transformaram Antônio Carlos Magalhães em déspota e tirano, um verdadeiro “Rei da Bahia”, um reinado baseado no medo, na intimidação e na vingança. Com o chicote em uma mão e o dinheiro na outra,Antônio Carlos Magalhães elegeu governadores e dominou os poderes na Bahia segundo Teixeira Gomes como um dos mais perversos políticos da história do país. Com riquíssimos detalhes documentais, no capítulo VI Teixeira Gomes descreve minunsiosamente suas viagens ao exterior e os enfrentamentos ocorridos em diferentes países do continente Africano, Latino Americano e Europeu. No capítulo VII Teixeira Gomes descreve com detalhes para além das rotativas, a produção dos livros e a ação nas salas de aulas. Nas conclusões,este autor estabelece com muita riqueza de detalhes as relações entre imprensa e poder e demonstra com dados riquíssimos as mentiras dos governos de FHC e os rumos de uma política privatista que mais beneficiou banqueiros do que universidades e que tem em Antônio Carlos Magalhães na Bahia, um fiel aliado, tutorado pelo judiciário. Teixeira Gomes concluí afirmando que “A longa permanência de Antônio Carlos Magalhães no cenário politico brasileiro…tem sido ela, na verdade, consequência da incomum habilidade de adaptação ditada por um apego sem limites ao poder…e a inconsistência da própria politica brasileira, que não se ampara em doutrinas ou posições ideológicas coerentes, mas em um senso de pragmatismo que, não raro, se confunde com oportunismo, motivo pelo qual é possível a sobrevivência de muitos políticos em fases tão diferentes (e mesmo antagônicas) do nosso processo histórico.” Diz, complementado que se sentiria recompensado e feliz se, “em algum momento do tempo, alguém consultando o presente livro sinta-se estimulado a dizer algo”. Li o livro e sinto-me estimulada a dizer…

Leiam todos, para compreenderem o que é o carlismo e porque não devemos permitir que continue hegemônico na Bahia.

Celi Zulke Taffarel – Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Departamento III – Educação Física). Pesquisadora 1 D do CNPq. E-mail: [email protected]

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História da educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI – XAVIER (RBHE)

XAVIER, Libânia; TAMBARA, Elomar; PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira. História da educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: CARVALHO, Fábio Garcez de. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011.

O leitor interessado em conhecer os caminhos que a pesquisa em História da Educação vem trilhando nesse curto século XXI encontrará nos dez volumes da Coleção Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil uma rica coletânea de artigos representativos do debate intelectual no campo. Aos organizadores coube a difícil tarefa de selecionar e organizar uma amostra dessa produção, que tem como marca identitária a pluralidade de abordagens teórico-metodológicas, fruto das mudanças de paradigmas nas Ciências Humanas.

Tal tendência renovadora se faz representar na seleção e organização do volume 5, denominado História da Educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. O sumário é dividido em três partes que abrange o largo espectro de mudanças da historiografia da educação brasileira nas últimas décadas. A primeira parte é reservada às matrizes interpretativas. Nelas encontraremos os grandes sistemas de pensamento, que forjaram as tradições intelectuais que ainda hoje se fazem presentes no debate acerca da escrita da História em Educação. Na segunda parte privilegia-se o debate sobre métodos, onde são apresentados resultados de pesquisas em curso a partir do uso de diferentes fontes: oralidade, estatísticas educacionais e livro didático. Por último, a temática das novas abordagens se faz representar com a seleção de algumas pesquisas, representativas de tendências renovadoras.

No que se refere à primeira parte, o artigo Matrizes interpretativas da história da educação no Brasil republicano, de Libânia Xavier, nos oferece um painel apropriado da trajetória da historiografia da educação em relação com o pensamento social brasileiro mediante a operacionalização da definição de matrizes, proposta por Wanderley Guilherme dos Santos. Assim, dispomos de uma grade interpretativa que se propõe a analisar a construção da disciplina História da Educação em sua relação com os intelectuais e sistemas de pensamento que influenciaram de alguma maneira o próprio campo da educação no Brasil, a saber: 1) matriz político-institucional; 2) matriz sociológica; 3) matriz político-ideológica; 4) matriz histórico-cultural (p.20). Além de servir como texto orientador para a organização e seleção dos textos da primeira parte, representa também uma iniciativa de contribuir para o debate acerca das relações da historiografia da educação com o campo educacional, propriamente dito.

Assim sendo, cada um dos textos refere-se a uma matriz específica, diferenciando-se entre si no tipo de abordagem, questão e recorte temático proposto. É o que podemos constatar na leitura de O centenário de Sérgio Buarque de Holanda diz respeito à história da educação, de Marcos Cezar de Freitas. O autor explora as possíveis conexões entre o pensamento educacional de Anísio Teixeira e a historiografia de Sérgio Buarque de Holanda, na concepção intelectual do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Proposta de análise fecunda uma vez que nos remete a uma reflexão acerca de quão complexas foram as imbricações intelectuais que percorreram a construção do campo da pesquisa educacional no Brasil.

Outra análise centrada no intelectual representativo de uma respectiva matriz está presente em Florestan Fernandes e a construção de um padrão científico na educação brasileira, de Marcelo Augusto Totti. Evidencia-se no artigo a função desempenhada por Florestan Fernandes em tornar a sociologia uma disciplina norteadora dos padrões de cientificidade a que carecia, a seu ver, o campo educacional brasileiro. Os artigos supracitados tratam, portanto, de tradições intelectuais que se forjaram no interior do campo da educação brasileira a partir da interseção entre diferentes áreas de conhecimento.

Já os dois artigos seguintes, espelham uma das vertentes de pensamento presente no campo da educação: o marxismo. Em Marxismo e culturalismo: reflexões epistemológicas sobre a pesquisa em História da educação, de Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Jr., o percurso do marxismo na pesquisa educacional – paradigma representativo da matriz político-ideológica – é abordado à luz de uma proposta interpretativa que leva em consideração a militância política e a formação teórica dos respectivos pesquisadores. Perspectiva que se evidenciou fecunda uma vez que os autores articularam a sua condição de testemunho da história com a sua prática de pesquisa no interior da Universidade. O marxismo, assim, torna-se um problema de pesquisa, conforme podemos atestar na própria opção em investigar a presença desse referencial teórico nas dissertações de mestrado da UFSCar entre os anos de 1976-1993. Tal pesquisa resultou no balanço crítico da produção fundamentada no corte temático das instituições escolares, que tem marcado intensamente o campo da história da educação no contexto da renovação historiográfica.

O leitor encontra outras considerações críticas acerca das tendências renovadoras da historiografia educacional em História cultural e educação: questões teórico-metodológicas, de Sérgio Castanho. O autor é claro em sua inquirição à influência da História Cultural na pesquisa em educação na medida em que sugere uma reflexão sobre os seus possíveis limites na abordagem de temas relativos “[…] à profissionalização docente, a temporalidade e a espacialidade escolar, o impacto da passagem da cultura ágrafa à alfabetização e outros âmbitos educacionais específicos” (p.109).

As questões propostas tornam-se instigantes em face da hegemonia da História Cultural nos estudos em História da Educação. Ao propor debater as relações entre os respectivos campos, o autor explicita a sua crítica às concepções que elevam a cultura à causa primeira dos acontecimentos sociais, subordinando o processo histórico a sua dinâmica. De modo geral, é uma questão teórica fundamental que tem colocado em lados opostos defensores e críticos da História Cultural.

Quanto à segunda parte da coletânea, dispomos de quatro textos representativos do impacto das tendências historiográficas renovadoras na escrita em História da Educação. O primeiro deles, Fontes e métodos na história da educação, de Elomar Tambara & Avelino Rosa Oliveira, segue na linha de questionamentos, a partir de uma abordagem marxista, à influência da Nova História. Concordando ou não com as concepções esposadas pelos autores sobre a construção do conhecimento histórico e as críticas às novas tendências historiográficas, o leitor tem em mãos os argumentos críticos às novas metodologias em história da educação que tem resultado na fragmentação do objeto de estudo e o ‘(…) relativo afastamento da idéia de totalidade”(p.160).

Por outro lado para demonstrar a vitalidade da renovação dos estudos em história da educação, o leitor dispõe de A História da Educação conjugada à história Oral em Imagem videográfica, de Bernadeth Maria Pereira. De acordo com a sua análise, a oralidade contribui para a renovação historiográfica sob três perspectivas: 1) destaca-se por sua especificidade metodológica à medida que problematiza a relação entre entrevistado e entrevistador; 2) a oralidade pode trazer à baila a voz dos “excluídos” e dos “esquecidos” para o âmbito da pesquisa acadêmica. Outrossim, a autora demonstra que a contribuição da história oral para a renovação da historiografia educacional não é tão recente quanto se parece, mas remonta aos anos 1970, a exemplo do trabalho de pesquisa de Zeila Dermatini (1979), que focado no estudo da memória de professores, “objetivou trazer à luz o conhecimento de um período ainda bastante desconhecido naquela época sobretudo no tocante ao aspecto educacional em áreas rurais no estado paulista” (p. 182)

Se uma das virtualidades do uso da história oral foi a deampliar o escopo documental dos pesquisadores para além dos dados quantitativos, no artigo Os limites das estatísticas educacionais por aqueles que os produziram, de Natália de Lacerda Gil, somos convidados a uma reflexão crítica sobre um tipo de fonte tradicional, que os historiadores de ofício denominam de fonte serial. No caso do estudo em questão, a autora se debruça sobre as estatísticas educacionais. As certezas quanto a sua objetividade e infalibilidade para orientar as políticas educacionais são postas em cheque a partir de uma investigação de alguns trabalhos estatísticos realizados pelo estado brasileiro no final do século XIX e a primeira metade do século XX. Ao explorar essa produção, a autora, tece a sua argumentação em duas direções: 1) as lacunas que envolvem os problemas técnicos de seleção e operacionalização de dados estatísticos; 2) analisa os discursos, fundamentados no universo simbólico de certezas científicas, que acompanha a construção do saber estatístico em sua aplicação na área da educação. As tensões advindas da interseção entre duas áreas distintas de conhecimento são exploradas com competência, a ponto de, ao final da leitura, ser possível refletir acerca da complexidade do campo educacional. Aliás, convite sugerido pela própria autora ao advogar uma postura crítica dos pesquisadores frente à “apropriação no meio educacional de qualquer conhecimento produzido no meio científico” (p.215).

A segunda parte da coletânea é finalizada com a apresentação de uma pesquisa de doutorado em andamento. O artigo: Pesquisa em História da Educação: localização e seleção de livros didáticos de história do Brasil no contexto republicano, de Kênia Hilda Moreira, é um relato de pesquisa cujo foco é a apresentação dos procedimentos metodológicos para a busca, seleção e construção do corpus documental que, no caso em questão, são os livros didáticos de História. Aliás, uma fonte que apresenta um enorme potencial a ser explorada, conforme defende a autora. Dispomos, então, de um artigo representativo da produção atual em história da educação que, por sua vez, segue os caminhos de renovação historiográfica a partir da incorporação de novas fontes.

Ao chegarmos à terceira parte da coletânea referente às abordagens, encontramos em As novas abordagens no campo da história da educação brasileira, de Antônio Carlos Ferreira Pinheiro, um texto-síntese acerca dos percursos da renovação da História da Educação. Esta é relacionada às mudanças no campo historiográfico, em que despontam três segmentos: a Nova História Cultural, a História Social inglesa e a Micro-história italiana; lugares a partir dos quais os historiadores da educação brasileira têm buscado os seus referenciais teóricos. As experiências de pesquisa com a história oral, de acordo com o autor, têm contribuído para os estudos de história de vida, bem como possibilitado uma “aproximação com as temporalidades mais contemporâneas, ou seja, produzir na perspectiva da história do tempo presente’. (p.257). Este insight nos faz refletir acerca das possibilidades futuras que envolvem o diálogo com a História do Tempo Presente – território ainda inexplorado na comunidade de historiadores da educação.

Em seguida, nos deparamos com dois artigos que corroboram a tendência marcante do uso da oralidade na pesquisa em História da Educação nos últimos dez anos. Sem dúvida é uma metodologia que vem norteando o debate e configurando linhas de pesquisa na pós-graduação. No entanto, o que chama a atenção são os distintos usos a que foi submetida. Em Histórias de vida de destacados educadores no contexto espaço-temporal da história do Rio Grande do Sul, de Maria Helena Menna Barreto Abrahão, a História Oral serve como suporte para a construção da metodologia em História de Vida. Ao advogar a relevância teórico-metodológica dos estudos em História de Vida, a autora trata das implicações desses estudos para a própria formação e profissionalização de professores. Ou seja, a História da Educação imbrica-se com a pesquisa educacional, conforme se explicita no diálogo com a produção bibliográfica de estudos de currículo e de formação docente. Já no artigo História oral e processos de participação nas culturas do escrito, de Ana Maria de Oliveira Galvão, há o relato do desenvolvimento da pesquisa sobre osprocessos de inserção de indivíduos e grupos sujeitos à oralidade na cultura escrita, onde são tecidas algumas considerações críticas acerca das potencialidades e limites dos testemunhos orais. “Afinal, se a ‘história’ oral tem o poder de desmistificar, pode também ser objeto de mistificação, como qualquer outro tipo de fonte” (p. 316). A pesquisa em questão estrutura-se em torno de forte diálogo com a História Cultural.

Seguindo na trilha desse diálogo, o artigo A teoria sobre associações voluntárias como matriz interpretativa das instituições escolares protestantes no Brasil, de Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento, reafirma a riqueza de possibilidades que a História Cultural oferece ao realizar uma pesquisa inovadora sobre as escolas protestantes no Brasil à luz dos escritos de Norbert Elias. Tendo a preocupação de romper com uma visão excessivamente mecânica da circulação das missões protestantes na América latina – vistas como representativa da crescente hegemonia norte-americana no continente -, a investigação traz questões instigantes referentes às conexões entre a dinâmica do protestantismo nos Estados Unidos e a sua expansão no Brasil.

A abordagem em História Cultural, a partir do conceito de representação de Roger Chartier, se faz presente no artigo Arquivo pessoal como fonte para a História da educação: Coleção professor Jerônimo Arantes, Uberlândia-MG (1919-1961), de Sandra Cristina Fagundes de Lima. Nele, a autora discorre sobre a formação do arquivo histórico da cidade de Uberlândia a partir do acervo pessoal do professor Jerônimo de Albuquerque; acervo esse que abrange documentos iconográficos, impressos variados, correspondências e documentos escolares. Esta dimensão da pesquisa, relatada pela autora, motiva uma reflexão acerca da relevância dos arquivos públicos municipais em cidades médias e pequenas em sua tarefa de preservar e organizar documentos locais. Tarefa indispensável para viabilizar os estudos em História Local, ainda ser explorado no País, bem como ampliar as possibilidades de diálogo da História da Educação com essa área de pesquisa.

A despeito das diferenças teórico-metodológicas e de suas polêmicas, cada um dos artigos, a seu modo, contribui para uma reflexão mais ampla sobre os aspectos teórico-metodológicos da escrita em História da Educação. Da mesma maneira que nos permitem refletir sobre questões específicas que acompanham as diferentes matrizes interpretativas.

Por tudo o que foi apresentado, podemos afirmar sem sombra de dúvidas que esta Coleção é um retrato da dimensão a que os estudos em História da Educação assumiram para a pesquisa educacional brasileira. Concordamos com Ângela de Castro Gomes, no prefácio da obra, quando afirma que este “[…] crescimento quantitativo e qualitativo é um ‘fato social’ a ser remarcado, seguindo-se a linha de se pensar a historicamente a História da Educação […]” (p. 13). Nesse sentido, é mister reconhecer a relevância da iniciativa editorial que cumpre o papel estratégico de apresentar para um público mais amplo um panorama do rico e complexo campo da produção intelectual realizada nos programas de pós-graduação em educação das universidades brasileiras.

No tocante ao volume cinco, este objetivo foi amplamente alcançado, pois algumas tendências podem ser destacadas após o término da leitura. A primeira refere-se ao estreitamento do diálogo com a produção historiográfica internacional como fato relevante na reconfiguração da escrita em História em Educação. Fato que se pode constatar de imediato após a consulta aos referenciais bibliográficos, geralmente vinculados à denominada Nova História, mas não exclusivamente. A segunda refere-se à vitalidade da produção nacional, oriunda dos programas de pós-graduação que tem servido como parâmetro para a elaboração de novos projetos, formulação de novas questões e uma reflexão sobre si mesma que demonstra o amadurecimento intelectual e a criatividade imperante nas pesquisas em curso.

Fábio Garcez de Carvalho – Doutorando em História da Educação na Universidade Federal do

Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Práticas escolares e Processos Educativos: Currículo, Disciplinas e Instituições Escolares (séculos XIX e XX) – GONÇALVES NETO et al. (RBHE)

GONÇALVES NETO, Wenceslau; MIGUEL, Maria Elisabeth Blank; FERREIRA NETO, Amarílio. Práticas escolares e Processos Educativos: Currículo, Disciplinas e Instituições Escolares (séculos XIX e XX). Coleção: Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil, 4.  Vitória: Edufes, 2011. Resenha de: OLIVEIRA, Antoniette Camargo de. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011.

Este livro é o volume quatro da coleção “Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil”, resultado da parceria entre a SBHE e a Ufes, cujo primeiro volume foi publicado (em 2009) para comemorar o décimo aniversário da SB HE. Assim como os outros três volumes, seu objetivo é reunir pesquisas e estudos tanto sobre perspectivas teóricas, metodológicas e temporais diversas ou complementares entre si, quanto aquelas originárias das várias instituições acadêmicas e localidades nacionais e ou internacionais, preocupadas em produzir conhecimento principalmente sobre história da educação. Nesse sentido, tal iniciativa tem vindo ao encontro de uma necessidade premente por uma visão mais ampla, possibilitadora de estudos comparativos que efetivamente contribuam para a compreensão crítica do processo histórico e para o apontamento de projetos e ações positivas na área escolar.

Optou-se por comentar os quinze capítulos, dispondo-os tanto numa sequência temporal crescente, do Império ao século XX, quanto buscando integrá-los em termos de fontes, objetos, contextos e perspectivas. Sobre a Região Sudeste há quatro capítulos, sobre a Região Sul há três, e um sobre a Norte. Quanto aos outros, de maneira geral, dizem respeito a especificidades da educação enquanto referência nacional.

Analete Regina Schelbauer, ao abordar a escolaridade primária em São Paulo, com o seu “Das normas prescritas às práticas escolares: a escola primária paulista no final do século XIX”, deixa à mostra preocupações que não eram apenas nacionais, mas também internacionais, a respeito da necessidade de se alcançar efetivamente os trabalhadores, de forma a “cidadanizá-los” e civilizá-los. Inicialmente ela aponta para o que se idealizava em termos de educação popular e que servia de modelo, a partir dos ministérios da instrução de outros países na mesma época. Ao lançar mão de leis e regulamentos, bem como de relatórios de professores primários da então província paulista, a autora traz para o âmbito nacional as propostas (normatizações) e práticas implementadas (instituídas) ou apenas relatadas pelos professores da província de São Paulo, colaborando por formar a nação brasileira, moderna e competitiva que se queria. Normas e relatos estes – em termos de divisão do alunos, matérias ou disciplinas a serem ensinados, métodos e instrumentos ou utensílios de ensino –, que pela perspectiva da autora em questão, podem servir de referência para futuras pesquisas, a partir de outras províncias, e decorrentes trabalhos de comparação.

Comparação, esta, que já se mostra possível, considerando outro autor, o qual também cuida das preocupações relativas ao ensino primário, voltado para os homens livres, pobres e ex-escravos, também a partir da segunda metade do século XIX, em preparação às esperadas mudanças advindas com a República. Trata-se de Carlos Henrique de Carvalho, com o seu “Legislação, civilidade e currículo: processo de escolarização primária em Minas Gerais (1835-1889)”. Escrevendo a partir das leis, regulamentos, resoluções e portarias mineiras, estabelecidas no decorrer do período, o autor chama a atenção para a influência da Igreja Católica, nas instâncias legislativa e executiva relativas à educação, aspecto que pode constituir-se num diferencial desta província em relação às outras. É interessante também comparar Minas e São Paulo, nos quadros de Carvalho (p. 214) e Schelbauer (p. 38), a respeito da divisão do ensino primário em graus e matérias, sendo que o mineiro diz respeito a 1859 e o paulista a 1887, o que pode ser demonstrativo da posição de vanguarda de Minas em termos de preocupações com o ensino “popular” em relação a outras províncias.

Ainda relativo ao ensino primário, e em complemento aos dois trabalhos anteriores, Rosa Fátima de Souza escreve sobre “A organização pedagógica da escola primária no Brasil: do modo individual, mútuo, simultâneo e misto à escola graduada (1827-1893)”. Os autores já resenhados apontam para a existência de supostos métodos de ensino no Império, seja a partir das legislações ou dos relatórios de professores. Entretanto, é Souza quem vai problematizar seus respectivos conceitos, origens, diferentes significados ou concepções que circularam no país em cada situação e em certas províncias. Conforme a autora, o Brasil carece de estudos sobre o surgimento e alterações sofridas pelo método simultâneo.

Maria Elizabeth Blanck Miguel, em “Práticas escolares e processos educativos na escola provincial paranaense (1854-1889)”, se utiliza de leis e regulamentos enquanto fontes, mas também, especialmente, de relatórios de professores, ricos em detalhes a respeito dos reais problemas educacionais daquela província do Sul. Quanto ao processo de instalação do método simultâneo na província do Paraná (que remete ao capítulo de Souza), é um trabalho indicativo das diferenças e semelhanças educacionais daquela região em relação ao Sudeste, região em torno da qual parecem estar voltados a maioria dos trabalhos nesta área. Verifiquem que há um trecho da Instrução Geral de 27 de dezembro de 1856, transcrito por Souza (p. 356), o qual também foi utilizado de forma mais completa por Blanck Miguel, nas páginas 184 e 185.

Para além de tais métodos ou modos (p. 339) de ensino que, grosso modo, vieram se desenhando no Império brasileiro, Wenceslau Gonçalves Neto com o capítulo “A organização escolar em Minas Gerais no início da República: intenções, métodos e currículos nas propostas educacionais do Estado e dos Municípios”, chama a atenção, pelo menos no caso de Minas Gerais, para o método intuitivo, o qual talvez proporcionasse uma segurança maior ao professor na condução dos alunos, método este mais direcionador que os anteriormente apontados por Souza. A suposição de que fosse o método intuitivo o adotado nas escolas públicas, deve-se inclusive ao instrumental ou mobiliário escolar apontado na legislação mineira. Um outro tópico trabalhado por Gonçalves Neto, e que também nos dá pistas para outras percepções, é o que trata do currículo. Se compararmos o que estava prescrito na legislação estadual para as escolas primárias no início da República (p. 443) com os quadros das páginas 214 e 220, relativos ao Império na província mineira, perceberemos que muito pouca coisa mudou em termos de parâmetros disciplinares. Entretanto, ficam claras as diferenças entre o prescrito pelo Estado e o instituído pelos municípios. Tal capítulo é uma referência importante para aqueles que queiram desenvolver suas pesquisas e estudos sobre a História da Educação de quaisquer municípios mineiros.

Na passagem do Império para a República, Lúcio Kreutz, em “Práticas escolares entre imigrantes no Rio Grande do Sul: 1870-1940”, elabora uma espécie de síntese das considerações desenvolvidas ao longo de sua trajetória enquanto pesquisador da educação. De qualquer maneira, são nítidas as diferenças em relação aos trabalhos sobre os quais já se comentou, considerando a especificidade do seu objeto, consubstanciado em comunidades rurais étnicas, a partir do que ele intitula “escolas de imigração”. Deixa claro o papel da Igreja e do Estado, bem como as características, inclusive físicas, que favoreceram a formação dos núcleos rurais e suas respectivas escolas. Mesmo heterogêneas entre si – além de denotar uma contradição, por terem favorecido a cultura de origem dos imigrantes em detrimento da nacional –, não deixa de ser uma experiência referencial em termos de participação comunitária, onde a cultura e a religião foram primordiais no sucesso daqueles experimentos de ensino e aprendizagem.

“A escolarização da infância: prescrições na imprensa periódica da Educação Física (1932-1945)”, de Rosianny Campos Berto e Amarílio Ferreira Neto, toma como fonte/objeto duas revistas publicadas no período, uma sob a responsabilidade da Escola de Educação Física do Exército e outra sob a de civis, ligados à Associação Cristã de Moços e elaborada pela Companhia Brasil Editora. De ambas as revistas, publicadas no Rio de Janeiro, os autores analisam os artigos voltados para a educação física escolar infantil, assunto priorizado pelos respectivos editores no período. Destacam a necessidade de demarcação de poder por parte de cada grupo, a partir de suas publicações, bem como as diferentes concepções que tinham a respeito da infância.

“Práticas escolares em escolas normais rurais do Rio Grande do Sul (1940-1970)”, de Flávia Obino Corrêa Werle aponta para uma das consequências das propostas de nacionalização do ensino, responsáveis pelo fechamento de muitas escolas étnicas a partir dos anos de 1930, especialmente nas colônias rurais rio-grandenses das quais trata o já citado Lúcio Kreutz. A autora chama a atenção para o caráter masculino dos discentes nas então escolas normais rurais, a contrapelo da ideia de feminização do magistério, prevalente nos diversos estudos; deixando claro também a valorização do esporte pela comunidade escolar, dentro e fora do currículo, enquanto forma de reforço do pertencimento e integração escola/comunidade; o que corrobora, em parte, com os ideais preconizados pelas fontes/ objetos do estudo de Berto e Neto a respeito da educação física.

No capítulo “A centralidade do instrumento de trabalho na relação educativa: a escola moderna brasileira nos séculos XIX e XX”, Gilberto Luiz Alves é objetivo nas suas impressões a respeito de como veio se consolidando o uso dos manuais ou livros didáticos em sala de aula no Brasil. Manuais estes que, segundo ele, deram vida à organização do trabalho didático ideada por Comenius no século XVII, em que a centralidade na relação educativa passa a ser o instrumento de trabalho, em detrimento do professor ou do aluno. Referência a respeito deste objeto, o autor estabelece os avanços em termos de outras pesquisas já produzidas, dando destaque à tese de Gatti Júnior (2004).

Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas, ao escrever sobre “As lições de português para o ensino ginasial no Estado Novo, nas Páginas floridas”, dá continuidade à problemática dos livros didáticos, especialmente nas décadas de 1930, 1940 e 1950. Para tanto, trata do então competitivo mercado editorial e da legislação relativa à produção de tais livros, antecedendo o período trabalhado por Gatti Júnior (citado anteriormente). Para o editor da coleção Páginas floridas, o livro ditático não deveria ter um papel central enquanto instrumento de trabalho na relação educativa, conforme consta no trecho de um prefácio transcrito nas páginas 103 e 104.

Maria Elizabete Sampaio Prado Xavier, escrevendo quanto às “Noções de História da Educação para professores: o manual de Afrânio Peixoto (1876-1947)”, nos dá indícios sobre o tipo de conhecimento a respeito da História da Educação a que os normalistas das décadas de 1930 e 1940 tiveram acesso. Contribui, igualmente, para um debate atual relativo à distância entre o conhecimento produzido e aquele diretamente utilizado na sala de aula, especialmente na formação de professores.

“O debate ciências versus humanidades no século XIX: reflexões sobre o ensino de ciências no Collegio de Pedro II”, de Karl Michael Lorenz e Ariclê Vechia, nos remete a um contexto geral ainda atual. Os autores concluem – através da análise e comparação das diversas reformas do ensino secundário, bem como dos currículos implantados nos Colégio de Pedro II e Gymnasio Nacional (referência para o ensino no Brasil a partir da então capital federal) – sobre a prevalência das disciplinas humanísticas ou clássicas em detrimento das científicas, técnicas ou realistas. Também apontam para as razões que levaram tanto autoridades quanto público, “a rejeitar o papel das ciências na vida acadêmica dos alunos secundários” ao longo de todo o XIX.

Complementarmente, Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino de França escreve sobre a “História do ensino secundário brasileiro republicano: o Liceu Paraense”, a reboque da legislação nacional. Suas análises, sem dúvida, servem de modelo para outros trabalhos a respeito deste grau de ensino nos demais estados brasileiros. Enquanto Lorenz e Vechia chamam mais a atenção para a característica propedêutica, do secundário para o superior, França joga luz sobre o sistema de exames parcelados, prática comum durante o Império e que pode explicar o esvaziamento e as desistências verificadas nas então escolas secundárias públicas. Esta autora também analisa detidamente as mudanças curriculares pelas quais passou o Liceu Paraense na República.

Em “‘Uma aventura para o dia de amanhã’: o projeto do serviço de ortofrenia e higiene mental na reforma Anísio Teixeir (1930)”, Adir da Luz Almeida e Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi acabam por estabelecer como se deu, no Brasil, as ideias precursoras dos princípios de normatização, integração e inclusão que se sucederam a partir dos anos de 1950. Tratou-se de uma das frentes da referida reforma, em que as “crianças problema” ou detentoras de alguma “anormalidade”, a princípio indicadas pelos seus professores, teriam sua vida (dentro e fora da escola) esquadrinhada numa ficha, a partir da qual profissionais especializados apontariam o tratamento mais adequado a receberem, pelos pais ou professores, no sentido de melhor se socializarem.

Finalmente, Ester Buffa e Gelson de Almeida Pinto, em “A educação infantil e o espaço escolar: três instituições criadas no final do século XX”, nos dão indicativos sobre a arquitetura escolar mais contemporânea, de escolas cujos projetos de construção foram pensados a partir de seus respectivos ideais pedagógicos. Duas escolas construtivistas, em Porto Alegre e Uberlândia e uma outra que adota a Pedagogia Waldorf, em Capão Bonito, ambas criadas nas décadas de 1980 e 1990. Além de nos incitar a observar e refletir a respeito dos projetos arquitetônicos das instituições escolares as/nas quais trabalhamos e ou pesquisamos, os autores apontam para a necessidade de um trabalho multidisciplinar, no sentido de se pensar, projetar e construir espaços escolares infantis, que possibilitem sua utilização “plena e intensamente”.

Referências 

GATTI JR., Décio. Livro Didático e Ensino de História: dos anos sesenta aos nossos dias. São Paulo: PUC-SP, 1998.

Antoniette Camargo de Oliveira – E-mail: [email protected]

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Estado e políticas educacionais na educação brasileira – SAVIANI (RBHE)

SAVIANI, Dermeval. Estado e políticas educacionais na educação brasileira. Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: CASTANHO, Sérgio. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011

Uma fecunda parceria entre a Universidade Federal do Espírito Santo, por sua editora, e a Sociedade Brasileira de História da Educação, para comemorar os dez anos de existência desta última, completados em 28 de setembro de 2009, resultou numa iniciativa editorial das mais importantes: uma dezena de volumes sobre dezeixos temáticos em torno da história da educação. O volume de número 6 é este de que aqui nos ocupamos. Organizado pelo renomado educador Dermeval Saviani, cuja contribuição à história da educação brasileira tem sido das mais relevantes, este livro acrescenta muito à reflexão histórica sobre o papel do Estado nas políticas educacionais no Brasil. Sem mais delongas, passemos ao conteúdo do volume.

Abrindo a coletânea, deparamo-nos com o capítulo de seu organizador, Dermeval Saviani, intitulado “O Estado e a promiscuidade entre o público e o privado na história da educação brasileira”. O autor revela essa “promiscuidade” (termo que ele próprio questiona, mas defendendo sua utilização) entre as esferas pública e privada na educação brasileira. Isso é feito rastreando a simbiose público-privada desde o período da “Educação pública religiosa (1549-1759)” até o atual, objeto da indagação “Educação pública: dever de todos, direito do Estado? (1961-2007)”, passando pelos momentos da “Educação pública estatal confessional” (1759-1827)”, da “Instrução pública e ensino livre (1827-1890)”, da “Instrução pública para os filhos das oligarquias (1890-1931)” e da “Educação pública e industrialismo: o protagonismo das três trindades (1931-1961). Ao chegar à atualidade, Saviani mostra o paroxismo dessa promiscuidade “assumindo novas e variadas formas que estão em curso”. O autor é incisivo na sua crítica: “Tudo se passa como se a educação tivesse deixado de ser assunto de responsabilidade pública a cargo do Estado, transformando-se em questão da alçada da filantropia”. Na conclusão, o caminho aventado por Saviani é o de radicalizar o caráter da educação como coisa pública (res publica): “Republicanizando a educação, estaremos radicalizando uma das promessas da burguesia liberal e, com isso, explorando seu caráter contraditório tendo em vista a superação dessa forma social”.

O segundo artigo, “Estado e cristandade nos primórdios da colonização do Brasil: implicações para a política educacional”, é assinado por José Maria de Paiva, autor clássico no estudo desse período de nossa história da educação. O capítulo traz a marca registrada de Paiva, que imprime a seus trabalhos invulgar profundidade de reflexão e análise, a par de um extremo cuidado no trato com as fontes. A gênese do Estado, na passagem do medievo para a modernidade, é estudada a partir de textos de Tomás de Aquino e John Locke. Referência central no pensamento histórico do autor é a necessidade de partir da cultura social para o entendimento do Estado. É por esse caminho que Paiva chega ao Estado português no período da colonização americana, ininteligível fora do âmbito da cristandade – que é o “modo de ser social” conformador da esfera pública. Como era a relação entre o Estado e a educação? Talvez uma passagem do texto em foco possa contribuir para responder a indagação: “Pela tradição, a escola refletia o religioso, como toda a vida social, mas tinha como objeto o cultivo do que então se entendia por ciência. Pelo papel que lhe cabia – de assegurar a manutenção da cultura – era ofício real; em termos atuais, ofício do Estado”. Realeza, Igreja, Educação – tudo fazia parte de um mesmo bloco, eu quase diria um “bloco histórico”, marcado ademais pela prática mercantil, que na modernidade passou a reclamar o tipo de conhecimento que a escola podia fornecer, basicamente a leitura e a escrita. Do geral o autor passa para o específico, o colégio jesuítico no Brasil. Os jesuítas, no entender de Paiva, foram a única ordem religiosa a estabelecer colégios no Brasil, o que se deve a que a eles, e a mais ninguém, o rei delegou a tarefa de evangelizar os índios e preparar os futuros evangelizadores. Trabalhando com a categoria histórica de “experiência”, o autor mostra que os colégios foram organizados tendo por base a experiência das universidades que os antecederam cronologicamente. Conjugados, os conceitos de cultura social e de experiência dão conta, no trabalho de Paiva, de explicar a política educacional na América colonial portuguesa a cargo dos agentes inacianos.

Ainda trabalhando com esse tema, com fundamentos e propósitos que ora se aproximam ora se afastam do precedente, o artigo terceiro tem o timbre de Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro, intelectual atuante na docência e pesquisa da UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. O título do capítulo é “O Estado e a política educativa dos jesuítas na história da educação brasileira”. Iniciando por evidenciar as raízes da ordem jesuítica no cenário mundial marcado pelo concílio tridentino, Ana Palmira detém-se no estabelecimento e expansão da Companhia em Portugal e seu posicionamento no contexto da Igreja e da Realeza nessa parte da Ibéria. Só então estuda os jesuítas no Brasil, suas províncias, suas casas de profissão, seus colégios e seus seminários. Taxativa, para ela a “história da companhia de Jesus confunde-se com a própria história da educação brasileira colonial”. Alargando a mirada, Ana Palmira afirma que “os jesuítas palmilharam todos os espaços d território colonial: o campo econômico, pacificando e adestrando a mão de obra indígena e negra; a seara política, exercendo forte influência na Coroa Portuguesa e participando das mais importantes decisões de caráter político e religiosa da época; as diversas instâncias da vida cultural, veiculando ideologias literárias, imagéticas e religiosas; e, finalmente, o terreno prático, mediante o exercício do apostolado missionário da educação formal, ministrada nos colégios, e do sermonário religioso, pregado no púlpito das igrejas”. Não resisto à tentação, para usar uma expressão que cabe à talha ao tema em foco, de uma citação final, em que Ana Palmira sintetiza o sentido da educação jesuítica no Brasil: “Nesse sentido, especialmente o ensino religioso, compreendido no seu sentido lato (a catequese, as normas religiosas impostas e obrigatórias, a doutrinação, os castigos, as representações imagéticas, os rituais, os cultos e, principalmente, a pregação), foi a forma mais eficiente de educação daquele tempo, pois doutrinava, simultaneamente, os senhores e os escravos, os possuidores e os despossuídos, os poderosos e os subjugados. Os jesuítas educaram para o êxito da empresa colonial, para a manutenção do status quo de um pequeno grupo e para a instauração de formas de mentalidades peculiares, que ultrapassaram as barreiras daquele período e que perduram, até hoje, como traços característicos da sociedade brasileira”.

O quarto artigo é da uspiana e pesquisadora do CNPq Carlota dos Reis Boto, tendo por título “Pombalismo e escola de estado na história da educação brasileira”. Para a autora, é preciso deixar de lado a ideia de que o ensino público no Brasil foi obra dos republicanos, pois remonta à ação do Marquês de Pombal, bem antes da eclosão da República no país. Boto não se restringe a mapear os feitos pombalinos. Ad astra per aspera: ela procura o caminho mais penoso, pesquisando o iluminismo português, de que Pombal foi adepto e coautor. Vendo uma das características desse iluminismo, a secularização, como “um modo de ser mundo”, ela esclarece por que a educação pombalina, no contexto iluminista, não poderia deixar de ser secularizada, ainda que não laicizada. Em seguida, ela destrincha a vida e obra de três pilares do iluminismo português que estiveram intimamente vinculados à política educacional desencadeada por Pombal: D. Luís da Cunha, Ribeiro Sanches e suas Cartas sobre a educação da mocidade e Verney com seu Verdadeiro método de estudar. Passando das bases teóricas às diretrizes práticas, Boto mostra o que foi e como foi a escola pública traçada por Pombal. Nas conclusões, revisita o legado pombalino, considerando-o como “um modo de ser escola do Estado-Nação”. E considera, fechando o artigo, que a escola pública é “o lugar mais progressista em matéria de educação”.

O capítulo seguinte é de Maria Cristina Gomes Machado e versa sobre “Estado e políticas educacionais no Império brasileiro”. A autora é especialista em educação no Império e já nos havia brindado com seu indispensável Rui Barbosa: pensamento e ação. O problema que Machado coloca e procura resolver no artigo é o de como a educação atuou no período imperial para constituir o Estado-nação no Brasil. Para isso vasculha a política educacional imperial, desde as primeiras iniciativas sob D. Pedro I até o desfecho republicano. Grande destaque é dado às reformas Couto Ferraz (1854) e Leôncio de Carvalho (1879), esta última com mais amplidão por ter ensejado os pareceres de Rui Barbosa. No ocaso do Império – mostra Machado – dá-se a emergência das questões da liberdade de ensino e do caráter religioso ou laico do ensino conduzido pelo Estado.

Segue-se o capítulo de Luís Antônio Cunha sobre essa última questão: “Confessionalismo versus laicidade no ensino público”. Cunha – ou LAC como ele se autorrefere utilizando suas iniciais – principia com uma bem centrada conceituação de “laico” em confronto com “leigo”. Depois disso volta-se para os primórdios da educação na América portuguesa: a educação religiosa no Estado confessional. Nas três décadas finais do século XIX LAC vislumbra o surgimento da laicidade como superação da incomodatícia “simbiose Igreja-Estado”. Essa laicidade (“de elite”, acentua LAC) acaba por marcar a institucionalização do Estado republicano. A despeito da laicidade, o ensino religioso acaba por retornar à política educacional, como forma de “controle político-ideológico”. Entre outras pontuações históricas interessantes, LAC mostra que o manifesto dos “pioneiros” de 32 não teve consequências práticas no tocante à laicidade do ensino público, pois a Igreja Católica saiu-se amplamente vitoriosa na Constituição de 1934. Passando em revista a questão após a era Vargas, atravessando o debate ocasionado pelas vicissitudes da nossa primeira LDB (1961) e a problemática da “religião, moral e civismo na ditadura militar”, Cunha chega aos dias atuais percebendo algo de novo, a “emergência do movimento laico”, que se distingue do laicismo republicano.

Chegamos assim ao sétimo artigo, a cargo da dupla Geraldo Inácio Filho e Maria Aparecida da Silva. Seu título: “Reformas educacionais durante a Primeira República no Brasil (1889-1930)”. A primeira constatação dos autores é que as reformas imperiais deixaram intocado o panorama educacional que vinha do período pombalino: “Dessa forma, a nascente República herdou as escolas isoladas e o descaso com a instrução pública”. A partir desse ponto de partida, não é difícil à dupla mostrar os avanços na política educacional da Primeira República, que implanta os grupos escolares, garante a laicidade do ensino público, promove reformas estaduais significativas e dá ênfase ao ensino primário, vale dizer, ao que na ocasião se poderia entender por “educação popular”. Tópicos especiais do artigo são dedicados à educação de adultos, ao ensino secundário e à educação superior. Nas conclusões, não deixa de causar impacto a constatação dos autores de que as políticas educacionais da Primeira República “não eram formuladas como um projeto de Estado, mas como iniciativas de governo, sem continuidade, após as eleições substitutivas dos governantes”.

O oitavo capítulo, de autoria de Marcus Vinicius da Cunha, tem por título “Estado e escola nova na história da educação brasileira”. O artigo é inovador por não se contentar com as análises correntes da escola nova, que por vezes datam-na do manifesto de 1932, mas aprofunda-se na questão, buscando as origens e bases teóricas do escolanovismo. No Brasil Cunha localiza, na esteira de Antunha, em Oscar Thompson o primeiro ato da cena escolanovista, apesar de seu caráter elitista, que não chega a impressionar o professorado. O interessante é que o autor vê no escolanovismo uma expressão educacional do ideário liberal. E é com esse fundamento que analisa as contribuições de Sampaio Dória, de Lourenço Filho, de Anísio Teixeira, de Francisco Campos e de Fernando Azevedo. Maior destaque vai para Anísio Teixeira, apesar da ressalva de que seus argumentos e conceitos eram “extraídos diretamente da filosofia de Dewey, filha do mesmo ambiente que deu à luz Jefferson”. O último parágrafo é imprescindível: “As iniciativas e as ideias de Anísio Teixeira redefiniram as relações da Escola Nova com o Estado: a realização do Estado Educador exigia, antes de tudo, manter contato íntimo com a sociedade (…). Restava saber se, até que ponto ou até quando o Estado seria sensível essa proposta. A resposta veio em 1964”.

“A política educacional do Estado Novo” é o trabalho com que José Silvério Baia Horta comparece a esta coletânea. Trabalho de historiador, o artigo de Baia Horta garimpa os discursos oficiais do varguismo. E encontra, na política educacional que tais documentos revelam, uma constante: “colocar o sistema educacional a serviço da implantação da política autoritária”. É com essa ótica que o autor repassa a política educacional do Estado Novo (1937- 1945), examinando a reforma do Ministério da Educação e Saúde empreendida pela dupla Getúlio Vargas-Gustavo Capanema e em seguida a legislação de ensino do período, detendo-se nos seus níveis primário, médio e superior. Deixando de lado a identificação fácil e nem sempre convincente entre o varguismo e o fascismo mussolinista, Baia Horta conclui: “(…) a não concretização das diferentes propostas oficiais mostra que o regime nunca chegou a impor à escola um papel político idêntico àquele instituído na Itália fascista. Assim, a escola no Brasil pôde conservar, durante todo o período, uma relativa autonomia”.

José Luís Sanfelice, que já havia percorrido algumas salas e muitos porões da ditadura militar com seu trabalho sobre o movimento estudantil no período, volta ao tema de sua predileção com o décimo capítulo deste volume, intitulado “O Estado e a política educacional do regime militar”. Revolução? Golpe? Sanfelice não se furta a responder a tais perguntas, mas inova mesmo ao caracterizar o Estado pós-64 como “Estado de Segurança Nacional e Desenvolvimento”. Qual foi a política educacional a cargo desse Estado? De imediato, responde Sanfelice, falou mais alto a Segurança Nacional. Nesse sentido, a política do início da ditadura foi de repressão, tanto ao movimento estudantil quanto às universidades e aos profissionais que atuavam no seu âmbito. Paulatinamente, porém, passou a falar alto a outra face, a do Desenvolvimento, e foi assim que medidas de financiamento do ensino primário via salário educação foram implantadas, juntamente com outras como a da Reforma Universitária (1968), a do MOBRAL (1967) e a da reforma do ensino de 1º e 2º graus (1971, Lei 5.692). Sanfelice, em parágrafo abrangente, sintetiza: “A política educacional dos governos militares pode então ser definida como a política da modernização conservadora e que expressou: o autoritarismo dos mandatários (os docentes, as resistências das universidades, o movimento estudantil foram calados); a subordinação a um modelo econômico excludente e, portanto, elitista, de privilegiamento do grande capital; o tecnicismo burocrático (as medidas em geral não contaram com a participação dos educadores); a mentalidade empresarial no campo da educação, assaltada por princípios de eficiência, produtividade, racionalidade e economia de recursos”.

O volume se encerra com um instigante artigo de Carlos Roberto Jamil Cury sobre “Reformas educacionais no Brasil”. Antes de entrar no mérito, Cury investiga o significado de “reforma” em geral e de “reforma educacional” em particular. Ao conceituar a reforma da educação, o autor considera-a como uma decisão de autoridade para mudar, com base em lei, a política educacional, tornando “a situação considerada mais congruente com a realidade”. Como é preciso, segundo essa conceituação, uma base legal, Cury passa em revista as principais leis sobre matéria educacional no país, dadas sob as diferentes Constituições que aqui tivemos. Como a primeira Constituição foi a imperial de 1824, o estudo abarca as leis a partir desse marco. São revistas as reformas no Império, na Primeira República, na Era Vargas, no Regime Militar e enfim no atual Estado Democrático de Direito. Encerrando o artigo, Cury aposta: novas reformas virão. E deixa no ar uma pergunta: “Será que elas serão de molde a serem inovadoras de modo a conduzir a uma verdadeira mudança social?”.

Em conclusão, trata-se de uma visão panorâmica, porém profunda, sobre o Estado e as políticas de educação na história educacional brasileira. Cobrindo todos os períodos em que essa relação entre Estado e educação se dá no Brasil, o livro traz inestimável contribuição para todos aqueles que se dedicam a seu estudo, apresentando, ademais, preciosa colaboração ao contemporâneo debate sobre os rumos da educação brasileira.

Sérgio Castanho

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História das Culturas Escolares no Brasil – VIDAL (RBHE)

VIDAL, Diana Gonçalves; SCHWARTZ, Cleonara Maria. História das Culturas Escolares no Brasil. Coleção: Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil, 1. Vitória- ES: Editora Edufes, 2011. Resenha de: PAULILO, André Luiz. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011

A reflexão acerca do conceito de cultura escolar e seu uso na abordagem histórica do campo educativo foi a primeira beneficiada com a iniciativa da Sociedade Brasileira de História da Educação, em associação com a Edufes, de mapear o que vem sendo produzido na área durante a última década. A publicação do livro organizado por Diana Gonçalves Vidal e Cleonara Maria Schwartz, compondo o volume de abertura da coleção “Horizontes da Pesquisa em História da Educação”, sintetiza muito deste propósito no que diz respeito ao emprego de uma categoria de análise. Os estudos então reunidos sob o título História das Culturas Escolares no Brasil abordam, de diferentes perspectivas, vários dos aspectos que constituíram a escola e legitimaram-na como instituição social de características muito próprias e marcantes. Nesse sentido, é bastante clara a ênfase do empreendimento na compreensão das “formas de produção, circulação e apropriação de saberes operadas na/pela escola brasileira” e das “práticas de diferentes sujeitos que, ao (re) produzirem gestos, ações, fazeres, em seus espaços de atuação, ilustram formas diferenciadas com que o contexto educacional fora pensado e apropriado” (p. 11). Parte importante dos protocolos de leitura que organizam o livro são indicativos disto. No prefácio e em muitos dos títulos dos capítulos, o foco nessas formas e práticas explicita o investimento dos autores na análise da “cultura que se constrói na escola” (p. 21).

O leitor que se deixar fiar por esses protocolos será bem conduzido. O livro é “armado” de modo a dar visibilidade aos esforços de entendimento das práticas instauradas no interior da escola e das tensões entre as expectativas de diferentes grupos sociais sobre a função desta instituição ao longo da história. Sobretudo aquilo que as organizadoras definem como as questões e os eixos articuladores da obra, no capítulo inicial, vão sendo esmiuçados pelos outros catorze estudos. Assim, as cinco principais questões de pesquisa que são delineadas – espaços escolares, sujeitos da educação, tempos escolares, disciplinas escolares e cultura material escolar – incidem sobre a análise: da cultura material da escola paraibana no Oitocentos e dos processos de escolarização no Rio Grande do Norte no início do século passado, da escola graduada no Rio Grande do Sul, dos patronatos agrícolas de Sergipe e da educação rural e da escola técnica agrícola, das práticas de higienização em São Paulo, de disciplinamento em Belo Horizonte e de formação moral e cívica no Mato Grosso. O estudo das características das escolas de imigrantes em Campinas, das festas escolares no Paraná, da formação de professores em Santa Catarina, do ensino da educação física em Minas Gerais e dos cadernos escolares completa os veios de trabalho explorados no livro.

Ainda conforme o que fica esclarecido desde o capítulo inicial deste volume, as abordagem das questões são articuladas em torno de dois eixos. Por um lado, o funcionamento interno das instituições é principalmente estudado a partir da materialidade da escola e dos dispositivos que empregava para instaurar suas práticas de ensino e educação. Por outro, as relações que a escola estabelece com a sociedade têm diversas das suas facetas investigadas, com ênfase especial na atuação dos sujeitos sociais. Assim, as organizadoras têm razão quando afirmam que ao longo dos capítulos “a própria unidade conferida à escola foi desconstruída no reconhecimento de que as práticas instauradas no seu interior eram permeadas por conflito e que a cultura escolar não era estável” (p. 25). Não obstante a especificidade de níveis e modalidades de ensino analisadas, a leitura de História das Culturas Escolares no Brasil adverte que a escola foi uma construção difícil e cheia de tensão. Sobretudo nesse sentido, trata-se de uma história de interpretações e apropriações das demandas político-administrativas e de constituição dos fazeres ordinários das escolas. O empreendimento problematiza as reformas educativas tanto quando escrutina sua imposição pelas autoridades, como ao perguntar a respeito da sua recepção pelos sujeitos. Também sugere que a escola e o seu entorno se enlaçam em mais de um modo na forma pela qual “os sujeitos sintetizam, acolhem e subvertem os preceitos pedagógicos e os conteúdos prescritos” (p. 27).

Outro aspecto de compreensão deste primeiro volume da coleção “Horizontes da Pesquisa em História da Educação” que fica esclarecido desde a leitura da introdução do livro tem a ver com os limites da utilização de uma categoria de análise. Com razão, argumenta-se que como fórmula, esvaecida em seus significados e vazia de conceituação, cultura escolar pode transformar-se em um mero slogan (p. 33). A advertência alerta sobre a capacidade que uma categoria de análise deve ter de “oferecer índices para o entendimento da ação dos homens no seu trânsito histórico pelo mundo”. A operacionalidade da noção de cultura escolar é, assim, viabilizada de modo exemplar em cada novo estudo, a partir das suas questões específicas e em torno de perspectivas adequadas ao tema abordado. Muitas análises, partindo de fontes resultantes da administração e controle da educação pública, elaboram formas de ler essa documentação capazes de escapar das amarras da versão oficial, buscando nos jornais e em textos memorialísticos uma nova possibilidade de interpretação. Os estudos sobre as instituições escolares, e acerca dos momentos estruturantes da cultura escolar e de consolidação dos seus principais dispositivos têm alargado suas fontes de pesquisa de modo a experimentar outros olhares sobre a história da escola. Também no caso das análises a respeito da elaboração de saberes e disciplinas escolares e da materialidade associada às práticas do ensino e da educação, as operações de leitura das fontes é constitutiva das investigações. Vistos como parte decisiva das soluções aos desafios da vida escolar ou das demandas por regulação, as festas, os cadernos, as práticas de higiene e toda sorte de recursos de organização dos fazeres ordinários da escola definem áreas de interesse e pesquisa que não só valorizam a ação dos sujeitos da educação como levam em conta a materialidade com que convivem.

Tudo isso dá força de conjunto ao livro, revelando êxito na articulação do propósito de mostrar algo dos processos pelos quais a escola se reinventou em diversos momentos da sua história no país. No entanto, há mais do que se tirar proveito. Depreende-se da leitura uma história da vida cotidiana na escola, com as nuanças locais e as realidades que a modelaram. Do mesmo modo que, assim, é possível se aperceber dos dispositivos em ação no dia a dia da escola, testemunha-se a variedade dos atores responsáveis pela configuração das culturas escolares no Brasil. Nesse sentido, os estudos que História das Culturas Escolares no Brasil reúne não só esclarecem acerca do funcionamento interno de diferentes instituições educativas, mas, sobretudo, enfatizam os aspectos do fazer de diferentes segmentos dos contingentes escolares.

As análises se valem de tipos variados de fontes para perceber a escola no detalhe das práticas. Vestígios de atitudes e processos muito comuns às atuais representações que temos sobre a escola têm sido apreendidos nas pesquisas compiladas por Vidal e Schwartz. O ir e vir de pedidos, a divisão dos alunos em classes, os preconceitos que sustentam as práticas de avaliação, as festas, o tempo balizado pelo relógio, os jogos de esporte e as lições e práticas de escrita são o foco de uma detida atenção aos usos e costumes da escola. Também há a preocupação com os indícios de iniciativas que já não são as da escola atual, embora sejam parte importante das representações do que ela já foi um dia. Entre descrições dos artifícios didáticos do disciplinamento dos alunos, das práticas de inspeção médica, da mobilização de métodos de ginástica e da presença dos jogos na escola, todo um conjunto de referências da história da escolarização é esmiuçado. A participaçãonas atividades de ginástica e nos exercícios militares, as práticas cívico-nacionalistas, a medição do peso, da estatura e da capacidade respiratória e o uso dos cadernos de caligrafia estão entre as experiências que os estudos problematizam. Também as operações mais rotineiras das escolas do país permitiram apurar algo de como os conhecimentos eram transmitidos em aula. Principalmente, a cópia, os exercícios de enumerar e completar, as atividades de composição, as questões para relacionar e as tarefa de definir, analisar, resumir, redigir, calcular e resolver deixaram registros cuja relevância histórica o emprego da noção de cultura escolar permite apurar e compreender melhor.

Dessa perspectiva de pesquisa, o interesse pela atuação das autoridades de ensino passa ao largo da história político-administrativa e a história da profissão docente e a da infância mostram ter outras facetas quando pensadas a partir da cultura escolar. Na leitura não se vai obter notícias das autoridades, propriamente, ou de seus feitos, mas do mais cotidiano dos seus encargos. Assim, ficar-se-á principalmente sabendo que permitir ou indeferir licenças, designar professores ou indicar seus substitutos, controlar o cumprimento dos horários e, sobretudo, descrever e relatar foram aspectos constitutivos do exercício da autoridade no dia a dia da escola. Do mesmo modo, a prática da docência é compreendida nos seus fazeres de todo dia, nas suas táticas para superar descontentamentos. Observa-se então o vai e vem de pedidos, os usos e apropriações dos novos dispositivos educativos das escolas e das pautas pedagógicas da ocasião e a inventividade das formas de punir que os professores impunham à rotina e aos constrangimentos do seu ofício. Por outro lado, as análises reunidas por Vidal e Schwartz em História das Culturas Escolares no Brasil mostram alguns detalhes das rotinas das crianças na escola. Os interesses de pesquisa cobrem desde as adversas condições sociais em que viviam os alunos até os seus brinquedos, brincadeiras e traquinagens e a precariedade do mobiliário e instalações das escolas que frequentavam para compreender a experiência escolar das crianças. A leitura informa sobre os tipos de castigos infligidos às crianças pelos professores, os dispositivos de exame e registro das características individuais do aluno e os objetos que se manipulava em sala de aula. As análises também alcançam parte daquilo que os castigos repreendiam, os dispositivos de controle procuravam conformar e a cultura material da escola rejeitava. A desobediência e algazarra, as moléstias e a falta de asseio, assim como a vara de marmelo, cascas de frutas ou aparas de lápis foram aspectos da vida cotidiana da escola que essas análises não deixam de assinalar.

Quanto aos fazeres dos sujeitos que contribuíram para a história das instituições escolares e dos seus espaços, temporalidades, ritos e rotinas, os estudos compilados nesse volume suscitam ainda outro tipo de reflexão. A história que os textos apresentam não só mostra a variedade cultural das escolas, mas, fundamentalmente, adverte que a cultura escolar é obra coletiva e plural. Nessa direção, compreender a atuação cotidiana das autoridades de ensino e professores e as formas da criança estar na escola confere outro sentido à análise dos propósitos de reforma do ensino e das carreiras construídas na área da educação. Por um lado, como, aliás, sublinham as organizadoras, o desafio que se apresenta é tanto descortinar “os modos como os sujeitos compreendem o processo de escolarização e atuam conferindo sentido às suas experiências no âmbito da escola e sua relação com a sociedade” (p. 32) quanto construir “inteligibilidades sobre o passado e o presente da escola, seus sujeitos e a materialidade com que convivem” (p. 33). Por outro, trata-se de interrogar o modo como os mais diversos grupos sociais produziram e negociaram sentidos, práticas e horizontes próprios de atuação no interior da escola. Sob essa perspectiva, além das autoridades de ensino, dos professores e dos alunos, vê-se que as análises igualmente percebem os papéis de médicos, religiosos, engenheiros agrônomos, estatísticos, psicólogos e sociólogos na definição das formas adotadas pelas escolas no país. Os referenciais teóricos que orientam os estudos reunidos neste primeiro volume da coleção fundamentam análises capazes de fornecer boas coordenadas sobre as redes de compromisso, as expectativas e os processos de interação organizados em torno do cotidiano das instituições escolares. Não obstante as dificuldades metodológicas de pensar as ligações das pessoas com a escola e o mundo material que as cercam, também a relação que diferentes segmentos sociais da população mantiveram com a educação é uma questão levantada pelos estudos reunidos em História das Culturas Escolares no Brasil.

A propósito dos referenciais teóricos que articulam os quinze textos do livro, uma última consideração. Na construção da noção de cultura escolar como categoria de análise e como objeto de estudo, predominam as referências francesas e espanholas às anglo-saxãs. Esse traço adverte acerca do tipo de inserção que tem sido realizado pela pesquisa a respeito da cultura escolar no país, sobretudo atenta à corporeidade dos sujeitos e ao papel da organização do tempo e do espaço institucional na configuração da escola. Os resultados apresentados neste primeiro volume da coleção “Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil” apontam a inventividade das interpretações e mostram que, principalmente, o recurso a Julia, Chervel, Forquin, Viñao Frago e Escolano foi profícuo para a compreensão de uma série de questões da história da escola e da escolarização postas pela historiografia da educação no Brasil. No entanto, isso não ocorreu sem implicações. A ênfase nas inflexões da operacionalização das práticas escolares e, assim, na apreciação das mudanças, ainda que as de escala reduzida, são características do modo como se têm indagado as relações da escola com a sociedade e a cultura que os estudos compilados por Diana Vidal e Cleonara Schwartz refletem. Tanto pelo que tematiza acerca do passado e do presente da educação no país quanto por aquilo que esclarece a respeito dos limites do atual mergulho da historiografia no funcionamento interno da escola, o livro História das Culturas Escolares no Brasil é um útil alerta aos pesquisadores da área, um esforço sério de divulgação de pesquisa e um caprichado convite à leitura.

André Luiz Paulilo – E-mail: [email protected]

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A cultura dos superdotados? – BERGÉS-BAUNES; CALMETTES-JEAN (REE)

BERGÉS-BAUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine. A cultura dos superdotados? Tradução Maria Nestrovsky Folberg. Porto Alegre: CMC, 2010. Resenha de: HOMRICH, Marcele Teixeira.“A cultura dos superdotados?” The gifted child culture? Revista Educação Especial, Santa Maria, v.24, n.41, p.501-504, set./dez., 2011.

A cultura dos superdotados é uma publicação originada nas Jornadas de Estudos do Hospital Sainte-Anne (França), e tem como referencial teórico a psicanálise, sendo o foco adentrar na questão: o que esconde a inflação do significante superdotados? O livro publicado no Brasil com tradução da professora Dra. Maria Nestrovsky Folberg,¹ pela Editora CMC, discorre sobre a superdotação e psicanálise, entrando no contexto social, clínica e escola.

O livro é estruturado por pequenos textos organizados em quatro eixos: 1) panorama e estabelecimento da questão, 2) confrontação teórico-clínica, 3) clínica, retratos, sociedade e 4) e a escola? O primeiro eixo visa discutir a questão da avaliação psicológica, os conceitos de QI, e as possíveis repercussões que tais quocientes podem produzir no fechamento de questões da ordem da estruturação subjetiva. Como ponto de partida, retoma questões básicas, como o pedido que chega até os consultórios, onde há uma tríade tédio – superdotação – atestado de dons, tal discurso constitui uma uniformidade.

Ao longo do primeiro eixo, elementos históricos acerca das testagens, assim como os principais nomes no campo, são trazidos para a discussão, produzindo problematizações sobre a lógica que propõe o quociente intelectual.

O diagnóstico de superdotação, sustentado pela lógica do QI, traz consequências sérias, produzindo uma satisfação reparadora e uma afirmação fálica na estrutura familiar.

No decorrer do primeiro eixo, são também discutidos: as teorias sexuais infantis, a escrita, o corpo e o discurso acerca do tédio. Tais elementos, trazidos especificamente em cada texto, possibilitam pensar acerca do saber sexual como saber não-dito, recalcado, onde um não sei se coloca na possibilidade de se lançar na busca de conhecimentos, ou seja, um saber inconsciente que jamais será sabido. Na lógica contrária, coloca-se a criança supostamente superdotada: o gozo do superdotado está posto em mostrar a insuficiência e a não-pertinência da questão proposta – reivindicação fálica, a negação do sujeito do inconsciente. O tédio coloca-se exatamente nessa lógica mortífera: a pulsão de morte. Assim, a escrita impossibilitada, dificultada, trêmula e desalinhada, entra como projeção do corpo, demonstra uma relação primária com o objeto, uma persistência do elo de dependência.

No segundo eixo, denominado Confrontação teórico-clínica, os autores retomam a discussão sobre o QI, porém trazendo elementos pontuais que devem ser focados pelos colegas psicólogos, evitando uma concepção redutora.

O eixo também apresenta exemplos clínicos acerca da demanda da criança superdotada e de sua família, o lugar da criança na estrutura familiar e seu lugar frente ao desejo dos pais.

Uma das hipóteses seria que a demanda dos pais para com a criança dita superdotada está na lógica de uma não-demanda, é a marca nelas da ausência de desejo de seus pais ou, pelo menos, a busca desvairada desse desejo.

Uma segunda hipótese a partir das discussões dos textos ainda seria: não se pode dizer que não existe demanda por seus pais, mas se há demanda, elas se desenvolvem sobre o fundo de um imperativo de gozo que o sujeito supõe ser uma injunção do Outro.

A criança dita superdotada estaria privada em sua relação com o Outro, do que constitui o alcance simbólico dessa relação e do apoio que lhe permitiria levar em consideração suas próprias faltas. Assim, em dificuldade de articular sua enunciação, as próprias marcas inconscientes de sua subjetividade.

Essas marcas permanecem clivadas de toda falta, clivadas no sentido de recusa. O corpo se manifesta como portador da dimensão sexual, desconectado da fala e da demanda, anunciando os sintomas como: enurese, transtornos de higiene, os maus jeitos, a inabilidade…

O terceiro eixo: Clínica, retratos, sociedade, apresenta recortes de casos clínicos sustentado pela discussão teórica que permeiam o livro. Os textos discutem os excertos da clínica como sintomas que surgem a partir de atravessamentos sociais como configurações contemporâneas. A exigência de uma boa performance em tempos de alta publicidade, em que há um imperativo de gozar a qualquer preço. A inteligência estaria nesta lógica, na qual é solicitada e mantida na lógica publicitária de respostas rápidas e urgentes, sem suportar falhas, intervalos… o não-saber.

Ser superdotado, na lógica contemporânea de mercado e consumo, é ser mais, é um plus. Esse plus aparentemente pode parecer um ganho, mas têm um alto custo na subjetividade daquele que se oferta a esse lugar, o gozo Rev. Educ. Espec., Santa Maria, v. 24, n. 41, p. 501-504, set./dez. 2011 Disponível em: 503 “A cultura dos superdotados?” sem limite, o excesso leva à morte. O sintoma se apresenta como impossibilidade de negar a inscrição da barra no S.

A Terapêutica estaria na direção de que o “dito superdotado” possa desligar-se daquilo que elude a dimensão da falta na relação com o Outro para permitir sua enunciação. O trabalho com os pais estaria em trilhar um caminho para sair da suficiência em que estão confinados pela lógica que os aprisiona.

No último eixo, nomeado E a escola?, apresenta discussões teóricas e situações escolares em que a superdotação toma a cena. Os textos apresentam o fato que a criança superdotada nem sempre está na situação de sucesso escolar. Na situação em que a criança apresenta seu fracasso em sala de aula, ou na situação inversa, em que apresenta seu “super”, o pedido da avaliação pode vir do contexto escolar. Ao fim do último eixo, encontramos duas entrevistas acerca de algumas políticas e ações que estão sendo desenvolvidas na França.

O livro A cultura dos superdotados coloca em debate uma discussão atual acerca dos sintomas da infância, assim como a lógica da inflação da infância na contemporaneidade, lógica capitalista que objetaliza a criança. Como afirma Voltolini: Nossa época parece se identificar com a criança. Não seria talvez porque nela, a semelhança do que se passa com as crianças, busca-se um “gozo polimorfo”, sustenta-se uma “impunidade generalizada”, espera-se um “prazer imediato” e ilude-se com um futuro libertador de “toda” nossa insuficiência? Freud já havia pontuado, em sua também já clássica referência sobre o his majesty the baby, o lugar central, de majestade, devotado à criança nos dias de hoje, anotando o quanto os pais esperam que seus filhos realizem “o que eles não conseguiram realizar”.

Mas não estaríamos em condição de invectivar que toda esta “hiperbolização” da infância guarda relações com os nossos principais impasses com ela? Afinal, reclamamos hoje de uma “criança sem limite”, mas que limites esperamos dela? As novas patologias com as quais a marcamos se caracterizam pelo, excesso, o sem limite: “hiper”- ativa; “super”- dotada etc., ou pela escassez, a deficiência: déficit de atenção. Ambos signos da dinâmica capitalista, que tem entre suas primordiais operações a promoção do fator quantitativo (mais, menos; maior, menor) acima do qualitativo (VOLTOLINI, 2008).

Aprofundar as produções teóricas acerca da superdotação possibilita irmos além da compreensão superficial e aparente dos discursos que predominam nos contextos escolares. A necessidade de escutar os pedidos que chegam às escolas, instituições que se dedicam ao assunto, assim como aos consultórios médicos e psicológicos possibilitará novas formas de compreender a dinâmica em que tal criança se constitui, e o lugar que ocupam na estrutura social e familiar.

Notas
¹ Professora PPG Educação UFRGS, Coordenadora NEPPE.

Referências

VOLTOLINI, Rinaldo. A escola e os profissionais d’A criança. In: FORMACAO DE PROFISSIONAIS E A CRIANCA-SUJEITO, 7., 2008, São Paulo. Anais eletrônicos.

Marcele Teixeira Homrich – Psicólogo/Psicanalista, Mestre em Educação (Unisinos), Doutoranda em Educação – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é docente no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo, Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, Brasil. [email protected]

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Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico – ORLANDI (RF)

ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 5. ed., 2007. ALMEIDA, Risonete Lima de. A leitura no ensino fundamental: um gesto simbólico situado no entremeio dos sentidos. Revista FACED, Salvador, n. 20, p. 125-126, jul./dez. 2011.

O ensino de língua portuguesa na escola fundamental deve legitimar a prática da leitura e promover inovações a partir do que diz Orlandi em considerações reveladoras de nova concepção de língua e de ensino. O que se torna possível quando situa a língua como um texto que circula na instituição escolar, constituído histórico-socialmente e que permite produção de sentidos diversos.

A idéia de língua aqui situada, doravante texto, nos remete ao ensino que busca transpor a simples idéia de inteligibilidade do sujeito que o situa apenas no sistema formal, para a ideia de compreensão como condições sine qua non de produção de sentido. Compreender é, pois, “[…] explicitar os processos de significação que trabalham o texto”. (p. 88) Neste sentido, rechaça-se a concepção de interpretação que restringe aos sentidos que simulam alguns livros didáticos e práticas de ensino da língua. Defende-se a interpretação vista como gesto simbólico – a compreensão, ato que representa, que projeta sentidos através de seus mecanismos de funcionamento.

Ao gesto simbólico é dada a característica de ampla dimensão, pois o privilégio da interpretação pressupõe o sujeito e a sociedade como um todo, o que inclui suas instituições (a escola, o aluno, o professor, a família etc.). Pressupõe também os diferentes mecanismos interpretativos na relação com as diversas linguagens, nas distintas posições dos sujeitos. Sujeito histórico, social, descentrado de sua origem porque ele próprio é um lugar de significação.

Portanto, o ensino da língua portuguesa não deve ser mediado apenas pelo texto escrito. A ideia de sentidos leva a pensar os diferentes gestos de interpretação, possível apenas a partir das variadas formas de linguagem e, geralmente, de distintas materialidades (música, imagens, pintura, projeção fílmica, escrita etc.) que significam. Assim o é porque o gesto carrega a incompletude que liga língua e historia na produção de sentidos. Os sentidos não se fecham, não são evidentes em uma única dimensão.

O ensino, assim, solicita o caráter multidimensional do espaço simbólico em que o texto se insere e exige daquele que ensina e aprende o saber que “[…] há uma necessidade que rege um texto e que vem da relação com a exterioridade”. (p. 15) Ao professor cabe permitir que se desloquem os sentidos, que se desconstru¬am o já aparente, o já dito, que permitam o equivoco, pois este avança em direção a uma outra significação. Isto porque o texto não é sistema que disponibiliza sentido próprio a partir de propriedades intrínsecas.

Nessa perspectiva o lugar de conhecimento é diferente daquele da interdisciplinaridade. É o lugar do entremeio, onde linguagem e exterioridade constitutiva são indissociáveis porque prevalece a noção de discurso e que não separa linguagem e sociedade na história. Lugar onde o linguístico não é propriedade da linguística, pois os sentidos do texto não combinam com o reducionismo teórico. Se assim não o fosse os professores da educação infantil e das séries iniciais estariam excluídos do gesto simbólico quando trabalham práticas de leitura.

Situar-se no entremeio, no efeito de sentidos entre locutores, é condição de leitura. A interpretação e a legibilidade são garantidas a partir da conjugação necessária da língua com a história – o discurso, produzindo a impressão da realidade. Assim sendo, não se fala em ensinar conteúdos, em relação termo-a-termo entre pensamento/linguagem/mundo (conteudismo), mas de fato – observação de como o texto, na condição de objeto simbólico, funciona. Assim dito, o texto é o fato de linguagem e “[…] os estudos que não tratam da textualidade não alcançam a relação com a memória da língua”. (p. 58)

Ao aluno deve ser dada a oportunidade de se situar como autor dos sentidos que perpassam o ensino e a aprendizagem do texto, o que significa a oportunidade de revelar que o seu dizer historiciza, que o seu discurso é interpretável, de representar e se representar, de ser reconhecido como produtor de um evento interpretativo. Porque ele, sujeito ativo, determina a constituição dos sentidos, embora este processo escape ao seu controle con¬ciente e às suas intenções, como falha necessária.

Risonete Lima de Almeida – Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING/UFBA; Supervisora do Curso de Especialização em Educação Infantil – MEC/SEB/UFBA; Professora da UNEB – Departamento de Letras – Campus II.

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Educação física inclusiva na escola: em busca de uma escola plural – SOLER (RF)

SOLER, Reinaldo. Educação física inclusiva na escola: em busca de uma escola plural. Rio de Janeiro: Sprint, 2005. Resenha de: CRUZ, Marlon Messias Satana. Revista FACED, Salvador, n. 20, p. 127-133, jul./dez. 2011.

O autor nos mostra uma proposta de intervenção no sentido de inclusão de alunos com deficiência na educação física Escolar. Partindo de conceitos e na perspectiva de excluir o preconceito, o autor apresenta alguns conceitos básicos a respeito da Educação especial como: Educação Especial: processo de desenvolvimento global das potencialidades de pessoas com deficiência, de condutas típicas e de altas habilidades e que abrange os diferentes níveis e graus do sistema de ensino. Fundamenta-se em referências teóricas e práticas, compatíveis com as necessidades específicas de cada aluno. O processo deve ser integral, fluindo desde a estimulação essencial até os graus superiores do ensino. Sob o enfoque sistêmico, a educação especial integra o sistema educacional vigente, identificando-se com sua finalidade, que é a de formar sujeitos conscientes e participativos.

Alunado da Educação Especial: é constituído por educandos que requerem recursos pedagógicos e metodologias educacionais específicas. Genericamente chamados de portadores de necessidades educacionais especiais, classificam-se em: pessoas com deficiência (visual, auditiva, mental e múltipla), portadores de condutas típicas (problemas de condutas decorrentes de síndromes de quadros psicológicos e neurológicos que acarretam atrasos no desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social) e os de altas habilidades (com notável desempenho e elevada potencialidades em aspectos acadêmicos, intelectuais, psicomotores e artísticos).

Pessoa com Deficiência: é a que apresenta, em comparação com a maioria das pessoas, significativas diferenças físicas, sensoriais ou intelectuais, decorrentes de fatores inatos e/ou adquiridos, de caráter permanente e que acarretam dificuldades em sua interação com o meio físico e social.

Pessoa Portadora de Necessidades Especiais: é a que, por apresentar, em caráter permanente ou temporário, alguma deficiência física, sensorial, cognitiva, múltipla, ou que é portadora de condutas típicas ou ainda de altas habilidades, necessita de recursos especializados para superar ou minimizar suas dificuldades.
Aluno Com Necessidades Educativas Especiais: é aquele que, por apresentar dificuldades maiores que as dos demais alunos, no domínio das aprendizagens curriculares correspondentes a sua idades (seja por causas internas, por dificuldades ou carências do contexto sociofamiliar, seja pela inadequação metodológica e didática, ou por história de insucessos em aprendizagens), necessitam, para superar ou minimizar tais dificuldades, de adaptações para o acesso físico (remoção de barreiras arquitetônicas) e/ou de adaptações curriculares significativas em várias áreas do currículo.

Educação Inclusiva: por educação inclusiva se entende não só o processo de inclusão dos alunos com deficiência ou de distúr¬bios de aprendizagem na rede comum de ensino em todos os seus graus, mas fundamentalmente de todas as diferenças, pois hoje é o fato que cada ser humano é uno, e as oportunidades devem ser iguais para todos. A primeira escola de todas as pessoas deve ser a escola regular.

Reinaldo Soler nos mostra que na busca da educação inclusiva a metodologia ideal é a pedagogia transdiciplinar de Nicolescu (1997) e seus princípios são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser, aprender a viver junto. Entretanto, na educação física a pedagogia cooperativa nos prepara melhor para esta tarefa da educação inclusiva.

Tratar de inclusão é uma tarefa difícil, pois apesar da sociedade sentir a necessidade de superar a prática exclusiva a uma prática inclusiva, as ações ainda, em muitos casos, ficam no plano das ideias estando longe da prática. O educador tem um papel fundamental neste processo, pois tem todos os elementos em seu poder e pode modificar toda uma cultura, exclusiva, por meio de suas aulas. Nesta perspectiva a escola passa a ser o espaço possível para que toda esta transformação possa acontecer, pois este é o espaço que devemos nos diferenciar dos outros e construir o nosso mundo.

A primeira escola de todas as pessoas poderá ser sempre a regular, porém após avaliação, se houver a necessidade da escola especial, este aluno deve ser remanejado para esta. Entretanto, a primeira opção deve ser sempre a oportunidade de conviver e aprender com todas as diferenças, tendo sempre as mesmas oportunidades. Os educadores têm o dever de oportunizar aos alunos com deficiência uma inserção em uma escola regular independentes dos resultados futuros. E os pais devem dar a confiança e segurança necessária para matricular seus filhos em uma escola de ensino regular, a construção de uma escola inclusiva dever ser compromisso de toda a sociedade.

Muitos são os mitos e preconceitos que fazem com que a sociedade tenha um comportamento errôneo perante os alunos com deficiência, pode-se entender que ao longo do convívio, paralelo a educação, formam os conceitos, as idéias e opiniões sobre este público. Existe a real necessidade em conviver com a pessoa com deficiência, para superar preconceitos, entendê-las e reconhecer que a diversidade é real. Sem preconceitos traçamos um caminho para uma sociedade menos injusta, que acolhe as diferenças e as valorize.

Passeando pela história, o passado nos mostra que a educação física já foi responsável por discriminações dos alunos com deficiência das escolas regulares, em 1938 de acordo com o decreto 21.241, a matrícula de alunos especiais foi proibida com o argumento que o estado dos alunos o impediria permanentemente de participar das aulas de educação física. Já na atualidade podemos perceber que a educação física superou preconceitos e se transformou em relação aos alunos especiais, tomando como exemplo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1996), onde nos mostra esta mudança de enfoque:

“Por desconhecimento, receio ou mesmo preconceito, a maioria dos portadores de necessidades especiais tendem a ser excluídos das aulas de educação física. A participação nessa aula pode trazer muitos benefícios a essas crianças, particularmente no que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades perceptivas, afetivas de integração e inserção social, que levam este aluno a uma maior condição de consciência, em busca da sua futura independência.” (p. 40)

O professor de educação física deve passar por todo este processo de transformação, para que possa incorporar o devido tema a sua pratica pedagógica, para que suas aulas, que já trata tantas outras diferenças, passe a respeitar esta necessidade especial. E, sobretudo, assumindo a questão da sociedade inclusiva como sua.
Os alunos com deficiência podem se relacionar bem com qualquer pessoa, principalmente com aqueles que os entendem, e para entendê-los não é preciso pré-requisitos, basta tratá-los com igualdade, sem restrições, muito menos pena, ou proteção exagerada, e, sobretudo, acreditam em suas potencialidades. Podemos citar que os portadores de deficiência física e os portadores de deficiência sensorial estão se integrando gradativamente à vida da comunidade escolar. E, ainda persistem, em grau mais elevado, preconceitos em relação àqueles que possuem deficiência intelectual. A escola valoriza a mente, e se esta mente não produz como o esperado, então está sujeita a exclusão e ao isolamento. Os portadores de deficiência intelectual são mais capazes do que muitos estereotipam, basta que lhe dê um espaço e respeite sua individualidade.

Devemos nos livrar de qualquer tipo de preconceito com os alunos com deficiência, e enxergá-los como pessoas mais que eficientes, e para isso o papel do educador é essencial. A sociedade em geral será beneficiada com esta mudança de enfoque, pois assim esta estará mais justa e solidária. Esta mudança profunda de comportamento depende preferencialmente do esforço de pessoas comprometidas com o processo educacional.

Não podemos mais aceitar a exclusão como algo normal, pois ultimamente está havendo avanços em relação em uma nova escola, agora inclusiva. A inclusão é uma grande oportunidade para as escolas se transformarem e se modernizarem e também uma chance, tanto do poder público como da iniciativa privada, investir no aprimoramento dos seus professores investindo em formação, tornando-os competentes para lidar com a diversidade, visando uma transformação tanto na escola quanto na sociedade.

Entretanto, devemos entender a diferença entre interação e inclusão, na interação a escola não muda e a permanência da criança é condicionada às suas possibilidades. Já na inclusão, a escola deve mudar e se adaptar as diferenças, e não ao contrário. Existe uma grande necessidade em conhecer melhor a questão da inclusão/interação, e isto é reforçado também por meios de leis e portarias que tentam sanar, por meio de esclarecimento, alguns preconceitos a respeito da inserção do aluno com deficiência na escola regular. Os cursos superiores na área de educação necessitam de disciplinas específicas que visem focalizar melhor o assunto.
Contudo, uma escola regular não se torna inclusiva somente em receber alunos especiais nas suas classes, torna-se inclusiva quando se reestruturam, tanto no espaço físico quanto pedagogicamente, para atender os novos alunos em termos de Necessidade Especiais.

Apesar da inclusão de alunos com deficiência na rede regular de ensino ser um direito garantido pela constituição federal, para que ela realmente se efetive é necessário que a comunidade escolar esteja preparada para esta mudança. A inclusão apóia e defende a participação de todo o universo escolar, professores, diretores, funcionários, alunos e comunidade. O sucesso da inclusão está diretamente ligado ao trabalho desenvolvido por toda comunidade escolar.

Especificando em educação física, independente de qual seja o conteúdo escolhido, os processos de ensino-aprendizagem deve considerar as características dos alunos em todas as suas dimensões (cognitivas, corporal, afetiva, social e estética), garantindo a participação de todos independente do seu comprometimento motor, sensorial, cognitivo. A participação do aluno com deficiência na aula de educação física é muito relevante no sentido que os alunos possam desenvolver suas capacidades perceptivas, afetivas, de integração, e de inclusão social, favorecendo a sua autonomia e independência, estabelecendo e ampliando cada vez mais suas relações sociais, aprendendo aos poucos a articular suas idéias, respeitando as diferenças e desenvolvendo atitudes de ajuda e colaboração.

O professor de educação física deverá fazer as adequações necessárias, nas regras, nas atividades, na utilização do espaço, utilizando de recursos que estimule a participação de todo grupo, dando possibilidades que favoreçam a sua formação integral. A aula de educação física deve ser um exercício de convivência, em que os alunos aprenderão a construir uma nova sociedade, sem discriminação, e com atitudes de solidariedade, respeito e aceitação, não havendo lugar para o preconceito e a exclusão.

O papel do professor de educação física na inclusão, como em qualquer modalidade de ensino, é o de intermediar novos aprendizados, apresentando aos seus alunos o novo e o desconhecido, pois diante do desafio, o aluno tende a assimilar melhor o conhecimento, idealizando os recursos motores e mentais que possuem. O professor deve entender que utilizando o lúdico, que é a linguagem infantil, poderá avançar muito mais no aprendizado, já que, o que prende uma criança a uma atividade é a alegria e o prazer de brincar.

É necessário criar alternativas para o fim desta exclusão que torna a todos nós perdedores. Uma proposta sugerida é basear o trabalho na pedagogia cooperativa, tentando com isso criar uma nova ética, uma ética cooperativa, nesta perspectiva o professor deve possuir habilidades para integrar o grupo reforçando a cooperação. O papel do professor é fundamental nessa perspectiva, porém a ideia é que o grupo possa se tornar cada vez mais independente, autônomo e criativo. Desta forma estimula cada vez mais a autoestima dos alunos. Ter uma autoestima saudável é fundamental para que a pessoa possa tentar aprender e ensinar com cada vez mais entusiasmo. A autoestima é formada pela imagem que cada pessoa tem de si mesmo, somada ao autoconceito desenvolvido a partir de incentivos e informações que recebe de seu meio social. O papel do professor é fundamental para que os alunos construam uma autoestima positiva, ou seja, a maneira como eles vêem a sim mesma. Podemos e devemos como professores, estimular o crescimento da autoestima dos alunos em todo momento, essa é uma das funções do educador, pois o sucesso dos alunos depende e está intimamente ligado a uma autoestima saudável.

Dentro desta perspectiva, podemos citar que são inúmeros os benefícios da inclusão dos alunos com deficiência nas escolas regulares e principalmente nas aulas de educação física, pois quando se participa junto com outras pessoas acontece o aumento da autoestima, melhoria da competência física e social e também um aumento na variedade de modelos sócias propiciados pela diversidade dos participantes. Os benefícios da inclusão de alunos com necessidades educativas especiais na escola regular são evidentes, apesar das dificuldades, e o aprendizado é mútuo, tanto alunos com deficiência ganham, quanto os alunos da rede regular de ensino.
A escola deve ser estruturada visando à formação crítico¬-reflexiva e ativa do aluno na construção da sua identidade, da sua cidadania, por ser um dos primeiros espaços de convivência social, onde ele passa uma considerável parte de sua vida e toma conhecimento de seus primeiros aprendizados.

Em face disso, a acessibilidade – direito e condição de acesso aos lugares, às pessoas e às atividades humanas, de todos os cidadãos – deve ser promovida pelas instâncias e políticas públicas a fim de propiciar a inclusão de todas as pessoas, deficientes ou não. A criação das condições reais de acesso à escola é fundamental para que se possa conceber um ambiente inclusivo.

Marlon Messias Satana Cruz – Universidade do Estado da Bahia – DEDC Campus XII. Email: [email protected]

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Jörn Rüsen e o ensino de história – SCHMIDT et al. (RBHE)

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Resende Martins. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Consciência histórica, mudança social e ensino de história. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 11, n. 2 (26), p. 191-197, maio/ago. 2011.

A obra de Jörn Rüsen começa a ser traduzida com maior regularidade no Brasil. Isso se deve a vários fatores, dentre os quais, a formação de grupos que se preocupam com a introdução da teoria da história e da história da historiografia de cunho alemão no país, ao amadurecimento da pesquisa histórica, a maior preocupação com questões de método, ao fortalecimento de um diálogo interdisciplinar, e, no interior dessas questões, a própria contribuição que traz a obra desse autor.

Até agora o leitor brasileiro tinha acesso a um pequeno conjunto de artigos traduzidos e publicados em revistas especializadas do país, a partir do final dos anos de 1980, e a sua trilogia sobre teoria da história (2001, 2007a, 2007b). Com a publicação desse livro, o leitor tem a oportunidade de verificar que as contribuições desse autor se estendem para além do campo da teoria, metodologia e história da historiografia, e conjugam também o campo da didática e do ensino de história. Para os menos próximos do conjunto dos textos e da trajetória de Rüsen, isso talvez possa parecer um tanto quanto estranho. No entanto, nada mais articulado do que também tratar da didática e do ensino de história. Como Estevão Martins nos informa, sua bibliografia articula história, filosofia, antropologia e historiografia “de modo comparativo, debruçando-se sobre as grandes linhas culturais do mundo comtemporâneo – em seus contatos e em seus estranhamentos” (p. 7). Além disso, a própria condição docente nas universidades alemãs vinculava a cadeira que ocupou, entre os anos de 1970 e 1990 – de 1974 a 1989 na Universidade de Bochum e de 1989 a 1997 na de Bielefeld –, na conjugação de parâmetros reguladores, para o de teoria, metodologia, historiografia e didática da história. Em virtude disto, para Martins, sua proposta de reflexão quanto aos critérios de orientação do agir humano no tempo, de modo que se viabilize suprir as carências existenciais, que constata serem corriqueiras entre nós, fá-lo propor linhas de análise quanto à expressão narrativa nas suas três versões mais comuns: a da linguagem do quotidiano, a da historiografia e a da linguagem do ensino (p. 9). Leia Mais

Educação Especial: diálogo e pluralidade – BAPTISTA et al (REE)

BAPTISTA, C. B.; CAIADO, K. R. M.; JESUS, D. M. Educação Especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Mediação, 2008. 301p.
Resenha de: DAINÊZ, Débora. Revista Educação Especial, Santa Maria, v.24, n.40, p.305-308, maio/ago., 2011.

O livro titulado Educação Especial: diálogo e pluralidade, publicado em 2008 pela Editora Mediação, é a continuidade de um importante debate em que autores expõem suas tendências diante de questões sobre educação, educação especial e processos inclusivos. Essa composição de ideias que se articulam no âmbito dessa obra, foi organizada na forma de encontros sistemáticos de um grupo de pesquisadores responsáveis pela coordenação de grupos de estudos em diversas universidades brasileiras. Nesses ciclos de estudos, tem-se procurado divulgar os resultados das análises e debates em livro, contribuindo com a tarefa de formar educadores e pesquisadores na área da educação.

Perfazendo um total de 301 páginas, esta obra nos convida – profissionais da educação, formadores, pesquisadores, docentes e discentes da área – a fazer parte do círculo de discussões que se travam em torno das políticas públicas de educação especial no Brasil, e das relações dessas políticas com a prática pedagógica nas escolas. Também nos incita a perseguir em que medida o conhecimento e a difusão de princípios pautados na inclusão têm produzido efeitos nos nossos modos de compreender e conceber os sujeitos que integram os processos de escolarização.

O livro está organizado de forma a contribuir com a investigação das relações entre o avanço do conhecimento e as práticas pedagógicas que constituem um enorme desafio quando se concebe a possibilidade de uma escola cuja história que comporta regularidades e mudanças.

Essas preocupações estavam em consonância nos textos debatidos no seminário de estudos – III Seminário Nacional de Pesquisa em Educação Especial: diálogo e pluralidade – que ocorreu em São Paulo, em agosto de 2007, resultante da ação organizadora que congregou três programas de pósgraduação em educação de diferentes universidades (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Universidade Federal do Espírito Santo e Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Juntamente com essas instituições, outras 15 universidades brasileiras estiveram representadas por professores e estudantes que participaram de mesas temáticas que, neste livro, compõem as diferentes partes. Essas mesas aconteciam na dinâmica que previa um texto disparador do debate, que é apresentado como texto inicial de cada uma das oito partes que compõem este livro, seguido dos textos dos debatedores. Os temas apresentados são diversos e as respectivas discussões revelam a pluralidade de perspectivas teórico-práticas sobre a inclusão.

O livro é formado por oito partes, nas quais circulam diversos argumentos e pontos de vistas. Na Parte I do livro, apresenta-se uma discussão sobre a política de inclusão que está atualmente em vigor no Brasil. Os autores que compõem essa parte problematizam os documentos constituídos por discursos políticos que chegam até as unidades escolares imprimindo marcas nas consciências dos sujeitos da educação, o que gera ambiguidades na orientação do processo educacional.

Um diálogo sobre as contribuições da abordagem histórico-cultural na pesquisa em educação especial constitui a segunda parte dessa obra. Um dos principais argumentos é de que ainda a educação especial não está articulada, em termos teórico-práticos, com a educação geral. Os textos indicam que a fórmula da inclusão escolar está posta e incorporada, instigando-nos a suspeitar daquilo que parece tácito para que mudanças aconteçam nas práticas.

A terceira parte do livro traz um diálogo sobre o pensamento epistemológico e sistêmico do biólogo inglês Gregory Bateson e a educação, salientando que a deficiência não é só um fato biológico. Aponta para o compromisso ético de pesquisadores na reestruturação da educação, compromisso esse que ganha contornos quando nos colocamos frente aos sujeitos estigmatizados pela deficiência, cuja condição ainda é de exclusão.

A parte IV trata das implicações da sociologia de Pierre Bourdieu na educação especial, mais especificamente, problematiza a questão da escolarização e deficiência como expressão dos processos de inclusão e exclusão escolar. Os autores mostram que as noções de capital cultural e capital social incitam pensar sobre as situações sociais e escolares vividas por pessoas com deficiência, bem como o destino social destas. Também chamam a atenção para as expectativas de determinados comportamentos por parte da escola em relação às pessoas economicamente desfavorecidas, sendo as desigualdades sociais apagadas ou interpretadas como diferenças naturais entre indivíduos. Em outras palavras, a ideologia legitima e justifica as diferenças.

Contribuições quanto à pesquisa-ação nas investigações das práticas de educação inclusiva são trazidas nos debates entre os textos da quinta parte do livro. As discussões tecidas acerca da pesquisa-ação, mais especificamente o exercício de análise de seu movimento de constituição baseado nas perspectivas emancipatórias e institucionais, assinalam o contexto das práticas escolares e a questão da formação continuada de professores.

Reflexões sobre as práticas pedagógicas e os desafios para a produção do conhecimento no campo da educação especial são ilustrados na VI parte. Os autores, considerando as escutas e dialogando com as interrogações de alunos do curso de pedagogia sobre a escola inclusiva e, mais detidamente com alunos com necessidades educacionais especiais que estão na universidade, levantam questões sobre a formação de professores, o conhecimento e a prática em sala de aula no contexto da educação inclusiva.

A parte VII contempla uma pertinente conversa sobre história, arte, imaginação e educação especial, trazendo reflexões pertinentes sobre o ensino de arte e a promoção de práticas artísticas voltadas a pessoas com deficiência.

Os textos ressaltam que os desafios a serem enfrentados por um projeto de ensino de arte na educação inclusiva diz respeito às representações que ainda circulam em nossa sociedade acerca da impossibilidade de simbolizar, de criar do aluno com deficiência.
A última parte que compõe essa obra remete à questão da acessibilidade na educação especial e é enredada por textos que discutem o conceito de acessibilidade em termos históricos, nos meandros da legislação e a partir de sua vinculação com a tecnologia assistiva para a construção de uma escola inclusiva.

Os debates e embates desencadeados possibilitam aos leitores nuclear as possibilidades e desafios vivenciados pelos sujeitos com deficiência nas condições da educação contemporânea brasileira, atentando-se aos modos de produção e incorporação das práticas. Considerando a deficiência como um fenômeno que, para além de sua origem orgânica, é construído socialmente, marcado pelos modos como o problema é compreendido e enfrentado nas condições históricas, a escola ocupa um lugar fundamental no processo de formação social dessa deficiência.

Por fim, consideramos que desenvolver uma resenha da obra em questão, que trata de um assunto atual e polêmico, foi um desafio, no sentido de não perder o que há de mais precioso em sua composição, isto é, a diversidade temática e as diferentes formas de abordar o mesmo problema, qual seja a educação inclusiva, que, por meio dessa dinâmica dialógica entre os autores, vai tomando contornos variados e multifacetados.

Recomendamos ao leitor enveredar-se por essa instigante trama discursiva, apropriando-se das ideias, tecendo interpretações próprias, elaborando conhecimentos e criando novos argumentos.

Débora Dainêz – Professora doutoranda da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil.Email: [email protected]
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Saturação – MAFFESOLI (ER)

MAFFESOLI, Michel. Saturação. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010. Resenha de: DORNELES, Malvina do Amaral. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 2, p. 627-632, maio/ago., 2011.

Pode-se dizer que o politeísmo teórico que caracteriza a Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é referência da diversidade de pontos de vista que podem ser compartilhados numa instituição educativa e apresentam-se como múltiplos portais de mundos e possibilidades do conhecimento. Mostra uma vocação institucional de pensar, o fazer e o pensar, do fazer pedagógico em espaços escolares e não escolares referidos às complexidades do estar-junto nas diferentes dimensões que compõem as socialidades dos seres humanos. Uma incomensurável ancestralidade intelectual mostra-se e adquire carne e consubstancia-se nas mentes, nos corpos e nos espíritos daqueles que os estudam, os debatem, os acolhem, em seus estudos e pesquisas, em suas atitudes, em suas manifestações do viver e conviver. É nesse banquete pagão que Michel Maffesoli, nela presente em diversos estudos e pesquisas em educação, pode ser devidamente, e confortavelmente, apresentado.

Esse pensador francês é conhecido e respeitado pelos seus estudos sobre a Pós-Modernidade, o Imaginário, a Cultura, no contexto da Sociologia do Cotidiano, da qual pode ser considerado um dos maiores entre os seus fundadores.

É professor da Université de Paris-Descartes – Sorbonne, secretário geral do Centre de Recherche Sur L’Imaginaire, vice-presidente do Institut International de Sociologie (IIS), membro do Institut Universitaire de France (IUF), autor de algumas dezenas de livros traduzidos em várias línguas, grande parte disponível na língua portuguesa.

Nesse cerimonial delicado, o de decifrar a dizibilidade de um livro, a publicação de 2010, pela Editora Iluminuras Ltda., de São Paulo, e o Observatório Itaú Cultural, traduzida por Ana Goldberger, pode encarnar um apresentar-se de Michel Maffesoli aos leitores iniciados e não iniciados. Intitulado Saturação, o livro junta dois textos, editados originalmente pela CNRS Éditions, na forma de dois livros, cada um com título próprio: Apocalipse e Matrimoniun: pequeno tratado de ecosofia. O primeiro foi publicado, também em 2010, pela Editora Sulina, de Porto Alegre, sob o título Apocalipse: Opinião Pública e Opinião Publicada. A iniciativa brasileira de reunir os textos foi acolhida pelo autor, que lhe conferiu o título Saturação e acrescentou um Prefácio à Edição Brasileira. Neste, explica o significado da palavra título:

“[…] processo, quase químico, que dá conta da desestruturação de um dado corpo e que é seguida pela reestruturação desse corpo com os mesmos elementos daquilo que foi desconstruído […] vida e morte ligadas numa combinação íntima e infinita” (Maffesoli, 2010, p. 12).

Autor polêmico, inovador, provocador, revolve com elegância a etimologia, adentra sem pudor pela semântica, criando neologismos instigantes, profundos, abissais, que compõem, com lirismo e leveza, uma cosmovisão paradoxal da tragédia de seres humanos sem qualidades, comuns, ordinários, que criam, pela ética da pertença, a estética do viver societário. Sua forma singular de pensar o Cotidiano, a Cultura, apresenta como fundamento uma disposição de ver o mundo assim como ele é e não a partir de um julgamento “daquilo que existe em função do que deveria ser” (p. 48).

Sem ser otimista, mostra um olhar generoso, que aprecia o que está sendo vivido; que privilegia a dimensão trágica do dizer sim à vida, ao que existe, ao estar-junto ético-estético-afetualemocional; que “substitui a perfeição pela completude” na “aceitação do claroescuro da existência” (p. 63). Tudo isso num tempo paradoxal, desconcertante, tribal, em que os fenômenos para existir precisam apresentar-se, rompendo com as “costumeiras representações filosóficas” (p. 90). Daí a prevalência, nas suas obras, da apresentação das coisas sobre a sua representação, da sua mostração sobre a demonstração. No entanto, “[…] retornar ao simples, àquilo que é simplesmente a vida, necessita uma forma de conversão do espírito” (p. 97). Para Maffesoli, nada mais, nada menos, do que deixar de odiar o presente, abandonar o ressentimento, o desprezo e a hostilidade por aqueles que negam este mundo, por achá-lo imundo, infame, por recusá-lo assim como existe.

A palavra Apocalipse, de origem grega kaliptô (cobrir, encobrir, ocultar) e apó (descobrir, desvendar, revelar), toma o sentido de revelação. É esse entendimento que conduz todo o seu argumento. Ao afirmar que, “quando uma civilização já deu o melhor de si mesma, ela sente a necessidade de retornar a sua origem” e que, “invertida, ela se transforma em cultura” (p. 21), ele mostra o design da sua reflexão: é como se fosse um bordar em ponto cheio. Ao mesmo tempo em que introduz a agulha com linha (a da crítica) no tecido (quando, por exemplo, afirma (p. 14) que as “[…] fundações arquitetônicas do mundo ocidental – Indivíduo, Razão, Economia, Progresso – estão saturadas”), puxa a mesm agulha com seu fio de linha, compondo uma trama, bordando o argumento para esse “misterioso ectoplasma que é a crise” (p. 21), apresentando um novo ponto de vista para este mundo que aí está. Crise esta que “[…] acontece nos momentos em que, em seguida a uma aceleração ou mesmo intensificação da energia, o corpo (físico, social, individual, místico) alcança seu apogeu”, e que, “por um curioso paradoxo, inverte-se em hipogeu”, ou seja, “retorno ao subterrâneo, retorno ao túmulo, símbolos de uma reconstrução futura” (p. 21). Por isso, “[…] nos períodos de mudança é urgente encontrar palavras, […] que, pouco a pouco, (re)transformam-se em palavras fundadoras, ou seja, garantem a instalação do estar-junto que está emergindo” (p. 19).

Essa crise apocalíptica decorre da saturação de três dimensões sociopolíticas preciosas à Modernidade: a opinião pública, a sociedade e o contrato social. Para o autor, “[…] a economia da salvação, depois a economia stricto sensu, a história da salvação, depois a história consolidada em si mesma, terminando, nesse esquema, na primazia do Político” (p. 30), resultou numa opinião pública confundida com opinião publicada. Esta, “[…] não deixa de ser uma opinião, mas pretende ser um saber, uma competência, até mesmo uma ciência” (p. 20). Ao mesmo tempo, a opinião pública, enquanto tal, “tem consciência da sua fragilidade, de sua versatilidade, em suma, de sua humanidade” (p. 20). É uma nova opinião pública emergente, cuja vitalidade irreprimível transfigura o político através de uma ética da estética, onde “o jogo das paixões, a importância das emoções, a pregnância dos sonhos” (p. 28) constituem o cimento coletivo. A primazia da estética “é tão evidente que a própria política teatralizou-se” (p. 31).

Sua afirmação de que “a época trocou de pele” (p. 26) é uma provocação aos sistemas de interpretação, cujas evidências intelectuais se ressentem de saudades onipresentes, sejam as de um paraíso perdido, sejam as de um paraíso futuro. Para o autor, evidente é o fato de que o estar-junto em curso “neste mundo e não num outro porvir” (p. 23) não é mais o “[…] simples social de dominante racional, tendo por expressão o político e o econômico, mas sim uma outra maneira de estar junto, em que o imaginário, o onírico, o lúdico, justamente, ocupam um lugar primordial” (p. 27). A essa outra maneira de estar-junto denomina de societal, constituída pelas socialidades das tribos pós-modernas. Nestas, o predomínio do presente, do instante, tem pouco a ver com a ideologia moderna de projeto. O presenteísmo privilegia a estética, presta atenção ao ethos local, ao lugar. Pode ser “uma ética, às vezes imoral, que se manifesta nas inúmeras efervescências da vida social” (p. 25). Se a isso se acrescenta “[…] a tônica colocada no qualitativo, a recusa da pilhagem produtivista, a rebelião contra a devastação dos espíritos” (p. 29), esse estar-junto ético-político, inspira temor, engendra uma opinião publicada que estigmatiza, principalmente, as tribos dos bairros distantes e das diversas periferias urbanas.

As novas socialidades mostram realidades que obrigam a constatação da heterogeneidade, do politeísmo de valores, da “[…] reafirmação da diferença, dos diversos localismos, das especificidades das línguas e das culturas, das reivindicações étnicas, sexuais, religiosas, dos vários agrupamentos em torno de uma origem comum, real ou mitificada” (p. 38). É o tempo das tribos, que ocupam o espaço público e celebram um “vínculo social fundado na disparidade, no policulturalismo, na polissemia” (p. 39). Constituem uma coerência aberta que o termo medieval unicidade parece designar melhor, em lugar do ideal unitário e identitário em processo de saturação. Maffesoli as promove a um novo paradigma, caracterizado por um potente imanentismo, onde “o hedonismo, os prazeres do corpo, o jogo das aparências” constituem a aceitação de um mundo como ele é, “com tudo que isso comporta de trágico (amor fati), bem como de alegria” (p. 35). Nessa perspectiva, a política transfigurada se converte em doméstica, transforma-se em ecologia, designa o domus, o oikos, a “moradia comum que convém proteger da devastação a que fomos acostumados pela modernidade” (p. 36). Para o autor, um pensamento amplo, “que esteja altura de apreender as novas configurações sociais”, exige que os intelectuai abdiquem de “criar o mundo à imagem daquilo que se quer que ele seja” (p. 39).

A magnitude do que é proposto por Maffesoli é estonteante pelo paradoxo que compõe ao juntar a antiga noção de tribo com as mais diversas formas de solidariedades e sensibilidades emergentes, nelas incluindo todas as possibilidades apresentadas pelas novas tecnologias da informação e comunicação, as redes sociais, a vida on-line. Uma das suas definições para a pós-modernidade é a de que esta se constitui pela “sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico” (p. 40). Ao acompanhar a lógica argumentativa do autor, nem sempre fácil, pois se caracteriza por um pensamento em espiral (a espiralidade é uma característica do mundo vegetal, e também representa o elemento feminino), que foge da linearidade, chega-se ao âmago da sua disposição ético-política-afetual (mesmo não explicitada por ele como tal) para o que entende como sendo o estarjunto ético-político das socialidades presentes no mundo atual.

A exuberância dessas socialidades, que priorizam o sentimento de pertencer, a experiência vivida em comum, o enraizamento no aqui e agora, “[…] quer seja no território stricto sensu, quer nos territórios simbólicos que são os sites comunitários na Internet” (p. 53), acontece no contexto de múltiplas formas de pacto tribal (pacto ecológico, pacto governamental, pacto político, pacto afetivo, e tantos outros). Há a prevalência do envolvimento sobre o desenvolvimento: as tribos urbanas, “[…] com seus piercings, seus cabelos rebuscados e multicoloridos, com suas roupas em que o étnico disputa com o sofisticado” (p. 86), suas invenções de linguagem, sua abertura para o mundo anunciam um jogo de aparências, bem diferente da geração perdida ou cristalizada em devoções econômicas.

No entanto, enquanto “[…] a mãe terra, ‘Gaia’, recupera sua honra e a lei dos irmãos, feita de horizontalidade, tende a reencontrar alguma força e vigor” (p. 53), enquanto a verticalidade da “[…] lei do Pai, de um Deus único, ou do Estado onipotente, a do patriarcado e da predominância masculina, está superada” (p. 52), pergunta-se, então, onde está o consenso necessário a toda a vida em sociedade? Sua resposta é categórica: “[…] o consenso (cum sensualis) não se reduz à racionalidade, mas comporta uma forte carga emocional, […] põe em jogo paixões e afetos diversos” (p. 52). Daí ser significativo “o deslizar das palavras, do contrato ao pacto” (p. 53). Ao lembrar que o contrato social é “causa e efeito de um estarjunto puramente racional” (p. 46), o autor mostra seu desencanto e apresenta uma crítica implacável às elites intelectuais, constituídas de falsos professores e verdadeiros bandidos. Falsos professores porque “[…] aproveitando-se de sua posição – eles detêm o poder legítimo para dizer, publicar, escrever, agir, organizar – continuam a instilar e a pôr em prática as ideias de um mundo que acaba, cegos que são para o mundo que começa” (p. 46). Verdadeiros bandidos porque “[…] ao fazer isso, de uma maneira um tanto irresponsável, são eles que provocam as várias explosões, os comportamentos antissociais e as diversas formas de violência que pontuam a vida de nossas sociedades” (p. 47).

Maffesoli deixa claro que suas palavras não são mera provocação e que, tampouco, vê como sendo um paradoxo a impertinência de uma elite que se repete, que não encontra mais as palavras pertinentes, e mantém, impunemente, uma ficção da representação da realidade, através de teorias incendiárias, cuja defasagem não só envia alguns ao front, mas constitui “[…] o pavio curto da guerra civil latente que é um elemento notável da época” (p. 47). De maneira quase feroz, estilo incomum nos seus escritos, critica alguns métodos sociológicos voltados para a educação, principalmente aqueles presentes nas escolas de formação de professores, que, afirma, formam para o totalitarismo (ao julgar aquilo que existe em função do que gostariam que fosse), semeando o desprezo por este mundo e incitando, a priori, sempre dizer não ao que existe. Mesmo assim, apesar e para além, “o contracânone que opera no inconsciente coletivo” (p. 51) mantém-se como sensibilidade panteísta, a qual, no contexto de um pacto tribal, todos “[…] se dedicam a aproveitar como podem aquilo que se deixa ver e aquilo que se deixa viver” (p. 51). Eis aí um espetacular paradoxo, bem ao gosto e ao estilo do autor.

Como fundamento a esse contracânone, Maffesoli apresenta a noção de invaginação do sentido, para designar o retorno à natureza essencial das coisas, “ao nada fundador, ao vazio natural, ao dado protetor e matricial” (p. 107), característica também do espírito do tempo. Com o trocadilho (p. 59) “só tem sentido (significação) aquilo que tem um sentido (finalidade)”, define o ambiente específico da modernidade ocidental, em seu sentido etimológico, como espermático, projetivo, referendado em expressões filosóficas como logos spermatikus, ratio seminalis. Por outro lado, sua compreensão da metamorfose em curso pede um esclarecimento retrospectivo, um retroceder do derivado ao essencial, “[…] passar de um progressismo (que foi vigoroso, que deu bons resultados, mas que se torna um pouco doentio) para uma progressividade que reinveste em ‘arcaísmos’ povo, território, natureza, sentimentos, humores” (p. 62).

Ao citar uma inscrição que viu num muro de subúrbio, em Porto Alegre, Brasil – “A crise passa. A vida continua” (p. 61) – argumenta que “[…] o que está em jogo é uma forma de concordância com o ser do mundo em sua realidade múltipla” (p. 63). Não vê mais lugar para as quimeras relacionadas à noção de Progresso (e seu utilitarismo) com seu enfoque na imperfeição, alisando as dobras do ser, mas sim na noção de progressivo que as implica e as aceita (a imperfeição e as dobras). Tratase de “um sim, apesar de tudo àquilo que é” (p. 63). Uma aceitação, como atitude afirmativa, que confere, ao animal humano, a dimensão trágica de ser natureza.
Busca em Fernando Pessoa a definição de “sociologia das profundezas” para expressar, dar forma, “àquilo que, vindo de muito longe, fala através de nós” (p. 61), onde se encontra os arquétipos fundadores, sendo a “Grande Mãe, Terra Mãe, Gaia”, (p. 83) um deles. Esse seria o fundamento inconsciente da sensibilidade ecológica que, ao contrário do antropocentrismo, coloca em evidência aquilo que no homem “ultrapassa o homem” (p. 65); anuncia o vigor selvagem, ancestral, que “[…] reencontra uma nova vitalidade nas atividades dos jovens, nas multidões esportivas, nas histerias musicais e outras reuniões religiosas” (p. 64).

Apresenta-se sob a forma de um paganismo contemporâneo que se expressa no sucesso dos produtos bio, orgânicos, e na intensificação de valores relacionados ao terreno, ao território, ao lugar, onde “o lugar faz a ligação” (p. 104). E que traz consigo o chamado a uma qualidade de vida, uma vida cotidiana onde o bem-estar nada significa diante do “melhor-estar existencial em que a Mãe-Natureza desempenha um papel não negligenciável” (p. 86).

É o retorno a uma organicidade cósmica, uma geossociologia, cujas forças subterrâneas constituem as “origens de todos os adventos” (p. 97), e compõem “[…] essa atitude instituinte, em estado nascente, que se pode qualificar de holística, termo utilizado por Durkheim para designar o aspecto global da vida social” (p. 99). Talvez, essa lógica da conjunção, da copertença, esse matrimonium, seja um conhecimento que renasce “como uma espécie de ecosofia que ainda não sabe como nomear-se” (p. 101), mas que se capilariza nas práticas da vida corrente, na moradia, na alimentação, na vestimenta, mesclando corpo e espírito. Para Maffesoli, “mais vividas do que pensadas” e “pouco reconhecidas pelas instituições sociais” (p. 102).

Malvina do Amaral Dorneles – doutora em Ciências da Educação pela Universidad Católica de Córdoba. É professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua nas seguintes linhas de pesquisa: Políticas e Gestão de Processos Educacionais e o Núcleo de Estudos da Educação e Gestão do Cuidado. E-mail: [email protected]

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História da profissão docente no Brasil: representações em disputa – VICENTINE; LUGLI (RBHE)

VICENTINE, Paula Perin; LUGLI, Rosário G. História da profissão docente no Brasil: representações em disputa. São Paulo: Cortez, 2009. Resenha de: ALMEIDA, Cíntia Borges de; VILAÇA, Murilo Mariano. História da profissão docente no Brasil: representações em disputa. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 11, n. 1 (25), p. 243-250, jan./abr. 2011.

A presente resenha, uma arriscada prática de seleção sintetizadora é uma análise do livro História da profissão docente no Brasil: representações em disputa, de Paula Perin Vicentini e Rosário Silvana Genta Lugli. Professoras da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), respectivamente, ambas se doutoraram naquela universidade, com teses que tematizaram a profissão docente. Uma, através das imagens e representações sociais; a outra, pela constituição do campo de trabalho denominado magistério.

O livro focaliza a história do professorado primário e secundário do ensino público brasileiro, que é identificado como “[…] um grupo tão diverso em seu interior e submetido a condições tão distintas por todo o país […]” (Vicentini; Lugli, 2009, p. 24). Assim, fazer uma história da profissão docente é, para elas, lidar com processos profissionais e não profissionais que variam quanto aos lugares e públicos atendidos.

A perspectiva teórico-metodológica adotada é, por um lado, a sócio-histórica, fundando-se em António Nóvoa. A partir do conceito de profissionalização de Nóvoa, elas analisam a complexidade de relações, internas e externas à categoria, que concorreram para a formulação de estratégias de formação, o estabelecimento do espaço de atuação, das práticas e dos valores atinentes à docência. Por outro lado, é adotada uma metodologia de análise de fontes (leis, textos impressos, jornais) para construção de narrativas históricas, atentando para o conteúdo e para o lugar “de onde o discurso é produzido” (idem, p. 24). Utilizam fontes para apresentar a materialidade cotidiana do trabalho docente (os materiais escolares, a arquitetura escolar, os uniformes). Também são usados instrumentos como tabelas, iconografias e recortes de jornais. A partir dessas fontes, o livro expressa sua preocupação em elaborar uma narrativa sobre “o processo de organização e desenvolvimento da profissão docente no Brasil sem incorrer no equívoco de generalizar características de um determinado segmento para toda a categoria, ou de um estado para todo o país” (idem, p. 24).

A preocupação supra é pertinente, mas foi relativamente descumprida pelas próprias autoras. O esforço em historicizar o campo docente no Brasil ficou comprometido, ante o fato de terem dado especial lugar e largo destaque às experiências ligadas a São Paulo. Há, de fato, algumas referências a experiências em outros estados (Bahia, Sergipe, Minas Gerais etc.), mas elas geralmente aparecem para corroborar aquilo que fora identificado no contexto paulista. Essa é uma marca geral do texto, o que, a nosso ver, expressa um olhar bem específico sobre a história da profissão docente, que parece exprimir mais certa visão sobre São Paulo do que sobre o Brasil.

O período recoberto pela obra compreende marcos temporais diversos. Parte das Reformas Pombalinas do século XVIII, pois, segundo as autoras, em razão do inédito vínculo que estabeleceu entre a formação docente e o Estado, representariam um divisor de águas. Passa pelo século XIX, com aquilo que elas denominam de início das preocupações oficiais com o preparo docente e do movimento docente, haja vista, nesse caso, o surgimento das primeiras associações docentes, chegando ao XX, nos limites do qual analisam as imagens sociais do magistério.

O primeiro capítulo, intitulado “Como se preparavam os professores para o ensino? As instituições de formação”, analisa as instituições destinadas à formação docente, a partir do século XIX. Dentre as estratégias de formação docente, as autoras ressaltam as iniciativas das Escolas Normais, do Curso Primário Complementar (CPC), do curso superior de pedagogia e a Preparação dos professores secundários. No texto, as autoras dedicam-se à análise, sobretudo, das Escolas Normais (EN).

No que tange às EN, o trajeto analítico das autoras envolve os seguintes passos: (1) a abertura das primeiras EN na primeira metade do século XIX; (2) as dificuldades encontradas para a manutenção dessas escolas; (3) as estratégias de formação de professores, a discussão sobre os conteúdos pedagógicos e a lenta organização de estruturas burocráticas; e (4) o estabelecimento de um currículo próprio a partir da década de 1850.

Quanto aos empecilhos à manutenção das EN, destacam-se a precariedade das estruturas e a baixa procura, o que tornou frequente a notícia de fechamentos. Acerca do reduzido interesse, os motivos citados são o desprestígio da profissão, a baixa remuneração e a desnecessidade do diploma da EN para o exercício docente.

Os problemas da manutenção das EN foram apresentados como determinantes para que o CPC servisse como uma modalidade acessória de formação docente. Num aparente paradoxo com a supracitada ideia de baixa procura pelos Cursos Normais, afirmam que os CPC supriram os escassos cursos de formação de professores. Ora, se havia baixa procura, sobretudo em virtude dos motivos elencados, como falar em escassez?

O último registro sobre as estratégias de formação docente que julgamos pertinente ressaltar diz respeito à relação que as autoras sugerem entre Lei Orgânica do Ensino Normal (1946) e a decadência dessa modalidade de ensino, o que capitaneou um posterior investimento na formação em nível superior, através da criação dos cursos de pedagogia, especialmente a partir da década de 1930.

No capítulo seguinte, intitulado “Professores e escolas: as condições de trabalho”, defende-se a importância de se compreenderem as condições concretas em que ocorre o trabalho dos professores, para que se possa refletir sobre os processos de profissionalização docente no Brasil.

Nesse capítulo, são quatro os eixos. Primeiramente, elas abordam como os concursos para o ingresso à carreira docente foram paulatinamente constituídos e regulamentados. Envolvendo critérios diferenciados dos critérios tipicamente “morais” do século XIX, os concursos usariam critérios “mais” técnico-profissionais. Tal mudança é decorrente, por exemplo, do regulamento de 1936, que instituía provas escrita, oral, didática e prática. Em segundo  lugar, quando analisam as condições materiais do exercício da docência, são citadas a condição do mobiliário escolar e dos prédios, passando pela alteração nas punições físico-morais dos alunos, chegando à questão da obrigatoriedade escolar. No terceiro eixo, sobre o controle do ofício docente, chama a atenção a ideia de que o início do período republicano seria um marco no processo de racionalização do sistema de ensino e do trabalho docente, o que é questionável, haja vista as iniciativas já vigentes no período anterior (Império). Por fim, analisam os salários no registro de um constante empecilho ao melhoramento das condições da docência.

Ainda nele, tratando-se da questão do funcionamento das instituições e mais especificamente, da seleção de professores para cargos públicos no período anterior a República, chamou-nos a atenção a seguinte afirmação: “tratou-se de um processo longo e difícil, uma vez que os cargos de professores sempre foram ‘moedas de troca’ valiosas entre os políticos e suas comunidades de origem” (idem, p. 69, grifo nosso,), sugerindo a inexistência de concursos. O uso do termo “sempre” remete-nos à ideia de que no Império não houve concursos, sendo o favoritismo ou apadrinhamento o modo de selecionar um professor. Tal assertiva é inverossímil e representaria uma aparente contradição interna ao próprio texto, já que as autoras afirmam que, já no século XVIII, havia processo de seleção de docente. De acordo com elas, “o processo de seleção de professores iniciou-se em 1760” (idem, p. 70), como o estabelecimento de critérios mais específicos para os concursos durante o século XIX.

O terceiro capítulo, “Movimento docente: pluralidade e disputas”, tem como objetivo traçar um percurso do movimento docente e das possíveis tensões e disputas ocorridas. É dedicado um esforço considerável à análise da organização do campo docente, com o intuito de observá-lo em âmbito nacional, posicionando o modo como as disputas aconteceram no cenário brasileiro. Para isso, realizou-se um levantamento de fontes primárias, como propagandas jornalísticas, e uma revisão bibliográfica de autores que pesquisaram a mesma temática. Posteriormente, o texto sugere que pensemos no movimento docente como algo que envolve os diferentes segmentos de ensino, ou seja, primário, secundário, profissional e superior. Todavia, pode-se notar que as experiências colocadas em destaque se referem, em grande maioria, ao magistério primário, dando pouco lugar para o secundário e nenhum para os demais segmentos de ensino, o que contradiz aquela tese da importância de uma visão, por assim dizer, holística.

Esse capítulo permite pensar as configurações do movimento de organização dos professores em algumas cidades do Brasil, tendo assinalado as principais características do modelo associativo, numa tentativa de percorrer o final do século XIX até a década de 1970. Apresenta pontos importantes, como a luta pela escola pública (idem, p. 136) e a tentativa de articulação nacional dos professores, apesar das questões relativas à tensão entre centralização/descentralização administrativa (idem, p. 138), questão já abordada em outros trabalhos, como as obras de Faria Filho (2000) e Faria Filho et al. (2000). Em virtude do seu caráter pragmático-panorâmico, outro ponto que merece destaque é a tentativa de organizar em tabelas as associações de professores em algumas cidades do Brasil (idem, p. 145-153).

No quarto capítulo, “Imagens sociais da docência: a multiplicidade dos pontos de vista”, é destacada a imagem de um profissional mal preparado e mal remunerado, de uma carreira vista como missionária, mas também aborda a luta desses profissionais e seus diferentes movimentos e manifestos em torno do prestígio da classe. Dentre os enfoques, ressaltamos a citação da data comemorativa do dia dos professores, em razão dos diferentes sentidos atribuídos a ela, como, por exemplo, a sua utilização como marco para as campanhas reivindicatórias dos docentes (idem, p. 169).

Há, também, a tentativa de relacionar o tempo de prática docente ao ânimo profissional, através de uma inusitada comparação de fotografias. Contrapondo a imagem de uma professora que, no início da carreira, é apresentada como “jovem e feliz”, à de uma professora “experiente e austera”, dá-se a entender que as dificuldades enfrentadas por esta no decorrer da vida profissional comprometeram a sua felicidade (idem, p. 183). Sobre esse ponto, entendemos que outros fatores deveriam ser explorados, a fim de evitar conclusões pouco fundamentadas acerca da relação supracitada. Além disso, questionamos o uso do termo felicidade como um índice mensurável, sobretudo do modo restrito operado pelas autoras.

Ainda sobre esse capítulo, surpreende o modo como o tema dos conflitos e tensões é tratado. Embora recorrente, o texto não evidencia, explicita ou demonstra tais conflitos e tensões, o que, mais uma vez, deixa o leitor na dúvida, a saber, sobre quais foram as tensões, onde aconteceram, quando aconteceram, quem envolveram e quais as suas consequências para a profissionalização docente.

O capítulo 5, como o título “História da profissão docente no Brasil: uma síntese fragmentada” sugere, é um esforço de síntese do que fora feito nos capítulos anteriores. Para isso, as autoras analisam as condições nas quais os professores praticaram seu ofício. Elas, mais uma vez, ressaltam uma ausência de preocupações pedagógicas no Império (idem, p. 209), embora, mais tarde, tentem notificar, com um tom aparentemente crítico, que a oposição entre Império e República é comum nos manuais de história da educação brasileira. Todavia, é possível observar em diferentes momentos do texto justamente tal prática de demarcação de uma passagem temporal, como se a República trouxesse inovações que não fizessem parte de um contexto anterior e como se o Império fosse um conjunto de ausências.

É de suma importância compreender que não há um rompimento radical entre Império e República. Mais que pensar a educação no registro de uma separação das contribuições dos diferentes momentos abordados, é preciso considerar a relevância de cada um para a compreensão da profissão docente. É fundamental entender que as iniciativas ocorridas no século XIX serviram de pano de fundo, num processo marcado por continuidades e descontinuidades, para diferentes rumos de políticas públicas pensadas para a educação no período republicano. A própria escola isolada, que resistiu por muito tempo na República, é um exemplo de prática imperial que não será rompida nas primeiras décadas republicanas. A EN, criada nos moldes imperiais, também fará parte das políticas educacionais por um longo período. Outro exemplo é a obrigatoriedade do ensino, política defendida em importantes projetos do Império, por exemplo, pelos Pareceres de Rui Barbosa, de 1882 (Barbosa, 1947).

Para pensarmos o papel do Império como construtor de ações e discursos em prol da instrução, deve-se ressaltar a variedade de segmentos que contribuíram para os projetos e iniciativas voltadas para o ensino, que, inclusive, repercutiram diretamente sobre o período posterior. As contribuições estatais, a atuação da população e dos professores em busca de voz e reconhecimento são exemplos da efetiva e diversificada movimentação em prol da educação e da profissionalização docente no Império, sendo fundamentais para compreender o que se viu na República.

Se o ato de tomar a história da profissão docente, a sua diacronia, a partir do registro de uma linha de continuidade entre Império e República constituiu um erro, supor uma descontinuidade absoluta, uma superação radical, também nos parece equivocado. As políticas educacionais republicanas são fruto de uma tentativa de estabelecer algo novo, em busca da construção de uma nova nação, mas que em absoluto se pautou pela completa negação de todo o investimento feito anteriormente.

A obra resenhada, apesar dos problemas apontados, cumpre uma função acadêmica importante, a saber, promover o debate acerca de um tema. As controvérsias devem servir mais como provocação do que como demérito. Assim, merece ser lida, considerada e criticada pelos que se interessam pelo tema especificamente ou pela educação brasileira em geral, pois, ao mesmo tempo em que incorre em interpretações falíveis, traz contribuições para o campo de estudos histórico-educacionais.

Referências

Barbosa, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. In: . Obras Completas de Rui Barbosa. Volume X, Tomo I-IV. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947.

Faria Filho, Luciano M. Dos pardieiros aos palácios. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2000.

Faria Filho, Luciano M.; Veiga, Cynthia Greive; Lopes, Eliane Marta T. et al. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Cíntia Borges de Almeida – E-mail: [email protected]

Murilo Mariano Vilaça – E-mail: [email protected]

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Educação Crítica: análise internacional – APLLE et al. (ER)

APPLE, Michael; AU, Wayne; GANDIN, Luís Armando. Educação Crítica: análise internacional. Tradução de Vinícius Ferreira. Revisão Técnica de Luís Armando Gandin. Porto Alegre: Artmed, 2011. Resenha de: SANTOS, Graziella Souza dos. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 319-326, jan./abr., 2011.

O livro Educação Crítica: análise internacional busca, através da contribuição de diversos autores conectados às discussões educacionais em todo o mundo, discutir e problematizar a importância dos Estudos Educacionais Críticos, em diferentes realidades mundiais, à luz da sociedade contemporânea.

A obra, fruto do desejo dos autores de articular e tornar públicas alternativas educacionais criativas contra-hegemônicas e participar ativamente dos debates educacionais, inicialmente realiza uma retomada dos principais pressupostos e temáticas aos quais essa perspectiva historicamente se dedicou. Ao mesmo tempo, para além dessa tarefa, que por si só já seria importante, uma vez que as contribuições críticas têm sido um pouco esquecidas, encontramos, nessa reflexão, iniciativas sérias de diálogo com outras temáticas e áreas relevantes para o contexto educacional atual, na medida em que elas colaboram para uma análise mais sofisticada da realidade em que vivemos.

Os trinta e cinco capítulos, reunidos em sete grandes áreas, se empenham em discutir a relevância dos estudos críticos, sua apropriação e reinvenção em territórios diversos. As sete grandes temáticas iniciam com um capítulo introdutório dos organizadores e também autores da obra (Apple; Au; Gandin, 2011). Seguindo a proposta do livro, encontraremos as demais áreas apresentadas nesta ordem:
Contextos Sociais e Estruturas Sociais; Redistribuição, Reconhecimento e Poder Diferencial; O Legado Freireano; A Política da Prática e a Recriação da Teoria; Movimentos Sociais e Trabalho Pedagógico e, por fim, Métodos Críticos de Pesquisa para a Educação Crítica. A organização nessas temáticas não significa, entretanto, que os temas fiquem reduzidos aos limites de sua área. No desenvolvimento do livro fica bastante claro o diálogo entre autores e temáticas, o que, apesar da singularidade de cada texto, permite uma compreensão simultaneamente global e multifacetada do tema. Tendo em vista as grandes dimensões da obra, seguiremos a ideia da organização das áreas para apresentar os principais temas abordados em cada uma, os quais consideramos significativos para as discussões atuais. Dedicaremos algumas linhas a mais ao capítulo inicial por compreendermos que ele desencadeia as discussões que o sucedem, e expressa a tônica que será utilizada no desenvolvimento da obra.

No capítulo introdutório, intitulado O mapeamento da educação crítica, os autores expressam o sentido utilizado no livro para pedagogia ou educação crítica. De acordo com Apple, Au, Gandin (2011) os estudos educacionais críticos envolvem muito mais do que a problematização das relações de poder e das desigualdades sociais. Eles pressupõem um enfrentamento radical destas questões, rompendo com as “[…] ilusões confortadoras” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 14) e estabelecendo um compromisso individual com a transformação social. Entretanto, de acordo com os autores, essa não é uma tarefa simples, e todos aqueles que desejam assumir a responsabilidade de ser um educador, pesquisador crítico, precisam envolver-se num processo de reposicionamento, ou seja, desenvolver a habilidade de ver o mundo com os olhos dos despossuídos. O capítulo apresenta ainda oito tarefas nas quais um analista crítico deve engajar-se. Entre elas destacamos: a importância de denunciar as políticas e práticas educacionais opressivas; manter vivas as tradições do trabalho radical, criticando-as e apoiando-as quando necessário; dar visibilidade e apontar para espaços de ações possíveis e, por fim, agir juntamente com os movimentos sociais (Apple; Au; Gandin, 2011).

Como o próprio título da seção indica os autores, nesse início, propõem um mapeamento da educação crítica, retomando as suas raízes políticas que, segundo eles, datam antes mesmo dos estudos dos intelectuais da América Latina, com Paulo Freire, e de importantes autores dos Estados Unidos e da Europa. Segundo Apple, Au e Gandin (2011) existe uma longa tradição na comunidade afro-americana, afro-caribenha e em diversos grupos feministas de várias nações do mundo que colaboraram para dar vida ao que hoje reconhecemos como pedagogia crítica.

A partir da década de 1970, período central para essas teorizações, ganham expressão importantes estudiosos que forneceram novas ferramentas de análise que fortaleceram o desenvolvimento dos estudos críticos na educação. Destacamse os trabalhos dos membros da nova sociologia da educação (NSE) como Young (1971); Apple (1971), Bourdieu e Passeron (1977) e, especialmente, a obra de Bowles e Gintis (1976), que trouxe à tona a importância contemporânea das análises marxistas, neomarxistas e semimarxistas e que provocou o debate sobre suas explicações deterministas das desigualdades. A partir dessa obra, outros importantes teóricos surgem na tentativa de ampliar o debate extrapolando as versões que se baseavam apenas nas análises deterministas de classe. Gramsci (1971), Althusser (1971), Stuart
Hall (1980a), Raymond Williams (1977), Apple e Carthy (1988) e autores da escola de Frankfurt foram importantes nesse contexto, demonstrando a capilarização do poder, a mediação da cultura, bem como as contradições e resistências nas relações sociais. As discussões que seguem no livro retomam, reinventam e ampliam as discussões provocadas por esses teóricos.

Na segunda grande área do livro, Contextos sociais e estruturas sociais encontraremos uma análise sobre os contextos econômicos e sociais que cerceiam o debate educacional atual. Nessa seção estão disponíveis discussões que revelam como grupos direitistas têm estado presentes nas discussões escolares, propondo reformas e alterando os sentidos e objetivos da educação. Robertson e Dale demonstram como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial estão transformando os sistemas educacionais utilizando-se de argumentos populistas. McCarthy, Pitton, Kim e Monje denunciam como as articulações neoliberais têm se infiltrado na educação através de supostas promessas de bem público, contribuindo para o enfraquecimento do pensamento crítico, redefinindo a educação através de um discurso tão poderoso que “[…] se torna difícil imaginar uma alternativa que esteja fora da hegemonia do mercado” (Paraskeva, 2007, apud Apple; Au; Gandin, 2011, p. 59). Saltman discute a corporatização das escolas como uma forma de redistribuição do controle econômico e cultural, enfraquecendo a democracia pública e a cidadania crítica. A forma como os currículos escolares são organizados e desenvolvidos sob a influência dos princípios neoliberais através de diversas estratégias são o foco da discussão de Santomé, que encerra esse segundo eixo da obra.

Conforme dissemos anteriormente, há um grande esforço dos autores em ampliar as discussões e dialogar com temáticas que tocam o momento que vivemos. Ao mesmo tempo, há também uma forte preocupação em relembrarnos da importância de alguns pressupostos da tradição crítica que parecem esquecidos. É a isso que os autores se propõem na terceira parte do livro, na qual encontram-se bons exemplos dessas iniciativas. Entre os temas encontrados nesse bloco há as contribuições do neomarxismo na educação crítica (Au; Apple); a relação entre a luta de classe e a educação (D‘Annibale; McLaren); as questões de raça como aspecto relevante nas relações desiguais (Billings); as políticas de branquidade (Leonardo); o feminismo pós-estrutural na educação (McLeod); sexualidade (Loutzenheiser; Moore); masculinidade (Hightower); inclusão (Slee); teorias indígenas de redistribuição (Grande); e, por fim, os desafios de Foucault às teorias críticas (Fischer).

Os primeiros textos dessa seção se destinam a discutir, como vimos anteriormente, alguns aspectos da tradição crítica. Aqui, encontraremos também certas críticas a algumas vertentes pós que parecem desconsiderar, ou mesmo estigmatizar, as análises críticas. Em primeiro lugar, é importante reconhecermos de fato as contribuições que essas perspectivas têm nos trazido. Os trabalhos sobre as questões de identidade, gênero, diferença, política cultural, relações de poder, são muito valiosos e colaboram significativamente para compreendermos a complexidade das relações que se estabelecem no âmbito social e educacional. Entretanto, há aspectos que não podem ser desconsiderados. De acordo com Au e Apple, a classe, por exemplo, é “[…] um constructo analítico e também um conjunto de relações que existe fora de nossas mentes” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 110). E, mesmo que saibamos que classe e economia não explicam e determinam tudo a nossa volta, essas são questões que não podem ser marginalizadas, uma vez que é cada vez maior a ofensiva neoliberal. Concordamos com os autores que afirmam que as relações de poder são plurais e que, tanto quanto estamos subordinados a elas, também subjugamos outros, mas é bastante claro que há grupos que concentram o poder e perpetuam a sua hegemonia, enquanto há grupos marginalizados, oprimidos e silenciados. D`Annibale e McLaren afirmam que a depreciação das análises marxistas pode contribuir para abrir caminhos para “[…] a máquina capitalista canibal” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 126), e que é preciso que retomemos seriamente a crítica marxista para melhor analisar e combater as políticas neoliberais atuais.

Os capítulos, que seguem na terceira parte, trazem, como dissemos, temas que têm sido relevantes para o momento em que vivemos (feminismo, inclusão, teorias indígenas, Foucault e a educação, entre outros), num diálogo permanente com os princípios da educação crítica e enfocando a multiplicidade das relações de poder.

Não nos restam dúvidas sobre as importantes contribuições de Freire para a educação de um modo geral, e especialmente para a pedagogia crítica. Na verdade, Freire pode ser apontado como a principal referência dessa área na América Latina. Por esta razão, o livro reserva um de seus blocos para este autor que contribuiu tão preciosamente para os estudos críticos. A obra de Freire foi internacionalmente reconhecida pelo seu forte cunho político e por voltar-se às questões sociais. Por isso, suas contribuições foram amplamente discutidas, criticadas e apropriadas em diversos lugares do mundo. Os quatro capítulos dessa seção destinam-se a discutir algumas concepções centrais e polêmicas da pedagogia de Freire.

Au examina como a obra de Paulo Freire foi recontextualizada fora do Brasil e responde a algumas críticas feitas à pedagogia freireana, que, segundo ele, partem muitas vezes de leituras equivocadas da obra desse autor. Fischman apresenta respostas de estudantes sobre o sentimento em relação ao livro Pedagogia do Oprimido, uma das obras mais importantes de Freire. O relato dos alunos ajuda a entender por que a obra de Freire, apesar de receber inúmeras críticas, ainda é uma das mais conhecidas nos meios acadêmicos. Não há como ficar inerte à motivação e mobilização que emergem de seus escritos. Conforme os autores desse bloco afirmam, em muitos lugares do mundo encontraremos educadores que tentam colocar em prática a pedagogia de Freire.

Os dois últimos capítulos que compõem esse bloco expressam ainda o trabalho de Augusto Boal e o Teatro do Oprimido nas mobilizações contra a dominação (Rosa) e as contribuições freireanas para a educação crítica estadunidense (Wong). Esses capítulos demonstram que uma leitura séria e comprometida da obra desse autor, lembrando sempre do contexto e da época em que foi produzida, nos fornece ainda elementos importantes e centrais para as análises críticas.

Há questões, ponderações, críticas que merecem ser ouvidas. Certamente, o próprio Freire nos convidaria a criticar, reinventar e discutir sua teoria quantas vezes fossem necessárias. Apesar disso, é evidente que suas contribuições podem auxiliar significativamente para os estudos e teorizações críticas atuais.

A quinta grande área do livro consiste em oito capítulos que trazem à cena a implementação prática de conceitos da teoria crítica em educação, como forma de repensá-los e de entender tanto suas limitações como contribuições. Peter Mayo propõe uma discussão acerca da educação de adultos e a exemplifica através da educação para a transformação social, realizando uma ampla análise bibliográfica de autores que contribuíram no estudo dessa temática. A leitura crítica da mídia é a discussão trazida por Douglas Kellner e Jeff Share. Os autores mostram que, atualmente, vivemos um momento em que estamos em contato com a mídia quase que de forma integral, principalmente crianças jovens. Kellner e Share relatam os estudos existentes em relação à mídia e propõe uma análise a partir da perspectiva de sua não-neutralidade, de seu significado para a audiência, questões de poder e ideologia e da relação da mídia com o mundo dos negócios. Zeichner e Flessner discutem a formação de professores para a educação crítica e mostram, através de três exemplos práticos, como pode ser a formação dos professores para a justiça social, conectando a formação teórica e a prática da sala de aula. Kenneth Teitelbaum recupera a história da educação crítica, repassando autores e conceitos que são fundamentais a essa teoria. A perspectiva de uma educação em que não haja imposição sobre a cultura popular e que as comunidades sejam valorizadas como agentes educadores são temas abordados por Ramon Flecha. O autor traz a perspectiva da cidade educadora como uma forma de educação crítica e, assim como nos outros capítulos, exemplifica através da prática, trazendo casos do Brasil, Chile, Estados Unidos e Espanha. Luís Armando Gandin nos remete à perspectiva da educação crítica a partir da Escola Cidadã implementada na cidade de Porto Alegre, discutindo conceitos críticos em educação que já foram postos em prática.

O quinto bloco termina com dois capítulos que abordam as perspectivas da educação crítica no Japão e na China. Nesses capítulos, os autores do livro Apple, Au e Gandin abrem espaço para que países que costumam estar à margem das análises internacionais de educação sejam examinados com atenção a partir da perspectiva de autores dos próprios lugares. Essa quinta grande área do livro é de suma importância, pois reúne capítulos em que são trazidos exemplos práticos de diversos países em relação à educação crítica. Através desses capítulos é possível discutir de forma clara conceitos qu permeiam a teoria crítica, visualizar algumas das limitações dessa perspectiva na prática e perceber, também, suas grandes contribuições. Nessa seção, temos uma visão mais geral de mundo em termos críticos, saindo da comum limitação de exemplos estadunidenses ou ingleses, aos quais estamos tão acostumados em bibliografias internacionais. Os capítulos também possibilitam ter uma noção mais concreta do que significa a implementação das ideias críticas educacionais, já que todos os autores desse bloco trazem – às vezes de maneira mais esmiuçada, às vezes em termos mais gerais – a reflexão da prática e da teoria.

A sexta parte do livro, Movimentos sociais e trabalho pedagógico, conta com quatro capítulos que abordam exemplos de movimentos sociais em alguns países. O primeiro capítulo é de Jean Anyon e traz pontos importantes para serem pensados em relação ao que significa uma educação crítica com foco na justiça social. Ela destaca a importância de gerar oportunidades para que o estudantes exerçam a política e para que os educadores tenham espaço para a reflexão sobre sua prática em sala de aula. Mary Campton e Lois Weiner promovem uma discussão acerca dos sindicatos de professores, abordando as políticas neoliberais e suas implicações para a luta sindical. As autoras destacam alguns sindicatos que lutaram contra medidas que iam ao encontro de perspectivas neoliberais, como a privatização do sistema escolar, cortes nos gastos públicos com a educação, a importação da metodologia do mundo dos negócios para as escolas, modelo de gestão alicerçado no livre mercado e aproximação de empresas e escolas. As autoras mostram, nesse capítulo, a necessidade de tornar internacional a luta sindical como forma de uma atuação mais efetiva em termos mundiais, de reorganizar os sindicatos, tornando-os mais democráticos e a necessidade de que essas instituições tenham uma visão de educação que não apenas se contraponha ao neoliberalismo.

Hee-Ryong Kang traz a experiência da luta de professores da Coréia do Sul pelo reconhecimento, através da constituição de um sindicato de professores. O autor mostra o quanto essa conquista foi importante em temos de ação coletiva, do poder de barganha e para a melhoria das condições de trabalho. Assim como no capítulo desenvolvido por Campton e Weiner, Kang também mostra que há uma ofensiva de grupos neoliberais contra essa organização coreana, que têm como intenção reformar a educação através do padrão de mercado. A principal discussão do capítulo gira em torno das contradições que surgiram no sindicato dos professores a partir da campanha neoliberal e a forma de responder a tais ofensivas. O bloco finaliza com um capítulo escrito por Jen Sandler que aborda a educação popular, a migração e a sociedade civil no México. Nesse capítulo, Sandler estuda uma organização de educação popular e demonstra o quanto as práticas educacionais críticas podem contribuir na formação de uma identidade comunitária e o papel que “[…] podem desempenhar em relação às ideologias e estruturas hegemônicas” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 464).

Em tempos atuais, em que vemos, em termos globais, uma ofensiva da lógica de mercado ao sistema de educação, não temos dúvida quanto ao importante papel que desempenha a sexta grande área do livro. Os quatro capítulos dessa seção trazem exemplos claros de movimentos sociais que nos auxiliam a visualizar a possibilidade de lutas contra-hegemônicas a partir de uma perspectiva crítica em educação. Os movimentos sociais aqui analisados pelos autores apresentam respostas às propositivas neoliberais para a educação – algo fundamental atualmente, já que o discurso do mercado tornou-se a única alternativa para a qualificação da educação e aqueles que se opõem ao modelo de mercado nas instituições escolares parecem estar se opondo à ideia de melhoria do ensino público.

O último bloco do livro apresenta quatro capítulos em que são discutidas metodologias para as pesquisas educacionais críticas. Lois Weis, Michelle Fine e Greg Dimitriadis propõem repensar a pesquisa etnográfica, relacionando o âmbito local e o contexto global. A partir da noção de que a globalização influencia de forma complexa as diversas localidades, há a defesa, por parte dos autores, de um olhar atento de pesquisa a essa complexidade. A sugestão de uma nova metodologia de pesquisa é devido às mudanças que ocorrem em termos globais e que não permitem mais uma separação entre nível macro e micro. Daniel S. Choi propõe o uso de sistema de informação geográfica (SIG) nas pesquisas educacionais. O SIG permite não apenas a análise, mas também a apresentação dos dados coletados. No capítulo, Choi explica o uso do SIG, demonstrando, segundo o autor, o rigor metodológico que há nessa forma de pesquisa. Joseph J. Ferrare apresenta um capítulo no qual defende o uso de metodologias quantitativas na pesquisa educacional. O autor faz uma breve descrição de três formas quantitativas de pesquisa, demonstrando seu funcionamento, limitações e contribuições: a análise de rede social, escalonamento multidimensional e análise de correspondência. Ferrare propõe uma interessante discussão acerca do uso de métodos quantitativos na educação, sendo um de seus objetivos ultrapassar as identidades relacionadas às pesquisas quantitativas e qualitativas que, muitas vezes, levam a formas de não reconhecimento de determinadas pesquisas, conforme a metodologia utilizada. O autor destaca que nenhuma metodologia é capaz de explicar as complexas relações sociais em sua totalidade. Portanto, o uso de diferentes métodos pode auxiliar no entendimento do complexo social, trazendo novos elementos à tona.

O capítulo escrito por Yoshiko Nozaki encerra essa sexta área do livro. A partir de um exemplo de pesquisa sobre cultura, sociedade e educação japonesa, a pesquisadora coloca em pauta a discussão em torno das relações acadêmicas existentes no Ocidente e no Oriente. A autora faz uma séria análise sobre a oposição binária existente entre o Ocidente e o Oriente e reflete sobre o quanto essa oposição está relacionada a questões de poder. Nozaki mostra que, em geral, há um discurso relacionado às culturas orientais (os outros, na oposição binária) que as define como uma única cultura, não levando em conta as diversidades que se encontram nos contextos orientais. A autora evidencia que, inclusive, alguns pesquisadores orientais têm feito uso (em suas pesquisas) do que ela chama de japanismo (termo que se refere à homogeneização da cultura japonesa) e propõe uma discussão sobre o emprego desse termo.

Ao finalizar esta resenha, cabe ressaltar a importância do livro Educação Crítica: análise internacional para os estudos no âmbito da educação. Os 35 capítulos presentes na obra abarcam diferentes temáticas e trazem contribuições realmente internacionais, ou seja, que vão além das análises de perspectivas educacionais estadunidenses e inglesas a que estamos habituados. Essa ampla abordagem favorece discussões complexas e enriquece a noção crítica de educação. Destacamos, ainda, a importância de os autores evidenciarem a clareza que têm sobre o caráter temporário da obra, e, por isso, proporem o diálogo permanente entre educadores, pesquisadores e ativistas. Em razão de possíveis tensões e silenciamentos que poderão ser encontrados no livro, disponibilizam-se para sugestões, respostas e reflexões que mantenham “[…] a educação crítica em movimento constante” (Apple; Au; Gandin, 2011, p. 29).

Graziella Souza dos Santos – licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É especialista em Supervisão Educacional pela FAPA, Faculdades Porto Alegrenses. Atua como professora das séries iniciais na rede particular de ensino de Porto Alegre. Atualmente é mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. E-mail: [email protected]

Iana Gomes de Lima – licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como professora das séries iniciais na rede particular de ensino de Porto Alegre. Atualmente é mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. E-mail: [email protected]

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Undoing gender – BUTLER (RF)

BUTLER, Judith. Undoing gender. New York; London: Routledge, 2004. 273p. Resenha de: DORNELLES, Priscila Gomes. Revista FACED, Salvador, n.19, p.131-132, jan./jun. 2011.

Judiht Butler é estadunidense, filósofa e professora da Universidade da Califórnia/EUA, localizada em Berkeley. A autora apresenta a problematização dos movimentos teórico-políticos do feminismo como um dos focos principais das suas produções.

Para isso, assume uma posição pós-estruturalista e ligada à teoria queer para conceituar o sujeito como produto normativo generificado.

Após algumas publicações tratando de circunscrever o gênero como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos, tais como Gender trouble: feminism and the subversion of identity (1990) e Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex” (1993), em Undoing gender, Judith Butler reúne ensaios reelaborados e versões alargadas de produções já apresentadas publicamente, as quais, agora, estão compiladas para problematizar o plano normativo do gênero a partir, segundo a autora, das experiências de tornar-se desfeito. Nesta obra, o movimento analítico sela o sujeito como produto normativo e volta-se para tratar da produção do gênero de forma articulada e implicada com a problematização da vida e das noções de humano.

Capitaneado pelas discussões de gênero e sexualidade, Undoing gender propõe certa “rasura” aos movimentos de feministas centrados na promoção do debate de gênero restrito às questões/ demandas sociais de mulheres, inclusive reforçando o dimorfismo sexual a partir de concepções que operam essencializando o que é um corpo feminino. Os ensaios deste livro estão engajados com Novas Políticas de Gênero, as quais, segundo Butler, configurariam “um caldo” epistemológico e político de discussões em torno de transgêneros, transexuais e intersex de forma (des)articulada com as teorias feministas e queer. Nesse sentido, a autora dedica os capítulos Gender regulations, doing justice to someone: sex reassignment and allegories of transsexuality e undiagnosing gender para descrever, no âmbito do discurso médico, o processo vivido por sujeitos transexuais para a realização das cirurgias de resignação de sexo, bem como as justificativas produzidas, também no âmbito científico, para as cirurgias de “adequação” de sujeitos intersex.

Butler aponta que esse universo de “(re)construção” dos corpos através das tecnologias, bem como as formas de violências e violações aos sujeitos avessos aos padrões normativos do gênero são trazidos para destacar como as normas de gênero funcionam para fazer/desfazer os sujeitos, inclusive questionando a noção de autonomia. Importa para a autora argumentar e articular, a partir de bases hegelianas, a relação entre as normas de reconhecimento e a produção diferencial do humano ao “destrinchar” analiticamente as situações apresentadas no decorrer do livro.

Além dessa base argumentativa, nos diferentes capítulos, a autora posiciona as possibilidades de movimentação do sujeito em relação à constituição normativa que o precede e o externa. Para isso, o conceito de agência circula como um lugar, distribuído de forma diferencial entre os gêneros, de fazer-se a partir da crítica – vale ressaltar que este termo é tratado ao largo de concepções de sujeito crítico possíveis, apenas, através da consciência dos jogos de poder e, consequente, construção de formas de emancipação.

Nesta obra e em outras produções, a crítica refere-se ao questionamento dos processos e dos termos que restringem a vida, com isso, ampliando o reconhecimento das formas de humano.

Ao fim e ao cabo, isto significa que o exercício individual da agência está atrelado à crítica/transformação social.

Ademais, interessa mencionar que a autora trata do conceito de humano como algo contingente. Nesse sentido, o seu questionamento é proposto considerando as bases normativas generificadas, racializadas e sexualizadas que constituem graus diferenciados de humanidade. Judith Butler provoca-nos a pensar que o que está em jogo no questionamento das normas é a definição parcial/futura do humano. Para isso, falar do lugar do irreconhecível torna-se uma possibilidade de tensionar os caminhos normativos ao alargamento.

Priscila Gomes Dornelles – E-mail:[email protected]

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Feios – WESTERFELD (RF)

WESTERFELD, Scott. Feios. Tradução de Rodrigo Chia. Rio de Janeiro: Galera Record, 2010. Resenha de COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. Fabricar a beleza corporal. Revista FACED, Salvador, n.19, p.125-130, jan./jun. 2011.

Não é uma coisa boa encher a sociedade de pessoas bonitas?

Yang Yuan

Numa época em que os corpos são pavoneados e festejados em todos os lugares e cada um é estimulado, de diferentes maneiras, a promover mudanças físicas e mentais, em performances cada vez mais extraordinárias, praticamente todos desejam beleza e perfeição. De preferência em acordo com as celebridades midiáticas do momento, que não cessam de promover e administrar minimamente os modos como tecnicamente constroem e cultuam a si mesmas.

As técnicas, terapias e recursos para as metamorfoses corporais se multiplicam e se popularizam. Nas revistas, TV, sites, filmes e publicidades em geral é repetido insistentemente que um mundo de beleza e perfeição está ao alcance de todos. Sob essa lógica, só é feio quem quer, não se cuida, não ama nem acaricia a si mesmo com os cosméticos e medicamentos que prometem milagres na aparência dos sujeitos, no desempenho muscular e cognitivo.

Nesse contexto, as fronteiras entre o cotidiano de milhares de pessoas, cada vez mais seduzidas pelas possibilidades do melhoramento corporal, e a ficção literária e cinematográfica, que promove os corpos turbinados, são cada vez mais tênues. Um livre e veloz trânsito entre esses universos complementares faz parte da aventura prazerosa contida no ato de pavonear-se.

Em Feios, o livro de Scott Westerfeld, a perfeição corporal não depende da vontade ou iniciativa pessoal, é lei, onde a beleza é mais que uma opção ou sorte de privilegiados. É algo obrigatório.

Trata-se do primeiro livro da trilogia do autor texano, que mescla aventura e ficção, e se tornou best-seller do New York Times e em vários países onde foi traduzido. Aqui no Brasil o livro foi lançado pela Editora Record, no recém-nascido selo Galera, que é voltado para jovens e nasceu do infanto-juvenil Galera Record.

Num futuro não distante a utópica sociedade de Westerfeld apresenta pessoas que são divididas e classificadas como feias ou perfeitas. Todos nascem feios. Até mesmo os que podem ser considerados bonitinhos são feios. Nascer feios não significa que são marcados por alguma aberração ou defeito físico e mental. Significa que são pessoas normais. Mas num mundo onde as tecnologias constroem incessantemente a perfeição, ser normal significa mesmo ser feio. Assim, os normais, isto é, os feios, nascem em Vila Feia e ficam presos em alojamentos até completarem 16 anos.

Quando os adolescentes feios completam 16 anos ganham de presente do governo a operação plástica completa, que os transformam em belos e perfeitos. Presente é modo de dizer, pois com essa idade todos são submetidos aos processos de transformação cirúrgica. A operação plástica completa inclui diversos procedimentos cirúrgicos e medicamentos de última geração para corrigir as feições consideradas indesejadas. A pele é trocada por outra e adeus espinhas e manchas. Os músculos são modelados e a gordura sugada para sempre. Os ossos são substituídos por uma liga artificial, mais leve e resistente. Os olhos, cortados a laser para se obter uma visão perfeita, recebem implantes reflexivos sob a íris, tornam-se grandes; os lábios cheios e volumosos. Os ossos são amassados, esticados ou recheados até atingir o formato certo.

Os dentes são trocados por cerâmica resistente como a asa de um avião e tão brancos como porcelana. Desse modo, as pessoas feias são transformadas em perfeitas, tornam-se borbulhantes e passam a viver felizes em Nova Perfeição.

Nova Perfeição, a morada dos belos tecnicamente construídos, fica defronte a Vila Freia, do outro lado do rio. É o lugar onde os perfeitos vivem, bebem, pulam de paraquedas, voam a bordo de pranchas magnéticas e se divertem o tempo todo, em intermináveis festas, orgias e bebedeiras. Moram em casas lindas e ultraconfortáveis e se dedicam ao divertimento em tempo integral. Usam roupas maravilhosas, sempre da última moda, são populares, queridos e bajulados, afinal são belos e têm tudo o que desejam. Namoram as pessoas mais lindas e incríveis. Além de belos são ricos. Não precisam se preocupar com trabalho e problemas pequenos e limitados como subsistência, educação e segurança, coisas típicas dos imperfeitos, dos feios. A cidade oferece bastante liberdade, deixa que os jovens aprontem, desenvolvam sua criatividade e independência.

Nova Perfeição é a Cocanha dos nossos tempos ultramodernos.

A Cocanha é uma utopia medieval. Numa época em que a fome ameaçava sempre as pessoas e o trabalho duro enfraquecia multidões, o País de Cocanha é o lugar do sonho, da perfeição, da abundância, da prosperidade e do prazer, da liberdade e do gozo eternos. A Cocacha é a terra abençoada onde corre leite e mel, rios de vinho estão por toda parte, as frutas caem maduras dos pés, os peixes saem fritos dos rios e mares. Queijos e pães são obtidos sem nenhuma dificuldade ou esforço. A Cocanha é um país tão rico que bolsas cheias de moedas ficam jogadas pelo chão. As pessoas não são vis, são virtuosas e corteses. É o lugar das festas e das orgias.

São quatro páscoas por ano, quatro festas de São João, quatro natais, quatro carnavais. Já a quaresma, só tem uma a cada quatro anos. Ninguém compra ou vende, não existe trabalho, cansaço, aborrecimentos, dores de qualquer espécie. As pessoas são sempre belas, jovens e saudáveis. Vivem para satisfazer o seu prazer, como por lazer. De certo modo, a Cocanha, esse paraíso de delícias e perfeição, remete ao mito judaico do Éden e também ao mito do Eldorado, tão difundido na época da conquista das Américas.

Na cibercultura, na era da sociedade em rede, das pessoas conectadas em tempo real, o mito da Cocanha medieval é atualizado em Nova Perfeição, o lugar dos corpos minimamente construídos e potencializados em acordo com os mais rigorosos critérios de beleza, da memória modificada para apagar vestígios de tristezas e dores da dura vida de pessoas insignificantes, isto é, de feios.

Nova Perfeição existe por causa da medicina avançada, de medicamentos de última geração capazes de alterar corpos, memórias e inteligências, para que todos desfrutem de uma vida borbulhante e incessantemente feliz.

Tally Youngblood é a heroína dessa saga dos corpos perfeitos, que encarna as aventuras, que permitem uma pessoa cruzar as fronteiras entre os feios e bonitos, promover as melhorias técnicas na aparência e na interioridade de si. Em Feios, Tally ainda é uma garota que espera ansiosamente completar os 16 anos para ser finalmente transformada em perfeita. Enquanto sofre a longa espera, tudo que deseja é abandonar a vida sem graça e seu corpo estranho de feia. Costuma passar os dias pensando em todos os visuais possíveis para assumir quando finalmente se tornar perfeita. Nessa enfadonha espera, enfrenta muitas madrugadas no seu alojamento a contemplar o outro lado do rio, a Vila Perfeição, onde alguns amigos que já cruzaram a fronteira desfrutam de uma vida incrível, cheia de aventuras e prazeres. E o mais importante, é que deixaram para trás seus corpos feios e podem viver felizes com suas novas formas físicas e mentais sempre belas e sedutoras.
De acordo com Tally, “duas semanas de queimaduras horríveis serão compensadas com uma vida inteira de aparência maravilhosa” (p. 100).

Enquanto espera o tempo estipulado por lei para tornar-se perfeita, Tally conhece Shay, uma feia que não está nem um pouco ansiosa para completar 16 anos e viver a sua metamorfose cirúrgica.

O que Shay deseja é fugir de Vila Feia e do destino de ser bela em Vila Perfeição. Ela considera a beleza construída horrível. Trata- -se de uma adolescente rebelde que não aceita o destino traçado pelas autoridades e quer viver do seu modo a sua própria aventura, sendo feia para sempre, pois é capaz de qualquer coisa para “fugir à tirania da beleza” (p. 133). Tem um plano para fugir dos limites da cidade e se juntar à Fumaça, um grupo fora da lei que sobrevive nas ruínas de uma vila perdida na floresta e sobrevive retirando o sustento da natureza.

O conflito entre natureza e técnica se coloca aqui de modo curioso. Tally não consegue entender como alguém pode desejar ser feia para sempre, querer voltar para a natureza, plantar, caçar, queimar árvores para se aquecer, matar animais para se alimentar, beber água dos córregos sem passá-la pelo purificador, enfrentar doenças, viver pouco. Como alguém pode desejar abrir mão do conforto tecnológico e da vida fácil nas cidades e preferir o campo sempre hostil? Com a fuga da amiga Tally, é chantageada pelos Especiais, uma espécie de polícia altamente equipada que tudo vê e controla: deve se unir a eles para derrotar de vez os enfumaçados ou vai ser condenada a ficar feia para sempre. A garota vive muitos dilemas. Sente-se curiosa pelo estilo de vida na Fumaça, quer conhecer pessoas que amadurecem naturalmente depois dos 16 anos, gente de fisionomia decadente, que preserva uma verdade enrugada, venosa, esmaecida, grosseira, terrível, mas ao mesmo tempo almeja sua beleza perfeita. Das escolhas que faz dependem as muitas aventuras entre os feios e os bonitos, entre o universo da natureza e o das técnicas avançadas.

A viagem para a distante fumaça é uma verdadeira odisseia cheia de enigmas que precisam ser desvendados. O deslocamento é feito sobre prancha voadora que segue veloz sobre o rio e a floresta, com o uso de jaquetas inteligentes que regulam a temperatura do corpo e ajuda na tomada de decisões, pois indica caminhos; com a facilidade dos alimentos sintéticos e pingentes rastreadores.

Para Tally, apesar do fascínio, não é fácil se adaptar e viver entre os enfumaçados. “Ela nunca tinha visto tantos rostos tão diferentes. Bocas, olhos e narizes de todos os formatos possíveis, combinados de um jeito absurdo, em pessoas de todas as idades.

E os corpos? Alguns eram monstruosamente gordos ou estranhamente musculosos ou perturbadoramente magros. E quase todos apresentavam proporções desequilibradas e feias. No entanto, em vez de demonstrarem vergonha por causa de suas deformidades, as pessoas davam risadas, trocavam beijos…” (p. 193-194).
Aos poucos, a protagonista percebe diferenças abismais entre a Vila Perfeição sonhada e o cotidiano da Fumaça. Na cidade as coisas são sempre descartáveis e substituíveis. Ali no mato, os objetos e as pessoas ficam velhos e carregam suas histórias em amassados, arranhões, rasgos e rugas. Na cidade vive uma massa de corpos modificados, perfeitamente sorridentes e iguais, voláteis, programados e fáceis de controlar, pois têm os cérebros e o sistema nervoso recondicionados pelas cirurgias e medicamentos. Na floresta tem-se a diversidade corporal, as controvérsias, discordâncias, os diferentes modos de ser e viver. Na cidade as pessoas perfeitas são rastreadas, monitoradas e orientadas cada minuto do dia, seus pensamentos são programados, seus sentimentos são manipulados.

Na floresta enfrentam livremente as vicissitudes da vida, podem tomar suas próprias decisões, sofrer e corrigir as escolhas erradas, encher-se de júbilo com as decisões acertadas.

Tally também percebe aos poucos que existe um certo romantismo em relação à natureza, à vida na floresta. Talvez essa discussão de fundo sustente muito do fascínio de milhares de pessoas pelo livro de Westerfeld. A sociedade tecnológica não constrói apenas as cidades, mas igualmente a natureza. De certo modo a natureza é uma mentira. Não há natureza, o que contemplamos sempre é o artifício. A natureza é uma fabricação da cultura, da cultura tecnológica, que naturaliza em nós seus muitos e sedutores artifícios. É natural do homem produzir artifícios, refazer o mundo, modificar e recriar a si mesmo. Por mais que amasem a natureza os enfumaçados nasceram em cidades, eram todos produto da civilização tecnológica. Talvez por isso, uma vez rastreada, Tally leva a polícia especial para destruir a Fumaça. E volta para a cidade, sem dramas, para, finalmente, submeter-se à cirurgia e ser perfeita, para sempre.

O livro Feios, de Westerfeld, é um importante e divertido relato literário de corpos inscritos em acontecimentos tecnológicos.

Rompe com o olhar naturalista sobre o qual muitas vezes o corpo é observado, explicado, educado e enfatiza sua condição cultural, suscetível a inúmeras intervenções de acordo com o desenvolvimento tecnológico e científico de cada época.

No livro, o aperfeiçoamento da natureza e dos corpos é sempre criticado baseado numa convicção estranha de que as tecnologias padronizam os corpos e os pensamentos. Ressoa aqui uma certa visão negativada das transformações tecnológicas sobre o mundo e sobre nós mesmos. Talvez essa convicção estranha do autor sirva apenas para alimentar as tramas da série e nos volumes seguintes seja possível observar que determinadas tecnologias médicas e de comunicação, que na atualidade promovem uma suposta padronização, num futuro próximo sejas empregadas para produzir intensas diferenças, renovados modos de ser e viver. Talvez, nesse contexto, natureza e técnica, corpos feios e bonitos, deixem de ser realidades opostas e conflituosas. Talvez o futuro da biotecnologia seja menos sombrio e promova o equilíbrio entre essas realidades, integradas e dinâmicas, em que os sujeitos alegremente reelaborem a si mesmos em encantadas e criativas aventuras existenciais.

Edvaldo Souza Couto – Professor Associado na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – UFBA. E-mail: [email protected]

Silvana Vilodre Goellner – Professora Associada na Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

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Política social e racial no Brasil – 1917-1945 – DÁVILA (RBHE)

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945. São Paulo: Unesp, 2006. Resenha de: GONÇALVES, Mauro Castilho Gonçalves. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010

O tema da eugenia marcou as discussões educacionais no Brasil desde a segunda metade do século XIX quando começaram a chegar aos trópicos as primeiras ideias relacionadas ao branqueamento da população brasileira. Esse arcabouço ideológico influenciou polí­ticas e práticas, chegou à escola pública, decidindo o futuro, não muito promissor, da população negra. Nessa linha, direciona-se o livro Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945, escrito por Jerry Dávila, traduzido por Cláudia Sant’Ana Martins e publicado pela Unesp no ano de 2006. Historiador porto-riquenho, Dávila é professor associado na Universidade da Carolina do Norte em Charlotte. É especialista no tema relações raciais e tem lecionado no Brasil, especialmente na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

No prefácio à edição brasileira, o autor destaca, num primei­ro momento, as transformações nas políticas raciais brasileiras, particularmente em função das ações afirmativas lideradas por movimentos negros, desde a emergência do Movimento Negro Unificado, criado em oposição ao regime militar. Sabemos, hoje, o quanto esse debate se fortaleceu no Brasil até consolidar-se, por exemplo, na questão das cotas, objeto de muitas discussões travadas no âmbito da política e da sociedade civil.

O livro em tela é o resultado das pesquisas que o autor efetuou, nos anos de 1995 e 1996, nos arquivos do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, da Iuperj, no Arquivo Geral da Cidade (RJ), dentre outros. A tese foi defendida na Brown University. Ainda no prefácio, Dávila expõe os argumentos que o motivaram a pesquisar seu tema no Brasil, especialmente no período que compreendeu as primeiras  décadas do século XX, “quando as instituições educacionais con­temporâneas foram formadas, o pensamento racial ajudou a guiar as políticas públicas” (p. 12). Dois momentos da história contemporâ­nea brasileira são analisados pelo autor: a chamada República Velha e a Era Vargas, o que justifica o recorte cronológico apresentado no subtítulo do livro, pois, segundo o historiador porto-riquenho, nessas conjunturas foram desenvolvidas “políticas públicas tanto inspiradas nas correntes intelectuais e científicas internacionais quanto em sua leitura das mazelas do povo brasileiro” (p. 12).

O campo pesquisado pelo autor foi o Rio de Janeiro das pri­meiras décadas do século XX e suas escolas públicas e o impacto que sofreram a partir da implementação de reformas educacionais lideradas por Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo. Oautor analisa as contradições internas das reformas: de um lado, realizadas para expandir o ensino público e de outro, provocando fortes desigualdades no tratamento dos alunos pobres e negros e as formas como os reformadores, especialmente na década de 1930, aproveitaram a oportunidade histórica de, à luz das ciências eugênicas e da lógica da indústria moderna, colocar em prática a crença de que pela educação o Brasil alcançaria seu pleno desenvolvimento.

O livro está dividido em seis capítulos. No primeiro, o autor discute as articulações e projetos oriundos do Ministério da Edu­cação e Saúde (MES) na gestão de Gustavo Capanema em torno do tema “Educando o homem brasileiro”, um conjunto de ações inspiradas no nacionalismo, na ciência eugênica, sob o comando de um Estado forte. De início, é apresentada a correspondência trocada entre Gustavo Capanema e Oliveira Viana, datada de 30 de agosto de 1937. O conteúdo refere-se aos questionamentos de Capanema quanto à constituição física do homem brasileiro. Estava na pauta a encomenda de uma estátua do “Homem Brasileiro”, feita para ornamentar a entrada do novo prédio do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, símbolo da arquitetura mo­derna, projetado por Charles Le Corbusier, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Tal encomenda gerou uma polêmica no Ministério. O escultor Celso Antonio apresentou um projeto que Capanema discordou: o “Homem Brasileiro” segundo a perspectiva do artista era um caboclo, de raça mestiça, ou seja, “tudo o que Capanema esperava que o Brasil deixasse para trás” (p.49). Para o ministro, o futuro do Brasil era branco e forte. Oartista recusou-se a seguir as orientações do ministro e a escultura foi cancelada. Com esse preâmbulo, o autor inicia o primeiro capítulo analisando as políticas de educação empreendidas na gestão Capanema, sob a inspiração da teoria eugênica. Ainda nesse capítulo, Dávila discorre sobre o que ele denomina “eugenia brasileira”, liderada por nomes como Renato Kehl, Fernando de Azevedo (secretário da Sociedade Eugênica de São Paulo), Edgar Roquette Pinto, Afrânio Peixoto, dentre outros. Nesse particular, em se tratando do tema da eugenia em São Paulo nas primeiras décadas do século XX, Dávila não explora uma produção do período relevância histórico-educacional: os Annaes de Eugenia, organizados pela Sociedade supracitada e publicados pela Revista do Brasil no ano de 1919. Dali poderia retirar outras importantes interpretações sobre a problemática da eugenia brasileira.

Uma problematização é levantada pelo autor para guiar sua reflexão neste capítulo. Para ele, os projetos educacionais dos eugenistas, que se firmaram na década de 1920 e ganharam ple­na expressão durante a Era Vargas, lançam luzes sobre uma das questões mais paradoxais do Brasil moderno: como a ideia de que o Brasil era uma democracia racial se tornou o mito orientador da nação durante a maior parte do século XX, principalmente diante de desigualdades raciais visíveis de tamanha proporção? Questão que o autor responde a partir da análise das relações de interde­pendência entre educação e saúde, presentes nas políticas públicas engendradas nas primeiras décadas do século XX, em especial no governo Vargas e materializadas em reformas do sistema escolar em capitais como o Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador e Belo Horizonte, por intermédio de um revezamento efetuado pelos principais representantes do escolanovismo brasileiro: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Carneiro Leão e Afrânio Peixoto.

As reformas deram ênfase à educação higiênica, e à formação física e moral das crianças, utilizando-se do referencial teórico-metodológico da psicologia moderna em emergência nos círculos intelectuais e acadêmicos brasileiros. Ocaso mais exemplar foi o da criação, no Rio de Janeiro, do Instituto de Pesquisas Educacionais (IPE), instituição arquitetada por Anísio Teixeira, quando diretor do Departamento de Educação. OIPE passou a produzir pesquisas a partir de seus quatro setores: Testes e Medidas, Rádio e Cinema Educativos, Ortofrenia e Higiene Mental e Antropometria.

No segundo capítulo intitulado “Educando o Brasil”, o leitor encontrará a apresentação e a análise de como se efetuou a conso­lidação do uso da ciência estatística no interior dos quadros gover­namentais, especialmente no MESpara a produção de amostragens quantitativas sobre a situação educacional brasileira. Nessa linha, o resultado mais emblemático foi a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na sequência, Dávila discorre sobre a estrutura do MES, sob a direção de Francisco Campos e Gustavo Capanema e conclui apresentando a situação da cidade e da educação pública no Rio de Janeiro dos anos de 1930, dando ênfase à configuração do espaço urbano e o lugar social das elites e das populações menos abastadas, em especial da raça negra.

No capítulo “O que aconteceu com os professores de cor do Rio?”, o autor discute o que ele denomina “processos históricos que levaram ao gradual branqueamento do quadro de professores do Rio de Janeiro” (p. 147). Utilizando-se de fontes iconográficas, pesquisadas especialmente no arquivo de Augusto Malta no Rio e nos anuários do Instituto de Educação, Dávila defende a tese segundo a qual para os reformadores o “professor moderno” era branco, feminino e de classe média (p. 148), paradigma que con­trastava radicalmente com a situação do sistema público de ensino carioca no início do século XX. Para o autor, esse quadro inicial foi, aos poucos, se modificando na medida em que os reformadores passaram a defender uma visão diferenciada do novo professor. Além disso, as políticas de formação dos novos quadros de docentes baseavam-se em metodologias consideradas avançadas e modernas, “uma elite moderna treinada cientificamente, muito bem-educada, refletindo as normas rigorosas da saúde, temperamento e inteli­gência, e dotada de um senso corporativo de identidade e classe social semelhante ao dos militares” (p. 165), ou seja, a caminho da profissionalização.

Na sequência, o tema tratado é o da “Educação Elementar”. Aqui Dávila analisa a principal reforma do sistema escolar carioca, reali­zada por Anísio Teixeira entre os anos de 1931 e 1935. Segundo o autor, a ação reformista desse pioneiro “combinou as principais ten­dências científicas que governavam a política social: o nacionalismo eugênico, racionalização sistemática e profissionalização” (p. 42). Segundo o autor, Teixeira projetou uma reforma do sistema de ensino adotando princípios e técnicas emprestadas dos Estados Unidos. Para Anísio Teixeira, os grandes obstáculos da modernização da educação pública eram os pais e o currículo existente. Para tanto, criou um sistema de ensino racionalizado, dividido em quatro departamentos: “Curricular, Matrícula e Frequência, Promoção e Classificação de Alunos e Prédios e Aparelhamentos Escolares” (p. 213). Dávila detalha com precisão e crítica as funções e as principais realizações desses setores durante a gestão de Anísio Teixeira.

O quinto capítulo apresenta uma interessante discussão sobre o que o autor denomina “A Escola Nova no Estado Novo”, período em que Anísio Teixeira foi afastado do sistema escolar por intermé­dio da pressão dos oponentes católicos e, em seu lugar, assumiram militares sob forte influência da Igreja católica. Após a exclusão de Teixeira e sua equipe, o Departamento de Educação foi ocupado pelo ex-ministro da educação Francisco Campos, por pressão do prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto Batista. Porém, logo de­pois, com a consolidação do golpe do Estado Novo, Campos passou a ocupar o cargo de Ministro da Justiça de Vargas. O interessante nesse capítulo está relacionado com a leitura de Dávila acerca da participação e influência dos militares e dos grupos católicos na condução das políticas de educação no Rio de Janeiro, fortemente influenciadas pelo paternalismo e nas relações entre educação, raça (eugenia) e nacionalismo. Essa discussão, segundo nossa avaliação, pode ainda ser explorada no campo das pesquisas em História da Educação, a partir, por exemplo, das publicações católicas veicu­ladas no período da ditadura Vargas.

No último capítulo, é apresentada a situação do ensino secun­dário no Rio de Janeiro no período, por intermédio de um estudo de caso: o Colégio Pedro II, instituição modelo que treinava uma reduzida elite no sentido de adotar “a linguagem do nacionalismo eugênico” (p.43), posto que a grande maioria da população era impedida de avançar no processo de escolarização. Para o autor, o referido Colégio materializava, via escola, o projeto de Vargas, especialmente no período mais radical de ditadura.

Para analisar a questão da raça no interior do Colégio, Dávila pesquisou dois jornais estudantis, Pronome e O Arauto, esse úl­timo investindo quase sempre no tema da educação física e sua importância na formação do caráter dos alunos. Além disso, o jornal divulgava atividades promovidas pelo Colégio, dentre elas uma conferência sobre eugenia. Outra fonte de difusão da eugenia, segundo o autor, encontrava-se em livros escritos por professores do Pedro II, destaque para Raja Gabaglia e Jonathas Serrano, len­tes de Geografia e História, respectivamente. “Os dois principais livros de Jonathas Serrano, História da civilização e Epítome de história do Brasil adotavam uma perspectiva nacionalista, católica e eurocêntrica” (p. 323).

Jerry Dávila, por fim, apresenta uma relevante discussão te­mática, contribuindo, sem dúvida, na ampliação das fontes e no aprofundamento teórico da abordagem escolhida. A partir de sua opção histórica e historiográfica, o autor expõe ao público leitor novos conhecimentos sobre eugenia e sua relação com as políticas públicas de educação nas primeiras décadas do século XX, forne­cendo um mapeamento de fontes de pesquisa alternativas e pistas a serem exploradas e analisadas pelos pesquisadores da área.

Mauro Castilho Gonçalves – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected]

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O Imperial Collegio De Pedro II e o ensino secundário da boa sociedade brasileira – CUNHA JUNIOR (RBHE)

CUNHA JUNIOR, Carlos Fernando Defferira da. O Imperial Collegio De Pedro II e o ensino secundário da boa sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. Resenha de: GOELLNER, Silvana Vilodre; CARVALHO, Marco Antônio Ávila de. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.

Elaborado tendo como ponto de partida a tese de doutoramento em educação produzida pelo autor, o presente livro percorre os corredores e arredores de uma tradicional instituição escolar no período compreendido entre 1837 e os anos finais do Império. Suas páginas permitem identificar rastros de um modo de educar os jovens da elite imperial brasileira cujo objetivo primeiro estava direcionado para a formação da boa sociedade brasileira. Trata-se, portanto, de uma obra ímpar cujas fontes arroladas fornecem dados fecundos para melhor conhecermos a atmosfera político-intelectual de um período no qual se buscava a formação dos corpos e sub­jetividades de homens representados como potenciais dirigentes do mundo imperial.

O livro é dividido em cinco capítulos. No primeiro deles, no qual o foco é a constituição do quadro de profissionais que atuavam no Colégio Pedro II(CPII), Carlos Fernando desenvol­ve uma interessante narrativa ao destacar os atributos, valores, funções e responsabilidades necessárias para tornar-se, tanto um professor, como um inspetor de alunos. Boa formação acadêmi­ca, erudição e notoriedade revelam-se como alguns dos critérios basilares para a contratação de docentes; já para os inspetores, exige-se o nível de instrução/formação com domínio de língua estrangeira bem como uma moral ilibada. Aos docentes cabia a tarefa não só de ensinar aos alunos as Letras e as Ciências como, também, lembrá-los de seus deveres perante Deus, Pais, Pátria e Governo. Aos inspetores, responsáveis pela ordem, disciplina e preservação da moral, era indicada a missão de vigiar, controlar e cuidar da boa conduta dos colegiais, assim como zelar pelo seu bom proveito nos estudos.

Ao dialogar fontes de diferente natureza (regulamentos, atas, ofícios, entre outras), Carlos Fernando faz ver que esse “perfil ideal” nem sempre era aquele que compunha o quadro profissional da instituição pois, não raras vezes, se depara com reprimendas e exonerações decorrentes de atitudes consideradas não apropriadas. Com relação aos docentes, identificou registros que apontavam para a falta de assiduidade, ofensas à moral e corrupção; no que respeita aos inspetores, além dessas falhas percebeu, ainda, denúncias con­tra mau tratamento aos alunos, bigamia e sodomia. Atos estes que feriam, sobremaneira, os princípios cristãos, a moral elevada e a construção da masculinidade desejada no e pelo Colégio.

Projetado para formar um determinado modelo de homem: “fiel, honrado, culto, disciplinado, católico e eloquente” (p. 37), o CPIInão aceitava mulheres como alunas nem mesmo integran­do o seu quadro profissional. O processo de masculinização lá desenvolvido deveria seguir regras viris evitando, sobretudo, a contaminação pela feminilidade. Nesse sentido, como afirma o autor, ao dificultar o ingresso das jovens ao universo letrado, “os dirigentes imperiais preservavam o monopólio do poder público dos negócios, da política e do poder em suas próprias mãos, ou seja, sob o controle masculino” (p. 47).

O segundo capítulo é dedicado a identificar o perfil dos alunos que ingressavam no Colégio considerando dois fatores: a origem socioeconômica e a naturalidade dos estudantes. Da análise docu­mental empreendida, o autor indica a existência de vários critérios tanto para o ingresso quanto para a permanência na instituição, o que não significa desconhecer que existiam, também, alguns apa­drinhamentos e predileções. Para entender essa afirmação deve-se levar em conta que, em função dos custos, apenas uma minoria da população poderia ter seus filhos matriculados no Colégio da Corte, reduzindo, sobremaneira, a formação da elite.

Ao desenvolver seus argumentos, Carlos Fernando destaca a existência de duas classes de alunos: Internato e Externato, explicitando ser a segunda delas a mais “acessível” às classes menos favorecidas. Nos primeiros anos após 1857, percebeu um significativo aumento no número de matrículas de alunos exter­nos e internos e um indício de que, pelo menos no Externato, esse acréscimo deu-se em função de um corte nas aulas avulsas de instrução pública secundária que eram ministradas na cidade do Rio de Janeiro. A diminuição da oferta de vagas dificultou a aquisição de conhecimentos mínimos por parte dos jovens menos favorecidos, razão pela qual, muitos dos alunos que ingressavam no Externato, frequentavam apenas os primeiros anos, o que era suficiente para realizarem os exames preparatórios. Em decorrência dessa situação, ainda que houvesse a presença de alunos vindos das escolas públicas, o ensino ministrado no CPII, acabou por facilitar o acesso ao ensino superior apenas para filhos da boa sociedade imperial.

Com relação à naturalidade e à carreira seguida pelos cole­giais após concluírem seus estudos, o autor aponta que a grande maioria dos alunos era natural do próprio Rio de Janeiro, fazendo ver que o CPII destinava-se, prioritariamente, à formação dos fi­lhos dos Saquaremas, grupo que circulava na Corte e região. Para analisar as atividades profissionais daqueles que ingressaram nas Academias Superiores, utilizando-se de um método semelhante ao de José Murilo de Carvalho (1980), Carlos Fernando destaca três grandes grupos: Governo: profissionais ligados ao Estado imperial e ocupantes de cargos políticos; Profissões liberais: médicos, advogados, poetas, jornalistas e engenheiros que não tinham relação profissional com o Estado imperial; e Economia: proprietários rurais, negociantes, comerciais e banqueiros. Revela, ainda, uma alternância na predileção da carreira a ser seguida, inicialmente voltada para o Governo e, partir de 1870, para as Profissões liberais. Essa alteração, segundo o autor, proporciona a formação de uma outra elite, menos comprometida com os in­teresses dos Saquaremas e, de certa forma, menos interessada nas ocupações do governo imperial. Esse período coincide, também, com as influências positivistas sofridas pelo Colégio, onde houve a abertura de espaços para uma maior divulgação e aplicação de conhecimentos de cunho científico.

O capítulo 3, inicia com uma descrição do entorno do CPII: a cidade do Rio de Janeiro, o crescimento populacional, o comér­cio, a urbanização, o sistema sanitário etc. A partir de relatos de professores e alunos, o autor expõe, também, as características estruturais do Colégio, a divisão de sua sede, o interno de seus prédios cuja precariedade acabou sendo evidenciado pela imprensa local. Precariedade essa que parece explicar os poucos registros iconográficos da instituição, uma vez que revelar suas deficiências poderia macular a imagem que se queria construir do Colégio como um símbolo da educação pública no Império.

Apesar dessa contextualização, o foco de análise recai em dois espaços que poderíamos denominar de lugares da memória: a cafua e o Salão Nobre. Carlos Fernando chama a atenção para esses espaços por perceber que é neles que se desenvolvem os minucio­sos e sutis processos de educação do corpo e do caráter revelado na aplicação das punições e recompensas. A cafua era destinada àqueles que não cumprissem as normas vigentes na instituição; já o Salão Nobre era ocupado pelos melhores alunos, o local no qual recebiam prêmios, destaques, honrarias e visibilidade. Ambiência simbólica construída a partir de dicotomias entre “o escuro e o luminoso; o fechado e o aberto; o escondido e o visível; o sujo e o limpo; o privado e o público; o vergonhoso e o célebre” (p. 85). Enfim, espaços pedagógicos nos quais aplicavam estratégias disciplinares que educavam para a formação de homens da boa sociedade brasileira.

No quarto capítulo, o autor analisa a instrução ministrada no CPII, instituição construída como modelar do governo imperial. Perscruta os planos de ensino, o projeto pedagógico, os decretos, as disciplinas ministradas e os conhecimentos valorizados, dentre os quais destacam-se, até o final da década de 1860, as letras clássicas e o ensino religioso. Essa orientação pedagógica, gradativamente, começa a perder força, cedendo espaço para a afirmação de uma cultura mais racional e científica, peculiar ao movimento positivista e à instauração da República. Oconhecimento, antes centrado nas letras, voltou-se também para o científico, o que não significa afirmar que a instituição tenha adotado uma função propedêutica destinada a preparar candidatos para os cursos superiores. Pela sua história e configuração, o Colégio da Corte era identificado como um local a formar e recrutar a elite nacional, “local em que os virtuais dirigentes imperiais deveriam aprender mais do que o conhecimento exigido nos preparatórios, mas um amplo conjunto de saberes, vivências e atividades” (p. 103).

Aprendizado esse que passaria pela educação do corpo, con­forme podemos observar no quinto e último capítulo. Nele ganha destaque a gymnastica, introduzida no Colégio em 1841, sob a orientação Guilherme Luiz de Taube, ex-Capitão do Exército Im­perial. Nos documentos analisados é recorrente a ideia de que a adoção da ginástica inspirava-se nos colégios europeus, nos quais tal prática era recorrente e recomendada como um importante elemento de educação da juventude.

Conhecida como científica, a ginástica ali aplicada estava pautada pelo modelo médico-higienista, oriundo da tradição eu­ropeia, a qual consolidou-se como um meio de controle social, de formação moral e disciplinar, de regeneração e aperfeiçoamento da raça, de construção de um sentimento de identidade nacional, de desenvolvimento e aprimoramento do físico e da saúde. Prática regular no CPII, este capítulo focaliza a gradativa consolidação deste elemento da cultura corporal no qual são evidenciados os seus principais mestres, os dias e horários das aulas, a construção do ginásio e do pórtico de ginástica, o regulamento que a oficiali­za, os planos de ensino e seus conteúdos, enfim, o seu acontecer dentro da instituição.

Inspirada inicialmente pela conduta militar, a ginástica passa a ser justificada e incentivada na sociedade brasileira em função de argumentos de ordem médica e higiênica, visto que a ciência positiva estava a alastrar-se e, com ela, a ideia de que a construção de um corpo forte e sadio seria obtida mediante a prática sistemática de exercícios ginásticos. Vale ressaltar, conforme aponta Carlos Fernando, que a ginástica desenvolvida no interior do CPIInão esteve orientada apenas por uma escola ou método. Da análise das fontes emergiram diálogos entre autores de diferentes tradições indicando certo ecletismo no seu fazer dentro do Colégio da Corte, ora ressaltando a prática da esgrima, ora de exercícios oriundos da escola francesa ou, ainda, outras filiações compondo, assim, um modo de educar o corpo masculino e, por consequência, de formar a elite imperial brasileira.

Feita essa síntese, gostaríamos de registrar que, muitas são as razões pelas quais a leitura desse livro é tarefa necessária e, diríamos também, prazerosa para quem se interessa pela história da educação no Brasil. Afora o fato de tratar-se de uma importante e tradicional instituição tomada como referência para tantas outras, o desenho metodológico e a densidade teórica aqui presentes mostram-se exemplares para investigações dessa natureza. A produção das fontes e os diálogos estabelecidos entre elas, a urdidura da trama e a construção narrativa proposta por Carlos Fernando são revela­dores de um investimento pessoal e, também, coletivo na medida em que indica novas abordagens sobre temas e fontes já outrora visitados. É exatamente esse tom que nos permite, ao folhearmos suas páginas, sentir os cheiros e as texturas, ouvir as vozes e os sussurros dos corredores e arredores do Imperial Collegio Pedro II. Ao tocar nossa sensibilidade, identificamos vestígios de um projeto político-pedagógico de educação da elite cujo desenrolar promoveu encantamentos e desencantos, liberdades e interdições. E, nesse sentido, não há como ler esse livro sem lembrar de O Ateneu, obra magistral de Raul Pompéia publicada em 1888, cuja narrativa focaliza uma instituição escolar destinada a formar meninos da e para a boa sociedade brasileira. Resguardadas as especificidades de cada um dos livros, vale lembrar a retórica de Aristeu Argolo dos Santos, seu diretor, quando relata o árduo trabalho de educação da mocidade:

Um trabalho insano. Moderar, animar, corrigir esta massa de carac­teres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar e enca­minhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar excessivos ardores; retemperar o ânimo dos que se dão por vencidos precocemente; prevenir a corrupção; desiludir aparências sedutoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres ensinamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espiar os sítios obscuros; fiscalizar as amizades; descon­fiar das hipocrisias. Ser amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com segurança para depois duvidar; punir para pedir perdão depois… (…) não é o estudo dos rapazes a minha preocupação… É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade! [Pompéia, 1967, p. 30]

Sem pretender analisar o componente da imaginação e da ficção presentes na obra literária e na investigação historiográ­fica, importa identificarmos o Ateneu e o Colégio Pedro II como instituições escolares destinadas à formação da elite Oitocentista. Ou melhor, a elite masculina, a qual se inferia a expectativa de representar, nos corpos e subjetividades de seus integrantes, um modo viril e qualificado de ser, atributos considerados necessários a futuros dirigentes. Por fim, os vestígios revisitados por Carlos Fernando permitem que, em pleno início do século XXI, possamos compreender o conselho de Aristarco aos ingressantes no Ateneu “faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se” (idem, p. 37). Palavras essas também pronunciadas e ouvidas nos corre­dores e arredores do Imperial Collegio Pedro II.

Referências

Carvalho, J. M. de. A construção da ordem – a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

Pompéia, R. O Ateneu. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1967.

Silvana Vilodre Goellner –  E-mail: [email protected].

Marco Antônio Ávila de Carvalho

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História da organização do trabalho escolar e do currículo no Século XX (ensino primário e secundário no Brasil) – SOUZA (RBHE)

SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no Século XX (ensino primário e secundário no Brasil). Coleção Biblioteca Básica de História da Educação Brasileira, vol.2. São Paulo: Cortez, 2008, 320 p. Resenha de: BORGES, Aline D. B. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.

Com a imagem de uma sala de aula, Rosa Fátima de Souza inicia sua obra, com a perspectiva de que nenhum outro lugar simboliza mais “a finalidade cultural da escola e sua representação social”. Na introdução, a autora persuade-nos a desnaturalizar o espaço escolar, posto que ele nem sempre foi do modo como o concebemos hoje.

Para analisar a organização do trabalho escolar e o currículo no decurso do século XX, abrangendo da Primeira República aos anos de 1970, nas escolas primárias e secundárias do Brasil, mas, de um modo particular, a paulista, Souza menciona algumas questões que serão respondidas ao longo do seu texto, tais como: o que mudou ao longo desse século? Quais elementos da cultura foram considerados legítimos e válidos para transmissão nas escolas? Por que alguns conteúdos se mantiveram e outros não? Quais fatores implicaram a determinação do currículo escolar ao longo do tempo? Que tipo de homem e cultura foram privilegiados na sociedade brasileira? Como as transformações na história do currículo repercutiram na organização interna da escola? Para tal, opera com dois eixos norteadores: o currículo e a organização do trabalho escolar, e se apropria de diversos autores1, que, segundo ela, “têm ressaltado a necessidade de conceber o currículo como uma construção social e histórica”.

Aborda a organização do trabalho escolar, considerando a “diversidade das instituições educativas, a graduação do ensino, a ordenação do tempo, a constituição das classes e séries e a siste­mática de avaliação”. Para realizar esse empreendimento, faz um recorte espacial para sua pesquisa, analisando a escola primária paulista e a escola secundária em âmbito nacional, recorrendo a diversas fontes, principalmente à legislação de ensino em âmbito federal e estadual, periódicos nacionais, currículos prescritos, programas de ensino, anais de eventos, publicação de época e imagens fotográficas.

O livro encontra-se dividido em três partes: Escola Primária, Escola Secundária e Escola Básica. É relevante apontarmos que a autora defende a tese de que a escola primária serviu à formação do cidadão brasileiro, destinada, portanto, à maioria da população. Já a escola secundária, atendendo a elites dirigentes e à classe média em ascensão, permanecia como a guardiã da cultura geral de caráter humanista.

Em “A escola primária e a formação do cidadão brasileiro (1890-1960)”, primeiro capítulo do livro, a autora discute as trans­formações ocorridas nos currículos da escola primária na Primeira República. Para ela, a formação do cidadão republicano apoiava-se na possibilidade de integrar socialmente tais indivíduos, por meio da inculcação de valores essencialmente cívico-patrióticos e na constituição de culturas escolares distintas. Busca quais são os “novos” conhecimentos úteis, ressaltando que o que ensinar ao povo se tornara assunto em voga nos debates da época. Nessa discussão, percebemos as ciências como ponto “chave”, pois era a expressão do desenvolvimento do capitalismo, e, nesta sociedade imbuída pelo progresso, a educação primária deveria ser a mais prática possível.

A principal finalidade da escola primária foi, segundo Souza, a educação integral da criança (intelecto, corpo e alma), visando forjar um novo ser social e um cidadão adaptado à nova sociedade. A adoção do método intuitivo (ícone da escola primária moderna) e de novas matérias2, a dotação material das escolas, a formação científica e prática dos professores e a criação de um serviço de inspeção técnica para a orientação do ensino tornaram-se as preocu­pações centrais dessa escola republicana. Para a autora, a mudança do regime político acarretou uma série de reformas educacionais que consolidaram outro modo de organização administrativa e pedagó­gica nessa modalidade de ensino. Sinaliza as condições lastimáveis, seja material ou organizacional, das escolas na época do Império, caracterizando os moldes dessa escola (método misto, apelo à me­morização, repetição diária das lições e disciplina garantida por meio de castigos), mostrando ainda como os primeiros governos do estado de São Paulo deram à educação popular centralidade política e como o projeto republicano foi mais ambicioso. Contudo, essa dicotomia entre Império e República, que parece ser defendida pela autora, necessita ser problematizada, pois, apesar de usualmente o tema da modernidade ser vinculado ao progresso republicano, é importante desviarmos de uma perspectiva dualista que prevê o moderno em oposição ao tradicional. Observarmos que o discurso difundido pela esfera do Estado defendia o ensino primário público como uma possibilidade de superação do atraso e da apatia de outrora, intentando conferir à escola um caráter modernizador, civilizador e moralizador. Todavia, sinalizamos que as recém-chegadas propostas não anularam a coexistência de outros modelos de educação. É fundamental percebermos as dissonâncias existentes entre práticas e discursos, permanências e mudanças das formas escolares, entre o que é propagado pelas fontes oficiais e as micropráticas cotidianas estabelecidas nos interiores das instituições escolares.

De acordo com a autora, as reformas educacionais paulistas iniciaram-se pela Escola Normal, e em seguida (1892 e 1896), alguns dispositivos legais consolidaram a reforma da instrução pública, articulando os três níveis de ensino: primário, secun­dário e superior. Em 1893, contrastando com a escola unitária, foram implantados os primeiros grupos escolares organizados em moldes das escolas graduadas. A autora afirma que a organização comparado às escolas unitárias, visto que reduzia a dispersão das tarefas de ensino. É preciso adicionar a esta análise a não aceitação pacífica dos professores, as heterogêneas opiniões, tendo em vista as resistências por parte destes, indiciando que talvez não fossem tão amplamente favorecidos como a história oficial alude.

Para aproximar-nos da cultura escolar dessas instituições, Souza propõe-nos um olhar sobre as práticas de ensino, buscando analisar a função cultural da escola, seu intento em formar um modelo de homem cidadão, utilizando-se de saberes, habilidades, códigos e valores.

Souza aponta para as funções ampliadas da escola elementar revistas no Código de 1933: a gratuidade estendida para cinco anos e a obrigatoriedade instituída para crianças na idade entre 8 e 14 anos, a duração de três anos nas escolas isoladas e quatro anos nos grupos escolares e prevalência do rol de matérias do início da República3. Por esse código, as escolas públicas seriam organizadas em escolas isoladas, grupos escolares, cursos populares noturnos e escolas experimentais. Percebemos, assim, as permanências e as rupturas, seja no currículo como no próprio modo de organização escolar. A autora sugere-nos a necessidade de refletir como se deram, na prática, no interior das escolas, todas essas regras prescritas, essa seleção cultural e as alterações de programas.

“Educação secundária, cultura humanista e diferenciação so­cial na Primeira República”, segundo capítulo do livro, delineia a diferença mais marcante entre os dois ensinos, pois, para Souza, os estudos secundários “significavam a manutenção de uma alta cul­tura assentada sobre a conciliação precária entre estudos literários e científicos, prevalecendo, não obstante, os primeiros”.

A autora indica as disputas e os conflitos que estiveram em jogo pela estruturação do ensino e do currículo, a precariedade do ensino secundário brasileiro ao fim do Império e a proliferação dos colégios particulares, reafirmando que “se manteve no país a finalidade eminentemente preparatória do ensino secundário”. Esse ensino teve, no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, dois sistemas paralelos de organização: os ginásios e os estudos parcelados. Tenta apreender, em linhas gerais, “como determina­dos conteúdos da cultura mantiveram ou ganharam legitimidade com valor educativo enquanto outros foram perdendo relevância, sendo secularizados e eliminados gradativamente dos currículos”. Para ela, a educação recebida nesses colégios e ginásios era uma formação mais literária do que científica.

Assim, somos levados a refletir sobre outras reformas ou modi­ficações que, de alguma forma, dizem respeito a esse ensino, como a reforma protagonizada por Benjamin Constant, em 1890, que buscou ampliar a formação científica, o exame de madureza – aferição do desenvolvimento intelectual dos estudantes e sua maturidade –, e a divisão do ensino secundário, pelos idos de 1898, em curso realista e clássico. Dentre outras disputas, indica os conflitos acirrados em torno do estudo do latim, apontando-nos para a seletividade que marcou o ensino secundário brasileiro na Primeira República. No que tange ao público atendido, sinaliza a ausência dos negros, índios e das camadas populares. Há indícios que podem aquilatar essa discussão, mas essa ainda é uma temática pouco explorada, devido aos limites das análises das fontes historiográficas.

Retomando a longa discussão sobre as disciplinas que resistiam ou foram suprimidas do currículo, Souza afirma que essa seleção cultural servia para diferenciar e atender um grupo específico, o seleto grupo social que utilizava a educação secundária como es­tratégia de reconversão do capital econômico em capital cultural. Souza aprofunda-se na temática dos ginásios paulistas à medida que se apropria dos estudos de Nadai (1987) e Cunha (2000), analisando quem eram os alunos que frequentavam esses espaços. Destacando vários estudos que abordam colégios ou escolas em diversas regiões do Brasil4, a autora busca alguns traços comuns entre essas instituições secundárias, o que nos fornece um horizonte mais amplo de discussão.

No terceiro capítulo, “Entre a vida, as ciências e as letras: transformações da escola secundária entre as décadas de 1930 e 1960”, Souza indica que esse período foi o de consolidação e, ao mesmo tempo, de redefinição da educação secundária no Brasil, tendo organicidade, racionalidade e padronização como bases que “alicerçaram a expansão contínua das oportunidades educacionais nesse ramo de ensino médio”. Aponta ainda para esse período his­tórico como o de democratização do ensino, ou seja, aparecimento de outros sujeitos frequentadores da escola.

Durante o governo de Getúlio Vargas5, segundo a autora, “passaram a ser exigidos dos estabelecimentos de ensino estudos regulares, seriação, frequência obrigatória, aprovação em todas as disciplinas da série para a série seguinte e habilitação nos dois ciclos para realização do vestibular e entrada no ensino superior”, visando estabelecer uma organicidade em âmbito nacional, e ainda eliminar definitivamente o curso preparatório. A regulamentação do docente destinava-se à inscrição do ensino secundário público e particular. Desta forma, afirma que esta imposição de uniformidade visava “o ensino particular, responsável, na época, por mais de 75% das matrículas do ensino secundário”. Essa reforma continuou a exigir o exame de admissão para alunos e a avaliação como forma de seleção. Quanto ao currículo, obteve uma distribuição mais equilibrada entre estudos científicos e literários. Souza indica que todas essas discus­sões e disputas no período do Estado Novo estavam no bojo de uma discussão mais ampla, de cunho político e social, resultando em mais uma reforma educacional, dessa vez identificada com os interesses conservadores, instituindo as Leis Orgânicas do Ensino6.

Ainda tratando de ginásios e colégios de 1930 a 1960, tenta compreender, apoiada em alguns autores7, as múltiplas experiências dos sujeitos que passaram por esses locais, as práticas educativas, o exercício profissional do magistério, bem como seus saberes, as atitudes apreendidas pelos alunos, as sociabilidades constituídas e a cultura juvenil crescente nessas escolas. Dialogando com o texto de Jayme Abreu, a autora revela-nos sobre quais premissas se firmava o modelo de educação defendido por Fernando de Azevedo. A disputa entre uma base utilitária e cultural para escola secundária foi longa e tensa, mas, no final dos anos de 1950, a seleção cultural posta no currículo apontava em outra direção e a primeira se sobrepôs.

Na terceira parte, A Escola Básica, Souza afirma que, a partir da década de 1960, esse segmento “estaria mais em conformidade com as características do público escolar e da moderna sociedade in­dustrial brasileira”. Em contraponto, os mecanismos de seletividade continuaram a existir e a operar, “expondo de maneira veemente os problemas do fracasso e exclusão escolar”. No ensino secundário, foi profunda a substituição das humanidades pela cultura científica e técnica orientada para o trabalho.

Já na parte final do livro, Souza analisa a modernização dos currículos nas décadas finais do século XX, ressaltando que nos anos de 1960 os movimentos sociais, as reformas de base e os golpes teriam marcado vários setores da sociedade, inclusive o educacional. Faz uma análise da escola e do seu currículo a partir da lei n. 4.024/19618, e, segundo ela, “pela primeira vez, a União abria mão do forte controle que exercera sobre o ensino secundário desde o Império”. Já o curso secundário passou a fazer parte do ensino médio, juntamente com os cursos técnicos e de formação de professores, e ressalta ainda que “a hegemonia das humanidades caía definitivamente em ruína”, tornando clara qual era a predo­minância da época: a cultura científica e técnica.

Reflete sobre as mudanças educacionais a partir da LDB n. 5.692 de 1971, que “ao contrário da tendência liberalizante e flexibilizadora característica da Lei de Diretrizes e Bases de 1961, […] promoveu o recrudescimento da centralização curricular”. Para o 2º grau, devido ao fracasso da profissionalização obrigatória, houve o reforço da formação geral, especialmente as disciplinas científicas. Porém, as línguas clássicas (latim e grego) e a filosofia foram abolidas do rol de disciplinas desse segmento.

O livro constitui-se, enfim, numa leitura amplificada e necessária sobre a educação brasileira no século XX, que aborda seus processos, suas demandas, seus projetos, suas tensões e conflitos, e os desafios da educação e da sociedade brasileira no limiar do século XXI.

Notas

[1]Kliebard (1995), Goodson (1995, 1997), Gimeno Sacristán (1998a), Forquin (1993), Popkewitz (2000). Cf. Souza (2008, p. 11).

2 Ciências físicas e naturais, história, geografia, música, instrução moral, educação física, desenho, instrução cívica e trabalhos manuais.

3 Leitura, linguagem oral e escrita, aritmética e geometria, geografia, história do Brasil e instrução cívica, ciências físicas e naturais, trabalhos manuais, desenho, caligrafia, canto e ginástica.

4 Alves (2005), Cabral (2005) e Barros (2000), respectivamente (Cf. Souza, 2008, p. 122).

5 Em especial, com a reforma empreendida pelo ministro Francisco Campos.

6 A estas leis, a autora chama de “mais uma vitória da educação humanista”, recupe­rando a tradição humanista e as finalidades das disciplinas, ou seja, os dois ciclos, padronização do estabelecimento, exame de admissão, fiscalização e avaliação, tudo que fora solapado pela reforma de Campos. Com duas inovações: a orientação educacional e os trabalhos complementares.

7 Nadai (1991), Barroso Filho (1998), Fonseca (2004), Camargo (2000), Amaral (2003) e Perez (2006). Cf. Souza (2008, p. 188). Tais trabalhos versam sobre as representações e o imaginário consagrado na sociedade brasileira em torno da qualidade da escola secundária existente até a década de 1970.

8 Primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que tramitou durante 13 anos no Congresso Nacional.

Aline D. B. Borges – Graduanda em Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.E-mail: [email protected]

Ligia Bahia de Mendonça – Mestranda em História da Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.E-mail: [email protected]

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O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940) – BICCAS (RBHE)

BICCAS, Maurilane de Souza. O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, 216 p. Resenha de: GUIMARÃES, Paula Cristina David. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940), livro publicado em 2008 pela editora Argvmentvm, é resultante da pesquisa de doutoramento empreen­dida por Maurilane de Souza Biccas, pós-doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde integra a coordenação do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Niephe).

Com sólida experiência em trabalhos sobre impressos peda­gógicos que, recentemente, vem crescendo no Brasil e muito tem contribuído para os estudos em história da educação, Biccas realiza, neste trabalho, uma investigação sistemática sobre o impresso pe­dagógico mais representativo na história de Minas Gerais, a Revista do Ensino. A autora não se restringe somente à Revista; utiliza outras fontes documentais como jornais, decretos e leis da época pesquisada no intuito de complementar e esclarecer as informações obtidas da fonte principal de sua investigação.

Composto de seis capítulos, o trabalho destaca aspectos re­lacionados à materialidade, produção, circulação e distribuição da Revista do Ensino, “impresso pedagógico oficial de educação direcionado aos professores, diretores e técnicos da rede pública de ensino do estado de Minas Gerais” (p. 15), entre os anos de 1925 e 1940. A obra tem por objetivo “descrever e analisar os aspectos relacionados à materialidade da Revista aos conteúdos nela vei­culados, às mudanças ocorridas nos seus primeiros dezesseis anos de circulação e à produção de sentidos desencadeada por essas transformações editoriais” (p. 15). Para a realização do trabalho, autora fundamenta-se no campo de análise da “nova história cultural”, campo que vem impactando a produção historiográfica contemporânea e, de modo particular, a história da educação.

Quanto à materialidade da Revista, Biccas dispensa aten­ção especial à análise de capas, versos de capas, contracapas e quartas-capas dos números publicados. Como Marta Maria Chagas de Carvalho chama a atenção na apresentação do livro, a Revista do Ensino “não foi tratada como um veículo neutro para a comuni­cação dos conteúdos dos textos que edita, mas como performidade da ordenação da significação deles na materialidade mesma das diversas formas aplicadas à sua edição” (p. 13). Nesse sentido, Biccas recorre a autores que investem nesse mesmo pensamento quanto à importância da análise da materialidade dos impressos, tais como Roger Chartier e Michel de Certeau.

No primeiro capítulo do livro, “Ciclo de vida de um impresso oficial: Revista do Ensino 1925-1940”, a Revista é analisada dentro do seu momento histórico de constituição e circulação. A autora retorna ao momento de criação da Revista do Ensino, 1892, des­tacando que, após a publicação de apenas três números, a Revista foi desativada. Seu relançamento aconteceria em março de 1925, sendo interrompida entre os anos de 1940-1946 devido à Segunda Guerra Mundial, voltando a circular até 1971.

A Revista também é analisada como parte integrante e depo­sitária das mudanças educacionais ocorridas em Minas Gerais, como a Reforma Francisco Campos (1927). Na ocasião, o go­verno mineiro fez das páginas da publicação um valioso meio de apresentação, discussão, avaliação e estímulo à utilização das ideias pedagógicas renovadoras pretendidas por essa reforma. Esse impresso pedagógico também se revela como arena de disputas e acordos de diferentes interesses políticos e educacionais travados, por exemplo, entre católicos e “liberais”. Desse modo, e com as conexões que a autora realiza do momento histórico pesquisado, é possível perceber as relações de força que compunham o projeto editorial da Revista do Ensino.

Já no segundo capítulo, “Processos de produção e circulação”, a autora observa as formas de produção e as condições de circulação do periódico. Para tanto, faz uma descrição material e apresenta, de maneira detalhada e organizada, informações acerca de cada um dos 16 primeiros anos de circulação da Revista, relacionando: publicações, páginas por publicação, seções utilizadas, fotografias e ilustrações veiculadas, formato, presença ou não de propagandas, sumário e índice. Além disso, tendo em vista as diferentes formas de manipulação da Revista, a autora também analisa aspectos da dinâmica de apropriação que os professores faziam do periódico.

No capítulo três, “A dinâmica das formas e dos sentidos”, a pes­quisadora analisa as capas, versos de capas, quartas-capas e páginas finais que compõem a Revista do Ensino, a fim de explicitar como “conformam e se articulam os procedimentos de composição e de textualização” do periódico (p. 95). Nessa análise, Biccas percebe a capa como item de suma importância na composição da Revista, na medida em que atuava como um chamariz para a leitura. Para a autora, a capa representa um “espelho” dos diferentes projetos políticos e educacionais pelos quais a Revista passou, refletindo tensões, contradições e ambiguidades de tais projetos. Os diversos suportes que o periódico recebeu também foram objetos de análise para Biccas. Assim ela foi analisada, primeiramente, como anexo do Jornal Minas Gerais, depois como suplemento do mesmo Jornal e, finalmente, como Revista autônoma ao se desvincular do referido jornal. Oobjetivo dessa análise foi perceber como o suporte que veiculou a Revista marcava o modo como esta se apresentava para seus leitores.

No quarto capítulo, “Propaganda, publicidade e informação”, são analisadas a forma, o lugar e a intenção dos editores da Revista ao destinar um espaço para esse tipo de divulgação em um impresso educacional. Segundo a pesquisadora, 1929 foi o primeiro ano em que se veicularam propagandas na Revista de Ensino, além de ter sido o período de maior incidência propagandística. Nesse mesmo ano percebe-se que a maior parte dos anúncios de publicidade eram direcionados ao público-alvo da Revista do Ensino, os professores e diretores de escola. Os espaços destinados pelos editores a esses e outros tipos de anúncios foram as quartas-capas e, em alguns números, as páginas internas da Revista.

No capítulo cinco, “A Revista dada a ver: fotografias e ilustra­ções”, Biccas analisa as imagens veiculadas pelo periódico, para compreender a relação construída pelos editores ao apresentar fotografias e ilustrações como textos e também observar a atuação destes como elementos constitutivos do próprio periódico. Uma vez que a Revista do Ensino de Minas Gerais era um periódico oficial, os traços das políticas educacionais mineiras são evidentes em suas páginas. Por conseguinte, as imagens não são tratadas de forma periférica, mas analisadas como estratégias de transmissão de “mensagens que se pretende divulgar e inculcar” (p. 149). As fotografias e ilustrações utilizadas buscavam exprimir uma “men­sagem”, produzir um significado e um efeito junto aos leitores, chamando-lhes a atenção para uma nova concepção de educação que estava sendo forjada e deveria ser assimilada por eles. Nesse sentido, as imagens foram responsáveis pela divulgação de festas, prédios escolares, métodos pedagógicos e atividades escolares de crianças.

No sexto e último capítulo, “A síntese e difusão de modelos: esquadrinhando as seções”, a autora apresenta e analisa as seções que compõem os números da Revista, e observa que as seções sofreram processos importantes de constituição, permanências e rupturas dentro do projeto editorial. Para essa análise, Biccas apresenta dados sobre as seções, evidenciando o período em que elas foram criadas, o tempo de permanência e a que tipo de temá­tica se referiam. As seções também são analisadas tendo em vista a “política editorial adotada no período, procurando perceber que representação de professor-leitor os editores tinham e que propostas de formação foram traçadas a partir dessa concepção”.

Ao final da obra, Biccas conclui que os principais enfoques que guiaram a análise em sua pesquisa permitem considerar a Revista do Ensino “como um dispositivo de normatização pedagógica e de ampliação da cultura educacional dos professores” (p. 197). A Revista, ao mesmo tempo em que difundiu ideias e preceitos, promoveu determinados hábitos de leitura, modelados por suas indicações, configuração e forma como dispôs e organizou seus textos. Assim, a autora destaca que “ao mesmo tempo em que a Revista foi sendo produzida, também produziu e foi construindo o próprio campo educacional mineiro” (p. 200).

O livro resenhado expressa seu valor pela riqueza de detalhes, tais como a veiculação de gráficos e tabelas de informações, bem como pelos cruzamentos e comparações dos dados obtidos. Oolhar que a autora lança sobre seu objeto de pesquisa é, simultaneamente, singular e plural, ou seja, ao mesmo tempo em que isola os dados da Revista, Biccas os confronta e os articula, percebendo, assim, novos indícios de informações para suas análises.

No sentido empregado por Foucault (2002), a Revista do Ensino pode ser analisada como uma “tecnologia de poder”, na medida em que atuou como objeto de ação e de controle do gover­no mineiro sobre a atuação docente, sendo um suporte para leis, normas e recomendações das diretrizes educacionais durante seu período de circulação.

O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940) é tema relevante para a história da educação na medida em que nos leva a uma reflexão sobre as diferentes possibilidades de pesquisa oferecidas pelo impresso pedagógico, principalmente no que tange às ideias em formação no campo educacional de um determinado período.

É possível perceber, ainda, o processo em que se deu a pesquisa com a materialidade do objeto quando a autora expõe, de forma clara e objetiva, a forma como lidou com os processos de orga­nização da Revista para a realização do trabalho. Demonstrando sua posição sobre a importância de análise do material impresso, Biccas apresenta, durante sua obra, análises meticulosas da Revista do Ensino, evidenciando sua riqueza de indícios dos aspectos pe­dagógicos no contexto histórico do período analisado. Por isso, ao ler a obra, é possível perceber que, ao voltarmos nosso olhar para um objeto de pesquisa como o impresso pedagógico, acabamos por decifrar complexos processos educativos que permearam a educação brasileira em determinado tempo e espaço.

Com uma multiplicidade de dados, análises minuciosas e com um convite para novas pesquisas, o livro resenhado constitui um rico material de referência para historiadores da educação que pesquisam ou desejam pesquisar acerca de im­pressos pedagógicos.

Referências

Foucault, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Paula Cristina David Guimarães – Mestranda em Educação pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: [email protected]

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Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias – BAUMAN (ER)

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 199p. Resenha de: COSTA, Marisa Vorraber. Consumo e consumismo: deslocamentos nas ressonâncias do contemporâneo. Educação & Realidades, Porto Alegre, v.35, n.3, p.343-349, set./dez., 2010.

Zygmunt Bauman1, considerado um dos expoentes da teoria social contemporânea, vem abordando o tema do consumo na maior parte de seus livros, dentre os quais citamos Modernidade e Ambivalência (publicado originalmente em 1991, e no Brasil só oito anos depois), O Mal-estar da Pós- Modernidade (1998), Globalização: as conseqüências humanas (1999b), Modernidade Líquida (2001), Vida Líquida (2007). Tal fato demonstra, além da centralidade do conceito para a compreensão da vida nas sociedades do início do século XXI, também o alinhamento das análises de Bauman entre as de autores que consideram o consumo uma dominante cultural.

Em Vida para consumo (2008), Bauman elege o consumo como foco preferencial, e desenvolve sua análise apresentando o que considera ser uma das principais consequências da condição pós-moderna: a progressiva e constante transformação das pessoas em mercadorias.

Um dos mais notáveis analistas das transformações dos modos de vida nas sociedades da segunda metade do século XX e início do XXI, Bauman nos apresenta sintomas que considera próprios da cultura de nossos dias, essa a que nos referimos como cultura contemporânea. Envolvendo-nos em análises sobre artefatos e temas que nos circundam, ele aborda casos expressivos dos modos de vida em nossos dias, localizados em matérias de jornais, quadros midiáticos, estratégias mercantis, usos da tecnologia, etc. Para ele, todos podem ser compreendidos como enunciados que falam sobre nossas sociedades e os sujeitos que as compõem. São convocações para assumirmos determinados modos de ser, e que expressam, ao mesmo tempo, as marcas e singularidades do nosso tempo. Evidencia-se aí uma das principais características das obras de Bauman, que é esse modo profícuo como analisa as configurações da atualidade, escrutinando suas injunções e operando com ferramentas que nos fazem pensar sobre aquilo em que estamos nos tornando.

Chama atenção a habilidade do autor para articular a complexidade dos empreendimentos analíticos que utiliza ao problematizar as configurações sociopolíticas e culturais que se erguem, cotidianamente, em nosso entorno, com uma forma despretensiosa e acessível de expressão de ideias e de desenvolvimento da reflexão. É isso que, somado a tantos outros admiráveis atributos de seu trabalho intelectual, entre eles a aguçada sensibilidade para as questões sociais mais críticas do nosso tempo, vem despertando cada vez mais interesse por seu pensamento, posicionando seus livros entre os sucessos editoriais da atualidade pelo mundo afora.

Já na Introdução de Vida para consumo, Bauman expõe três diferentes casos a partir de matérias selecionadas em duas edições do jornal britânico The Guardian. No primeiro, aborda a tendência cada vez mais forte, hoje, de uma visibilização de si em redes sociais da Internet. No segundo, trata da seleção, por parte de muitas empresas, dos bons consumidores em detrimento dos chamados consumidores falhos. E, no terceiro, aborda a política de imigração britânica, que coloca em disputa um sistema de pontuação para a avaliação dos imigrantes que interessam ao país. Esses três casos, localizados em diferentes seções do jornal e relacionados a distintas esferas da vida, são reunidos e conectados por Bauman como expressões de nossa cultura, que cada vez mais incitam os sujeitos a fazerem de si mesmos mercadorias desejáveis e vendáveis nos inflacionados mercados do século XXI. Essa exposição a que as pessoas se submetem ressalta o quanto nossas experiências estão implicadas com a disposição para nos tornarmos mercadorias. Afinal, desde as incursões sobre nós mesmos, envolvendo investimentos corporais e estéticos, relacionamentos amorosos e de trabalho, entre tantos outros, somos instados a uma série de processos que implicam uma remodelagem constante.

A obra de Bauman expressa um refinamento importante nas discussões e formas de se pensar sobre consumo, apontando deslocamentos do conceito. De um entendimento do consumo como apropriação de objetos e produtos, há um alargamento para comportar também a produção dos próprios sujeitos e sua disponibilidade para se transformarem em mercadorias. A esse processo Bauman refere-se empregando o termo comodificação, aludindo a operações em que as pessoas assumem a condição de mercadorias, de bens a serem desejados, mercantilizados, ultrapassando a exclusiva condição de consumidores. Contudo, segundo o autor, se o fetichismo da mercadoria, na fase sólida da modernidade, tendia a encobrir os fatores humanos incrustados na sociedade de produtores, o fetichismo da subjetividade tende, por sua vez, a encobrir a condição “comodificada da sociedade de consumidores” (Bauman, 2008, p.23).

É nesse sentido que o fetichismo da subjetividade atua, produzindo nos sujeitos a crença de que as movimentações se dão por uma liberdade de escolha que é basicamente individual, não sendo pré-estabelecida por catálogos de formas de vida à venda em diferentes âmbitos de nossa sociedade de consumidores.

O livro é composto de uma Introdução e mais quatro capítulos: Consumismo versus consumo, Sociedade de consumidores, Cultura consumista e Baixas colaterais do consumismo. Os capítulos são entrelaçados de maneira excepcional pelo autor, que problematiza as configurações contemporâneas em relação ao consumo desmembrando os seus pontos de articulação e interligando-os, fazendo-nos transitar por uma análise cuidadosa e metodologicamente útil às nossas pesquisas. Optamos, frente à complexidade de apresentar capítulos que se articulam de maneira tão magistral, por fazer ressoar os usos dos conceitos e das estratégias metodológicas de Bauman no livro. Isso porque, talvez, tenhamos sentido que o tema e a escrita se inscrevem numa fugacidade e dinamicidade que não temos como apreender de todo. Mostrar as ressonâncias nos parece, assim, o mais apropriado frente a uma obra que nos incita a pensar muitas outras coisas a partir e para além dela.

O autor articula suas análises pautando-se por novos conceitos, muitos deles buscados em autores com os quais compartilha visões e interpretações, e que servem para compreender as singularidades deste tempo. Sociedade de consumidores, comodificação, cultura consumista, tempo pontilhista, fetichismo da subjetividade, agrupamentos por enxames, entre outros, são alguns dos conceitos tensionados no livro. Ressoa para nós o quanto a compreensão de novos fenômenos, emergentes em uma sociedade de consumidores, não são passíveis de ser produtivamente problematizados se recorremos a conceitos que são, ainda, mais próprios de uma sociedade de produtores. A análise parece indicar, assim, o quanto cada conceito, como salientam Derrida e Roudinesco (2004, p.14), “[…]nomeia o gesto de uma apreensão, é uma captura”.

Outro dos importantes delineamentos realizados por Bauman diz respeito à acepção de que houve um deslocamento do consumo para o consumismo. Enquanto o consumo inscreve-se na ordem da necessidade, o consumismo caracteriza-se como “um atributo, a capacidade profundamente individual de querer, desejar e almejar” (Bauman, 2008, p.41). Podemos pensar que o consumismo inscreve-se como sendo da ordem dos excessos, da sobrepujança, pois é uma condição que se esboça na fase líquida da modernidade2. Assim, enquanto a sociedade de produtores, situada na fase sólida da modernidade, movia-se com o consumo garantindo a apropriação e posse, apostando na prudência, em planejamentos de longo prazo, com uma ênfase na segurança e no valor de durabilidade, o consumismo, por sua vez, atua:

[…]em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades […] mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos desejos destinados a satisfazê-la (Bauman, 2008, p.44, grifos do autor).

As considerações sobre a sociedade de produtores por um lado, e, de outro, a sociedade de consumidores, são, assim, articuladoras importantes para a compreensão dos processos implicados e desenvolvidos em Vida para consumo. Afinal, a sociedade de consumidores caracteriza-se, principalmente, por convocar os sujeitos em sua categoria de consumidores. Somos, primeiramente, consumidores, tornando-nos sujeitos prioritariamente pelas capacidades demonstradas para tal condição.

Dentre as discussões associadas às transformações em andamento na modernidade – da modernidade sólida para a líquida – outra questão se destaca para a compreensão dos deslocamentos tensionados no decorrer do livro. Mais especificamente, trata-se da operação de uma “renegociação do significado do tempo” (Bauman, 2008, p.45). Ou seja, de um tempo cíclico e linear, da sociedade de produtores, passa-se a um tempo pontilhista – metáfora de Michel Maffesoli (2003) utilizada por Bauman – marcado por uma multiplicidade de instantes, descontinuidades e fragmentações. Outros termos, como cultura agorista ou cultura apressada, tomados emprestados de Stephen Bertman (1998), também endereçam a esta renegociação do significado do tempo que atua sobre os sujeitos, produzindo estados de movimentação constante entre distintos pontos. Talvez aí tenhamos um fecundo argumento para as discussões sobre a produção de identidades contemporâneas, pois esta relação com o tempo, tão destoante de outras épocas e contextos, é uma das condições de possibilidade para que os sujeitos se movam incansavelmente. Ademais, um dos modos de manter-se em movimento nos pontilhados do tempo e do espaço é através do consumismo, que insta novos e diversificados significados aos que consomem as novidades sempre emergentes. Não se trata, em suma, de adquirir, juntar e acumular, mas, sobretudo, de adotar o imperativo de descartar e substituir, afinal, “A ‘síndrome consumista’ envolve velocidade, excesso e desperdício” (Bauman, 2008, p.111, grifos do autor).

Com isso há um dilatamento do consumo que passa a englobar o conjunto da população. Não apenas adultos são alvos privilegiados, como na sociedade de produtores, mas sobretudo crianças, jovens, todas as estratificações sociais, etc., pois o importante é ser consumidor, renegociar os significados do tempo e de si mesmo pela movimentação dos significados embutidos nos processos de compra e venda de objetos e de si. É um processo que se alia à máxima dos desempenhos individuais. Mover-se nas tramas do consumo é algo a ser feito por si mesmo, afinal, consumir “significa investir na afiliação social de si próprio” (Bauman, 2008, p.75).

É a partir de considerações deste tipo que Bauman pinça, no terceiro capítulo do livro, mais um argumento de um excerto de manual de moda de um prestigiado jornal, em que são oferecidos aos leitores meia dúzia de visuaischave para os próximos meses. De um enunciado como este, que orienta leitores em relação ao estilo – visuais com um prazo pré-estabelecido para durar somente alguns meses –, Bauman mapeia o ambiente existencial erigido pela sociedade de consumidores. Ambiente composto, ainda, por uma cultura consumista: cultura que expressa uma “revogação dos valores vinculados respectivamente à duração e à efemeridade” (Bauman, 2008, p.111, grifos do autor). Trata-se, mais objetivamente, de uma cultura produzida histórica e socialmente a partir de condições e significações precisas, como foi o caso das formações sociais produzidas pela sociedade de produtores. Este é o ambiente em que se vive e em que novos significados continuam a ser produzidos ininterruptamente.

Somos instados a pensar, ainda, especialmente no quarto capítulo, sobre as baixas colaterais do consumismo. Se a sociedade de consumidores – que “avalia qualquer pessoa e qualquer coisa por seu valor como mercadoria” (Bauman, 2008, p.157) – é erigida a partir das supostas benesses do consumo e de dispor-se incessantemente ao consumo, esta experiência não é compartilhada de forma igual por todos. Erige-se, também, “uma nova categoria de população, antes ausente dos mapas mentais das divisões sociais” (Bauman, 2008, p.155): a subclasse. Esta subclasse seria formada por “pessoas sem valor de mercado”, “homens e mulheres não-comodificados”, em suma, “consumidores falhos” (Bauman, 2008, 158). Se a sociedade de consumidores transforma-nos em mercadorias, os que não incitam o consumo e/ou são privados de algum modo deste processo são vistos como inúteis, não sendo capazes de associarse a este mesmo processo. São indivíduos visibilizados, agora, pelo perigo que supostamente representam para este modelo de sociedade.

Dentre muitas outras ressonâncias, importa destacar, ainda, o grande número de autores e obras que Bauman articula em sua análise. Sociólogos, filósofos e escritores de obras literárias, ao lado de autores de matérias de jornais em seções tão variadas que vão da política externa à editoria de moda, são interlocutores de seu trabalho. De Max Weber a Michel Foucault, de Milan Kundera a matérias do jornal britânico The Guardian, o tema do consumo e seu efeito de excesso na sociedade de consumidores, o consumismo, vão sendo literalmente dissecados com as diversificadas lentes teóricas operacionalizadas pelo autor. Sem dúvida, esta é uma obra de grande fecundidade e importância e que interessa, de maneira especial, aos que pensam, pesquisam e fazem a educação dos nossos dias.

Notas

1 Sociólogo nascido na Polônia em 1925, onde lecionou na Universidade de Varsóvia. Fugindo do nazismo durante a Segunda Guerra, peregrinou pelo mundo radicando-se, por fim, na Inglaterra, onde vive até hoje. É autor de inúmeros livros, sendo que sua produção intelectual mais importante surge a partir dos últimos anos do séc. XX. No Brasil, desde 1997, circulam mais de vinte títulos traduzidos para o português, alguns publicados em menos de um ano após seu lançamento na Inglaterra. Zygmunt Bauman é professor emérito de Sociologia das universidades de Leeds e de Varsóvia. Recebeu o Prêmio Amalfi, em 1989, por Modernidade e Holocausto, e em 1998 recebeu o prêmio Adorno pelo conjunto de sua obra.

2 Por modernidade líquida – diferentemente da modernidade sólida, mais pesada – Bauman (2001) passa a referir-se à fase instável, fluída, dinâmica e mutante na modernidade, a qual ele mesmo vinha denominando de pós-modernidade. Para uma aproximação sintética ao conjunto da obra de Bauman ver Costa (2009).

Referências

BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade. Tradução Mauro Gama; Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999a.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999b.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

BERTMAN, Stephen. Hyperculture: The Human Cost of Speed. Westport: Praeger, 1998.

COSTA, Marisa Vorraber. Zygmunt Bauman – Compreender a vida na modernidade líquida. Educação, ed. Segmento, São Paulo, v.1, p. 60-75, set. 2009.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que Amanhã: diálogo. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

MAFFESOLI, Michel. O Instante Eterno: o retorno do trágico nas sociedades pósmodernas. Tradução Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003.

Marisa Vorraber Costa – Doutora em Educação e professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil e da ULBRA. Integrante do NECCSO. Pesquisadora do Cnpq – Brasil. E-mail: [email protected] Viviane Castro Camozzato – licenciada em Pedagogia e doutoranda em Educação na UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. Integrante do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO). Bolsista do Cnpq – Brasil. E-mail: [email protected]

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A gramática do tempo: para uma nova cultura política – SANTOS (RF)

SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma nova teoria política crítica: reinventar o estado, a democracia e os direitos humanos. In: ______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. Resenha de: TENÓRIO, Camila Muritiba. Da inevitabilidade da crise da modernidade à criação de um novo contrato social. Revista FACED, Salvador, n.18, p.103-110, jul./dez. 2010.

Boaventura de Sousa Santos é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na qual exerce também a função de diretor do Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril. O autor nasceu em Coimbra, em 1940, e possui hoje uma extensa bibliografia, composta de ensaios, artigos, livros e até mesmo poemas, que constituem embasamento para profissionais de diversas áreas. São algumas de suas obras mais importantes os livros Introdução a uma ciência pós-moderna, publicado em 1989; Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, datado de 1994; e A gramática do tempo: para uma nova cultura política, de 2006, o qual constitui objeto deste estudo.

Neste volume da coleção Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a politica na transição para digmática, Santos discorre sobre o Estado moderno ocidental e a crise que sofre este contrato social que, ao mesmo tempo em que busca gerir as desigualdades e exclusões, é responsável por sua expansão. A obra A gramática do tempo: para uma nova cultura política observa o colapso da modernidade para o qual a única solução seria uma transformação social capaz de inventar uma nova democracia e, consequentemente, um novo modelo de Estado.

Na terceira parte da supracitada obra, o autor se ocupa de uma das contradições que caracterizam a sociedade moderna, isto é, a antinomia existente entre os princípios de emancipação – que correspondem à igualdade e à inclusão social – e os princípios de regulação – que se referem à desigualdade e à exclusão.
O sociólogo aborda as particularidades que envolvem os termos desigualdade e exclusão, cujo significado aparece de forma distinta conforme o momento histórico e a sociedade em que se desenvolve. Tanto a desigualdade como a exclusão são sistemas de pertença hierarquizada, mas enquanto na primeira a pertença se dá pela subordinação, na segunda ocorre pela não-pertença.

A desigualdade é um fenômeno socioeconômico assentado na integração social, de forma que os desiguais compreendem parte indispensável da sociedade, contudo ocupantes do setor mais baixo. Seu grande teorizador é Karl Marx, que enfatizou a desigualdade entre capital e trabalho. Já a exclusão tem sua base na segregação, configurando-se como fenômeno sociocultural profundamente desenvolvido por Michel Foucault. A estes sistemas de hierarquização somam-se o racismo e o sexismo, figuras híbridas que combinam desigualdade e exclusão.

A gestão controlada das desigualdades e da exclusão tem sua base ideológica no universalismo, seja pela homogeneização e consequente descaracterização das diferenças – universalismo antidi-ferencialista –, seja pela absolutização das diferenças, tornando-as incomparáveis – universalismo diferencialista.

Conforme Boaventura de Sousa Santos, esse tipo de gestão passou a ser, devido às pressões sociais, uma preocupação do Estado, cuja proposta, longe de buscar eliminar esses elementos, corresponde à manutenção da desigualdade dentro de níveis toleráveis, por meio de políticas sociais, e à relativização da exclusão, a partir da distinção entre as formas aceitáveis e aquelas não aceitáveis socialmente. O Estado Moderno vive, então, um modelo de regulação social que produz a desigualdade e a exclusão, mas procura mantê-las dentro de limites funcionais.

A aplicação desse formato de gestão ocorreu por intermédio da social-democracia e do Estado-Providência, isto é, pela própria negociação entre capital e trabalho, com o Estado promovendo o pleno emprego e uma política fiscal redistributiva.

O autor afirma a necessidade de se rever o modelo moderno de regulação social, já que o pilar “comunidade” parece ter sido olvidado. Há, assim, não dois, mas três pilares básicos: Estado, mercado e comunidade, estando os dois últimos compreendidos no que se intitula sociedade civil. É com base nesse terceiro pilar que se observará a reinvenção do Estado-Providência, de modo que as áreas sociais não regulamentadas pelo Estado não precisariam seguir uma lógica mercadológica, sendo organizadas por meio do elemento comunidade.

A intensificação do processo de globalização econômica e cultural tem acarretado alterações no sistema de desigualdade e exclusão. Economicamente, tem-se a revolução tecnológica que levou a um aumento do desemprego estrutural que, por sua vez, torna precária a integração hierarquizada garantida pelo trabalho, passando este a constituir mais um elemento de exclusão que de desigualdade. Por outro lado, culturalmente, o que se percebe é a eliminação das culturas locais por meio da imposição de uma cultura dominante, um modelo de massa e uma ideologia do consumo.

Se a globalização da economia ocasiona a mutação do sistema de desigualdade em sistema de exclusão, a globalização da cultura opera em sentido inverso, ocorrendo, assim, uma metamorfose no sistema de desigualdade e exclusão. Esta metamorfose, aliada a uma insuficiência de recursos para manter as políticas redistributivas, evidenciam uma crise no Estado Moderno. Diante deste contexto, o autor encontra na articulação entre as políticas de igualdade e de identidade uma orientação para a criação de novas formas democráticas multiculturais e consequente reinvenção do Estado.

O sociólogo pondera sobre o contrato social, o qual se funda na permanente tensão existente entre regulação e emancipação, isto é, entre o interesse público por um Estado capaz efetivamente de gerir a sociedade e o interesse particular por liberdade.

Percebe-se que o contrato social encontra-se embasado em três critérios de inclusão e exclusão: 1- inclui apenas o ser humano, excluindo a natureza; 2- inclui os cidadãos e exclui os não-cidadãos; 3- inclui o espaço público, excluindo a esfera privada. A gestão dessas tensões ocorre por meio dos princípios de interação – o regime geral de valores –, dos indicadores quantitativos, escalas e perspectivas – o sistema comum de medidas – e do espaço de deliberação nacional – o espaço tempo privilegiado.

O objetivo da contratualização é garantir a legitimação do governo, o bem-estar econômico e social, a segurança e a identidade cultural nacional. A persecução destas metas levou à politização do Estado, que vem expandindo a sua capacidade de regulação, e à socialização da economia por meio do reconhecimento da luta de classes, destacando-se neste processo a atuação dos sindicatos. Outra implicação da implementação do contrato social é a nacionalização da identidade cultural nacional, o que tem reforçado os critérios de exclusão e inclusão.

Hodiernamente, contudo, o contrato social está em crise, o que pode ser observado em seus pressupostos. O regime geral de valores não tem resistido à fragmentação da sociedade, de modo que grupos sociais distintos possuem significados distintos para os mesmos valores. O sistema comum de medidas encontra-se em momento de agitação, afetando a estabilidade das escalas.

O espaço-tempo nacional desaparece para dar lugar ao global e ao local. Essas mudanças evidenciam um aumento da exclusão e das desigualdades, afetando a estrutura moderna de Estado.

Boaventura de Sousa Santos afirma que o maior risco para a sociedade é a insurreição de um regime fascista, que pode assumir quatro diferentes formas: 1- apartheid social, isto é, uma divisão dentro das cidades entre zonas selvagens e zonas civilizadas; 2- fascismo paraestatal, em que atores sociais se sobrepõem ao Estado nas tarefas de coerção e regulação; 3- fascismo da insegurança, no qual há disseminação do medo e da ilusão de que apenas grupos privados podem propiciar a segurança que o Estado não é capaz de oferecer; 4- fascismo financeiro, em que os mercados financeiros passam a influenciar e regular outros setores da sociedade.
A necessidade de se evitar a iminente crise que o contrato social exige, consoante o sociólogo, que sejam obedecidos três princípios: pensamento alternativo de alternativas, ação-com-clinamen (ações rebeldes) e espaços-tempo de deliberação democrática.

Enfim, o autor discute a construção de um novo contrato social, com a reinvenção solidária e participativa do Estado. A transformação social possui dois paradigmas: a revolução e o reformismo. Enquanto este traz o Estado como agente capaz de solucionar os problemas da sociedade civil, aquele trata da necessidade de re¬forma no próprio Estado.

O paradigma do reformismo prevaleceu no sistema mundial com a criação do Estado-Providência, cuja atuação se desenrola seguindo estratégias de acumulação de capital, hegemonia e con¬fiança. Foi a partir da desarticulação das duas últimas estratégias e decorrente ascensão da estratégia de acumulação que, em 1980, começou a crise deste paradigma.

Após o reformismo, inaugurou-se a fase do Estado mínimo, em que o Estado era considerado irreformável e, portanto, deveria interferir o mínimo possível na sociedade civil, confirmando a ideologia neoliberalista. Somente com a superação desta fase foi possível assimilar a questão da reforma, disseminando o paradig¬ma da revolução. É neste ponto que Santos começa a pensar uma reinvenção que não observe a concepção dominante de Estado¬-empresário – que prega a privatização e a adoção dos critérios de produtividade importados da esfera privada na administração pública –, mas, sim, empregando a concepção de Estado-novíssimo¬-movimento-social.

A reinvenção do contrato social, assim, passa pela articulação do terceiro setor, o qual deve sofrer uma reforma simultânea com o Estado, em que sejam coordenadas a democracia representativa e a democracia participativa.

Neste contexto, torna-se essencial a redescoberta democrática do trabalho, com redução da jornada laboral, estabelecimento de padrões salariais mínimos, reforço na qualificação profissional e, finalmente, reinvenção do movimento sindical com participação direta dos trabalhadores.

A democratização do trabalho, a participação popular nas decisões de Estado, bem como a reconstrução dos direitos humanos e o reconhecimento da diferença são pontos chaves de discussão nesta obra, constituindo-se a base para a criação de um novo pacto social.

Diante dos argumentos expostos por Boaventura de Sousa San¬tos, percebe-se que o autor, partindo da noção de contrato social, trata da tensão existente entre regulação social e emancipação social. Esta parece ser uma questão recorrente sempre que se discute a contratualização, com a irreversível transição do homem do estado de natureza para o estado civilizado.

Jean Jacques Rousseau (1712 – 1778) já discorria sobre a dificuldade de se manter a liberdade individual, direito natural do homem, apesar da necessária sujeição à vontade do Estado.

O problema, então, seria “trouver une forme d’association qui défende et protège de toute da force commune la personne et les biens de chaque associé, et par laquelle chacun s’unissant à tous n’obéisse pourtant qu’a lui-même et reste aussi libre qu’auparavant1”. (ROUSSEAU, 1978, p.178) A solução seria a contratação de um pacto não orientado pela violência e coerção, mas sim pela vontade geral, de forma que cada constituísse parte indissociável do Estado, de forma que a obediência a este não fosse mais que a obediência à própria vontade.

O pacto social rousseauniano funda-se, destarte, no conceito de vontade geral, isto é, na noção de comunidade. Santos recupera a ideia de comunidade do contratualista, identificando-a como um novo pilar que representa, junto ao Estado e ao mercado, a tríade que sustenta o contrato social. A ação da comunidade desenvolveria uma democracia participativa e retiraria do mercado a regulação das áreas sociais privatizadas.

A comunidade em Santos representa o terceiro setor privado e não fundamentado na lógica mercadológica. A inclusão deste terceiro pilar na modernidade levaria à criação de um novo modelo de regulação, no qual, por meio da luta social, seria alcançado um equilíbrio entre regulação e emancipação, tal como apresentado no séc. XVIII por Rousseau.
Conquanto Boaventura de Sousa Santos desenvolva seus argumentos com base no conceito de comunidade fundado por Rousseau, suas ideias são bastante atuais e inovadoras, já que evidenciam a crise do Estado moderno e sugerem uma reforma que validaria um modelo contemporâneo de regulação social.

Neste sentido, observam-se ainda as discussões desenvolvidas por autores como Wampler e Avritzer (2004), que também buscam, por meio da participação e deliberação pública, uma mudança social substancial que possa impulsionar a democracia. Afirma-se a importância da sociedade civil no processo de decisões, especialmente do envolvimento da comunidade.

A diferença basilar na obra de Santos, quando comparada à de Wampler e Avritzer (2004) reside no fato de que, enquanto estes mostram-se confiantes no modelo de participação adotado hoje no Brasil, aquele não percebe ainda alterações significativas no Estado atual, que ainda vive a crise em seu modelo de regulação. As perspectivas de Santos, entretanto, são positivas – embora um tanto utópicas, como designadas pelo próprio autor – quanto à possibilidade real de reforma social e política do Estado.

A importância do consenso para garantir a legitimidade de um Estado é ressaltada por Carlos Nelson Coutinho (1995), trazendo novamente a ideia aristotélica de interesse comum em oposição à visão liberal de John Locke de que o bom governo é aquele que assegura os interesses e direitos individuais. As exclusões e desigual¬ades constantemente evidenciadas na modernidade por Santos representam a marca do séc. XIX, na vigência do Estado Liberal.

Contrariando as afirmações de Santos, Coutinho (1995) não acredita na reforma do Estado sob a égide do capitalismo, já que este modo de produção não se coaduna com a plena cidadania política e social, que apontaria para a instauração do socialismo.

Os dois autores, todavia, reconhecem que se está diante de uma crise que exige um reordenamento da sociedade, mas diferem quanto ao meio que deve ser empregado para solucioná-la.

Santos não adota uma abordagem institucionalista, pois afirma ser imperativa a atuação da comunidade na regulação do Estado, contudo, defende posicionamentos que remetem ao institucionalismo de Marta Arretche (2007) quando afirma que a criação do terceiro setor, ao qual se atribui a tarefa de democratizar o Estado, depende da promoção de políticas estatais. Arretche (2007) destaca a importância de se estudar as instituições políticas, já que elas têm o condão de influenciar no comportamento dos atores políticos, e, como resultado, podem garantir a representatividade, a estabilidade e a democracia.

É o Estado que deve tomar a iniciativa, por meio de suas políticas, para desenvolver um terceiro setor forte. No entanto, é a partir da colaboração entre comunidade e Estado que se garante a natureza democrática dessas políticas públicas. A resposta, en¬tão, não estaria numa visão institucionalista, nem numa teoria da sociedade civil, mas naquilo que os autores Wampler e Avritzer (2004) denominam de públicos participativos, isto é, uma esfera de deliberação que surge da conexão entre Estado e sociedade.

Poder e comunidade apresentam-se, segundo Francis Wolff (2003), como as duas instâncias da política, remetendo mais uma vez à tensão entre regulação e emancipação que está no centro das discussões em Santos. Ao mesmo tempo em que o homem busca a vida em sociedade para garantir a igualdade, a liberdade e a paz, ele precisa de um poder central – o Estado – para regular e agir coercitivamente sobre esta mesma sociedade. Mais uma vez depara-se com a crise do contrato social e a emergência do contrato rousseauniano como resposta a essas tensões.

Boaventura de Sousa Santos revela que a solução para a crise da modernidade estaria, então, na criação de um novo pacto social que pudesse equilibrar as tensões entre regulação e emancipação, o que somente pode ser logrado a partir do fortalecimento do terceiro setor e democratização do Estado, unindo sociedade civil e sociedade política, comunidade e Estado.

Notas

1 Tradução da autora: encontrar uma forma de associação que defende e protege de todas as forças comuns a personalidade e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, entretanto, a ninguém outro que a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes.

Referências

ARRETCHE, Marta. A agenda institucional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 64, jun. 2007.

COUTINHO, Carlos Nelson. Representação de interesses, formulação de políticas e hegemonia. In : TEIXEIRA, Sonia (Org.). Reforma sanitária: em busca de uma teoria. São Paulo: Cortez, 1995. p. 47-60.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Du contrat social. Paris: Librairie Générale Française, 1978.

WAMPLER, Brian; AVRITZER, Leonardo. Públicos participativos: sociedade civil e novas instituições no Brasil democrático. In: COELHO, Vera; NOBRE, Marcos (Org.). Participação de deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 210-238.
WOLFF, Francis. A invenção da política. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 23-54.

Camila Muritiba Tenório – Analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Email:[email protected]

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Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita – MIGNOT (RBHE)

MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (Org.). Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro: Eduerj, 2008. Resenha de: PETRY, Marília Gabriela Petry; MOREIRA, Glória Cristina Maciel Moreira. Revista Brasileira de História da Educação, n. 23, p. 261-267, maio/ago. 2010.

Conforme anuncia o título, o propósito da obra é trazer os cadernos escolares à nossa vista. Objeto ordinário da educação escolar, o caderno é reconhecido como elemento fundamental da escolarização moderna, mas muitas vezes passa despercebido aos nossos olhos, já tão acostumados à sua presença. O subtítulo da obra – Escola, memória e cultura escrita –, destaca o objeto “caderno escolar”, as memórias nele incrustadas bem como a reflexão acerca da cultura escrita que perpassará boa parte dos textos.

Organizado por Ana Chrystina Venancio Mignot, o livro possui 272 páginas divididas em 14 artigos escritos por autores brasileiros e estrangeiros. Sua editoração é impecável, sendo grande parte dos artigos ilustrados com fotografias que representam fontes das pesquisas.

Os 14 artigos que compõem o livro estão estruturados em quatro eixos, propostos por Mignot. São eles:

1) Balanço dos estudos feitos no âmbito da historiografia da educação;

2) Produção e circulação dos suportes e utensílios da escrita escolar;

3) Usos dos cadernos escolares;

4) Iniciativas pessoais e familiares de salvaguarda desses documentos produzidos durante a trajetória escolar.

Em “Os cadernos escolares como fonte histórica: aspectos metodológicos e historiográficos”, Antonio Viñao faz um mapeamento desses materiais pedagógicos ao longo da história, tomando-o como produto da cultura escolar, e discorre acerca das dificuldades metodológicas que perpassam as pesquisas debruçadas sobre essa temática. Discute, ainda, a utilização dos cadernos escolares como instrumento de conhecimento e reconhecimento da escola e seu cotidiano, abordando a importância de um entrecruzamento de fontes.

Em “Os cadernos de classes como fonte primária de pesquisa: alcances e limites teóricos e metodológicos para sua abordagem”, Silvina Gvirtz e Marina Larrondo apresentam um estudo, realizado em alguns países da Europa e da América do Sul, no qual evidenciam quanto os cadernos escolares dizem a respeito dos sistemas educativos e são produtores de saberes, além de transmissores. Saberes esses que devem ser incorporados pelos alunos, sendo, portanto, produtores de efeitos.

Dentre os trabalhos que apontam para um estudo da origem, produção e disseminação do uso dos cadernos escolares, bem como da importância e do sentido que esse suporte tomou em sala de aula, encontra-se o capítulo escrito por Rogério Fernandes, “Um marco no território da criança: o caderno escolar”. O autor faz uma genealogia dos cadernos escolares, os quais, aos poucos, substituíram as caixas de areia e as ardósias, que eram aparatos de baixo custo da cultura escrita. Remete o olhar para o âmbito da indústria e do mercado, os quais deram suporte para a disseminação do uso do caderno individual. Para Rogério Fernandes, não obstante o mercado estar atento às mudanças e contribuir para o uso em massa do caderno, foram necessárias também mudanças nas práticas escolares. Os alunos passaram a ser protagonistas no processo de ensino e aprendizagem, por meio da teorização e individualização, o que facilitou a difusão do caderno como principal instrumento de escrita do aluno, refletindo naquele o trabalho do professor.

Ana Chrystina Venancio Mignot, em seu capítulo “Antes da escrita: uma papelaria na produção e circulação dos cadernos escolares”, fala da trajetória da Casa Cruz, que passou de mercado de artigos de pesca a uma renomada papelaria, atendendo à elite do Rio de Janeiro, em fins do século XIX e início do século XX, estando em funcionamento até os dias atuais e atribuindo seu enorme sucesso ao ecletismo com que trabalhava. Afirma que o caderno há muito não é mais um conjunto de folhas cosidas juntas. Utilizando-se de exemplares de coleções de cadernos, anúncios em periódicos e entrevistas com antigos proprietários, Mignot faz uma relação entre os processos de escolarização, industrialização e comércio que contribuíram para a massificação do uso dos cadernos, elevando-os de objetos de desejo a objetos de consumo. Observou, ainda em seu estudo, como os cadernos contribuíram para a transmissão de valores e ensinamentos que deveriam ser perpetuados: “mensagens introjetadas de amor à pátria, de obediência à ordem e amor ao trabalho” (p. 72). Por fim, conclui que esses suportes da escrita foram banalizados, mas ao longo da história afetaram as práticas de escrita, os processos de ensino-aprendizagem e os uso do tempo nas salas de aula.

No capítulo “Instrumentos da escrita na escola elementar: tecnologia e práticas”, Márcia de Paula Gregório Razzini fala de uma demanda por outros instrumentos que começaram a servir de suporte ao papel com o crescente uso dos cadernos escolares e se consagraram ao longo do tempo, como penas, tintas e, posteriormente, lápis, canetas, entre outros. Ao utilizar várias fontes para seu estudo, entre elas anúncios, dicionários, manuais pedagógicos e inventários de escolas, a autora aponta que, além da substituição da caixa de areia ou da ardósia pelo caderno, se operou também a substituição de seus aportes, o dedo ou o lápis de pedra pelas canetas de pena, lápis e canetas de madeira. Ao concluir, a autora chama a atenção para que façamos uma reflexão sobre os usos excessivos das canetas e lápis em sala de aula, o que poderia contribuir para um empobrecimento da oralidade escolar, a qual é peculiar, uma vez que possui padrões formais que só a escola poderia e pode oferecer à maioria da população, de acordo com a autora.

Rosa Maria Souza Braga, no capítulo “A boa letra tem grande importância: Orminda Marques e as prescrições sobre a escrita”, versa sobre os cadernos de caligrafia e discute a importância que estes adquiriram no período em questão. Em seu estudo, Rosa Maria utiliza o livro escrito por Orminda, cujo intuito foi unir ciência e educação, tendo como título A escrita na escola primária. Nesse livro, Orminda defende a incorporação de uma metodologia da escrita por parte dos alunos, a qual contempla graciosidade no traço, ou seja, a necessidade de um senso estético desde cedo, além de economia do tempo na tarefa de escrita e disciplinamento do corpo.

“Aprendendo com cadernos escolares: sujeitos, subjetividades e práticas sociais cotidianas na escola”, capítulo escrito por Inês Barbosa de Oliveira, mostra como supostos consumidores não são apenas passivos de uma ação, mas usam o que lhes é oferecido para consumo e imprimem subjetividades, tornando esses objetos muito particulares e diversificando seus usos. Inês Barbosa de Oliveira defende que é possível, partindo desse pressuposto, colocar como sujeitos de um estudo não somente os alunos a quem esses cadernos pertencem, mas também os demais sujeitos da cultura escolar, como os professores e as metodologias por eles aplicadas, o que permite compreender uma “pluralidade de redes tecidas entre alunos e escola”.

No texto “Aprendendo a usar cadernos: um caminho necessário para a inserção na cultura escolar”, Anabela Almeida Costa e Santos, pela ótica da psicologia escolar e da pesquisa etnográfica, analisou cadernos de alunos de uma turma de 1ª e outra de 4ª série de uma escola pública paulista. Segundo a autora, essas duas séries marcam momentos distintos da escolarização e apropriação do objeto “caderno”, a 1a como fase de iniciação quanto ao seu uso e, no caso da 4a série, de autoria, uma vez que nesta os alunos passam a criar novas formas de se apropriar do caderno, revelando co maior ênfase características pessoais. Conclui que, ao longo dos anos, os estudantes começam a ter domínio das regras do uso desse material, o que possibilita que seja utilizado efetivamente como auxiliar de estudo.

María del Mar del Pozo Andrés e Sara Ramos Zamora, no texto “Representações da escola e da cultura escolar nos cadernos infantis (Espanha, 1922-1942)”, têm como objeto de estudo uma coleção de 300 cadernos oriundos de escolas públicas espanholas. A análise desse material permitiu um aprofundamento acerca das práticas escolares de cultura escrita dessas instituições. O foco do texto está nas “percepções da escola e dos valores educativos que se refletem nos cadernos escolares” (p. 162).

De acordo com as autoras, um dos aspectos mais interessantes da prática de escrita era a redação de cartas pelos alunos, atividade muito esmerada e presente nos cadernos. O estudo concluiu que nesses cadernos coexistiam os escritos disciplinados e dirigidos pelos professores e uma principiante forma de expressão infantil espontânea. Entretanto, as autoras não se propuseram a responder se os escritos refletiam exclusivamente a personalidade do professor ou da criança.

Em “Cadernos escolares: memória e discurso em marcas de correção”, Isa Cristina da Rocha Lopes trabalhou com uma coleção de 45 cadernos da 1a a 4a séries do ensino fundamental, originários de acervos pessoais. O estudo propôs-se a delinear tendências visíveis nesses cadernos e pode-se perceber o quanto a marca da presença do professor no período estudado (1951-2003) esteve aparente nos cadernos dos alunos, por meio de registros escritos, sinais gráficos e imagens constituintes de um discurso escolar indicador de identidades. De acordo com a autora, conclui-se que produções discursivas semelhantes podem cumprir funções diferentes, pois dependem de quando aparecem e de quais sentidos estão impregnados.

No texto “O conteúdo emocional de três cadernos escolares do franquismo”, Kira Mahamud Ângulo fala-nos da educação de meninas na Espanha, a partir da análise de três cadernos pertencentes a uma professora. Esses cadernos são conhecidos como “cadernos de circulação” ou “de aula” e são assim chamados porque todos os alunos participavam de sua escrita; destinavam-se ao registro da memória das aulas, uma espécie de diário. O objetivo do trabalho centrou-se em enfatizar o conteúdo emocional desses cadernos, a partir de três elementos: transparência da professora na expressão dos seus sentimentos, referências ao amor pátrio e religioso nas lições de comemorações e recurso à poesia para o ensino. Os cadernos continham várias poesias favoráveis ao regime franquista e serviam como impregnadores da nova ideologia. A autora concluiu, entre outras coisas, que a professora concebia o caderno de circulação como um recurso e material educativo, que exercia função de introjeção da cultura escrita, de doutrinação de uma visão de mundo a partir do conhecimento e sentimentos, não se caracterizando apenas como dispositivo de controle e inspeção.

Eurize Caldas Pessanha, no texto “Entrevendo o currículo: um estudo sobre cadernos escolares de normalistas”, usa como fonte de pesquisa dois cadernos de duas normalistas da década de 1930, um de higiene e outro de rascunho (anotações rápidas). A autora considerou esses cadernos frestas para enxergar parte do processo de negociaçãodo currículo e pretendeu analisar quais práticas de transmissão de conhecimentos poderiam ser deduzidas a partir deles. O texto está estruturado em três partes: na primeira, a autora situa os cadernos a partir da história das escolas frequentadas pelas normalistas; na sequência, descreve-os materialmente; e, por último, explicita os conhecimentos e práticas possíveis de serem visualizadas.

Em “A estética e as ilustrações nos cadernos escolares: o caso de uma escola de meninas na Espanha franquista”, Ana María Badanelli Rubio analisa cadernos pertencentes à mesma professora mencionada no artigo de Kira Mahamud Ângulo, porém de períodos diferentes. Estes “cadernos de rotação”, que relatavam os acontecimentos escolares, continham ilustrações de qualidade excepcional feitas pelas alunas. Além de servirem como diário, a professora selecionava atividades que as alunas deveriam desenvolver, o que indica que eram meticulosamente planejados. Sendo assim, esses cadernos não eram um espaço de fruição, imaginação e fantasia. A autora conclui que os cadernos não eram apenas um meio para aquisição de conhecimentos, mas também um local de registro do cotidiano escolar e de informações a respeito dos atores envolvidos. Ana María pontua, ainda, questões a respeito da estética presente nos cadernos, devido à inspeção pela qual passariam, questões de gênero e de religiosidade.

Para finalizar, em “Velhos cadernos, novas emoções”, Mirian Paura Sabrosa Zippin Grinspun dá voz às próprias lembranças a respeito dos cadernos de família e os motivos que a levaram a guardá-los. Pela análise dessa coleção, evidencia permanências e rupturas ao longo da escolarização da sua família.

Da leitura desta obra, retiramos algumas reflexões acerca do objeto “caderno”, hoje consagrado e tornado quase invisível, banalizado por aqueles que o usam.

Conforme os autores dos artigos sublinham, os cadernos são, pela especificidade que os sujeitos lhes emprestam, passíveis de serem compreendidos para além de sua materialidade, uma vez que nos falam, de modo próprio, de características de uma época. Versam sobre currículos e métodos de ensino e de como e em quais circunstâncias esses métodos foram empregados. Falam-nos de subjetividades, não somente de alunos e de professores, mas de atores envolvidos no processo de escolarização, de uma cultura específica e de processos naturalizados e internalizados por quem passa pelos cadernos escolares e deixa suas marcas escritas nas linhas e nas entrelinhas.

Os textos enfatizam a importância dos cadernos como fontes de pesquisa ocupadas de investigações que ajudam a compreender a complexa construção da cultura escolar (ou culturas, como têm preferido alguns autores). Escrevendo a partir de espaços geográficos diferentes, mas tendo em comum esse suporte material tão marcante da vida escolar, os autores remetem a diferentes abordagens e possibilidades de leitura de um mesmo objeto.

Marília Gabriela Petry – E-mail: [email protected]

Glória Cristina Maciel Moreira –  E-mail: [email protected]

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Cinco estudos em história e historiografia da educação – OLIVEIRA (RBHE)

OLIVEIRA, Marcus Aurelio Taborda de (Org.). Cinco estudos em história e historiografia da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. Resenha de: BORNATTO, Suzete de Paula. Revista Brasileira de História da Educação, n. 23, p. 253-259, maio/ago. 2010.

Cinco estudos… é o terceiro título da coleção História da educação, iniciada pela Editora Autêntica em 20061, e organiza-se como um programa de formação em pesquisa, ao condensar discussões pertinentes sobre o estágio atual da pesquisa em história da educação no Brasil e reunir exemplos de abordagem de diferentes temáticas a partir de um repertório diversificado de fontes.

A obra supõe, conforme as palavras do organizador, Marcus Taborda de Oliveira, a necessidade de “unificar em alguma medida a narrativa historiográfica como crítica da cultura”; portanto, propõese a articular diferentes pesquisadores e projetos, “portadores de perspectivas distintas, mas que têm como horizonte comum a crítica permanente dos modos de fazer a história da educação no Brasil e, por corolário, as formas de organização da cultura neste país” (p. 7).

O primeiro artigo, de Carlos Vieira (UFPR), trata das “característica e potencialidades dos jornais diários” como fonte e como tema de pesquisa, destacando a importância do jornal como suporte de sentidos, lugar em que se pode vislumbrar a “experiência citadina”, mas também seu protagonismo como agente social.

Antes de entrar no detalhamento da pesquisa, em torno da presença de temas educacionais nos diários paranaenses Gazeta do Povo e Diário da Tarde na década de 1920, com o intuito de “interpretar os projetos dos intelectuais e da imprensa em relação à educação” (p. 36), o texto problematiza a natureza dessas fontes e sua produtividade para a escrita da história dos intelectuais. Assim, além de apresentar alguns contornos da história da imprensa no Paraná, propõe um modo de ler e entender o jornal, tendo em vista a identificação de estratégias discursivas e a investigação de possíveis efeitos de sentido.

“Para além do registro e do comentário político, os homens de imprensa ocuparam os espaços públicos legitimados pelas suas trajetórias como redatores, analistas e críticos da moderna ágora” (p. 20). Nos anos 1920, o desejo da imprensa empresarial moderna de

[…] permanecer atuante na esfera política levou-a a engajar-se em projetos sociais, com base na produção de slogans e de campanhas […]. É nesse contexto que verificamos a adesão da imprensa à causa educacional, bem como a presença da elite letrada nos quadros do jornalismo na condição de arautos da inserção do País na modernidade com investimento em educação [p. 21].

A segunda metade do texto traz uma grande tabela em que estão classificados, em nove categorias primárias e 43 secundárias, 2.702 registros de temas educacionais, veiculados em 2.555 exemplares de jornal. Essa tabela é desmembrada em outras sete, conforme as grandes categorias localizadas: cenário educacional e educação; profissão docente; experiências e modelos educacionais; modalidades e níveis de ensino; cotidiano escolar; temas da modernidade e da educação. As análises que seguem cada tabela sugerem o extenso trabalho de que são a breve amostra e podem instigar o leitor interessado no tema e/ou no período a um maior contato com essas fontes, ou à exploração de novos recortes e objetos, o que é um grande mérito nesse tipo de texto.

Tanto a tese que permeia o estudo, da afirmação gradativa do intelectual como agente político na cena pública brasileira, como a discussão em torno do “projeto da modernidade” são oferecidas ao leitor a partir de reflexões teóricas que costuram adequadamente os resultados da pesquisa. Pode este se ressentir apenas da falta de referências relativas aos “efeitos de sentido”, à análise discursiva, de que a nota número 10, remetendo à reflexão de Pocock sobre a linguagem política, constitui exceção.

O segundo artigo reúne pesquisadores ligados à UFMG – Luciano Faria Filho, Maria Cristina de Gouvêa e Matheus da Cruz e Zica –, em torno do difícil tema da literatura como fonte para a história – no caso, história da infância, tomada como entrada analítica para a história cultural da sociedade.

O título já anuncia “possibilidades, limites e algumas explorações”. Entretanto, o caráter formador do texto revela-se na forma como os autores (que, às vezes, se singularizam, outras vezes se assumem como coletivo) recapitulam os cuidados necessários para a abordagem da literatura como fonte – desde a questão do maior ou menor compromisso com a realidade e com a verossimilhança, a historicidade própria dos textos literários e das práticas de leitura, até as diversas vertentes teóricas de análise (Chartier, Williams, Prost). Assim, o cruzamento de perspectivas analíticas “indica um adensamento da análise da produção e circulação histórica do escrito, rompendo-se com hierarquias advindas da crítica literária, e sinaliza a importância de uma análise interdisciplinar na interpretação historiográfica do texto literário” (p. 47).

No terceiro tópico do artigo, que discute a pertinência da fonte literária para a construção da história da infância, aconselham os autores a não se tomar “como absolutas as fronteiras que delimitam os espaços da literatura infantil e adulta”. Em seguida, no entanto, são problematizadas questões referentes à literatura “infantil” (que alguns especialistas preferem hoje chamar de literatura “para crianças”), considerada em sua própria historicidade como objeto cultural:

[…] analisar a produção literária destinada à criança permite-nos não apenas ter acesso às representações sobre a criança e aos modelos de comportamento infantil num determinado período e contexto histórico, mas também às representações sobre os modelos de ação social e conhecimento de mundo ali legitimados [p. 49].

O exemplo de abordagem, entretanto, não é da literatura “infantil”, mas enfoca as imagens de infância construídas na obra de Bernardo Guimarães, escritor mineiro do século XIX, qualificado como “um autor atento à história de seu tempo e reflexivo sobre a experiência de sua gente” (p. 54). Defendem os autores que “é na descrição/produção dos sentimentos e ações das crianças que a narrativa cria melhores condições para que adentremos outros territórios das culturas oitocentistas” (p. 55), que não os temas “clássicos” da educação e da ocupação infantil.

A conclusão parece um pouco deslocada, ao sugerir maior investimento na pesquisa de literatura “infantil”, uma vez que esse não é o caso do exemplo apresentado, porém ressalta o que merece atenção nesse gênero de pesquisas: a investigação em torno das “experiências dos sujeitos infantis” (tão difíceis de serem flagradas em seu momento histórico), sujeitos “que insistem em interpelar e interpretar as culturas adultas e dominantes e a fazer disso uma forma de estar-na-história, de fazer a história” (p. 63).

Também na linha da investigação da experiência dos sujeitos está o terceiro estudo, de Marcus Taborda de Oliveira e Sidmar Meurer (UFPR), mas este toma forma a partir de textos de leitura, aparentemente, bem menos aprazível: relatórios da instrução pública paranaense da primeira década do século XX.

A investigação nesses documentos visa perceber as “tensões entre o prescrito e o realizado” nas experiências de professores primários. Combatendo as generalizações de certa historiografia, segundo a qual a legislação impõe “determinado modo de organizar a cultura”, privilegia-se aqui a experiência dos indivíduos ou grupos na “dinâmica de apropriação” dos documentos oficiais:

[…] antes de considerar os relatórios como parte de um esforço conformador isento de dissenso, procuramos localizar nos registros […] tanto a retórica da confirmação daquilo que foi anunciado pelo legislador quanto a crítica explícita ou velada àquele esforço. […] a legislação aparece aos nossos olhos como um esforço de organização racional da realidade social, esforço que pressupõe tanto filigranas ideológicas quanto reação do Estado às demandas oriundas da sociedade, nem sempre coincidentes com o que esperava a autoridade pública [p. 73].

Nesse sentido, os diversos excertos dos relatórios são ricos e emblemáticos das questões discutidas. Em relatório de 1806, por exemplo, a professora Carolina Moreira escreve: “Sinto dizer que, infelizmente, em nossas escolas os preceitos de hygiene estão bem longe de ser observados”. Adiante, avalia:

No meu franco modo de entender, acho que o nosso Regulamento é defeituoso e mesmo pernicioso na parte referente a matricula das escolas publicas primarias, pois é claro que um professor por mais trabalhador e esforçado não poderá, em absoluto, ministrar conhecimentos a 70 e 80 alumnos diariamente, com grande proveito, sem o concurso de um auxiliar;… [p. 83].

Os relatórios, tanto de professores quanto de inspetores, vão oferecendo, assim, uma ideia da rotina, mas também das carências e perplexidades que compuseram o cotidiano desses profissionais, em carreiras de organização incipiente, e dos conflitos entre a operacionalidade (ou a falta de) prevista na legislação e o funcionamento possível das instituições, permitindo reconhecer que “nada é mais equivocado do que supor que aqueles homens e mulheres simplesmente corroboravam o existente, fosse no plano das proclamações oficiais, fosse no plano das preocupações com os limites e as possibilidades de suas ações” (p. 84).

O quarto estudo, de Marta Carvalho (Uniso) e Maria Rita Toledo (Unifesp), trata da “análise material” das coleções de Lourenço Filho (Biblioteca da educação) e Fernando de Azevedo (Atualidades pedagógicas) voltadas à formação de professores. Para as autoras, as investigações sobre impressos de destinação pedagógica e seus usos escolares propiciam sólido suporte “a uma história cultural dos saberes pedagógicos interessada na materialidade dos processos de difusão e imposição desses saberes e na materialidade das práticas que deles se apropriam” (p. 89).

Aparece aqui, novamente, o perfil formador da coletânea: o estudo recupera conceitos de Chartier e Certeau imprescindíveis ao pesquisador iniciante – orienta quanto à necessidade de atenção à materialidade do impresso, às estratégias que conduziram sua produção e às táticas de apropriação que podem subverter os usos previstos.

O impresso destinado aos professores é tomado como produto de estratégias pedagógicas e editoriais de difusão dos saberes pedagógicos e de normatização das práticas escolares – as coleções de livros “organizam e constituem o corpus dos saberes representados como necessários à prática docente, constituindo, concomitantemente, uma cultura pedagógica” (p. 92). Referência importante para a análise é a Histoire de l’edition française, de Isabelle Olivero, que caracteriza as coleções como “uma nova classe de impresso cuja função essencial é a de conquistar e atender um público maior de leitores” (idem). No Brasil, o desenvolvimento do mercado editorial nas décadas de 1920 e 1930 favorece o investimento na “invenção” de um leitor-professor ou professor-leitor.

A identidade das coleções será produzida a partir da padronização de formato, estrutura, estratégias de seleção de textos e autores, e de divulgação. Contudo, é seu “aparelho crítico” (prefácios, notas, comentários de especialistas) que vai propor uma orientação, um “modo de usar” ao leitor e, ao mesmo tempo, permitir ao historiador, nas palavras de Carvalho e Toledo (2001), “entrever o leitor destinatário, desenhado pelo editor” (p. 93).

Apesar das semelhanças, as duas coleções analisadas diferenciam- se, e sua organização revela concepções diversas quanto à formação de professores. Assim, é identificado na coleção de Lourenço Filho um perfil mais prescritivo, com maior presença de prefácios e notas de tradução, em torno de um “conjunto fechado e ideal de saberes”, ao passo que a coleção de Fernando de Azevedo remeteria à ideia de pluralidade de perspectivas e saberes e à sua “eterna renovação” (p. 106).

O trecho que encerra o artigo ressalta o fato de que essas coleções são “partícipes” do processo de estruturação da rede escolar do país, assim como dos debates sobre a formação de professores e sobre o significado da educação para a modernização brasileira, o que sintetiza, de algum modo, a importância deste e de novos estudos voltados a esse objeto.

Finalmente, em “Desafios da arquitetura escolar: construção de uma temática em história da educação”, Marcus Lévy Bencostta (UFPR) procura costurar algumas reflexões sobre as “possibilidades interpretativas da linguagem arquitetural nos estudos em história da educação”, com o intuito explícito de fomentar o interesse de pesquisadores brasileiros pela arquitetura escolar. Bencostta refaz o itinerário de seu interesse pelo tema, aponta autores que educaram seu olhar para a linguagem da arquitetura e do espaço escolar, e destaca a importância metodológica do exame da própria concepção de espaço escolar bem como da percepção das relações deste com os projetos políticos, educacionais e urbanísticos.

Sugerindo fontes que vão desde contratos de construção, textos de cronistas e jornalistas sobre as transformações da cidade, tratados de arquitetura, até biografias e projetos de arquitetos, o autor defende a utilidade da diversificação de leituras, dos estudos comparados e da aproximação com diferentes áreas, como a geografia e a semiótica, para a compreensão dos sucessos e insucessos da “gramática arquitetônica” em meio à dinâmica urbana.

Dada a existência de estudos, tanto na área de arquitetura como na de história[1], sobre as construções escolares, talvez não seja ocioso ressaltar, nas proposições, o que distingue a investigação do historiador da educação – a intenção de entender a escola: “para se entender a escola e suas transfigurações, é significativo também compreender como as linguagens arquiteturais penetram nesse espaço permeado pelos discursos ramificados na sociedade e na história” (p. 122).

O livro cumpre, assim, seu projeto de articular perspectivas que, explorando diferentes objetos culturais, indicam e orientam possibilidades para a escrita da história da educação no Brasil. Apenas os muitos descuidos de revisão textual por parte da editora não condizem com a qualidade dos textos, nem com o bonito acabamento da edição.

Notas

[1] Os outros títulos são História da educação – Ensino e pesquisa, Cultura escolar –

Prática e produção dos grupos escolares em Minas, de 2006, Para a compreensão histórica da infância, de 2007, Escolas em reforma, saberes em trânsito – A trajetória de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1869-1913) e Livro didático e saber escolar – (1810-1910), de 2008.

Suzete de Paula Bornatto. E-mail: [email protected]

[1] Exemplo recente é “Grupos escolares de Curitiba na primeira metade do século XX”, livro e CD de autoria de Elizabeth Amorim Castro (2009), arquiteta e doutoranda em história pela UFPR.

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O que Aprendemos com as Crianças que não Aprendem? – BERGÉS et al. (ER)

BERGÉS, Jean; BERGÉS-BOUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine (Org.). O que Aprendemos com as Crianças que não Aprendem? Porto Alegre: CMC, 2008. Resenha de: SCHÄFFER, Margareth. As crianças que não aprendem ensinam? Educação & Realidades, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 327-332, maio/ago., 2010.

O livro O que aprendemos com as crianças que não aprendem? Convoca o leitor a oferecer sua contribuição à leitura e tramar seus próprios caminhos; exige, ainda, um olhar atento sobre as questões do aprender, da singularidade, da subjetivação, da escola e do tratamento que atravessam os textos como fio condutor. Sim, a obra conduz, mas demanda que o leitor entre com seus próprios fios, levando-o a trabalhar na leitura e na escuta dos escritos. São esses escritos que me convocaram ao trabalho, cuja resultante passo então a partilhar com os leitores. São diversos tipos de textos, de diversos autores, cada um procurando acentuar, a partir do lugar que ocupam, as diversas problemáticas que cerceiam as crianças que não aprendem. Saliento, a seguir, algumas reflexões retiradas do livro1, de modo a mostrar a complexidade que tal temática exige, tratando as várias seções do livro como “cenas”, procurando, com isso, respeitar a diversidade e a pluralidade que a obra nos oferece.

A cena de abertura começa com uma questão importante. Serão os problemas de aprendizagem uma falha da criança, da família, da escola? Entretanto, diante dos embaraços do real do sintoma social, os problemas de aprendizagem se veem tradicionalmente remetidos para o lado médico. Será uma doença? A tônica colocada no defeito e nos meios para atenuá-lo tende a apagar “o que nos aparece essencial, isto é, o lugar do sujeito” (Calmettes-Jean, 2008, p. 10). É pensando pelo lado do sujeito que podemos escapar das perspectivas utilitárias tão comuns hoje em dia e não ficarmos aprisionados entre o ideal e o fracasso, entre o aprender e o não aprender. A emergência do sujeito de um desejo, que se funda em um saber, saber inconsciente, permite-nos a escuta de problemas de aprendizagem. Para a autora, “o que nós somos chamados a descobrir graças a estas crianças, é a importância do lugar do sujeito frente ao saber” (Idem, p. 10) – questão de extrema importância para quem trabalha com estes sujeitos, pois permite saber nos dirigirmos na condução do tratamento e no trabalho pedagógico.
A partir dos impasses que o tratamento coloca, Calmettes-Jean nos diz que não é a partir de uma posição de mestria ou verdade que a questão tem de ser encarada. Os impasses enfrentados no tratamento com estas crianças, por meio do ideal científico, produzem inquietações, pois negam o impossível próprio do ato de ensinar, de educar, de psicanalisar, tais como Freud e Lacan enunciaram. “A orientação em curso exalta um ensino científico que vem, como toda ciência, evacuar e negar a subjetividade como a dinâmica transferencial necessária para a obra da transmissão do saber” (Idem, p. 12). Tal orientação esquece o quanto é difícil o encontro de uma criança com a escola, com o ensino, com o saber. Há um tempo de elaboração para este encontro, o qual está sendo foracluído.

Estamos, assim, às vezes, intimados a vir ultrapassar este impossível de ensinar pela produção de teorias funcionais adequadas a vir reparar o instrumento cognitivo defeituoso, intimados a provar cientificamente nossa competência de médicos-psicólogos. O saber médico deve sanar um problema de onde o sujeito está ausente… (Idem, p. 12).

Levar em conta o inconsciente nas dificuldades escolares propõe que a inteligência não é um dado científico, pois o exercício da inteligência e da cognição está enodado à estrutura do sujeito, no desfiladeiro da multiplicidade de suas experiências. “O inconsciente e o sexual vão colocar suas marcas sobre a inteligência, a cognição, as aprendizagens” (Idem, p. 13). Entretanto, há momentos tão fortes da fala do inconsciente, que chama a entrada do psicanalista, para que o discurso inconsciente tome seu lugar.

Não é para a escola “compreender”, interrogar a razão do saber inconsciente. Escola e psicanalista devem ocupar seus lugares respectivos para tentar ordenar o lugar da criança como sujeito, com a ajuda da família que não pode ser mantida responsável ou culpada de todos seus embaraços (Idem, p. 14).

O saber em psicanálise é um saber inconsciente, não um saber escolar ou universitário. Como o inconsciente faz para saber e obedecer ao desejo do Outro – que quer de mim o Outro –, isso nos determina como sujeitos. Ao longo do livro, casos clínicos e cognitivos testemunham a ligação entre o inconsciente e o cognitivo, o qual denominamos como cenas acerca dos que as crianças que não aprendem ensinam. Cenas que não dizem de crianças objetalizadas ou dessubjetivizadas. Isso seria o saber científico, posição a ser denunciada segundo os autores do livro. Pelo contrário, é a partir do impossível de ensinar e de educar que se questiona e se teoriza o ensino. “É este um ponto de origem para que comece, emerja a questão do desejo do sujeito com as probabilidades de sua confrontação com dialética com a lei?” (Idem, p. 16).
Golse (2008, p. 21), na seção aprendizagens e fracassos escolares, colocanos algumas questões interessantes, principalmente no que diz respeito à aprendizagem no meio escolar, para poder daí tentar precisar o que pode às vezes dissociar o fato de aprender do desejo de saber. Para a autora, opera-se de início a questão das sublimações, as quais vão permitir a transformação progressiva da curiosidade sexual em curiosidade intelectual, “com todos os riscos que a inibição de uma pode trazer à outra” (Idem, p. 26).

Aprender se funda então, sobre a curiosidade, sendo importante não permanecer um curioso sexual exclusivo, mas abrir-se a uma curiosidade sublimada, deslocada quanto a seu fim, e isto tudo evitando conjuntamente as armadilhas de uma masturbação dita intelectual (Idem, p. 27). Interessante sublinhar que as coisas não são lineares e que um certo grau de fracasso pode ser necessário no seio das dinâmicas escolares ou profissionais. O importante, para a autora, não é saber de tudo, mas poder compreender de tudo, o que vai dar lugar ao inédito, à surpresa, à novidade na questão das aprendizagens.

É a relação com o desconhecido, em que o “prazer pessoal do pedagogo para enfrentar o desconhecido pode ajudar a criança a admitir que o desconhecido não seja incognoscível” (Idem, p.29). A autora se pergunta: “Então, finalmente, o que aprendemos com as crianças que não aprendem?” (Idem, p.30). A resposta vai na direção da modéstia e de que talvez tenhamos mais teorias do que precisamos. “Cada criança é um mundo em si, e cada criança deve poder, por si só, nos empurrar para pôr em causa nós mesmos, nosso próprio saber que frequentemente tivemos tanto sofrimento para adquirir” (Idem, p. 30). As crianças estão em estado de dificuldade de aprendizagem e esta é, segundo a autora, a primeira e principal lição que nós devemos apreender.

As cenas que continuam fazendo a costura da temática dizem respeito aos Problemas de aprendizagem escolar e psicopatologia (Misés) e o que há com esta família que não é capaz de contar até dez (Lenoble), fazendo-nos chegar até a confrontação teórico-clínica, em que Bergès (2008, p. 69), ao se perguntar Por que cinco vezes mais meninos não aprendem?, diz-nos que são os meninos que, na maior parte do tempo, arriscam nos ensinar alguma coisa do fato de que eles não conseguem aprender. Pontua, em especial, as dificuldades de leitura e de escrita: na leitura, é diante do real da letra que o não leitor recua. “É um impasse da mesma ordem no qual talvez se envolva a criança que escreve: é o corpo envolvido na escrita que vem se recusar a toda marca, cujo gesto gráfico se fixa na câimbra dos escritores” (Idem, p. 72). É o que se vê aparecer mesmo nos alunos que ainda não sabem escrever: “é o real da letra a inscrever que torna a escrita impossível” (Idem, p. 72).

Pistas, rastros que as crianças que não aprendem nos propõem, e nos convidam a escutá-las e lê-las. Outras vezes, elas afirmam: “Eu não sei… É minha mãe que sabe…” (Bergés-Bounes, 2008, p. 73), mostrando-nos que o desejo de aprender não é o seu, que elas estão divididas quanto ao saber.

“Estas crianças não leitoras deixam mal o saber dos outros, pais, educadores, analistas; elas resistem à proposta do código, à aceitação da transmissão, ao jogo da letra” (Idem, p. 73). O sujeito não leitor não pode ler; é diante do real da letra que o não leitor recua, diante da prova de castração da mãe. “Existe em algum lugar uma verdade, nos diz Lacan, uma verdade que não se sabe, sendo aquela que se articula ao nível do inconsciente. É lá que nós devemos encontrar a verdade sobre o fazer” (Vincent, 2008, p. 81). Existe um tempo para que isto aconteça, que é o tempo de simbolização, tempo subjetivado na medida de seu próprio acontecimento como sujeito. Os cortes temporais sociais vêm aí fazer seus efeitos. Isso é válido para as diferentes dificuldades de aprendizagem, de crianças autistas, psicóticas ou com outra ordem de problemas. Para isso, é preciso uma escuta do sujeito, que ele possa dizer o que há, qual é a ideia que ele tem sobre o que lhe acontece – questão muitas vezes esquecida, cuja resposta poderia nos indicar a posição do sujeito perante o que lhe acontece. É nos obstáculos, nos intervalos que encontramos o estatuto do sujeito. Aí é que é anunciada a verdade em que eu me encarrego do que vem da fala, diz-nos
Lacan. É um sujeito que advém na fala, que se constitui como alguém que conta.

Na cena Clínica, Retratos (2008, p. 151), nos são apresentados vários casos em que a questão do sujeito irrompe em diversas impossibilidades, tal como a da incapacidade de escrever o que escuta – algo da história da criança, que era adotada, não pode se inscrever. Nada de rastros escritos, e a inibição escolar se instala. Algo da questão das origens, de sua posição de sujeito, fica difícil de ser escrito no caderno escolar. Uma destas crianças diz: “eu perdi as letras” (Mathelin, 2008, p. 151). O que isto diz da constituição subjetiva da criança? São crianças que são encaminhadas a tratamento, pois produzem, nos educadores, mal-estar educativo, mal-estar social. Produzem uma insuportabilidade, e, na tentativa de acalmar faltas reais, certo número de medicamentos de substituição poderá ser demandado. Há produção de mal-estar educativo da criança “como o testemunho de uma problemática infantil que não encontra mais referências familiares e, na visão dos quais o sistema educativo é impotente” (Idem, p. 166). Os professores e psicólogos escolares, ao encaminharem as crianças ao terapeuta, procuram respeitar seus sintomas e lhe dão tempo para que ela não seja mais estranha a suas dificuldades – tempo de subjetivação. Talvez esteja no tempo de recolocar a questão: existem mesmo crianças que não aprendem? Dito de outra maneira, “As dificuldades escolares são às vezes, para compreender, não como o sintoma de um sujeito mas, por exemplo, como o do sistema escolar que ele evolui” (Dubois e Meent, 2008, p.177). Questão para pensar.

Na cena E a Escola (2008, p. 189), talvez possamos encontrar algumas pistas para responder a interrogação colocada acima. Melman nos lembra que o ensino “repousa sobre as asas de Eros. Os antigos sabiam bem, se entregavam a esse frisson sem pudor” (2008, p. 192). O autor nos diz que nós preferimos cobrir a face, multiplicando “as técnicas absurdas com o risco de uma sequidão generalizada” (Idem). Em termos de transferência, que o ensinante almeje e suporte o amor que sua aprendizagem pode gerar. Afirmação contundente e prenhe de consequências, principalmente para os alunos que não aprendem. Na atualidade, o que parece acontecer é que os mestres almejem de seus alunos o impossível do autodidatismo, a recusa do Outro. Será? Poderíamos pensar, com Feltin, que, face aos modelos escolares, aos seus alunos, o ensinante “não está mais garantido por um lugar simbólico, outorgado pelo social, mas se encontra totalmente solitário” (2008, p. 205). É só com sua própria enunciação que este pode contar. Este é um ponto de reflexão que a escola, não só, no estabelecimento com os laços sociais, pode colocar-se a trabalhar. Talvez estejam justamente aqui alguns dos pontos que as crianças que não aprendem podem nos ensinar. Novamente, para pensar.

Meljac vai nos dizer que “As crianças que não aprendem nos ensinam, mais uma vez, que seu comércio aporta riquezas singulares” (2008, p. 241). São estas riquezas singulares, este “comércio”, que o livro nos aponta em suas diversas cenas, as quais estão intimamente ligadas a uma posição de sujeitos pensados e pensantes, dependentes de um ato em que estes possam se ler, se dizer, se escrever. De certo modo, nós todos somos crianças que não aprendem, já que aprender é ser sujeito no mundo com o outro, questão difícil na contemporaneidade. Faço-me acompanhar da questão que Bergés nos coloca no final do livro Em suma, o que aprendemos com as crianças que não aprendem?: “Não é porque elas não sabem que nós sabemos” (2008, p. 277). É em nome da modéstia que o autor nos faz tal afirmação.

Aprendemos, com o texto, as interrogações que estas crianças e adolescentes continuam a nos propor, descobertas que nos levam a nos questionarmos sobre nosso lugar, nossas funções frente ao que as crianças que não sabem nos ensinam. Ensinam-nos que não há saber sem sujeito e sua relação com o inconsciente, ensinam-nos a incidência sobre o real da letra, “verdadeiro escolho para apreender um saber” (Idem, p. 281).

Notas

1 O livro interessa aos educadores, psicanalistas, psiquiatras, psicólogos, enfim, a todos aqueles que estão implicados com as questões do aprender e do não aprender.

Margareth Schäffer – Professora titular da Faculdade de Educação da UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: [email protected]

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Abecedário: educação da diferença – CORAZZA (ER)

AQUINO, Julio Groppa; CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Abecedário: educação da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2009. Resenha de: MENEZES, Antonio Basilio Novaes Thomaz de. Abecedário: educação da diferença. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.35 n.2, p.323-326 maio/ago., 2010.

Vocábulo da língua portuguesa, abecedário significa alfabeto: um “conjunto de signos gráficos, letras e diacríticos utilizados para representar os sons de uma língua”, ou, ainda, na forma vernacular, “qualquer sistema de signo gráficos, visuais ou sonoros”, de acordo com o Dicionário Larrousse. Isto por si só bastaria para enunciar todo o conteúdo pressuposto no título, não fosse o livro um esboço da construção coletiva e individual de todo um vocabulário inerente àquilo que lhe complementa o significado com a expressão educação da diferença. Entretanto, não se trata aqui de mais uma simples coletânea que reúne textos de diversos autores ou uma coleção de vocábulos e temas dispersos agrupados num volume. Trata-se, antes de tudo, de uma obra, um constructo que traduz, na decomposição da ordem vocabular, a composição da multiplicidade, dos múltiplos significados dos verbetes e do próprio léxico, daquilo que emerge cifrado como a composição de muitas vozes, no desafio de uma nova forma de pensar a educação.

A referência à forma típica dos dicionários, inclusive daqueles específicos à Filosofia e à Educação, revela uma inversão do significado do termo abecedário, subvertendo o estatuto estabelecido na sua própria lógica de ordenação. Heterogênea e heterotópica, a série alfabética das noções, dos conceitos e dos temas rabisca as primeiras letras daquilo que se experimenta como educação da diferença frente à concepção modal da educação vigente.
A capa negra com letras brancas apresenta o Abecedário na forma invertida de um espelho refletido nas letras negras das suas páginas brancas. Seus detalhes gráficos em cinza e em vermelho apontam para a norma e seu avesso, seja num retângulo cinza destacando o prefixo ab, neste caso prefixo da ausência na ordem do alfabeto, seja nas letras em vermelho que singularizam a educação da diferença. Isto que, na última capa às costas do volume, já prenuncia “33 autores imaginando e fabulando em 46 verbetes, as questões: O que é a educação? O que é a pedagogia? O que é pensar?”.

Urdidura em rede, a coletânea dos temas que lhe servem de conteúdo desenha um labirinto cujo descentramento das diferentes formulações constitui um ponto de fuga no quadro dos postulados teóricos. Neste, o pensamento se lança livre, formando constelações de noções e conceitos em torno do que se pode chamar de um plano projetivo da educação pela diferença. As questões apontam marcos de referência, sem qualquer pressuposto de identidade, numa cartografia de imaginações e fabulações que descrevem a leitura como um espaço da produção do pensamento.

A leitura do Abecedário constitui um desafio para o leitor que caminha pelas primeiras letras e se introduz na dinâmica de construção do pensamento. O livro produz novas séries de sentidos, configurados no uso dos parênteses, por exemplo, em verbetes como: “(o) Fora”, “(o) Que é a Filosofia?”, “(o) Que é a Pedagogia?”, “(o) X da questão”, que correspondem às diferentes formas de subversão do código ou de elisão da ordem na gramática do significado em verbetes como “Regimento (escolar)”, “(des)Territorialização” ou “(trans)Valoriz- ação do magistério”.

O livro exige do leitor colocar-se na condição da criança que, frente ao fascínio quase mágico das letras, põe-se a brincar com elas, não fossem elas imaginações e fabulações experimentadas como conceitos nas diferentes dimensões do seu conteúdo. O Abecedário tem como precondição de leitura a liberdade de pensar.

Universo tridimensional das constelações de noções e conceitos que lhe dão volume à perspectiva da educação da diferença, a obra compõe as peças de um quebra-cabeça nos seus diferentes modos de montar. Tomada sob o eixo tríplice das suas questões centrais, a perspectiva da diferença é aquela do múltiplo, daquilo que se lhe apresenta como superfície e se lhe configura como dado, expectativa ou probabilidade de um significado. O Abecedário resiste à redução dos cânones, incapsulável na sua totalidade fragmentada.

Muitas são as matrizes encontradas na construção da obra: Filosofia, Literatura, Semiótica, cinema… Desde a inspiração do título, no “Abécédaire” de Deleuze, cujo pensamento perpassa a obra, até as vozes recorrentes de Nietzsche, Platão, Bergson, Foucault, Espinosa, que ressoam em algumas páginas; bem como nas passagens ocasionais por Kafka, Barthes, Pessoa, Borges, Pasolini e Artaud, apenas para citar algumas notas; o livro mostra a sua originalidade na dodecafonia da sua composição. Antes, daquilo que num primeiro movimento nos parece inaudível.

Uma após a outra as letras se sucedem no Abecedário, e os verbetes multiplicam-se, incitando as imaginações às novas fabulações. Há uma superfície na qual se organizam os enunciados dispersos. Auto-organização da vida, da matéria do pensamento… Há, na forma de interação das partículas, uma correspondência entre os diferentes níveis de organização da matéria e aqueles que são possíveis na leitura do livro.

As questões centrais do livro (“O que é a educação?”; “O que é a pedagogia?”; “O que é pensar?”) divisam o horizonte de um enquadramento teórico, matriz histórica do pensamento educacional e fundamento da sua concepção moderna. As perguntas pelo significado da Educação e da Pedagogia como propostas do seu conteúdo remetem à distinção destas em fins do século XIX e início do século XX, tal como aparece, por exemplo, em 1885, no “Cours de pédagogie theórique et pratique”, de Gabriel Compayré. Deste modo, a pergunta pelo significado de ambas recoloca a questão do caráter da Educação como formação e da prática que define o ensino como ato pedagógico na sua acepção genérica.
De outro modo, na esteira da tradição consolidada, a divisa da educação da diferença produz a ruptura com a épistèmé moderna, quando no seu próprio quadro de definições coloca a pergunta pelo significado do pensar: “O que é pensar?”. A pergunta se põe à própria condição do pensamento como exercício e de invenção da Educação como esforço de criação do novo. Ela parte da existência do pensamento na Arte, na Ciência e na Filosofia, possibilitando, por um lado, interferências, repercussões e ressonâncias; ressaltando, por outro lado, as especificidades dos saberes, suas questões e condições próprias. Exercício do pensamento… Jogo de adivinha… Experimento mental… Afinal… O que o livro tem a dizer?

A composição da obra corresponde às variações possíveis em torno da leitura e aproximações do que se pensa diferença. Fragmentos da criação de um mosaico, totalidade fragmentada, possibilidades de séries e séries de possibilidades, o Abecedário se define nos modos de usar.
Lê-lo é colocar-se sob a perspectiva da exterioridade, do exercício do pensar a educação da diferença, a partir dos encontros, das conexões, das intercessões, das articulações e dos agenciamentos, tanto no domínio educacional quanto em conceitos, noções e elementos de outros domínios.

A leitura constitui-se num jogo probabilístico; dentre muitos, uma possibilidade de se estabelecer uma gramática própria ao Abecedário, a partir das suas redes de relações. Estas que relacionam os conceitos aos vocábulos do pensamento; as áreas de vizinhança aos outros domínios do saber; os substantivos à produção da materialidade do processo; as adjetivações à expressão das especificidades, às aproximações; e, por fim, os próprios verbos, a todo o processo da criação. Assim, a gramática fragmentada articula na forma da sintaxe vocabular a instância da criação de novos significados, assinalados em verbetes como “Rizoma”, cujo conceito aponta para o duplo aspecto do modelo e decalque transcendente, da configuração da identidade simultânea ao processo imanente da produção da diferença e da singularidade no domínio educacional.

Paralelo aos conceitos, a mesma gramática permite áreas de vizinhança nas quais as intercessões reverberam nos verbetes, a exemplo de “Plano” e “Zero”, oriundos de outros domínios, estabelecidos numa nova perspectiva, em torno de problemas específicos postos em relações topológicas e de variação de posições. Ei-los então, os conceitos de “Plano” e “Zero”, que atravessam o domínio da educação naquilo que concerne à prática e à vivência.

De outro modo, verbetes como “Sala de aula”, “Universidade”, “Máquina”, “Xerox” denunciam os substantivos na materialidade das práticas, daquilo que se faz por materializar a produção de objetos ou de um sistema d objetos que compõem o quadro da Educação. Emolduramento de uma percepção da realidade, aos substantivos se seguem as adjetivações como forma de sintaxe do que se apresenta e decorre da materialidade dos objetos em sistema, isto é, os referenciais da identidade avaliados na superfície em que se encontram, a exemplo dos verbetes “Sociedade de controle”, “Tecnologia educacional”, “Metodologia do ensino”, “Formação de professores”, “Inclusão escolar” etc.
A gramática fragmentada dos verbetes possibilita ainda uma leitura na direção daquilo que o Abecedário indica como “Zona de variação contínua”, de diferentes forças que interagem, constituem e atravessam o espaço da produção. Outros verbetes, como “Univocidade do ser”, “Geologia da moral” e “Esquizoanálise” são expressão de agenciamentos e conexões sobre aquilo que o pensamento suscita na prática educacional, por meio de novas aproximações, que permitem vislumbrar a perspectiva da diferença.

Assim, na diferença e na repetição dos verbetes, encontram-se os verbos “Aprender”, “Brincar”, “Ensinar”, fragmentos centrais nesta gramática de leitura processos afirmativos que caracterizam a singularidade no cerne da criação, daquilo que se reúne em torno da educação da diferença: devir.

Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes – Editor da Revista Saberes: Filosofia e Educação. É chefe do Departamento de Filosofia, professor do Programa do Pós-Graduação em Educação, membro do Grupo de Pesquisa Fundamentos da Educação e Práticas Culturais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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O programa da revolução – ULIANOV (RF)

ULIANOV, Vladimir I. Teses de Abril, 1917. In: MARX, Karl et al. O programa da revolução. Brasília, DF: Nova Palavra, 2008. p. 73-87. Resenha de: TAFFAREL, Celi; RODRIGUES, Raquel. Revista FACED, Salvador, n.17, p.129-132, jan./jun. 2010.

Biografia do autor e contexto da obra

Vladimir I. Ulyanov foi um dos grandes revolucionários da história, líder da Revolução Russa de 1917. Nasceu em 22 de abril de 1870 na cidade russa de Simbirsk (atual Ulyanovsk) e morreu em 21 de janeiro de 1924 em Gorki (próximo da cidade de Moscou) devido à doença. Conhecido por Lênin foi, o terceiro filho entre cinco irmãos. Em 1887, seu irmão mais velho, Alexandre Ulianov, foi executado por ter sido acusado de participar do atentado contra o czar Alexandre III, acontecimento que o impressionou profundamente. Estudou direito e em 1895 foi preso e enviado a Sibéria por três anos, acusado de divulgar ideias marxistas entre trabalhadores locais. A resenha que ora apresentamos refere-se ao ano de 1917 quando Lênin era dirigente da Revolução de Outubro. Eleito presidente do Conselho dos Comissários do Povo, levou a fundo a batalha contra todos os adversários da Revolução. Em 1922, criou, em conjunto com os sovietes, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Lênin resistiu com força ao movimento contrarrevolucionário (1918-21). Durante seu governo, nacionalizou indústrias e bancos, controlou as terras agrícolas e constituiu um forte controle político e econômico. As Teses de Abril, texto que ora resenhamos, apresenta a discussão acerca do informe apresentado por Lênin na reunião dos bolcheviques, em 4 de abril de 1917.

Síntese das principais ideias

As Teses de Abril são ao todo dez, e representam uma plataforma de ação para orientar os bolcheviques no processo revolucionário, e foram apresentadas por Lênin aos seus camaradas. Das Teses de Abril constam:

Tese I – Atitude frente à guerra – Lênin critica a enganação das massas pela burguesia naquilo que chamavam de defensismo, defesa da pátria e manifestar-se em favor de nenhuma concessão, por mínima que seja, ao “defensismo revolucionário” deveria ser tolerada em nossa atitude em relação à guerra. A única guerra que se justifica é a guerra revolucionária, desde que as condições sejam atendidas:

a)Passagem do poder ao proletariado e aos setores mais pobres do campesinato que são próximos dele; b) renuncia, em atos e não em palavras, a qualquer anexação; c) ruptura total nos fatos com todos os interesses do capital.

Enfatizava que as massas deveriam ser esclarecidas, principalmente na relação capital e guerra imperialista, sendo impossível terminar a guerra com uma paz verdadeiramente democrática, que não seja imposta pela violência, sem derrubar o capital. A classe operaria é a única que tem condições de dirigir a guerra revolucionária e o defensismo revolucionário é uma traição ao socialismo.

II – A Transição. A transição é considerada a primeira parte da revolução que deu poder à burguesia, pelo fato do proletariado não ter nível suficiente de consciência e de organização, e a etapa seguinte seria o proletariado e o campesinato assumirem o poder. Lênin constatou que o proletariado é insuficientemente consciente e organizado, mesmo tendo a força do trabalho em suas mãos; ao contrário da burguesia, que é organizada e está preparada, além de possuir uma clara consciência de classe.

III – Nenhum apoio ao governo provisório. Exigir que o governo deixe de ser imperialista, que atenda as necessidades das massas.

IV – O verdadeiro governo é o soviete de deputados operários. As massas não podem ser ludibriadas, precisamos explicar pacientemente, persistentemente e de forma sistemática. A possibilidade de um governo revolucionário será a partir dos sovietes de deputados operários. Queremos que as massas se libertem de seus erros pela experiência.

V – República dos sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses. Fim da polícia, do exército e da burocracia.
Com a experiência da Comuna de Paris, os salários dos funcionários públicos, eleitos e destituíveis a qualquer momento, não deverão exceder o salário médio de um bom operário. O fato de não terem extinguido a polícia, o exército e a burocracia foram elementos fundamentais para a revolução não avançar. A arte de governar não se aprende em nenhum livro. Tente, erre, aprenda a governar. Governar não é nada fácil, mas é necessário e será com a experiência que podemos avançar.

VI – Programa agrário. Os sovietes dos representantes assalariados agrícolas devem ser responsáveis pelo programa, devido o seu lugar na produção e não o campesinato. Confiscar as terras dos latifundiários e, consequentemente, nacionalizar todas as terras do país e colocá-las à disposição dos sovietes locais de deputados dos trabalhadores agrícolas e dos camponeses. Trabalhar/explorar a terra com base na coletividade.

VII – Fusão imediata dos bancos do país em um banco nacional único. Administrado pelos sovietes de deputados operários.

VIII – Controle da produção social e repartição dos produtos aos sovietes de deputados operários. Introduzir o socialismo seria uma tarefa posterior

IX – Tarefas do partido:

a) Convocar imediatamente o Congresso do Partido;

b) Modificar o Programa, principalmente nos itens sobre: 1) o imperialismo e a guerra imperialista, 2) a posição perante o Estado e a nossa reivindicação de em Estado-Comuna; 3) Corrigir o Programa Mínino, já superado;

c) Mudar o nome do partido (para Partido Comunista).

X – Renovar a Internacional. Lênin reconhece que o programa do partido está defasado e que precisa ser alterado e defende substituir o nome do partido para Partido Comunista. As massas devem compreender que o socialismo cindiu-se no mundo todo.

Análise

As Teses de Abril, escritas por Lênin em 1917, apontavam a necessidade da reforma agrária; reconheciam que a guerra, que não era revolucionária, beneficiava exclusivamente a burguesia e, que não podemos iludir as massas, temos a responsabilidade de nos dirigir de forma clara e sistemática para que nos façamos entender.

As Teses de Abril foram assinadas, exclusivamente, por Lênin que defendia a necessidade de não retroceder e não abrir mão daquilo que foi conquistado pela luta dos operários assalariados e do campesinato. Continuam atuais em seus conteúdos, o que lhes confere aderência ao real, como ponto de apoio na luta histórica da classe trabalhadora, para organizar e compreender o seu lugar de classe em si e classe para si.

Celi Taffarel – E-mail: [email protected]

Raquel Rodrigues – E-mail: [email protected]

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Um rigor outro: sobre a questão da qualidade na pesquisa qualitativa – MACEDO et al. (RF)

MACEDO, Roberto Sidnei; GALEFFI, Dante; PIMENTEL, Álamo. Um rigor outro: sobre a questão da qualidade na pesquisa qualitativa. Salvador: EDUFBA, 2009.Resenha de: BITENCOURT, Laís Andrade; SOUZA Mírian Loiola. Revista FACED, Salvador, n.17, p.133-138, jan./jun. 2010.

Credenciais dos autores

Roberto Sidnei Macedo possui graduação em Psicologia, é Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Paris Saint-Denis, com Pós-Doutorado em Currículo e Formação na Universidade de Fribourg-Suíça. Pesquisador líder do Grupo de Pesquisa em Currículo e Formação (FORMACCE), do PPGE e do DMMDC FACED/UFBA. Vice-Coordenador do GT de Currículo da ANPED. Em sua trajetória acadêmica foi professor de algumas universidades públicas e particulares. Atualmente, como professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, orienta teses e dissertações, nas áreas de currículo e formação de professores. Dante Galeffi possui graduação em Arquitetura, é Doutor em Educação pela FACED/UFBA. Pesquisador do campo de Filosofia da Educação do PPGE e do DMMDC FACED/UFBA. Atualmente é professor permanente do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação e do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), ambos na UFBA. É o atual coordenador do DMMDC. Lidera o Grupo de Pesquisa Epistemologia do Educar e Práxis Pedagógica, desenvolvendo pesquisas nas áreas de epistemologia da complexidade, transdisciplinaridade e epistemologia do educar transdisciplinar.
Álamo Pimentel possui graduação em Pedagogia, é Doutor em Educação pela Universidade do Rio Grande do Sul. Pesquisador do campo de Antropologia da Educação do PPGE/FACED/UFBA. Pró- Reitor de Assuntos Estudantis da UFBA. Atualmente é professor Adjunto II da Universidade Federal da Bahia e professor colaborador de Programa de Pós-Graduação em Educação FACED/UFBA. Atua, principalmente nas áreas de antropologia educacional, convivência e educação.
Resumo da obra

Nesse trabalho, os autores Macedo, Galeffi e Pimentel discutem acerca do desenvolvimento de pesquisas qualitativas, e para isso, ancoram-se em vivências possíveis ao pesquisador ao longo destas experiências. A obra é dividida em três capítulos, sendo cada um deles escrito por um dos autores. Os textos trazem uma clara preocupação dos escritores em situar o leitor a respeito das escolhas teóricas e epistemológicas que sustentam esta abordagem de pesquisa, ressaltando os elementos que constituem e conceituam o rigor necessário a um trabalho de pesquisa sério e de qualidade.

No primeiro capítulo, O rigor nas pesquisas qualitativas: uma abordagem fenomenológica em chave transdisciplinar”, Galeffi, em pouco mais de 70 páginas, trabalha de forma provocativa, principalmente os conceitos de pesquisa qualitativa, rigor, abordagem transdisciplinar, a interferência da política, da economia e da ética nesse tipo de abordagem.

Começa sua discussão fazendo dois questionamentos importantes. Um diz respeito aos fundamentos epistemológicos norteadores da pesquisa qualitativa e o outro aos métodos empregados neste tipo de pesquisa. Ambos questionamentos nortearam suas reflexões ao longo do primeiro capítulo. No decorrer do texto o autor descreve conceitos básicos que, a seu ver, orientarão os estudos da pesquisa qualitativa de natureza fenomenológica, entendendo a fenomenologia “como o esforço do pensamento humano em conectar-se com a totalidade do vivido e do vivente, tendo-se em vista a autocondução responsável e consequente da vida de relação presente”.( p. 15 )

Galeffi não perde de vista o fato de que a qualidade na pesquisa qualitativa é configurada a partir das experiências humanas, refletidas e apropriadas. Compreende a ética como investigação filosófica relativa ao agir, deixando claro a importância da criticidade nas pesquisas qualitativas, contudo chamando a atenção para a crítica justa, moderada, criteriosa, cuidadosa, dedicada e rigorosa.

Rigor e qualidade são duas expressões usadas pelos autores durante toda a obra. Consciente da necessidade de ampliar as compreensões do leitor sobre o que seja o rigor e a qualidade na pesquisa, Galeffi retoma, em várias sessões de seu capítulo, o seu próprio entendimento sobre o rigor e a qualidade. Nessa explanação busca diferenciar os parâmetros norteadores das pesquisasquantitativa e qualitativa e, nesta direção, não nega a importância dos números em trabalhos de pesquisa, mas entende que esses não são os meios mais potentes ou os únicos a garantirem a qualidade da mesma. A sua compreensão de rigor extrapola a praticidade de resultados que possam ser mensurados ou apresentados de forma objetiva. Discute o rigor como atitude de comportamento e compromisso com aquilo que promove a potência, aquilo que nos faz bem. Afirma ainda que o rigor nada tem a ver com a exteriorização metodológica de passos e regras que julguem ser o meio para se conduzir uma investigação científica consistente. Para ele o rigor é um ato livre e implicado com a vida ambundante.

Desse modo, Dante critica o fato das qualidades nas pesquisas serem medidas por critérios previamente estabelecidos. Para ele, é coerente considerar uma pesquisa qualitativa, aquela em que o pesquisador se torna aprendiz de si mesmo, na medida em que a pesquisa alcança sentido como práxis qualificadora, implicando em uma produção de si-mesmo-outro-mundo.

No segundo capítulo, Outras luzes: um rigor intercrítico para uma etnopesquisa política, Macedo desenvolve sua reflexão partido do pressuposto de que a busca do rigor nas pesquisas qualitativas significa a busca da qualidade epistemológica, metodológica, ética e política, socialmente referenciadas.

Critica o fato dos muitos trabalhos científicos nas universidades terem se distanciado dos “valores epistemológicos, metodológicos, comunitária e publicamente construídos como valorosos, e que possibilitam as pesquisas a inserção na responsabilização/ legitimação qualitativa da instituição universitária”. (p. 79)
Na busca de elucidar o que caracteriza o rigor na pesquisa qualitativa, vê a necessidade de diferenciá-lo da rigidez, afirmando o rigor como uma ética de qualidade constituído na intercompreensão, na intercrítica dialogicizada e dialeticizada, levando em consideração os conhecimentos produzidos, também, a partir de situações culturais nãoacadêmicas. O autor defende que não é possível fazer pesquisa sem explicitar o meio cultural em que os atores sociais estão inseridos, nem tampouco sem reconhecer a participação dos mesmos no desenvolvimento do trabalho. Neste sentido, apresenta a etnometodologia como sendo a base teórica que sustenta a etnopesquisa, sobretudo porque não trata os atores sociais como “idiotas culturais”, ao contrário, afirma que os mesmos possuem etnométodos, ou seja, modos, jeitos, maneiras de compreender o mundo e resolver os impasses da vida.

Aponta para a necessidade de entender o qualitativo para além da divisão quantidade/qualidade. Assinalando a existência de momentos delicados que tratam do rigor nas pesquisas qualitativas desde a coleta de dados até a interpretação dos mesmos, concluindo que a interpretação se dá em todo o processo de pesquisa. Vale ressaltar ainda, que o autor faz o levantamento de algumas questões que podem levar à desqualificação da pesquisa qualitativa como: insuficiência de fontes de “dados”; ausência de evidências apoiada sobre os “dados” obtidos de fontes variadas; erro de interpretação, entre outros.

Macedo descreve e reflete sobre a importância da crítica, da autocrítica e da intercrítica na constituição de um rigor outro. Deixando à escolha do pesquisador a construção do seu caminho, a sua autorização diante do seu objeto de estudo e do seu caminhar, desde, é claro, que o mesmo não perca de vista o rigor como na perspectiva de aprofundamento, de relacionamento e de conexão.

No terceiro e último momento do livro Considerações sobre a autoridade e o rigor nas etnografias da educação, Pimentel faz reflexões sobre o papel do pesquisador na pesquisa qualitativa. Pauta sua discussão entre a ambígua relação teorias e práticas investigativas e a abordagem da antropologia, nesse âmbito de pesquisa.
Conta experiências vividas em campo com algumas pesquisas realizadas, principalmente de cunho etnográfico onde pôde desenvolver seu trabalho com rigor e não rigidez a partir do trabalho de campo e do contexto social.

Explica que seu interesse na etnografia como prática de produção do conhecimento sobre a cultura corresponde ao desejo de encontrar na antropologia e na educação um campo interdisciplinar de construção teórico-metodológica capaz de inovar concepções de ensino e aprendizagem.

Para o autor, a etnografia tem cumprido um papel importante para a formação de intelectuais ocupados com a interpretação das culturas na construção dos cenários sociais contemporâneos. Tendo como resultados, principalmente, reivindicações de novos paradigmas de pensamento no campo das ciências humanas; transformações de posturas investigativas; abordagem do cotidiano como dimensão instituinte da vida comum, bem como consubstanciação da cultura como dinâmica de formação.

O olhar, a escuta, a conversação e a autorização nas pesquisas são preocupações que norteiam o ensaio do autor, buscando sempre a compreensão da escrita etnográfica como tomada de posição nas relações eu-outro das configurações culturais em que os indivíduos se apresentam em seus contextos vivenciais.
Pimentel toma o educar e o conversar como interfaces de um processo de ensino-aprendizagem. Para ele, o entrelaçamento no linguajar e no se emocionar com o outro cria situações em que o sujeito da pesquisa (o ator social) e o pesquisador incorporam, afetiva e cognitivamente, características posturais e saberes fundamentais para a aproximação com o outro.

Não nega, em momento algum do texto, a importância do quantitativo nas pesquisas qualitativas, contudo conclui sua reflexão afirmando que a autoridade será apenas construída quando superarmos a necessidade do controle do mundo através das nossas certezas estatísticas e nos aventurarmos na vertiginosa busca das significações que dão rumo e sentido ao estranho e ao familiar mundo que também habitamos com os outros.

Conclusão e crítica das resenhistas

Ao dialogar com as reflexões dos três autores, torna-se preemente buscar compreender o que nos faz escolher determinada abordagem de pesquisa dentre as diversas possibilidades existentes. Os textos nos fizeram pensar sobre a necessidade de realizar pesquisas mais abrangentes e densas, pesquisas bem articuladas entre a ambiguidade, quantidade e qualidade.

Os autores apresentaram, de forma crítica e com certa leveza, o papel e a importância do rigor nas pesquisas humanas, como também nos fez refletir sobre a diferença entre o conceito de rigor que figura entre as pesquisas quantitativas e as qualitativas. É válido se pensar hoje sobre quantas pesquisas são comparadas entre si, sobre como se compara esse ou aquele método avaliativo, esse ou aquele modelo de ensino, essa ou aquela cultura, entretanto, ainda não se pratica uma comparação reflexiva que esteja atrelada ao contexto social. Ainda não se faz comparação/reflexão/ação sobre o papel do próprio pesquisador nas suas pesquisas e o impacto destas sobre os atores sociais, sobre quem pesquisa e sobre a comunidade pesquisada.

Macedo, Galeffi e Pimentel nos trazem uma obra pertinente, reflexiva e provocativa sobre a complexidade de se desenvolver pesquisas qualitativas e o quanto essa abordagem exige do pesquisador atenção, escuta e cuidado. Nesta perspectiva, o compromisso ético que figura nas relações estabelecidas entre pesquisador, sujeitos sociais e contexto cultural foi responsavelmente destacada no decorrer dos textos dos autores.

Para nós, essa obra figurou como um saboroso convite a experimentar a aventura da pesquisa e nela descobrirmos talentos, formas, encontros sem desconsiderar as antíteses de tudo isso, pois as desconstruções fazem parte do processo de aprendizagem. E nesse diálogo, entre o que sabemos e o novo apresentado, podemos ampliar a nossa própria visão e compreensões do mundo, enriquecendo assim as nossas futuras produções.

Laís Andrade Bitencourt[email protected]

Mírian Loiola Souza – E-mail: [email protected]

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Do MEB à WEB: o rádio na educação – PRETTO; TOSTA (RF)

PRETTO, Nelson De Luca; TOSTA, Sandra Pereira (Org). Do MEB à WEB: o rádio na educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 207p. Resenha de: CASTRO, Fernanda Carla. Revista FACED, Salvador, n.17, p.123-127, jan./jun. 2010.

“A rádio, como nunca antes, é muito mais que somente rádio”, afirma o pesquisador Guillermo Orozco Gómez (Universidade de Guadalajara), no prefácio do livro Do MEB à WEB: o rádio na educação. Organizado pelos pesquisadores Nelson De Luca Pretto e Sandra Pereira Tosta1, a publicação reúne pesquisas nacionais e internacionais que tratam do rádio e do seu potencial educativo. O livro discute o Movimento de Educação de Base (MEB), que na década de 1960 incorporou o rádio como um recurso educativo, a WEB, que impôs mudanças na maneira tradicional de se fazer Educação por meio desse veículo, que se tornou “muito mais que somente rádio”. Conforme destaca Gómez, hoje o rádio oferece uma “dinâmica de possibilidades inéditas para o intercâmbio informativo, a produção de conhecimento e a própria Educação”. Mas o grande desafio que deve ser buscado em todas as experiências radiofônicas educativas é “propiciar a interação real dos usuários da rádio com os próprios conteúdos para a expressão, transcendendo a mera recepção radiofônica”.

Segundo os organizadores, Do MEB à WEB surgiu “com o objetivo de contribuir com a discussão e práticas dos usos do nosso velho e bom companheiro rádio e de sua reinvenção digital, web rádio, na Educação”. Para isso foram convidados autores com experiências educativas diversificadas com o rádio no Brasil e em outros países. Os organizadores também destacam a necessidade de incorporar à publicação o debate sobre a adoção de softwares livres na rádio web, entendida por Pretto e Tosta como de importância estratégica para a Educação e a Cultura, por “contribuir com a emancipação do País em termos científicos e tecnológicos”.

O artigo que abre a publicação, O Rádio e a Educação: a experiência do MEB e as contribuições para a Educação popula, é de José Peixoto Filho – Universidade Federal Fluminense (UFF), que resgata o surgimento2 do MEB e como sua decisão de incorporar o rádio como meio e instrumento educativo e pedagógico contribuiu para a Educação popular e a alfabetização de adultos, entre 1961e 1966. Os programas de rádio do MEB em Goiás, destacados no artigo, embora censurados pelo contexto político da época, enquanto estiveram no ar, funcionaram com êxito na interação com o trabalhador do campo, extrapolando sua alfabetização e levando-o a uma atitude crítica diante da exploração e da dominação.

O pesquisador José Marques de Melo da Universidade de São Paulo (USP), em seu artigo, Mídia, Educação e Cultura Popular: notas sobre a revolução sem violência travada em Pernambuco no tempo de Arraes (1960-1964), discorre sobre um projeto que se entrelaça com o MEB. O pesquisador narra, do lugar de “observador participante”, como funcionou o Movimento de Cultura Popular (MCP), fundado em 1960, em Pernambuco, no governo de Miguel Arraes. Melo lembra que, desde sua fundação, o MCP, além da valorização de diversas manifestações culturais, buscou desenvolver nas comunidades do Nordeste, uma apreciação e uma leitura crítica dos meios de comunicação. O artigo faz um resgate documental das atuações do MCP, apresentando pontos de convergência e divergência com o MEB, e convidando os educadores da nova geração a revisarem criticamente tais projetos.

No terceiro artigo, Rádio web na Educação: possibilidades e desafios, os pesquisadores Nelson De Luca Pretto, Maria Helena Silveira Bonilla e Carla Sandeiro, partindo da experiência de implantação de uma rádio web na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA), chamam a atenção para perspectivas e dificuldades trazidas com a transposição do rádio para o ciberespaço. Com a rádio web abre-se um leque de novas possibilidades para atividades educacionais, demandando uma participação ativa de alunos, que passam de meros consumidores de informações a produtores de conteúdos. Por outro lado, o grande desafio é garantir o pleno uso desses novos recursos. Os pesquisadores denunciam que a pressão política dos grandes grupos empresariais das comunicações impede uma transformação da legislação que regulamenta as rádios comunitárias, restringindo sua apropriação pela comunidade e pelo campo educacional: “com a população pobre distante da possibilidade de uso efetivo desses recursos, o discurso torna-se vazio”.

Cicília M. Krohling Peruzzo (USP) dá continuidade ao debate lançado pelos pesquisadores da UFBA no estudo, “Rádios livres e comunitárias, legislação e educomunicação”, no qual esclarece em que se convergem e em que se diferenciam os dois tipos de rádio no Brasil, e enumera os benefícios trazidos às comunidades que se envolvem na produção radiofônica. Aprendendo as técnicas e linguagens e mesmo os mecanismos de manipulação a que podem estar sujeitos, os envolvidos “melhoram a autoestima e um possível interesse em crescer e colaborar para que mudanças sociais ocorram”. Mas, novamente, as comunidades têm que lutar contra as limitações impostas ao direito de exercitar a comunicação e as políticas “favoráveis aos grandes grupos de mídia e ao mercado das comunicações do ponto de vista prioritário do negócio”.

O quinto artigo, A rádio comunitária na construção da cidadania e da identidade, traz a pesquisa desenvolvida por Lílian Mourão Bahia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), sobre o papel das rádios comunitárias União, de Belo Horizonte, e Inter- FM, de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. Partindo da noção de esfera pública de Jurgen Habermas, a pesquisadora ouviu líderes comunitários, agentes, trabalhadores e dirigentes dos veículos e concluiu que as experiências, mesmo que de maneira embrionária e descontínua, reconfiguraram a esfera pública midiática, formando e consolidando identidades locais e abrindo espaço para o exercício da cidadania.

Mauro José Sá Rego Costa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), discorre, no artigo Para criar o site Radioforum, em busca de um rádio inventivo, sobre as motivações que o levaram, juntamente a um grupo de radioartistas, produtores e teóricos do rádio, a formatar, na internet, um espaço de discussão e experimentação. Os envolvidos no projeto dão seus depoimentos e mostram com quais gêneros radiofônicos irão trabalhar, buscando devolver a inventividade às ondas do rádio.

Em Rádio como política pública: uma experiência paradigmática em educomunicação, Ismar de Oliveira Soares (USP) apresenta aos leitores o projeto3 que, a partir de 2001, levou o rádio a 455 escolas da rede municipal de São Paulo, envolvendo cerca de 11 mil pessoas. Com uma proposta de produção colaborativa, envolvendo democraticamente educadores e educandos, Soares acredita que a grande ousadia da Educom.rádio foi sua implantação “em uma rede formal de ensino, regida por normas que atravessam gerações de educadores e que garantem a tradicional verticalidade do processo de ensino”.

Das escolas de São Paulo, o rádio chega às de Belo Horizonte, por meio de Fábio Martins da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que registra algumas experiências radiofônicas educativas na capital mineira, não sem antes evocar a figura de Roquette- Pinto e sua crença no rádio “como veículo capaz de provocar mudanças na mentalidade popular”. No artigo intitulado O rádio dos meninos, o pesquisador discute os conceitos de “educomunicação” e “educomídia”, além de dar voz a alguns dos alunos envolvidos em um dos projetos radiofônicos de Minas Gerais.

Dos alunos a discussão salta para os moradores de uma favela de Belo Horizonte, principais ouvintes de Ana Paula Bossler (FaE/UFMG) e sua proposta de falar sobre ciência no rádio. Em Divulgação Científica na Rádio Favela FM4:percursos discursivos e a ciência na ausência da imagem, a pesquisadora discute os desafios do projeto e descreve a rotina de produção do programa Ciência na Favela. Bossler apresenta ainda considerações acerca dos programas com finalidade educativa na mídia.

No décimo capítulo, Nelson De Luca Pretto, Maria Helena Silveira Bonilla, Fabrício Santana, Bruno Gonsalves, Mônica de Sá Dantas Paz e Hilberto Mello retomam a discussão sobre os softwares livres. Em Soluções em software livre para rádio web, os pesquisadores da UFBA apresentam indicações de como usar e instalar rádios web com software livre em projetos educacionais e comunitários.

As experiências de Espanha e Portugal estão no artigo A rádio universitária como modalidade educativa audiovisual em contexto digital. No estudo, os pesquisadores Marcelo Mendonça Teixeira (Universidade do Minho), Juan José Perona Páez, da Universidade Autonoma de Barcelona (UAB) e Mariana Gonçalves Daher Teixeira (Universidade do Minho) analisam e comparam as rádios universitárias mais significativas dos dois países, concluindo que o caráter alternativo das emissoras possibilita a veiculação de temáticas dificilmente encontradas em outras rádios, “como a problemática da exclusão social; a popularização da ciência e o conhecimento; assim como a música, o cinema, a literatura e arte”.

Quem encerra a publicação é Maria Luz Barbeito Veloso (UAB), que também traz uma experiência da Espanha. Em Publiradio.net: desenho, desenvolvimento e avaliação de materiais didáticos on-line para a formação em comunicação, Veloso apresenta uma plataforma on-line que permitiu aos alunos de publicidade da UAB gerar seus próprios produtos publicitários radiofônicos e acabou por se transformar em uma web rádio educativa.

Acredita-se que Do MEB à WEB, ao reunir todos esses estudos, pode iluminar não só outras pesquisas sobre o rádio em seu papel educativo, como todas as comunidades envolvidas com esse veículo que, em tempos de Internet, abre um extenso campo de experimentação.

Notas

1 Nelson De Luca Pretto é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e professor associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Sandra Pereira Tosta é doutora em Antropologia Social pela USP. Professora da PUC Minas; coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Culturas (Educ); pesquisadora do CNPq.

2 O MEB foi instituído em março de 1961, por meio de um convênio entre a Presidência da República e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), durante o governo Jânio Quadros.

3 O projeto Educom.rádio surgiu em 2001, numa parceria entre a Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo e o Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da USP. Em 2005 e 2006, o projeto foi levado a escolas do ensino médio do Centro-Oeste do Brasil, incluindo aldeias indígenas e comunidades quilombolas.

4 Criada em 1981, por iniciativa dos moradores de uma comunidade do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, a Rádio Favela foi legalizada em 1996 e condecorada duas vezes pela ONU por suas ações a favor da cidadania e do combate à violência.

Fernanda Carla Castro – E-mail: [email protected]

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Pesquisa e prática profissional: educação especial – BANZZATT (REE)

BANZZATT, R. B. Pesquisa e prática profissional: educação especial. Curitiba: IBEPX, 2009, 101p. Resenha de: Resenha de: ROIZ, Simone Tonolo Oliveira. Para que lado caminha a inclusão? Revista Educação Especial, Santa Maria, v.23, n.36, p.145-148, jan./abr., 2010.

A educação especial é um tema que vem sendo discutido tanto por profissionais da educação, quanto por aqueles que, de uma forma ou de outra, se preocupam ou se identificam com o assunto. A educação inclusiva no Brasil foi e ainda está sendo muito polêmica, talvez pelas insuperáveis formas de exclusão, que se arrastam ano após ano. Incluir não consiste em apenas inserir uma criança, ou jovem portadora de alguma necessidade especial, dentro de uma sala do ensino regular, sem ao menos ter um ambiente adequado para recebê-la, e profissionais minimamente qualificados e aptos a exercer tal função.

Nesse sentido, se faz necessário um melhor esclarecimento do que vem a ser inclusão, pois, o que está havendo mais se parece uma integração do que propriamente um ato de incluir. Obviamente, não se pode generalizar. Muitas instituições têm feito um enorme esforço para incluir de forma adequada crianças e jovens, com histórico de necessidades especiais, por meio de adaptações em suas salas e qualificando professores e funcionários que ali se encontram.

A autora deste livro mostra a importância deste tipo de pesquisa para a prática de ensino. Entretanto, o livro se apresenta mais como um manual didático, do que propriamente uma pesquisa empírica. Mas traz consigo um trabalho de grande valia para os dias atuais, em função do recenseamento que faz da discussão.

Em síntese, o principal objetivo da autora é de apresentar a importância da pesquisa para profissionais da educação e, principalmente, para aqueles que atuam com a inclusão dentro do âmbito escolar.

No primeiro capítulo autora discute a relação e a “importância da pesquisa para a prática profissional em educação especial”. Segundo ela:
A realização de pesquisas na educação especial fornecerá subsídios para uma melhor atuação na complexa e dinâmica realidade educacional, tendo em vista a diversidade de alunos que ali transitam, a fim de promover o seu acesso aos saberes que compõe o currículo (p. 19).

Já Paulo Freire dizia que: “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses fazeres se encontram um no corpo do outro […] pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade” (1996, p. 29). No capítulo seguinte, a autora fala da complexidade que há entre professor e aluno dentro do âmbito escolar, por que “a sala de aula não é apenas um espaço geográfico, mas um ambiente constituído por uma diversidade valiosa, em que o processo de ensino e aprendizagem deve ser privilegiado” (p. 29). E, no entanto, o que lemos e presenciamos estão bem distantes de nossa realidade.

No terceiro capítulo, ela faz uma breve trajetória sobre a inclusão, desde seus primórdios até os dias atuais. Voltando ao passado ela apresenta como as pessoas com alguma necessidade especial eram vistas perante a sociedade e a escola. Enfatizando tal questão, a autora diz que: Os primeiros registros de que se tem notícia sobre o atendimento prestado as pessoas com deficiência datam do final do século XVIII. Antes desse período, era considerado normal praticar infanticídio quando se observava alguma anormalidade nas crianças. A partir do século XVII, os deficientes passaram a ser internados em orfanatos, manicômios, prisões e outros tipos de instituições, juntamente com delinqüentes, idosos pedintes, ou seja, eram excluídos do convívio social, por causa da discriminação que então vigorava contra pessoas diferentes (p. 40).

Para ela, a sociedade só tomou consciência da necessidade de apoio às pessoas com deficiência no final do “século XVIII e inicio do século XIX. Era um apoio assistencialista aonde era oferecido, abrigo, alimento, medicamento e alguma atividade para ocupar o tempo. Entretanto, sabe-se que na verdade, elas eram consideradas um perigo para sociedade” (p. 41). Segundo ela, nesse mesmo período multiplicam-se as classes e escolas especiais, que representavam uma discriminação e rotulação em função das suas deficiências. Além disso, tinha um currículo específico e separado do ensino regular. Mas se levarmos em consideração como acontecia o processo de inclusão em algumas instituições, pode-se dizer que houve um retrocesso em relação ao século passado. A diferença é a sutileza de como ela vem sendo manifestada, ou seja, a exclusão e a discriminação ainda continuam sendo praticadas. O que mudou foi à forma com a qual cada um a ‘encara’. Mesmo considerando que perante a lei os direitos são iguais para todos indiferentemente da sua etnia, classe socioeconômica ou cultura, o que vivenciamos em determinadas situações está bem longe de ser inclusão, como muitos dizem e insistem em dizer.

Por fim, no último capítulo, ela apresenta como deve ser uma escola inclusiva e as principais adaptações necessárias para receber crianças com necessidades especiais. Segundo ela: “o desenvolvimento profissional do professor e o currículo são um dos principais fatores de mudança para atender a diversidade de alunos” (p. 80). Mais, a escola que pretende ser inclusiva também deve proporcionar formação continuada a todos profissionais envolvidos.

Mas para que isso venha a se tornar algo concreto, torna-se inadiável não só a preparação dos profissionais envolvidos, mas também o comprometimento dos órgãos públicos, em rever a atual situação onde se encontra a educação inclusiva no Brasil. Por outro lado, enquanto cidadãos ativos devemos cobrar por melhores investimentos, ao invés de cruzar os braços e exigir dos educadores o que deveria ser tarefa do próprio governo. De nada adianta jogar toda culpa e responsabilidade nas escolas, ou nos educadores, se não reivindicamos pelos nossos direitos perante o governo.

Se for direito e se está na lei que crianças e jovens com necessidades especiais têm o direito de estarem em escolas de ensino regular, também é direito e dever de todos (principalmente das famílias) que pretendem matricular os filhos no ensino regular passarem a conhecer melhor a lei, que assegura esses direitos. Muitas dessas famílias desconhecem os seus verdadeiros direitos e, principalmente, o seu dever, e acabam confundindo direito com ação ‘paternal’, ou seja, julgam a escola e os educadores como sendo obrigados a atender situações que propriamente dizem respeito à família e não a escola ou aos educadores, como vem acontecendo. Por isso, se faz necessário a conscientização, e um melhor esclarecimento para estas famílias, ao incluírem seus filhos, para que assim escola e família possam estar trabalhando juntas, sobre um dos mecanismos de exclusão na sociedade.

O presente texto buscou contribuir para um melhor entendimento da educação inclusiva e suas principais implicações para uma escola ser inclusiva mediante as necessidades educacionais de cada criança, ou jovem, que ali se encontra. De modo sintético e direto a autora demonstra os principais percalços enfrentados por escolas, educadores e famílias ao enfrentarem os dilemas lançados pela questão da inclusão escolar. Pode-se, evidentemente, discordar de um ou outro argumento da autora, mas não há como negar a importância de seu texto, para um melhor delineamento deste tema.

Simone Tonoli Oliveira Roiz – Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), bosista CAPES. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]

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Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico – ZUIN (RBHE)

ZUIN, Antonio A.S. Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico. Campinas: Editora Autores Associados, 2008. Resenha de: SANTANA, Jeová. Revista Brasileira de História da Educação, n° 21, p. 207-213, set./dez. 2009

A escola não sai de cena. Aqui dois aspectos permanentes: as estatísticas sobre os múltiplos fracassos na esfera pública e a mercantilização na área privada na qual os alunos se transformam em clientes, e os conteúdos são dirigidos unicamente para fins vestibulares. E estamos conversados. Lá fora, os banhos de sangue promovidos por jovens desajustados, os quais a escola e a sociedade não conseguiram demover os distúrbios psíquicos. Suas ações, timbradas por lances cinematográficos, alimentam, por algumas horas, a síndrome do espetáculo que rege a imprensa nossa de cada dia, com a devida participação de educadores e psicólogos de plantão.

Antônio A. S. Zuin tem direcionado suas baterias acadêmicas para alguns assuntos espinhosos em relação à escola: o ritual do trote, o erotismo entre docentes e discentes, a aplicação da teoria crítica e da psicanálise para entender os fenômenos sanguinolentos em “terras civilizadas”. Neste novo livro, ele não perdeu o tom e analisa um tema ainda morno nas pesquisas acadêmicas: a utilização das sendas cibernéticas, mais particularmente as páginas do Orkut, como o mais novo espaço para que estudantes desovem ressentimentos e frustrações em relação a seus professores.

São apenas três capítulos de uma obra que soa como introdutória para que outros educadores tomem tento para essa nova recusa à convivência que, originada na sala de aula como resultante de uma perspectiva individual, adentra a esfera pública, mais precisamente “nessa terra de ninguém” chamada internet. Para isso, o autor centra sua análise entre duas palavras: “ironia” e “sarcasmo”. Pergunta-se por que a primeira, que sempre esteve nas relações de ensino-aprendizagem como um estímulo para o exercício da crítica e da curiosidade, num pacto entre mestre e discípulo no qual se estabeleciam limites para não haver opressão de um lado, nem fúri do outro, pôde ser substituída pela segunda. Isso possibilitou que os principais atores envolvidos na esfera escolar acumulassem perdas em relação às práticas de afeto e respeito.

Antes de chegar a uma resposta, Zuin mergulha na história e va buscar em Sócrates o primeiro grande exemplo do uso da ironia como instrumento de superação, a qual aparece nos diálogos registrados em A república, de Platão. Mesmo não apresentando argumentos convincentes, Rousseau o considera um “paradigma educacional”. A força do argumento platônico residiria na extrapolação dos limites da decifração impostos pela esfinge: “a interpretação ou a morte do raciocínio daquele que se motiva a decifrá-la” (p. 2). A opinião do autor de Emilio remeteria para a análise da educação formativa presente nos escritos socrático-platônicos. Essa vertente não pode ser apartada do potencial irônico presente nos diálogos entre dois ícones do pensamento grego, haja vista o fato de a ironia ser caracterizada como mola propulsora de obras filosóficas e literárias. A substituição da ironia, em tempos modernos pela presença massiva do sarcasmo, implica o empobrecimento do exercício dialógico estabelecido pela primeira, pois se “o foco da investigação dos diálogos socráticos” revela “a dimensão pedagógica da ironia, nota-se a importância de tal conceito” (p. 10).

A substituição de um recurso usado como forma de elevação das relações dialógicas entre professor e aluno resulta numa prática que só contribui para o aumento da tensão e da desconfiança entre ambos. Quebra-se, assim, o pacto entre os principais agentes do processo educacional para que o período da aprendizagem resultasse no aprimoramento das relações sociais fora do âmbito escolar:

Quando há sarcasmo solapa-se a possibilidade de desenvolvimento do processo educativo/formativo, pois o interlocutor é obrigado a ‘ingerir’, de forma humilhante, determinado significado do conceito que se transforma numa palavra de ordem (p. 10).

Para ilustrar essa transição, Zuin busca dois exemplos socráticos. O primeiro nos diálogos do filósofo, com Trasímaco, sobre o conceito de justiça; o segundo, com Protágoras, em relação ao desafio de saber se a justiça poderia ser ensinada ou não. Esses contrapontos, contudo, não foram realizados sem ranhuras, pois é a lembrança do “humano demasiado humano”, marca do pensamento nietzscheano, que vem à tona nos diálogos socráticos. Eles nos incomodam, pois ficamos sabendo que não “correspondemos ao modelo idealizado – em que detínhamos as prerrogativas da verdade na elaboração de conceitos, e portanto, do modo que eles são objetivados na realidade” (p. 13).

Essa prática, porém, montada entre raciocínios, argumentações, réplicas e tréplicas, permitia que o discípulo se tornasse mais preparado para enfrentar as misérias do mundo. Nesse caso, o educador funcionaria como uma espécie de “parteiro espiritual que estimularia o interlocutor a parir o conhecimento que lhe era inerente” (p. 16). Esse movimento ultrapassou instâncias e tem ecos na força reflexiva de Kant e seus imperativos categóricos e sua recomendação para o indivíduo “ousar saber”.

É essa herança “do aspecto educacional/formativo da Paidéia socrática” que, segundo o autor, não pode ser apagada da base educacional em nossos tempos. A linha tênue entre ironia e sarcasmo, que se depreende dos diálogos entre o filósofo e seus discípulos, estabeleceu a ideia de um educador ideal, criada à sua revelia. Mas o discurso filosófico questionava esse princípio ao criticar os sofistas, que se viam como detentores da “essência da virtude”. Infelizmente só a última destas palavras-chave ocupa lugar no cotidiano das salas de aula:

[…] a ironia socrática pode suscitar os novos princípios que se desvelam no jogo da alteridade entre significados e significantes das palavras, como também pode ceder espaço à fala sarcástica que consagra a vontade de poder daquele que destrói a argumentação do outro por meio da humilhação e do destrato [p. 23].

É no segundo capítulo que Zuin demonstra como essa separação se tornou mais aguda. Para isso, ele volta outra vez no tempo e observa que o domínio do discurso centrado no professor esteve atrelado a outras formas de dominação: a exigência da disciplina e da submissão motivadas pela “aplicação de instrumentos punitivos”. Esse dispositivo está na base da rejeição à imagem do professor cuja gênese, na Grécia antiga, se deu na formação da palavra pedagogia, vinda de paidagogos – o escravo vencido nas batalhas que tinha por missa controlar e guiar o aluno.

O desprestígio atravessa o tempo. Mais tarde é a valorização do guerreiro que, segundo Adorno, terá maior prestígio entre as crianças em lugar daquele que detém o conhecimento, mas não se destaca nas manifestações da força física. O professor sente-se, então incomodado por perceber que é submetido à manipulação de quem verdadeiramente pode mudar os rumos da sociedade. Aí se instaura o conflito, pois o professor recebe o aval para punir os alunos, mas sem o uso da força física, “atribuição esta dos aparelhos repressores e que é internamente invejada por ele” (p. 41).

O autor amplia o raio da discussão para ver, nesse paradoxo, o reflexo da própria condição da sociedade contemporânea ao estabelecer relações de dominação que produzem as discrepâncias sociais. A liberdade e a igualdade prometidas pela sociedade capitalista não se cumprem, e o reflexo disso se espalha em todas as instâncias em que se deem as relações humanas. Nesse sentido, as escolas d massa, consolidadas durante o período manufatureiro, cumpriram o papel de sedimentar a submissão por parte do aluno mantido sob as marcas da disciplina, da pontualidade e das ordens dos professores. É nesse período, ainda, que acontecerá uma mudança substancial na ordem escolar, mas não menos problemática: a substituição do castigos físicos pelos psicológicos.

Essa mudança já tinha sido enfocada por Comênio em sua obra A didática Magna, ou Tratado Universal de ensinar, ao destacar que o elogio, a repreensão, o medo da humilhação perante os colegas surtiriam mais efeito que todas as pancadas. Não havia, contudo, nenhuma intenção pueril na proposta desse pioneiro das causas educacionais, “pois o vexame era justificado em nome da busca da eficiência, ou seja, a palavra de ordem do capitalismo incipiente e que (sic) ressoava tanto nas relações materiais quanto na filosofia” (p. 45). Essa perspectiva fica mais clara no pensamento de Bacon ao destacar que o conhecimento humano deveria ser canalizado para algo prático, útil, “em detrimento da metafísica e do silogismo aristotélico” (idem, ibidem, p. 45).

Ainda nessa linha produtivista, encaixa-se a forma como objetos e alunos viriam a ser dispostos em sala de aula, a qual permitiria “o olhar ‘classificador’ do professor que pode rotular o aluno” (idem, ibidem, p. 46), e assim dimensionar melhor o tempo de aprendizagem, o que transformaria escola, segundo Foucault, numa “máquina de ensinar”. Na prática isso resultou no clima de desconfiança e indiferença entre os elementos envolvidos na sala de aula. Os professores preocupados apenas com a racionalidade de seus ensinamentos e com a objetividade das questões; os alunos marcados pela frustração ao perceberem o desaparecimento da imagem inicial que tinham de seus mestres. Para ilustrar essa tensão, o autor retoma o  exemplo literário analisado por Adorno no ensaio “Tabus a respeito do professor”: o livro Professor Unrat, que foi traduzido como O anjo azul em virtude da adaptação para o cinema, a qual teve a atriz Marlene Dietrich como destaque.

Nessa perspectiva crítica, Zuin abre mais um tópico crítico ao abordar o resultado dessa tensão: o aluno que se identifica com o “professor-agressor”. Busca o auxílio de Freud para iluminar uma questão que extrapola os limites do universo escolar, já que é resultante das próprias condições do estágio “civilização” em que nos encontramos. Nessa linha, o fundador da psicanálise questiona a ação pedagógica que pretende levar o jovem para o caminho da ética, sem que a ele seja dada a chance de se manifestar perante “ sensação do mal-estar vinculada a um tipo de imperativo religioso: ‘amarás o teu próximo como a ti mesmo’” (p. 53).

Essa crítica tem o reforço do pensamento sempre aguçado de Adorno em relação às práticas educacionais. Ele questiona a condição prerrogativa para que alguém possa decidir os destinos da educação alheia. Nesse caso, Zuin mostra afinidade com esse expoente da escola de Frankfurt, mas imprime a marca de um estilo crítico, resultante do embrenhar-se nas muitas veredas da escola moderna.

Essa crítica remete à lembrança de que é inútil traçar modelos padronizados relativos aos desejos de que a experiência formativ se desenvolva mecanicamente nos alunos. Ora, se a experiência formativa não pode ser garantida pela mera frequência nos curso, tampouco pode ser obtida por meio de qualquer tipo de atitude impositiva por parte do mestre (idem, ibidem, p. 56).

Esse conflito, tema do último capítulo, originou um novo fenômeno as comunidades nas páginas do Orkut que têm como alvo atingir professores. O autor afirma ter encontrado mais de mil delas, a grande maioria com uma característica em comum na agressividade verbal e no chamamento para que outros façam parte dessa “ação coletiva”. É nesse novo espaço, amparados por uma margem de liberdade única e protegidos pelo anonimato, que os alunos encontrara o meio de manifestar, à sua maneira, o sarcasmo presente n discurso do professor na ambiência da sala.

Para o autor, porém, esse fenômeno não está desligado, mais uma vez, das condições dos jovens nas sociedades em que estão inseridos: suas dificuldades de identificação, perdas de valores, inversões, tais como “adultização” da infância e “infantilização” do adulto (no caso brasileiro, tem-se na “marca” Xuxa o melhor exemplo dessa hibridização).

Em meio ao tom da violência verbal, Zuin encontrou pequenas ilhas em que são manifestas intenções de afeto, ou mesmo eróticas, na relação entre professores e alunos. Num dos depoimentos recolhidos, percebe-se a complexidade da questão e, quiçá, também a porta de saída para revertê-la: “Não temos nada contra o nosso professor querido, mas se ele fosse mais humano talvez nós iríamos gostar mais dele!” (p. 102).

Há algumas questões que não estão no livro, mas que podem suscitar novos trabalhos, tais como o de se identificar a classe social dos alunos que criam essas comunidades; incluir na pesquisa os pertencentes a outras instâncias educacionais – por exemplo, os de curso técnico em relação aos seus professores; mapear essas mesmas relações em concentrações urbanas de menor porte. O trabalho de Antônio A. S. Zuin contribui para chamar a atenção para um problema que surgiu sob o frêmito das novidades midiáticas e vem se somar às muitas mazelas da educação contemporânea. Afinal, mudam-se os tempos, mas o mal-estar em relação à escola só muda de endereço.

Jeová Santana – Professor da Universidade Estadual de Alagoas, da rede  estadual de ensino em Aracaju e doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: [email protected]

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Adultos com síndrome de Down: A deficiência mental como produção social – CARNEIRO (REE)

CARNEIRO, Maria Sylvia Cardoso. Adultos com síndrome de Down: A deficiência mental como produção social. Campinas, SP: Papirus, 2008. Resenha de: CRESPO, Fernanda de Azevedo. Revista Educação Especial, Santa Maria, v.22, n.35, p.409-410, set./dez., 2009.

Refletindo sobre a deficiência mental de adultos com síndrome de Down, que imagens visualizamos? Quem são esses sujeitos? O que podemos pensar e falar sobre eles? Quando enfatizamos a abordagem histórico-cultural, especialmente as contribuições de Vygotsky, a marca das relações sociais influencia os fatores maturacionais uma vez que o meio está relacionado com as conquistas de cada sujeito.
O citado livro apresenta três histórias de adultos com síndrome de Down oriundas da interação da autora com cada narrador que, utilizando o método narrativo, valoriza a experiência subjetiva, singular incorporando elementos como as emoções de cada sujeito da pesquisa.
A contribuição da autora na área da educação especial é importante por salientar que ter síndrome de Down e constituir-se como sujeito adulto sem o diagnóstico de deficiência mental é possível e remetem aos sujeitos de sua pesquisa.

Esta questão é o que mais chama atenção em sua obra uma vez que os adultos que foram pesquisados, apesar de todas as dificuldades, se mantiveram em escola comum e deram continuidade aos estudos em nível técnico ou graduação o que é incomum em nossa sociedade.
Aos poucos vamos conhecendo histórias como estas, de luta diária e confronto com uma sociedade que vem abrindo espaço para diferença.
Por mais que a inclusão venha sendo gradativamente discutida, histórias como estas são únicas e difíceis de encontrarmos em nossas escolas e universidades.

A importância da obra decorre do fato da autora conseguir apresentar as trajetórias destes três adultos com síndrome de Down como sujeitos únicos que em comum têm o diagnóstico, mas experiências e aprendizagens que foram sendo construídas com suas relações sociais.
É um livro interessante para todos que atuam na educação especial, pois valorizam a construção do conhecimento oportunizando novas produções específicas sobre adultos com necessidades educativas especiais em nosso mundo que está constantemente em movimento .

Fernanda de Azevedo Crespo – Professora da rede municipal de ensino. Prefeitura Municipal de Cachoeirinha (RS). E-mail: [email protected]

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O Programa da Revolução – TROTSKY (RF)

TROTSKY, Leon. Programa de transição. In: MARX, Karl et al. O Programa da Revolução. Brasília, DF: Nova Palavra, 2008. Resenha de: GAMA, Carolina Nozella; SANTOS JÚNIOR, Cláudio de Lira. Revista FACED, Salvador, n.16, p.141-148, jul./dez. 2009.

Leon Trotsky nasceu em 1879 em Yakovka (atual Ucrânia), numa família judia. Aos 16 anos iniciou sua participação política como social democrata, contra a autocracia czarista, e dois anos depois foi preso e exilado na Sibéria. Em 1902 fugiu do exílio e em Londres conheceu Lênin. Revolucionário comunista, foi o segundo dirigente mais importante da Revolução Russa de 1917.

Ao lado de Lênin, iniciou a construção daquilo que deveria ter sido o primeiro Estado socialista no mundo. De 1918 a 1921, exerceu o cargo de Comissário do Povo para a Guerra. Em 1923 aprofunda-se a cisão entre Stálin e Trotsky, provocada pela crescente burocratização de Stálin e por sérias divergências políticas relacionadas à questão da autodeterminação da Geórgia. Com a morte de Lênin em 1924, começa, no Comitê Central do Partido Bolchevique, o processo de calúnia e difamação de Trotsky promovido por Stálin e seus dois principais aliados Kamenev e Zinoviev. Em 1925, Trotsky é proibido de falar em público, e em 1929 é banido da União Soviética, por ordem de Stálin. Vai para o exílio na Turquia onde fica até 1933.

Depois, França até 1935, e Noruega até 1937. Chega ao México em 1937. Em 1938 escreve o Programa de Transição, que é o programa de fundação da IV Internacional. A mando de Stálin, é assassinado por Ramón Mercader, em 20 de agosto de 1940 no México. Este ano completamos 70 anos de seu assassinato.
O Programa de transição, aprovado como o programa político da 4ª Internacional em 1938, foi escrito após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa (1917), e nos anos precedentes à Segunda Guerra Mundial (1945), portanto, período de crise do capitalismo que culminou com a Segunda Guerra mundial enquanto estratégia para se recuperar da crise. O texto foi organizado em vinte e um tópicos; a seguir, apresentaremos uma síntese da obra, buscando destacar as teses defendidas pelo autor ao longo da mesma.

No primeiro e segundo tópicos – As premissas objetivas da revolução socialista e O proletariado e suas direções – Trotsky (2008, p. 91-93) faz uma contextualização da situação política mundial e nacional da época demonstrando que o sistema capitalista passava por crises conjunturais que afetavam diretamente os proletários.
O crescimento do desemprego era uma das consequências dessas crises, e nem mesmo a burguesia encontrava saída para elas. O autor defende a tese de que as premissas objetivas para o socialismo não só estavam maduras como começavam a apodrecer, e que a crise social era característica da situação pré-revolucionária em que se vivia. Defende ainda que a crise histórica da humanidade se reduz à crise da direção revolucionária, e que o principal obstáculo para a revolução são os aparelhos burocráticos conservadores e a política traidora das velhas organizações operárias. E que, apesar disso, as leis da história e as condições objetivas do capitalismo em decomposição são mais fortes que os aparelhos burocráticos.

Afirma que a crise da direção do proletariado – crise da civilização humana, só pode ser resolvida pela 4ª Internacional.

No terceiro tópico, que trata do Programa mínimo e programa de transição, defende um programa de transição que trata das reivindicações transitórias das massas e serve de ponte entre as reivindicações atuais (da época) e a revolução socialista. Além disso, a tarefa principal do programa é mobilizar sistematicamente as massas em direção à revolução proletária. Este programa de transição contrapunha-se ao programa mínimo defendido pela social democracia, que visa reformar o capitalismo ao invés de derrubá-lo. Uma das reivindicações transitórias é apresentada no tópico: Escala móvel de salários e escala móvel das horas de trabalho, em que Trotsky afirma que o capitalismo tem dois males econômicos fundamentais, o desemprego crescente e a carestia da vida. Em seguida, lembra que a 4ª Internacional reivindica direito ao trabalho e existência digna para todos, para isso defende uma escala móvel das horas de trabalho, segundo a qual o trabalho disponível deveria ser repartido entre todos os operários existentes, essa repartição deveria determinar a duração da semana de trabalho.

Sobre os sindicatos na época de transição o autor diz que, na luta pelas reivindicações transitórias, os operários tinham necessidade de organizações de massas, fundamentalmente, de sindicatos, um dos meios para a revolução proletária. Não pequenos sindicatos revolucionários segmentados, mas sindicatos de massa unificados, afirmando que o autoisolamento fora dos sindicatos de massa equivalia à traição da revolução. Trotsky discorre sobre a necessidade de criação de organizações temporárias (comitês) que congregassem toda a massa em luta. Defende a edificação de partidos revolucionários em cada país como tarefa central da época de transição. Acerca dos comitês de fábrica, segue dizendo que a principal importância desses comitês consiste em abrir um período pré-revolucionário entre o período burguês e o regime proletário.

Outro aspecto tratado na obra é a questão do ‘segredo comercial’ e o controle sobre a indústria. Segundo o autor, o segredo comercial era um complô do capital monopolista contra a sociedade e sua abolição seria o primeiro passo em direção ao controle da indústria.

O controle da indústria pelos operários deveria desmascarar as trapaças dos bancos; revelar as rendas, os gastos e o desperdício de trabalho humano resultante da anarquia capitalista que visa, única e exclusivamente, o lucro. Trotsky defende a tese de que para vencer a resistência dos exploradores era necessária a pressão do proletariado através dos comitês de fábrica.

O texto aborda ainda a questão da expropriação de certos grupos capitalistas, como alguns ramos da indústria, assim como também a expropriação dos bancos privados e a estatização do sistema de crédito, à medida que o imperialismo significa o domínio do capital financeiro e que este domínio se dá através dos bancos.
Defende, a fim de realizar um único sistema de investimento e crédito para atender aos interesses do povo, a fusão de todos os bancos num Banco Único do Estado, ressaltando, porém, que a estatização dos bancos só produziria resultados favoráveis se o poder do próprio Estado passasse às mãos dos trabalhadores.
Nos tópicos seguintes: Os piquetes de greve, os destacamentos de combate, a milícia operária, o armamento do proletariado e a aliança dos operários e camponeses, o autor aponta estratégias de ação e combate que devem ser adotadas pelo proletariado, como as greves com ocupação de fábricas, os piquetes, a criação de destacamentos operários de autodefesa e de uma milícia operária.

Além disso, defende a união entre operários e camponeses, cabendo aos trabalhadores da indústria levar a luta de classes para o campo. Competindo à 4ª Internacional a elaboração de programas de reivindicações transitórias para os camponeses (pequenos proprietários) e para a pequena burguesia urbana. Trotsky defende ainda um programa de nacionalização da terra e de coletivização da agricultura que exclua radicalmente a ideia de expropriação dos pequenos camponeses.
Faz parte do Programa de transição e da luta revolucionária a luta contra o imperialismo e contra a guerra que é uma gigantesca empresa comercial. Com isto, o desarmamento da burguesia, a expropriação das empresas armamentistas que trabalham para a guerra em prol de um exército do povo. Assim como também a reivindicação do direito de voto aos 18 anos para homens e mulheres, para a mobilização da juventude e a união dos proletários de todos os países. Estas teses estão expostas no tópico A luta contra o imperialismo e contra a guerra. No tópico seguinte, O governo operário e camponês, o autor recoloca a necessidade de uma aliança entre o proletariado e os camponeses para a constituição de um governo operário e camponês, defende esta união como base para o poder soviético, e como a primeira etapa para a ditadura do proletariado. Defende, como a tarefa central da 4ª Internacional, libertar o proletariado da velha direção conservadora que estava (está) em contradição com a situação catastrófica do capitalismo em declínio, e constituía-se num obstáculo ao progresso histórico.

Aponta também como tarefa da 4ª Internacional, a destruição das ilusões reformistas e pacifistas e o reforço da união da vanguarda com as massas, preparando a tomada revolucionária do poder.

Segundo Trotsky, o aprofundamento da crise social aumentaria não somente o sofrimento das massas, mas também sua impaciência, sua firmeza e seu espírito de ofensiva. E, ao tratar dos sovietes, o autor afirma que esta organização dos trabalhadores é necessária, pois congregam as diversas reivindicações dos explorados e que sua palavra de ordem é o coroamento do programa de reivindicações transitórias. Que num período de transição os sovietes tornam-se rivais e adversários das autoridades locais e do próprio governo central. Esta dualidade de poder seria o ponto culminante do período de transição, momento em que o regime burguês e o regime proletário opõem-se, irreconciliavelmente, um ao outro.

O programa de transição elucida também qual deveria ser o programa de ação e as reivindicações transitórias dos países coloniais e dos países fascistas. No tópico Os países atrasados e o programa das reivindicações transitórias, Trotsky aponta como sendo os problemas centrais e, portanto, a tarefa dos países coloniais ou semicoloniais, a revolução agrária e a independência nacional. Menciona exemplos de países que se encontravam nesta situação na época, como a China e a Índia, por exemplo. Fala sobre a traição da esquerda à revolução proletária citando a 2ª Internacional e a Internacional Comunista. Em seguida, defende a tese de que a direção geral do desenvolvimento revolucionário pode ser determinada pela fórmula da revolução permanente, assim como se deram as três revoluções russas (1905, fevereiro de 1917 e outubro de 1917).

Ao partir para o tópico Programa de reivindicações transitórias nos países fascistas, Trotsky explicita a situação da Alemanha e da Itália com os governos de Hitler e Mussoline. Adverte novamente sobre a traição da esquerda, que na Alemanha, por exemplo, o proletariado não foi derrotado pelo inimigo em combate, mas pela covardia, abjeção e traição da esquerda; e que por este motivo, a vitória de Hitler foi a derrota do movimento revolucionário. Fala da impotência da 2ª e 3ª Internacionais que não provocaram um movimento de organização das massas. Aponta a necessidade de um novo programa revolucionário, pois a luta continuava, e a vanguarda do proletariado precisava encontrar apoio e uma nova bandeira de luta que não estivesse maculada. Nessa conjuntura, defendia a necessidade de um trabalho preparatório, sobretudo de propaganda, para a união e organização das massas para a derrubada de Mussolini e Hitler; e que isso se daria sob a direção da 4ª Internacional.

A União soviética e as tarefas da época de transição – neste tópico o autor discute a revolução ocorrida na Rússia em outubro de 1917, suas implicações na União Soviética (URSS) e as tarefas do programa de transição. Explica como a burocratização do Estado operário stalinista encorajou a acumulação privada e os privilégios traindo e agindo contra a classe operária, criando um Estado operário degenerado. Expõe que a principal tarefa na URSS, apesar de tudo, é a derrubada da burocracia sob a bandeira da luta contra a desigualdade social e a opressão política para recuperar o caráter democrático e classista dos sovietes. Complementa que a 4ª Internacional declara guerra às burocracias da 2ª e da 3ª Internacionais, da mesma forma ao reformismo sem reformas, ao pacifismo sem paz, ao anarquismo a serviço da burguesia, aos revolucionários que temem a revolução.

O texto trata também da questão do oportunismo e do revisionismo, afirma que os reformistas são incapazes de aprender com as trágicas lições da História; toma-se como exemplo a socialdemocracia francesa que com a política do partido de Leon Blum tomou como exemplo a catástrofe política da social-democracia alemã e caiu na burocracia burguesa que é incapaz de realizar uma política revolucionária. Segue-se reiterando que, por sua vez, a 4ª Internacional se mantém no terreno do marxismo, única doutrina revolucionária que permite compreender a realidade, descobrir as causas das derrotas e preparar conscientemente a vitória. Ao tratar do sectarismo, lembra que os sectários simplificam a realidade, e que para os mesmos preparar-se para a revolução significa convencerem-se a si mesmos das vantagens do socialismo; e mais, estes se recusam a lutar pelas reivindicações parciais ou transitórias.

Estas questões são trabalhadas nos tópicos: Contra o oportunismo e o revisionismo sem princípios, e Contra o sectarismo.

Nos penúltimo tópico do Programa intitulado Lugar à juventude! Lugar às mulheres trabalhadoras!, o autor chama atenção para a necessidade de renovação do movimento e da atenção que deve ser dada à juventude. Afirma que somente o fresco entusiasmo e o espírito ofensivo da juventude podem assegurar os primeiros sucessos na luta. Trata das organizações oportunistas que concentram sua atenção nas camadas superiores da classe operária e ignoram as mulheres trabalhadoras e a juventude. Ainda neste tópico, Trotsky coloca que na 4ª Internacional não há lugar para o carreirismo, “câncer das velhas internacionais”, mas lugar somente para os que quiserem viver para o movimento e não viver dele.

Finaliza o Programa de transição com o tópico Sob a bandeira da 4ª Internacional, no qual esclarece que a 4ª Internacional surgiu das maiores derrotas do proletariado na História, e que a causa dessas derrotas foi a degenerescência e a traição da velha direção da esquerda. O autor afirma que a tarefa da 4ª Internacional é acabar com a dominação capitalista; sua finalidade é o socialismo, e seu método é a revolução proletária. Explica ainda que sem democracia interna não há educação revolucionária e sem disciplina não existe ação revolucionária. Defende a tese do centralismo democrático, que consiste em completa liberdade na discussão e total unidade na ação, como a base do regime interno da 4ª Internacional.

Conclui o texto reafirmando que a crise da civilização humana é a crise da direção do proletariado, e chama os operários e as operárias de todos os países para se organizarem sob a bandeira da 4ª Internacional.

Passadas, aproximadamente, sete décadas da elaboração do Programa de transição, destacamos que esta obra é tragicamente atual. Afinal, o que vivemos senão o evidente apodrecimento do modo de produção capitalista? Trotsky em 1938 defendeu a tese de que a crise que a humanidade enfrentava era a crise do proletariado, ou seja, a crise revolucionária. Marx, em 1846, na Ideologia Alemã, nos assinalava sobre a necessidade da superação histórica do sistema capitalista, através da apropriação dos meios de produção pela classe trabalhadora. Hoje, é sabido que já possuímos condições materiais para superação deste modo de produção, e de que sua superação é necessária para enfrentarmos a barbárie e a alienação humanas.

Assim sendo, a explicação que Trotsky nos dá acerca da crise do capital faz-se sim atual, pois se a classe trabalhadora – única classe verdadeiramente revolucionária – não conseguiu se organizar, tomar consciência de classe, ir para o embate, para a tomada do poder e concretizar a revolução, é na organização e conscientização da classe que a crise se coloca.

Com relação aos países atrasados – o que conhecemos hoje como subdesenvolvidos – o Brasil encaixa-se nesta classificação, Trotsky estabelece um programa das reivindicações transitórias para os mesmos. Aponta a revolução agrária e a independência nacional como os problemas centrais e a principal tarefa dos “países coloniais ou semicoloniais”. Também neste ponto podemos notar a atualidade da elaboração realizada pelo autor. Sabemos que a questão agrária e latifundiária no Brasil é um sério problema, que, felizmente, a classe trabalhadora enfrenta e combate, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Nosso país possui uma das maiores concentrações de terra do mundo.

A terra se concentra nas mãos de pouquíssimos proprietários que sustentam o agronegócio e o desenvolvimento do capital no campo. Portanto, mais do que nunca, as questões teóricas e programáticas apresentadas por Trotsky precisam ser retomadas. Atualizadas naquilo que, porventura, tenham envelhecido.

A classe trabalhadora continua necessitando de uma direção revolucionária, de um programa de ações para se balizar. Hoje o capital enfrenta uma crise estrutural, a exemplo do Brasil, a classe trabalhadora deposita suas ilusões numa esquerda que não atende às suas reivindicações, aliando-se à burguesia. Mas, não é possível abandonar a classe, faz-se necessário auxiliá-la, através das suas próprias reivindicações, a romper suas ilusões no terreno próprio das ilusões. Como nos apontou Trotsky, é tarefa das organizações revolucionárias a destruição das ilusões reformistas e pacifistas da classe, além do reforço da união da vanguarda com as massas, preparando a tomada revolucionária do poder. Compreendemos, no entanto, que o revolucionário isolado e desarticulado não é capaz de realizar grandes ações em prol da revolução. Pelo contrário, homens revolucionários como Marx, Engels, Lênin, Trotsky nos mostram que a organização coletiva junto da classe é necessária, para a discussão democrática das premissas teóricas e programáticas, mas sem prescindir da unidade total na ação.

Carolina Nozella Gama – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Cláudio de Lira Santos Júnior – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

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Jacques Ardoino: pédagogue au fil du temps – VERRIER (RF)

VERRIER, Christian. Jacques Ardoino: pédagogue au fil du temps. Préface de René Barbier. Paris: Téraèdre, 2010. 244p. Resenha de: MACEDO, Roberto Sidnei. Revista FACED, Salvador, n.16, p.139-140, jul./dez. 2009.

Jacques Ardoino: pedagogo no fio do tempo, é um trabalho de biografia analítica realizado por Christian Verrier, como nós, ex-aluno deste provocante e refinado epistemólogo das ciências da educação e antropossociais, que por diversas vezes visitou o Brasil para debater suas ideias, vinculadas principalmente ao seu mais fecundo e principal conceito neste campo da pesquisa e da formação educacional, o conceito de multirreferencialidade.

Enquanto uma obra que caracteriza bem as biografias analíticas, Jacques Ardoino: pédagoque au fil du temps procura traçar a itinerância do epistemólogo das ciências da educação de uma forma tal que sua vida não se descola dos seus conceitos fundamentais, das suas ideias e da personalidade forte e empreendedora do formador e pesquisador, que tinha um gosto quase compulsivo pela criticidade e pela argumentação voltada para os grandes desafios epistemológicos e ontológicos produzidos pelo movimento da temporalidade a que estava implicado. Nestes termos, a obra explicita o conjunto de diálogos provocantes entre Ardoino, Morin, Castoriadis, Mafesoli, Lourau, entre outros intelectuais contemporâneos, que desafiam as fronteiras da contemporaneidade, daí sua preferência por teorizar a partir dos meios e práticas educacionais a problemática da complexidade.

Mas é a ideia de multirreferencialidade que aparece capitaneando a obra e entretecendo as inúmeras contribuições do pesquisador emérito da vanguardista Universidade de Paris 8, para se compreender a formação e intervir nas coisas da educação.

Verrier tem a competência de, através dos argumentos implicados de Jacques Ardoino, nos colocar no centro dos sentidos construídos pelo epistemólogo a respeito daquilo que mais lhe entusiasmava nas suas diversas conferências e conversas com seus alunos, ou seja, a heterogeneidade como riqueza irredutível da emergência humana e a identidade constituída por identificações fundadas na negatricidade dos sujeitos sociais em movimento de afirmação das suas alteridades, alteridades que só podem emergir, segundo Ardoino, na medida em que, em relação, alteram e ao mesmo tempo criam incessantemente inacabamentos. Dá-se aqui a inarredável e trágica necessidade do outro. É nestes termos que a pluralidade implica numa ética e numa política que vai muito além de uma “comemoração” diante da emergência da diversidade.

Entretanto, é a densidade da ideia-força de multirreferencilidade que a obra evidencia de forma intencional.

Verrier nos mostra que o grande mérito do pensamento de Ardoino e da sua práxis educacional é fazer entrar de forma original e fecunda na epistemologia das ciências da educação e antropossociais, um sistema de pensamento e uma perspectiva de práxis, onde a heterogeneidade é o ponto de partida epistemológico, ético, político e formativo, reconhecida como ineliminável para se pensar a formação do Ser do homem em sociedade. Motivo da publicação de números específicos de algumas revistas de mérito no campo das ciências da educação na Europa e no Brasil, a epistemologia e a práxis multirreferencial de Ardoino faz do seu argumento instituinte sobre a alteridade/alteração, um potente analisador crítico e um fundante dispositivo de formação, que deslocam, destrivializam e desnaturalizam as compreensões e práticas educacionais forjadas nas palavras de ordem, nas respostas pré-digeridas, nos lugares-comuns, nos conceitos protegidos, significados autoritários e nas interpretações de pretensões monossêmicas. É assim que a existência e a cultura, no plural, radical e relacionalmente concebidas, alimentam e fazem brotar uma epistemologia da educação e, a fortiori, uma compreensão da formação e da sua mediação, implicadas à emergência culturalmente singular e relacional da nossa human-idade. É este viés que identifica Ardoino como um epistemólogo das situações e ações educacionais, que prefere pensar e atuar de dentro das vibrações produzidas pelas temporalidades vividas. Aliás, é orientado por esta perspectiva, que Verrier cunha o título da sua obra, que, ademais, vai marcar o conjunto de escritos que na Europa começam a realçar a singularidade universal do pensamento inquieto e radicalmente pluralista do nosso também professor Jacques Ardoino.

Roberto Sidnei Macedo – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

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NADA sobre nós sem nós. Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência: relatório final 16 a 18 de outubro de 2008 –

NADA sobre nós sem nós. Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência: relatório final 16 a 18 de outubro de 2008. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2009. Resenha de: CASTRO, Fátima Campos Daltro de. Revista FACED, Salvador, n.16, p.133-138, jul./dez. 2009.

Esse livro trata dos trabalhos finais em torno de propostas e diretrizes que buscam nortear as políticas públicas de inclusão cultural dos diversos grupos historicamente excluídos, ação essa iniciada em 2007 com a oficina – Loucos pela Diversidade – da diversidade da Loucura a Identidade da Cultura, promovida pelo SIND/MINC e a Fiocruz. Considerando o potencial das atividades culturais produzidas por pessoas com deficiências, a SID e a Fiocruz deram continuidade à parceria, realizaram em outubro de 2008, na cidade do Rio de Janeiro, a Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência, com apoio da CEF. Lançado pela Fundação Osvaldo Cruz/LAPS, propõe desafios para as políticas públicas no sentido de ampliar sua visão sobre deficiência, a urgência da cultura se inserir nesse processo com maior afinco em busca de soluções que atendam as necessidades emergentes em torno do assunto, subsidiando-os e instrumentalizando-os profissionalmente e culturalmente para a real acessibilidade.

Almejando maior diálogo entre o governo e a sociedade civil, o livro trata de proposições que a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (SID/MINC) vem promovendo através de encontros, seminários e oficinas.

As atividades e discussões desenvolvidas nas oficinas lançam uma proposta de trabalho para indicar diretrizes e ações, no sentido de contribuir para a construção de políticas culturais de patrimônio, difusão, fomento e acessibilidade para pessoas com deficiências, focalizando a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, para juntos discutir e encontrar estratégias que possam por em prática em editais relacionados à arte e à cultura, à legislação nacional já existente sobre acessibilidade e ao que dispõe a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (ONU).

Nos depoimentos propostos no encontro, por meios de oficinas coletivas e a participação conjunta de diversos segmentos, estabelece-se um “novo jeito de olhar” para o assunto, adotando processos participativos com a colaboração de diversos grupos e profissionais que estudam e desenvolvem trabalhos com pessoas com e sem deficiência nos campos artísticos, culturais e políticos.

Apresenta um trabalho de fôlego que busca interligar a prática social da pessoa com deficiência, entendendo-o como um complexo de possibilidades (apto a construir conhecimentos) e não dissociado do seu modo de viver e estar no mundo.

Já nas primeiras páginas da obra coletiva, Nada sobre Nós sem Nós, já se define as questões que encaminharam a construção do trabalho expondo sua metodologia, objetivo, mesas de debates, painel, grupos de trabalho, plenária final e material produzido.

As diretrizes e ações aprovadas em consenso nos Grupos de Trabalho (GT) contemplam o patrimônio, criando e estabelecendo instrumentos para a efetiva produção cultural dessas pessoas para que sejam reconhecidos nos campos artístico, ético, estético, social, político e cultural, apontando para a circulação e uso social do patrimônio. É percebido nas ações propostas por esse segmento, o interesse em promover um intercâmbio eficaz entre artistas, bem como ampliar os espaços de diálogos entre as diversas esferas dos órgãos federais, estaduais e municipais, mobilizando, articulando espaços de diálogos com gestores de cultura nos três níveis do governo, a iniciativa privada, o legislativo, os conselhos de direitos e o Ministério Público.

O livro está dividido em tópicos cujas temáticas discutem conteúdos em torno de cultura e deficiência, trajetória e perspectivas, coordenadas por Ricardo Lima, e com a participação dos debatedores Andréia Chiesorin, João de Jesus Paes Loureiro, Isabel Maior. A temática Nada sobre Nós sem Nós, coordenado por Paulo Amarante, contou com a participação de Rogério Andriolli, Angel Vianna, Arnaldo Godoy. Por ultimo, a mesa de debates, Patrimônio, Difusão, Fomento e Acessibilidade, coordenada, por patrícia Dornelles, compartilhando das discussões junto aos debatedores Jorge Marcio Andrade, Cláudia Werneck, Frederico Maia. O objetivo é, construir propostas de diretrizes e ações subsidiar e elaboração de políticas públicas do Ministério da Cultura (MINC) para pessoas com deficiências e em situação de risco social.

Na programação do livro segue uma descrição da Metodologia da Oficina, Objetivos, Mesa de Debates, Painel Temático, Grupos de Trabalho, Plenária de Final, Material Produzido, seguindo com uma tabela que constava as Diretrizes e Ações Aprovadas em torno de Patrimônio, Difusão, Fomento, Acessibilidade, por fim, a Carta do Rio de Janeiro – Políticas Públicas Culturais para a Inclusão de Pessoas com Deficiências.

O conteúdo da carta contempla e expressa a necessidade de insistir na necessidade de que as políticas, ações e comportamentos devem pautar-se pela compreensão e acolhimento das pessoas em suas identidades múltiplas e diversificadas, contemplando sempre a sua condição humana e cidadã e nunca a deficiência. Apoia-se em diversos documentos legais, por exemplo, a Declaração de Salamanca (1994), Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa com Deficiência (Convenção da Guatemala no Brasil, Lei nº 3.956/01), entre outras de igual importância, para dar cabo ao exercício comum e hegemônico inclusão/exclusão que envolve essas pessoas.

As comunicações oriundas das personalidades participantes do evento e transcritos nessa obra propõem a necessidade da reflexão em torno do assunto e trazem em seu bojo um panorama histórico das diversas ações que já foram concretizadas, bem como dificuldades reais frente à ideia de um processo de construção onde as trocas de informações precisam ser compartilhadas, negociadas com cada setor. Compreende que, se ações e elaborações podem ser entendidos por esse viés, estamos caminhando num processo que respeita as necessidades individuais/singularidades e suas diferenças.

O depoimento de Ricardo Lima, Subsecretário do SIND/MINC, pontua que essa é a premissa e norte que está direcionando a construção do Ministério, e a construção da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural para tratar das questões da diversidade com base nas questões da diferença. Estratégias e ações de emergências são relatadas por pessoas engajadas nesse processo e que estão vinculadas ao governo. A urgência em disponibilizar os meios educacionais possíveis para que haja a troca de informações efetivas entre os diversos campos e setores, é ponto de interesse.

Um pensamento recorrente em todas as falas são as dificuldades encontradas para ajudar a criar os espaços de cidadania nos locais menos favorecidos. Além disso, desenvolver mecanismos e diálogos que possam criar nesses setores sociais, geralmente invisíveis ou marginalizados, a oportunidade de solucionar problemas do cotidiano, é enfatizado. O exercício da autonomia é outro assunto bastante discutido durante o encontro.

Questões históricas relatadas pela professora Isabel Menor – Secretaria Especial dos Direitos Humanos, traz para o espaço das discussões os 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos – Art.

1, da declaração, que expressa a ideia de que todos nós nascemos livres e iguais e que devemos ter, uns para com os outros, espírito de fraternidade. A professora lança uma pergunta: será que nós somos livres e iguais? Fala da importância que a nova convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, que foi promulgada pela Assembleia das Nações Unidades (dezembro de 2001), e recentemente ratificada pelo Brasil, é uma convenção de não discriminação, que finaliza e cristaliza os modelos anteriores e afirma o modelo de inclusão.

Explica sua intencionalidade e abrangência ao ultrapassar eminentemente ideias anteriores, quando é aberto um espaço para que as pessoas com deficiência possam se expressar sem um interlocutor mediando sua voz. Enfatiza que foi a primeira constituição a ser inserida no status constitucional, passando a legislação da pessoa com deficiência a ser uma situação do Supremo Tribunal Federal. Para ela, essa é uma possibilidade rica e de abrangência ampliada no processo legislativo que, a partir desse status, podem fazer determinações, e não apenas indicações.

Além disso, explica o Protocolo Facultativo, aquele que dá o direto ao cidadão brasileiro apelar ao Comitê Internacional de Direitos Humanos, se houver violação dos Direitos Humanos no nosso país que não seja resolvida em todas as instâncias. Tudo o que cerca a pessoa com deficiência, sua prática social no cotidiano, suas relações estreitas com a comunicação, informação, acessibilidade, ou qualquer barreira que demonstre descriminação de qualquer ordem à pessoa humana é entendido como violação da lei. Questionar e analisar as ações do cotidiano torna-se uma prática um guia para a nova ação/transformação da sociedade, a construção do pensamento crítico sobre o que ocorre a seu redor é ponto de interesse das discussões.

Fátima Campos Daltro de Castro – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

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Educação, história e cultura no Brasil Colônia – PAIVA (RBHE)

PAIVA, José Maria de; BITTAR, Marisa; ASSUNÇÃO, Paulo de. Educação, história e cultura no Brasil Colônia. São Paulo: Editora Arké, 2007. Resenha de: TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; BARBOZA, Marcos Ayres. Revista Brasileira de História da Educação, n° 19, p. 227-234, jan./abr. 2009

A presente obra é o resultado do trabalho de pesquisa de nove pesquisadores de universidades públicas e privadas brasileiras, ligados ao Grupo de Pesquisa “Educação, História e Cultura: Brasil, 1549-1759”, liderado pelo pesquisador José Maria de Paiva, professor da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).

O grupo de pesquisa, criado em 2000, está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP, com núcleos de pesquisa na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR, São Carlos-SP); na Universidade Estadual de Maringá (UEM, Maringá-PR); no Centro Universitário Assunção (UNIFAI, São Paulo-SP) e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ, Rio de Janeiro-RJ).

O objetivo do livro é apresentar ao campo científi co da área de ciências humanas, notadamente da educação e da história da educação, o resultado de pesquisas e debates promovidos nos encontro de apresentação e discussão de trabalhos do grupo de pesquisas, ocorridos em sua trajetória. Para tanto, está organizado em sete capítulos da seguinte maneira: capítulo um, “Religiosidade e cultura brasileira – século XVI”, escrito por José Maria de Paiva; capítulo dois, “Educação jesuítica no império português do século XVI: o colégio e o Ratio Studiorum”, escrito por Célio Juvenal Costa; capítulo três, “As relações epistolares: humanistas e jesuítas”, escrito por Edmir Missio; capítulo quatro, “Os exercícios espirituais e o teatro”, escrito por Paulo Romualdo Hernandes; capítulo cinco, “Educação e cultura na América portuguesa: as reformas de Sebastião José de Carvalho Melo”, escrito por Paulo de Assunção; capítulo seis, “A pesquisa em história da educação colonial”, escrito por Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Júnior e, por último, capítulo sete, “Educação jesuítica no Brasil colonial: estudo baseado em teses e dissertações”, escrito por Maria Cristina Innocentini Hayashi e Carlos Roberto Massao Hayashi.

No capítulo um, “Religiosidade e cultura brasileira no século XVI”, José Maria de Paiva afi rma que não se pode compreender a religiosidade brasileira sem que se faça referência à cultura, considerada como a maneira de ser da sociedade e, na qual, as pessoas se expressam por meio das relações. Na primeira parte, “A religiosidade nas práticas sociais”, analisa documentos ofi ciais de um período histórico em que a cultura portuguesa, como um tudo, tinha um único objetivo, o cuidado da religião. A religiosidade cristã era a forma de ser da sociedade portuguesa. A existência humana em conformidade com a fé era uma exigência cultural e, como tal, uma obrigação pública e social. A vida em sociedade era regida pela “nossa santa fé”; os comportamentos considerados de  “bons costumes” fundamentavam-se na doutrina da Igreja e, também, na legislação do Reino. Aqueles que se desviavam dos “bons costumes”, aos olhos dos indivíduos e da sociedade mereciam reprovação social e punição pelos seus pecados. Na segunda parte, “A religiosidade na sua expressão devocional”, o professor José Maria de Paiva analisa a prática devocional e cultural dos portugueses na colônia, visando demonstrar a formação da subjetividade portuguesa alicerçada sobre a religiosidade. Ser cristão, nesse período, significava ir a missa e comungar; além disso, uma maneira de apreender e pregar os “bons costumes”. A devoção era caracterizada como o novo modo de vida que se assumia, por meio de jejuns, abstinência e disciplina para a renovação ou reformulação da espiritualidade. A fé cristã, na sociedade portuguesa, não implicava na conformidade com os ensinamentos dos padres, mas no viver uma vida em que Deus se põe presente. Assim, para não se cair em contendas com a figura do poder sagrado, a solução era ganhar as boas graças pelo cumprimento da obediência.

No capítulo dois, “Educação jesuítica no império português do século XVI: o colégio e o Ratio Studiorum”, Célio Juvenal Costa afi rma que o objetivo inicial da Companhia de Jesus era a reconquista da cidade de Jerusalém para os cristãos, mas, no decorrer dos primeiros decênios de sua existência, por infl uência dos fundamentos teológicos e fi losófi cos da escolástica, igualmente pela austera formação dos clérigos, contribuíram com os objetivos da Igreja que visavam lidar com questões novas, como a expansão do comércio e a descoberta do novo mundo. Para discutir o papel do colégio e do Ratio Studiorum no trabalho jesuítico de formação escolar no século XVI, dividiu o trabalho em quatro partes: a primeira, “O jesuíta como instrumento da Reforma Católica”; a segunda, “A racionalidade educacional jesuítica”; a terceira, “O colégio” e, por último, a quarta, “Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu”. Segundo o autor, os colégios e o programa de formação elaborado pelos jesuítas, disponíveis aos jovens em geral, desenvolviam uma educação séria e exigente, o que se observa na análise dos cursos de humanidades, fi losofi a e teologia do Ratio Studiorum. Nas colônias, os colégios não se restringiam somente à formação, eram responsáveis também pela administração de povoações, cidades, igrejas e fazendas. Desse modo, conclui que tanto o plano de estudos como os colégios foram a expressão de experiências históricas que, avaliadas e reavaliadas, instituiu a forma de ser da Companhia de Jesus.

No capítulo três, “As relações epistolares: humanistas e jesuítas”, Edmir Missio analisa o papel exercido pelas cartas como instrumento de formação, que contribuía para a educação dos filhos da família Sforza, futuros governantes do ducado de Milão. Nas cartas, os filhos relatavam suas experiências e, também, serviam como um instrumento à manutenção das relações e hierarquias. A escrita das cartas exprimia as ações e os pensamentos, exigindo um grande esforço argumentativo, com o qual se verificava a formação recebida. Tratava-se de “uma técnica de composição e elaboração [dos] estudos de retórica e poética” (p. 46); elas eram avaliadas como um instrumento, “[…] de propaganda política e difusão cultural” (p. 46). Desse modo, o aprendizado das cartas passou “[…] a fazer parte do currículo das escolas fundadas pelos humanistas, as quais proverão quadros administrativos dos governos, como secretários e diplomatas” (p. 49). Assim, no decorrer do século XVI, a expansão do comércio e a descoberta do novo mundo, transformaram as relações sociais e culturais, e exigiram o desenvolvimento de uma educação mais apropriada aos desafi os da época, isto é, uma educação de caráter utilitário.

Capítulo quatro, “Os exercícios espirituais e o teatro”, Paulo Romualdo Hernandes discute a importância histórica dos exercícios espirituais, entendidos como um exame mental criado por Inácio de Loyola que, depois de aperfeiçoado, tornou-se um manual de educação e ensino da religiosidade cristã católica. Tratava-se de um método rigoroso, constituído por quatro semanas de exercícios; na primeira, o exercitante era convidado a realizar orações, colóquios, penitências e arrependimentos para se livra de seus pecados e, assim, purgado e penitenciado, o exercitante passa para a segunda semana de exercícios. A principal característica desse período chamado de semana era a iluminação divina; nela, o exercitante seguia a Jesus em todos os seus passos. As tarefas do diretor espiritual, como um mediador pedagógico, era possibilitar as condições necessárias para que o exercitante chegasse a experiência interior. Imitar Cristo significa “morrer para a vida que se tem, realidade real, para ressuscitar e viver eternamente espiritualmente” (p. 64). Ao aceitar o caminho de imitação de Cristo, o exercitante entra na terceira semana que também é iluminativa. Nela, ele vivia intensamente a Paixão de Cristo com todas as implicações que ela pudesse causar. Segundo Hernandes, “o que faz a plástica e a didática dos exercícios são o sentir interiormente trazendo para a memória, entendimento e vontade as dores da Paixão” (p. 65). Pelo renascer com Cristo, o exercitante entrava na quarta semana, caracterizada como um momento de União com Deus. Os exercícios espirituais não eram simples experiências místicas mas, também, uma dramatização, representações interiores que possibilitaram aos que não viveram na época de Jesus, conhecer a história da salvação do povo de Deus. Enfi m, as dramatizações tinham como objetivo tornar possível, por meio das representações, o conhecimento das verdades do sofrimento de Cristo e, notadamente, viver a alegria de Cristo Ressuscitado.

No capítulo cinco, “Educação e cultura na América portuguesa: as reformas de Sebastião José de Carvalho Melo”, Paulo de Assunção analisa o contexto histórico de Portugal após a morte do monarca dom João V, em 31 de julho de 1750, com a nomeação de Sebastião José de Carvalho e Melo, como primeiro-ministro de Portugal. Ele, ao assumir suas funções, implementou um conjunto de medidas para ampliar o poder do Estado, por meio da centralização do poder monárquico em relação ao poder exercido pela Igreja e pela nobreza. O rompimento com a Igreja ocorreu entre 1760-1770, período em que o Estado português delegou aos tribunais civis poderes para legislar sobre assuntos de ordem pública, revogando o cumprimento dos documentos oficiais da Igreja. A reformulação institucional “procurou atuar por meio de leis que clarificassem o papel das instituições, bem como das relações entre elas” (p. 76). A reorganização do império português visava o saneamento das contas do Estado, debilitada pelos acordos celebrados entre Portugal e a Inglaterra. As transformações repercutiram também no campo subjetivo e social, influenciadas pela efervescência das idéias iluministas. “O pensamento iluminista foi profícuo na discussão da liberdade e autonomia do Estado em relação à Igreja” (p. 78). Esses debates ainda repercutiram na educação e nos sistemas pedagógicos, já que a afirmação do poder do Estado evidenciou um ideal progressista que exigia o estabelecimento de uma educação de base científica, sobretudo da formação recebida nas escolas e universidades, que se encontravam sobre a influência da educação jesuítica.

No capítulo seis, “A pesquisa em história da educação colonial”, os autores, Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Júnior discutem a produção científica no campo da educação, referente ao período colonial em que os jesuítas tiveram o domínio sobre a sistematização do trabalho pedagógico na colônia brasileira. A criação de um grupo de pesquisa, intitulado “Educação Jesuítica no Brasil colonial”, desenvolvido na UFSCAR, ligado ao Diretório de Pesquisa “Educação, História e Cultura Brasileira: 1549-1759”, liderado por José Maria de Paiva, possibilitou a análise de lacunas temáticas sobre essa produção, o que objetivou o desenvolvimento de pesquisas para ampliar a historiografia da educação brasileira desse período. Os autores, para analisarem a produção científica sobre a educação colonial, entre 1549 a 1759, estabeleceram seis categorias analíticas: a primeira, “A hegemonia dos jesuítas e a presença de sua ação pedagógica nos eventos científi cos”; a segunda, “As correntes interpretativas sobre a ação pedagógica dos jesuítas”; a terceira, “O tema nos manuais didáticos”; a quarta, “O tema em artigos e capítulos de livros”; a quinta, “O tratamento teórico-metodológico” e, por último, a sexta, “A questão das fontes”. Na conclusão, afirmaram que ainda existe uma enorme gama de assuntos não pesquisados, relacionados ao tema, sendo que as chances de estudos inéditos são maiores, porém, essa temática atrai um número restrito de profissionais em razão da necessidade de afeição com a história de nossos primeiros séculos; da disciplina de estudo para trabalhar com documentos históricos, da abrangência do campo de pesquisa em educação e a exigência de um tratamento epistemológico que dê materialidade a totalidade histórica dos primeiros séculos da formação social brasileira.

E, por fim, no capítulo sete, “Educação jesuítica no Brasil colônia: um estudo baseado em teses e dissertações”, Maria Cristina Innocentini Hayashi e Carlos Roberto Massao Hayashi analisam a produção científica sobre a educação jesuítica no Brasil colônia. Omaterial de estudo constituiu-se de teses de livre docência e doutorado e dissertações defendidas em programas de pós-graduação de instituições de ensino superior; para a coleta de materiais elegeu-se as bibliotecas digitais de teses e dissertações como fonte de pesquisa com base em uma abordagem bibliométrica. Essa abordagem consiste no estudo da atividade científi ca, visando o desenvolvimento de indicadores de avaliação da produção de conhecimento. De acordo com o levantamento bibliográfi co disponibilizado em diversas fontes de dados na Internet, das instituições de ensino superior, os resultados demonstraram que a maior parte da produção científica relacionada ao tema encontra-se em programas de pós-graduação da Região Sudeste do Brasil. A distribuição das 275 teses e dissertações realizadas possibilitou verifi car que a maioria dos trabalhos encontra-se vinculados a programas de história (119 trabalhos); educação (46); letras (16) e antropologia social (12). A análise bibliométrica da produção científica relacionada ao tema da educação jesuítica no Brasil colônia possibilitou a afirmação de que, a partir dos anos de 1990, houve um aumento significativo do número de trabalhos acadêmicos sobre a temática, sendo que a maioria desta produção concentra-se nas áreas de história e educação.

O trabalho desenvolvido pelo grupo envolve pesquisas relacionadas à presença jesuítica no Brasil colônia. Tem como centro a história da educação, defi nida como a aprendizagem da maneira de ser, a qual se constitui pela formação da identidade dos indivíduos e da sociedade. A educação e a cultura são compreendidas como dois elementos de análise do mesmo processo social; nele, a educação é ligada à aprendizagem e a cultura às formas de ser. A história, nesse contexto, é analisada com base na ação dos homens, que transformam e são transformados pelo produto de sua própria atividade material.

A disponibilização das pesquisas realizadas pelo grupo de pesquisa tem o mérito de abordar uma área de pesquisa que não tem recebido a devida atenção na área de educação. A tarefa de revisitar as fontes já conhecidas e de tratar temas também conhecidos, além de descortinar novas possibilidades interpretativas, pode apontar novos rumos e novas fontes para a pesquisa acadêmica. O livro é bem apresentado e cumpre uma importante função de apresentar, de forma acadêmica, temas e assuntos conhecidos.

A editora Arké traz ao público brasileiro uma importante referência temática da história da educação no Brasil, uma vez que a história da educação colonial é uma área pouco estudada entre os pesquisadores brasileiros que, nos últimos anos, tem ganhado expressividade com o trabalho realizado pelo Grupo de Pesquisa “Educação, História e Cultura: Brasil, 1549-1759”. Além disso, contribui para a divulgação do trabalho desenvolvido por pesquisadores da área. O livro destaca especialmente a atuação dos jesuítas no Brasil e, esse destaque, mostra a proeminência incontestável da Companhia de Jesus no campo da educação e mesmo da religião.

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – Doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 1996), professor no Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEM

Marcos Ayres Barboza – Mestre em educação (2007) pela Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo. E-mail: [email protected]

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Escritos sobre educação/ comunicação e cultura – PRETTO (RF)

PRETTO, Nelson De Lucca. Escritos sobre educação, comunicação e cultura. São Paulo: Papirus, 2008. 240 p. Resenha de: OLIVEIRA, Rosa Meire Carvalho. Revista FACED, Salvador, n.15, jan./jul. 2009.

Escritos sobre educação, comunicação e cultura, de autoria do professor Nelson De Luca Pretto, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Londres, Inglaterra, foi editado em 2008 pela Papirus. De cunho aparentemente despretensioso, a obra reflete, no entanto, a militância do educador Nelson Pretto, que, com o próprio exemplo, demonstra como construir uma prática que defenda a atuação do professor como intelectual da cultura.

É essa perspectiva que vemos consolidada ao longo de todo o livro, que apresenta um conjunto de textos datados entre 1983 e 2006. São artigos – publicados ou não – e entrevistas em diversos órgãos de imprensa local e nacional, além de discursos e escritos de antigos panfletos. É por meio deles que vemos reiterados, não só o espírito transformador que tem animado as práticas acadêmicas, universitárias e do cidadão Nelson Pretto, mas as ideias que vêm consubstanciando ao longo de mais de duas décadas a que os textos nos remetem, a ação de um educador ocupado em transformar pela práxis, a realidade de processos vitais para a educação, a comunicação e a cultura.

O alcance dessa práxis é revelada nas 240 páginas do livro, que é dividido em sete partes. E como bem aponta o educador português António Nóvoa, a quem coube a apresentação da obra: “Nelson Pretto exerce um olhar crítico e obriga-nos a pensar para além das esquadrias habituais. Este livro não deixa ninguém indiferente.
Faz-nos pensar. Dá o que pensar. Não será esse o objetivo primeiro de um intelectual? E, ao mesmo tempo, convida-nos a agir. Não será essa a missão principal de um educador?” (p. 11), indaga.

Nóvoa observa não ser à toa que o livro começa com um texto de Paulo Freire para quem o ato de educar é um ato de comunicação. É dessa mesma estirpe que se revela Pretto em suas itinerâncias, ao trabalhar a perspectiva de aproximar a educação da comunicação, trazendo desde seus primórdios um novo olhar que recoloca os cidadãos, em primeiro plano, e os professores como mediadores de uma cultura estruturalmente tecnologizada, em um novo patamar de ação. É nesse sentido que Pretto constata: “[…] Imaginava e continuo imaginando – hoje mais ainda! – que um professor deve ser, antes de tudo, uma liderança comunitária e intelectual […] fazer o processo educativo algo questionador, que extrapole o espaço das edificações escolares, uma ação que ganhe, literalmente, o mundo”. (p. 13) Nesse sentido, ganha espaço entre as várias seções do livro princípios defendidos por Pretto que compreende os imensos desafios colocados aos professores nesses tempos de comunicação em redes digitais globalizadas, cuja internet é o marco, e da imensa distância entre a cultura escolar e a cultura produzida fora dos muros da escola. Para ele, há dois pontos “importantíssimos” a considerar: primeiro, que a rede traz a possibilidade de interação entre o local e o não-local, a partir da valorização da cultura de origem; depois, pela “ocupação” dos espaços midiáticos, sejam os tradicionais (jornal, televisão, rádio, etc.) ou das novas mídias (a internet) por parte da escola. “Temos, portanto, de fortalecer os nós de conexão, de forma a fazer com que local e não-local interajam em pé de igualdade. Por isso sempre digo que não queremos internet nas escolas, mas sim escolas na internet” (p. 39), diz.

A Educação pelos meios e para os meios (BELLONI, 2001), ganha assim nas ideias de Pretto em Escritos em educação, comunicação e cultura a atualidade necessária à compreensão crítica dos fenômenos mediáticos da contemporaneidade, especialmente aqueles que envolvem a Teoria da Cibercultura e sua aproximação com a Educação, quando marca bem a qualidade dos processos comunicativos em redes digitais, suas características e o imenso potencial que é oferecido aos professores como mediadores da cultura, na tarefa de produzir coletivamente conhecimento em sala de aula, em lugar de simplesmente reproduzi-lo.
Daí que, para Pretto, as tecnologias digitais promovem um novo modo de ser e de agir da sociedade e ampliam os desafios de professores em sua missão diária. “[…] Apropriar-se dessas tecnologias como uma mera ferramenta, do meu ponto de vista, é jogar dinheiro fora. Colocar computador, recursos multimídia e não sei mais o que para a mesma educação tradicional, de consumo de informações, é um equívoco” (p. 49), observa. Na defesa de uma educação que contemple o local e o não local, as culturas de dentro e fora da escola e as possibilidades dos professores como intelectuais da cultura, Pretto acredita ser necessário uma maior presença da escola nos meios de comunicação, não apenas como consumidor, mas como produtor de informação. “Precisamos preparar professores que trabalhem na formação de uma juventude que possa atuar de forma plena na sociedade. Não apenas como consumidora mais qualificada, mas como produtora. Esse é o desafio!” (p. 40) O livro Escritos em educação, comunicação e cultura é revelador, portanto, da práxis que anima o pensamento instigante do educador Nelson Pretto. Quem, como nós, acompanha de perto um pouco da dinâmica de seus processos, consegue enxergar na obra a sua alma de pesquisador, de intelectual envolvido com questões que lhe são caras, seja na possibilidade de intervenção discursiva, a partir de suas convicções externadas em suas diversas produções textuais, seja pela capacidade de ocupar espaços acadêmicos, universitários e sociais, como cidadão comprometido com processos de mudanças.

É assim que nas sete seções de Educação, comunicação e cultura essas itinerâncias se constituem e revelam as diversas facetas do irrequieto professor. “A atitude de Nelson Pretto é coerente com a perspectiva de um intelectual que questiona aquilo que “já sabe” para, assim, abrir caminho a novas possibilidades e novos desígnios”, observa António Nóvoa em seu prefácio. (p. 11) Na primeira seção do livro, intitulada Entrevistas e Discursos, é assim que Pretto surge a nos abrir novas possibilidades reflexivas em relação a temas como o avanço das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e sua relação com a educação, a partir da criação da Rede Bahia – uma “perna baiana” da internet; o futuro da escola e as transformações exigidas nos métodos e modelos de ensino-aprendizagem impelidas pelas TIC, como a relação com as novas gerações de nativos digitais (ou geração alt tab); inclusão digital; e a construção de uma escola “sem rumo”. Esta buscaria dialogar com os complexos e rápidos processos de um novo tempo social, cultural e econômico, na tentativa de promover novas educações.

Sua base epistemológica ancorar-se-ia na pedagogia da diferença, em lugar de uma pedagogia da assimilação, com o firme propósito de eliminar o que Pretto chama de “apartheid social”.

Em Escritos: Educação, que intitula a segunda seção do livro, o autor agrupa os textos que considera mais voltados para a educação, publicados ou não em forma de artigos para jornais. É nesse espaço também onde aparece a forte veia política e ativista, de um intelectual preocupado com temas caros aos rumos da educação brasileira e baiana, como a formação de professores, as condições da escola e da Universidade Pública, especialmente da UFBa, seus problemas e sua expansão. São textos datados a partir de 1983, que traduzem a preocupação de Pretto com a qualidade das políticas públicas para a educação, dentre as quais aquelas relacionadas ao livro didático, assunto que por muito tempo ocupou as reflexões do autor.

A temática dos livros didáticos, inclusive, intitula a terceira seção do livro, chamada Educação: Livros Didáticos. A parte é formada por seis artigos escritos por ocasiões e fins diversos – um deles publicado em 1996 pelo jornal Folha de São Paulo – e resume a preocupação do autor com as políticas (ou sua falta) para o livro didático. O tom dos textos é sempre de perplexidade e denúncia, com reflexões envolvendo pontos como a falta de inclusão dos professores nos debates realizados pelo governo sobre a questão e as posturas dos editores, que estariam mais preocupados, segundo o autor, em termos de quantidade e não na qualidade do livro didático produzido no Brasil. “Sabíamos que um programa de governo teria de contemplar a questão da quantidade, mas considerando que a questão da qualidade era fundamental, ela teria que ser atacada com a mesma firmeza com que se atacou a questão da quantidade” (p. 129), sustenta no texto que prefacia o livro Que sabemos sobre o livro didático, editado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e publicado em 1989 pela editora da Unicamp. Na ocasião da pesquisa que resulta no livro, o autor ocupava a coordenação do órgão (1986/1987).

A Cultura: o cuidado com a cidade e as gentes é o título da seção quatro, que resgata a produção do autor no campo da cultura.

Editado em ordem cronológica de aparecimento dos textos em jornais baianos, especialmente em A Tarde, e de outros estados, além de orelha de livros – como é o caso de Homem satélite, texto escrito em 2000 e publicado em livro homônimo do professor Edvaldo Couto. Buscou-se uma articulação entre os textos que tratam das mais variadas abordagens, tendo como afirma o autor, um “enorme” vínculo com a educação. Em verdade, os textos, muitos em estilo de crônica, traçam uma espécie de visão do autor e seus vínculos com a cultura baiana.

A seção é aberta com uma crônica de uma viagem à cidade de Lençois (BA), em busca de uma certa Cachoeira Glass. Relata percalços e encontros inusitados, como aquele estabelecido com seu Biça. Também circulam por ali lembranças da apresentação da Banda Afro Olodum, no Circo Voador, do Rio de Janeiro, A lavagem (festa típica baiana) da localidade de Jauá, no litoral Norte de Salvador, entre referências a outras festas populares, entre outros aspectos da típica cultura baiana. São ao todo 15 crônicas da vida da cidade, repletas de baianidade, onde o autor não deixa de manifestar o amor à cidade – que adotou aos 11 anos com a mudança da família de Porto Alegre para a Bahia. Neste particular, a crônica Velhos tempos que não voltam mais homenageia a cidade onde viveu até os cinco anos, Joaçaba, em Santa Catarina.

Na quinta seção, três textos compõem a parte dedicada à Ciência e Tecnologia. O primeiro deles trata de Ciência e televisão, refletindo sobre o papel educativo da televisão, seja pública ou comercial. O autor reflete sobre o que são em verdade programas educativos e o surgimento dos mesmos na TV brasileira.
Num panfleto sobre o Globo Ciência, programa produzido pela Globo, Pretto faz uma crítica à qualidade do que se considera ciência, aludindo à espetacularização da ciência pela produção do programa. A seção é encerrada com artigo sobre a realização da Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Salvador.

A sexta seção, penúltima do livro Escritos em educação, comunicação e cultura, apresenta uma série de 22 artigos sobre a presença das tecnologias de informação e comunicação no mundo contemporâneo. O título A tecnologia da informação: e chegaram os bytes, traz embutido seu valor, especialmente memorial, por registrar o desenvolvimento da rede internet na Bahia, com a reunião de um consórcio para este fim, com a participação da UFBA, governos estadual e municipal, antiga Telebahia e órgãos e entidades do estado. No artigo intitulado A Bahia já caiu na rede, publicado em 18/5/1995 – primórdios da internet comercial no Brasil – Pretto informava: “Hoje nosso número de usuários gira em torno de dois mil. Já temos uma estrutura descentralizada como é a filosofia da internet.” (p. 177) Os textos abordam pontos de vista variados sobre o desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e informação (TIC), descrevendo avanços na comunicação digital e de sua relação com a cultura e a educação. Nesse último aspecto, que viria a se tornar objeto do pensamento e da reflexão de Nelson nos últimos 15 anos, o autor nessa seção, sustenta mais uma vez a filosofia de uma educação democrática e inclusiva. Cobra políticas de democratização e acesso às TIC, como a aplicabilidade dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), que prometia destinação de recursos oriundos das empresas de serviços de telecomunicações para financiar a ampliação do espectro de acesso dos brasileiros à internet.

“Conectar as escolas públicas à internet é o caminho para fortalecer a produção de conhecimento e de cultura das crianças, jovens, adolescentes, professores e comunidade (p. 197)”, sentencia.

É esse conjunto de reflexões que resume o livro Escritos em educação, comunicação e cultura, que se encerra com a sétima seção, intitulada Escritos Com…. A seção não recebe ares de conclusão, mas, ao contrário, insinua uma continuidade, seja nas parcerias que os textos apresentam, seja nas temáticas discutidas, temáticas essas que se mantêm atuais na agenda de reflexões daqueles que cotidianamente lidam com os “caminhos cruzados” da educação e da comunicação.
É esse compromisso que parece apontar Pretto, ao escolher para fechar o livro textos que demonstram sua opção por melhores rumos para a Sociedade da Informação, a formação de professores, a inclusão digital, novas educações com escolas e universidade sem rumos. Esta última bem aos moldes do que idealizava o companheiro de itinerâncias, professor Luiz Felippe Serpa, reitor da UFBa por dois períodos, em sua incansável defesa da pluralidade, diversidade e de novas educações, a quem homenageia postumamente ao longo do livro e em dois artigos nesta seção final.

Referências

_________ BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. 116 p.

Rosa Meire Carvalho de Oliveira – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

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Bullying e suas implicações no ambiente escolar – PEREIRA (RF)

PEREIRA, Sônia Maria de Souza. Bullying e suas implicações no ambiente escolar. São Paulo: Paulos, 2009. 96p. Resenha de: ROCHA, Telma Brito. Revista FACED, Salvador, n.15, jan./jul. 2009.

O cinema, nos últimos anos, tem nos apresentado uma série de filmes que abordam a violência nas escolas. Basta assistir aos filmes: Visitor Q (Japão/2001), Tiros em columbine (EUA/2002), Elefante (EUA/2003), Escola da violência (Coreia do Sul/2006), É só uma questão de tempo (Austrália/2006), Klass (Estônia/2007), A onda (Alemanha/2008), Entre os muros da escola (França/2009) Embora nem todos os filmes sejam baseados em fatos reais, eles demonstram que o problema da violência nas escolas é comum ao conjunto das sociedades.

No Brasil, como sabemos, não é diferente; professores convivem com cenas reais de brigas entre alunos que envolvem agressões físicas com socos, chutes ou agressões psicológicas, por meio de ofensas, difamações (inclusive dirigidas aos próprios professores); e ainda grupos de alunos ou ex-alunos depredando o patrimônio, munidos de armas ou drogas, comprometendo a integridade da vida escolar.

As formas de violência no ambiente escolar são variadas e envolvem uma mutiplicidade de atos. O mesmo ocorre com os fatores determinantes para sua ocorrência, pois abarcam desde questões psicológicas, familiares, socioeconômicas, e também circunstânciais como o uso de drogas lícitas ou ilícitas.

No contexto das diferentes formas de manifestações da violência na escola, temos ainda o bullying, termo de origem inglesa, derivado do adjetivo bully, que significa valentão, tirano; um tipo de violência entre os alunos, caracterizada pela ocorrência de agressões de ordem física e/ou psicológica, geralmente por um longo período e de forma repetitiva, na qual se evidencia um desequilíbrio de poder entre agressor e vítima.

O bullying é um problema que vem sendo detectado como em muitas escolas, sejam públicas ou privadas. Mesmo assim, profissionais da educação desconhecem suas características, ou as graves consequências dos atos cruéis e intimidadores. Por conta desse desconhecimento, ele é confundido com a indisciplina ou brincadeiras entre alunos ou grupos de alunos, por vezes de caráter físico, que envolvem contato pessoal, discussões ou brigas corriqueiras, ocasionais, em pares de igual força e poder.

Nesse sentido, o livro Bullying e suas implicações no ambiente escolar, fruto de uma monografia defendida no curso de Pedagogia da UFBA em 2007, sob a orientação da professora Celma Borges, é uma obra importante, pois ajuda pais e profissionais da educação no entendimento dessa temática. Por meio de uma revisão bibliográfica, a autora analisa porque é tão difícil para as escolas detectarem o bullying, quais as consequências para o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos vitimados; como as escolas e as famílias podem prevenir e combater o bullying.

O livro é composto de pequenos capítulos, seis ao todo, incluíndo a conclusão. De maneira clara e objetiva, a autora apresenta na introdução a estrutura do livro, pontuando que seu trabalho não tem pretensão de apresentar soluções definitivas, mas desenvolver algumas reflexões sobre a gravidade do problema, e também medidas para o seu enfretamento no ambiente escolar.

No capítulo dois, a autora revisa os conceitos de violência e seus possíveis condicionantes como fator explicativo desse fenômeno.

Considera que o conceito varia em diferentes períodos da história da humanidade, ou seja, depende da forma como cada indivíduo compreende o tema, a partir de seus valores e sua ética.

Assim, o termo é complexo e polissêmico, visto que é usado para designar fenômenos variados e distintos. Dentre os fatores determinantes para a violência, entre os mais citados em sua revisão bibliográfica está a desestruturação familiar, e o alto índice de exclusão social.

No capítulo três, parte do histórico para explicar o conceito de bullying, e as diferenças entre bullying e indisciplina. Essa discussão que a autora traz é importante, porque sabemos que, embora os estudos sobre a questão da violência na escola já aconteciam desde os anos 70, na Suécia, Reino Unido, Estados Unidos da América (EUA), só nos anos 80 é que Dan Olweus, pesquisador da Universidade de Bergen na Noruega, desenvolveu os primeiros critérios para detectar o problema de forma específica, e assim diferenciá-lo de outras possíveis interpretações, que envolviam indisciplina e brincadeiras entre alunos – as chamadas gozações. Já no Brasil, até 2003, o termo não era mencionado nas pesquisas sobre violência escolar, somente em 2005, conforme a autora, os estudos de Lopes Neto (2005), Fante (2005), Seixas (2005) e Murriel e outros autores. (2006) discutem a questão (p. 36).

Segundo Pereira, o bullying se manifesta através de insultos, intimidações, apelidos cruéis, gozações que magoam profundamente, acusações injustas, tomar pertences, meter medo, atuação de grupos que hostilizam, ridicularizam e infernizam a vida de outros alunos, levando-os à exclusão, além de danos físicos, morais e materiais. (p.31) Em geral, podemos notar que as vítimas não dispõem de recursos, status e habilidade para reagir porque estão numa relação desigual de poder com os agressores, ou por razões psicológicas, econômicas ou sociais. Os agressores se valem dessas incapacidades para infligir dano, seja porque alcançaram algum tipo de gratificação emocional com tal postura, ou pretendem obter alguma vantagem específica como se apossar de dinheiro, de objetos da vítima, ou ainda solidificar posições na hierarquia do grupo onde estão inseridos, e aumentar sua popularidade entre os demais colegas. O caráter intencional ainda é justificado pela escolha de grupos com características físicas, socioeconômicas, de etnia e orientação sexual, específicas.

Nesse sentido, ser diferente é um pretexto para que o autor do bullying satisfaça a sua necessidade de agredir, ofender e humilhar alguém. Os agressores buscam em suas vítimas algumas diferenças em relação ao grupo no qual estão inseridos. A prática de bullying se constitui numa prática de rejeição perversa, que priva o indivíduo, considerado “diferente e inferior”, de sua dignidade, e de seu direito de participar e existir socialmente.

A autora estabelece diferença entre disciplina, indisciplina e bullying: Disciplina são regras básicas de convivência, a indisciplina pode ser percebida como uma fuga as regras, uma não obediência, pelo aluno, às regras preestabelecidas, no caso da escola. (p. 52) Porém, não podem ser confundidas, visto que a primeira provoca transtornos disciplinares de fácil solução. A segunda provoca transtornos mais complicados, pois prejudica o desenvolvimento natural de seus envolvidos, tanto no emocional como no cognitivo e psicológico.

No capítulo quatro, apresenta as consequências e implicações do bullying, tanto para vítima quanto para agressor, demonstra os aspectos psicológicos e cognitivos implicados. Para os agressores, as prováveis consequências podem ser: crença na força para solução dos seus problemas; dificuldade em respeitar a lei e os problemas que daí advêm; problemas de relacionamento afetivo social. (p. 62) Já para as vítimas, existe perda de concentração na escola, de autoestima, problemas de relacionamento, síndrome do pânico, depressão, e podem levar a atitudes mais extremas como o suicídio.

No quinto capítulo, discute alguns modelos de prevenção/ intervenção de alguns países para minimizar a violência nas escolas.

No entanto, aponta que não existe uma receita única, mas várias que deram certo, como as estratégias estabelecidas no currículo, no projeto pedagógico, articuladas à gestão da escola.

Além disso, considero importante que cada escola estabeleça um projeto que reconheça seus limites, possibilidades, compreendendo ainda sua diversidade. É preciso, pois, que a união, as secretarias estaduais e munícipais se comprometam com a formação de professores para o enfretamento do bullying. O livro, portanto, é uma excelente oportunidade para começar o debate no espaço escolar; um suporte teórico que nos ajudará, entre outras questões, a distinguir os alunos que praticam bullying dos alunos indisciplinados, e medidas de intervenção para sua prevenção.

Telma Brito Rocha – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

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The 2009 horizon report – JOHNSON et al. (RF)

JOHNSON, L.; LEVINE, A.; SMITH, R. The 2009 horizon report. Austin, Texas: The New Media Consortium, 2009. ISBN 978-0- 9765087-1-7 Disponível em: . Resenha de: HALMANN, Adriane Lizbehd. Revista FACED, Salvador, n.15, jan./jul. 2009.

Tendências tecnológicas na educação*

Quais as tendências tecnológicas e como elas alteram a educação? Esta questão aponta para um contexto em constante transformação, o qual é objeto de estudos do Horizon Project, formado por grupo de pesquisadores de importantes instituições educacionais.

Anualmente, através do diálogo entre estes educadores, que analisam pesquisas, artigos e sites, é publicado o Horizon Report, um relatório que aponta tendências tecnológicas na educação.

No site do projeto1 é possível ter acesso aos seis relatórios anuais publicados, inclusive ao mais recente deles, na edição 2009.

O relatório de 2009, sob licença Creative Commons2, ao longo das 36 páginas, apresenta tecnologias que, segundo eles, serão “adotadas” na educação entre um ano ou menos (tecnologias móveis e nuvens computacionais), dois ou três anos (geo-taggin – tudo conectado e localizado; personal ideia – a web como plataforma e de cada um) e quatro ou cinco anos (Aplicações web semânticas – o que, segundo eles, seria feito pelas máquinas inteligentes; Objetos inteligentes/smarts – internet nas coisas, coisas que “sabem” sobre si). Cada uma das duas tecnologias de cada um dos três tópicos é abordada em uma visão geral; relevância para o ensino, aprendizagem, pesquisa e expressões criativas; exemplos; e leituras adicionais.

Ao longo do relatório são abordadas algumas tendências chave nas mudanças dos próximos anos nas práticas de ensino, pesquisa e expressão criativa. Uma dessas tendências se refere ao modo como as pessoas, globalmente, têm alterado suas práticas de trabalho, colaboração e comunicação por meio das tecnologias, especialmente as tecnologias de informação e comunicação. Cada vez mais, alunos e professores estão conectados – espaços de colaboração online, comunidades virtuais, mobilidade/tecnologias móveis, voz sobre IP… – transcendendo as tradicionais “bordas” (fronteiras) da escola. Neste contexto, a noção de inteligência coletiva é redefinida, pois, enquanto muitos veem os atuais potenciais da web como um amadorismo de massa e investem em instrumentos de controle, os jovens pedem para participar ativamente do processo de aprendizagem, não como meros ouvintes, mas utilizando todo o potencial do acesso fácil ao vasto conhecimento disponível, bem como o desenvolvimento de novos ambientes.

Os jogos, amplamente difundidos entre os jovens, passam a ter grande relevância neste quadro, pois oferecem oportunidades de interação social alargada e possibilitam que o jovem simule, construa e se posicione frente a situações hipotéticas. Algumas estratégias de aprendizagem baseadas em jogos demonstram que os jovens aprendem significativamente através dessa participação ativa e a interação, sinalizando que métodos tradicionais que não engajam os estudantes não são suficientes. Ao mesmo tempo, as ferramentas para a produção de informação tornam-se cada vez mais intuitivas, indicando para a escola a necessidade da apropriação de linguagens variadas, extrapolando a memorização de textos. Relacionado a tudo isto, encontramos as tecnologias móveis, em um contexto onde são produzidos um bilhão de celulares por ano, e que, cada vez mais, ferramentas “indispensáveis” às pessoas são integradas a estes aparelhos. Estes desenvolvimentos impactam e influenciam transformações na vida de todos, nas formas de se comunicar, trabalhar e, como é aprofundado ao longo do relatório, no aprender, colocando em questão as formas de ensino, as formações dos professores e os conteúdos das escolas.

Mas o relatório também aponta desafios para essas transformações. Novas necessidades estão postas, muitas delas que transformam as formas de ler e escrever, demandando novos materiais didáticos, em outros suportes e mídias e, inclusive, alterando sua concepção de produto estático e abrindo a possibilidade de colaboração dos próprios estudantes. Os métodos de ensino também necessitam ser renovados, de forma que potencializem o ensino, a aprendizagem, a pesquisa e as expressões criativas, considerando os alunos de hoje (nativos digitais) e suas atuais condições. A estrutura da escola também deve ser repensada, pois os atuais currículos não contemplam a relação com os saberes que os alunos estabelecem na web, tampouco suas potencialidades criativas de apropriação. Esta nova escola deve priorizar o percurso do aluno, incentivando que ele colete, analise e compartilhe resultados autonomamente, não difundindo mais a ideia de pesquisa como geradora de produtos estáticos. O aluno, além de consumir informações, deve ser capaz de gerenciar e interpretar os dados rapidamente.

Este aluno já está permeado pelos serviços web e de telefonia móvel, sendo que a cada dia novos serviços são lançados e transformam o cotidiano destes jovens, facilitando e acelerando o acesso às informações, a interação com outros sujeitos e, inclusive, a construção de novas soluções. Este é um contexto que coloca em xeque a atual escola e seus processos.

Esta publicação representa um importante referencial para os pesquisadores da área, pois traça um panorama do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, em especial os serviços web, identificando “impactos” destas na educação.

É importante ressaltar, contudo, que este “impacto” não deve ser pensado como algo pronto que “atinge” a escola de fora para dentro.

Pelo contrário, apesar de enfatizar o “impacto” das TIC na escola, os autores discorrem sobre o aspecto relacional da web, do modelo de construção e desenvolvimento feito pelos próprios usuários (ao contrário de uma dita cultura das massas), do papel dos jovens na construção do conhecimento e na apropriação dos instrumentos e processos que perpassam a web.

Devemos pensar a escola como parte deste processo, que deve caminhar e se repensar com ele. Estas tendências não são receitas ou pacotes que a escola deve aderir para se “adequar” a novos modelos de negócios ou informacionais. Mais do que tudo, esta publicação demonstra que a escola é parte atuante desta sociedade que constrói o contexto atual e não pode se colocar à parte dele, pelo contrário, deve participar, propor, criar contextos propícios à expressão criativa. Por ser um contexto em constante transformação, a escola não deve ter como objetivo maior “correr atrás das demandas da sociedade”, ou ainda, colocar a internet na escola, mas sim, precisa aprender a aprender, colocar a escola na internet3.

Notas

1 Horizon Project – http:// www.nmc.org/horizon

2 Creative Commons (tradução literal: criação comum também conhecido pela sigla CC) é o termo usado para o conjunto de licenças padronizadas para gestão aberta, livre e compartilhada de conteúdos culturais em geral (textos, músicas, imagens, filmes e outros). Com ela o autor define, através de vários módulos disponíveis, quais direitos ele abdica em favor do seu público, de modo a facilitar o compartilhamento e recombinação dos conteúdos. Muitas vezes o autor permite que qualquer pessoa copie e recombine livremente sua obra (o que não é permitido com o copyright), desde que reconhecendo a autoria.

3 Esta expressão é amplamente utilizada por Nelson De Luca Pretto em suas obras. Ver especialmente a entrevista O futuro da escola, publicada no Jornal do Brasil em 28 de novembro de 1999. Disponível em: . Acesso em: 9 jun. 2009.

Adriane Lizbehd Halmann – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora titular da Universidade Estadual de Santa Cruz/BA. E-mail: [email protected]

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Entreideias

Revista Entreideias Educacao Cultura e Sociedade e1600301026831 Discurso de ódio

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Busca-se com isto expandir os resultados de pesquisas viabilizando o diálogo entre as produções das diversas regiões e países, sempre numa perspectiva aberta e de colaboração.

A revista aceita para publicação textos originais, fruto de pesquisas e reflexões mais amplas que contribuam para a avaliação e o desenvolvimento da educação no Brasil e no mundo. Tem como princípio fundamental o direito ao acesso público de todo seu conteúdo, compreendendo que tornar gratuito o acesso a pesquisas gera um maior intercâmbio global de conhecimento, promove o crescimento da leitura e citação dos trabalhos, contribuindo com a democratização do conhecimento no país, especialmente com facilitando esse acesso a professores e pesquisadores de todos os níveis da educação.
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