HISTÓRIA
Memória da Administração de Minas Gerais / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2013
O moderno arranjo arquivístico da documentação reunida sob a custódia do APM tem disponibilizado o acesso a uma multiplicidade de pesquisas, como as que se norteiam pela história administrativa de Minas, gerando campo de interlocução em que a instituição consolida sua vocação republicana.
Os textos que compõem este Dossiê têm como ponto de partida a intenção de demonstrar o potencial de pesquisa existente nos documentos de caráter arquivístico produzidos e acumulados pelas secretarias de governo implantadas no Estado de Minas Gerais após o estabelecimento do regime republicano, em 1889, e que se encontram sob a guarda do Arquivo Público Mineiro. Leia Mais
Fé, guerra e escravidão: uma história da conquista colonial do Sudão / Patricia T. Santos
Essa não é uma resenha convencional. Àqueles que desejam conhecer os principais argumentos e hipóteses que Patricia Teixeira Santos apresenta em sua obra sobre o Sudão sugiro o contato direto com o livro, sem mediadores. Por isso, esse texto não é uma resenha clássica, mas um convite à leitura de uma História que é ao mesmo tempo distante e vizinha de nós. A História é retratada na cultura árabe-islâmica como um instrumento sedutor de encantamento do outro, seja quando empregada de maneira literária ou político-institucional. Para a sociedade árabe, saber utilizar as palavras e conceitos históricos de maneira atraente é uma postura sediciosa, o que transforma todo e qualquer discurso sobre o passado em um jogo sutil que deve produzir fascínio no receptor do discurso. Na literatura árabe clássica, as referências ao poder arrebatador da História são incessantes. A obra mais difundida da cultura árabe-islâmica, conhecida no Ocidente como “Livro das mil e uma noites”, reforça o sentido prodigioso da palavra bem empregada ao transformar a filha do vizir (Scherazade) em uma personagem ardilosa que, pela sedução da História bem contada, supera a tirania política do rei Shariar e altera seu destino fatal. Todas as noites ao se deitar com seu próprio algoz, Scherazade converte o infortúnio em salvação recorrendo ao estratagema ainda hoje escasso aos historiadores arabistas: o de seduzir, respeitar e maravilhar o seu interlocutor. Ao longo de inúmeras noites em que a morte parecia ser o seu destino, Scherazade enfeitiça a todos, negociando ao final não somente a preservação de sua vida, como também a sua condição de rainha definitiva de um mundo mais livre e historicamente justo. Ao constatar que o trabalho historiográfico é um modo sedutor de agir sobre o mundo, como sugere Scherazade, pode-se afirmar que o Sudão mahdista de Patricia Teixeira Santos é uma longa noite dentre mil e uma, que se realiza na escolha assertiva de um tema pertinente ao encantamento do leitor. Aqui, não há gênios salvadores, heróis mambembes, nem odaliscas vaporosas, mas sim a velha conhecida missão civilizadora da Europa ocidental fantasiada de fé, guerra e escravidão. Leia Mais
Todo Chávez: De Sabaneta al socialismo del siglo XXI / Eleazar D. Rangel
Introdução
Todo Chávez se trata da publicação de uma entrevista de Hugo Chávez com o jornalista Eleazar Díaz Rangel. A obra parte das origens de Chávez até seu alçamento à presidência da república – e as suas dificuldades para montar um governo, o qual se distanciava das correntes políticas tradicionais do país. A entrevista se inicia com perguntas sobre a infância e adolescência de Chávez, um rapaz aficionado por baseball, até a seu contato com o Exército e, posteriormente, com a sua vida política.
A obra se divide em diferentes partes. Nas três primeiras, estão contidas a entrevista. Nesta parte, Chávez é indagado e discorre sobre sua infância, ingresso no Exército e a articulação do golpe de 4 de Fevereiro de 1992. Na segunda, há uma abordagem sobre o seu governo e a ideologia bolivariana. Na terceira parte, temos uma análise do golpe de abril de 2002. Leia Mais
Política. El código Chávez – Descifrando la intervención de los Estados Unidos en Venezuela / Eva Golinger
A autora
A doutora Eva Golinger é advogada, especialista em leis internacionais sobre direitos humanos e imigração. Desde 2003, a autora investiga, analisa e escreve sobre a intervenção dos EUA na Venezuela, recorrendo ao Freedom of Information Act (FOIA) para obter informações sobre os esforços do governo norte-americano para minar os movimentos políticos progressistas da América Latina.
Golinger vive em Caracas, Venezuela, desde 2005. Em 2009, venceu o Prêmio Internacional de Jornalismo no México. “La Novia de Venezuela” como é chamada pelo presidente Hugo Chávez, é autora de vários títulos de sucesso como: “The Chávez Code: Cracking US Intervention in Venezuela” (2006 Olive Branch Press), “Bush vs. Chávez: Washington’s War on Venezuela” (2007, Monthly Review Press), “The Empire’s Web: Encyclopedia of Interventionism and Subversion”, “La Mirada del Imperio sobre el 4F: Los Documentos Desclasificados de Washington sobre la rebelión militar del 4 de febrero de 1992” and “La Agresión Permanente: USAID, NED y CIA”. Leia Mais
História, histórias | UnB | 2013
História, histórias (Brasília, 2013-) é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB). De acesso livre e gratuito, publica semestralmente artigos, traduções, entrevistas e resenhas em português, inglês, espanhol e francês.
Sua missão é ser um canal relevante de difusão de pesquisas científicas no campo da História, no país e no exterior. O título abreviado do periódico é RHH, forma preferencial para menções em bibliografias, notas de rodapé, referências e legendas bibliográficas.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 2318-1729
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História, Literatura e literatos / Antíteses / 2013
História e ensino / Antíteses / 2013
Nesta edição, a revista disponibiliza para seus leitores um dossiê intitulado História e Ensino. Composto por sete artigos, o dossiê permite vislumbrar as problemáticas teóricas que dizem respeito ao ensino de História em amplas dimensões contemplando análises amplas acerca das políticas publicas para a área e abordagens mais específicas da construção do saber histórico em sala de aula.
Obs.: Não disponibiliza apresentação do dossiê.
[DR]Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823) | José Murilo de Carvalho e Lucia Maria Bastos Pereira das Neves
O recém-lançado Às armas, cidadãos!, organizado por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile, vem se juntar a um conjunto de importantes, ainda que escassos, trabalhos de edição crítica de documentos sobre a independência do Brasil, que resultaram em coletâneas, antologias e coleções de textos fundamentais da época. Tal conjunto a que me refiro é composto tanto pela organização de documentos produzidos pelos órgãos oficiais (das Cortes de Lisboa às juntas governativas provinciais e câmaras municipais, passando pelo reinado de D. João VI e a regência de D. Pedro no Rio de Janeiro), quanto por séries de periódicos e obras reunidas de personalidades envolvidas diretamente no processo de constitucionalização do reino luso- americano e sua subsequente emancipação política. Alguns desses títulos, sobretudo aqueles dedicados a documentos de caráter oficial, foram concebidos no âmbito das comemorações do centenário e sesquicentenário da independência do Brasil, a exemplos da obra Documentos para a História da Independência, publicado pela Biblioteca Nacional em 1923, e dos volumes de As Câmaras Municipais e a Independência e As Juntas Governativas e a Independência, ambos publicados pelo Arquivo Nacional em 1973.
As edições críticas e reuniões de fac-símiles publicadas nos últimos anos destacam-se por acompanharem a urgência da promoção de obras que estimulem o debate historiográfico em torno dos temas da construção do Estado e da nação, assim como do surgimento da imprensa e da gestação da opinião pública no Brasil. Nesse sentido, sobressaem as publicações fac-similadas do Correio Braziliense, coordenada por Alberto Dines (2001), do Revérbero Constitucional Fluminense, organizada por Marcello e Cybelle de Ipanema (2005), d’O Patriota, organizada por Lorelai Kury (2007), bem como a reunião da obra de Cipriano Barata, Sentinela da Liberdade e outros escritos, realizada por Marco Morel (2008). Ainda sobre os periódicos, vale lembrar de uma outra leva de edições críticas ensaiada nos anos quarenta pela editora Zelio Valverde; dentre suas publicações destacam-se as organizações do Tamoyo, por Caio Prado Jr. (1944) e da Malagueta, por Helio Vianna (1945).
Pode-se dizer que Às armas, cidadãos!, – aguardado pelos historiadores dedicados ao tema da independência, desde a divulgação do projeto por seus organizadores nos seminários do CEO/PRONEX – segue a tendência acima esboçada. Embora o livro se restrinja aos panfletos manuscritos – um total de 32, “sem dúvida amostra pequena dos papelinhos que circularam na época” (p.22), admitem os autores no texto de apresentação – não deixa de ser uma iniciativa importante frente a um cenário editorial que pouco investe nesse tipo de publicação. Provavelmente, as editoras entendem que os custos de produção e distribuição não sejam rentáveis para o mercado editorial brasileiro, comprometendo, portanto, o alcance de projetos voltados às obras de referência. Em Às armas cidadãos!, a timidez na seleção dos panfletos, não incluindo no volume os impressos que circularam à época em maior quantidade e com número de páginas bem superior aos “papelinhos” manuscritos, deve ser salientada não em detrimento do trabalho realizado – claro, de altíssimo nível e cujo recorte é bem justificado pelos autores, como veremos mais à frente –, mas pelo fato de os panfletos impressos da independência serem ainda de difícil acesso para historiadores de várias partes do país e também estrangeiros.
Assim, deve ser sublinhado que as historiografias a respeito das independências ibero americanas, incluindo evidentemente o Brasil, passam por uma profunda revisão de seus marcos estritamente nacionais concebendo a realidade dos antigos impérios ibéricos em suas múltiplas identidades, inseridas numa mesma unidade conjuntural revolucionária internacional e em íntima relação com contextos políticos e intelectuais diversificados e em interação entre si. Tal perspectiva tem uma consequência de mão dupla. Se por um lado a independência do Brasil tem sido abordada menos em função de sua suposta excepcionalidade em relação aos demais movimentos políticos do período, por outro lado, o interesse pelos desdobramentos históricos em seus diversos quadrantes regionais motivam perspectivas comparativas e visões de conjunto que ampliam a demanda por acesso às fontes primárias e produção de obras de referência.
Uma boa parte dos panfletos impressos remanescentes, assim como ocorre com os manuscritos selecionados em Às armas cidadãos!, também são originários da Bahia, do Rio de Janeiro e de Portugal. Não obstante, há registros de panfletos publicados em outros lugares onde existiram tipografias no período, como em Pernambuco e na Cisplatina. Quanto aos da Bahia e do Rio de Janeiro, estes se encontram em maior volume no acervo da Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional e, ao que consta, não foram microfilmados ou digitalizados, como no caso dos periódicos da época, já disponíveis, não totalmente, mas em quantidade razoável, para consulta no site da instituição. Os panfletos impressos chamam a atenção por suas formas variadas: cartas, catecismos políticos, diálogos, discursos, manifestos, memórias, projetos, relatos, orações, entre outros. Alguns já foram incluídos em O Debate político no processo da Independência, organizado por Raymundo Faoro em 1972, e outros podem ser encontrados disponíveis em formato PDF nos sites do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e da Biblioteca Nacional de Portugal. Frente a um panorama acanhado, e por não encontrar nenhuma referência explícita no livro de que o projeto de publicação dos panfletos terá continuidade, não poderia deixar de manifestar o incentivo aos organizadores de Às armas, cidadãos! a persistirem com o projeto de publicação dos panfletos da independência estendendo a pesquisa aos impressos e completando, assim, uma lacuna deixada neste volume.
Passadas essas observações iniciais dediquemo-nos à análise do conteúdo do livro propriamente dito. Os 32 panfletos manuscritos transcritos e analisados pelos organizadores no texto de “Introdução” pertencem ao acervo do Arquivo Histórico do Itamaraty sob a classificação Coleções Especiais, “Documentos do Ministério anterior a 1822”, Independência, capitania da Bahia, capitania do Rio de Janeiro e diversos (documentos avulsos) (p.21-22). Os documentos reunidos foram numerados e divididos em quatro partes correspondentes aos locais onde foram produzidos: Bahia, Rio de Janeiro, Portugal e os de origem não identificada. Quanto ao critério de seleção dos manuscritos, os organizadores reafirmam a opção pelos papéis que “contivessem crítica ou sátira política, tivessem ou não sido colados em paredes, postes ou nos muros das igrejas” (p.23), portanto, excluindo os escritos oficiais encontrados nas pastas do arquivo, à exceção de uma proclamação, a qual comentaremos abaixo. Uma “Nota editorial” informa que todos os documentos foram transcritos atualizando-se a ortografia, mantendo-se a pontuação original da época e corrigindo-se a grafia quando necessário. Além do mais, foram inseridas notas explicativas sobre indivíduos, datas, expressões e termos típicos citados nos panfletos, que auxiliam na compreensão da conjuntura e do vocabulário político do período. Por fim, um outro suporte à leitura dos documentos selecionados é a excelente “Cronologia” incluída no final do livro, na qual os eventos ocorridos na Bahia e no Rio de Janeiro ganham maior destaque.
Cada transcrição é antecedida da reprodução do original, de modo a manter no texto “o sabor de época” (p.33) e, assim, convidar o leitor a dimensionar como tais panfletos eram expostos e debatidos pelo público. A esse respeito, destaco dois panfletos da Bahia. O primeiro, de número 14, intitulado Meu Amigo, apesar de não mencionar o ano de redação, possui um registro informando o dia em que foi arrancado, 14 de fevereiro. Tal registro é um sinal explícito de que muitos “folhetos” eram afixados em locais públicos das cidades a fim de dar ampla divulgação aos projetos e ideias surgidas no bojo dos debates sobre a constitucionalização do reino o que, fatalmente, os tornavam alvos do controle dos órgãos de governos locais que temiam as agitações populares. Aqui, percebemos como os espaços de sociabilidades eram invadidos por práticas representativas de uma nova ordem política.
O outro panfleto, de número 12, é o único de caráter oficial incluído no livro, como já dito. Os organizadores justificam sua incorporação pelo fato de ele ter sido divulgado à moda dos bandos do Antigo Regime. Trata-se de uma proclamação redigida em 1823 pelo brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, governador das armas da Bahia que, ao constatar a “Província revolucionada”, declarava seu estado de sítio, bloqueava a capital transformando-a em “Praça de Guerra” e determinava sob seu nome todas as competências e poderes da Lei. Tudo isso era levado ao público, segundo o brigadeiro, ao “Som de Caixas pelas ruas e praças públicas” da cidade a fim de fazer chegar a notícia a todos, de modo que “ninguém possa alegar ignorância” (p.97). Neste caso, de forma aparentemente contraditória, o uso de uma forma de comunicação, como o som dos bandos, não significa pura e simplesmente a reprodução de práticas políticas típicas do Antigo Regime, mas a sujeição dessa forma às pressões exercidas pela reconfiguração da funcionalidade dos espaços públicos. Portanto, ambos os panfletos são amostras do quanto as formas de interação social e política se transformavam naquele período, sobretudo porque amplas camadas da população eram expostas ao debate público, embora o alcance dessas práticas entre os sujeitos sociais ainda necessite ser melhor investigado, possibilitando a “intervenção do indivíduo comum na condução dos destinos coletivos” (p.9), e assim permitindo que as opiniões ganhassem força.
É sob este aspecto que os organizadores de Às armas, cidadãos! justificam a publicação dos panfletos manuscritos e, ao mesmo tempo, traçam a distinção de linguagem destes em relação aos impressos. Os panfletos, sejam manuscritos ou impressos, “transformaram-se em instrumentos eficazes de promoção do debate e, mais ainda, da ampliação de seu alcance, graças à prática de leitura coletiva em voz alta” (p.9), não obstante o estilo mais simples dos folhetos manuscritos chamem a atenção. Dentre outras coisas, caracterizavam-se por motivações mais imediatas e voltadas a despertar as emoções de uma audiência motivando antipatias em relação a determinadas personalidades ou convocando a população à ação política direta. Um dos alvos prediletos dos panfletários era Tomás Vilanova Portugal, ministro de D. João VI, defensor da manutenção da Corte no Brasil e opositor radical dos revolucionários do Porto. No “Panfleto 23”, o ministro encabeçava a lista de nomes de pessoas que deviam ser presas na intenção dos eleitores do novo governo do Rio de Janeiro que circulou em 1821. E no “Panfleto 24”, num poema sem data, seu autor, “um Amante da Pátria”, recomenda ao ministro que ele fizesse chegar ao rei aquele ultimato em versos: “Assina a Constituição / Não te faças singular, / Olha que a teus vizinhos / Já se tem feito assinar. / Isto não só é bastante, / Deves deixar o Brasil, / Se não virás em breve / A sofrer desgostos mil.” (p.170).
Já os impressos, via de regra, destacam-se por desenvolver argumentos e interpretações mais complexas e buscarem, com certo grau de didatismo político, esclarecer e/ou convencer a opinião pública a se posicionar a favor ou contra determinado princípio ou projeto político em debate. A linguagem dos panfletos manuscritos é, com frequência, mais violenta e contundente, as vezes grosseira, como ocorre no “Panfleto 26”, em que o autor de um poema português relata a entrada em Lisboa, após viagem ao Brasil, de William Carr Beresford, militar britânico que comandou o exército português na luta contra os franceses e que exerceu durante a regência um grande poder. Já no título, o sarcasmo: “Obra nova intitulada entrada do careca pela barra”. E na sequência, insultos direcionados ao militar e aos brasileiros: “Tornastes a voltar filho da Puta / Do País das araras, e coqueiros / Oh mal haja os Bananas Brasileiros / Que vivo te deixaram nessa luta” (p.182). Esse tipo de afronta, em certo sentido, contrasta com a prudência com que falavam e agiam boa parte das vezes os redatores dos periódicos e panfletos impressos, em sua maioria, homens instruídos – negociantes, bacharéis, clérigos e militares. Para os organizadores, esse fato se explica em parte pela origem popular dos papéis manuscritos e pela precária liberdade de imprensa vigente à época, que proibia a veiculação de certas informações nas tipografias oficiais e particulares (p.24).
Nesse sentido, em Às armas, cidadãos! os aspectos formais que distinguem os panfletos também são representativos das assimetrias sociais existentes entre os partícipes do movimento político, pois “se os panfletos impressos da mesma época revelam intenso debate político entre letrados em torno dos grandes problemas do momento, os manuscritos sobressaem pela revelação das ruas na ‘guerra literária’ da constitucionalização e da independência” (p.31). Ao sublinhar tais diferenças o livro abre um diálogo com as pesquisas dedicadas à amplitude social dos envolvidos nesse processo histórico, o que é bastante louvável. Por outro lado, a não inclusão dos panfletos impressos, como ressaltamos ao longo da resenha, prejudica uma visão de conjunto sobre a documentação e a amplitude de outros temas por ela suscitados. De todo modo, Às armas, cidadãos! apresenta resultados já expressivos, mas quiçá pode ser considerado ainda em desenvolvimento.
Rafael Fanni – Mestrando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), E-mail: rafaelfanni@usp.br
CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; BASILE, Marcello Otávio de Neri Campos (Orgs.). Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo / Belo Horizonte: Companhia das Letras / Editora UFMG, 2012. FANNI, Rafael. A força da opinião: panfletos manuscritos na independência do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.5, p. 199-202, jan./jun., 2013.
Historia Regional e Independencia del Uruguay. Proceso histórico y revisión crítica de sus relatos | Ana Frega
Não deixa de ser irônico que uma obra publicada por um projeto de comemoração do bicentenário da independência do Uruguai, celebrado em 2010, tenha como recorte temporal o período de oficialização da dominação luso -brasileira na região (1821) até a promulgação da constituição da República Oriental do Uruguai (1830), ponto de partida para a construção do Estado uruguaio ao longo do século XIX. Entretanto, é justamente essa leitura nacionalista e anacrônica que a publicação de Historia Regional e Independencia del Uruguay. Proceso histórico y revisión crítica de sus relatos busca reavaliar.
A crise de Baiona, as suas repercussões juntistas espalhadas pela Espanha e seus domínios ultramarinos, bem como as subsequentes revoluções de ruptura dos laços coloniais têm espaço cativo na produção historiográfica ibero-americana há algumas décadas. A produção acerca da formação do Estado nacional no Uruguai, todavia, é mais problemática. A maior incidência de obras sobre a Banda Oriental é fruto da produção de intelectuais e políticos da segunda metade do século XIX até meados do século XX. Em sua maioria figuram obras decorrentes da interpretação baseada na idéia da pré-configuração estatal do Uruguai, onde a nação, para autores como Francisco Bauzá, Pablo Blanco Acevedo e Juan E. Pivel Devoto, sempre existiu e a independência apenas daria forma a uma unidade cultural, histórica e social determinada desde a época colonial. Embora essa posição, intitulada por José Carlos Chiaramonte como “mito das origens”, tenha sido refutada e debatida por historiadores, diletantes ou não, como Carlos Real de Azúa, Alberto Zum Felde e Tomás Sansón, ainda permanece influente no imaginário uruguaio.
A dominação luso-brasileira, durante o período de vigência da Província Cisplatina (1821-1828), tem ainda menor espaço na produção acadêmica. Embora, ainda pouco analisada na historiografia brasileira, há alguns anos a região faz parte da preocupação de estudiosos do período. No Uruguai os recortes apontam a atuação artiguista da década anterior como de luta por sua independência. Pois é este, justamente, o marco historiográfico de destaque nos seis capítulos da obra coordenada por Ana Frega, apontando caminhos e revisitando “verdades” do processo histórico uruguaio, argentino e brasileiro.
Contudo não é apenas no corte temporal que a obra inova na análise. Seguindo os pressupostos dos renovados estudos de história regional, o “país fronteira” (p.14) Uruguai é pensado considerando as relações com o todo, superando, dessa forma, os limites delimitados pelos antigos domínios ibéricos coloniais e pela demarcação de fronteiras estáticas e fechadas. Levando em consideração essas concepções, a obra apresenta três eixos condutores de investigação: as alternativas independentistas da região da Banda Oriental formuladas em relação aos demais projetos que vão se constituir na área; as identidades políticas e sociais formuladas em consequência desses projetos e, por fim, a participação política de distintos grupos étnicos e sociais nas guerras de independência.
Em Alianzas y proyectos independentistas en los inicios del “Estado Cisplatino”, Ana Frega apresenta e analisa um levante organizado por espanhóis peninsulares e espanhóis americanos no Rio de Janeiro, em 1821. A ação que buscava a reintegração do território da Banda Oriental à nação espanhola, segundo a autora, é conhecida pela historiografia, entretanto não é visualizada como parte das ações ocorridas em consequência da derrota do projeto artiguista. O movimento liderado por Mateo Marganiños e pelo Conde de Casa Florez conjugava grupos que haviam lutado com diferentes interesses durante a primeira década revolucionária. Todavia, nesse momento compartilhavam a recusa ao reconhecimento da ocupação luso-brasileira e a distância dos projetos centralistas de Buenos Aires. O retorno ao controle espanhol seria a única maneira de se opor aos outros movimentos de ocupação da região. Apesar de pensada e planejada a ação não foi executada.
As vicissitudes da guerra e dos distintos projetos de estado dentro da Banda Oriental são abordadas por Inés Cuadro Cawen em La crisis de los poderes locales. La construcción de una nueva estructura de poder institucional en la Provincia Oriental durante la guerra de independencia contra el imperio del Brasil. A pesquisadora se concentra na instalação do governo provincial organizado política e administrativamente em Canelones, durante a Guerra Cisplatina (1825-1828). A estruturação administrativa da Província Oriental significou, em um período de conflito armado, investimentos de altos custos aos cofres locais, gerando protestos das elites que além de perder antigos privilégios arcariam com muitos dos custos da nova política fiscal. As medidas também contrabalancearam o poder local, os vecinos e os líderes militares orientais na campanha acabaram tendo o poder suprimido em relação à Buenos Aires, medidas que foram revogadas com o “Golpe lavallejista” em 1827, porém não retornaram à antiga forma, a exemplo dos cabildos que permaneceram extintos.
As negociações pelo fim do conflito são discutidas por Ana Frega no capítulo La mediación británica en la guerra entre las Provincias Unidas y el Imperio de Brasil (1826-1828). Una mirada desde Montevideo. A participação da Inglaterra nas negociações que deram fim a Guerra Cisplatina e origem a República Oriental do Uruguai é avaliada a partir dos comentários e críticas do Cônsul da Inglaterra em Montevidéu (1824-1829) Thomas S. Hood, de comerciantes britânicos instalados na região e dos periódicos britânicos de circulação no Prata e/ou na Europa. A autora argumenta que a independência do Uruguai visualizada a partir dos extremos do destino manifesto do povo oriental e, na outra ponta, da simples negociata britânica incorrem no mesmo erro: não interpretar a complicada conjuntura regional, as dinâmicas que estavam ocorrendo no território da Banda Oriental, com distintos projetos de construção estatal e as pressões econômicas de países como Inglaterra, França e EUA, sendo a independência, por conseguinte apenas “uno de los resultados posibles” (p.101). A documentação analisada demonstra essa variedade de posições, o crescimento do rechaço a brasileiros e buenairenses conforme o avanço do conflito, embora essa posição tenha se situado dentro de interesses e temores variados. Mesmo que a independência plena tenha se tornado um objetivo comum a esses grupos, ela mesma era entendida de formas diferentes por aqueles que a defendiam.
A mesma historiadora é autora de La “campaña militar” de las Misiones en una perspectiva regional: lucha política, disputas territoriales y conflictos étnicos. A disputa ocorrida em um espaço fronteiriço, uma zona de diversidade cultural com vínculos familiares e associativos que ultrapassavam os limites formais, é avaliada a partir da história regional, destacando os grupos (de Corrientes, Brasil, Buenos Aires, Paraguai e a Banda Oriental) com interesse na região missioneira e os conflitos étnicos e sociais acontecidos em decorrência das beligerâncias. Além de uma complexa trama de relações e interesses, a região missioneira abrigou distintos atores nos conflitos, entre eles estão caudilhos em busca de poder na Banda Oriental, proprietários de terra sul-rio-grandenses, negros recém-libertos e/ou fugitivos, indígenas que compunham ambas as tropas, formando um mosaico social e geográfico definido mais nitidamente apenas na segunda metade do século XIX com a demarcação das fronteiras nacionais.
A questão dos limites nacionais e da dinâmica fronteiriça também é assunto de Ariadna Islas em Límites para un Estado. Notas controversiales sobre las lecturas nacionalistas de la Convención preliminar de Paz de 1828. Apoiando-se em rica documentação e na análise cartográfica a pesquisadora se posiciona contra as análises anacrônicas da construção das fronteiras do Estado uruguaio e reconstitui o processo histórico que definiu os limites do país. A ausência da demarcação das fronteiras do novo Estado criado com a Convenção preliminar da Paz de 1828 gerou diversas interpretações e conflitos na historiografia uruguaia. O maior problema apontado se localizava na única fronteira territorial entre Império do Brasil e a República Oriental do Uruguai, cujos limites foram discutidos entre as duas nações de 1851 até 1973. Geralmente as discussões em torno das fronteiras produzidas pela historiografia nacionalista uruguaia apontavam a usurpação, a invasão e ocupação ilegítima do território projetado pela nação que teria na totalidade territorial um dos itens necessários para sua soberania. A questão dos limites se tornou uma ferramenta de tradição ideológica e uso político impondo noções de um território projetado e imaginário que o Estado uruguaio deveria alcançar. Entretanto, Islas aponta que na realidade, no momento da assinatura do tratado, nenhuma das partes envolvidas tinha força o suficiente para se impor nas negociações e ocupar militarmente as áreas em conflito. Dessa forma, as regiões debatidas poderiam fazer parte de quaisquer dos projetos estatais e nacionais que as reivindicassem.
A participação de políticos intelectuais na construção do imaginário nacional é o foco de María Laura Reali em La reflexión de Luis Alberto de Herrera en torno a Gran Bretaña como árbitro internacional en el proceso de independencia del Uruguay. Os escritos do político e historiador demonstram a sua profunda admiração pela Inglaterra, uma nação considerada por ele tradicional e consciente de seu passado, e nas negociações de paz um árbitro imparcial. Dessa forma, Herrera evidencia a relevância dos representantes orientais nas negociações de paz, com destaque para Juan Antonio Lavalleja (1784-1853) e a natureza da nação a ser construída. A exemplo de outros historiadores revisionistas, a influencia inglesa na região em termos históricos e econômicos é vista como positiva e exemplar para o Uruguai repensar sua própria experiência (p. 250).
Para finalizar, destaca-se que Historia Regional e Independencia del Uruguay. Proceso histórico y revisión crítica de sus relatos é uma das primeiras obras de fundo e com pesquisadores profissionais trabalhando em conjunto que se volta para a independência nacional do Uruguai. Mais do que textos definitivos ou revoluções teórico-metodológicas, o livro aponta caminhos e renova a atenção sobre o processo histórico que é significativo para todas as nações que compõem a região platina.
Murillo Dias Winter – Mestrando em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF – Passo Fundo/Brasil). E-mail: murillodiaswinter@hotmail.com
FREGA, Ana (coord.). Historia Regional e Independencia del Uruguay. Proceso histórico y revisión crítica de sus relatos. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2011. Resenha de: WINTER, Murillo Dias. Identidades, guerra e limites – A independência do Uruguai revisitada. Almanack, Guarulhos, n.5, p. 203-205, jan./jun., 2013.
Capítulos de história do Império | Sérgio Buarque de Holanda
Foram significativas as vezes em que Sérgio Buarque de Holanda se envolveu na revisão e ampliação de suas próprias obras. Talvez o melhor exemplo seja o caso da revisão de Monções, originalmente publicada em 1945, e que, durante toda a década de 1960, passou por um processo de ampliação e reescrita. Na primeira metade da década o autor reescreveu alguns dos seus capítulos, publicados em 1964 na Revista de História (USP), e posteriormente acrescentados como apêndice da terceira edição da obra (Editora Brasiliense, 1990). Em 1965, Sérgio emplacou um projeto de pesquisa na FAPESP, e com o apoio ampliou a pesquisa de arquivos, voltando três vezes à Cuiabá, realizando uma visita aos arquivos portugueses (Arquivo Histórico Ultramarino e Biblioteca Nacional de Lisboa), além de uma ida aventuresca ao Paraguai no fusca creme com sua esposa, Maria Amélia, ao volante. Os manuscritos produzidos com esta pesquisa são conhecidos graças ao empenho de seu aluno, o professor hoje aposentado da USP José Sebastião Witter, que cuidou da edição e, a partir dos originais, publicou a obra O extremo oeste (Editora Brasiliense, 1986). Tudo leva a crer que Sérgio Buarque pretendia não apenas reescrever Monções aumentando consideravelmente o aparato crítico e documental da obra, mas duplicá-la, dividindo o trabalho em dois assuntos: o das monções de exploração e das monções de povoamento.
O caso descrito nas linhas acima se assemelha ao mais recente, da publicação de Capítulos de História do Império, obra póstuma de Sérgio Buarque de Holanda publicada em 2010; é uma edição organizada por Fernando Novais a partir de um manuscrito original de mais ou menos 150 páginas. Apesar das poucas informações disponíveis sobre a origem e o tratamento do manuscrito, sabemos que se trata de trabalho inconcluso ao qual Sérgio Buarque se dedicou praticamente até a sua morte, em abril de 1982, tanto que em entrevista a Richard Graham, publicada em fevereiro do mesmo ano na revista The Hispanic American Historical Review (v.62, n.1), o historiador brasileiro afirma estar naquele momento empenhado na escrita do que seria seu mais importante livro.
A intenção de Sérgio Buarque de Holanda era a revisão, reestruturação e ampliação do livro Do Império à República, volume publicado em 1972 como desfecho do tomo O Brasil Monárquico da série História Geral da Civilização Brasileira (Difel), empreitada que coordenava desde o início dos anos 1960. Assim como gostaria de fazer com Monções, o desejo do autor, manifestado na mesma entrevista a Graham, era reorganizar o material ampliado em dois volumes. Segundo o que indica Evaldo Cabral de Mello no “Posfácio” da obra, o primeiro volume, O pássaro e a sombra “deveria chegar até a crise política de 1868”, já o segundo, A fronda pretoriana “até o golpe militar que implantou a República entre nós” (p.225).
Do Império à República é estruturado em cinco livros de quatro capítulos cada (com exceção do segundo livro que possui três capítulos). O primeiro livro, Crise no Regime se fixa na crise político-partidária de 1868, quando D. Pedro II agiu segundo as prerrogativas do Poder Moderador substituindo, sem a convocação de eleições gerais, o gabinete liberal de Zacarias de Goes e Vasconcelos pelo conservador do visconde de Itaboraí (tratados no dois primeiro capítulo, Crise no regime). Este evento, no qual o poder pessoal do monarca aparece em estado puro – elemento caracterizado no segundo capítulo, Um general na política – enseja uma retrospecção que ilumina a dinâmica político-partidária do segundo reinado a partir dos últimos gabinetes de conciliação em fins da década de 1850, que permeia todo o livro segundo, O pássaro e a sombra, até uma volta aos eventos de 1868, aberta pelo terceiro e último capítulo do livro, O fim do segundo quinquênio liberal, e desenvolvida ao longo do livro terceiro, Reformas e paliativos. Este livro avança no tempo abordando o contexto de aprovação da lei do Ventre Livre, em 1871, até o conflituoso contexto de discussões sobre reformas constitucionais e eleitorais que marcaram o final da década de 1870 e início da década seguinte, que culminaram com a Lei Saraiva, de 1881. As circunstâncias de sua aprovação são, por sua vez, esmiuçadas no livro quarto, Da “constituinte constituída” à lei saraiva, que progride até a solidificação do movimento republicano e de um clima de insatisfação geral nas províncias. Por fim, o livro quinto, A caminho da República, parte de uma breve análise sobre a incapacidade de adaptação do regime às novas bases sociais, ligadas à dinâmica da produção cafeeira (no primeiro capítulo, Resistência às reformas), até a solidificação do exército como protagonista (no terceiro capítulo, A fronda pretoriana), passando pela análise da emergência das novas bases ideológicas republicanas (no segundo capítulo, Da maçonaria ao positivismo).
Como se pode observar por meio do esquema acima, Da Monarquia à República é executado sobre um plano que combina a exposição cronológica dos eventos com incursões retrospectivas em camadas. Este movimento de fluxo e refluxo temporal se ancora em certos eventos, momentos decisivos, que expõe os impasses e fraturas que estarão na base da derrocada do regime. Grosso modo, cada um dos livros se liga a um momento chave que se sobrepõe em camadas e reproduz a sistemática descrita. Também deve ser notada a coesão do conjunto, já que as partes são meticulosamente subordinadas a um eixo argumentativo principal, que se apresenta na forma de impasse: a missão imperial de garantir a unidade dos territórios nacionais não só sedimenta, mais intensifica o abismo entre o Estado central e os grupos sociais por ele representados. O resultado é um processo crescente de concentração de poder discricionário, que tem na proclamação da República o seu ponto culminante.
Seguindo esta perspectiva, seus marcos principais são os “estelionatos” (como define em Do Império à República) políticos cometidos em 1868, com a já mencionada ascensão do gabinete conservador, o de 1881, das reformas eleitorais da Lei Saraiva, e, finalmente, o próprio golpe militar de 1889 que pôs fim à Monarquia. Estes momentos são decisivos pois, neles, o autoritarismo aparece de maneira clamorosa, expondo a falta de respaldo social e político; a fratura crescente entre Estado e sociedade na formação da nação. Em outras palavras, Do Império à República pode ser entendido como a história do paradoxo da fundação de uma nação por meio da governança autoritária, sem base social orgânica. Fica evidente que, como grande historiador, Sérgio Buarque falava do passado ao mesmo tempo em que se posicionava no presente já que o período de escrita da obra corresponde aos anos de chumbo da Ditadura Militar brasileira, entre finais da década de 1960 e início da década de 1970.
Mas se Do Império à República é um trabalho de história tão benfeito, cumpre inevitavelmente a pergunta: porque então dedicar quase obsessivamente os últimos anos de vida a alterá-lo? Uma forma de começar a entender esta questão é analisar brevemente os pontos do livro que seriam modificados ou ampliados com o manuscrito Capítulos de História do Império. Infelizmente, como alertou Evaldo Cabral de Mello no “Posfácio” (p.228), o texto que ora conhecemos corresponde apenas ao trecho reescrito dos dois primeiros livros de Do Império à República, que vai da Conciliação à articulação do gabinete conservador de 1868; ou seja, considerando a concepção dos dois volumes, deve-se notar que Sérgio Buarque ainda trabalhava no primeiro, O pássaro e a sombra.
É possível que os recortes temporais do O pássaro e a sombra e A fronda pretoriana fossem mais permeáveis do que sugeriu Evaldo Cabral. O primeiro poderia evoluir para além de 1868 e o segundo poderia regredir em relação a este marco. Um dos indicativos disso é que A fronda pretoriana, seguindo hipótese do próprio Sérgio Buarque no capítulo homônimo de Do Império à República (o terceiro do livro quinto), deveria abranger a história do fortalecimento político do exército desde a Guerra do Paraguai, regredindo ao longo da década de 1860. Em sua versão conhecida, a hipótese do autor não é adequadamente desenvolvida, pois é contida pelos limites do capítulo que trata da derrocada do Império desde a Lei Saraiva de 1881, que havia sido tema do livro anterior. Outro indicativo é o fato de que a Guerra do Paraguai praticamente não aparece em Capítulos de História do Império, apesar de ter sido abordada com minúcias justamente na região englobada pela reestruturação das obras, entre o final do livro primeiro e segundo de Do Império a República. É provável, portanto, que os capítulos em que trata da formação do exército, tanto em sua base ideológica quanto material, fossem agrupados e reelaborados, compondo, A fronda pretoriana.
Outra modificação temporal que se pode inferir a partir dos manuscritos é o prolongamento do O pássaro e a sombra até o evento da Independência, tema do primeiro capítulo, “Para uma pré-história do império do Brasil”. Trata-se de uma recuperação do que o autor desenvolveu em A herança colonial – sua desagregação, texto de abertura do segundo tomo, referente ao Brasil Monárquico, publicado em 1961, em sua História Geral da Civilização Brasileira, pois sua preocupação é caracterizar o estranho conluio entre ideias liberais e nossas estruturas coloniais (“o que em realidade poderia acontecer era que as ideias e fraseados de importação passariam a ser reinterpretados no contexto das estruturas herdadas”, p.22). Neste terreno, segundo o autor, as tendências emancipatórias e federalistas encontravam solo fértil para se desenvolver, já que a herança da atividade colonizadora era a própria desagregação política, social e econômica dos territórios.
Nesse mesmo esteio, o que pode ser diretamente associado ao texto de 1961 é o esforço de Sérgio Buarque em desnaturalizar a emergência da nação brasileira como um evento inevitável. Pelo contrário, e de forma até mais clara que em Herança Colonial, o autor procura restituir aos eventos ocorridos sua condição de mera possibilidade em um complexo quadro, coisa que fica evidente a partir da página 28, quando se esmiúçam detalhes das discussões dos representantes das províncias brasileiras nas Cortes. Evidentemente, esse exercício abre as portas para se compreender que a unificação nacional foi o resultado de uma luta travada durante todo o período monárquico e o principal condicionante de sua dinâmica política.
A nação e os partidos e Entre a liga e o progresso, capítulos segundo e terceiro, continuam o argumento, caracterizando a dinâmica político-partidária do Império nas décadas de 1840 a 1860 e tendo como marco referencial um momento chave. O primeiro é o da prática política da Conciliação, que foi estabelecida a partir do gabinete presidido por Carneiro Leão (1853-56), como um modo de reintegração no poder central das oligarquias regionais e haviam sido marginalizadas no período de 1848-53, momento de predomínio saquarema. O segundo momento, é o da Liga Progressista, que narra o equilíbrio instável dos partidos entre 1864 e 1868. Pode-se dizer sobre essa dinâmica partidária que o liberalismo de fachada associado ao conservadorismo da mentalidade colonial resistente contribuía para tornar a fronteira entre os partidos liberal e conservador altamente permeável. Ao contrário do que se pode esperar, esta fronteira não foi melhor definida entre os partidos ao longo do Império, não apenas devido a tendências que defendiam a simples extinção do sistema partidário (p.39-43), mas sobretudo devido ao quadro problemático causado pela “supressão do tráfico transoceânico” (p.53), que impunha a manutenção de certa coesão política sob o risco de descontrole social.
Emerge, neste contexto, o poder pessoal do monarca D. Pedro II como elemento fundamental do sistema, pois sua atuação garante a ordem e, assim, a própria existência do Estado. Este é o tema desenvolvido no quarto capítulo, Por graça de Deus, que talvez seja dos textos mais bem escritos de toda a carreira do autor. Nele, a reconstituição do modus operandi do monarca se apresenta de forma vívida, tal como na melhor ficção realista do século XIX, se misturando de forma natural com a precisão do recurso a uma ampla gama de fontes históricas. Esse grau avançado de lapidamento do texto deve-se ao fato de que estas páginas coincidem justamente com certas passagens mais ou menos reescritas dos primeiros capítulos de Do Império à República.
Na descrição de Sérgio Buarque de Holanda, as características da personalidade sóbria e reservada do monarca operam como uma espécie de metonímia da trajetória política da nação, a representação mais perfeita da associação entre arcaico e moderno que caracteriza a visão do autor. O trecho em que fala do esforço de D. Pedro em evitar qualquer opinião pessoal, sustentando uma imagem institucional (que aparece em sua correspondência com Gobineau), tem a sua correspondência em Do Império à República (p.16-17 da 5o edição, de 1997). Nas páginas seguintes deste volume são abordadas sua impessoalidade frente aos ministros, assim como a pretensa soberania que conferia aos seus gabinetes, trechos que reaparecem muito alterados nas páginas 120-123, dos originais de Capítulos. O parágrafo final deste que é o capítulo 2 do livro 1 de sua obra de 1972 que corresponde à sequencia linear das passagens descritas acima aparece em Capítulos apenas entre as páginas 141 e 142. Por condensar a essência de sua visão sobre D. Pedro II, segue, abaixo a sua transcrição:
De fato os poderes imperiais que tentavam dissimular-se funcionaram muitas vezes como catalizadores de uma resistência surda às mudanças na estrutura tradicional, quando as mudanças importavam mais do que uma estabilidade estéril e mentirosa. Era pela supressão dos abusos que comportava a praxe eleitoral e talvez preferisse o sufrágio universal, mas reputava-a “ainda por ora impraticável”, conforme se pode ler na Fé de ofício, mas as medidas que tiveram nesse sentido sua a aprovação acabaram por afastar drasticamente das urnas a quase totalidade da população ativa do Império e transformaram o direito de votar em um privilégio. Queria a extinção do trabalho escravo, mas achava que toda a prudência era pouca nesse assunto e, estivesse no país em maio de 1888, não teria sido assinada a “lei áurea”, como ele próprio chegou a admitir. Queria que o país tivesse sempre em boa ordem as finanças e a moeda sólida, por lhe parecerem exigidas por uma elementar prudência, ainda quando a realização de tais desejos pudesse perturbar a promoção do desenvolvimento material, da instrução pública, da imigração, que também queria. Ora, a meticulosa cautela deixa de ser virtude no momento em que passa a ser estorvo: lastro demais para pouca vela.
Agindo na superfície como um rei típico de uma monarquia constitucional parlamentar, que “reina mas não governa” (p.167), D. Pedro II manobrava com sutileza as estruturas reminiscentes absolutistas, sendo de fato o soberano condutor do pacto de unificação nacional. O desenvolvimento deste tema em continuidade com o capítulo que trata da personalidade de D. Pedro II é o último da primeira parte de Capítulos de história do Império, Crise no Regime. Nele é abordada a crise política de 1868, quando D. Pedro II lança mão do Poder Moderador e empossa o gabinete conservador do visconde de Itaboraí, desvelando justamente a concentração de poder de fato do monarca. Este capítulo também possui correspondência direta com o capítulo 1 livro 1, de mesmo título, Do Império à República e nele podem ser encontrados trechos reescritos especialmente das duas ou três primeiras páginas concentrados nas p.146 e p.152-154 de Capítulos.
Os últimos dois capítulos do livro, desprovidos de título e que compõem a segunda parte, possuem redação menos acabada do que os outros além de voltarem a alguns assuntos já tratados; inclusive com algumas repetições. A primeira parte do capítulo I ainda se relaciona com os dois anteriores, analisando a forma sutil com que o monarca exercia o seu poder pessoal em contraste com os modelos franceses e ingleses de governo (p.163-169). Nas páginas seguintes há um salto para uma breve análise dos efeitos potencializados nas províncias da instabilidade no governo central. O segundo capítulo volta a analisar a sistemática de rotação dos partidos e substituição “em massa de empregados públicos”. O que há de comum entre esses temas é que eles compõem o quadro explicativo do “estelionato” político que colocou os saquaremas no poder em setembro de 1848, frente às notícias das revoltas na Europa ocorridas naquele ano (p.184-188). Enquanto o segundo capítulo esmiúça o evento em si, o primeiro capítulo trata das circunstâncias anteriores no governo central e nas províncias. Isso significa que se trata de uma parte complementar e inacabada (ou simplesmente descartada) do capítulo 2 da primeira parte de Capítulos de História do Império; em outras palavras, trata-se ainda de partes referentes ao processo de escrita do que seria provavelmente o volume O pássaro e a sombra.
Resta retomar a pergunta feita no início deste texto. Se Do Império à República é um livro tão bem executado porque então dedicar os últimos anos de vida a reescrevê-lo? Procurando encaminhar uma resposta provisória diante do que foi dito até aqui, podem-se realizar duas considerações. A primeira é que, de fato, Capítulos de história do Império, apesar de inacabado, coincide mais ou menos com o que seria o volume O pássaro e a sombra, reescrita dos primeiros livros de Da Monarquia à República. Além disso, o plano original do livro seria prolongado conservando, em princípio, o método de execução peculiar e a linha argumentativa. O pássaro e a sombra e A fronda pretoriana comporiam uma espécie de história do autoritarismo brasileiro no século XIX, ou, em outras palavras, uma história do abismo entre estado e sociedade na formação da nação. Enquanto Do Império à República abrange as últimas duas décadas do Império em dois ou três momentos decisivos, a obra inacabada abrangeria desde a independência até a República incluindo mais momentos em que o autoritarismo é exposto visceralmente: a outorga da constituição em 1824, a ascensão do gabinete conservador de 1848, a Conciliação, A Liga Progressista, a crise de 1868 (no O pássaro e a Sombra), e O Ventre Livre, a Lei Saraiva de 1881, e finalmente a eclosão da república em 1889.
A segunda consideração diz respeito ao fato já observado por Fernando Novais na Nota Introdutória aos Capítulos e também por Izabel Marson em resenha da mesma obra pulicada na revista Estudos Avançados em 2011 (v.25, n.71). O tema tratado em Capítulos de história do Império guarda notável semelhança com o mote central de sua obra de estreia, Raízes do Brasil: o impasse gerado pelo recurso ao autoritarismo de matriz absolutista, traço fundamental da herança colonial, como ferramenta da unificação nacional. Recurso este que só tornava mais evidente e endêmico o descompasso entre Estado recémformado e os grupos sociais no anseio de representação. O estudo sistemático das semelhanças e diferenças entre as obras ultrapassam o limite e o formato do presente texto e serão tratados em ensaio a ser publicado em breve.
Na explicação para o afã de revisão que gerou os manuscritos que hoje conhecemos como Capítulos de história do Império se esconde um desejo de deixar um legado definitivo, produzindo um elo entre as duas extremidades de sua própria obra, da sua obra de estreia à sua obra derradeira. O fato de não ter conseguido concluir sua missão é emblemático, pois, Sérgio Buarque de Holanda também havia revisado radicalmente Raízes do Brasil até que ganhasse a feição que conhecemos, e mesmo assim, até o final da sua vida, demonstrava grande descontentamento com o seu ensaio. Em sua visão de historiador maduro, seu livro de estreia era demasiado ensaístico, reducionista e pouco fundamentado, justamente os defeitos opostos às qualidades do seu último e derradeiro texto.
Thiago Lima Nicodemo – Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES – Vitória / Brasil) e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB – USP). E-mail: tnicodemo@gmail.com
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de história do Império. Organização de Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: NICODEMO, Thiago Lima. A obra derradeira e inacabada de Sérgio Buarque de Holanda. Almanack, Guarulhos, n.5, p. 206-211, jan./jun., 2013.
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Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764) | Patrícia Ferreira dos Santos
Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana, é fruto da tese de mestrado de Patrícia Ferreira dos Santos, defendida em 2009 na Universidade de São Paulo e orientada por Carlos de Almeida Prado Bacellar. Este trabalho se enquadra num amplo movimento de renovação dos estudos sobre a Igreja no mundo português da época moderna e mais especificamente sobre a Igreja no Brasil colônia. A partir de um uso renovado e muitas vezes inédito – já que as fontes, apesar de por vezes de difícil acesso, existem – da documentação, a autora contribui para uma melhor compreensão das lógicas de funcionamento das instituições episcopais e das conflitantes relações com os representantes do poder civil, e com os próprios membros da igreja mineira do período em que governou o seu primeiro bispo, d. fr. Manuel da Cruz (1748-1764).
O livro está dividido em cinco capítulos, tradicionalmente organizados de modo a partir dos temas mais amplos aos mais específicos, dando assim ao leitor informações cada vez mais precisas sobre a problemática em pauta. O capítulo 1, “Jogos de forças: atores e instituições”, sobrevoa o processo de construção das relações Estado e Igreja em Portugal, desde a formação do padroado régio a partir do contexto da reconquista e do modo como a coroa pouco a pouco fortaleceu uma doutrina jurídica enquanto fundamento de sua atuação – e das ordens militares – nas conquistas ultramarinas, até o contexto das tensões geradas pelas reformas postas à obra durante a segunda metade do século XVIII, passando pelo importante e complexo jogo criado pelas reformas tridentinas. O segundo capítulo, “Imbricando forças”, estuda a formação da rede eclesiástica na região mineradora e sua paulatina implementação em paralelo, ou melhor, de modo imbricado, com a implantação da estrutura administrativa civil no que se tornaria a capitania das Minas e o bispado de Mariana. Servem aqui de exemplo – graças à abundância das fontes, como a autora explica em sua introdução – os casos de duas freguesias da região, a de Nossa Senhora da Conceição das Catas Altas e a de Nossa Senhora da Boa Viagem de Curral del-Rei. O terceiro capítulo, “O poder da palavra”, concentra-se na atuação do primeiro bispo de Mariana, d. fr. Manuel da Cruz, no que toca a implementação do aparato administrativo da nova diocese e a atividade de controle (das almas e dos corpos) do prelado, sobretudo por meio das cartas pastorais, importante instrumento de governo. O quarto e o quinto capítulos, “Contendas” e “Batalhas de jurisdição”, se debruçam finalmente sobre os vários episódios de tensão surgidos durante o episcopado de d. fr. Manuel da Cruz, e que, como dito, serve de baliza para toda a obra. Ali são descritas as contínuas trocas de acusações feitas entre o bispo, os fieis, os membros do cabido catedralício e os membros do governo civil em torno de questões de fiscalidade, jurisdição ou honra, sempre dentro da turva paisagem do padroado.
O objetivo do trabalho é contribuir para a compreensão da construção e da efetivação da autoridade episcopal no contexto específico das Minas. Movimento que na verdade resultou, como sempre aponta a autora, em amplos conflitos, não só com instituições e grupos já presentes naquela sociedade, mas inclusive com personagens surgidas apenas com a chegada do prelado, como é o caso do clero capitular. A problemática escolhida é claramente posta na página 101, ao fim da larga parte introdutória do livro, onde Patrícia Ferreira dos Santos se pergunta se a “imbricação de forças, da Igreja, do Estado, da justiça e da religião”, logrou a desejada coesão em prol da administração da capitania.
Para começar a responder a essa pergunta, o capítulo três se debruça de modo bastante original sobre a importância da palavra, ou seja, dos sermões e cartas pastorais, para a implementação do governo episcopal e assim também, de um maior controle do que fazia e pensava a população local. São destaques, a preocupação com o comportamento do clero e com a catequese dos escravos do bispado, questões que revelam a especificidade colonial daquela região, mas também algo da personalidade do prelado. Assim, é também neste capítulo que a autora apresenta a personagem principal e fio condutor do livro, o bispo d. fr. Manuel da Cruz.
É, contudo, nos capítulos seguintes, que se aborda a questão do problema dos inúmeros atritos criados ou sofridos pelo bispo: com seus párocos, sobre a questão da cobrança indevida de emolumentos; com os membros do cabido, pelo controle da nomeação a cargos e por questões de prestígio, contenda que se transformou em grave afrontamento; e, finalmente, com o governo civil, em questões de jurisdição sobre irmandades e sobre os próprios clérigos do bispado, em tempos em que o regalismo se firmava sem nenhuma ambiguidade no mundo português por meio da política pombalina em relação à Igreja.
Enfim, quais seriam as razões profundas de tanta discórdia? A autora, nas suas “considerações finais”, aponta o modo como o bem-estar dos povos e a defesa dos vassalos eram frequentemente mencionados pelos litigantes como fundamentos para as acusações portadas contra o oponente do momento, mas que esses párocos gananciosos, cabido escandaloso, bispo zeloso da sua posição e agentes civis em busca de alargamento de jurisdições, na verdade, não faziam mais do que reafirmar, nessas contendas, as vexações que eles próprios faziam sofrer à população. Ferreira dos Santos aponta assim para uma análise bastante restrita do contexto estudado, mas que ela própria mostra, em outras partes do seu texto, ser mais ampla. Ao descrever os vários litígios que d. fr. Manuel da Cruz esteve implicado, ela chama a atenção para as indeterminações das leis do Reino, causa de muitos conflitos de jurisdição (p. 227). Mais adiante, relembra o quanto a questão do padroado, devido a uma “certa indefinição de limites, papéis e campos de jurisdição” acabou pautando as relações entre a Coroa e a Igreja pela desconfiança (p. 255). Mas é ainda um pouco mais atrás que ela parece chegar mais perto de uma explicação, ao afirmar que “As batalhas de jurisdição […] criaram impasses que forçaram iniciativas de reformulação dos procedimentos e da atuação dos cargos e sua normatização, pela coroa” (p. 221). Tratava-se, assim, de um sistema político e também legal (ou seja: o sistema político e legal específico do Antigo Regime) que se pautava por uma multiplicidade de fontes normativas, e que estava habituado a tratar da administração do seu próprio corpo de modo bastante casuísta. Pode-se avançar a análise para uma tradicional interpretação do ‘dividir para melhor reinar’, mas não me parece que esta seja a melhor solução.
Poderiam ter sido úteis à autora algumas análises sociológicas da história política e religiosa da Europa da época moderna, como, por exemplo, aquelas vinculadas aos conceitos de disciplinamento social e de confessionalização, cunhados por autores alemães dos anos 1980 (ver a síntese que deles fez Federico Palomo, A Contra- reforma em Portugal. 1540-1700, 2006), mas na verdade já existentes, de certo modo, nas leituras da História das religiões de autores como Jean Delumeau (O pecado e o medo, 2003). Do mesmo modo, a “imbricação” entre governo civil e religioso, entre Estado e Igreja, numa sociedade de Antigo Regime que a autora aqui estuda, poderia ter sido melhor compreendida com uma leitura mais ampla dos trabalhos de José Pedro Paiva (alguns deles mencionados por Ferreira dos Santos), como a sua contribuição ao livro História Religiosa de Portugal, de 2000, ou o livro Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777), de 2006. Nestes trabalhos o autor mostra o quanto os poderes civil e eclesiástico estavam interconectados em Portugal. Por um lado, este maior diálogo com a bibliografia poderia ampliar as perspectivas de análise de um governo episcopal tão bem documentado e, por outro, os conflitos estudados seriam ótimas ocasiões para se por à prova, ao nível regional das Minas – ou “micro” das paróquias de Catas Altas e de Boa Viagem –, os conceitos e as análises desenvolvidas pelos autores acima citados.
Bruno Feitler – Professor no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: feitler@unifesp.br
SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). São Paulo: Editora HUCITEC/ FAPESP, 2010. Resenha de: FEITLER, Bruno. Poder e jurisdição sob o episcopado de D. fr. Manuel da Cruz (1748-1764). Almanack, Guarulhos, n.5, p. 212-214, jan./jun., 2013.
IHS | CIECS/CONICET/UNC | 2013
IHS. Antiguos Jesuitas en Iberoamérica (Córdoba, 2013-) es una revista científica digital con arbitraje de periodicidad anual y de publicación continua, editada por el Centro de Investigaciones y Estudios sobre Cultura y Sociedad (CIECS) y el Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), asociado a la Universidad Nacional de Córdoba (UNC).
Se inició en 2013 como instrumento de difusión de las investigaciones del programa del CIECS: Antiguos Jesuitas en Iberoamérica, abarcando diversos aspectos historiográficos relacionados con los jesuitas y su accionar en América entre 1549 (Llegada de los primeros jesuitas a Iberoamérica) cuando arribaron al continente y 1814 (Restauración de la Compañía de Jesús) cuando luego de la expulsión se produce la reincorporación de la Orden al mundo católico.
Es una publicación sostenida y financiada por el CIECS/CONICET y la UNC, usando la plataforma de esta última institución para su acceso en línea, proporcionando un acceso abierto a su contenido.
El objetivo principal de la Revista es publicar contribuciones originales e inéditas resultantes de investigaciones acerca de la relación de los jesuitas con el mundo iberoamericano en todas sus disciplinas. Se incluyen trabajos que se focalicen en cuestiones epistemológicas o metodológicas, como en el tratamiento de problemáticas específicas surgidas del resultado de investigaciones concluidas o en proceso de elaboración, que efectúen aportes originales a la disciplina o campo y que sean aceptadas por el Comité Editorial de la revista.
Dadas las características de los campos disciplinarios que son la especialidad de la publicación, se pondrá particular énfasis en la ponderación de aquellos textos que además de fundarse en investigaciones rigurosas, aporten reflexiones críticas, interpretaciones originales o planteos innovadores, y estén comprometidos con el estudio historiográfico en sus distintas vertientes como la antropología, biografía, arte y arquitectura, arqueología, filosofía, teología, etc., contribuyendo a construir y consolidar sus bases epistemológicas y ampliando el campo del conocimiento. Todas las contribuciones deben adecuarse a las normas editoriales vigentes en la revista.
Periodicidade anual.
Acesso livre.
ISSN 2314-3908
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Bilros | UECE | 2013
A Revista Bilros – História(s), Sociedade(s) e Cultura(s) (Itaperi, 2013-) é a Revista Eletrônica dos discentes da Graduação e do Mestrado de História da Universidade Estadual do Ceará – UECE, Campus do Itaperi – Fortaleza-CE. A Revista vincula-se ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em História e Culturas (DÍCTIS – UECE). Trata-se de um periódico científico quadrimestral (a partir de 2017), que tem como objetivo debater e divulgar a produção historiográfica e de áreas afins realizadas por historiadores, pesquisadores, professores, especialistas, mestres, doutores, pós-graduandos e graduandos. O surgimento desta Revista está relacionado a uma inquietação do corpo discente do Curso de História e do Mestrado Acadêmico em História em tornar pública suas produções, travar contato com colegas profissionais de outros estados e suas experiências, além de instituir um canal aberto, dinâmico e contemporâneo para o trânsito de ideias e experiências relacionadas à história e suas práticas.
A Revista está aberta a contribuições de historiadores, pesquisadores, professores, especialistas, mestres, doutores, pós-graduandos e graduandos de outras Universidades, assim como de professores da Educação Básica, com o intuito de proporcionar o diálogo entre as experiências de pesquisador e de professor.
A Revista possui sete seções, são elas: artigos, resenhas de livros, relato de experiências de ensino, documentos comentados, entrevistas, traduções e outras histórias.
Periodicidade quadrimestral.
Acesso livre.
História e Culturas | UECE | 2013
Historiadores, Passado e Presente: espaços de atuação / Aedos / 2013
Na décima segunda edição da revista Aedos decidimos por tratar como dossiê temático a questão do ofício e áreas de atuação do historiador. O dossiê temático intitulado “Historiadores, Passado e Presente: espaços de atuação” foi inspirado pela candente discussão em meio a nossa área sobre como nos posicionarmos frente a sociedade enquanto classe. Mais do que a definição política frente a nossos concidadãos o tema sugere uma revisão sobre nossas interações com aqueles considerados “fora do meio”. Este tema propicia discussões de legitimidade do passado e o envolvimento do historiador no processo de tal legitimação; acerca do estatuto cientifico, ou se poderia ser assim definido; relações entre historiadores e outros profissionais; inserções profissionais e formas de atuação.
Apesar das diversas possibilidades e do calor das discussões em âmbito nacional sobre a profissionalização da profissão de historiador acreditávamos serem poucos os pesquisadores brasileiros dedicando tempo a tais questões de maneira mais específica. Ficamos muito felizes em encontrarmo-nos enganados. Temos nesta edição cinco artigos para o dossiê. Todos os temas supra mencionados sendo abordados pelos trabalhos de Caroline Silveira Bauer em seu artigo “O papel dos historiadores nas garantias dos direitos à memória, à verdade e à justiça”, de Julierme Morais e Rodrigo Francisco Dias com “Reflexões em torno do “ofício do historiador” e sua legitimidade epistemológica: o que Veyne, White, Certeau, Gay e Chartier têm a nos dizer?”, Daniel Marcilio no artigo intitulado “O Historiador e o Jornalista: A História imediata entre o ofício historiográfico e a atividade jornalística”, Lucas Giehl Molina em seu relato de experiência em meio digital através de “Jogos digitais como espaço de atuação do historiador: o caso Avant-Garde”, e Eduardo Roberto Jordão Knack com seu artigo “História, ensino e pesquisa em museus: uma experiência no Museu Histórico Regional (MHR)”.
Em nossa seção de entrevista um de nossos editores, Rafael Bassi, entrevistou o historiador norte-americano James Green. Tratando não só sobre seu mais recente livro “Apesar de Vocês: a Oposição à Ditadura Militar brasileira nos EUA”, mas também sobre sua perspectiva em relação às políticas brasileiras atuais que tratam, ou deixam de tratar apropriadamente, sobre memórias e pesquisas da ditadura. Em uma entrevista que mistura questões sobre a ditadura civil-militar no Brasil e a atuação do historiador Rafael Bassi e James Green inserem-se perfeitamente entre o tema do dossiê deste número e o tema do dossiê do número seguinte, que está em processo editorial e traz o tema da ditadura incluído no tema “Democracias Ameaçadas”.
Na seção de artigos sobre assuntos diversos temos autores tratando de questões gerais acerca da história do Brasil; Fagner dos Santos e suas “Histórias possíveis ou possibilidades da História: derivando Koselleck, Skinner e Tilly para uma análise do pensamento político no Brasil do início do século XX”; Alessandro Batistella com “O Trabalhismo Getulista-Reformista do Antigo PTB e o ‘Novo Trabalhismo’ do PDT: Continuidades e Descontinuidades”; Bárbara Virgínia Groff da Silva tratando de “Políticas de Saúde no Brasil: elaboração, institucionalização e implantação do Sistema Único de Saúde entre as décadas de 1980 e 1990”; Mateus Filippa Meireles em seu artigo “Entre o subdesenvolvimento e o ‘Milagre’: considerações sobre o capitalismo brasileiro em Ruy Mauro Marini e Francisco de Oliveira”; e Luiz Felipe Cezar Mundim versando sobre a “ESG e campo cultural no Brasil – Apontamentos para o estudo da relação entre os Militares e o Estado Brasileiro (1930-1964)”.
Ainda tratando de questões da história brasileira outros autores presentes nesta edição tratam de maneira mais específica, seja de temas ou de regiões brasileiras, para abordar os temas que lhes instigaram à pesquisa, tais como Ana Claudia Martins dos Santos em “Os constantes receios de uma invasão: ameaça e estratégia de defesa da província de Mato Grosso (1850-1864)”; Diego Speggiorin Devincenzi com “Entre a ciência e a política: o caso da Faculdade de Medicina de Porto Alegre (1898-1932)”; Anderson Marcelo Schmitt que escreve sobre “O Despacho Para o Uruguai de Bens Legalistas Durante a Guerra Civil Rio-Grandense (1835-1845)”; e Fabiano Quadros Ruckert em suas “Leituras da História do Saneamento na cidade de São Leopoldo, RS”.
Cabe destacar a presença de um artigo que versa sobre questões que caberiam bem no dossiê de nosso número seguinte mas que por bem tornou-se presente já nesta edição; Larissa Silva Nascimento aponta como tratar com fontes incomuns aos historiadores, mas que demonstram importante reflexão e demandam atenção de pesquisadores, em “A Detalhista Resistência em Maus, de Art Spiegelman, e Persépolis, de Marjane Satrapi”. Por fim temos nesta edição também um artigo versando sobre a presença de uma das mais famosas imagens femininas da história nas obras de um dos mais polêmicos tragediógrafos no que tange o tratamento de mulheres, Larissa de Oliveira Soares aponta as visões euridipianas (chamadas de misógenas mas também de feministas) sobre Helena, a mais bela das mulheres em seu artigo “Rostos de Helena na literatura Euripidiana”.
Por fim dispomos de duas resenhas neste número. Mateus Dagios, “Redescobrindo o Teatro de Dionísio: novas possibilidades para o teatro antigo”
Avalia o livro editado por Peter Wilson (ed.), “The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies. Oxford Studies in Ancient Documents. Oxford: Oxford University Press, 2007”; e Carolina Corbellini Rovaris em “Outros olhares acerca da Revolução Francesa” apresenta sua resenha de “HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007”.
Neste número temos também o prazer de apresentar uma revista recém reavaliada pelo CAPES-QUALIS e digna de portar uma qualificação B2. Para tanto foi preciso o trabalho árduo de diversas gestões de alunos da Pós-Graduação de História da UFRGS compondo o conselho editorial. Temos ainda de notar o apoio inestimável de nosso conselho consultivo que certamente nos ajudou a manter não só uma boa qualificação perante o QUALIS mas uma boa qualidade a ser apresentada a nossos leitores.
Até o próximo número.
Conselho editorial
Gestão 2012-2013
Conselho Editorial. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v.5, n.12, jan / jul, 2013. Acessar publicação original [DR]
História e Educação / Ágora / 2013
Percebe-se nos últimos anos um importante crescimento do campo da História da Educação, Entretanto, isto tem ocorrido quase sempre capitaneado pelos pesquisadores de Programa de Pós-Graduação em Educação. No Espírito Santo, embora ainda de forma tímida, se visualiza ações voltadas para o estudo da História da Educação executadas a partir do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. Algumas delas é verdade, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma universidade.
Assim, em 2004, numa parceria entre os professores Sebastião Pimentel Franco, do Programa de Pós-Graduação em História e a professora Regina Helena Silva Simões, do Programa de Pós-Graduação em Educação, ambos da Universidade Federal do Espírito Santo, foi publicado a obra História da educação no Espírito Santo: catálogo de fontes, cujo objetivo era contribuir para a ampliação e o fortalecimento necessários à consolidação de pesquisas historiográficas sobre a educação no Espírito Santo.
Em 2006, novamente o Programa de Pós-Graduação em História da UFES, se associa ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES, para realizarem um evento interdisciplinar, intitulado I Seminário Interdisciplinar em História e Educação.
Nesse mesmo ano, esses dois Programas de Pós-Graduação reúnem textos de pesquisadores em História da Educação, na publicação Ensino de História, seus sujeitos e suas práticas, na “tentativa de dialogar a educação e a história, quer seja pela vertente da formação e da prática docentes, quer seja no campo das pesquisas históricas e da educação”, publicação essa que em 2009 foi reeditada.
Ainda em 2006, o Programa de Pós-Graduação em História da UFES, publicou a obra História e educação: em busca da interdisciplinaridade, volume 7 da Coleção Rumos da História. Nessa publicação, objetivou-se estabelecer “um núcleo interdisciplinar composto por historiadores, estudiosos da educação, esperando esse diálogo! Pudesse produzir frutos significativos, fomentando o debate e a crítica, contribuindo ainda mais para o avanço de tais estudos.
Em 2007, como fruto do I Seminário Interdisciplinar em História e Educação, surgiu a publicação História e Educação: territórios em convergência, reunindo textos de professores e pesquisadores da História e da Educação de instituições de ensino do Espírito Santo e de outros estados brasileiros.
Mais uma vez, os Programas de Pós-Graduação da UFES, em História e em Educação se associaram e produziram a publicação História da Educação no Espírito Santo: vestígios de uma construção. Na apresentação da obra, a professora Regina Helena Silva Simões diz que essa publicação foi “concebida em dupla perspectiva, ambas relevantes no tratamento do conhecimento produzido: o trabalho de mapeamento da trajetória da pesquisa sobre a História da Educação no Espírito Santo, cm preocupações de historicizar um processo que não foi homogêneo […] repletos de silêncios e com muitos vestígios ainda negligenciados e que passaram despercebidos em uma construção histórica mais linear e formalizada”.
Novamente os Programas de Pós-Graduação da UFES, em História e em Educação, se unem, para apresentar uma nova publicação intitulada A Educação no Espírito Santo: entre o século XIX e XX, a partir de textos reunidos de professores e alunos dos dois Programas de Pós-Graduação.
Os artigos estão organizados a partir de três perspectivas: a instrução no período imperial, a educação na fase republicana e por fim, optou-se pelo o uso de possibilidades metodológicas para o ensino da história.
Edvaldo Jorge Mendes, em seu texto, A educação como chave do progresso e os desafios para a consolidação na Província do Espírito Santo (1834-1873), objetiva refletir o ensino público no Espírito Santo do século XIX, no contexto histórico da cosmovisão dos Estados Nacionais da Europa e da formação do Brasil independente em uma época caracterizada, principalmente, pela confiança na educação como chave do progresso das nações, e sob o auspício desse referencial, as iniciativas dos presidentes da província do Espírito Santo para levar o país ao nível de civilização imaginado via escolarização do povo, esbarravam em obstáculos de difícil remoção em face de implicação de outros fatores condicionantes de natureza econômica, política, social e cultural da província e do país.
Em A religião católica na história da educação capixaba do século XIX: uma análise do regimento das escolas de primeiras letras de 1871, Cleonara Maria Schwartz e Dirce Nazaré Andrade Ferreira, evidenciam a presença da religiosidade católica na educação elementar pública do século XIX. Como fonte de análise foram utilizados a Constituição de 1824, a Lei Januário da Cunha Barbosa e o Regimento Interno de 1871, da Província do Espírito Santo.
Karen Calegari Santos Campos, no texto Só os que nenhuma habilitação tenham que as vezes para nada servem, se quererão a isto prestar: representações oficiais sobre professores capixabas no século XIX, discute as representações sobre a docência na Província do Espírito Santo, entre as décadas de 1850 e 1860, produzidas e postas a circular por meio do discurso dos presidentes de Província.
Em seu texto O Colégio Pedro II não era aqui: o olhar imperial e outras falas sobre a escolarização e a docência no Espírito Santo nas décadas de 1850 e 1860, as autoras Regina Helena Silva Simões, Rosianny Campos Berto e Tatiana Borel, investigam o exercício da docência na Província do Espírito Santo, nas décadas de 1850 e 1860, buscando compreender o processo de escolarização e da docência durante a vigência dos regulamentos da instrução pública, datados de 1848 e 1862.
A educação na Primeira República e o texto apresentado por Elezeare Lima de Assis e Sebastião Pimentel Franco, intitulado Considerações sobre o Grupo Escolar Gomes Cardim no contexto da educação primária no Espírito Santo na Primeira República, onde tecem considerações sobre o Grupo Escolar Gomes Cardim inaugurado na cidade de Vitória, capital do Espírito Santo em 1908 e sua inserção no projeto reformista educacional exercitado no Espírito Santo da Primeira República.
Cleonara Maria Schwartz e Eliete Aparecida Locatelli Vago, em seu artigo O ensino primário na década de 1960: considerações acerca do Brasil, do Espírito Santo e de Santa Teresa, tece considerações acerca de mudanças sócio-políticas e econômicas ocorridas na década de 1960, a fim de compreender tensões que perpassaram o ensino primário em âmbito nacional, estadual e municipal. Para isso, dialogam com autores que discorreram sobre essa temática e fazendo uso de legislações, relatórios e mensagens do governo do estado do Espírito Santo da década de 1960, atas de reuniões pedagógicas das escolas primárias teresenses e atas de reuniões da Câmara Municipal de Santa Teresa (ES).
Gustavo Henrique Araújo Forde e Luiz Antonio Gomes Pinto, no texto Uso da microhistória na historiografia dos movimentos sociais na/da educação brasileira, afirmam que “As pesquisas sobre história da educação são, em muitos casos, caracterizadas pela existência de narrativas que ocultam – macro-narrativas – ou desvelam – micro-narrativas – os movimentos sociais. Ao longo das últimas décadas, observamos o crescimento de estudos que procuram ampliar os espaços de participação desses movimentos. As teorias, que vão do marxismo ao pós-estruturalismo tentam, cada um a seu modo, elaborar narrativas enfocando aspectos afeitos a esses esquemas explicativos. Assim, os movimentos negro e indígena, também veem a possibilidade de elaborar narrativas históricas através da construção de signos que produzem identidades”.
Miriã Lúcia Luiz, em História ensinada para crianças: análises a partir de proposições de Marc Bloch, busca realizar a partir do proposto por Bloch, uma análise das práticas de professores no ensino de história nas séries iniciais.
Cleonara Maria Schwartz
Regina Helena Silva Simões
Sebastião Pimentel Franco
Os organizadores
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Escritos sobre a história do Piauí – pesquisas e abordagens contemporâneas / Vozes Pretérito & Devir / 2013
Vozes: fenômeno plural e mimético que ecoa como um sopro no ouvido, trazendo o susto, a dúvida, a indagação. Um resoar inquietante que nos leva a re-pensar o fazer. Por outro lado, as vozes também podem surgir como facho de luz lançado por um farol distante em meio à escuridão do mar longínquo e soturno, ou se apresentar como um brilho resplandecente que ilumina o caminho pelo qual iremos trilhar em nossa incursão intelectual com empenho e avidez, assim como faz o ogro faminto em busca de sua caça [1].
Pretérito: estilhaço da dádiva de Chronos: o tempo. Dimensão onde se situa o que já se foi, o que se pode sondar, o cogito, e o que jamais se saberá. Caverna incógnita, gélida e sombria, na qual dormitam espectros de outrora, que, desdenhosamente, despertam para nos assombrar no presente [2]. Mas é nesta extensão / redução de tempo que montamos o ‘‘maquinário’’, tecemos e desmanchamos utopias. É nesta dimensão irregular, onde se edifica a morada do historiador, sua oficina ou seu tear [3].
Devir: metamorfose incessante que subtrai o regular, o estável, aquilo que era, que se dizia “certo”. Força que traciona as engrenagens das curvas das horas e dissipa a natureza torpe da inércia no tempo. A mesma força que escava caminhos para outras possibilidades, remodelando e diluindo as certezas, pois, nos campos e canteiros da história [4], se lança dúvida a quem se diz deter a verdade e presta-se tributo àquele que sempre se encontra à sua procura, num incessante ato de perscrutar o “vir a ser”.
Vozes, Pretérito e Devir três elementos que se apresentam forjados pela áurea da subjetividade, categorias com as quais o historiador se depara como entidades inerentes ao seu oficio. Por tal fato, pareceu-nos sugestivo fazer desta tríade o nome que chancela a primeira revista eletrônica de história filiada à Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Por meio deste periódico, de operacionalidade semestral, almejamos dar feição a um veículo interativo que venha oportunizar a possibilidade de divulgação e aferir visibilidade às produções acadêmicas e suas implicações com a realidade social. Nosso público alvo está centrado em professores, estudantes e demais pesquisadores de áreas das ciências humanas que tenham interesse em pesquisar e / ou publicar produções de seus respectivos estudos e trabalhos no campo da história local, regional ou (inter)nacional.
Os artigos presentes no corpo desta edição inaugural são resultados de estudos e pesquisas históricas nas mais variadas perspectivas. Todavia, ao tempo em que se propõem enquanto contribuições que constituirão a feitura deste exemplar, suas relevâncias vão para além de escritos que estabelecem o conhecimento sobre uma determinada abordagem historiográfica, pois eles também estarão territorializando a abertura de um novo espaço de interação intelectual. Um domínio voltado à produção do saber histórico em diálogo com suas propriedades epistemológicas e com outras áreas do conhecimento.
Em sua composição, a revista se encontra dividida por seções. Através das mesmas, procuramos contemplar as seguintes proposições de análise: dossiê temático, artigos, seção especial, resenha e monografias: resumos expandidos. Elegemos “Escritos sobre a história do Piauí – pesquisas e abordagens contemporâneas” como proposta inicial de discussão temática. A partir deste dossiê, iremos nos deparar com as mais diversas pesquisas e discussões incorporadas a distintos objetos de estudos situados na dimensão local. A seção de artigos se oferece como espaço para a publicação de temáticas livres, ampliando assim a inclusão de discussões concernentes ao conteúdo proposto para composição deste periódico.
Ainda contamos com uma seção especial, que estará aberta a produções que possam adicionar materiais de relevância para a reflexão do pensamento na história. A ela também irá se destinar outros trabalhos, como traduções, publicação de fontes, entrevistas, e artigos de outras áreas que possam subsidiar um diálogo com a história. A seção de resenhas será dedicada à análise e comentários de obras contemporâneas e de relevância para os estudos históricos. A última seção é dedicada a resumos expandidos de trabalhos monográficos, por meio desta seção objetivamos abrir espaço para que os estudantes recém-graduados possam divulgar o resultado de suas pesquisas acadêmicas.
Muito do que confrontamos ao itinerar pelas edificações desta revista, é fruto do apoio e trabalho coletivos. Por esse fato, aproveitamos tal momento para ressaltar a inestimável colaboração daqueles que se propuseram a contribuir com opiniões, avaliações e diálogos acerca das diretrizes pelas quais poderíamos trilhar através deste periódico. Assim sendo, agradecemos aos professores que aceitaram prontamente o convite para compor os conselhos editorial e consultivo. Também gostaríamos de agradecer a todos aqueles que contribuíram direta e indiretamente para a efetivação deste projeto, em especial, citamos o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Piauí – FAPEPI – pela liberação do espaço on-line para armazenar o conteúdo digital, à Pro- Reitoria de Extensão e Assuntos Estudantis – PREX / UESPI – pelo apoio institucional neste empreendimento.
Do mesmo modo, agradecemos às pessoas de Gustavo Lima, pelo fundamental auxílio na configuração do espaço on-line, Jairon James, pelo auxílio no desenvolvimento da logomarca e layout da revista, Domingos Cavalcante Carvalho Jr., pela catalogação e encaminhamento de registro do periódico junto à biblioteca nacional. Agradecemos também a Dennison de Oliveira, pelas conversas iniciais e sugestões para a estrutura composicional da revista, e à Méri Frotscher – eterna gratidão – pelas consultas, orientações, e inspiração do modelo de trabalho que aqui foi impresso (muito deste projeto se deve a você).
Por fim, fica o convite à toda comunidade acadêmica, e geral, para apreciar nossa edição inaugural. Esperamos que esta seja a primeira de muitas edições a serem produzidas no exercício de elaboração do conhecimento histórico. Encerramos esta apresentação colocando em tela a simplória e clássica indagação de Michel de Certeau, a qual nos remete à meditação sobre o papel do historiador em seu exercício intelectual. Afinal, “o que fabrica o historiador quando ‘faz história’?” [5].
Notas
1. BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002.
2. ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
3. ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades. Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, Nº19, Rio de Janeiro, 2009.
4. BOUTIER, Jean & JULIA, Dominique (orgs). Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
5. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
Francisco Chagas O. Atanásio
02 de Janeiro de 2013.
ATANÁSIO, Francisco Chagas O. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.1, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]
Democracias Ameaçadas: ditadura, gênero, e ensino de história / Aedos / 2013
Neste décimo terceiro número da revista AEDOS três peculiaridades merecem atenção desde o início deste editorial; 1- Não apresentamos uma entrevista, algo que ocorreu em todos os números que não centraram-se em apresentação dos anais de eventos; 2- No entanto a falta de entrevista decorre da promoção do primeiro evento organizado pelos editores da revista em consonância com o tema do dossiê temático deste número; 3- Recebemos mais de setenta artigos e resenhas para apreciação dos avaliadores, um recorde nestes treze número de nossa revista.
Nossa felicidade em sermos prestigiados com tantos pesquisadores interessados em publicar na AEDOS nos deixou com um desafio. Decidimos que manteríamos parte destes textos para o número atual e os textos não avaliados então seriam avaliados para o décimo quarto número, que virá no início de 2014.
O dossiê temático intitulado “Democracias Ameaçadas”, inspirado na proximidade dos 50 anos do golpe militar que levou à Ditadura Civil-Militar no Brasil, tinha o intuito de permitir o debate abrangente sobre qualquer situação de exceção em que a democracia se encontrasse ameaçada. Os temas dos diversos artigos submetidos a esta seção estavam centrados nos diversos aspectos de memória e resistência nas ditaduras do Cone Sul. Janaina Vedoin Lopes e Glaucia Vieira Ramos Konrad abrem o dossiê com seu artigo “Arquivos da Repressão e Leis de Acesso à Informação: Os Casos Brasileiro e Argentino na Construção do Direito a Memória e a Verdade”; Carolina Sinhorelli apresenta em seu artigo “Situação crítica: proposições de Frederico Morais nos anos 1960 e 1970“ um debate sobre a arte, a crítica de arte e seus meandros com a Ditadura Civil-Militar brasileira; Patricia da Costa Machado enfatiza o tema da justiça em seu artigo “Transições pactuadas e transições por ruptura: a manutenção do legado autoritário no Brasil e sua influência no processo de justiça transicional”; Mauro Eustáquio Costa Teixeira em seu artigo “A democracia fardada: imaginário político e negação do dissenso durante a transição brasileira (1979-1988)” trata do papel das Forças Armadas na transição à democracia desde a revogação dos Atos Institucionais, e ainda debate a anistia relacionada às violências perpetradas no período; Tiago Francisco Monteiro de certo modo aprofunda o mesmo debate tratando das divisões políticas no cerne das Forças Armadas em “As propostas de defesa da democracia apresentadas pelas facções castrenses do Exército na Nova República do Brasil (1985-89)”; Dayane Guarnieri centra seu trabalho na análise do Jornal do Brasil e as interpretações dadas ao regime de exceção em suas páginas com seu artigo “Ideias políticas em torno das finalidades democráticas do regime de exceção entre (1964-1968) no Jornal do Brasil”; fechando esta ampla seção de dossiê temático Cristina Scheibe Wolff apresenta o tema de gênero e ditadura militar em “Eu só queria embalar meu filho. Gênero e maternidade no discurso dos movimentos de resistência contra as ditaduras no Cone Sul, América do Sul”.
Com estes temas presentes o conselho editorial da AEDOS organizou o evento “Ditadura, Gênero e Ensino de História”. Este é o motivo do título desta edição que traz o tema do dossiê e em seu subtítulo o tema do evento inspirado pelos artigos enviados para o dossiê. O evento ocorreu entre os dias 18, 19 e 20 de Novembro de 2013 contando com mesas compostas de apresentações de artigos e de depoimentos com membros da Comissão da Verdade do estado de São Paulo Rubens Paiva e da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. O lançamento do livro “Da Guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós luta armada no Brasil (1975-1980)” abriu tal evento e o pré-lançamento deste número da revista AEDOS, com a divulgação dos artigos aceitos para compor o dossiê temático, e o lançamento do livro “Cone Sul em tempos de Ditadura: Reflexões e debates sobre a História recente” fecharam os debates do evento.
Os artigos para a seção de artigos livres apresentam temas sobre justiça medieval, leituras historiográficas e cinematográficas sobre a Idade Média, imagética assíria, o fórum romano de Augusto, historiografia acerca dos estudos dos movimentos sociais no início do século XX no Rio de Janeiro, estudos sobre reis espartanos embasados em Focault, gênero e História da Arte, História da educação no Brasil, Comunistas Brasileiros e o dia de ação de graças nos EUA. Isto apresenta não apenas a diversidade de temas mas de pesquisadores advindos de diversas partes do país para se encontrarem em um debate acadêmico nas páginas digitais da AEDOS. Esta diversidade de temas dentro da História em nossas páginas exige um contato amplo com doutores de inúmeras instituições para a possibilidade de uma avaliação adequada de cada um destes temas. A Revista AEDOS só tem a agradecer por esta variedade pois seus editores crescem com o contato com os autores e avaliadores e a revista cresce com a qualificação e amplitude de pesquisadores envolvidos nos trabalhos do processo editorial que permitem a publicação deste periódico.
Com este número encerra-se a participação de nossa gestão. Como de praxe um novo concelho editorial se forma dentre os alunos do PPG-Hist da UFRGS para administrar a editoração deste periódico. Desejamos uma ótima gestão para os editores vindouros e para os autores a serem agraciados com a relação avaliador-editor-autor que o processo editorial proporciona.
Conselho editorial
Gestão 2012-2013
Conselho Editorial. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v.5, n.13, ago / dez, 2013. Acessar publicação original [DR]
Vozes Pretérito & Devir | UESPI | 2013
Vozes, Pretérito & Devir (Teresina, 2013-) – Revista Eletrônica de História filiada à Universidade Estadual do Piauí – alimenta a pretensão de se evidenciar enquanto uma ferramenta de divulgação das pesquisas vinculadas à abordagem histórica. Propõe-se fazer deste, um espaço de diálogo intelectual relacionado aos estudos acadêmicos imanentes no campo historiográfico.
Através deste periódico, almejamos dar feitura a um veículo interativo que venha oportunizar a possibilidade de divulgação e aferir visibilidade às produções intelectuais e suas implicações com a realidade social.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
Mídia e Política / Albuquerque: Revista de História / 2013
Toda história é presente e aos vivos ela pertence. Diversos historiadores disseram a mesma coisa com outras palavras, em tempos diversos e de diferenciadas maneiras. O importante, contudo, é consolidar a idéia de que o objeto de estudo da história é o homem, o seu tempo e as suas construções.
A revista Albuquerque, em sua nona edição, está viva e presente. A cada número que vem à luz, amadurece e solidifica a sua proposta original de divulgar estudos inovadores que revigoram a área de conhecimento da história, enfatizando temáticas regionais. Mas, como representação da produção histórica viva e presente no ambiente acadêmico contemporâneo, a revista assume também a forma apropriada de um caleidoscópio de temas e de abordagens balizadas sempre pelo critério de qualidade científica.
Dessa forma, em sua primeira parte estão publicados artigos completos e de diversas e interessantes abordagens: Impactos sobre o desenvolvimento regional decorrentes do Assentamento Itamarati, Ponta Porã (MS): 2001 -2010, de Maria de Fátima Lessa Bellé, Gilberto Luiz Alves e Celso Correia de Souza; Nacionalismo, antifascismo e internacionalismo nas Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936 -1939) de Jorge C. Fernández; Do Tejo ao Rio das Mortes: sobre fazer-se “homem bom” na longínqua Vila de São João Del Rei. Séculos XVIII e XIX de Tarcisio Greggio e Relações de trabalho e industrialização recente na periferia de Vitor Wagner Neto de Oliveira.
Na segunda parte, a revista Albuquerque, com o Dossiê Mídia e Política, apresenta um painel significativo e oportuno, tendo como eixo a imprensa brasileira que ainda reflete os seus dilemas históricos na sua difícil convivência e articulação com outras esferas de poder, com as incertezas da crise de paradigmas do nosso século e mudanças sociais, econômicas e tecnológicas vertiginosas. De fato, debruçar sobre o passado para buscar a compreensão e a explicação do nosso mundo, do nosso tempo e dos processos históricos que os produziram, é a especial e principal responsabilidade dos historiadores, iniciantes e veteranos aqui representados vivos e presentes.
O Caderno Especial dedicado a divulgar documentos interessantes para a história regional, nesta edição, acompanha a temática dos trabalhos do Dossiê Mídia e Política, reproduzindo um artigo do jornal A Tribuna de Corumbá, de 1943. O autor, Lobivar de Matos, falecido prematuramente aos trinta e três anos de idade, foi um expoente da poesia moderna da língua portuguesa, apenas reconhecido recentemente por pesquisadores da literatura regional. Naquela oportunidade, Lobivar de Matos homenageou a figura do cidadão Pedro de Medeiros, também poeta, líder popular e corumbaense proeminente.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.5, n.9, 2013. Acessar publicação original [DR]
Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique | Nuno Domingos
Começo pelo autor, pouco conhecido no meio acadêmico brasileiro. Nuno Domingos possui uma trajetória que demonstra uma curiosidade intelectual diversificada. Licenciado e mestre em sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desenvolveu importantes pesquisas a respeito das políticas sociais do Estado Novo Português. Sua dissertação de mestrado sobre a Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade foi um marco nas pesquisas a respeito da relação entre Estado e sociedade nos estudos do período salazarista. Atualmente, no pós-doutorado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, desenvolve pesquisa na área da antropologia da alimentação sobre a produção e os usos sociais do vinho português.
Apesar da pluralidade temática, é possível traçar uma linha teórico/ metodológica que perpassa suas investigações. A sociologia e a antropologia histórica são referências assíduas nos textos de Nuno Domingos, assim como o estudo de práticas culturais com o desenvolvimento de investigações que abarquem temáticas sobre as práticas corporais e as culturas populares. São exatamente dentro desse escopo que suas pesquisas a respeito das práticas desportivas, em Portugal e em Moçambique, podem ser inseridas, assim como o livro Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique.
Publicado em abril de 2012, Futebol e colonialismo é o resultado do doutorado defendido pelo autor em antropologia social na School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres, com a tese Football in Colonial Lourenço Marques, Bodily Practices and Social Rituals. A mudança do título da tese em relação ao do livro provavelmente estão relacionadas à dificuldade em localizar espacialmente Lourenço Marques – atual Maputo, capital de Moçambique – e o diminuto número de pesquisas sobre cultura popular numa perspectiva histórica, especialmente para espaços urbanos em África. No entanto, essa transformação produziu um descompasso entre nome e conteúdo. Efetivamente, o recorte espacial da pesquisa centra-se na cidade de Lourenço Marques e apenas nela. Ou seja, um leitor desprevenido que resolva ler o livro com o intuito de compreender numa perspectiva nacional acerca do futebol em Moçambique, certamente não será contemplado.
Algo semelhante se encontra na mudança do subtítulo de “social rituals” para “cultura popular”. Mais uma vez a transformação do enunciado faz com que ocorra um descompasso em relação ao seu conteúdo. Efetivamente, Nuno Domingos não aborda o futebol através de um olhar baseado num arcabouço teórico da “cultura popular”. Em determinados momentos suas preocupações estão diretamente relacionadas com a prática do esporte pelos habitantes do subúrbio de Lourenço Marques, local conhecido como a “cidade de caniço”,[1] o processo de circulação das práticas desportivas entre o caniço e o cimento, as transformações dessas práticas provocadas por esse processo ou os mecanismos de poder elaborados para controlar o futebol desenvolvido nas áreas negras da cidade. Porém, não acredito que estes tópicos, tão importantes para as pesquisas que trabalham com o conceito de cultura popular, sejam a preocupação central do livro. Portanto, o título do livro não condiz completamente com o seu teor.
Passo, então, para o interior de Futebol e Colonialismo. Primeiramente uma análise da própria estrutura do livro. A partir dela será possível perceber algumas das escolhas do autor e como, apesar dos problemas listados anteriormente, a obra é um exemplo de pesquisa que mescla com maestria um rico arcabouço teórico com uma minuciosa pesquisa empírica.
Dividido em doze capítulos, cada um deles com diversos subtítulos (excetuando-se o décimo segundo que é uma conclusão da obra), acrescido de um prefácio do antropólogo Harry G. West, a leitura de Futebol e Colonialismo vai se tornando mais e mais prazerosa com o avançar dos capítulos. Esta sensação pode ser explicada pela escolha de manter uma estrutura típica de teses de doutorado para a publicação. Apesar de não ficar explicito, os três primeiros capítulos são puramente teóricos. Sua função aqui é evidente: é uma apresentação das bases acadêmicos de onde parte Nuno Domingos. Para ser mais exato, no primeiro capítulo (“Da etnografia do futebol suburbano em Lourenço Marques, por José Craveirinha, a uma ciência das obras”) o autor nos oferece as diferentes dimensões do problema que pretende explorar. Para dar o pontapé inicial na investigação, Nuno Domingos utiliza-se do que chamou de uma “etnografia dos subúrbios laurentino” produzida pelo poeta e jornalista moçambicano José Craveirinha, em dois textos publicados em 1955 no jornal O Brado Africano. Neles o futebol aparecia como tema central. A intenção de Craveirinha era a de descrever o choque cultural entre um esporte inventado por europeus e a reapropriação dos jogadores suburbanos africanos. O humor e o improviso, segundo o poeta, seriam características intrínsecas desse jogo futebolístico da periferia, e a valorização desses aspectos estava relacionada à contra argumentação combativa das “imagens do africano enquanto ser incivilizado, grosseiro e instintivo, forte, mas pouco inteligente” (p.22).
Desse encontro nem um pouco sereno e harmonioso, outras questões fundamentais para a investigação são colocadas, como o de pensar a multiplicidade das relações entre o colonizador e o colonizado, os espaços segregados e as trocas desiguais existentes nas cidades coloniais e as práticas culturais, assim como os gestos e movimentos dos jogadores, nesses espaços como locais de reivindicação, cooperação, conflitos e formas de ver o mundo. O ineditismo de se investigar o esporte em contextos coloniais africanos é justificado por Nuno Domingos exatamente como um esforço para se entender esses processos como algo que vai além da dominação hegemônicam sobre os colonizados, sendo possível evidenciar os subordinados como agentes históricos do processo de urbanização na África oriental portuguesa.
O que designei como sendo a primeira parte do livro se encerra com o segundo e terceiro capítulos, onde é apresentado o cardápio do arcabouço teórico usado por Nuno Domingos em sua pesquisa. A seleção feita pelo autor vai de encontro a sua formação nas ciências sociais. Sinceramente, não possuo condições para uma análise da maneira como Nuno Domingos utiliza a vasta bibliografia de cunho teórico. Posso apenas salientar que consiste fundamentalmente da obra de três autores: Erving Goffman, Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Novamente, me sinto pouco a vontade para explorar os conceitos desses autores e sua utilização na obra de Nuno Domingos, porém cabe aqui listar alguns, como o de “ordem da interação” (Goffman), de “processo de desportivização” e de “padrão de jogo” (Elias) e de “habitus” (Bourdieu). Este último conceito está diretamente relacionado a uma preocupação do autor em pensar o drible (ou o improviso, para José Craveirinha) como um repertório motor que é produzido pela interação dos corpos no jogo e que se constitui como um reservatório de conhecimento. Nesse sentido, o futebol aparece como algo para além dos jogadores, ao mesmo tempo em que é “Produto de uma condição urbana, a malícia era a história feita corpo.” (p. 296). Com estes quatro grandes conceitos, temas como os da interação entre o futebol e o restante da sociedade, entre os jogadores e o público, das performances dos jogadores e dos espectadores, a construção de laços sociais, de identidades e de pertencimento, tornam-se problemas para serem explorados pelas ciências sociais.
Na segunda parte do livro, não pretendo abordar separadamente cada capítulo. Isso seria dispendioso e, a meu ver, improdutivo. Para explorar este seguimento tentarei fazer uma junção de características gerais que podem ser encontradas ao longo da obra. É exatamente dos capítulos quatro ao décimo primeiro que Nuno Domingos inicia sua análise propriamente dita do futebol e do colonialismo em Lourenço Marques. Se, na primeira parte temos um bombardeio de teoria, nesta segunda parte esta teoria ganha forma – e crítica – com a análise de um amplo corpo documental. Essa vastidão de fontes – proveniente de diferentes locais e de variada natureza, como a documentação administrativa existente Arquivo Histórico de Moçambique, no Arquivo do Conselho Provincial de Educação Física de Moçambique ou no Arquivo Histórico Ultramarino, a imprensa periódica, quase toda localizada na Biblioteca Nacional de Portugal, e um bom uso de entrevistas que realizou com personalidades do futebol moçambicano – dão a nota principal neste momento.
A soma do arcabouço teórico com a documentação produziu uma segunda parte que pode ser dividida em três tópicos: um primeiro tópico, representado pelos capítulos quatro e cinco, onde Nuno Domingos basicamente apresenta Lourenço Marques e a relação entre o Estado Novo português, a construção da cidade no espaço colonial e o racismo imbuído nos projetos de cidadania para a população africana subordinada ao poderio português e a influência dessas questões sobre o corpo no jogo de futebol. O segundo tópico, que corresponde ao momento auge da obra, vai do capítulo seis até o dez, onde o autor produz uma análise do futebol nos subúrbios de Lourenço Marques. Por último, no capítulo onze se encontra uma interpretação bastante frutífera sobre as narrativas a respeito do futebol e como esse falar sobre o esporte – e, principalmente, sobre os clubes e os jogadores – está conectado a produção de representações e noções de pertencimento.
A escolha pela elaboração de dois capítulos, no início dessa segunda parte, que possuem o claro objetivo de produzir uma apresentação da paisagem social do colonialismo português na África, as características da cidade de Lourenço Marques e as noções do Estado Novo português com relação ao esporte, possuem alguns problemas. Num nível mais abrangente, relacionado a própria elaboração da pesquisa, essa contextualização a priori corre o risco de entender o contexto como algo pré-determinado e modulante – em alguns extremos determinante – dos processos e das ações dos grupos e indivíduos que Nuno Domingo pretende estudar. No entanto, pelo menos no capítulo quatro (“Uma desportivização colonial”) o autor consegue escapar desse problema. Longe de produzir um contexto amplo sobre o colonialismo português em Moçambique com caixinhas explicativas onde as problematizações dos demais capítulos deveriam ser cuidadosamente guardadas, a explanação detalhada das características de Lourenço Marques e do sistema colonial português funcionam como ferramentas para aqueles leitores que desconhecem o tema e o espaço geográfico da pesquisa.
Infelizmente não podemos falar a mesma coisa para o capítulo seguinte (“O corpo e a cidade do Estado Novo”). Ao produzir uma análise do projeto educativo do Estado Novo para controlar e adestrar o “corpo” dos atletas que se encontravam sob escopo desse poder, Nuno Domingos deixa de se perguntar em que medida – como, de que maneira e com que intensidade – os projetos e as políticas elaboradas na metrópole foram implementadas em Moçambique. É interessante constatar que sua problematização a respeito dos múltiplos caminhos que a relação metrópole e colônia esta longe de ser simplista. Isso é evidente quando afirma que o futebol acabou por ser um interiorizador de habitus vistos como nocivos a lógica de ordenamento do corpo dos atletas defendida pelo Estado e jogadores dos subúrbios de Lourenço Marques, com seus dribles e sua malícia, incapazes de produzirem manifestações políticas abertas tiveram em seus gestos corpóreos no futebol a possibilidade de questionamento das lógicas totalizantes do Estado.
No segundo tópico dessa parte, Nuno Domingos aprofunda grandes questões em lugares pequenos. Assim, o futebol praticado nos subúrbios, as associações desportivas criadas pela população africana e as relações dessa população e das formas organizativas criadas por ela com a cidade e o Estado colonial, são destrinchados de maneira detalhada ao longo dos capítulos seis até o dez.
Devido a variedade e a riqueza de temas que vão sendo colocados e concluídos, é muito difícil selecionar o que enfocar nestes capítulos. Porém, alguns pontos chamaram minha atenção. No capítulo seis (“O futebol no subúrbio de Lourenço Marques”), por exemplo, ao estudar o processo de disseminação das práticas desportivas em Lourenço Marques, Nuno Domingos constata que, apesar da presença colonial portuguesa, a esfera de influência nos subúrbios ocorreu principalmente entre Lourenço Marques e a África do Sul, especialmente por conta da circulação de trabalhadores moçambicanos nas minas sul-africanas. Ou seja, existia uma espécie de autonomia da influência do colonialismo português, pelo menos até a década de 1930, sobre as práticas desportivas e a construção do associativismo desportivo entre os africanos viventes em Lourenço Marques (“A consolidação de redes de relações associativas locais ligadas às principais cidades sul-africanas tornar-se-ia a causa maior da institucionalização da sua prática.”, p. 121).
No capítulo sete (“Uma ordem da interação suburbana”) as trocas simbólicas que se materializavam em performances, mais especificamente a questão da malícia na prática do futebol, é o problema a ser enfrentado. Nuno Domingos esforça-se com sucesso para fugir de análises essencialistas e coloca as dinâmicas do futebol que não seguia as regras e que era realizado nos terrenos baldios do subúrbio numa perspectiva dinâmica que respondia “a convenções interaccionais e a uma economia de troca simbólica, cuja interpretação possibilitava a leitura de um processo social em curso, nomeadamente as condições de formação de uma experiência urbana sob o domínio colonial português” (p. 145). Nessa perspectiva, a malícia deixa de ser algo naturalizado como intrinsicamente popular e/ou africano para ser entendida como um capital performativo e simbólico “produto das condições de produção de uma prática desportiva socialmente situada, que estabelecia uma relação entre os jogadores e o público. Os gestos e movimentos mais valorizados no repertório motor dos atletas representavam as células básicas de uma economia da troca simbólica que consagrava formas de agir e de ver o mundo” (p.167).
Exatamente para conseguir pensar a malícia enquanto capital simbólico e produto de trocas simbólicas baseadas em diferentes estratégias que incluíam jogadores e público, que Nuno Domingos regressa ao processo de construção do subúrbio de Lourenço Marques no capítulo oito (“A construção social da malícia e o subúrbio de Lourenço Marques”). Ou seja, seu objetivo é o de tentar dar o salto de uma análise da malícia presente nos jogos do subúrbio para a construção de uma comunidade na periferia de Lourenço Marques. Para isso, Nuno Domingos elabora o que chamou de “genealogia da experiência urbana no subúrbio de Lourenço Marques” (p.174), evidenciando como a construção dessa periferia – fisicamente e identitariamente – esteve inseparável da necessidade colonial em explorar a mão-de-obra africana e das restrições a mobilidade dos africanos com a construção, melhor dizendo, com o desejo da construção de bairros segregados para negros e brancos. Ainda que produza uma bela reflexão a respeito da precarização da existência numa situação urbana colonial para a população africana, determinadas afirmações e/ou conclusões carecem de confirmação mais detalhada, especialmente porque suas principais fontes neste capítulo são as portarias administrativas de regulamentação do espaço urbano e o livro do antropólogo colonial Antônio Rita-Ferreira, Os Africanos de Lourenço Marques, da década de 1960, não sendo capaz de refletir a respeito dos anseios, desejos e projetos desses trabalhadores urbanos africanos. Nesse sentido, ao evidenciar a construção de uma “cidade africana” dentro de Lourenço Marques, erguida pela iniciativa local e relativamente independente para edificar espaços próprios, assim como uma singular organização sociocultural, Nuno Domingos dá preferencia em iluminar os interesses coloniais que se “beneficiaram desta auto-organização” produzida por um aglomerado de mão-de-obra que diminuía os custos de sua reprodução e “adequava-se às próprias carências do modelo de exploração colonial português” (p.188).
Essas características não perduraram todo o período em que Lourenço Marques esteve sob regime colonial, e Nuno Domingos percebe uma transformação significativa no trato do Estado a respeito da “cidade africana” a partir da década de 1950. Contudo, nesta análise sobre o subúrbio laurentino falta um ponto importante: o dos próprios africanos suburbanos. Afinal, a abordagem de Nuno Domingos nas relações hierárquicas sócio- raciais de dominação estipuladas pelo colonialismo, evidentemente fundamentais para se entender esse processo, fazem com que o mesmo não explore até que ponto, mesmo com o governo colonial português se beneficiando dessa auto-organização, a população africana dos subúrbios não tenha agido tão pacificamente nesse processo e, inclusive, tenha defendido esse aspecto de desregulamentação do espaço como um mecanismo de liberdade capaz de subverter as exigências feitas a essa população quando se deslocava para a cidade de cimento. Como o próprio Nuno Domingos salienta: a “permanência de práticas coercivas na captação da força de trabalho […] gerou uma enorme desconfiança nos trabalhadores sobre o vínculo laboral” (p.189). Com isso valeria mais apena para o trabalhador africano no espaço urbano realizar biscates sem a existência de laços legais de trabalho e, assim, correr o risco de ser penalizado. Ou seja, há uma possibilidade aqui para se pensar o comportamento desses indivíduos como estratégias para minorar a desequilibrada relação de poder e a ilegalidade de suas ações – tanto no mercado de trabalho como na própria construção de um espaço criador de um habitus – seria uma forma de responder a uma legalidade em que não se sentiam representados.
O capítulo seguinte (“As práticas feiticistas como elemento de uma economia simbólica”) é um dos mais interessantes. A ideia de Nuno Domingos é de demonstrar como dentro da economia simbólica do futebol suburbano, a feitiçaria possui um papel importante na capacidade de “enriquecimento”. Chamado de “cuchecuche”, “cuxo-cuxo” ou simplesmente de “vovô”, as práticas funcionava como um capital simbólico fundamental para se pensar a capacidade de sucesso ou não de uma equipe e de um jogador específico durante uma parte. A referência ao vovô, que poderia ser o indivíduo responsável por fazer a “preparação” do feitiço ou a prática em si, só foi possível de ser analisada pelo autor graças às inúmeras entrevistas que o mesmo realizou durante seu trabalho de campo em Lourenço Marques. Vinculando a “tradições da África ocidental” dos “espíritos dos mortos” (p.206), o vovô é analisado como mais um demonstrativo de desafio aos intuitos da administração colonial com seu trabalho missionário de destruição dos costumes locais. Sendo as cidades pensadas como principais propagadoras de um modus de vida europeu civilizado, a proximidade dessas práticas a estes centros produziu embaraços, ao mesmo tempo em que corrobora a ideia de Nuno Domingos de pensar o movimento do corpo do jogador suburbano não como uma resposta a ideologias da ginástica moderna, da igreja católica ou do fair-play, mas a “uma espécie de libido mágica, assente em tradições partilhadas e transformadas” (p.226).
No último capítulo da segunda parte (“Doçura e velocidade: a tática como desencantamento do mundo”), Nuno Domingo produz uma reflexão de como o capital simbólico expresso pelo corpo dos jogadores e produzido por eles no subúrbio de Lourenço Marques entrou em conflito com um processo, que já vinha ocorrendo com a institucionalização dos clubes suburbanos, mas que pode ser sentido nos movimentos específicos daquele habitus motor com a implementação de uma “mentalidade tática”. Como o autor explica:
Este condicionamento do corpo sugeria […] a aplicação ao jogo de um conjunto de princípios de ação modernos e de valores sociais impostos em Lourenço Marques pelo colonialismo: sujeitava o jogador a uma cuidada divisão social do trabalho dentro do campo, a uma especialização de funções limitadora da realização dos seus gestos e movimentos, proporcionando uma experiência distinta de deslocação no espaço e uma relação singular com o tempo. (p.232)
A intenção não era de prolongar-me tanto nos capítulos especificamente. Conforme a escrita fluiu, foi se tornando impossível não aprofundar de maneira pormenorizada os diversos problemas que a cada momento Nuno Domingos levanta. Essa minha impossibilidade esta longe de ser algo apenas pessoal. Ela revela como tenho em mãos uma obra vasta, com uma temática muito bem trabalhada e uma ferramenta fundamental para qualquer trabalho futuro a respeito da história do futebol, da relação entre Estado e sociedade numa realidade colonial, da experiência cotidiana vivida no colonialismo português em Moçambique, da interação dinâmica entre tradição e modernidade e da potencialidade do desporto para moldar as subjetividades humanas.
Um detalhe final: tive a oportunidade de jogar futebol com Nuno Domingos no ano passado. Bastante habilidoso, depois de ler seu livro começo a imaginar que o autor soube – ou já sabia? – incorporar um pouco da sabedoria maliciosa do subúrbio de Lourenço Marques.
Nota
1. Com o crescimento da cidade de Lourenço Marques a partir de meados do início do século XX, se construiu uma divisão espacial sócio- racial entre a chamada “cidade de cimento”, ocupada majoritariamente pelos brancos, mas também por chineses e indianos, e a “cidade de caniço”, ocupada pela população negra.
Matheus Serva Pereira.
DOMINGOS, Nuno. Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique. Lisboa: ICS; Imprensa de Ciências Sociais, 2012. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Cantareira. Niterói, n.18, p. 119- 125, jan./jun., 2013. Acessar publicação original [DR]
Histórias e Experiências: as interfaces e os múltiplos olhares históricos / Caminhos da História / 2013
O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiência humana”. (…). Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura (…) das mais complexas maneiras e em seguida (…) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (THOMPSON)
As experiências humanas se concretizam no cotidiano a partir das relações que os sujeitos históricos – homens e mulheres – estabelecem na sociedade em que vive. Viver é experimentar o outro e o mundo que nos rodeia. A História se preocupa com estas questões e reflete as possibilidades do seu olhar na interface com outras ciências como a arquitetura, turismo, geografia, economia, sociologia, psicologia e pedagogia, conforme se apresentam os artigos, em especial desse dossiê. As experiências históricas, conforme Thompson (1991, p. 180-2001), constituirão outras histórias, pensadas na perspectiva da diversidade e da luta de classes. Esse dossiê “Histórias e Experiências: as interfaces e os múltiplos olhares históricos” se propôs a escrever a história no plural, trazendo análises distintas e interdisciplinares, revelando silêncios antes ocultos em formatos historiográficos que primavam pela ordem vigente e descritiva. Neste sentido, com múltiplos olhares históricos iremos fazer a experiência da leitura de vivências concretas de sujeitos que, cujas práticas diárias, se mostram por meio de teorias e conceitos concebidos por pensadores que tentam compreendê-los (des)(re)construindo a história.
Dessa forma, os artigos “Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobia: reflexões sobre o patrimônio histórico, arquitetônico e urbanístico de Diamantina – MG”, “Gestão de políticas públicas de cultura: o poder legislativo e as leis de proteção ao patrimônio cultural em Montes Claros, Minas Gerais” e “Morte à espreita: história de um turismo macabro associado à caça da baleia em Lucena – Paraíba (1970-1990)” nos inserem no mundo do patrimônio cultural, turismo e meio ambiente, abordando o sentimento de pertencimento e a identidade que advém desses bens na consciência humana e na concepção estatal. Ao tratar de Diamantina e Montes Claros, cidades mineiras, e de Lucena localizada na Paraíba – apesar de se situarem em estados diferentes e distantes um do outro, não obstante, no mesmo país: Brasil -, percebemos que há uma lógica capitalista que permeia o entendimento de cultura entrelaçada ao poder com o objetivo de desfigurar uma proposta que não despreza a noção de pertencimento de vidas coletivas.
Os artigos “Trabalho fora dos trilhos: impactos da privatização sobre os ferroviários no norte de Minas Gerais” e “Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros / MG: os relatos sobre a profissão”, utilizando a história oral revela outras histórias através do estudo de um trabalho informal – mototaxistas – e formal – ferroviários – que se vêem na mão dupla da sobrevivência física e mental. “Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926” discute as ações higienistas e sanitaristas em Montes Claros-MG entre os anos de 1889 e 1926. Para tanto, as experiências nesta perspectiva na cidade utilizou como fonte a imprensa periódica escrita e a produção de memorialistas da região. Estas análise nos mostram uma Montes Claros se (des)organizando para o “desenvolvimento” e o “progresso”.
“Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)”, analisa como fonte uma revista específica, que ajuda a compreender as atribuições do professor na escola primária brasileira, bem como a relação das mulheres e suas possibilidades de atuação no magistério. Novas fontes e metodologias proporcionam estudos que revelam experiências históricas diversificadas e bastante instigantes.
“De tatus moqueados e porcos fumados: caça e criação de mamíferos na América Portuguesa Quinhentista”, “As câmaras e os ouvidores na construção da administração de Minas Gerais no século XVIII” e “Movimentos reativos e lideranças católicas no século XIX no Brasil”, apresentam experiências históricas que pensam séculos diferentes, no entanto, os seus sujeitos históricos se mostram diante de conflitos e tensões próprias das relações humanas inseridos em sistemas que predispõem a luta de classes.
Esse dossiê na sua diversidade de escrita historiográfica e por meio da interdisciplinaridade apresenta, de acordo com a lógica histórica, vivências do ser humano que, nos embates, conflitos, tensões e disputas revelam as interfaces e os múltiplos olhares da História.
Por fim, os artigos livres “O fenômeno da educação na construção da história”, “’Deu a louca na Chapeuzinho’ e história: uma análise possível” e Uma revisão histórica da economia do desenvolvimento: os pioneiros da Escola Anglo-Saxã”, expõem teorias que permitem pensar o universo da educação, assim como a introdução de fontes como a mídia para a reflexão historiográfica e a relação da História da Economia do Desenvolvimento de acordo com a abordagem da escola Anglo-Saxã.
Filomena Luciene Cordeiro Reis – Professora de História / Unimontes.
CORDEIRO, Filomena Luciene. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 18, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]
Trashumante | UAM/UDEA | 2013
Trashumante. Revista Americana de História Social ([Cidade do México], 2013) é uma publicação científica semestral da Divisão de Ciencias Humanas y Sociales da Universidad Autónoma Metropolitana (UAM), unidade de Cuajimalpa, no México, e da Facultad de Ciencias Sociales y Humanas da Universidade de Antioquia, com sua sede em Medellín, Colômbia. A revista destina-se á comunidade académica nacional e internacional interssada nos problemas da historia social. Procura intensificar a comunicação, bem como promover a comparação e a produção do conhecimento historico em diversos países e regiões do continente americano. A revista procura aumentar a comunicação e promover a comparação e produção de conhecimento histórico em vários países e regiões das Américas.
Sua matriz é a história social, ou seja, a síntese de historiografia, atenta aos processos, atores, grupos e organizações sociais, o que está escrito em estreita colaboração com outras ciências sociais e humanas, por isso, está aberta ao diálogo com a história econômica, política e cultural.
A revista tem dois diretores, um conselho editorial e conselho consultivo integrados de forma plural por pessoas dentro e fora das editoras das universidades. A equipe editorial é responsável por garantir a qualidade do conteúdo da avaliação dos júris especializados.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2322 9675
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Maiêutica – História | UNIASSELVI | 2013
A Revista Maiêutica – História (Indaial, 2013-) é um periódico que visa socializar com a comunidade acadêmico-cientifica os resultados das pesquisas realizadas pelo corpo docente, discente e técnico-administrativo do NEAD – Núcleo de Educação a Distância da UNIASSELVI – Centro Universitário Leonardo da Vinci.
A revista eletrônica recebe contribuições derivadas das produções acadêmicas dos alunos e professores em suas pesquisas nas diversas áreas do conhecimento, buscando estimular a prática e desenvolvimento da ciência.
Periodicidade anual.
Acesso livre.
ISSN 2318 6550
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Antrope | CAQ | 2013
Antrope (Tomar, 2013-) insere-se na temática geral: GD 7 – Interdisciplinar (Social Sciences – Interdisciplinary, History and Philosophy of Science).
É uma publicação electrónica cuja Série Periódica é semestral.
É editada pelo Centro das Arqueologias (ex-Centro de Pré-História; ex-Centro Transdisciplinar das Arqueologias), do Instituto Politécnico de Tomar (Portugal).
Tem como objectivo proporcionar um espaço informativo multidisciplinar e transversal entre as Ciências Sociais, Humanas, da Terra e da Vida.
Pretende-se que o conteúdo seja de acesso livre, permitindo aos investigadores obter informação disponível gratuitamente aumentando assim o intercâmbio do Conhecimento.
Aceitam-se contribuições originais e inéditas nas áreas das Arqueologias, História, Didáctida da Arqueologia, Arqueometria, Antropologia Biológica, Zooarqueologia, Traceologia, Proveniência de Matérias-Primas e outras áreas afins aplicadas ao Património Arqueológico.
Periodicidade semestral
ISSN 2183-1386
Acesso livre
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Arqueologias., História., Didática da Arqueologia., Arqueometria., Antropologia Biológica., Zooarqueologia., Traceologia., Proveniência de Matérias-Primas., Património Arqueológico., Multidisciplinar
Novecento | INPP | 1999
La prima uscita della rivista Novecento.org – Didattica dela storia in rete è del dicembre 2013, ma la sua storia risale al 1999 quando Antonino Criscione ha l’intuizione di affiancare a Italia contemporanea – storica rivista dell’Istituto Nazionale – uno strumento telematico. Si trattava di pensare a un modo diverso: «[…] di progettare e definire il rapporto con il «pubblico» e gli interlocutori del proprio lavoro di documentazione, ricerca, divulgazione storica […]. Il sito web è […] una presenza nuova […] non codificata […] che rappresenta già oggi un ambito di «uso pubblico» della storia» (A. Criscione, 2006).
È un’idea culturale definita e innovativa che si apre allo scenario da “frontiera inesplorata” che caratterizza il web e la digital history tra la fine degli anni Novanta e il Duemila. Il sottotitolo di allora – “Storie contemporanee. Didattica in cantiere” – sottolinea la centralità della didattica della storia nell’ambito delle attività dell’Istituto nazionale e della sua rete.
Dopo la morte di Criscione il progetto resta in cantiere per riemergere quando, nel 2012, la dirigenza dell’Istituto si pone l’obiettivo di dare rilievo al lavoro di rete delle sezioni didattiche degli istituti locali, soprattutto nella logica di incentivare momenti di lavoro comune.
Non a caso è proprio in occasione dell’organizzazione della prima Summer School nazionale di formazione docenti – diretta da Antonio Brusa affiancato da un gruppo di lavoro di docenti in distacco dal MIUR e dalla commissione scientifica dell’Istituto nazionale – a farsi strada l’idea di riaprire la rivista, nella quale far confluire i materiali prodotti dalle sezioni didattiche e dare loro maggiore visibilità e diffusione. La centralità degli strumenti informatici per diffondere idee, riflessioni, materiali, notizie è diventata, nel frattempo, una risorsa imprescindibile.
È un grande successo, testimoniato dal numero sempre crescente di lettori e di documenti scaricati per la consultazione.
La rivista, diretta fino al 2018 da Antonio Brusa, è stata in seguito affidata a un team di direzione costituto da Annalisa Cegna, Carla Marcellini e Flavio Febbraro che purtroppo è scomparso in modo tragico e improvviso nel luglio del 2019. Oggi Novecento.org è diretta da Agnese Portincasa coadiuvata dai vicedirettori Carla Marcellini e Enrico Pagano.
[Periodização quadrimestral][Acesso livre]
ISSN 2283-6837
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Velhas direitas e novas direitas: a atualidade de uma polêmica / Boletim do Tempo Presente / 2013
Em 2001 a equipe de pesquisa do Laboratório de estudos do Tempo Presente, da UFRJ, organizou e publicou a obra coletiva “Dicionário Crítico do Pensamento de Direita” (Rio de Janeiro, Editora Mauad, 2001). A edição deste vasto volume gerou, na ocasião, um amplo debate sobre a “atualidade”, menos de dez depois do colapso da União Soviética, da díade “Direita-Esquerda” para a compreensão do cenário político mundial e brasileiro. Depois da “Queda” do Muro de Berlin, em 1989, e subsequente colapso soviético com o fim da Guerra fria, não existiria mais nenhum sentido, ou utilidade teórica, na imagem “geográfica” surgida no interior da Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa de 1789.
Contudo, tanto na época, quanto hoje, uma série de fenômenos históricos – desde a emergência do grupo dos chamados “neoconservadores” na esteira da vitória de George W. Bush, em 2001, o papel relevante do chamado “Tea Party”, até a constante reinvenção, ou ressurgimento, dos fascismos (incluindo aí o nazismo) em vários países da Europa (Alemanha, França, Itália, Noruega, Grécia, etc…) e, mesmo em países fora da Europa (como na Turquia, Argentina, Japão, etc…) demonstrariam a constante presença, no espectro político, da definição de um campo “da direita”. Duas advertências, no entanto, devem ser destacadas e analisadas com todo cuidado, evitando análises estereotipas e simples. De um lado, o chamado “campo da direita” é composto por uma gama extremamente variada, ampla, de formas e tendências. Neste sentido, devemos destacar que vários segmentos (auto)assumidos como “de direita”, como o “thatcherismo”, dentro e fora da Inglaterra, caracteriza-se, de forma muito clara, por uma completa adesão ao sistema de valores e às instituições representativas das democracias liberais. Mesmo com forte conteúdo antissocial e regressivo – como o corte de direitos sociais e de conquistas políticas – tais tendências políticas não propuseram a supressão da ordem representativa e, ou mesmo, abandonram o conceito de “liberdade” enquanto um símbolo de sua ação e propaganda política. Mesmo que tal “liberdade” fosse, invariavelmente, voltada para a supressão de direitos e para a melhoria da barganha política e econômica dos grupos dirigentes em fase do conjunto organizado e popular da sociedade (como no caso da tentativa de Margareth Thatcher “desmontar” o sindicalismo britânico e, simultaneamente, impor um sistema de impostas altamente regressivo, como o “poll tax”, nos anos de 1979-1990) ou, hoje, na União Europeia a ação regressiva da chamada “Troika”.
Contudo, reafirmamos, esta direita é parte fundante do espectro político do Estado liberal-representativo e não deve ser confundido e mesclado como formas autoritárias e liberticidas que também compõe o campo da direita, como em vários exemplos apresentados nos artigos que compõe este número da Revista do Tempo Presente. Assim, podemos destacar uma direita “tradicional” – os “Conservadores” britânicos, os Republicanos americanos ou o DEM no Brasil, com grupos – tais como o “Tea Party”, os “Die Republikaner”, na Alemanha, “Os Lobos Cinzentos”, na Turquia ou “A Aurora Dourada”, na Grécia, ou grupos religiosos no Brasil ou EUA, entre outros – que são, resolutamente, anti-institucionais, pretendem um Estado autoritário e liberticida. Estes, para além da “direita tradicional” operam na derivação fascista.
Outro ponto, que devemos destacar, é a inexistência, ao longo da história, de uma essência única no “campo da direita”. Embora alguns temas sejam repetitivos – como a supressão de direitos sociais, a liberdade do uso de armas e a diminuição dos direitos políticos – não podemos criar uma definição única “da direita” atual. Um exemplo clássico é aquele atribuído ao papel do Estado. Em alguns segmentos da direita tradicional ou da direita fundamentalista, como para os Conservadores britânicos ou o “Tea Party” norte-americano, o Estado será sempre um ente “totalitário” e incompetente, perdulário, na gestão da coisa pública – o exato contrário da noção que denominam de “liberdade”. Mas, em outros setores da direita, como nos grupos fascistas e da direita radical, e mesmo algumas ditaduras militares clássicas, o Estado é instrumento fundamental para a prosperidade e a realização dos objetivos “nacionais”, incluindo-se aí o dirigismo econômico. Outros temas, desde a gestão da economia até o grau de intervenção do Estado nos assuntos da vida cotidiana – educação, saúde, uso de armas etc… – há claras divergências. No entanto, temos temáticas que “fecham” uma ampla concordância no campo da direita. Trata-se, neste caso, de uma guinada comportamentalista que viria substituir uma análise essencialista do espectro político.
Assim, o direito das mulheres ao livre dispor do seu corpo e da gestação, a união civil de gays, a educação sexual nas escolas públicas, o sistema de cotas raciais e sociais merecem um ampla, e quase universal, condenação no campo da direita (embora, mesmo aqui, haja divergências, como no caso a união civil de gays que provoca um “racha” nos Conservadores britânicos). Na maioria dos casos, como no Brasil, Estados Unidos e França, a direita assume claramente a luta contra a ampliação dos direitos “sociais” dos novos grupos emergentes na sociedade.
Assim, hoje, a díade “Direita-Esquerda”, envolve um largo espectro de temas que abarcam desde o papel do Estado até temas que se voltam diretamente para o comportamento individual dos cidadãos. Temos aqui, ainda, uma importante novidade política e social: a emergência, como núcleo “duro”, das novas direitas, de grupos e instituições religiosas, que assumem um forte papel na organização de grupos de pressão, partidos ou frações de partidos contrários a ampliação dos direitos políticos, sociais e civis. Assim, na França ou na Espanha, católicos integristas, assumiram posições fortemente conservadores frente a questões como a união civil de pessoas do mesmo sexo e, em grande parte apoiados e estimulados pelo então papa Joseph Ratzinger, uniram-se a grupos igualmente fundamentalistas de adeptos das “novas igrejas televisivas” e, mesmo, de muçulmanos frundamentalistas. Nos Estados Unidos e no Brasil grupos religiosos ( por exemplo, a chamada “bancada dos evangélicos” ) são a ponta mais agressiva da nova direita, como no caso da atual crise da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, da recusa de qualquer forma de controle da venda de armas pelo “Tea Party” e sua ala “radicalizada” do Partido Republicano
No campo da direita, contudo, convive – e muitas vezes “empurram” as organizações e partidos da direita tradicional para posições radicalizadas e intolerantes – uma larga gama de chamados “neo” fascistas, com uma brutal ressurgência do ideário de extrema-direita. Segundo o escritor alemão Richard Herzinger o potencial de violência racista, contido no pensamento e ação da extrema direita, se funda precisamente onde faltam as estruturas da sociedade civil ou onde estas se encontram em ruínas. [3] Herzinger continua argumentando que tanto maior é o pânico, causado por estes grupos, quando o potencial latente de violência perpetrado por eles sai da superfície: um suicídio em massas aqui, um atentado com gás em um metro lotado, um ataque anônimo com bomba de fabricação caseira ali. A grande questão é que esses seguem sendo interpretados, em larga maioria, como casos isolados que não chegaria a representar um cenário mais contundente de ameaça. A ultradireita ressurgente do Nazismo é uma forma de expressão das mais radicais de um submundo que afirma e legitima sua presença na sociedade com o que podemos chamar de ‘ato violento’, seja ele físico ou verbal. Neste sentido, a expressão ressurgente ultrapassa os limites da ideologia e se transforma num comportamento político. O fenômeno da ressurgência dos fascismos está ligado, no tempo presente, a um agir político fascista, voltado para uma questão central que ainda identificamos como sendo a alteridade. Portanto, não é só a violência física que mostra a força destes movimentos, mas também seu poder discursivo de transformação do ethos político negando a possibilidade da diferença e da pluralidade na sociedade. Para nós, este debate caminha para uma reflexão bastante contundente de um paradoxo existente na nossa sociedade: como nos declararmos radicalmente contra os grupos extremistas sem trair o próprio modelo pregado no presente; a ideia de que não há nenhuma diferença na sociedade que não possa ser integrada? Não podemos negar que durante a década de ’90 e na primeira década do século XXI houve uma crescente expansão, sobretudo entre os jovens, do culto a violência, desapego aos valores do Estado de Direito e da democracia e o ódio xenófobo, sempre agravado em períodos de fortes crises econômicas. Há, de fato um fator preponderante no fomento a essas práticas de xenofobia e violência da ressurgência dos fascismos: a falta de reação social e institucional perante os crimes cometidos por tais grupos. Essa percepção de ‘impunidade’ é, deverás inaceitável dentro de sociedades democráticas.
No dia 13 de junho de 2012, o jornalista Maximilian Pop publica no influente jornal alemão Der Spiegel uma matéria intitulada Os Nazistas prosperam livremente em partes da Alemanha Oriental, onde retratava a ação de grupos de ressurgentes atuando em nome da antiga proposta Nacional Socialista. Maio de 2012, Saxônia, cidade de Bautzen. Dois homens agrediram um estudante colombiano com chutes e xingamentos. Em Hoyersweda [4], outro grupo de extrema-direita cercou o escritório de um dos membros do Parlamento alemão, Bundestag, quebrando as janelas e atacando fisicamente um dos funcionários. Em Limbach-Oberfrohna, outro grupo ressurgente atacou um centro de educação alternativa. Em Geithain, um exposivo foi acionado em frente à Pizzaria Bollywood, restaurante que tinha como proprietário um paquistanês.
Uma das entrevistadas pela matéria é Kerstin Krumbholz, de cinquenta anos, que resume os acontecidos em sua cidade com a seguinte expressão: o inferno é assim. Ela conta que tinha escolhido se mudar para a cidade de Geithain, aproximadamente a quarenta quilômetros de Leipzig, há dezenove anos, pois queria que seus filhos crescesse num ambiente mais seguro, longe da criminalidade e dos entorpecentes presentes com mais frequência nas grandes cidades. De qualquer maneira, para a família Krumbholz as ações ressurgentes não passavam de algo que se via e ouvia através dos noticiários, coisas do tipo incêndio nos asilos ou mesmo a entrada do Partido Nacional Democrático (NPD) em alguma câmara legislativa estadual. Essa realidade foi completamente alterada quando seu filho Florian, de quinze anos, foi atacado por um grupo extremista de uma maneira abrupta até entrar em coma e ter que ser submetido a diversos procedimentos cirúrgicos. Florian era membro de uma turma punk e foi atacado pelo grupo ressurgente num posto de gasolina em maio de 2010 e teve seu crânio perfurado por pancadas. Hoje o jovem vive com uma placa de titânio na cabeça e a família Krumbholz não mais reside na cidade de Geithain.
Este é apenas um exemplo dos diversos eventos ocorridos por ações de grupos extremistas no leste da Alemanha no presente. Estes acontecimentos nos questionam quase automaticamente sobre o porquê estudar as ‘direitas’ no século XXI? Qual seu significado? Há uma tipologia dessas direitas? O que a história apresentado como novas e velhas direitas no tempo presente? Um ponto fundamental neste questionamento é entender que não existe nem um só tipo ou um só modelo para categorizar os movimentos de ‘direita’. A ressurgência dos fascismos talvez seja sua expressão mais contundente, mas está longe de ser a única.
Esta edição foi pensada nesta perspectiva: como a história tem lido as novas e as velhas direitas? Porque temas como ódio, negacionismo e integralismo continuam na pauta de discussão sobre esse tema? Este volume esta dividido em quatro partes. A primeira direciona nossa atenção e estudos para a permanência e a reinvenção da direita fascista no tempo presente. O debate realizado pelos textos da professora Clara Góes e, em seguida, do historiador Luis Edmundo Moraes discutem sucessivamente a construção do ódio na história e a negação da política de extermínio nazista. Os pesquisadores Gisele Reiz e Jerônimo Filho se debruçam sobre as propostas e ideários do grupo extremista brasileiro, formado por ex-militares, Guararapes, cujo foco está na crítica a perda da nossa identidade nacional, usando como base o pensamento conservador, nacionalista, autoritário. O professor Jefferson Rodrigues Barbosa da UNESP trouxe a tona uma discussão sobre o que chamou de ‘herdeiros de Plínio Salgado’, uma análise do integralismo no tempo presente. Seu texto reafirma a tese de que o termo ‘neo’ nem sempre é suficientemente elucidativo quando falamos deste grupo extremista. O que teríamos aqui não seria necessariamente um ‘neo’integralismo, mas, uma ressurgência do fenômeno que busca sua base de legitimação no movimento existente nos anos ’30.
Na segunda parte da revista buscamos trazer ao público leitor pesquisas de fôlego sobre as experiências dos fascismos na América do Sul. Primeiro com o texto do professor Pedro Ernesto que se dedicou a uma análise da extrema direita durante a implementação da doutrina se segurança nacional no cone sul. Em seguida o historiador, docente da Universidade Federal do Amapá, Iuri Cavlak retoma a discussão do primeiro governo de Perón relativizando as perspectivas históricas que generalizaram a aproximação de Perón com o Nazismo. Num atual e instigante debate, o historiador sergipano, Dilton Maynard, apresenta um estudo da apropriação do ciberespaço por grupos de extrema direita na argentina no presente, apresentando os mesmos como aglutinadores da extrema direita na América do Sul através do uso das novas tecnologias.
Na terceira parte, as direitas no Brasil, os estudos aqui apresentados estão ligados a uma historicização destas direitas. Filipe Cazetta estuda a Ação Imperial Patrianovista – AIP procurando entender quais características deste grupo foi mantido pela Ação Integralista Brasileira – AIB. Já o historiador Carlos Leonardo Bahiense nos apresenta uma análise do fascismo japonês no Brasil através do caso Shindo Renmei, que o mesmo define como “uma estratégia de resistência face o nacionalismo autoritário estabelecido por Getúlio Vargas a partir da Campanha da Nacionalização.” Natalia dos Reis Cruz retoma a problemática da aproximação entre o governo Vargas e os fascismos. Seu foco está nas políticas de aproximação e de distanciamento em relação aos fascismos utilizando como ponto de referência a questão da identidade nacional. A professora Janaina Cordeiro escreveu sobre a memória militar sobre Emílio Médici e a ideia de que o mesmo era o nome ideal para contornar todos os problemas que o regime vivenciava. O pesquisador Gustavo Alonso se dedicou ao estudo da música popular durante a ditadura militar, em especial a música sertaneja. Seu foco não esta na canção de protesto, mas ao contrário, num tipo de música que em muito serviu ao regime civil-militar brasileiro. O estudo de Alonso está em ampla sintonia com a nova historiografia que estuda o consenso e o consentimento nas ditaduras civis-militares. O historiador Odilon Caldeira apresenta um estudo sobre as apropriações da memória pela direita. O centro de gravidade de seu texto está nas relações conflituosas entre a memória e a história e as diversas estratégias políticas de três tipos específicos de iniciativas de direita: a Ação Integralista Brasileira, a Aliança Renovadora Nacional e o Partido da Reedificação da Ordem Nacional.
Por fim, apresentamos duas resenhas acadêmicas: uma voltada para a análise do filme A Onda, discutindo a adesão aos grupos de extrema direita e a sedução do fascismo e outra, sobre o livro da historiadora Janaina Cordeiro, Direitas em Movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil, que enfoca a reconstrução da memória social da ditadura civil militar brasileira quebrando o mito de uma sociedade resistente ao regime.
Assim, procuramos nesta edição apresentar aos leitores (as) pesquisas de fôlego, de historiadores especialistas em áreas especificas que se unem num debate sobre as ‘velhas’ e as ‘novas’ direitas no Brasil e no mundo.
Notas
3. HERZINGER, Richard. DIE Zeit. 2000.
4. Todas as cidades citadas neste parágrafo estão localizadas na Saxônia no leste da Alemanha.
Francisco Carlos Teixeira Da Silva – Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ
Karl Schurster – Professor Adjunto de Teoria e Metodologia da História da Universidade de Pernambuco. Doutor em História Comparada pela UFRJ.
Alemanha-Brasil: as pesquisas no Instituto de Estudos Latino-Americanos / Boletim do Tempo Presente / 2013
A Revista Eletrônica do Tempo Presente/IUPERJ apresenta ao público mais uma edição. Este volume traz o dossiê intitulado Alemanha – Brasil: as pesquisas no Instituto de Estudos Latino Americanos, que reúne artigos de professores e pesquisadores do Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI) da Freie Universität Berlin. Este renomado instituto, fundado em 1970, tem como sua principal característica a interdisciplinaridade. O LAI é o maior centro de pesquisa em América Latina na Alemanha sendo um dos maiores da Europa. Sua estrutura agrega os seguintes campos disciplinar: antropologia cultural e social, estudos de gênero, história, literaturas e culturas latino-americanas, ciência política, economia e sociologia. No ano de 2010 foi fundando no LAI o Centro de Pesquisas Brasileiras (forschungszentrum brasilien) com o objetivo de desenvolver projetos de pesquisa sobre a inserção do Brasil no cenário mundial. Além disso, foi inaugurada na instituição, em 2012, a Cátedra Interdisciplinar Sérgio Buarque de Holanda que teve como primeiro pesquisador o historiador Jurandir Malerba da PUC-RGS. Nesse sentido, integrado com as comemorações do ano da Alemanha no Brasil e através de longa parceria com a Freie Universität, a Revista Eletrônica do Tempo Presente, indexada no qualis da Capes, convidou o catedrático de América Latina do LAI, prof. Dr. Stefan Rinke, para organizar um dossiê, juntamente com o prof. Dr. Karl Schurster (Universidade de Pernambuco), composto por quatro artigos, sobre as pesquisas que estão sendo realizadas no instituto sobre a América Latina, dando maior ênfase ao Brasil.
O dossiê inicia com o texto da professora Debora Gerstenberger (LAI/FU/Berlin) intitulado Globalising Brazilian History: The Case of D. João VI in Brazil, que nos remonta a instalação da corte portuguesa no Brasil no início do século XIX. O instigante texto da professora Gerstenberger nos aponta que por mais estudado que este fato possa ser no Brasil, ainda é muito desconhecido pela comunidade acadêmica internacional, sobretudo pela sua singularidade: a implantação da capital de um império numa colônia. O pesquisador Frederik Schulze (LAI/FU/Frederich Meinecke Institut/Berlin) no artigo, Imigrantes Alemães entre a participação e o papel de vítimas: A transformação de Leopoldina em heroína da independência Brasileira, se debruçou sobre as memórias do processo de independência do Brasil dando ênfase a imagem construída sobre a primeira imperatriz brasileira, Leopoldina como ‘figura heroica’. A pesquisa de Schulze está focada em estudar como diferentes grupos lidavam com a memória homogênea do processo de independência através do estudo de caso da imagem da imperatriz Leopoldina, construída arquetipicamente como a ‘mulher tolerante alemã’. A pesquisa que vem a seguir, mostra e reafirma a natureza interdisciplinar do LAI. Stefan Rinke, no texto Constructions of Femininity and the ‘American Way of Life’ in Latin America in the Early 20th Century: The Case of Chile, faz um sistemático estudo sobre o feminismo no Chile mostrando sua relação com o movimento macro, mundial e suas peculiaridades locais. Seu texto, além de uma narrativa leve e agradável, apresenta um grande rigor teórico e metodológico. Constrói sua hipótese defendendo a ideia de que as feministas chilenas, apesar de opiniões políticas distintas, lutaram por uma forma bastante peculiar de identidade feminina que difere largamente dos modelos estrangeiros. Rinke, baseado amplamente em fontes, traçou um panorama da construção da feminilidade e influência dos EUA, através do American way of life, na sociedade chilena. O professor Georg Fischer no ensaio A crise ecológica na América Latina e a história ambiental, nos provoca fortemente a refletir sobre como a perspectiva histórica poderia contribuir para o entendimento da crise ecológica atual, em especial na América Latina. Além de trazer uma ampla e densa discussão sobre o conceito de crise e um debate historiográfico sobre o nascimento da história moderna ambiental, tanto na Europa quanto na América Latina, o texto de Fischer se localiza dentro da chamada história do tempo presente incluindo na pauta do historiador a tão defendida pelo professor François Bédarida, responsabilidade social.
Além do núcleo central, baseada nos artigos de pesquisadores alemães, a edição também conta com a colaboração de pesquisadores brasileiros através de textos sobre a obra do naturalista alemão von Martius, sobre o aclamado filme Cabaret (1972), que retratou o cenário sociopolítico da Berlim do início dos anos ’30 do século passado, e, um perfil biográfico de um dos mais importantes escritores alemães do século XX Thomas Mann.
Assim, os esforços da equipe da Revista Eletrônica do Tempo Presente em estabelecer parcerias, redes de trabalho, através de projetos de cooperação com as mais importantes e renomadas instituições de pesquisa no mundo reflete amplamente nas contribuições que ora apresentamos nesta edição.
Stefan Rinke – Freie Universität Berlin
Karl Schurster – Universidade de Pernambuco
História e Historiografia da África no Brasil / Boletim do Tempo Presente / 2013
Com enorme satisfação, organizamos e, agora, apresentamos o Dossiê “História e Historiografia da África no Brasil” da Revista Eletrônica do Tempo Presente, publicação do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os artigos e as resenhas aqui contidos são uma pequena amostra da significativa produção historiográfica sobre África produzida no Brasil, realizada por doutores, doutorandos, mestres e mestrandos: fato esse que cada vez mais afirma os estudos africanos em nosso país.
Resolvemos abrir o conjunto temático da revista com o artigo do pesquisador Amailton Azevedo, pois descortina a partir de uma situação familiar – um diálogo entre ele e sua filha – uma reflexão sobre os estereótipos e preconceitos que pesam contra as sociedades e culturas africanas, demonstrando como eles são paradoxalmente e, ao mesmo tempo, muito antigos e também contemporâneos. Denuncia, o articulista, como os paradigmas aviltantes sobre o homem africano penalizaram a sua história no sentido de conquistar um lugar legítimo no mundo acadêmico. Porém, esses não estão presentes apenas no mundo “científico”, internalizaram-se quotidianamente nos corações e mentes dos brasileiros, dos africanos e dos afrodescendentes. Retoma-se, no escrito de Azevedo, o que existe de original, diferente e libertador nas culturas africanas. Entretanto, a África não é uma terra idílica, onde tudo se apresenta bom e perfeito, mas uma terra humana com valores e desvalores específicos como todos os outros continentes.
O artigo Imagens da África: entre a violência discursiva e a produção da memória de Amailton Azevedo fornece, portanto, uma base reflexiva para que aprofundemos como o Brasil construiu um saber, do ponto de vista das Ciências Naturais, sobre a África desde os fins do século XVIII, acoplado aos interesses das Humanidades e da Economia. Vemos no texto do Professor Sílvio Marcus de Souza Correa como, na ilustração brasileira, já estavam presentes alguns dos estereótipos e preconceitos analisados por Azevedo. Na narração de Primeiras contribuições do pensamento ilustrado brasileiro a uma história da África, Correa ressalta a visão dos nossos naturalistas viajantes se inserir no senso comum de então – só de então? – de que a religião dos negros era fanática e supersticiosa, seus hábitos indisciplinados, preguiçosos ou vadios, pouco zelosos em suas habitações, sendo até praticantes de antropofagia! Como vemos a longa duração braudeliana – mais que quinto secular – das intolerâncias em relação ao continente africano são ratificados por esses dois brilhantes articulistas, abrindo nossas sensibilidades para as leituras que nos propicia esse Dossiê.
Bruno Rafael Véras de Morais e Silva, no artigo A Medicina Empírico-Metafísica dos Tsonga do Sul de Moçambique: Arte Médica, Magia, Doença e Cura através da obra do missionário suíço Henri A. Junod, traz-nos a visão desse suíço, missionário e médico, da virada do século XIX para o XX, que fora para o meio dos Tsonga em Moçambique, objetivando produzir novos sujeitos negro-africanos mais afáveis e submissos aos homens brancos. Nessa tarefa, conjugou o aprendizado da língua desses povos com a passagem dos textos sagrados cristãos para esse idioma africano; relatou e classificou os seus costumes e “criou”, para o saber colonial, a etnia Tsonga, ao arquitetar-lhe um etnônimo e traços diacríticos. Silva mostra como os brancos estavam gerando novos sujeitos africanos na religião, na cultura e na etnologia, conjugando, na ação do missionário-etnólogo Junod, sentidos científicos e práticos, um exemplo do conhecer para estabelecer poderes, ou seja, do saber-poder. Em suas diferenciações entre Magia e Religião, Junod, na construção de seu saber sobre os Tsonga, estabeleceu as hierarquizações inferiorizantes para o que é culturalmente africano.
Dando sequência a essa relação entre biografia e história, Antonio Evaldo Almeida Barros traz-nos agora John Dube e os Desafios da Segregação na África do Sul. O personagem Dube, um zulu proeminente, educado em escola em que se proibia falar sua língua zulu, escreveu, talvez em resposta a essa interdição, o primeiro romance nesse idioma. Esse homem, que em si hibridiza diferentes tradições – a zulu e a ocidental-cristã -, foi marcado profundamente por essas influências em suas ações, tornando-se assim um ardoroso promotor da ascensão social do negro sul-africano. Após a crise do sistema político segregacionista, tornou-se uma figura reabilitada em plenitude por suas ligações com o Congresso Nacional Africano. O texto de Barros, portanto, é uma manifestação de que as trajetórias humanas não são feitas sempre por coerências e as contradições são mais constantes do que queremos. Dube, crítico às relações de submissão da mulher ao androcentrismo nas sociedades sul-africanas, postulou a equiparação hierárquica dos gêneros posição à frente de sua época. Pediu representatividade no governo para os negros sulafricanos, revelando a luta desses por uma política que lhes reconhecesse direitos. Ao acusar os brancos racistas por sua política de aviltamento econômico, cultural e social dos negros, não eximiu os últimos de serem também responsáveis por algumas de suas mazelas. Ou seja, conhecemos um personagem complexo como as relações sociorraciais da África do Sul do seu tempo.
As narrativas missionárias na Zâmbia são trazidas ao nosso exame por Jefferson Olivatto da Silva, ressaltando a importância documental desse tipo de relato, alertando-nos para sempre analisar os fatos aí expostos, levando em conta os filtros ideológicos, em especial religiosos, que perpassam os documentos. Entretanto, a riqueza de descrições sobre o quotidiano que esses escritos – muitas de caráter prosaico como caçadas, doenças, brigas entre outros – é de suma relevância. Seu artigo A Dupla Sondagem para interpretar as Narrativas Missionárias Católicas na Zâmbia também traça-nos uma tipologia dos textos missionários, marcando as características e a relevância desse tipo de fonte.
O belíssimo texto de Robson Dutra, O Brasil na África, a África no Brasil, reata ambas as margens do Atlântico sul, assim como relembra-nos de sua continuidade com o Índico, assinalando a influência da literatura brasileira nas literaturas de Angola, Cabo Verde e Moçambique, não só em seus movimentos e órgãos de divulgação fundantes, assim como em suas mais recentes gerações de escritores. Afinal, o Brasil surge como modelo alternativo às normas estéticas e linguísticas que emanam da metrópole e ajuda a germinar novidades rebeldes nas caçulas literaturas coirmãs.
Ao se voltar para o trabalho intelectual de um dos escritores africanos, o artigo Pepetela: Fragmentos de uma trajetória retoma essa inspiração do Brasil na formação literária do renomado escritor angolano e, entrelaçando história e biografia, analisa fragmentos de um depoimento de Pepetela em 2008. Esses extratos relatam momentos da infância e juventude do ainda anônimo Artur Pestana, as influências culturais sofridas em tenra idade, o meio social e cultural benguelense, seus estudos na metrópole, sua adesão política ao MPLA, seus amores e desafetos com esse movimento político. Revelando esses entrecruzamentos do pessoal com o social, afirma-nos, o articulista, sem o dizer, que a vida e a obra se amalgam, fazendo surgir uma diversidade polifônica. Afinal, um suposto sujeito unificado não é senão entrelaçamentos de vidas de si e de outros, vivenciadas na prosa e no prosaico? Portanto, um não à morte do autor.
Entre o livro, a enxada e a Kalashnikov de Luiz Guimarães Sousa revela os nexos construídos entre cultura, política econômica e “revolução”, nos quais a primeira subordina-se aos interesses das segundas. Essas simbioses envolvem tanto a bandeira do Estado quanto o projeto de construção política de Moçambique, que muitas vezes misturaram e confundiram a identidade nacional em projeto e a identidade nacional em processo. Esse “homem novo” moçambicano projetado não parece ter sido entendido ou querido por todos os nacionais em formação.
Transportando-nos para a margem de cá do Atlântico, Mauro Marques faz-nos reler as notícias da imprensa sul rio-grandense sobre a morte do Presidente Agostinho Neto, tornado herói máximo no panteão erigido pelo Estado Angolano, apontando alguns limites de informação e de interpretação da mídia imprensa sul rio-grandense, no seu tentar recuperar o que realmente aconteceu.
No artigo Na “Rainbow Nation”: Mudanças Legislativas e Reforma da Terra, Viviane Barbosa presenteia-nos com uma análise detalhada de como as leis sobre a terra foram importantes para construção do Apartheid e como a manutenção das propriedades por elas constituídas mantêm a desigualdade no pós-Apartheid. Logo, alerta-nos que a retirada da apartação jurídica não foi total na África do Sul, pois as regras constituintes da propriedade agrária deixaram os seus frutos vingentes apesar das leis compensatórias para os negros sul-africanos, após a derrocada do regime racista. A reforma agrária antidiscriminatória tem sido lenta na terra de Mandela, apontando que o regime de apartação de certo modo ainda persiste sob a face da nova democracia.
A visão holística e articuladora de Larissa Gabarra sobre a situação da África no contexto histórico após a década de 1970, permeado pelo entardecer da Guerra Fria e o emergir da panaceia neoliberal, permite-nos ter uma visão panorâmica nesse dossiê pejado por pesquisas verticalizadas. A autora não só reflete sobre as direções políticas tomadas pelos governos africanos e pelas grandes potencias, indicando os seus reais interesses e equívocos, como fornece-nos os limites e os descasos na construção dos Estados Nacionais Africanos. Abre-nos também um descortinar sobre as relações Brasil e África, suas possibilidades e entraves. Somos, aqui nesse dossiê, contemplados por uma concepção de conjunto em uma produção científica que cada vez mais se especializa. Todavia, essa abordagem, ao buscar uma totalidade, relembra as articulações existentes aos especializados e sintetiza pedagogicamente os conhecimentos para os novatos no campo. Logo, artigos como esses são muito úteis.
Esse dossiê se finda com duas resenhas magistrais. A primeira foi escrita por Murilo Sebe Bon Meihy sobre o livro recentemente lançado pela pesquisadora Patrícia Teixeira Santos, intitulado Fé, Guerra e Escravidão: uma históriada conquista colonial do Sudão. Sobre a importância deste livro dentro da historiografia brasileira sobre a África, deixamos que as sensíveis e inteligentes palavras de Meihy o façam, pois seria muita pretensão desse apresentador pretender aqui fazer melhor. Contudo, ressaltamos, na resenha, a beleza da narrativa, que não devia ser estranha à História, fato, sempre por nós, historiadores, desejado, mas nem sempre alcançado. O poder instigador do texto que, mais do que resumir, nos faz desejar ler a obra original: eis supremo e ambicionado escopo de toda resenha!
A segunda resenha de Mariana Schlickman percorre cada capítulo do livro coletivo África e Brasil no mundo moderno, organizado por Vanicléia Santos e Eduardo Paiva, incitando-nos a curiosidade sobre esse notável balanço sobre as relações demográficas, econômicas e culturais entre as populações africanas e o Brasil, no período em que esses nexos são regrados pela escravidão. Os autores deste livro fazem parte da melhor plêiade de especialistas existente em nossa historiografia sobre esse extenso período da história africana e também brasileira.
Em suma, este dossiê é, antes de tudo, indiciador de tendências que se estabelecem na atual historiografia brasileira sobre a África. Primeiro, o surgimento de inúmeras pesquisas fora do âmbito da África de colonização portuguesa. Segundo, a pluralidade e diversidade das fontes, de objetos e abordagens utilizadas por essa historiografia. Terceiro, testemunha uma nova etapa já descortinada para a História da África no Brasil, sinalizada pela maturidade, profundidade e riqueza das pesquisas. Estamos aqui, nesta coletânea, dando mais um passo no rompimento do eurocentrismo de nossos currículos e um espaço para novos continentes em nosso saber além da Europa e das Américas. Dessa forma, estamos quebrando multisseculares preconceitos de uma episteme. Por fim, resta desejarmos aos leitores uma deliciosa viagem por essas Áfricas.
Notas
Agradeço a leitura e críticas da Prof. Dr. Fátima Machado Chaves a este texto e aproveito o momento para indicar meu e-mail para que possamos estabelecer diálogo com os leitores: silvioacf@gmail.com
Silvio de Almeida Carvalho Filho – LEÁFRICA/PPHGC/IH/ UFRJ)
Venezuela no Tempo Presente / Boletim do Tempo Presente / 2013
Com enorme satisfação apresentamos o Dossiê “A Venezuela no Tempo Presente” da Revista Eletrônica Boletim do Tempo Presente, uma publicação do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, financiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) através do projeto “Caminhos da Integração Sul-americana”. Os artigos e as resenhas desse número demonstram, de forma sucinta, a produção historiográfica sobre a Venezuela produzida no Brasil, realizada por docentes e discentes de distintas Instituições de Ensino.
Entre 1999 e 2013, a política sul-americana foi marcada pela onipotente presença de Hugo Chávez (1954-2013). O carismático líder venezuelano liderou um processo transformador que influenciou os demais países sul-americanos, fosse pelo apoio ou pelo repúdio as suas propostas.
Com Chávez, a democracia participativa e “protagônica”, a integração da América Latina, o Socialismo do Século XXI, o antineoliberalismo e o anti-imperialismo passaram a fazer parte do vocabulário político da região no início deste século. Com isso, movimentos sociais e partidos políticos de esquerda tiveram em tais bandeiras os referenciais para suas lutas contra os poderes estabelecidos em seus países.
Além disso, Hugo Chávez colocou a Venezuela no centro da geopolítica mundial. O país deixou ser reconhecido internacionalmente apenas pelo petróleo, pela beleza de suas praias caribenhas e por suas mulheres (vide os títulos do país nos concursos de Miss Universo!). As posturas internacionais de Chávez e da sua diplomacia, que não se limitaram à defesa da integração sul-americana, chegando a questões de interesse internacional, que fizeram com que o país se tornasse um ator central em inúmeros debates globais.
O fortalecimento da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), o repúdio às intervenções norte-americanas no Afeganistão e Iraque, as críticas às posturas israelenses com os palestinos, a defesa global do meio-ambiente, entre outros, consistiram em exemplos da ação externa venezuelana durante a presidência “do Comandante”.
Destacaram-se, também, os enfrentamentos aos líderes de países considerados imperialistas por Chávez. O seu discurso na ONU em janeiro de 2007, no qual chamou o ex-presidente norte-americano George W. Bush de “Diabo” e as provocações ao rei espanhol Juan Carlos durante a Cúpula Ibero-Americana em novembro do mesmo ano, que gerou a reação do monarca espanhol com a frase “Por que no te callas?”, se tornaram os principais exemplos do estilo irônico e provocador utilizado pelo ex-presidente venezuelano na relação com os líderes de países considerados imperialistas.
Internamente, Chávez implantou medidas e realizou propostas que influenciaram partidos políticos e movimentos sociais de países latino-americanos. A defesa da democracia participativa, a refundação nacional por meio de Assembleias Constituintes e o novo socialismo entusiasmaram ativistas políticos de outras nações, principalmente, da Bolívia e Equador, que viram em Chávez a sua grande referência.
Durante o seu governo, a Venezuela mudou socialmente em razão da efetiva distribuição de renda, como veremos nos artigos dessa edição, e fortaleceu a sua democracia. Em 2013, 87% dos venezuelanos apoiam a democracia, índice que era de 60% em 1998, ano em que Chávez foi eleito, segundo relatório do Latino Barômetro divulgado em novembro de 2013.[i]
Os últimos meses foram marcados pela inércia do governo de Nicolas Maduro, que transpareceu a sensação de paralisia pelos efeitos da crise econômica e pela apertada vitória contra Henrique Caprilles nas eleições de abril de 2013. A proposta de Lei Habilitante indicada pelo presidente e aprovada em novembro último pelo parlamento materializou o desejo do governo Maduro de fortalecer a capacidade de intervenção estatal em áreas consideradas estratégicas. Com isso, o presidente venezuelano poderá governar por decretos durante 12 meses em questões referentes à corrupção e na área econômica.[ii]
Cremos que a Lei Habilitante marcou uma primeira diferença entre os estilos de Chávez e Maduro. O primeiro, provavelmente, buscaria um referendo popular para a aprovação dessa lei, haja vista que a oposição ao governo bradou nos últimos meses que o chavismo estava perdendo força.
Ao invés de realizar uma consulta popular, que em um cenário de vitória fortaleceria a presidência, o governo institucionalizou o debate, aprovando-o no parlamento de maioria psuvista. Com isso, Maduro perdeu a oportunidade de demonstrar a possibilidade de existência de um “chavismo sem Chávez”, algo que de certa forma se desenhou nas eleições municipais de 08 de dezembro. Esta foi marcada por mais uma vitória eleitoral do chavista Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) com aproximadamente 49% dos votos contra 40% da Mesa da Unidade Democrática (MUD), liderada pelo ex-candidato presidencial Henrique Caprilles.[iii] O presente número da Revista Boletim do Tempo Presente debate a Venezuela de Hugo Chávez e as possíveis continuidades do fenômeno do chavismo. Sem dúvida, o presidente ingressou na lista dos grandes líderes políticos latino-americanos e já tem seu nome gravado na história da região, o que faz com que a análise das causas e implicações do fenômeno seja necessária para os que acompanham o Tempo Presente da América Latina.
Esta edição é composta por onze artigos de professores de diversas Instituições de ensino do Brasil e da Venezuela. Conta também com resenhas de dois livros e de um filme, além dos perfis de Nicolas Maduro e Diosdado Cabello, duas das principais lideranças do chavismo após o falecimento de Chávez.
A revista está organizada em cinco seções. Na primeira, apresentamos as contribuições dos professores André Coelho, Claudia Wassermann e Wagner Pinheiro. Esses artigos debatem a instabilidade institucional na América Latina ao longo do século XX e uma das expressões desse fenômeno: a ascensão de lideranças políticas que personificam sujeitos políticos coletivos.
Os artigos desta parte tratam, ainda, das razões que tornaram Hugo Chávez a expressão das insatisfações políticas dos venezuelanos com o Pacto de Punto Fijo, que estabeleceu os parâmetros da democracia venezuelana entre 1958-1998. Para eles, a transformação de Chávez em mito político decorreu, entre outras causas, do apoio ao protagonismo popular por meio da democracia participativa. Neste sentido, Chávez contribuiu para o fortalecimento das instituições democráticas venezuelanas ao reinventar o agir político venezuelano.
A segunda seção é composta por artigos dos professores Felipe Ador, Mariana Bruce e Wallace Moraes, que se dedicam a exemplificar duas questões chaves para refletirmos o chavismo: a democracia participativa e a proposta do socialismo do século XXI.
Nos artigos de Mariana Bruce e Felipe Ador, observamos a construção da democracia participativa, elemento fundamental para a proposta do socialismo do século XXI. Para ambos, a demanda por participação era uma bandeira do movimento social antes da eleição de Chávez em 1998. O grande mérito do presidente foi, assim, apoiar a sua implantação após a eleição. As análises da democracia participativa ocorreram nos artigos a partir dos estudos, respectivamente, dos Consejos Comunales e da implantação da democracia participativa no Município venezuelano de Torres, no Estado Lara.
Já Wallace Moraes apresenta uma análise da democracia participativa e do socialismo do século XXI. O autor discorre sobre as principais políticas públicas do chavismo e a proposta do socialismo do século XXI, comparando-a com outras vertentes do socialismo. Além disso, ele aponta duas possibilidades de interpretação para o chavismo: o seu caráter legalista e a definição de capitalismo de las calles para o fenômeno em razão das reformas sociais do governo em consonância com as reivindicações populares.
A terceira parte traz os artigos das professoras venezuelanas Maria Hernandez Barbarito e Francis Lopes e do professor Vicente Neves. Os seus textos refletem sobre a dependência venezuelana em relação à exploração de petróleo, as disputas internas em torno do controle da exploração desse hidrocarboneto e o seu uso pela diplomacia venezuelana para o desenvolvimento da integração latino-americana. É dada uma especial atenção à proposta chavista da Alianza Bolivariana das Américas (ALBA), que propõe um modelo de integração de laços solidários e cooperativos, diferenciado dos que predominam na América Latina.
A quarta seção é dedicada ao debate das políticas externa e de defesa da Venezuela de Chávez. O artigo do professor Leonardo Valente discute a política externa de Chávez, demonstrando as rupturas e continuidades em relação à política externa do país na segunda metade do século XX. Segundo ele, a política externa de Chávez não rompeu com aspectos da diplomacia venezuelana puntofijista, tais como: fortalecimento da OPEP, independência na política externa e defesa da integração latino-americana.
Já o texto do professor Ricardo Cabral, também incluído nessa seção, tem como ponto central a questão da política de defesa de Hugo Chávez. Para tal, o autor analisa as transformações nas Forças Armadas, as dinâmicas de integração e segurança sul-americanas. Além disso, há uma abordagem sobre os principais contenciosos dos venezuelanos com os seus vizinhos sul-americanos.
Por fim, a quinta seção está dividida em resenhas e perfis. Há resenhas dos livros “El Código Chávez” e “Todo Chávez: De Sabaneta al socialismo del siglo XXI” que retratam momentos relevantes do chavismo, a análise do filme “Ao Sul da Fronteira”, do cineasta Oliver Stone, e os perfis de dois dos principais nomes do chavismo pós Chávez, Nicolas Maduro e Diosdado Cabello.
Boa Leitura!
Notas
[i] Informe Latino Barômetro 2013. Disponível em: http://www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp Acesso: Nov/2013. [ii] Revise el contenido de la Ley Habilitante. Disponível em: http://www.el-nacional.com/politica/Contenido-Ley-Habilitante_0_283171683.html Acesso: Nov/2013. [iii] Sobre os resultados preliminares das eleições municipais de 08 de dezembro, ver: Venezuela: partido de Maduro vence eleições municipais, mas perde terreno para oposição. Disponível em:http://oglobo.globo.com/mundo/venezuela-partido-de-maduro-vence-eleicoes-municipais-mas-perde-terreno-para-oposicao-11009697 Acesso: Dez/2013 e 10 curiosidades numéricas que dejó el 8-D. Disponível em:http://www.ultimasnoticias.com.ve/noticias/actualidad/politica/10-curiosidades-numericas-que-dejo-el-8-d.aspxAcesso: Dez/2013.Rafael Pinheiro de Araujo
Direito à terra no Brasil: a gestação do confl ito: 1795-1824 – MOTTA (AN)
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil: a gestação do confl ito: 1795-1824. São Paulo: Ed. Alameda, 2009. 288p. Resenha de: MOURA, Denise Aparecida Soares. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, p. 403-409, dez. 2012.
O livro Direito à terra no Brasil aborda as concepções de juristas e memorialistas portugueses sobre a lei de sesmarias e as tensões e conflitos que tiveram lugar na estrutura fundiária da América portuguesa entre 1795-1824.
Essa lei foi promulgada em Portugal no século XIV em um momento de crise econômica e teve o intuito de obrigar o beneficiado com a concessão régia a cultivar a terra recebida.
Como escreveu a autora Márcia Motta, o Brasil foi uma das poucas possessões portuguesas que aplicou a lei de sesmarias, mas com um objetivo diferente do original português. Ou seja, nas terras do Brasil o alvo principal foi o de incentivar a ocupação e nobilitar os colonos que prestavam serviços ao rei.
Para esses colonos, contudo e conforme concluiu a autora, a solicitação de uma sesmaria tornou-se um canal de legitimação de seus status de proprietário diante de um ambiente fundiário indefi– nido e que muitas vezes os obrigava a socorrerem-se nos tribunais régios para defender seus direitos.
Esse livro que trata de uma das questões ainda hoje contundentes na história do Brasil, está dividido em quatro partes distribuídas em pouco mais de 280 páginas. O fio condutor do argumento é a lei de sesmarias e seu tratamento diferenciado em duas conjunturas do intervalo 1795-1824: a do reinado de D. Maria I, marcado pela defesa da lei e o período das cortes constituintes em Lisboa, quando a lei foi condenada e extinta em defesa do direito pleno de propriedade.
Nessas duas conjunturas, na América portuguesa, sesmarias continuaram sendo solicitadas pelos colonos. Do ponto de vista da Coroa, a concessão das sesmarias era uma maneira de garantir a ocupação de territórios situados em área de confl ito e disputa, como nas regiões de fronteira a oeste e sul do Brasil.
Na primeira parte do livro a autora discute o discurso ilustrado de memorialistas e jurisconsultos que defendiam o uso produtivo da terra diante da crise agrária vivida pela sociedade portuguesa no século XVIII. A autora situa essa problematização na crise dos valores do antigo regime português e na emergência de uma consciência individual própria do liberalismo.
Assim, as idéias fisiocráticas de Bernardo de Carvalho Lemos e Domingos Vandelli foram favoráveis à privatização das terras de uso comum e à sua ocupação produtiva e individual, conforme previsto na lei de sesmarias. A autora conclui que os fisiocratas acreditavam que ocorreria a recuperação da economia portuguesa através da aplicação de medidas como essas.
Márcia Motta dá a entender que o avanço do individualismo agrário fez parte do processo maior de reordenamento jurídico da sociedade portuguesa no século XVIII. Nesse caso, a Lei da Boa Razão, promulgada em 1769, determinou que o direito pátrio deveria prevalecer sobre o direito romano. Diante disso, a modernização do direito português em relação à questão fundiária ocorreu pela via da conservação do direito antigo. Uma modernização conser vadora, que consagrou a posse imemorial.
Neste ponto há a explícita inspiração nas diretrizes teóricas de Costumes em comum, do historiador inglês E. P. Thompson. Este mostrou que o argumento da posse comum e imemorial foi usado inclusive em partes da Inglaterra do século XVII pelos ocupantes de terras que enfrentavam o avanço do conceito de propriedade individual.
Do discurso de jurisconsultos e memorialistas a autora prossegue, na parte 2, pelo caminho da legislação régia e pela ação dos homens públicos, guiando-se pelo alvará de 1795 e pelas percepções dos irmãos D. Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarino (1796-1801) e Francisco Maurício de Souza Coutinho, governador da capitania do Pará.
O alvará de 1795, revogado um ano depois, surgiu na esteira da reforma do direito português e do avanço das idéias racionais da ilustração que infl uenciaram o reordenamento das relações entre a metrópole portuguesa e sua principal colônia no final do século XVIII: o Brasil.
O intuito do alvará era o de regularizar a concessão de sesmarias, reafirmando seus princípios de ocupação e uso produtivo. Além disto, seu intuito era também o de normatizar o registro das terras para que fossem evitados conflitos que prejudicassem a estabilidade da governabilidade da colônia e do Império. Os irmãos Coutinho entendiam que a consagração do Império ocorreria pela ocupação estável e produtiva da terra. Francisco Coutinho chegou, inclusive, a redigir um minucioso texto sobre o alvará de 1795.
A autora mostra como este governador tinha uma posição mais reticente em relação à Coroa. Ele criticou a tradicional concessão de áreas extensas e defendeu a necessidade de um conhecimento mais racional das áreas a serem demarcadas. Para tanto sugeriu a intervenção de cartógrafos, astrônomos e geômetras. As dificuldades que os irmãos Coutinho enfrentaram para concretizar suas percepções na colônia mostram os limites do poder na administração imperial.
Na terceira parte da obra, o leitor acompanha as metamorfoses da sesmaria no ambiente da colônia. Essas mudanças aconteceram tanto no campo semântico como nos usos e concepções dos próprios colonos, mas em de acordo com as imposições da conjuntura da crise do Império e da independência.
Enquanto a Coroa desejava controlar a ocupação territorial na colônia, por questões políticas e como resposta ao espírito racional cientificista do período, os colonos solicitavam sesmarias diretamente ao rei ou ao Conselho Ultramarino.
As intenções destes, contudo, tornavam-se cada vez mais especulativas, tendo em vista a necessidade de assegurar o direito de domínio e transmissão de seu patrimônio. Ou seja, esses colonos tendiam progressivamente a desejar a legitimação de uma condição de proprietário diante do costume e da existência de uma grande maioria de ocupantes de terra.
De acordo com conclusões da autora, o título de sesmaria, no final do século XVIII já não tinha o valor nobilitador de outros tempos. Porém, permitia ao colono passar da incerta e potencialmente tensa situação de ocupante, para a de legítimo proprietário ou senhor de terra. Mesmo o sesmeiro estava sujeito a ver suas terras invadidas ou ocupadas. Mas o título assegurava-lhe o direito de futuras reivindicações, munindo-o de um registro que o habilitava a buscar os tribunais.
A quarta e última parte do livro retoma a discussão dos ilustrados portugueses sobre as sesmarias, mas na conjuntura das cortes constituintes e independência do Brasil. Naquele momento a defesa da propriedade individual da terra envolveu a condenação do sistema de sesmarias e principalmente do seu princípio de obrigatoriedade de cultivo, que impunha-lhe condições de acesso e uso.
Ainda assim, nesse período, a Coroa procurou firmar sua territorialidade, promulgando decretos e alvarás que garantiam a propriedade, confirmavam as sesmarias, regulamentavam demarcações e instituíam funcionários específicos para tratar do assunto, como os juízes de sesmarias, que deveriam ser indicados pelas câmaras.
A sesmaria continuou sendo invocada por alguns sesmeiros, mesmo com a sua extinção oficial em 1822. Nas considerações finais a autora cita um caso curioso, de um fazendeiro, grileiro de grande extensão de terras no Pará, que recorreu a esse argumento em 2005, para inventar o que ela chama de “ponto zero” na ocupação daquela área.
Márcia Motta já é referência no tema questão fundiária no Brasil pelo menos desde 1998, quando publicou Nas fronteiras do poder.1. Em Direito à terra no Brasil, resultado de suas pesquisas de pós-doutorado realizadas em Lisboa em 2003, a autora inova em relação ao seu trabalho anterior por recuar ao século XVIII e recuperar no reino o sentido das sesmarias na governabilidade do Império e o debate de memorialistas e juristas sobre essa lei em duas conjunturas distintas. Na historiografia portuguesa poucos são os trabalhos sobre sesmarias, destacando-se o de Virginia Rau2.
Na medida em que seu foco é a lei de sesmarias, domínio real e de autoridades régias, como a do governador, encarregado de enviar as solicitações para o rei ou para o Conselho Ultramarino, o problema da terra nas cidades da América portuguesa, um dos mais difíceis na história fundiária do Brasil, ainda permanece sem respostas3.
A autora não deixa de mencionar o papel consultivo da instituição municipal no momento da concessão de uma sesmaria, sugerindo uma possibilidade de reflexão e pesquisa: terras e câmaras na América portuguesa.
Nesse caso, a boa lembrança é o historiador inglês Charles Boxer (286), que chamava atenção para a estabilidade assegurada pelas câmaras, mais do que governadores, bispos e magistrados transitórios, o que significa que aquelas instituições, embora situadas na escala inferior da administração eram peças chave para a estabilidade da colonização e do Império.
Um dos pontos altos de sua problematização é a que se refere ao poder régio como ação que não se limitava à aplicação racional da lei de sesmarias. Em certas circunstâncias a própria Coroa legalizava a posse, dando-lhe status de legítima ocupação territorial. O alvará de 9 de julho de 1767 é uma boa demonstração disso, pois ele definia que ninguém poderia ser tirado de sua posse sem antes ser ouvido (p. 72).
Compreender como o poder funcionava no Império tem sido um dos principais desafios enfrentados pela historiografia portuguesa e estrangeira, e ao concluir sobre o movimento pendular da Coroa, que ora reprimia, ora era permissiva com as ocupações irregulares (p.
261) a autora fornece subsídios para que essa questão seja pensada.
Ao mostrar os zelos das autoridades régias em torno da normatização do acesso à terra na colônia, especialmente a partir do alvará de 1795, a autora fornece argumentos também para que se possa discutir os limites de ação dos vários níveis de autoridade no Império Português.
Essa ação ponderada certamente garantiu um nível mínimo necessário de estabilidade política e longevidade ao Império Português.
Os governadores concediam as sesmarias, mas as câmaras da América portuguesa eram prévia e devidamente ouvidas, para que fossem respeitados os limites de suas áreas de ação e distritos. Com isso os confl itos próprios da duplicação de datas de uma mesma terra poderiam ser evitados.
É certo, portanto e concordando com a autora, que a sesma ria era um instrumento da colonização e de poder (p. 123), provo cador de ódios, desavenças e rancores entre sesmeiros e entre estes e a Coroa. Mas também foi a oportunidade para as câmaras periodicamente se afirmarem como instância legítima de poder.
Posteriormente, na década de 1820, a Coroa criou a função de juiz de sesmaria. Os nomes dos aspirantes a tal cargo deveriam ser indicados pela câmara. Assim, a política de terras no Império e no contexto da independência, além dos confl itos, proporcionava também um mundo de oportunidades de afirmação de poder e legitimidade a instituições imemoriais e de forte tradição portuguesa, como os conselhos municipais.
Na parte 1 o título “As sesmarias: origem e consolidação de um costume”, não parece adequado. No texto, costume se refere aos terrenos baldios ou áreas de pasto comum, condenados por jurisconsultos e memorialistas. Na forma como está a expressão, dá a entender ao leitor que se refere à sesmaria, quando originalmente esta é uma instituição legal. Talvez ficasse mais preciso um título que expressasse a idéia de sesmaria e seus conflitos com o uso costumeiro da terra.
O conteúdo desta primeira parte contribui sobremaneira para o pesquisador brasileiro ter a percepção do quanto o discurso ilustrado da decadência da agricultura era aplicado não somente no Brasil, mas também no Reino.
Na narrativa do problema das sesmarias no Império português o capítulo 4 quebra a continuidade do texto. Das discussões de memorialistas e juristas portugueses no reino, a autora passa para as práticas e concepções dos colonos em torno dessa concessão régia, para no quarto capítulo retornar, em grande medida, aos ilustrados portugueses na conjuntura das cortes constituintes de 1821. Este recurso pode ter sido uma maneira de se ajustar ao recorte cronológico que propôs analisar, ou seja, o período 1795-1824.
Na medida em que o tema do direito à terra foi tratado no âmbito do Império português, o título do livro poderia ter sido mais preciso, pois a abordagem da autora não se restringiu ao território do Brasil.
Direito à Terra no Brasil é um livro recomendável para todo aquele que se interessa pela história fundiária do Brasil. Com ele, Márcia Motta, professora na Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Núcleo de Referência Agrária da mesma instituição, mostra que esse incômodo problema político-social, na realidade, tem raízes mais profundas e remonta ao lado português da nossa formação.
Notas
1 MOTTA, Márcia M. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. RJ, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998.
2 RAU, Virgínia. Sesmarias medievais portuguesas. Lisboa, Editorial Presença, 1982.
3 GLEZER, Raquel. Chão de terra. SP, Ed. Alameda, 2007; RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a câmara municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, FFLC-USP, Dissertação de Mestrado, 2010; MOURA, Denise A. S. Disputas por chãos de terra: expansão mercantil e seu impacto sobre a estrutura fundiária na cidade de São Paulo (1765-1822). Revista de História. USP, n. 163, 2º. Semestre de 2010, p. 53-80.
Denise Aparecida Soares de Moura – Professora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, campus de Franca. E-mail: dmsoa1@yahoo.com.br.
Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX – GALVÃO; LOPES (RBH)
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; LOPES, Eliane Marta Teixeira (Org.). Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 146p. Resenha de: LEON, Adriana Duarte. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.64, dez. 2012
O livro Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX, organizado por Ana Maria de Oliveira Galvão e Eliane Marta Teixeira Lopes, foi lançado recentemente e reúne cinco textos de pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da UFMG, produzidos especialmente para compor a reflexão apresentada na obra. Os capítulos são diferentes abordagens sobre o mesmo objeto, o Boletim Vida Escolar, que circulou na cidade de Lavras (MG) entre maio de 1907 e novembro de 1908.
Os estudos sobre impressos educacionais são recorrentes no campo da História da Educação, pois possibilitam emergir detalhes das tensões presentes no debate educacional. A imprensa educacional foi produzida de forma mais intensa a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo como material de formação para os professores, considerando a quantidade limitada de compêndios para essa função. No século XX a imprensa educacional amplia sua abordagem e observa-se a criação de impressos vinculados a diferentes instituições.
O Boletim Vida Escolar se encaixa nessa lógica, pois era uma publicação do Grupo Escolar de Lavras, inaugurado no dia 13 de maio de 1907. Seu diretor, Firmino Costa, era também o editor do Boletim. O impresso compunha-se de quatro páginas e tinha periodicidade quinzenal, e foram publicados ao todo 34 números. Os textos apresentados no impresso eram didáticos ou pedagógicos, e alguns tinham caráter informativo. Observa-se que o impresso circulou em diversos locais do município e do estado, o que indica ampla divulgação das ideias ali publicadas.
A fim de precisar quem eram os leitores visados pelo editor do Boletim Vida Escolar, Ana Maria de Oliveira Galvão e Mônica Yumi Jinzenji realizaram a análise do impresso sob três ângulos: estudaram as matérias direcionadas para um leitor específico, o conteúdo das temáticas abordadas e, por último, as estratégias discursivas utilizadas pelo editor.
Como estratégia metodológica as autoras categorizam o conteúdo do Boletim de acordo com as três abordagens destacadas, para posteriormente estabelecerem uma interpretação dessa categorização. Sob inspiração de Umberto Eco buscaram identificar os leitores presentes no impresso e concluíram que esse público era masculino e inserido no mundo da escrita, o que transparece, respectivamente, na identificação de formas de tratamento (caríssimos, prezados, conterrâneos e amigos) e no vocabulário utilizado.
Sobre os temas mais tratados no impresso observa-se que o próprio Grupo Escolar recebe o maior destaque, assim como seu diretor. Na construção discursiva, ou nas estratégias discursivas adotadas pelo impresso, percebem-se a valorização de Firmino Costa e o destaque às atividades por ele desenvolvidas em prol do Grupo. Firmino Costa busca convencer o leitor de que está colaborando para o êxito da reforma da instrução no estado, e que os grupos escolares são uma opção moderna e de acordo com o período.
Tratando das construções discursivas presentes no Boletim e buscando identificar o que constitui o bem viver no Grupo Escolar de Lavras, Eliane Marta Teixeira Lopes e Andrea Moreno indicam que parece emergir a valorização da educação na cidade. Acompanhando as preocupações da época, Firmino Costa anuncia o bom trato da saúde e o estímulo a bons hábitos de higiene como característica positiva da escola. Tal ênfase poderia estar relacionada à preocupação da escola em promover uma imagem moderna e atual, e diversos artigos tratam desse tema no Boletim Vida Escolar. Pode-se inferir que a divulgação dessa característica no veículo do Grupo Escolar segue o pensamento higienista da época.
Além disso, o Grupo Escolar anuncia nos seus princípios e métodos uma comparação entre a velha e a nova educação, e chama a atenção para algumas qualidades dessa nova escola: deve ser polida, justa, carinhosa, animada, atraente e prática. Pela análise de tais afirmações pode-se inferir que o Grupo Escolar integra a modernidade urbana como instituição educacional adequada à urbanização do país.
No final do século XIX e no início do século XX o urbano assume características de civilidade acentuada, em oposição ao rural que predominava anteriormente. Cynthia Greive Veiga aponta profundas mudanças nas formas de tratamento entre alunos e professores, pois os castigos e as imposições se tornam menos aceitos na lógica da civilidade. A necessidade de produção de uma matriz urbana de comportamento social está atrelada ao crescimento das cidades. A autora afirma que a escola sempre foi parte da história das cidades, e que o crescimento destas torna necessário reorganizar a vida social.
Considerando a necessidade de regrar a vida urbana e implementar/internalizar os códigos de postura, a “escola estatal pública se desenvolve como fator de alteração da própria rotina das cidades”. Esse é o caso do Grupo Escolar de Lavras, um dos primeiros grupos de Minas a proporem diversas mudanças, até mesmo nas relações entre alunos e professores. No Boletim Vida Escolar Firmino Costa estimula as manifestações de carinho e delicadeza como formas de relacionamento no ambiente escolar. Há uma demarcação das diferenças geracionais, especialmente entre adulto e criança, com destaque para o papel relevante da mãe como responsável pelo cuidado da criança. Enfim, são diversos movimentos que indicam um novo trato do indivíduo e uma atenção à constituição de suas sensibilidades. O Boletim advoga a construção desse novo indivíduo sociável, de acordo com os tempos de civilidade.
É interessante que o repertório pedagógico de Firmino Costa foi construído com base nas ideias circulantes em um espaço de ambiência cultural, mas não se tratava de uma apropriação passiva, era um processo de apropriação e reelaboração, como bem destacam Juliana Cesário Hamdan e Luciano Mendes Faria Filho.
Por intermédio do Boletim, Firmino consegue propiciar visibilidade e circulação às ideias por ele defendidas, dentre as quais destacam-se a defesa do regime republicano, do ensino mútuo e do ensino profissional e a valorização da criança e das relações estabelecidas no interior do Grupo Escolar, enfim, diversas questões que se relacionavam com o período e anunciavam o seu repertório pedagógico.
No primeiro relatório que enviou às autoridades mineiras como diretor, Firmino relata que inaugurou o grupo em 13 de maio e logo publicou o primeiro número do Boletim. Ressalta que no impresso deveriam ser tratados assuntos relativos à instrução e à história do município. Dentre os temas educativos, o ensino profissional é o que mais povoa os textos de Firmino Costa no Boletim. A ideia predominante era de que a educação deveria aproximar o sujeito do trabalho, e que por meio do ensino profissional o governo poderia resolver o problema da educação do povo.
A ideia de que a escola deveria educar para o trabalho começou, lentamente, a ganhar espaço no século XIX, via escolarização dos ofícios manuais, dos Liceus de Artes e Ofícios, das escolas particulares e das instituições filantrópicas. Carla Simone Chamon, Irlen Antônio Gonçalves e Bernardo Jefferson de Oliveira analisam as proposições para o ensino profissional presentes no Boletim Vida Escolar. O processo de escolarização do trabalho ocorre concomitantemente às transformações das relações de trabalho em curso em Minas Gerais e em vários outros estados do país. Com o processo de industrialização, na virada do século XIX para o XX, ocorre um movimento de criação de escolas profissionais que visava alcançar os trabalhadores livres.
O ensino profissional foi incluído na reforma da instrução pública nacional em 1906, e um ano após já se percebem nas páginas do Boletim Vida Escolar estratégias discursivas que buscam convencer os leitores sobre a importância do trabalho e da escola. Nesse caso, preparar para o trabalho podia ser uma estratégia de convencer as famílias a manterem os filhos na escola, pois os índices de evasão eram consideravelmente altos no período.
Nas falas de Firmino Costa transcritas para o Boletim o ensino profissional na escola primária se relaciona à ideia da formação de um sujeito útil a si e à sociedade. Embora se perceba certo destaque no ensino técnico para as classes populares, há também notas que buscam desconstruir essa ideia: “nunca é demais saber um ofício”, afirmava Firmino Costa.
O Boletim Vida Escolar é uma possibilidade de investigação sobre diversos aspectos do processo de implementação e operacionalização dos grupos escolares em Lavras e em Minas Gerais. E ler o livro recém-lançado que analisa essa publicação é visitar, por meio do impresso, parte importante da história da escolarização no Brasil, considerando que a criação dos grupos escolares, no início do século XX, marca a ampliação e a complexificação da estrutura da escola pública brasileira..
Adriana Duarte Leon – Doutoranda, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil. E-mail: adriana.adrileon@gmail.com.
[IF]História e Mídia / Anos 90 / 2012
Há muito que os meios de comunicação social, também referidos genericamente e no singular como “a mídia”, participam do trabalho dos historiadores, precipuamente como fontes para suas pesquisas com objetivos que vão desde a busca de “fatos”, até a procura de dados para estudos sobre mentalidades, visões de mundo, cultura ou valores de determinadas épocas e lugares. Cada vez mais, porém, os próprios veículos se tem tornado objeto de pesquisas, não apenas para a produção de narrativas a seu respeito, mas em investigações que enfocam e analisam seus agentes e instituições, as concepções e visões de mundo que produzem e reproduzem, suas relações com as demais áreas da produção cultural, especificamente com a história enquanto produção acadêmica ou não, a sua relação com os demais agentes sociais, com o mercado, com a política, com a memória social.
O dossiê História e Mídia, que Anos 90 publica nesse número, reflete um pouco do estado da arte em termos da produção historio gráfica acadêmica a respeito do tema na América Latina. Os textos aqui contidos, de modo geral, se articulam em maior ou menor grau, a partir de estudos de casos, com preocupações epistemológicas e seus corolários teórico-metodológicos que as abordagens nessa área têm trazido para os historiadores. Assim, jornais, cinema, revistas, a televisão e o que produzem seus agentes são tomados como parte de objetos de estudos que findam por enfrentar questões relevantes para a historiografia que vão desde as relações entre determinados periódicos e o mundo cultural de uma sociedade ou época até a relação entre o que socialmente se entende por história, ou se procura fazer entender como tal, e aquilo que é veiculado reiteradamente por um periódico ou por programas de televisão. Ou seja, os artigos aqui apresentados não se limitam às suas excelentes contribuições específicas em termos dos temas e períodos que abordam, mas apontam para uma reflexão mais geral que discute história, memória, instituições sociais, produção e reprodução cultural, política – como disputa pelo poder e relação de dominação – e historiografia.
Desde o lançamento da proposta do dossiê, recebemos uma grande quantidade de artigos a cujos autores agradecemos muitíssimo. Lamentamos, porém, que a maioria não tenha sido incluída, o que ocorreu não pela falta de qualidade dos mesmos, pois muitos tiveram pareceres favoráveis, mas por uma decisão editorial que limitou o número de contribuições às dez aqui contidas.
Elas se iniciam com o trabalho de Marialva Barbosa que, tendo como pretexto “um olhar sobre as práticas, processos e sistemas de comunicação nas últimas décadas do século XIX”, com efeito propõe uma série de reflexões teóricas e, especialmente, metodológicas de apropriação histórica de objetos recortados na área dos meios de comunicação, os quais devem ser entendidos não em si mesmos, mas como imersos no espaço cultural maior a partir do qual se dá a sua produção e significação. A contribuição do artigo não se restringe a temas circunscritos ao período explicitado no seu título, ela é uma contribuição muito mais ampla, sendo aplicável a qualquer tema similar e, além disso, a qualquer escrita de história. A proposta é “que a história da comunicação seja sempre história dos processos e das práticas comunicacionais cujo procedimento metodológico desvende o circuito da comunicação”. Ainda segundo a autora, “uma história dos meios deve colocar a questão da comunicação como centro da reflexão e não apenas tentar descrever o conteúdo das mensagens ou remontar como se caracterizava a mídia outrora”.
O trabalho de Sônia Meneses, analisando o caso do jornal Folha de São Paulo e seu “projeto”, tendo como fonte principal mente os seus manuais de redação, discute a “operação midiográfica”. Este conceito, inspirado no de operação historio gráfica de Michel de Certeau, “tanto funciona para falar de práticas e elementos que conformam a produção midiática […], como sua posterior reprodução e ressignificação em vários ciclos hermenêuticos de significação do tempo”. A reflexão se volta para o modo como a produção midiática se torna também produção de um tipo muito específico de história e os mecanismos que lança mão para tal. Sônia Meneses aporta ainda mais elementos que contribuem com o aprimoramento das reflexões epistemológicas sobre a história e sua relação com o modo como é produzida, por quem é produzida e em quais condições, ao mesmo tempo em que enriquece as possibilidades teórico-metodológicas de apreensão pela historiografia acadêmica de objetos na área de história da mídia.
O trabalho seguinte é o de Claudio Elmir. Os desafios metodológicos da pesquisa em jornais é o seu foco básico. Tendo como ponto de partida uma pesquisa realizada com o jornal Última Hora, de Porto Alegre, as reflexões se voltam para os desafios encontrados, as perguntas formuladas à fonte e sobre ela e as possibilidades ou não de serem elas respondidas. Aqui o leitor encontra um tour pelo mundo da pesquisa acadêmica em periódicos diários de grande circulação, pelo que eles próprios são postos em questão e avaliados a partir dos desafios metodológicos que trazem à pesquisa histórica. “O jornal, nesta perspectiva da recepção, pode ser apropriado de formas as mais diversas. Quero propor uma breve digressão acerca de duas dessas maneiras de ler o jornal para fins de pesquisa. Uma delas […] consiste em tomá-lo (1) com fonte de informação. A segunda […], (2) faz dele objeto intelectual da pesquisa”. Claudio Elmir convida para uma crítica documental e para uma “aventura” pelos meandros da pesquisa histórica e seus desafios.
Marcelo Borrelli estuda o diário portenho El Clarín no período dos últimos meses do governo de Isabel Perón e dos primeiros do governo civil-militar instituído pelo golpe de Estado de 24 de março de 1976. Tem como tema específico o modo como o jornal apoiava as políticas de Estado e as ações clandestinas, “paraestatais”, voltadas para a “luta anti-subversiva”, a qual resultou, como todos sabemos, na carnificina que ceifou milhares de vidas de argentinos e de outras vítimas que foram assassinadas sem direito a qualquer procedimento jurídico-legal. Um estudo desse tipo “se torna imprescindível para se compreender o contexto que circundou o golpe de Estado de 24 de março de 1976, como também os argumentos que legitimaram um aprofundamento da repressão voltada contra os setores da esquerda radical e peronista mais combativos”. Num momento em que se implanta na Argentina a chamada Lei da Mídia de 2009, a qual visa extirpar monopólios e oligopólios na área da propriedade de meios de comunicação entre outras disposições, essa discussão a respeito do apoio que certas empresas monopolistas deram a ações criminosas implementadas por agentes estatais e paraestatais antes durante e depois dos regimes civis-militares latino-americanos mais recentes é extremamente pertinente e, mais ainda, necessária.
O texto de Reinaldo Lohn se debruça sobre questões semelhantes às abordadas por Marcelo Borrelli e, em parte, por Sônia Meneses. Estuda o periódico O Estado de Florianópolis, sob o ponto de vista de suas narrativas, as quais vinham ao encontro de uma certa visão de sociedade e país que se estava tentando estruturar desde os inícios do regime civil-militar de 1964. No caso da capital de Santa Catarina, um discurso do “novo” e do “moderno” que secundava e antecipava movimentos estatais e da iniciativa privada que transformavam a ocupação dos espaços urbanos da cidade com a substituições de edificações tidas como “casas velhas” por prédios “novos” de vários andares, bem como pela abertura de vias urbanas rápidas, parques e calçadões. Nesse caso, o “discurso jornalístico apresenta-se […] como uma das mais destacadas instâncias organizadoras do social, o que incluiu a definição sobre o que deve ser lembrado ou esquecido”.
Claudia Feld realiza uma profunda reflexão a respeito das conexões entre memória social e um meio específico de comunicação, a televisão. Toma como pretexto a reativação mais ampla da discussão na sociedade argentina, que ocorreu a partir de meados dos anos 1990, a respeito dos crimes da sua última ditadura civil-militar, especialmente as prisões, as torturas e as mortes patrocinadas por agentes e agências estatais e paraestatais. A televisão aparece como enquadrável em três eixos que seriam os seguintes: 1) como “empreendedora da memória”; 2) como “cenário da memória”; 3) e como veículo de transmissão de memória entre gerações. A partir de uma sólida discussão com as principais contribuições teóricas e epistemológicas a repeito, o trabalho mostra “que não se pode tomar a televisão isoladamente, porém todo o processo de memória e os atores envolvidos; mas tampouco se pode desconhecer o enorme potencial que tem a representação televisiva nos atuais processos de construção de memórias”.
O trabalho de Margarida Adamatti, por seu turno, também se situa em termos cronológicos no período da mais recente ditadura civil-militar brasileira, enfocando a questão da produção cinematográfica épico-histórica nacional em relação com o regime e, especialmente, em relação com a crítica de cinema em jornais “alternativos”. A sua opção metodológica é mais tradicional, de análise de conteúdo, mas obtém resultados interessantes no sentido de explicitar os critérios que lastreavam os autores das críticas, colaboradores dos jornais Opinião (1972-7) e Movimento (1975- 81), e as discussões que se travavam a respeito das produções cinematográficas, ou melhor, tendo elas como pretexto, pois “os jornais contribuíram com a disseminação de um pensamento historio gráfico oposto ao praticado pela grande imprensa, afinal foi a relação indissociável entre política e cinema que mudou a visão tradicional sobre a função da crítica de cinema.”
Luís Carlos Martins enfoca o período histórico anterior ao da implementação do regime civil-militar no Brasil. Na década de 1950, sob o governo de Getúlio Vargas, discutiram-se intensamente as questões da criação de uma empresa estatal petrolífera e do monopólio estatal no setor. Os principais jornais do país participaram ativamente do processo, o que o artigo analisa em detalhes no que diz respeito à imprensa do Rio de Janeiro, então capital da República. Ao contrário do que se poderia supor, pois é um tanto difundido na bibliografia que a “grande imprensa” dita “liberal” fazia figadal oposição ao governo “nacionalista” de Vargas, “no que se refere à relação entre os jornais e o universo político, notamos que os primeiros adotam sinuosas e distintas estratégias conforme os agentes do segundo se movem taticamente em torno do tema”. Isso aponta para a necessidade de que as pesquisas se aprofundem ainda mais nessa complexa relação entre imprensa e política que dificilmente pode ser reduzida a um maniqueísmo estreito.
O artigo de Aristeu Lopes tem como fonte as imagens presentes em periódicos da “imprensa ilustrada” do Rio de Janeiro na década de 1870. Seu objetivo é analisar a presença de uma simbologia republicana e como ela se articula com a imprensa de humor em si mesma e com um período marcado no Brasil pelo início da chamada “propaganda republicana” mais organizada e sistemática, ancorada em um Partido Republicano. A perspectiva adotada aponta para que “os periódicos analisados […] constituem uma fonte de pesquisa que permite compreender um momento da história do Brasil Imperial demarcado pelo surgimento de grupos políticos que passavam a contestar a ordem estabelecida”. Ou seja, o recurso aos jornais e sua produção não são um fim em si mesmo, mas uma estratégia teórico-metodológica para uma abordagem propriamente historiográfica.
O trabalho que encerra o dossiê é o de Mauro Franco. Seu objetivo é refletir sobre as “figurações do outro” através da imprensa brasileira no século XIX, especialmente a Revista Brasileira, em sua primeira fase de circulação (1857-61). A análise se volta para os conteúdos publicados na revista, tanto quanto às origens dos textos (boa parte composta por traduções de originais publicados em revistas francesas), quanto às suas características que visavam transformar o periódico em “um índice, um sintoma de uma nação / civilização que desejava por meio da palavra impressa contribuir para o desenvolvimento econômico, científico e artístico, em especial, do espaço público do jovem país.” Novamente, o recurso a um periódico abre a possibilidade para a reflexão a respeito das características mais gerais da sociedade imperial brasileira e suas elites.
Esperamos com esse dossiê contribuir para as discussões e reflexões a respeito do tema proposto, seus desdobramentos, limites e possibilidades.
Bom proveito.
Luiz Alberto Grijó.
GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, dez., 2012. Acessar publicação original [DR]
Trabalho e Trabalhadores / Revista Brasileira de História / 2012
A Revista Brasileira de História, criada em 1981 com o objetivo de se constituir em um canal de divulgação da produção dos professores e historiadores brasileiros, está lançando seu 64º número. Com periodicidade semestral, a partir do número 59 a RBH iniciou uma nova etapa, passando a ser somente digital e a oferecer uma versão em inglês. Essas inovações visam agilizar a consulta dos volumes novos e antigos, bem como ampliar o escopo de circulação do periódico, permitindo que um público não conhecedor da língua portuguesa possa acessar nossa produção.
Neste número o Conselho Editorial elegeu o tema “Trabalho e Trabalhadores” para o Dossiê que, seguindo a trilha do anterior, também está sofrendo uma ampliação no que diz respeito ao número de artigos publicados. Como já dissemos, o interesse em publicar na RBH tem sido crescente na comunidade de historiadores e cientistas sociais, e a cada número aumenta o volume de contribuições para avaliação. Neste número, recebemos cerca de cem artigos apenas para o Dossiê, dos quais um montante expressivo foi aprovado pelos nossos pareceristas, sem que tenhamos condições de publicar todos. Essa nova demanda da produção historiográfica brasileira em busca de canais para internacionalização dos seus estudos é muito bem-vinda, mas coloca muitos desafios para a RBH e indica a necessidade não só de ampliarmos a extensão dos números, mas também de repensarmos sua periodicidade. Este número conta com 15 artigos.
Para o Dossiê “Trabalho e Trabalhadores” foram selecionados nove artigos focados essencialmente na realidade brasileira, com apenas dois dedicados aos Estados Unidos e a Portugal. No que diz respeito aos recortes temporais, pudemos selecionar textos que abordavam diferentes conjunturas, contemplando desde as relações de trabalho no final do século XIX até a problemática do trabalho análogo ao escravo, já no século XXI. Quanto às formas de abordagem, são apresentados trabalhos que adotaram como estratégia de pesquisa o estudo de trajetórias de lideranças, assim como análises de movimentos sociais como greves e lutas contra a repressão. Do conjunto de textos recebidos e selecionados podemos dizer que essa área de trabalho, que por um expressivo período se mostrou em declínio, apresenta-se agora com grande dinamismo e de maneira renovada. Assim, do ponto de vista historiográfico é possível detectar que esse campo de investigação sobre o trabalho dá indicações de voltar a ser alvo de grande interesse dos pesquisadores, conquistando um novo espaço entre os objetos nobres de pesquisa. Iniciamos com um artigo de Leon Fink que apresenta análise historiográfica com foco especial nos Estados Unidos sobre a renovação dos estudos na área de trabalhadores. Joana Vidal de Azevedo Dias Pereira estuda espaços industriais e comunidades operárias na periferia de Lisboa, na virada para o século XX. Joseli Maria Nunes Mendonça no artigo “Sobre cadeias e coerção: experiências de trabalho no Centro-Sul do Brasil do século XIX” trabalha com a história de uma imigrante portuguesa estabelecida no Centro-Sul cafeeiro de meados do século XIX, com o objetivo de recuperar aspectos das experiências vivenciadas por trabalhadores juridicamente livres; Endrica Geraldo com “Os prisioneiros do Benevente” discute a repercussão pública da deportação, no ano de 1919, de 23 imigrantes, incluindo o militante Everardo Dias, episódio que revela aspectos importantes da repressão contra o movimento operário no Brasil. Aldrin Armstrong Silva Castellucci com o texto “Agripino Nazareth e o movimento operário da Primeira República” analisa a atuação dessa liderança socialista no movimento operário brasileiro. Antonio Luigi Negro em “Não trabalhou porque não quis” examina como a Justiça do Trabalho tratou uma greve no ramo têxtil baiano em 1948, procurando aplacar temores e tensões do sistema político e sindical brasileiro. Clarice Gontarski Speranza em “Os mineiros de carvão, seus patrões e as leis sobre trabalho: conflitos e estratégias durante a Segunda Guerra Mundial” estuda uma série de conflitos ocorridos nas minas de carvão no Rio Grande do Sul em 1943, com foco nas lutas pelo cumprimento de leis trabalhistas. Cristiana Costa da Rocha com “Os Retornados: reflexões sobre condições sociais e sobrevivência de trabalhadores rurais migrantes escravizados no tempo presente” dedica-se ao estudo de trabalhadores rurais de Barras, Piauí, que migram repetidas vezes para os estados do Pará, Mato Grosso e Goiás e vivenciam formas de trabalho análogo à escravidão. Fechando o dossiê, Ângela de Castro Gomes no texto “Repressão e mudanças no trabalho análogo a de escravo no Brasil: tempo presente e usos do passado” analisa a ação dos Grupos de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho e Emprego, e da Igreja católica, pela Comissão Pastoral da Terra, na apuração e punição das denúncias da utilização do denominado trabalho escravo.
A seção de avulsos apresenta seis artigos. Carmen Teresa Gabriel Anhorn em “Teoria da História, Didática da História e narrativa: diálogos com Paul Ricoeur” tem por objetivo discutir a potencialidade analítica da categoria ‘narrativa’ na reflexão sobre produção, distribuição e consumo do conhecimento histórico. Muryatan Santana Barbosa com “A construção da perspectiva africana: uma história do projeto História Geral da África (Unesco)” analisa a construção dessa grande obra focando o período entre 1965 e 1979; Patricia Santos Hansen com o texto “Território em disputa: a escola na luta entre o republicanismo e a Igreja em Portugal (séculos XIX e XX)” discute conceitos centrais aos processos de secularização e laicização do ensino em Portugal desde a Monarquia Constitucional até o início da Primeira República. Luís Miguel Carolino em “Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro e a definição de um gênero científico no Brasil em inícios do século XIX” analisa a atuação de um professor de astronomia na Academia Real Militar do Rio de Janeiro que produziu um dos primeiros manuais de astronomia esférica, um gênero maior da literatura científica do século XIX. Luiz Alberto Grijó com “Soldados de Deus: religião e política na Faculdade de Direito de Porto Alegre na primeira metade do século XX” aborda as ideias e concepções filosóficas que predominaram nessa Faculdade, focalizando as disputas entre os católicos e os chamados positivistas. Mara Rúbia Sant’Anna em “De perfumes aos pós: a publicidade como objeto histórico” trata dos anúncios de cosméticos publicados na revista Fon-Fon! de 1911 a 1934, com o objetivo de destacar as rupturas e continuidades.
Este número apresenta ainda entrevistas com os historiadores franceses Christian Delacroix e François Dosse e publica quatro resenhas: Adriana Duarte Leon analisa Boletim Vida Escolar: uma fonte e múltiplas leituras sobre a educação no início do século XX, organizado por Ana Maria de Oliveira Galvão e Eliane Marta Teixeira Lopes; Iara Lis Franco Schiavinatto apresenta Viagem ao Cinema Silencioso do Brasil, organizado por Samuel Paiva e Scheila Schvarzman; Maria Filomena Pinto da Costa Coelho analisa Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central, de Leandro Duarte Rust, e, por último, Wolney Vianna Malafaia resenha História e documentário, organizado por Eduardo Morettin, Mônica Kornis e Marcos Napolitano.
Mais uma vez convidamos nossos leitores a consultar o site da Anpuh e do SciELO e baixar nos computadores ou nos leitores digitais os artigos de seu interesse.
Marieta de Moraes Ferreira
FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.32, n.64, dez, 2012. Acessar publicação original [DR]
Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória – BAUER (AN)
BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Medianiz, 2012, 330p. Resenha de: PADRÓS, Enrique Serra. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 479-484, jul. 2012.
O livro de Caroline Silveira Bauer, que serviu como mote para esta resenha, constitui inestimá vel contribuição sobre uma temática pendente na sociedade brasi leira, o embate entre Políticas de Memória e Políticas de Esqueci mento relacionado ao passado ditatorial, dentro de uma perspectiva histórica. A partir de um olhar simultâneo sobre as ditaduras civil-militares de segurança nacional do Brasil e da Argentina, o estudo resgata, mediante análise rigorosa, a profundidade, a complexidade e a precisão de dinâmicas e conjunturas particulares e balizadoras de um exercício comparativo que permite destacar e compreender os pontos de encontro e desencontro das experiências concretas.
Resultado de profunda pesquisa documental sobre os arquivos produzidos pelos regimes repressivos, do mergulho nas legislações pertinentes e de uma apurada avaliação dos mecanismos e do funcionamento da violência estatal, em cada um dos países, a obra centra o foco na questão dos desaparecimentos políticos e seu entorno específico. Entretanto, isso é feito sem perder de vista o funcionamento de um terrorismo de Estado que envolve a sociedade como um todo, através de tantos outros elementos coercitivos, explícitos ou não, e do delineamento dos círculos concêntricos e vasos capilares irradiadores de práticas cotidianas de anestesiamento e desmobilização. Assim, é muito elucidativa a menção feita a um personagem criado pelo psicanalista argentino Eduardo Pavlovsky, o Senhor Galindez, um funcionário da ditadura, quando este diz: “Para cada uno que tocamos, mil paralizados de miedo. Nosotros actuamos por irradiación”. É a explicitação do terror na sua forma mais abrangente, envolvente, massiva. Portanto, o medo, nas suas diversas formas de manifestação, surge como sensação fantasmagórica diluída, introjetada, asfixiante, pairando entre os indivíduos, contaminando suas relações e definindo estratégias de sobrevivência. Tal medo é um fator fundamental de dominação no contexto das ditaduras; sua percepção e lembrança, durante os processos de transição, constitui fator essencial na lógica de disputas entre memória e desmemória dos fatos acontecidos, bem como das responsabilidades decorrentes.
A obra está estruturada em três capítulos: 1) A prática do desaparecimento nas estratégias de implantação do terror; 2) A transição política e os desaparecimentos; e 3) Políticas de Memória e Esquecimento. Há um núcleo comum de métodos repressivos em ambos países, mas diferentes na aplicação. Essa diferença é motivada por conjunturas e urgências diferentes, que, por sua vez, são responsáveis por graus diferenciados de extensão e intensidade. Porém, na sua essência, manifestam-se não só nos países comparados, mas em todo o Cone Sul.
O texto não foge das questões cruciais. Reconhece a existência de diferenças significativas entre Brasil e Argentina, entre as quais uma presença mais constitucional e legal, no caso do Brasil, e mais clandestina e de extermínio, no caso argentino. Contudo, não refuga diante dos argumentos que resultam da comparação direta baseada nos números do extermínio físico que servem de base das justificativas de toda relativização da violência utilizada pela ditadura brasileira. Efetivamente, a essa argumentação Bauer contrapõe que é de maior relevância a compreensão do paralelismo na montagem das estratégias repressivas do que comparar número de opositores mortos e desaparecidos. A política de desaparecimentos constitui uma dessas estratégias que, em última instância, mantém toda a sociedade como potencial vítima do terrorismo de Estado (p. 33).
A problemática que envolve o desaparecimento, como expressão de um complexo e profundo processo repressivo, é crucial na pesquisa de Bauer. É assim que a autora mergulha nesse processo, perscrutando uma dinâmica de etapas sequenciadas ou encadeadas, e, principalmente, o rol dos mecanismos constitutivos – sequestro, tortura, incomunicação, censura, hostilização etc. –, os quais funcionam como componentes desse sistema, entrando nas arestas do seu encaixe e produzindo consequências diversas sobre a sociedade, sempre impactantes. Tudo isso faz parte do que é identificado como “Estratégia da implantação do terror”, que gera consequências difíceis de integrar em uma única dimensão explicativa, por isso a ideia de fragmentos “incoláveis” (p. 103-104).
Portanto, a prática de desaparecimento, algo inédito na região enquanto política de Estado, complementa-se com os silêncios, os diversionismos, as mentiras oficiais oferecidas aos familiares das vítimas; ou seja, não há pistas, nem respostas, nem informações. Se por um lado tal ação atinge diretamente aqueles que buscam alguém, por outro, acaba alimentando uma situação não desejada, qual seja a possibilidade de ser compreendida como crime contínuo e, a partir dessa compreensão, abrir uma brecha na estrutura de impunidade.
No ápice da eficiência dessa engrenagem, o desaparecimento significa, literalmente, “a morte da própria morte” (p. 30). É contra esse objetivo procurado veementemente pelas ditaduras de segurança nacional e aqueles que, tendo capacidade de decisão, omitiram-se em relação a esse passado imediato, que vão se manifestando, de forma difusa, os esforços reivindicativos que apontam embrionariamente à elaboração de políticas de memória; no início, isso pode ocorrer à margem da legalidade, mediante pequenas ações de resistência individuais ou de iniciativas desencadeadas por organizações de direitos humanos que surgem ou se consolidam nesse embate.
Particularmente, o trabalho de Bauer incide, de maneira especial – amparada nos marcos do debate sobre o tempo presente –, no que é considerado ponto de infl exão e de superação das tendências de consolidação do esquecimento e da impunidade nos países em questão, ou seja, a ruptura derivada da irrupção de projetos políticos que, de forma díspar, recolocaram o resgate do passado imediato e o debate da consigna “Memória, Verdade e Justiça”, no início dos anos 2000.
A erudição do texto está garantida pela qualidade da proposta da autora e do diálogo que ela estabelece com a produção historiográfica especializada nos variados aspectos que encaminham o seu percurso de pesquisa e análise. Assim, desfilam no roteiro das questões e refl exões que se sucedem no transcorrer da narrativa autores como Irene Cardozo, Ludmila Catela, Horacio Riquelme, Dominique Lacapra, Marie-Monique Robin, Pierre Abramovici, José Martins Filho, Juan Corradi, Ricard Vinyes, Hugo Vezzetti e Emilio Crenzel, entre tantos outros.
Entre as diversas conclusões apresentadas no volumoso e aprofundado estudo, sobressaem-se os resultados recolhidos nos últimos anos, em experiências tão diferentes como a brasileira e a argentina. Eles permitem confirmar que, de certa forma, contextos marcados por silêncio, esquecimento induzido e impunidade, ou seja, marcados pela ausência da atuação da Justiça, também são contextos de ausência da Verdade (como sinônimo de informação, esclarecimentos e respostas devidas). Em contrapartida, quando ocorrem iniciativas concretas que possibilitam encarar o passado traumático, o resgate da Memória e da Verdade torna-se possível, consequente e, em parte, até reparador. Ainda, essas iniciativas podem ser incorporadas ao presente cidadão, mantendo a expectativa da atuação da Justiça, em um futuro indefinido, apostando em que a compreensão dos seus efeitos sociais depuradores do entulho autoritário possa constituir um componente de mobilização rumo a uma sociedade mais ética e democrática.
A importância da obra reside em mostrar a longa continuidade projetada como objetivo pelas ditaduras de segurança nacional, a inconclusão da resolução dos seus crimes, objeto de negociação que garantiu a imunidade perpétua da impunidade para aqueles que deram e executaram tais ordens. Sabe-se que a recuperação do cenário democrático trouxe duas grandes frustrações a curto prazo: a primeira, o fato de que os problemas socioeconômicos não se resolveram com o fim da ditadura; a segunda, a ausência de Justiça combinada com os generosos e cúmplices silêncios e esquecimentos disseminados desde o estado pelo conjunto da sociedade. Neste ponto, Bauer utiliza as palavras de Zaverucha (p. 199-200), para não deixar dúvidas a respeito do sentido real do fim das ditaduras: “Os militares deixaram de ser governo, mas continuaram no poder”, o que lhes permitiu se justificarem como vitoriosos. E mesmo na Argentina, as ações golpistas dos “cara-pintadas” mostraram que havia limites e incertos cenários diante da relação de forças existente.
O rastro que a obra faz do roteiro do embate entre as medidas de resgate e de esquecimento é outro dos seus pontos altos.
Cuidadosa e sistematicamente, elabora a cronologia contextualizada dos avanços, recuos, retrocessos e novos avanços. A análise das leis de anestesiamento, esquecimento ou impunidade, como queira-se defini-las, é realizada com critério e riqueza de detalhes, abrindo o ângulo do foco para contemplar e avaliar as posições e os fatores em jogo, sem perder de vista a lógica cambiável do posicionamento desde o Estado, bem como a pressão incansável das organizações de direitos humanos, especialmente as que representam os familiares de mortos e desaparecidos e dos sobreviventes. Nessa perspectiva, a autora reconhece como uma espécie de paradigma universal, na investigação sobre as políticas de memória e da aplicação dos elementos componentes da justiça de transição, o que reconhece como “Efeito K” na área de direitos humanos, sintetizado pela ordem dada pelo presidente Néstor Kirchner de retirar quadros de repressores em ambientes públicos, inclusive militares (p. 310). Cabe um último reconhecimento, no caso brasileiro, o estudo do apelo à justiça internacional, por parte dos familiares das vítimas – amparados em organismos de direitos humanos e defensores históricos dos mesmos –, como possibilidade de responsabilizar um Estado vitimário que é protegido e poupado pelos argumentos jurídicos elencados pelo Supremo Tribunal Federal. Tal situação reveste-se da maior relevância, pois, ao se constituir como fato inconcluso do tempo presente de um passado traumático, ainda aberto, seus futuros desdobramentos deverão definir um caminho para resolver situações de uma história sensível quando bloqueados internamente por interpretações e medidas paradoxalmente aceitas pelo Estado democrático.
A contribuição da obra de Carolina Bauer reveste-se da maior relevância, considerando a necessidade e a ousadia de colocar, lado a lado, duas experiências que, embora mantendo especificidades concretas, possuem evidentes aproximações, paralelismos, semelhanças em certos aspectos e conexões reconhecidas. Deve-se destacar, finalmente, que colocar o resgate da história recente sob o crivo do debate sobre as políticas de memória é uma atitude metodológica que merece ser salientada, já que sinaliza para a história em si dessas experiências traumáticas, e para como seus desdobramentos foram projetados no tempo e na sociedade, pois, tal qual afirma Mariana Caviglia: “Cuando el terror se vuelve política de Estado, como en la dictadura, las consecuencias de esa dominación no culminan al tiempo que ésta se retira del poder; se llevan en el cuerpo y se transmiten de generación en generación […]” (p. 113). Essa é uma realidade que está longe de ser esgotada.
É na procura de dar inteligibilidade a este processo tão complexo e de recuperar significados remarcados conjunturalmente que o estudo comparativo de Caroline Bauer se mostra denso e qualifi– cado nos aportes consequentes que traz ao debate historiográfico.
A combinação dos efeitos produzidos diante da abertura de novos caminhos que estão sendo trilhados pelo Brasil – finalmente com uma política de Estado sobre estas questões (sem entrar no mérito dos objetivos ou das intenções da mesma) –, com o produto social, político e ético que resulta da consolidação da atuação incisiva da justiça na Argentina, permite selecionar matéria-prima para aprofundamento de muitas das refl exões que pioneiramente constituem este Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória.
Sem dúvida, trata-se de uma leitura imprescindível e de extrema valia para quem pretende se aprofundar nestas instigantes temáticas vinculadas ao passado recente e traumático do Cone Sul.
Referências
CAVIGLIA, Mariana. Dictadura, vida cotidiana y clases medias: una sociedad fracturada. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. p. 25-26.
ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de sabres: controle civil ou tutela militar? São Paulo: Ática, 1994. p. 11.
Enrique Serra Padrós – Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS. E-mail: lola@adufrgs.ufrgs.br.
Teoria da História (v. 4) Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história | José D’Assunção Barros
BARROS, José d’Assunção. Teoria da História, vol. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2011, 447p. Resenha de: MARQUES, Juliana Bastos. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 485-489, jul. 2012.
Paul McCartney, reconhecido como um dos compositores populares mais prolíficos e talentosos do mundo contemporâneo, costuma citar com frequência que nunca quis aprender teoria musical, para que o conhecimento formal não o prejudicasse ao compor.
Essa “ingenuidade teórica” também constitui mais em benefício do que em um eventual empecilho para o leitor na compreensão do texto do professor José d’Assunção Barros, em sua ousada proposta de empregar a teoria musical para construir uma metáfora de compreensão da historiografia.
O volume aqui resenhado faz parte de uma série dedicada à apresentação e discussão de temas fundamentais sobre Teoria da História, sendo precedido por um primeiro volume que trata de conceitos mais abstratos e gerais, além de dois outros com uma análise da história da historiografia a partir do seu estabelecimento como disciplina profissional no século XIX. Ainda não publicados, mas já anunciados, seguem outros dois volumes sobre as tendências mais recentes formuladas no séc. XX. Nesse sentido, o volume IV mostra-se como um interlúdio (a alusão ao termo é intencional) dentro da proposta da coleção, retomando a apresentação de alguns autores já analisados em outros volumes (Ranke, Marx, Benjamin) e introduzindo capítulos relativos ao pensamento de Droysen, Weber, Ricoeur e Koselleck. A proposta é utilizar a metáfora do acorde musical para classificar e explicar as infl uências intelectuais durante a carreira acadêmica dos autores citados, o que se apresenta também como uma proposta geral para eventuais estudos seguintes com outros autores que pensam o fazer historiográfico (como se vê, não necessariamente historiadores). Coloca-se para avaliação, portanto, uma questão primordial: se e como a metáfora funciona e o quanto é útil para o que se propõe.
O autor explica, no primeiro capítulo, de forma simples, os conceitos que utiliza e o desconhecimento prévio de teoria musical por parte do leitor não deverá trazer grandes dilemas para a compreensão da metáfora. Logo de início, explica-se o que é um acorde musical: “[…] um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita” (p. 15). Assim, classificar um autor dentro da proposta significa traçar essas “notas” que comporiam o acorde, que podem ser tanto correntes teóricas específicas que formariam sua identidade teórica e/ou historiográfica (por exemplo, a Hermenêutica em Ricoeur), como também infl uências pessoais (a religiosidade em Droysen) ou técnicas metodológicas (o “comparativismo” em Max Weber). O único autor dentre os analisados que parece se encaixar mais diretamente na compilação de um acorde que o defina é Ranke, que Barros classifica como “monódico”, por causa da constância das infl uências nele detectáveis durante toda a sua vida – assim, o acorde de Ranke seria constituído pelas “notas” Historicismo ou crítica documental como “nota fundamental”, estilo, Fichte, religiosidade e nacionalismo (o idealismo hegeliano apresentar-se-ia como uma “antinota”, termo cuja correspondência musical me escapa). Todos os outros autores, em maior ou menor grau, têm complexidades classificatórias tais que parece impossível construir apenas um único acorde que os abarque, dilema que Barros resolve com o fato de que diferentes acordes consonantes entre si podem ser construídos no tempo de acordo com as mudanças inerentes às trajetórias intelectuais analisadas.
O texto não procura uma rigidez classificatória, como pode parecer à primeira vista, mas o resultado disso nos diferentes capítulos é irregular. As análises de Ricoeur e Koselleck, talvez não por coincidência os autores mais recentes, beneficiam-se de uma atenção maior às ideias originais dos próprios autores, em especial no segundo caso. Dado que o texto de Barros é deliberadamente claro e fl uente (como ele anuncia no primeiro livro), tais capítulos servem como introduções bastante úteis a questões tais como o embate hermenêutico entre a subjetividade e a objetividade em Ricoeur, ou as refl exões sobre o tempo e o progresso em Koselleck – por vezes, o texto lembra claramente o formato de uma aula.
Para o eventual historiador que também conheça teoria musical, no entanto, a metáfora parece incompleta, às vezes afl itiva no que lhe falta. Um acorde musical jamais existe sozinho, sendo apenas a expressão mais sucinta da harmonia determinada dentro de uma tonalidade (dó maior, mi bemol menor, assim por diante), quando não ao menos em relação a uma pauta e clave que o localize sonoramente. O acorde de, digamos, fá maior, é definido primariamente como o conjunto da tônica (nota principal, o próprio fá maior) e as notas que soam harmonicamente mais próximas a ela dentro da série harmônica, no caso a terceira e a quinta a partir da tônica dentro da escala, portanto lá e dó. A rigor, qualquer outra nota poderá fazer parte do acorde dentro da tonalidade de fá maior, considerada sua relação harmônica com a nota principal. Sendo assim, é possível notar que a lógica fundamental de um acorde é a própria relação entre as notas (os intervalos entre a tônica e quaisquer outras notas que o acorde forme), determinada pela tonalidade como um conjunto – isso sem mencionar outras formas musicais que não o sistema tonal, também possíveis. Ora, essa complexidade está ausente da metáfora de Barros, que usa o acorde apenas como um empilhamento de “notas” em cima de uma nota fundamental (nunca chamada de tônica no texto), sem relacioná-las entre si e à suposta tonalidade que as constitui.
Por exemplo, se supomos que a tônica de Max Weber seja o Historicismo (p. 131) – aliás, por que a tônica de um autor não pode ser o próprio autor? Ou o autor seria a tonalidade como um todo? –, qual seria a relação (tecnicamente falando, o “intervalo”) da tônica com as “notas” filosofia neokantiana (sua “nota de topo”, termo que também me escapa: seria uma sétima maior ou simplesmente a nota mais aguda?), ou com o já citado “comparativismo”? Uma forte quinta justa ou uma sutil sexta maior? Para a teoria musical, essas diferenças são absolutamente determinantes quando se constrói um acorde. Como a “tríade temática fundamental” da política, economia e religiosidade de Weber poderiam se constituir em uma só “nota” (p. 140)? E os “harmônicos ocultos” de Marx e Nietzsche, como se relacionam com o acorde? Não seria o caso de se estabelecer uma sequência harmônica dos acordes de autores em constante mudança como Ricoeur ou Foucault, como em um coral de Bach, ou também uma eventual melodia das obras do autor também seria expressiva dentro da metáfora? A própria ideia de melodia parece quase desimportante dentro do conjunto da metáfora, até que surge, no capítulo sobre Koselleck, quando Barros propõe que o “[…] devir histórico (ou a sensibilidade humana diante desse devir) apresenta na verdade uma natureza musical, impulsionando-se a partir de melodias que se entrelaçam e que se contraponteiam, umas convergindo com outras, outras em relação de divergência” (p. 294). A melodia significaria então o movimento histórico humano no meio de onde se tocam os acordes de cada pensador? É uma pena que Barros não desenvolva essa ideia em todo o texto, pois ela me parece rica em possibilidades, bastante coerente e de uma poesia encantadora.
Acredito que o autor esteja plenamente consciente dessas questões, dado que também tem sólida formação musical. Minha impressão sobre qual seria o motivo dessas relações fundamentais não serem explicitadas na metáfora é que requereriam um trabalho exponencialmente mais complexo e demandariam um conhecimento musical bem mais avançado do leitor para compreender todas as relações harmônicas realmente embutidas na metáfora do acorde musical. Nesse sentido, entendo a proposta de Barros até mesmo como um convite, ainda que não explicitado, para que essas nuan ces musicais sejam futuramente analisadas, por historiadores ou por músicos. Embora a princípio isso pareça um esforço de classificação direto demais, a teoria musical comporta, nos dias de hoje, uma liberdade muito maior de relações sonoras do que a harmonia tradicional de Bach, assim como é evidente que não se pode classificar as influências e a trajetória intelectual de um determinado autor dentro da história do pensamento histórico também em rígidos paradigmas ou etiquetas.
Sendo assim, o livro tem o mérito de ultrapassar em muito seu caráter didático, que em si já é bastante louvável, dada a clareza da explicação providenciada pelo autor sobre as trajetórias intelectuais dos autores analisados. Como um trabalho experimental, no entanto, é o primeiro passo de muitos a serem dados no sentido da interdisciplinaridade profunda que é sim possível entre História e Música, pois são ambas realizações eminentemente humanas que se constroem no tempo e têm historicidades ligadas a influências e a regras, transcendendo-as em busca de ordenações originais para representar o mundo.
Juliana Bastos Marques – Professora Adjunta. UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Pós-Doutorado em História pela USP (Universidade de São Paulo). Email: leirunirio@gmail.com. Endereço: Rua Dr. Júlio Otoni, 278 fundos. Bairro Santa Teresa. Rio de Janeiro/RJ. CEP 20241-400.
Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul / Anos 90 / 2012
O Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul, que integra o presente número da Revista Anos 90, confirma o crescimento e a excelência das pesquisas que, sobre essa temática, vêm sendo realizadas nos países do Cone Sul. Nesse sentido, o avanço da produção historiográfica é inegável. Tal fato decorre, por um lado, de uma certa mirada simultânea na valorização da História Recente regional; por outro, pelo contexto de mudanças políticas na região, fato que não é alheio à revalorização do passado imediato. Nesse sentido, há, no presente, o interesse social pelo resgate da experiência histórica de uma geração que viveu singularmente aquele período autoritário, bem como uma agenda de demandas sobre questões inconclusas (abertura de arquivos repressivos; papel da justiça; reparações; formação de comissões da verdade etc.). Tais demandas redimensionam as contribuições que os historiadores e profissionais de outras áreas geram a partir das suas pesquisas e dos seus trabalhos de divulgação, permitindo, ainda, a socialização de um conhecimento que possibilita à sociedade maior aproximação a um passado ainda pouco conhecido e interditado por controversas políticas de esquecimento.
Deve-se salientar, também, que uma perspectiva de conjunto sobre o Cone Sul – independentemente dos traços singulares que, evidentemente, emolduram as experiências locais e nacionais – possibilita desenvolver uma percepção dos elementos comuns, paralelos, semelhantes e, em diversos casos, conectados. O atual panorama político dos países da região tem estimulado o debate sobre leis de anistia, acessibilidade dos arquivos repressivos, comissões de verdade e justiça de transição, papel das testemunhas, herança das experiências traumáticas e formas de reparação, bem como avanços e recuos do Poder Judiciário diante dos crimes do terrorismo de Estado. Portanto, não só a academia tem se mostrado receptiva a esta dinâmica efervescente em relação à história recente, como outros protagonistas têm incidido no debate, caso de partidos políticos, associações de direitos humanos, mídia, forças armadas etc., gerando um vigoroso processo de interação que é retroalimentado pela simultaneidade de iniciativas tão diversas, mas que coincidem em um redimensionamento e valorização do passado recente.
O conjunto de quatorze artigos e uma resenha que compõem o Dossiê (resultado de exigente processo seletivo que envolveu mais de trinta e cinco artigos recebidos) reflete as problemáticas anteriormente citadas, incluindo aspectos vinculados aos antecedentes e às transições posteriores, enfatizando diversos subtemas correlatos: fontes e arquivos; fundamentação doutrinária; conexão repressiva; discussões teóricas; papel da memória; efeitos traumáticos etc.
O Dossiê inicia com a apresentação de um consistente artigo do professor Bruno Groppo, pesquisador do Centre d’Histoire Sociale du XXe Siècle (Université de Paris I). Intititulado Reflexões sobre os conceitos de responsabilidade e culpa na obra de Karl Jaspers e sobre sua aplicabilidade à ditadura de 1976-1983 na Argentina, o texto analisa a tentativa do filósofo alemão de propor, em 1946, portanto, no contexto do julgamento e da divulgação massiva dos crimes cometidos pelo nazismo, uma avaliação à sociedade alemã, sobre a sua atitude, participação ou omissão diante daquela experiência. A análise de Groppo resgata a proposição de Jaspers, de estabelecer um debate centrado nos conceitos de responsabilidade e culpa. Ignorada no seu tempo, a problemática ética levantada pelo filósofo alemão, entretanto, acabou sendo recolocada pelos filhos da geração do silêncio. Diante dos significativos efeitos que, finalmente, produziram tais ideias de Jaspers, Groppo utiliza esse antecedente para aferir se contribui para dar maior inteligibilidade ao tenso embate entre esquecimento e memória existente na história argentina relacionado à ditadura de 1976-1983.
O artigo La dictadura del Proceso de reorganización nacional y la represión al movimiento obrero, de autoria do professor da UBA, Pablo Pozzi, centra-se em um dos objetivos mais estratégicos – e ainda pouco conhecido – da ditadura de segurança nacional argentina, a repressão contra o movimento operário, condição fundamental para seu disciplinamento e para a reprodução do capital. Com o objetivo de abrir a economia e torná-la competitiva, procurou-se acabar com o ativismo sindical. A infiltração, a delação e a colaboração orgânica entre setores empresariais e forças repressivas foram fundamentais para atingir aqueles objetivos. Pozzi expõe os mecanismos de enquadramento específicos implementados pela ditadura, caso dos sequestros e desaparecimentos ocorridos em empresas como a Ford e a Mercedes Benz, entre outras. A partir da explicitação da análise da documentação produzida pela Dirección de Investigaciones Políticas de la Policía de la Provincia de Buenos Aires, o autor destaca, ainda, a utilização de leis que permitiram garantir algum grau de legitimidade, bem como a imposição de uma reestruturação sindical que permitiu cooptar quadros dirigentes, tirando autonomia e capacidade reivindicativa ao movimento e isolando, assim, os setores mais organizados do denominado sindicalismo combativo.
O Golpe civil-militar de 64: algumas possibilidades sobre seu significado, artigo do cientista político e professor da Universidade Católica de Pelotas, Renato Della Vecchia, apresenta um panorama das condições que geraram a interrupção da democracia brasileira em 1964. Partindo de certas interpretações clássicas sobre o significado histórico do golpe, entre as quais as realizadas por Paul Singer, Maria Victória Benevides, Angelina Cheibub Figueiredo, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, Della Vecchia avalia o desenrolar do processo histórico que configura a queda do Governo Goulart, a partir da premissa do necessário diálogo do político com o econômico, como chave explicativa para compreender as expectativas então existentes em relação ao sentido e significado de tão frágil democracia, e do autoritarismo em gestação.
A atuação parapolicial é o tema desenvolvido por Ana Belén Zapata, da Universidad Nacional del Sur (Bahía Blanca), em Violencia parapolicial en Bahía Blanca, 1974-1976. Delgados límites entre lo institucional y lo ilegal en la lucha contra la “subversión apátrida”. Ancorada nos documentos existentes no Arquivo da Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA), o trabalho analisa aspectos da violência implementada por grupos parapoliciais na cidade de Bahía Blanca (provincia de Buenos Aires), entre os anos de 1974 e 1976. Trata-se do período de amadurecimento e fermentação dos fatores que levaram ao golpe de Estado que impôs a ditadura identificada com o Proceso de Reorganización Nacional. Centrado na violência de extrema direita naquela cidade, o artigo indaga a respeito das motivações e caracterização dos crimes promovidos na fase terminal da tensa democracia argentina, o grau de conhecimento e envolvimento da própria DIPBA (órgão estatal) e a forma como os protagonistas do sistema político encararam e interpretaram essas ações ilegais e parapoliciais na denominada “luta antissubversiva” instalada previamente ao próprio golpe de Estado.
O texto de Débora Carina D’Antonio – Los presos políticos del penal de Rawson: un tratamiento para la desubjetivación Argentina (1970- 1980) – foca, de uma perspectiva de gênero, a realidade de um centro de detenção onde foi aplicada uma tecnologia de disciplinamiento, sob o marco de práticas evidentemente ilegais e inconstitucionais. Segundo a autora, no interior da prisão de Rawson, foi imposta uma lógica desmasculinizadora que extrapolou o objetivo explícito da ditadura de quebrar os presos de uma perspectiva ideológica e política. O artigo, ao introduzir o tema da violência sexual, perfila-se como instrumento de resgate de traumas ainda pouco explicitados que confirmam a existência de faces repressivas ainda pouco conhecidas dentro do inesgotável universo constitutivo do terrorismo de Estado. Mesmo assim, onde a atuação da justiça é perceptível, coletivos de vítimas que sofreram essa violência vêm ocupando espaço público e colocando o problema como temática necessária de pesquisa ou experiência de vida que exige reparações e responsabilizações. É da natureza dessa dimensão tão complexa, portanto, que trata a reflexão de D’Antonio.
A professora Paula Vera Canelo, pesquisadora do Conicet e da Universidad Nacional de San Martín, questiona no seu artigo Los desarrollistas de la ‘dictadura liberal’. La experiencia del Ministerio de Planeamiento durante el Proceso de Reorganización Nacional en la Argentina, a caracterização da ditadura argentina (1976-1983), certa compreensão generalizada que associa a ditadura argentina (1976-1983) como sendo homogeneamente liberal. Após historiziçar a experiência de planejamento no país e apontar uma linha de continuidade desde o governo Frondizi até o golpe do Proceso de Reorganización Nacional, Canelo, discordando daquele senso comum, avalia a pugna interna entre o entorno do Ministro de Economia, Martínez de Hoz (aperturista, privatista e desindustrializador), e um conjunto civil-militar que, através do Ministério do Planejamento e desempenhando funções no complexo militar industrial e em empresas estatais, defendia o planejamento e a intervenção estatal na economia, a partir de uma interpretação da Doutrina de Segurança Nacional, que justificava uma “industrialização defensiva” e que se estabelece no interior do aprofundamento da relação do binômio “desenvolvimento-modernização”. O artigo estuda a origem e formação doutrinária desse grupo, sua inserção no projeto ditatorial, o embate com correntes opostas e seu declive final.
Alejandro Paredes, pesquisador do Conicet e da Universidad Nacional de Cuyo (Mendoza) centra seu artigo, La organización de los refugiados políticos chilenos en Mendoza y la huelga de hambre de Julio de 1976, na conexão repressiva regional chileno-argentina, destacando o caso dos refugiados políticos chilenos, em Mendoza (Argentina), entre 1976 e 1983. Após o golpe no Chile, milhares de perseguidos políticos chilenos e de outras nacionalidades fugiram do Chile, da Unidade Popular, atravessando a duras penas a cordilheira dos Andes, a procura de “terra amiga”. A implantação da ditadura na Argentina, em 1976, aprofundaria o clima de hostilidade contra esses exilados, inclusive dentro do marco da Operação Condor. A partir do dimensionamento de uma greve de fome promovida em 1976, Paredes resgata uma história de resistência e solidariedade, em condições extremadas. A mesma teve como protagonistas diretos, além de milhares de refugiados chilenos, a organização cristã Comitê Ecumênico de Ação Social (CEAS), amparada e financiada pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela ACNUR.
Jorge Fernández, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e pesquisador das relações repressivas argentino-brasileiras no contexto das ditaduras de segurança nacional, no texto O Brasil e a Contra-ofensiva Montonera, 1978-1980, perscruta a forma como a Operação Retorno, conhecida como Contraofensiva Montonera, permitiu a coordenação de esforços entre as ditaduras do Brasil e da Argentina tentando impedir que o território do primeiro fosse utilizado como caminho ou plataforma para a passagem dos militantes que, após avaliação feita pela sua direção no exílio, haviam recebido ordens de retomar a luta armada no seu país. A pesquisa de Fernández, assentada em documentos repressivos, mapeia rotas e locais de passagem dos quadros montoneros. Da mesma forma, identifica a informação que circulava entre as forças de segurança de ambas ditaduras e avalia o grau de infiltração que sofria a organização armada. Finalmente, contribui no problemático resgate dos acontecimentos que produziram o desaparecimento de cidadãos argentinos no Brasil, bem como os coloca dentro da perspectiva da coordenação regional da Operação Condor.
Também relacionado com o tema da conexão repressiva regional, o artigo da doutoranda Melisa Slatman, denominado Actividades extraterritoriales represivas de la Armada Argentina durante la última dictadura de Seguridad Nacional (1976-1981), realça o protagonismo da Marinha argentina. A partir de um conjunto de apreciações refl exivas sobre a essência da já citada Operação Condor, o texto defende a necessidade de aprofundar o debate sobre a mesma, a efeitos de aprimorar sua conceituação. Dessa forma, marca distância, de uma perspectiva problematizadora à luz de pesquisas empíricas mais recentes, dos primeiros trabalhos de investigação e sua ênfase em uma certa linearidade de atuação dos protagonistas envolvidos. Tomando como objeto de estudo as atividades repressivas extraterritoriais da Marinha durante a última ditadura de segurança nacional na Argentina, Slatman investiga a inserção das mesmas no marco institucional do Estado Terrorista. A seguir, analisa a constituição e autonomização, na estrutura orgânica da Marinha, do Grupo de Tareas 3.3, responsável pela administração de um dos maiores centros clandestinos de detenção do país: a Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). Finalmente, o estudo analisa a evolução das atividades repressivas extraterritoriais desse Grupo de Tareas, dentro do marco multifacêtico da coordenação regional existente.
No artigo A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus, a doutora pela Universidade de São Paulo, Janaína Almeida Teles, oferece um panorama reflexivo sobre a interdição do passado recente, estabelecendo uma narrativa sobre a formação da memória social a partir destes momentos “fundacionais”, que diluíram e esvaziaram os limites de transição pactuada que marca o cenário pós-ditadura no Brasil. Partindo da constatação de que a transição brasileira para a democracia ocorreu sem rupturas evidentes, o que tem possibilitado a persistência de legado ditatorial, até hoje, a autora considera que a reconstituição factual e a avaliação crítica acerca do período autoritário têm sido permeadas por zonas de silêncio e interdições. Para tanto, escolhe como objeto de análise eventos que, segundo ela, são fundamentais na formação da memória sobre a repressão da ditadura brasileira: a publicação do projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus. Em relação ao primeiro, além de resgatar a história da sua produção do seu contexto, realiza-se, a partir dele, a avaliação do seu impacto no conjunto da sociedade e a comparação com o Nunca Mais argentino – bem como com o impacto que este gerou no seu país. Quanto à Vala de Perus, o texto é muito rico quanto à análise das dificuldades, dos entraves e das limitações colocadas pelo poder público. Merece registro, ainda, além de outras fontes pertinentes, o rico conjunto de entrevistas com protagonistas diretamente envolvidos nos eventos citados.
Priscila Brandão, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, e Isabel Leite, doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro, resgatam no artigo Nunca foram heróis! A disputa pela imposição de significados em torno do emprego da violência na ditadura brasileira, por meio de uma leitura do Projeto ORVIL, o processo de criação, execução e divulgação desse controvertido documento. O texto lembra que algumas das afirmações ali contidas têm sido constantemente replicadas no site TERNUMA, com cuja lógica narrativa mantém sintonia. O projeto, esboçado desde o final da ditadura, pretendia contrapor-se à narrativa de uma história recente da ditadura produzida pela esquerda sobrevivente acerca da tortura – principalmente a partir da Anistia – e divulgada através de entrevistas, bibliografia memorialística e, sobretudo, do relatório Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. As perguntas das autoras miram na percepção que de se tinha um determinado grupo de militares, marcadamente ultraconservadores e perfilados no centro do processo do golpe de Estado, na implementação dos mecanismos repressivos e nas estratégias utilizadas para contar e rememorar esse passado.
Em Do luto à luta: um estudo sobre a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, o cientista político, Carlos Gallo, analisa a luta da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP), cuja atuação no tempo tem mantido coerência na defesa e exigência dos seguintes eixos reivindicativos: a responsabilização do Estado pelos crimes praticados contra os direitos humanos; a apuração das circunstâncias das mortes e desaparecimentos; a responsabilização dos culpados; e o resgate dos fatos e a preservação da memória relacionada aos mesmos. Incansável, a Comissão tem sido referência no esforço pelo combate ao esquecimento induzido e à impunidade resultante da ação estatal, bem como da omissão de importantes setores da sociedade. Como grupo de pressão, a organização, que carrega as bandeiras históricas do Nunca mais e as exigências de “Verdade, Memória e Justiça”, tem ocupado espaço crucial no questionamento das posições do Estado quanto à abertura dos arquivos repressivos, à interpretação sobre a Lei da Anistia, à condenação do Brasil na CIDH / OEA e à demora pela nomeação da Comissão da Verdade. Nesse sentido, o artigo de Gallo analisa o surgimento das demandas dos familiares, a sua organização após a ditadura, o conteúdo das demandas, a forma como a questão dos mortos e desaparecidos foi trabalhada ao longo dos anos e, por fim, os limites às demandas dos familiares durante a sua trajetória.
O artigo Te seguiremos buscando… Derecho a la identidad y prácticas judiciales durante el Terrorismo de Estado en Argentina resulta de um trabalho coletivo multidisciplinar que objetiva um dos temas mais candentes, mobilizadores e singulares da experiência argentina de segurança nacional e do terrorismo de Estado: o sequestro de crianças e a apropriação da sua identidade. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no Archivo General de los Tribunales de Córdoba (Argentina), orientada à divulgação, sistematização e análise das adoções tramitadas nos juizados civis e de menores da cidade de Córdoba durante 1975 e 1983. A pesquisa, baseada em fontes judiciais, resgatou a lógica da tramitação dessas adoções, permitindo avaliar a vinculação do poder judiciário com esse crime. Os autores concluem que a falta de exigências legais existentes na época favoreceram tais “adoções” e que o plano sistemático de apropriação ilegal de crianças desenvolvido pela ditadura se apoiou em mecanismos e dispositivos que facilitaram a inscrição de crianças como filhos próprios e que funcionavam como regra no interior dos processos judiciais.
No artigo de Maricel Alejandra López, Moral y don en las reparaciones económicas a las víctimas del terrorismo de estado en Argentina, a autora propõe pensar o tema das reparações a partir da teoria do “don”, elaborada por Marcel Mauss. Tal teoria é vista como instrumento que a autora considera válido para superar um debate tensionado pelos valores, pelas ações e pelos compromissos que as vítimas e os sobreviventes remarcam sempre como algo político e ético. López lembra que a reparação econômica às vítimas da ditadura é uma das políticas estatais que o Estado estabeleceu em relação aos crimes cometidos pela ditadura contra os direitos humanos. Mas na lógica das vítimas, a vida, a morte e os direitos humanos são parte das “coisas que não têm preço”, embora estejam inseridas em um mundo onde o econômico é sempre relevante. Para muitas das vítimas e dos sobreviventes, toda reparação é algo que não pode ser aceito, pois, supostamente, contradiz valores, coerências e ações. Para López, analisar tais reparações à luz da Teoria do “don”, de Marcel Mauss, pode tornar possível a aceitação do fato da reparação. A base do esquema é o tripé “dar, receber, devolver”, em que o “don” é percebido como ato de reconhecimento social, enquanto que o “receber” representa uma carga redimida pelo “devolver”.
Por fim, o Dossiê encerra-se com a resenha sobre a obra de Caroline Silveira Bauer, Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória, resultado da tese de doutorado defendida no PPG-História da UFRGS, em 2011, e vencedora do Prêmio Teses da FLACSO / CLACSO, em 2012.
Diante de tudo o que foi exposto, agradecemos a todos os autores que encaminharam seus artigos para avaliação, bem como aos pareceristas que muito contribuíram para a qualidade deste Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul que ora apresentamos.
Boa leitura.
Enrique Serra Padrós – Professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
PADRÓS, Enrique Serra. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, jul., 2012. Acessar publicação original [DR]
Guerras, Conflitos e Tensões / Cantareira / 2012
A Revista Cantareira tem a satisfação de apresentar sua 17ª edição com o dossiê intitulado “Guerras, Conflitos e Tensões”. A história da humanidade foi constantemente marcada por esses três elementos. Buscando explorá-los em suas múltiplas possibilidades, a Revista apresenta artigos que contribuem para o seu conhecimento histórico no âmbito mais convencional, a partir das relações entre Estados, assim como produções acadêmicas que privilegiam as tensões sociais num sentido mais amplo, tais como conflitos étnicos e religiosos. Os temas presentes nesse Dossiê abrangem variados períodos históricos, desde o Brasil Colônia, passando pela Guerra do Vietnã, até chegarmos a Guerra Cibernética, expressão dos conflitos do “tempo presente”. Numa tentativa de tornar mais claras as definições teórico-metodológicas sobre o tema do dossiê, publicamos também uma entrevista exclusiva com o professor Francisco Carlos Teixeira. Através de sua leitura podemos aprender mais profundamente as distinções conceituais entre Guerra, Conflito e Tensão, além de passearmos ao longo da história do Tempo Presente com um dos mais destacados historiadores brasileiros da área.
[Guerras, Conflitos e Tensões]. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.17, jul / dez, 2012. Acessar publicação original [DR] Observação: A apresentação dessa edição está no número 18.
Las independencias iberoamericanas en su laberinto: controvérsias, cuestiones, interpretaciones | Manuel Chust
Publicado em 2010, no contexto das celebrações do bicentenário das independências de diversos países hispano-americanos, o livro “Las independencias iberoamericanas en su laberinto: controversias, cuestiones, interpretaciones” foi organizado pelo Prof. Dr. Manuel Chust, especialista nos processos revolucionários da América do século XIX, da Universitat de Jaume I, situada na Espanha, na Comunidade Autônoma Valenciana.
Nas suas mais de quatrocentas e trinta páginas, a obra aproveita a efeméride para reunir importantes historiadores de várias gerações e de distintas partes da América Latina, bem como do Reino Unido, França, Itália, Alemanha, Espanha e Estados Unidos para debaterem o tema das independências ibero-americanas.
A publicação é dividida em cinco partes, sendo a inicial, sua apresentação, escrita por Chust, que aponta, nesta porção, os objetivos da obra, a saber-se: primeiro, reunir historiadores, e não profissionais de outras áreas, para abordarem a questão das independências ibero-americanas, e trazer, assim, ao público, conclusões dentro de uma perspectiva histórica. O segundo é contar com renomados investigadores que dedicam suas pesquisas ao tema das independências. O terceiro, agregar pesquisadores europeus e americanos que reflitam sobre questões gerais que tenham permeado a historiografia sobre o assunto nos últimos trinta anos. Por fim, o último, englobar historiadores de variadas escolas e com diversas interpretações sobre este relevante capítulo da História ibero-americana, para levar aos leitores um estudo amplo, plural e diverso do tema explorado.
Além disto, dentre outras questões, nesta parte do trabalho, Chust apresenta dados que reiteram a importância da publicação – bem como, por conseguinte, de pesquisar-se sobre o assunto trabalhado –, como o fato de que as independências são um dos grandes temas da história universal do século XIX. Igualmente, o autor aponta a apropriação deste relevante capítulo histórico pelas histórias nacional e oficial, que dão o seu perfil, com doses de emoção e anacronismo, a este episódio.
Após a apresentação, Chust traz ao seu leitor o capítulo “El laberinto de las independencias”. Nesta parte o autor não nega o avanço historiográfico sobre o assunto nos últimos trinta anos, porém aponta alguns problemas que existem nas pesquisas sobre o tema, como, por exemplo, a proeminência de estudos de casos dominantes, que acabam por tornarem-se modelos gerais, ao passo que os processos de emancipação contam com várias especificidades, que acabam permanecendo esquecidas. Para ratificar o exposto pelo autor, basta rememorar a vastidão do espaço ibero-americano, com distintas realidades políticas, econômicas e sociais, como as existentes entre os pampas, os Andes e determinadas áreas litorâneas, conectadas, por antigas redes mercantis, à península ibérica.
Chust ainda demonstra fatores que levam a distorções históricas das explicações sobre as independências. Dentre eles encontram-se a permanência de interpretações a partir das fronteiras que dividem os atuais estados nacionais, raias estas estabelecidas posteriormente às emancipações, o olhar destes processos a partir do presente e de suas respectivas projeções e o abandono de “ferramentas” da História para analisá-los, a ingressar, deste modo, muitas das vezes, no entendimento sobre as independências, perspectivas nacionalistas.
Também nesta parte, o historiador espanhol traz panorama historiográfico sobre as independências nos últimos cinquenta anos, a englobar, dentre outros, os trabalhos de R.R. Palmer, de John Lynch e de François-Xavier Guerra. Ainda no que tange à questão historiográfica, Chust indaga qual a historiografia que está a ser feita no contexto do bicentenário e mostra que hoje já não há leitura hegemônica do tema, nem esquemas rigorosos como no passado, quando seguia-se, rigidamente, linhas propostas por alguns poucos autores. Vive-se, portanto, momento com maior pluralidade interpretativa, formação mais profissional daqueles que reconstituem a História, inclusive devido ao aumento de programas de mestrado e de doutorado na própria América Latina, e de maior acesso às fontes primárias.
No entanto, apesar de todos estes avanços existentes no âmbito acadêmico e acumulado ao longo das três últimas décadas, de uma maneira geral, estes aspectos, infelizmente, não chegaram à sociedade. A versão dos processos de emancipação que acaba por ser conhecida pela população em geral é, ainda, a nacionalista – com seus heróis e vilões nacionais –, mesmo que, às vezes, seja remodelada, a tornar-se, portanto, com determinado grau de diferença daquela proposta em períodos anteriores.
Consta, de igual modo, da segunda parte da publicação, periodização feita por Chust do processo revolucionário hispânico, válido para ser uma espécie de guia no labirinto das independências. O historiador propõe uma primeira fase, que abrange de 1808 a 1810, que ele batiza de “A independência pelo rei”, a ter como grande marco as abdicações de Baiona. Neste corte temporal, tanto os súditos americanos, quanto os peninsulares, declaram-se fiéis a Fernando VII, em oposição a José Bonaparte, imposto como rei da Espanha pelo seu irmão, Napoleão.
A segunda, de 1810 a 1815/16, é intitulada de “As lutas pela/as soberania/as”, período que abarca os anos finais da guerra contra Napoleão Bonaparte na Espanha, a realização das Cortes de Cádiz, o retorno, ao poder, de Fernando VII e, em seguida, do absolutismo. De acordo com Chust, é nesta temporalidade que há o embate entre os diversos atores políticos em torno da questão da soberania.
A terceira parcela da periodização engloba os anos de 1815/16 a 1820, definida por Chust como “A independência contra o rei”. Nela estaria incluída a oposição criolla ao absolutismo de Fernando VII e a consequente ação armada como via de resolução das querelas entre a América e a Espanha peninsular, em um contexto em que, na Europa, após o Congresso de Viena, constituía-se a Santa Aliança.
A quarta e última fração refere-se aos anos de 1820 a 1830, período em que está inclusa a vitória dos projetos emancipacionistas pelo caminho das armas. Chust também chama a atenção que é nesta década em que há o retorno ao constitucionalismo na Espanha, as independências de dois bastiões realistas, a Nova Espanha e o Peru, bem como a cisão do Brasil do Reino Unido português.
É importante destacar que mesmo com a proposta da periodização, Chust faz a relevante ressalva de que estes dados não são estáticos, nem válidos, em todos os momentos, para toda a América trabalhada no estudo. Exemplo mais elucidativo da afirmação do historiador é o caso do Brasil, que, por exemplo, em 1808, enquanto o mundo hispânico vive a acefalia em função do aprisionamento da família real espanhola, o príncipe regente português e sua corte se estabelecem no Rio de Janeiro.
A terceira parte do livro traz as reflexões dos quarenta historiadores que participam do projeto, e para que isto seja possível, são dedicadas cerca de trezentas e cinquenta páginas. Aos quarenta historiadores foram formuladas, por Chust, cinco perguntas, para que se tenha importante panorama, a partir de diferentes visões, dos processos de independências das Américas lusa e espanhola: “1) Qual é sua tese central sobre as independências?”, “2) O que provocou a crise de 1808?”, “3) Se pode falar de revolução de independência ou, pelo contrário, prevaleceram as continuidades do Antigo Regime?”, “4) Quais são as interpretações mais relevantes, a seu entender, que explicam as independências ibero-americanas?” e, por fim, “5) Quais os temas que, ainda, faltam ser pesquisados?”
A constatação das mais diversas respostas de renomados pesquisadores é o ponto principal do livro. Esta multiplicidade de visões torna de um sabor ímpar a leitura da publicação, que leva o leitor a transitar maravilhado pelo complexo labirinto que é o emaranhado das independências ibero-americanas e suas interpretações. Lembra-se, ainda, que o assunto envolve áreas, portanto, realidades tão dispares, que englobam do Vice-Reino do Prata à Nova Espanha, a passar pelo Brasil, ressaltando, assim, a diversidade existente nestas áreas americanas. É-se, de semelhante modo, convidado, na publicação, a trilhar, neste labirinto, as histórias dos reinos ibéricos, Portugal e Espanha, no período das independências.
Destaca-se que essa deleitosa gama de interpretações é importante incremento para o debate historiográfico sobre as independências. Semelhantemente, diante da indicação, por parte dos especialistas, de temas relacionados às emancipações que ainda necessitam ser estudados, há a perspectiva de surgirem novas pesquisas no sentido apontado, o que, sem dúvidas, acaba por contribuir com o desenvolvimento das investigações dedicadas ao assunto, tema tão caro à história dos oitocentos.
Após trazer o conjunto de historiadores, a parte seguinte da obra é dedicada aos seus respectivos currículos, meio válido para conhecer os vários profissionais que têm dedicado- se à pesquisa das independências, e, ainda, as suas participações acadêmicas em instituições de distintas partes do globo. Por último, o contato com os currículos é um meio de tomar nota das principais publicações dos investigadores, sendo que o consequente acesso às obras torna-se mais fácil nos atuais tempos da internet.
A última parte é intitulada “Bibliografia sobre as independências”. Também neste item é possível recorrer a vasta produção historiográfica sobre o assunto, com publicações editadas em diversas épocas e lugares, com autores de várias linhas de interpretação. Este conjunto de obras dedicadas às independências apresenta aquelas dedicadas ao tema, seja com uma análise global, seja com o exame de partes específicas do espaço ibero-americano.
Assim, a publicação organizada por Chust oferece um amplo e atual panorama acerca das independências, a contribuir com o desenvolvimento do tema, a constituir-se, portanto, em importante bússola para aqueles que desejam caminhar no sedutor labirinto das independências ibero-americanas.
Fábio Ferreira – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói/Brasil). E-mail: ferreira@revistatemalivre.com
CHUST, Manuel (Org.). Las independencias iberoamericanas en su laberinto: controversias, cuestiones, interpretaciones. Valencia: Publicacions de la Universitat de Valencia, 2010. Resenha de: FERREIRA, Fábio. As independências ibero-americanas: transitando pelos labirintos da História. Almanack, Guarulhos, n.4, p. 151-153, jul./dez., 2012.
Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia/ 1790-1850 | Hendrik Kraay
Em recente ensaio publicado na imprensa brasileira, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, tratando do “Livro Branco da Defesa Nacional”, lançado em 2012 pelo governo brasileiro, declarou taxativamente: “a discriminação racial não escrita (…) exclui negros e mulatos do alto oficialato das Três Armas”. Voltado a apresentar os números e as reflexões sobre planejamentos e estratégias para a Defesa do país, o “Livro Branco”, anota o historiador, inova pelo tratamento conjunto dos assuntos relativos às Forças Armadas e à diplomacia no Brasil, mas permanece, por outro lado, calado, no registro de um conhecido silêncio: a recusa em abordar a questão racial nas Armas, e a sua impermeabilidade à pauta das políticas afirmativas.
Se iniciássemos por sua conclusão a resenha do livro de Hendrik Kraay, poderíamos partir, seguramente, do mesmo ponto a que chega Alencastro. Nas palavras do historiador canadense, afinal: “(…) a abolição da discriminação racial formal nas Forças Armadas, um processo concluído na década de 1830 com o estabelecimento da Guarda Nacional e o fim da discriminação racial no recrutamento para o Exército, tornou menos possível a política baseada na cor” (p.379-380).
A complexa tradução histórica dessa formulação que aproxima períodos mediados por quase duas centenas de anos, Hendrik Kraay a promove numa obra de extenso fôlego, escrita no final da década de 1990, mas só há um ano apresentada em edição brasileira. O fato não impediu, porém, que desde a sua elaboração a riqueza do trabalho venha sendo amplamente conhecida e consultada pelos estudiosos interessados no tema e no período cobertos pela pesquisa.
Curiosamente, o tempo de espera da sua chegada ao público de língua portuguesa correu a favor da consolidação, na historiografia brasileira, de novas alternativas de interpretação a abordagens tradicionais no exame de temas como a Independência, a formação do Estado, ou a política nas camadas populares no Brasil. Alternativas que se juntaram, por outro lado, à elaboração das categorias “raça” e “cor” como motivos de uma já sólida tradição de estudos históricos sobre a escravidão no Brasil, tradição que se confunde com o processo de profissionalização da área no país, desde as últimas décadas do século passado.
Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência (Bahia 1790-1850) é, assim, um livro de muitos temas, como o confessa seu próprio autor. A bem dizer, é um livro de todos aqueles temas. E a escolha das Forças Armadas como objeto privilegiado em torno do qual seu estudo se organiza deve-se ao fato de que, em palavras do próprio Kraay, “nenhum outro setor do Estado penetrou tão fundo na sociedade”, oferecendo ao pesquisador a oportunidade de estudá-la ali onde ela não é composta “nem de escravos, nem de senhores”.
Dessa maneira, o estudo proposto das relações sociais e políticas marcadas pela hierarquia de corte racial desloca o cerne da análise do binômio senhor-escravo, ao mesmo tempo em que funciona como elemento articulador de toda a rede de temas que acusam a presença inescapável de sua sombra, ou seja, o peso da ordem escravista manifestando-se nas sutilezas dos seus diversos desdobramentos. Assumindo essa perspectiva, o autor ademais reconhece a complexa trama de interações por meio das quais um conjunto de elementos sociais como classe, status e origem interferem com a cor para a produção das diferenças entre as pessoas, dentro e fora de suas organizações.
Igualmente atravessados, assim, pela “questão racial”, e radicados no exame da dinâmica do Exército baiano entre 1790 e 1850, três são os principais temas que a obra descortina: a nova história militar, a formação do Estado brasileiro na “era da independência”, e a política popular.
Em tese defendida no ano de 1995 na Universidade do Texas, Hendrik Kraay sinalizava desde o título a abordagem escolhida para o tratamento característico da história militar em sua obra. “Soldiers, officers and society” traduz textualmente a pretensão de o historiador ultrapassar as narrativas das estratégias de guerra, dos procedimentos militares ou o tom laudatório das campanhas e de seus heróis, típicos dos trabalhos sobre a corporação – muitos deles produzidos por militares – até bem perto de fins do século XX. Kraay, ele mesmo, tratou do assunto juntamente com Victor Izecksohn, Celso Castro e outros em “Nova História Militar Brasileira” (FGV, 2004).
Nessa linha, a original história das milícias coloniais baianas produzida por Kraay é interpelada pelo interesse da disposição racialmente segregada dessa instituição auxiliar do Exército. O significado da discriminação oficial que separava os regimentos de brancos, pardos e pretos tornava a milícia, especialmente para esses últimos, numa fundamental agência de prestígio e de status pessoal, dado o elemento de diferenciação por ela representado numa sociedade em que a pobreza e a escravidão tinham cor marcante. Não por acaso, a perda da distinção por parte dos oficiais pretos da milícia (os famosos Henriques), com o fim da corporação em 1831 e sua substituição pela Guarda Nacional, lançou-os a uma feroz crítica do Estado em termos raciais. E sua frustração com o exercício da proclamada igualdade liberal formal – que extinguia os batalhões segregados – culminou no expressivo envolvimento dos ex-Henriques na revolta da Sabinada, em 1837.
Os oficiais do Exército baiano surpreendido por Kraay, por sua vez, estão longe das cenas das batalhas. O estudo bem documentado de suas trajetórias pessoais e familiares revela, à maneira da prosopografia, uma história a partir da qual é possível observar como o processo de profissionalização do Exército é consentâneo com a formação de um oficial funcionário público, proprietário modesto, crescentemente dependente das rendas do Estado e submetido ao seu estrito controle. Esse processo é fortemente induzido por uma máquina de Estado cuja força centralizada se manifesta a partir da década de 1840, num cenário claramente distinto daquele em que, no fim do período colonial, senhores e altos oficiais se confundiam no topo da hierarquia das Forças Armadas. Nota relevante acerca de um e de outro perfil dos oficiais, os documentos a respeito de suas carreiras não fazem qualquer menção de sua cor. Supunham-se todos brancos, na verdade; quando menos, na provocativa expressão de Donald Pierson, “brancos da Bahia”.
Essa pirâmide, encimada por alvos baianos, compunha-se na base pelos soldados da tropa. Em sua maioria recrutados à força entre livres ou libertos, brancos ou pardos, esses homens não gozavam do benefício de um acesso abreviado aos postos mais elevados da corporação – reservados aos cadetes, filhos de oficiais. A forma violenta de seu ingresso no Exército expunha a sempre encenada disputa entre as autoridades públicas, os pobres elegíveis e seus patrões: ser recrutado significava, portanto, perder a batalha nas tramas do patronato ou, pior, não poder contar com qualquer proteção. A característica ambigüidade dessa situação política levou o autor a afirmar que os pobres livres, beneficiários desse quadro, “encaravam o patronato como uma maneira natural, necessária e até mesmo ‘boa’ de organizar a sociedade” (p.288). Uma vez recrutados, porém, as desonrosas punições corporais a que estavam sujeitos lhes recordavam que a sua condição de vida era forjada com molde não inteiramente diferente daquele com que eram marcados os escravos.
Em resposta, os mecanismos de que se valiam os soldados para afirmar a sua liberdade incluíam deserções regulares ou o refúgio temporário na rede dos vínculos que não desatavam com a comunidade mais ampla. Foram, afinal, os espaços ainda não fechados entre o quartel e a rua no fim do período colonial que permitiram as duplas profissões de soldados e sargentos que, também artesãos e alfaiates, manifestaram vigorosa desafeição ao Trono em conspiração de pardos delatada por pretos da milícia na cidade da Bahia, em 1798. Dessa maneira, entre recrutamentos e deserções, punições e indultos, o quartel, assinala Kraay, funcionava como “uma porta giratória através da qual os soldados passavam regularmente” (p.117). Tratava-se de um equilíbrio dinâmico entre a ação do Exército à cata da sujeição dos “vadios” e a iniciativa dos pobres, livres ou libertos, em busca de um patrão que lhes valesse (ainda que esse patrão fosse, por fim, o próprio Estado armado).
Ao longo do período estudado na obra, a história é também de significativas mudanças nas fileiras, ao lado de inquietantes permanências. Tal como entre os oficiais – sobretudo após a criação de um Exército Nacional na década de 1840 – o perfil do soldado se conforma sob o peso de um controle mais estrito do Estado, de maior dependência à ocupação militar. A intensa politização provocada pelos conflitos de Independência resultou num crescente “escurecimento” das tropas – que contavam, inclusive, escravos recrutados – e a desmobilização do Exército envolvido nessa guerra implicou a dispensa de batalhões em que a presença expressiva de homens de cor era vista como elemento decisivo de graves ameaças à ordem, como aquela que o Batalhão dos Periquitos protagonizou em motim estourado em Salvador no ano de 1824, ainda no desenrolar dos sucessos da Independência da Bahia. Aos recrutas, portanto, o Estado pós-Regresso (1838) suprimiu o espaço para duplas atividades, o direito a licenças e baixas, e restringiu seu contato com o mundo exterior à caserna. Mas manteve, apesar de sua progressiva perda de legitimidade, a forma coerciva do recrutamento e o padrão da disciplina corporal, forçando os soldados a também manter atualizada a teia de favores que, nas palavras contrariadas do então Presidente da Bahia, “hoje tudo invade, e desfigura” (p.287).
A noção de Estado que emerge da obra de Kraay em meio a esse conjunto de transformações não é, ele salienta, a do “Estado autônomo que Raimundo Faoro e Eul-Soo Pang enxergaram como sendo primordial à história luso-brasileira”. Em seu lugar, o autor “enfatiza as íntimas conexões entre o Estado e a classe dominante” (p.18). Poder-se-ia dizer a esse respeito, em suma, que ao longo do período a classe senhorial baiana deixou de estar no controle direto das Forças Armadas – ocupando seus mais altos postos numa corporação de caráter local – para se beneficiar da segurança propiciada por um Exército nacionalizado por obra da força do Estado, então livre dos focos de rebeliões. Essa formulação tal como elaborada supõe, portanto, um importante trânsito na dinâmica do Estado, de um Império ao outro. Kraay o explica, sobretudo, a partir das evidências de seus resultados na estrutura do Exército e no perfil de seus integrantes. A relevância dessa explicação, porém, não afasta, antes mesmo sublinha, a importância de outra que dê conta das formas como esse trânsito de um modelo de Estado ao outro representou a efetiva construção de um Estado Nacional no Brasil.
Arriscaríamos dizer que as íntimas conexões entre o Estado e a classe dominante sugeridas por Kraay carecem, na obra, de uma maior diferenciação dos seus termos. No amplo quadro da política institucional que recobre e produz as mudanças no Exército claramente apresentadas no livro, as “classes senhoriais” resumem a “sociedade” em geral frente à qual o perfil do Estado é discutido. Por sua vez, os liberais expressivamente citados como responsáveis pela reforma do Exército entre as décadas de 1820-30 não dialogam, nas páginas do trabalho, com adversários conservadores mais distintamente apresentados. A própria narrativa de um Estado como máquina burocrática em construção a partir do Regresso não é objeto da atenção detida e específica do autor, naquilo que ela interessaria em demonstrar como se forjou uma identificação das classes – e não só dominantes – com a figura de uma administração política que superou a pátria local como eixo de funcionamento e que fixou as condições para o surgimento de instituições e carreiras nacionais, como as do próprio Exército. Afinal, como suposto na formulação antes apresentada, o trânsito entre aparelhos de Estado distintos deve mais à “era da Independência” do que à Independência como tal; o que é o mesmo que dizer que a Independência por si não formou o Estado nacional, premissa, aliás, que o autor reconhece.
Mas se a Independência – ou Independências, pois “não há uma narrativa única e linear da Independência brasileira” (p.371) – não formou definitivamente o Estado, ela assentou as bases de uma nova ordem política que foi particularmente explorada pelos militares. Modulando a imagem de revolução conservadora atribuída por F.W.O. Morton ao movimento de Independência no Brasil, Kraay identifica os elementos sociais de uma revolução no conjunto de desafios que movimentos políticos impulsionados por soldados e oficiais do Exército e da milícia lançaram à ordem vigente a partir da década de 1820. Nesse particular, a nova posição assumida por esses atores tinha especial relação com a circulação de pautas, termos e com a cultura política que a vigência de uma Constituição pós-revoluções liberais permitiu que se formasse.
Os motins militares contra o regime de disciplina ou contra práticas arbitrárias das autoridades do Estado – destacada a Revolta dos Periquitos, em 1824; a expressiva participação de ex-integrantes da milícia preta na Sabinada, em 1837; ou ainda as diversas estratégias de “negociação e conflito” de que os homens das fileiras do Exército dispunham para fazer política e remediar a sua condição, todo esse processo evidencia o “Estado feito por baixo” que Kraay elege como um dos objetos de seu interesse. A relevância do reconhecimento de uma política de caráter popular no século XIX, renovando constantemente os horizontes de uma “segunda independência”, faz Kraay acenar para uma tradição historiográfica brasileira, inspirado na qual ele diz:
os soldados (e seus aliados na sociedade civil) reformularam o Exército, assim como – para usar um exemplo mais familiar aos historiadores do Brasil – as ações dos escravos em suas relações cotidianas com seus senhores transformaram a escravidão (p.106).
Assim, unindo os temas centrais da discussão enfrentada pelo autor em sua obra, a comparação feita no início dessas notas entre as frases de Alencastro e de Kraay cobra sentido, no fim, com uma breve referência a Karl Marx e o seu “Sobre a Questão Judaica” (Boitempo, 2010). Nesse trabalho, Marx, polemizando com Bruno Bauer acerca dos direitos políticos dos judeus na Alemanha do século XIX, promove sua seminal distinção entre “emancipação política” e “emancipação humana”. Com ela, poderíamos dizer, retomando o fio das profundas transformações havidas na estrutura do Exército brasileiro, que a reforma liberal que, em 1831, extingue as milícias racialmente segregadas e as substitui por uma Guarda Nacional racialmente “cega”, em nome da igualdade formal entre as pessoas, essa reforma representa a emancipação política dos cidadãos brasileiros em relação às suas diferenças de cor. Tal como na defesa por Bauer da emancipação dos alemães frente às suas distinções religiosas, o Estado brasileiro emancipava politicamente seus cidadãos, vale dizer, declarava-os livres e iguais, abstratamente, nos limites de sua cidadania. Essa emancipação, porém, não convenceu Francisco Xavier Bigode, ex-Tenente Coronel da milícia preta, extinta em 1831. Para ele, a igualdade diante da lei era “sem significado, a menos que ela reconhecesse as distinções raciais que a legislação colonial havia incorporado” (p.340).
Marx diria que a emancipação política eleva abstratamente os indivíduos de suas diferenças de castas e crenças, que ela os torna iguais formalmente, mas, não sendo emancipação humana, permite que suas diferenças concretas sigam agindo à sua maneira. Vale dizer, sigam à maneira das ordens sócio-políticas e econômicas que as produzem. Assim, nas palavras de Hendrik Kraay, nesse quadro “as afirmações de igualdade caíam em ouvidos ensurdecidos por atitudes profundamente arraigadas” (p.164). De fato, lembremos, não poderia ser diferente: o Império não tinha ainda o seu Livro Branco.
Douglas Guimarães Leite – Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói/Brasil). E-mail: douglas.leite@gmail.com
KRAAY, Hendrik. Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011. Resenha de: LEITE, Douglas Guimarães. A cor da política: carreira, identidade racial e formação do Estado nacional no Exército baiano do entre-impérios (1790-1850). Almanack, Guarulhos, n.4, p. 154-158, jul./dez., 2012.
Gente de guerra e fronteira: estudos de história militar do Rio Grande do Sul | Paul César Possamai
Como afirma Vitor Izecksohn na apresentação da coletânea organizada por Paulo César Possamai, a guerra e as forças armadas tiveram um papel de destaque na região meridional do Brasil, onde a luta armada, a partir das últimas décadas do século XVII, foi o resultado da colisão de projetos expansionistas das potências coloniais ibéricas, e, a partir do século XIX, do confronto de distintos projetos de Estado-Nação. Os doze capítulos da coletânea apresentam, em sua maioria, abordagens vinculadas à Nova História Militar, salientando a inserção das forças armadas na sociedade sul-rio-grandense, as relações familiares, o recrutamento, as tensões e o cotidiano dos soldados das tropas regulares e auxiliares. O título – Gente de guerra e fronteira – explicita essa mudança de foco em relação às obras tradicionais de história militar, sendo as grandes batalhas e os heróis substituídos por protagonistas anônimos que vivenciam a guerra nessa região de fronteira.
Em A guarnição da Colônia do Sacramento, Paulo César Possamai aborda as condições de vida e estratégias de sobrevivência dos homens mobilizados para a defesa lusa deste posto comercial à margem esquerda do Rio da Prata, objeto de disputa entre as coroas ibéricas entre 1680 e 1777. Apesar do povoamento com casais, o efetivo militar desse posto avançado da fronteira dependeu do recrutamento forçado, o que implicou em um contingente de degredados, condenados, indesejados, “doentes e aleijados” [p.17]; homens considerados despreparados e pouco afeitos à vida militar. Possamai analisa as formas de sobrevivência e resistência desses soldados. Soldos baixos e invariavelmente atrasados, instalações precárias, castigos corporais, alimentação e vestuário insuficientes faziam parte do cotidiano desses homens, empregados não apenas na defesa, mas também em obras diversas. A deserção era meio para escapar às dívidas com comerciantes locais e forma de resistência, a qual encontrava, muitas vezes, apoio e estímulo nas autoridades inimigas.
Outra via de resistência às adversidades da vida militar foi abordada por Francisco das Neves Alves em Uma revolta militar e social no alvorecer do Rio Grande do Sul. O autor analisa a revolta do Regimento de Dragões ocorrida em janeiro de 1742 no Presídio Jesus Maria José, ponto inicial de povoamento português no que viria a ser o Rio Grande do Sul. Com o apoio da escassa população e reafirmando a autoridade e o amor a S.M, os rebeldes representaram ao Comandante do presídio suas queixas. Essas não diferiam daquelas que motivam as deserções na Colônia do Sacramento, mas a essas se somavam aquelas relativas à rigidez da disciplina e aos severos castigos físicos a que eram submetidos os infratores. O arrefecimento da revolta não implicou na pacificação como demonstrou o relato de dois náufragos ingleses. Apesar da tensão e talvez pela proximidade das forças espanholas nessa fronteira indefinida, a ordem e os trabalhos cotidianos foram mantidos dentro da normalidade, mas a deserção e a possível adesão às tropas inimigas eram ameaças sempre consideradas pelas autoridades. Daí, a pacificação a partir da concessão do perdão, da reposição das provisões, do pagamento de soldos e de concessões no relaxamento da disciplina, sem que houvesse a punição dos revoltosos. Deste modo, a fronteira que obrigava à manutenção de uma rígida disciplina, também impunha a condescendência da Coroa em relação às demandas e ao comportamento de seus soldados.
A negociação de lealdades e posições, atendendo a interesses muitas vezes conjunturais, foi discutida por Tau Golin em A destruição do espaço missioneiro. O autor analisa a Guerra Guaranítica (1753-1756), evidenciando que a destruição do projeto de “sociedade alternativa” [p.65], construído pela Companhia de Jesus na região platina, foi resultado da união das potências coloniais ibéricas. Segundo Golin, as determinações do Tratado de Madri (1750) e a ação da expedição demarcadora de limites motivaram cisões internas nas lideranças missioneiras e alteraram as correlações de poder entre padres, caciques e cabildos. A resistência dos povos das missões da margem oriental do Rio Uruguai que deveriam ser trasladados à margem oposta também gerou condições para que Gomes Freire de Andrada expandisse o domínio português, procrastinasse a troca de territórios e transformasse um número expressivo de indígenas em vassalos do rei de Portugal. A Guerra Guaranítica contribuiu assim para o fracasso do Tratado de Madri, levando a sua anulação, mas também acelerou o processo de desestruturação do projeto missioneiro jesuítico na América.
Uma das estratégias lusas para expandir e garantir o domínio sobre o território em disputa era a construção e manutenção de guardas militares. Esse tema é explorado por Fernando Camargo em Guardas militares ibéricas na fronteira platina. Esses postos avançados, guarnecidos por um número pequeno de soldados e oficiais, demarcavam o avanço da soberania portuguesa (ou espanhola), principalmente após a instituição do princípio do uti possidetis pelo Tratado de Madri (1750).Também tinham por objetivo o combate ao contrabando e o controle sobre o movimento de pessoas pela fronteira. A partir do Tratado de Amizade, Garantia e Comércio de 1778, o sistema de guardas foi fator de policiamento e de equilíbrio entre as possessões portuguesa e espanhola. Mas a relativa paz que se seguiu a esse tratado e o reduzido efetivo dessas guardas contribuíram para a lenta degradação desse sistema. Segundo o autor, as guardas militares envolvem uma série de questões cujo estudo demanda o trabalho interdisciplinar como caminho para a compreensão da geopolítica dessa região.
No quinto capítulo intitulado Cabedais militares: os recursos sociais dos potentados da fronteira meridional (1801-1845), Luís Augusto Farinatti estuda o papel da vida militar na formação da “elite guerreira” na fronteira meridional do Brasil. Evidenciando que nem todo estancieiro era um “potentado militar”, o autor demonstra que era estratégia das famílias sul-rio-grandenses, através de casamentos, batizados, créditos, etc., integrar em suas relações pessoas de prestígio e que exerciam diferentes atividades, inclusive o militar, cujo “cabedal” era muito valorizado. Esse “cabedal” envolvia um “conjunto de recursos, juntamente com o prestígio” [p.89] construído por um comandante militar a partir de seu desempenho nas lutas da fronteira e que expressava sua capacidade de mobilizar, armar e liderar homens e de garantir o êxito nas batalhas. Era esse o substrato de sua relativa autonomia de ação, capacitando-o a negociar com subalternos, com aliados e com as autoridades régias/imperiais. Se as relações baseadas nas reciprocidades horizontais e verticais eram a base do poder e da autonomia desses potentados militares, eram também mecanismo de fortalecimento de poderes e, assim, de reprodução e consolidação “de uma hierarquia social desigual” [p.90]. Ou seja, as guerras no sul não eram fator de igualdade e oportunidade de enriquecimento e de ascensão social para todos, mas eram, antes de tudo, estratégias que viabilizavam a conservação da desigualdade. Segundo o autor, ao longo da segunda metade do século XIX, o poder desses homens construído nas guerras sofreu um processo lento de transformação, marcado pela progressiva consolidação do Estado brasileiro, com a paulatina constituição dos poderes civis nas cidades da fronteira e com a profissionalização do Exército.
Em A Revolução Farroupilha, José Plinio Guimarães Fachel afirma o caráter republicano desse movimento que opôs parte da elite sul-rio-grandense ao Império entre os anos de 1835-1845. Através da análise da evolução militar do conflito e dos principais líderes farrapos, o autor salienta os limites impostos às ações e posições defendidas por esses homens que, como membros da oligarquia provincial, eram um grupo heterogêneo e caraterizado pela fragmentação política e por posições controversas. Dentre essas, o autor destaca a questão do escravismo na República Rio-Grandense, cuja manutenção não era ponto pacífico, mas que impôs limites à capacidade farrapa de arregimentar homens e, ao mesmo tempo, ampliou os espaços de resistência dos escravos através da incorporação nas tropas, das fugas e dos quilombos.
Em Tudo isso é indiada coronilha (…) não é como essa cuscada lá da Corte”: O serviço militar na cavalaria e a afirmação da identidade rio-grandense durante a Guerra dos Farrapos, José Iran Ribeiro analisa o papel da cavalaria como elemento de distinção identitária entre os habitantes da Província do Rio Grande de São Pedro e aqueles provenientes de outros lugares do Brasil para servir nas forças legalistas no decorrer da Revolução Farroupilha. Observa que esse fator de distinção persistiu no tempo, apesar da reorganização do Exército Nacional a partir dos anos de 1820, a qual visava criar um corpo uniforme, enquanto grupamento profissional, superando as identidades regionais. Mas, no Rio Grande do Sul, a valorização do serviço na cavalaria teve origem nos conflitos na região platina, onde a topografia criou as condições para que essa arma se tornasse a principal, pois a “guerra gaúcha” impunha o movimento rápido e constante dos contingentes militares [p.118]. Assim, o autor constata que, dentre os batalhões de infantaria nas guerras do sul, predominavam os soldados provenientes de outras províncias brasileiras, já que os soldados sul-rio-grandenses buscavam principalmente o serviço na cavalaria. Fatos que tinham reflexos na composição da Guarda Nacional, com o predomínio dos regimentos de cavalaria. Por fim, o autor conclui que a instabilidade na região e a relevância da cavalaria como principal arma foram fatores para a permanência de oficiais militares rio-grandenses na província, contribuindo para fortalecer sua influência local e sua autonomia de ação frente ao poder central.
O contexto da Guerra do Paraguai mereceu um espaço destacado nessa coletânea, a começar pelo artigo de André Fertig: A Guarda Nacional do Rio Grande do Sul nas guerras do Prata: 1850-1873. Nesse texto, o autor aborda a Guarda Nacional sul-rio-grandense, a qual exerceu um papel estratégico na segunda metade do século XIX, já que era atribuição desses corpos, em regiões de fronteira, o auxílio do Exército regular nos conflitos externos. A eclosão da Guerra do Paraguai levou à formação de vários corpos provisórios que congregavam guardas nacionais e aumentou o ritmo dos destacamentos, com a incorporação de um volume expressivo de guardas nacionais aos Corpos de Voluntários. Terminado o conflito, a partir da década de 1870, teve início a lenta desmobilização e desorganização dessa milícia, passando progressivamente a predominar, também no Rio Grande do Sul, seu caráter honorífico em relação ao militar.
Em A Guarda Nacional sul-rio-grandense e a aplicação da Lei de Terras: expressão de uma política de negociação, Cristiano Luís Chistillino explora a relação entre a expressiva participação da Guarda Nacional sul-rio-grandense nos conflitos platinos da segunda metade do século XIX e a aplicação da Lei de Terras (1850), especialmente nas regiões de fronteira aberta do Planalto e das Missões na Província de São Pedro. Segundo o autor, a singularidade política dessa província que havia ameaçado por dez anos a unidade do Império e o controle da Guarda Nacional permitiram que a elite rio-grandense consolidasse seus laços com o governo central brasileiro; laços esses alicerçados em relações clientelísticas e no controle da terra. Assim, os processos de legitimação de terras teriam sido utilizados como instrumentos de cooptação da elite militar à política da Coroa.
Já Paulo Roberto Staudt Moreira, em Voluntários e negros da Pátria: o recrutamento de escravos e libertos na Guerra do Paraguai, estuda outro segmento da sociedade rio-grandense e sua forma de inserção no conflito: os homens de cor, libertos ou escravos, engajados às forças armadas. A Guerra do Paraguai estabeleceu novos parâmetros à formação das tropas de primeira e segunda linha ao permitir a crescente inserção de homens de cor, escravos ou livres, entre suas forças e ao utilizar novas formas de engajamento, para além do recrutamento forçado: a compra de escravos pelo governo imperial, a indenização de proprietários que cediam seus escravos para a guerra e a aceitação de substitutos. Para os escravos, a “liberdade fardada” [p.182] era esconderijo para os fugitivos, via para obtenção legal da liberdade e estratégia de melhoria de vida. No entanto, aqueles que sobreviveram ao conflito, desmobilizados ou desertores, passaram a enfrentar a repressão imposta pelas autoridades provinciais.
As diferentes visões acerca desse conflito foram abordadas por Mario Maestri em A guerra contra o Paraguai. História e historiografia: da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]. O autor parte dos trabalhos que no final do século XIX analisavam a Guerra do Paraguai através da apologia do Estado, das classes dominantes representadas pelos “heróis” nacionais, chegando àqueles que, a partir da década de 1970 introduziram uma versão revisionista a estas interpretações. O revisionismo, chegado tardiamente no Brasil, foi marcado pelas obras de vários autores, com destaque para Julio Chivavenato. No entanto, o real objetivo do texto de Maestri parece ser apresentar sua apurada crítica à obra de Francisco Doratioto, com ênfase no livro “Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai” publicado em 2002. Segundo o autor, nessa obra, Doratioto, desconsidera os avanços da historiografia revisionista, promove a “homogeneização das nações em luta” [p.226], atribuindo a responsabilidade exclusiva da guerra à personalidade de Solano Lopez e faz um “elogio apologético” [p.227] de diversas autoridades da Tríplice Aliança. Ou seja, segundo Maestri, “Maldita Guerra” pode ser considerada uma “ampla restauração da velha historiografia nacional-patriótica” [p.228], exemplo da “historiografia restauradora” brasileira.
A questão da identidade dos militares “gaúchos” é retomada por Jacqueline Ahlert em Teatralmente Heróicos: a participação dos gaúchos na Guerra dos Canudos. Estes gaúchos, integrantes das tropas federais participantes da quarta expedição contra Canudos (1897), aparecem entre as fotografias que compõem a coleção de Flávio de Barros. Em fotos posadas que visavam retratar uma determinada visão sobre a guerra, os soldados provenientes do Rio Grande do Sul distinguem-se pela indumentária: bombachas, lenços, chapéus de abas largas e botas. No entanto, outros aspectos, além da indumentária e da “pose altiva” [p.240], marcaram a participação desses homens, como a banalização da degola como forma de dizimar os prisioneiros, prática disseminada no Rio Grane do Sul no decorrer da Revolução Federalista (1893-95). Concluindo, segundo a autora, essas fotografias “ilustram a ideia da guerra como ato cultural” [p.249], retratando homens que se consideravam identificados com a vida militar e com a guerra.
Observa-se assim, que o livro Gente de guerra e fronteira é uma das primeiras coletâneas que traz alguns dos recentes estudos sobre a nova história militar do Rio Grande do Sul. Desde sua publicação em 2010, outros livros e artigos tem trazido ao público pesquisas que exploram antigos temas da historiografia rio-grandense com novas e promissoras abordagens.
Marcia Eckert Miranda – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: mmiranda@unifesp.br
POSSAMAI, Paulo César (Org.). Gente de guerra e fronteira: estudos de história militar do Rio Grande do Sul. Pelotas: Ed. da UFPel, 2010. Resenha de: MIRANDA, Marcia Eckert. Fronteira feita por homens, cavalos e armas. Almanack, Guarulhos, n.4, p.159-163, jul./dez., 2012.
Las alcabalas mexicanas (1821-1857). Los dilemas en la construcción de la Hacienda nacional | Ernest Sánchez Santiró; La arquitectura del Estado mexicano: formas de gobierno, representación política y ciudadanía, 1821-1857 | Israel Arroyo García
Em quê estudos sobre o México pós-independência poderiam interessar aos historiadores brasileiros? Em muitos aspectos, como espera-se aqui mostrar. Em primeiro lugar, explicar processos tão prolongados e complexos como a quebra e fragmentação dos impérios espanhol e português e o surgimento das novas nações latino-americanas é sem dúvida um grande desafio. Isto porque não se trata apenas de explorar as rupturas mais evidentes, mas também, e em boa medida fundamentalmente, a profunda relação de continuidade entre o regime colonial e os estados independentes. Nesse sentido, ambos os livros constituem duas maneiras diferentes de contar a história de uma mesma época: a mudança política decorrente da independência do México.
O livro de Israel Arroyo, correponde à versão refundida de sua tese doutoral apresentada ao Centro de Estudios Históricos de El Colegio de México em 2004, e tem como fontes três acervos: os tratados constitucionais e políticos (livros, folhetos, planos políticos, editoriais de jornais), as atas e minutas constitucionais e as leis secundárias (convocatórias constituintes e leis eleitorais). O primeiro atende ao estudo da parte doutrinária sobre as formas de governo, a representação política e a cidadania. Diferentemente do historiador das ideias, o texto vincula a doutrina com o pensamento constitucional dos atores individuais e coletivos: as ideias dos tratadistas ou políticos não giram sobre si mesmas, adquirem seu peso a partir de que impactem ou não a dimensão constitucional. Já as atas constitucionais permitem ver o processo de criação das normas e as instituições políticas. Cem páginas de anexos estatísticos em que o primeiro discute os critérios metodológicos adicionam maior consistência ao estudo.
O autor não se limitou a extrair o argumento das maiorias, mas analisa o ponto de vista das minorias ou dos grupos ou indivíduos que souberam combinar ambas as possibilidades. A obra está dividida em duas partes. Na primeira, em três capítulos, o autor examina o momento fundacional das formas de governo. Aqui destaque-se que o uso do plural não é casual. Isto porque no México não houve uma única forma de governo, mas diferentes projetos que se alternavam. O primeiro capítulo aborda a disputa original entre os dois tipos de monarquias constitucionais: a borbonista e a iturbidista (1821-1822). As diferenças entre um projeto e outro se situaram em dois itens: no poder executivo – monarca mexicano ou estrangeiro – e na origem e peso diferente que deram aos poderes públicos. A segunda fase da disputa se deu entre os propugnadores de uma república confederal e os de uma república federalista (1823-1824). O objetivo aqui foi rastrear as principais características da república no México, assim como a inclusão das diferentes visões de tipo confederalista que existiram na época. Arroyo García propõe nesse primeiro capítulo que inicialmente se constituiu uma “república parlamentar”. Se o argumento for convincente, perderia valor a apreciação de que os tratadistas mexicanos foram imitadores dos Estados Unidos. No capítulo seguinte, sua atenção volta-se para o pensamento constitucional dos anos 1840. A premissa central é que surgiu a projeção de uma república federal e liberal que buscou acomodar-se entre as repúblicas confederalista e unitária de seu imediato passado, ou, inclusive, frente ao ressurgimento do monarquismo constitucional de 1845 e 1846. E no terceiro capítulo, examina não só o pensamento constitucional dos tratadistas mexicanos sobre os termos “federalismo”, “república”, mas também as continuidades e rupturas do liberalismo jusnaturalista a respeito dos constituintes dos anos 1840. A tese principal é que não se pode compreender as novidades sugidas em 1857 sem examinar as conexões em indivíduos e conteúdos constitucionais dos congressos de 1842 e 1847.
A segunda parte da obra dedica-se à análise do processo de constituição da representação política e da cidadania no período. No primeiro capítulo dessa segunda parte é examinada a passagem da representação política no México independente, em torno de quatro eixos de discussão: as instruções frente aos “poderes amplísimos”, a construção de uma divisão eleitoral própria, a definição dos requisitos para exercer um cargo de representação e o voto por “diputaciones”. No México, em termos gerais, experimentou-se uma tríade de modelos de representação: pelo “modo honesto de viver”, por renda anual e de acordo com paradigmas fiscal. Isso significa que os constituintes mexicanos não compartilharam – salvo em situações restritas e como requisitos de exceção – as exigências censitárias. Em matérias de direitos políticos, os hispano-americanos teriam se adiantado aos ideais igualitários dos liberalismos democráticos contemporâneos, feito que contrasta com experiências como a francesa (modelo fiscal) ou a inglesa (modelo censitário). A frequência com que foi utilizado o voto por “diputaciones” como instrumento eleitoral e de representação política levou os constituintos de 1856 a propô-lo como mecanismo alternativo ao Senado da república. No capítulo seguinte o autor passa em revista outro aspecto da representação política: a cidadania ativa (o direito de votar e ser eleitor). Parte da pressima de que devem diferenciar-se os direitos políticos dos procedimentos de eleição. O argumento central é que o direito ao sufrágio no México foi amplo e os métodos de eleição restritivos. Contudo, persistiu um modelo dual de cidadania (o dos preceitos gerais e o dos estados), o que explica que se desse uma gama diferenciada de “cidadanias” pelo país. Ainda assim, a herança gaditana – o método de eleição de quatro graus – foi transcendida precocemente, e em geral se anulou o grau dos compromissários desde 1823. Ao final do trajeto estudado, 1857, se passou a um sistema de um grau uniforme para todos os poderes públicos gerais. Em todo o período referido o comum foi o afastamento – nisto similar ao ocorrido na representação política – dos modelos censitários de cidadania, com um predomínio dos paradigmas do modo honesto de viver e de renda anual. E conclui: “no México, houve cidadãos terrenos, não de ficção ou de papel”.
Já quanto ao livro de Ernest Sánchez, conta-nos uma outra parte da mesma história por meio de um imposto, o mais importante de todos no México das primeiras quatro décadas após a independência – as “alcabalas”. As alcabalas corresponderiam a um tributo inexistente no Brasil colonial: as sisas. O que efetivamente havia no Brasil eram impostos sobre importação e exportação, mas não propriamente sobre a circulação.
A independência do México implicou a quebra das ideias e das instituições políticas do Antigo Regime colonial da Nova Espanha após uma década de agudos conflitos militares, sociais e políticos. Esta ruptura com a monarquia espanhola gerou um espaço de incerteza no qual a irrupção do liberalismo, no marco da conformação do novo Estado-nação, concedeu à política uma preeminência inusitada, já que os novos valores e práticas a seguir seriam dirimidos naquela arena. Ernest Sánchez parte da premissa, a meu ver absolutamente correta, de que neste contexto os dilemas da política alcançaram medularmente a esfera das finanças públicas. De fato, a fiscalidade veio a constituir-se como um dos temas mais decisivos da construção do Estado nacional, ao constituir-se não apenas numa manifestação de sua capacidade de controle sobre o território e os habitantes do México, mas também na base financeira chamada a sutentar a nova maquinária política.
Certamente que uma exposição conduzida unicamente em termos de facções políticas enfrentadas, com seu corolário de projetos fiscais, que prescindisse totalmente do marco socio- econômico seria uma análise excessivamente voluntarista do processo histórico. Não é que a estrutura sócio- econômica marcasse irremediavelmente a fiscalidade, mas ao menos estabelecia possibilidades ao projetismo liberal em matéria fiscal.
O autor pergunta-se: por quê o advento do Estado-nação mexicano, radicalmente diferente da monarquia católica em sua natureza polítca, não implicou a instauração de um regime fiscal acorde com os princípios básicos do primeiro liberalismo, isto é, as “contribuições diretas” (as que gravam uma manifestação duradoura da capacidade de pagamento dos contribuintes, seja a partir das fontes dos rendimentos econômicos (contribuições de produto), seja a partir da renda que percebe as pessoas (contribuições pessoais)? Por quê, apesar da condenação quase unânime de políticos, publicistas e economistas políticos, as “contribuições indiretas” (gravames que recaem sobre manifestações transitórias da capacidade de pagamento, que se percebem por ocasião de atos contratuais – no caso das alcabalas, os atos de compra e venda ou troca de bens móveis e imóveis) sobre o comércio interno, herdadas do antigo regime colonial da Nova Espanha, constituíram-se num dos suportes fundamentais da fiscalidade da nova nação? Quando podemos detectar na ordem política, o abandono de tal primazia e que elementos tornaram-no possível? Estas são as questões que vertebram o livro. A solução proposta pelo autor articula-se em torno de três elementos básicos: 1. a práxis fiscal das diversas soberanias políticas, com uma atenção preferencial ao problema da arrecadação; 2. as diferentes posições da economia política ilustrada e liberal com relação às contribuições indiretas sobre o comércio interno; e 3. os projetos de reforma fiscal que, em alguns casos, pretenderam sua abolição, embora em outros significaram um claro reconhecimento.
Apesar de tratado de modo tangencial, dado o escopo do livro, avança-se na discussão sobre como implantar, por exemplo, um amplo sistema fiscal liberal de contribuições diretas, que pressupunha coisas tão básicas mas fundamentais como a existência de cidadãos e de propriedade privada, em um país onde os primeiros estavam se formando em termos políticos e culturais e onde a propriedade corporativa civil e eclesiástica era ubíqua e numerosa. Ou seja, em que medida o desenvolvimento dos intercâmbios mercantis internos e externos do México fazia rentável a manutenção das alcabalas herdadas do período colonial? Na década de 1850, por sua vez, as coisas ficaram um pouco mais complicadas, pois implicava responder à questão de como combinar o desenvolvimento das ferrovias e a manutenção das alfândegas internas e as alcabalas.
É exatamente por conta destes argumentos que as alcabalas foram tomadas como observatório privilegiado da mudança política e da modernização fiscal do México no século XIX: era a rubrica líquida mais importante em termos quantitativos para os erários estatais e departamentais. Apesar de a data inicial do estudo situar-se em 1821, Ernest Sánchez estuda as alcabalas desde o final do período colonial.
O lugar das alcabalas e dos impostos em geral e, sobretudo, o “contingente” não deixam dúvida sobre a relação de coletivos entre os poderes locais e os poderes confederais: os estados reservaram para si o controle completo sobre os recursos públicos, decidiam que tipo de contribuições aplicar e como gastá-las, negaram-se sistematicamente a terminar com as alcabalas e os impostos de capitação ou então o que foi mais decisivo, se opuseram a criar uma verdadeira Fazenda liberal e federal. “Contingente” era o nome dado a um montante de recursos que cada unidade da federação mexicana aportava anualmente aos cofres da Fazenda nacional. Era a materialização, no plano fiscal, do federalismo mexicano: como o governo nacional e cada estado tinham seus próprios orçamentos, este mecanismo foi desenhado no sentido de harmonizar o pacto federal com os poderes regionais. Ernest Sánchez questiona a ideia de que o debate sobre o tema do “contingente” em relação à definição das formas de governo não pode ponderar-se a partir da eficiência arrecadatória, mesmo no caso de que fosse de 100%: o fundamental seria o tipo de vinculação qualitativa que entabulavam as partes. O contingente mede sim a eficiência e os vínculos em uma república confederal. O autor retorna a esta questão mais adiante, no âmbito da constituinte de 1842, em que assinala que este modelo não conseguiu saldar a ausência de uma burocracia federal própria e o domínio quase absoluto dos recursos, diretos e indiretos, gerados pelos departamentos.
Retornemos à questão inicial: em quê estudos sobre o México pós-independência poderiam interessar aos historiadores brasileiros? Creio que a rápida apresentação de ambas as obras permite mostrar que a comparação do quadro brasileiro com o mexicano reserva ainda muitos resultados interessantes. Ter comungado um passado colonial seria um argumento. Mas fiquemos com outro: centralização e descentralização, unitarismo e federalismo (e mais ainda, confederalismo), pacto federativo, para ficar apenas nas palavras e expressões mais visíveis, remetem a questões que sem dúvida interessam a todos quantos estudam a política oitocentista brasileira. Inevitável, por exemplo, deixar de mencionar as implicações desta discussão em trabalhos recentes da historiografia brasileira, inaugurados pela professora Mirian Dolhnikoff (DOLHNIKOFF, Mirian. Construindo o Brasil: unidade nacional e pacto federativo nos projetos das elites (1820-1842). Doutorado em História. São Paulo: FFLCH/USP, 2000). Ambos os textos têm certamente muito a contribuir.
Angelo Alves Carrara – Professor no Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-Juiz de Fora/Brasil). E-mail: angelo.carrara@ufjf.edu.br
SÁNCHEZ SANTIRÓ, Ernest. Las alcabalas mexicanas (1821-1857). Los dilemas en la construcción de la Hacienda nacional. México: Instituto de Investigaciones Dr. Jose María Luis Mora, 2009. ARROYO GARCÍA, Israel. La arquitectura del Estado mexicano: formas de gobierno, representación política y ciudadanía, 1821-1857. México: Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora/Universidad Autónoma de Puebla, 2011. Resenha de: CARRARA, Angelo Alves. Da colônia à nação: impostos e política no México, 1821-1857. Almanack, Guarulhos, n.4, p. 164-167, jul./dez., 2012.
Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido | Laura de Mello e Souza
A coleção Perfis Brasileiros, coordenada por Elio Gaspari e Lilia Moritz Schwarcz, tem oferecido aos leitores biografias, algumas delas de excelente nível, prestando importante serviço ao gênero biográfico. Agora vem a lume Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido, da historiadora Laura de Mello e Souza, o que só confirma o acerto dos editores em mobilizar pesquisadores de qualidade acadêmica para biografar personagens de relevo pertencentes ou conectados à tradição histórica brasileira.
A narrativa da vida e morte de Cláudio Manuel da Costa – poeta mineiro do setecentos, quase esquecido fora dos círculos literários mais eruditos ou dedicados aos estudos arcádicos – é mais que a biografia do homem que virou nome de rua em Belo Horizonte, Sorocaba ou Curitiba. Mais do que uma mera biografia, o livro é um mergulho na história das Minas do século XVIII. Sem abdicar da força da erudição histórica, nem desconsiderar a contribuição da cultura acadêmica mais atualizada, a autora soube produzir um texto elegante e fluído que, ao narrar a vida de um homem, estabelece o fundo histórico no qual ele viveu.
Ao reconstruir a trajetória do poeta, Laura de Mello e Souza alude à formação histórica de uma das mais remotas e importantes províncias do Império português. Para o pequeno Reino de Portugal, e seu vasto Império, que se estendia por três continentes, o século XVIII amanheceu sob o impacto da descoberta de ouro no interior da América, que viria rapidamente a se tornar o fulcro de todo o sistema português. A atenção da Coroa e de seus agentes – bem como de reinóis e colonos, modestos ou afidalgados – voltou-se para os ermos do continente, muito além da Serra da Mantiqueira. Ao abordar o homem, a autora expõe a sociabilidade urbana de Ribeirão do Carmo, depois denominada Mariana, e Vila Rica, depois Ouro Preto, com suas festas, igrejas e ordens religiosas. No texto aparecem as relações políticas entre os homens bons e a Coroa. Ou ainda as estratégias de ascensão social, típicas das sociedades do Antigo Regime, ávidas por insígnias, nas quais as relações sociais estavam assentadas em critérios de fidelidade, parentesco, amizade, honra e serviço. Também aparece o peso da escravidão, “talvez o elemento mais importante da sociedade surgida nas Minas: sociedade conflituosa, tensa, complexa e mestiça desde o nascedouro” (p.34). Ao narrar a morte do poeta já idoso – rico e prestigiado, mas inconfidente e preso – a autora contempla em discretas e precisas pinceladas a Inconfidência Mineira, amparada pela leitura dos autos e por fina interpretação histórica, em que o rigor analítico dialoga com a leitura dos poemas.
Cláudio, dilacerado
Cláudio Manuel da Costa nasceu no distrito da Vargem do Itacolomi, perto do Ribeirão do Carmo, hoje Mariana, no dia 5 de julho de 1729. Seu pai, um modesto português de nome João Gonçalves da Costa, e sua mãe, Teresa Ribeiro de Alvarenga, de antiga e tradicional família paulista, haviam sido atraídos pelo ouro, como milhares de outras pessoas. E prosperaram, pois tiveram escravos, terras, minas e honra. Mas não se tornaram verdadeiros potentados da terra, como sugere a documentação relativa ao inventário da morte de João, pai de Cláudio: “A simplicidade da vida material dos cônjuges contrastava vivamente com o fato de terem enviado cinco filhos – todos os homens que nasceram – para estudar em Coimbra” (p.40). Se João e Teresa reuniram recursos o suficiente para mandarem seus rapazes a Coimbra, é lícito imaginar que amealharam alguma riqueza, tiveram gana de ascensão social e certa sofisticação cultural, além de amigos importantes. Entre eles estava o poderoso contratador João Fernandes (pai de outro João Fernandes, talvez ainda mais poderoso e célebre por esposar Chica da Silva). João Fernandes, o velho, era amigo de João Gonçalves da Costa e padrinho de seu filho, o menino Cláudio.
Aos 15 anos o jovem Cláudio atravessa as Gerais a fim de estudar no colégio jesuíta, no Rio de Janeiro. E aos 18, cruza o Atlântico. No dia primeiro de outubro de 1749, já matriculado na Universidade de Coimbra, inicia sua carreira de homem de letras. Às margens do Mondego, entre aulas, leituras e convivências – e versos – começa a construir sua fama de erudito. Cláudio foi capaz de adquirir uma sólida bagagem cultural humanista permanentemente alimentada ao longo da vida.
Em 1754, aos 24 anos, contrariado, retorna a Minas, de onde nunca mais sairia. Jamais abandonou os versos, mas ganhou a vida (e fez fortuna) como advogado e homem de Estado, exercendo diversas funções, de almotacé a cargos na Fazenda pública e na Câmara de Vila Rica. Ao narrar a vida pública de Cláudio, a autora traça interessante perfil do modo como Estado e a administração atuavam, com seus meandros, labirintos e interesses (lícitos e escusos). Naquele mundo bruto, Cláudio jamais deixou de ser poeta e foi capaz de transpor à sua obra a contradição expressa na convivência tensa entre uma cultura urbana e letrada e outra matuta e iletrada, tão característica das Minas do século XVIII, na qual se sentia “vítima estrangeira” na própria terra.
O poeta não apenas viveu em Minas, mas a expressou, sem jamais esquecer a cultura árcade da Europa. O confronto e a convivência entre a civilização e a barbárie no Novo Mundo é um tema recorrente na Ilustração. A saudade da civilização do Reino é sempre lembrada para falar da desolação de sua terra. “Ser letrado na aldeia não o livrava contudo dos tormentos internos. Em 1768, no ‘Prólogo’ à Obras, desabafou que as boas influências recebidas em Coimbra – ‘alguns influxos, que devi às águas do Mondego’ – estavam destinados a sucumbir, uma vez retornado às Minas: ‘aqui entre a grossaria dos seus gênios, que menos pudera eu fazer que entregar-me ao ócio, e sepultar-me na ignorância!’” (p.138).
A saudade – e o sentimento de inferioridade – perante a Europa, que já acometia Cláudio Manuel da Costa, parece ser um antigo traço do homem de letras brasileiro. Um século e meio depois das saudades metropolitanas de Cláudio, Mário de Andrade, em carta a Carlos Drummond, repreendendo-o, diria: “O dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que todos estamos infeccionados: a Moléstia de Nabuco. (…) Moléstia de Nabuco é isto de vocês andarem sentindo saudade do Sena em plena Quinta da Boa Vista e é isso de você falar dum jeito e escrever covardemente colocando o pronome carolinamichaelisticamente” (referência à filóloga portuguesa Carolina Michaëlis). (Lélia Coelho Frota, Carlos e Mário, 2002, p.128). Muitos dos conflitos vividos por Cláudio, ainda antes da modernidade, são dramas existenciais constantemente reatualizados por certos estratos da elite brasileira, que vivem cindidos entre a crença profunda de pertencer ao Ocidente e o sentimento igualmente profundo de estar à margem.
Concepção e narrativa
Narrar a vida – e de certo modo a obra – de um homem e seu mundo é uma luta com o tempo e com as palavras. Luta ainda mais árdua quando o acervo documental é exíguo e já se vão mais de dois séculos entre o tempo do narrador e do narrado. Reconstruir um tempo e um mundo que já nos são estrangeiros é tarefa por excelência do historiador, cuja missão é traduzir o passado, reconstruindo demoradamente filias e fobias, conceitos e projetos, paixões e ódios, decifrando códigos cuja fluência se perdeu. O Cláudio Manuel exumado por Laura nem é o “verdadeiro”, irremediavelmente perdido, nem é um personagem inventado à maneira de um ficcionista, mas um Cláudio reconstruído a partir de um acurado tratamento documental e bibliográfico, assentado em seu contexto histórico. Para que esse Cláudio exista foi necessário imaginar – ao modo dos grandes historiadores do XIX, como Jules Michelet, que, primando pela qualidade da reflexão e pela exploração crítica das fontes, não recusaram o estilo e a potência interpretativa, capazes de criar uma perspectiva autoral, inconfundível.
Para narrar a viagem de Cláudio Manuel entre o Rio de Janeiro e as Minas, na longa volta para casa, em 1754, depois de seus anos de estudo em Coimbra, a historiadora soube encontrar soluções aos problemas que a pesquisa impunha: na falta de quaisquer documentos relativos à viagem do jovem bacharel, a autora utilizou o relato do reinol Costa Matoso, que na qualidade de ouvidor nomeado àquela capitania, registrou a viagem em minúcias, em 1749; assim, ficamos sabendo que nos estreitos e tortuosos caminhos de Minas não raro a bagagem senão as próprias mulas despencavam ribanceira abaixo; que as chuvas de verão praticamente impediam a viagem entre novembro e março. Narra a biógrafa que, à “medida que a baía do Rio de Janeiro ia ficando para trás, encoberta por véus esgarçados de neblina, ficava também o oceano que ligava a colônia à metrópole, ficavam os navios atracados no cais, as igrejas, os conventos, o palácio dos governadores, o mundo mais lusitano e mais polido que havia desempenhado um papel tão importante na sua formação, e ao qual ele se ligara profundamente, com admiração e culpa” (p.70).
A riqueza do texto, submetido ao rigor da pesquisa histórica, garante à narrativa pelo menos duas camadas de leitura: o leitor especializado encontrará acurada perspectiva analítica, ancorada em erudição bibliográfica e documental; já o leitor não especialista reconhecerá no texto sabor e interesse.
No livro não há notas de rodapé, nem longos balanços historiográficos, como é comum nos textos vazados em linguagem acadêmica. No entanto, no fim do volume, já depois dos agradecimentos, entre as páginas 201 e 215, há uma importante contribuição aos estudantes e estudiosos das Minas do século XVIII. Em “Indicações e comentários sobre bibliografia e fontes primárias” a autora, professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, oferta aos interessados um valioso roteiro de leitura, com comentários acerca da bibliografia e da documentação.
Uma das qualidades da abordagem de Laura está na construção de um retrato de Cláudio e sua época que transcende a dimensão local ou mesmo “nacional”. Inclusive porque o Brasil enquanto nação não existia, nem existiam as nações modernas, com suas sensibilidades românticas e seus projetos de unidade política, cultural, linguística e legal. Consciente de que a história de Cláudio transcorre numa província do Império português, não é de se estranhar que um dos poucos autores citados no livro seja Charles Boxer, historiador que não escreveu sob a égide do estruturalismo e dos recortes estritos (embora aprofundados) no espaço e no tempo, de onde emerge o particular. A obra de Boxer, mais tributária da hermenêutica documental do que da especulação teórica, construiu grandes painéis interpretativos, narrativos, abertos à multiplicidade temporal e espacial da história, como em O império marítimo português, 1415-1825 ou Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Quando as historiografias brasileira e portuguesa – por melhor que fossem – ainda estavam presas aos recortes nacionais, Boxer já praticava uma historiografia de dimensão imperial, o que não significa menosprezar as instituições locais, como a Câmara, ao contrário, pois era através dela que o braço régio atingia os lugares mais remotos do império. Na “vereação de 1781”, da qual Cláudio fazia parte, todos os membros da Câmara, com exceção de um deles, também pertenciam à Santa Casa da Misericórdia, “compondo, assim, o modelo da oligarquia local detectado pelo historiador britânico Charles Boxer para o conjunto do Império português: quem não estava na Câmara, estava na Misericórdia, quando não estava nas duas” (p.90).
A biógrafa é especialista nas Minas do século XVIII, o que, por certo, ajudou a assentar o biografado no chão histórico em que viveu o poeta árcade. Quanto à apreciação propriamente histórico-literária da obra de Cláudio Manoel da Costa, a historiadora travou diálogo com Sérgio Alcides, autor de Estes penhascos. Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (1753-1773) e com a incontornável referência de Sérgio Buarque de Holanda, em Capítulos de literatura colonial. Como Lucien Febvre, nos seus Combates pela História, a autora apostou na contextualização e na humanização do personagem, sem, contudo, desconsiderar o enquadramento do estilo retórico de Claudio Manuel e sua época.
Mapas e viagens
“Viagem dilatada e aspérrima” é a frase com a qual Cláudio descreveu o périplo empreendido pelo governador da capitania, entre agosto e dezembro de 1764, comitiva da qual era integrante. Este é também título do capítulo 15 do livro, em que Laura narra a viagem de 40 léguas, ou 2640 quilômetros, pelo interior selvagem das Minas. A viagem expõe os caminhos, as vilas, os rios, as montanhas, os índios, os negros, os sertanistas, os contrabandistas. O lugar seria perfeito (em linha com a criativa concepção do livro) para presentear os leitores com os esforços cartográficos produzidos nas Gerais do século XVIII. Afinal, mapas ocupavam a imaginação do poeta: “Cláudio guardava duas imagens de santos dentro de redomas de vidro, que ficavam em cima de algum móvel ou dentro de um oratório, ou ainda quem sabe ao pé da cama: as paredes, ele reservava para uma de suas paixões, os mapas” (p.144). Não é possível resgatar os mapas das paredes da casa de Cláudio, mas teria sido interessante imaginá-los, especulando (e integrando ao texto) mapas da época, que nelas poderiam ter estado. Há no livro, no entanto, dois pequenos e extraordinários mapas: um que apresenta a setecentista Vila Rica, em que aparece circulada a fazenda de Cláudio Manuel da Costa (e que havia sido do casal João e Teresa, seus pais); e outro que exibe uma vista panorâmica de Mariana. Mas outros poderiam ter sido evocados, inclusive algum que mostrasse o traçado do caminho que havia sido percorrido por Cláudio (e descrito por Costa Matoso) entre o Rio e as Minas. Ele próprio, conta a autora, havia preparado um mapa, hoje desaparecido, para o governo local. Mapas eram uma das suas obsessões, aliás, não apenas sua, mas de seu tempo.
Honra, lei e a vida
Cláudio Manuel da Costa – um luso-brasileiro branco, educado em Coimbra, enriquecido nas lidas de advogado de prestígio, e um dos maiores poetas da língua portuguesa de seu tempo – jamais se casou, porém viveu por mais de 30 anos com Francisca Arcângela de Souza, negra, provavelmente escrava alforriada, com quem teve ao menos cinco filhos (tampouco se sabe o número exato). Para um homem de sua posição, casar-se com uma moça branca, de sua extração social, teria sido fácil, mas naquele mundo, assumir Francisca impunha um custo elevadíssimo.
Em seu esforço para se nobilitar, Cláudio empenhou-se em ingressar na Ordem de Cristo, a mais aristocrática das ordens militares portuguesas, fundada na Idade Média e herdeira dos templários. Na época dos descobrimentos, o “mestre” da Ordem era El Rei D. Manuel, o Venturoso, o que denota a importância da honraria, cujo valor era simbólico, destinando-se a “homens que haviam se distinguido tanto em feitos de armas como em outras ações dignas de nota, nas letras, no governo, na religião” (p.110). Além disso, pessoas que trabalhassem com as mãos ou fossem de “raça infecta” (ou casadas com gente de “sangue impuro”), por ascendência moura, judaica, negra ou indígena, estavam legalmente impedidas de pertencer à Câmara, às ordens militares ou à Santa Casa da Misericórdia. “Cláudio não podia. Nem casar com a companheira negra que lhe deu cinco filhos, e com quem permaneceu até o final. Como ficariam as honrarias que perseguia, o hábito de Cristo, o cargo de procurador da Fazenda, tudo amarrado pelas exigências restritivas do status e da legislação sobre pureza de sangue?” (p.160). Cláudio – cultor de Ovídio, leitor de Góngora, em termos políticos razoavelmente simpático às reformas do despotismo ilustrado de Pombal – foi, e não poderia deixar de ser, um “homem de seu tempo e de seu país”, parafraseando Machado de Assis (Instinto da Nacionalidade. Obra completa, vol.3, 1994, p.811). Afinal, vivia numa sociedade escravocrata e num Império cioso da pureza de sangue. Apesar da sóbria simpatia que lhe dedica, a biógrafa não deixa de revelar as contradições do poeta: “Cláudio se afeiçoou a uma negra pobre e não teve a coragem do desembargador João Fernandes de Oliveira, filho de seu padrinho, que, milionário e poderoso, assumiu publicamente tanto Chica da Silva quanto a filharada que nasceu da união” (p.141).
Cai o mundo de Cláudio
A partir da década de 1780 vigia, nas Gerais, um clima de sedição e conspiração, manifesto no que Laura de Mello e Souza chamou de “conversas perigosas”. O descontentamento prevalecia entre os grandes da terra – num contexto pós-pombalino, em que o governador nomeado por Lisboa, Luís da Cunha Meneses, gozava de péssima reputação, na medida em que buscava cortar foros e privilégios da elite local. A inquietação se agravava com a rígida política tributária que onerava as finanças dos endividados homens bons. Nesse clima, abundavam reuniões frequentadas pelo cônego de Mariana Luís Vieira da Silva, por Alvarenga Peixoto, que vivia em São João del Rei, por Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, entre muitos outros, como Domingos de Abreu Vieira, Joaquim Silvério dos Reis e, decerto, Tiradentes.
O sentimento de contradição – que opunha interesses locais e o dever de lealdade à Coroa – deve ter calado fundo no já atormentado Cláudio, de certo modo tão português, mas também sensível às coisas do mundo em que habitava. Além dos conflitos latentes, havia um pano de fundo que a autora nota com muita sensibilidade, o que nem sempre percebem os historiadores ávidos de concretude e pouco afeitos a interpretações mais ousadas: “para completar seu desespero, (Cláudio) deve ter percebido com clareza que os luso-brasileiros não eram, no fundo portugueses: nem se sentiam mais assim, nem eram vistos como tais, quando olhados do Reino” (p.180).
O desastre era iminente. A devassa havia começado no Rio de Janeiro, onde Tiradentes fora encarcerado. Em Minas, na manhã de 22 de maio de 1789 fora preso Tomás Antônio Gonzaga. Outra escolta prendera Abreu Vieira. No dia 24, Alvarenga Peixoto e o padre Toledo foram presos. Todos seguiram para o Rio, “montados em cavalos que os soldados puxavam pelas rédeas e, humilhação das humilhações, agrilhoados nos pés e nas mãos” (p.182). Cláudio contava sessenta anos, era o mais velho dos inconfidentes e estava doente, talvez n’alma também. Ele, cavaleiro da Ordem de Cristo, educado em Coimbra, membro ativo da elite imperial, estava prestes a ser preso por alta traição ao Rei. Na madrugada do dia 25 de maio sua casa fora cercada. O poeta de prestígio, proprietário de escravos, advogado de quase todos os grandes contratadores, rico o suficiente para emprestar dinheiro aos ricos, estava preso. Ele que conhecia como poucos a legislação do Reino, agora era réu e devia depor. O depoente, alquebrado e acovardado, acostumado ao outro lado do balcão, foi logo incriminando amigos e confessando. “Mal lhe perguntaram se desconfiava do motivo que o levara a tal situação e já confessava o terror que o acometera ao saber do envolvimento de Gonzaga ‘numa espécie de levantamento com ideias de República’ e o receio de que o considerassem ‘sócio consentidor ou aprovador de semelhantes ideias’” (p.184). Além de trair seu Rei, traía seus amigos, convivas da Rua Gibu de poucas semanas antes. Ele, que tanto lutara por honra, já não a tinha. Os cargos, já não valiam mais nada. O hábito de Cristo devia soar ridículo.
No dia 4 de julho de 1789 Cláudio decidiu pôr termo à vida.
Ele que, talvez, nem desejasse um efetivo rompimento com a metrópole, contentando-se com maior autonomia da Capitania, um governo mais ilustrado e menos voraz e, principalmente, mais sensível às demandas locais. Cláudio Manuel da Costa foi a primeira vítima da Inconfidência. Antes do degredo de Gonzaga e Alvarenga, ou da morte esquartejada de Tiradentes, fora ele o primeiro a sucumbir.
Laura de Mello e Souza, convincentemente, opta pela tese do suicídio, o que seria visto como algo herético pela historiografia patriótica do século XIX (e por vários outros autores), para quem Cláudio foi assassinado, o que jamais saberemos. Resta ao historiador compreender, reunindo documentos, observando contextos, cotejando informações e refletindo sobre o passado – esse país estrangeiro que, à maneira de um etnógrafo, deve ser inquirido. O historiador não é um ficcionista, mas pode ser um narrador criativo, embora refém das fontes – por isso é também um detetive. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido é um painel das Minas do século XVIII, acessado a partir da leitura de um homem e suas circunstâncias. Empresa intelectual em que se percebe a influência do historiador italiano Carlo Ginzburg – não por acaso, um cultor do método indiciário. E, ainda mais se nota a herança de Sérgio Buarque de Holanda, que leu a poesia árcade de Cláudio como “o contraste entre o espetáculo da rudeza americana e a lembrança dos cenários europeus (…). Nos poemas que, restituído a terra natal, passa a compor, domina insistente e angustiada a nostalgia de quem – são palavras suas – se sente na própria terra peregrino” (Sergio Buarque de Holanda, Capítulos de história colonial, Brasiliense, 1991, p.227). Laura narrou a vida cindida de Cláudio, como Sérgio havia compreendido a obra cindida do poeta.
Alberto Luiz Schneider – Professor temporário de História Colonial no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH /USP-São Paulo/Brasil). E-mail: alberto.ls@uol.com.br
SOUZA, Laura de Mello e. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: SCHNEIDER, Alberto Luiz. A vida (e a morte) de Cláudio Manuel da Costa: poeta árcade, escravocrata e inconfidente. Almanack, Guarulhos, n.4, p. 168-173, jul./dez., 2012.
Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394) | Paul Veyne
Paul Veyne é um nome proeminente e controverso entre os classicistas. Membro da École Française de Rome, sua eleição para o Collège de France, onde é professor honorário, causou certa surpresa. Pondo-se à margem das correntes historiográficas vigentes, seu trabalho é marcado pela curiosidade intelectual, certa ironia e pela influência da obra de Michel Foucault. Já nos anos 1970 abraça a narrativa e advoga sobre a importância do diálogo da história com a filosofia e a sociologia.
Comecemos pela afirmação que permeará todo o livro e que representa uma quebra a um cânone histórico: a fé do imperador Constantino (272-372 d.C) era verdadeira, e sua opção pelo cristianismo não foi fundamentada em interesses políticos. Os cristãos, durante o século IV, período ao qual o livro se atém, formavam uma parcela muito pequena da população do Império Romano, cerca de 5 a 10% do total. Constantino teria sido pragmático, pois não forçou os pagãos à conversão, o que teria feito com que esses se insurgissem contra sua autoridade. A política cristã do imperador se deu, sobretudo, em suas atitudes para com sua própria pessoa, sua religião foi imposta apenas em sua esfera pessoal.[1[ Todavia, a pessoa do imperador influi também nas questões estatais, como o exército, o fisco e a nomeação dos ocupantes de cargos públicos. Assim, aos poucos o cristianismo adquire cada vez mais força na vida pública romana. O livro relata que, com o decorrer dos anos, o cristianismo se torna a religião da maioria da população, mas se concentra mais na figura de Constantino e nas motivações de que o levaram a promover a fé cristã que nas práticas e doutrinas do cristianismo na antiguidade tardia.
A história da conversão de Constantino é famosa: no século IV de nossa era, o Império romano estava sob o governo de quatro coimperadores, dois governando o Ocidente e dois o Oriente. A porção ocidental se encontrava repartida entre Licínio e Constantino, sendo o último responsável pela administração das províncias da Gália, Inglaterra e Espanha. Maxêncio tomou a Itália, território que cabia a Constantino, que por sua vez declarou-lhe guerra e, na véspera da batalha decisiva, teve um sonho, no qual lhe apareceu o símbolo do crisma. Ordenou que o símbolo fosse pintado nos escudos de seus soldados, e no dia 28 de outubro de 312 derrotou as tropas do rival Maxêncio, episódio conhecido como a vitória de Ponte Mílvio. Entretanto, há questionamentos sobre o relato, pois a principal fonte, Vida de Constantino, de Eusébio de Cesareia, apresenta versões diferentes sobre o que teria sido visto pelo imperador no sonho, uma cruz ou o crisma. Veyne acredita que o sonho foi uma manifestação do inconsciente, revelando o desejo de Constantino em se converter.
O autor esclarece que, a seu ver, Constantino enxergou no cristianismo uma “superioridade” em relação ao paganismo. Seu monismo politeísta e natureza metafísica o faziam superior ao paganismo.[2] O imperador teria promovido uma verdadeira revolução religiosa ao conceder aos cristãos as mesmas benesses que os pagãos desfrutavam, e atribuiu a si o papel de protetor da cristandade. O grande atrativo para as conversões ao cristianismo, visto como vanguarda que atraía a elite, explica Veyne, era sua originalidade: ser uma religião que prega o amor; o “gigantismo de seu deus”, criador de todas as coisas e a vitória de Cristo sobre a morte. A nova sensibilidade a que o cristianismo deu gênese lhe proporcionou sucesso, pois se trata de uma religião que proclama a igualdade de todos (em espírito) e fornece significação existencial. O cristianismo não floresceu e se propagou por ter respondido às necessidades de uma época, e sim porque trazia em si algo novo, o amor da divindade pelos homens. O autor não se coaduna às explicações de natureza psicológica sobre a religião, pondo-se ao lado de Georg Simmel e defendendo que o sentimento religioso é algo inseparável do ser humano.[3] Constantino, no desejo de ser um grande imperador, necessitava de um grande deus. E o deus cristão abraça toda a humanidade. A religião de vanguarda viria a corresponder os desejos do imperador: ao se converter, ele tomou parte em uma “epopeia espiritual”, assumindo as rédeas da cristianização.
Ao tratar da Igreja Católica, Paul Veyne contraria, mais uma vez, a corrente tradicional. Para os marxistas, Constantino valeu-se da Igreja para se estabilizar no poder. Para Veyne, o cristianismo era atrativo ao imperador por seu dinamismo e organização, traços presentes na própria personalidade de Constantino. Tratava-se de uma instituição cuja influência sobre seus membros era notável, pois infundia um modo de vida aos fiéis e possuía uma rígida hierarquia. Todavia, por si mesma a Igreja não tinha meios suficientes para se impor junto à grande maioria pagã. Constantino, ao crer que Deus o havia escolhido para difundir a Sua palavra, promove a construção de igrejas em diversos locais do Império, faz doações vultosas, concede cargos aos cristãos, entre outras benesses, o que amplia a divulgação religiosa. Destarte, não foi Constantino que se apoiou na Igreja: essa foi beneficiada pela ação prosélita do monarca. Segundo o autor: “Constantino instalou a Igreja no Império, deu ao governo central uma função nova, a de ajudar a verdadeira religião…”.[4] Paul Veyne utiliza diversas cartas do próprio Constantino como forma de rebater a historiografia tradicional e não crê que ele tenha utilizado o cristianismo como uma ideologia em seu governo: o monarca mantinha a fachada pagã do Império, não precisava da religião a fim de se legitimar, os cristãos eram uma minoria desprezada. E também porque não eram necessárias motivações de cunho ideológico para que as multidões venerassem o imperador. A obediência à autoridade e o patriotismo são frutos da vivência social. Para os antigos o respeito à lei e a ordem também era algo sagrado. O que ocorre a partir de Constantino é a adoção de uma nova fraseologia legitimante: reina-se pela graça e pela vontade de Deus, e a função do imperador é estar a serviço da religião.
Outra novidade do governo de Constantino é a entrada do sagrado na política. O laicismo não seria uma invenção moderna. O paganismo romano do século IV era como um hábito, respeitado como uma tradição patriótica, mas em crise entre os intelectuais. A questão da verdade religiosa é apontada por Veyne, que afirma que o paganismo não tinha respostas para ela, enquanto o cristianismo se posicionou como a verdadeira religião. Ao se converter, Constantino considera o avanço da Igreja uma questão política, pois cabia a ele, como cristão e como soberano, levar a verdadeira fé a seus súditos e zelar por sua salvação. Apesar disso, não há perseguição aos pagãos e sim aos hereges. A preocupação com a ortodoxia faz com que Constantino se insira nos assuntos da Igreja, agindo como seu “presidente” e essa, no século IV, não interfere no governo secular, ao contrário: se mostra submissa ao imperador. De fato, era pregada a divisão entre “as coisas do céu” e “as coisas da terra”, e a Igreja prezava pela fidelidade ao Império Romano. Constantino uniu ambas as coisas ao portar-se como líder não apenas político, mas também espiritual. A Igreja, antes da conversão do imperador, já era uma instituição independente, mas irá ter proveito com o proselitismo imperial.
Mesmo com o favorecimento do cristianismo o Império continuava pagão, pelo menos em sua fachada. O imperador ainda era o sumo-pontífice da religião politeísta, e não houve uma mudança significativa nos costumes. Havia o foro íntimo do imperador, que era cristão e coexistia com a religião pagã, formando um ‘”Império Bipolar”.[5] Durante o século IV o clima entre as duas religiões é de tolerância, apesar das benesses ao cristianismo. A manutenção da ordem pública era um ideal que devia ser mantido a despeito das convicções religiosas.
O judaísmo não teve a mesma sorte. Durante o período em que o paganismo primava, a religião judaica era rejeitada por suas restrições alimentares e pela exclusividade de seu Deus. Quando o cristianismo começa a se propagar, o judaísmo é rechaçado justamente por conta de sua proximidade com a nova religião. Ambos têm por característica a inventividade. Os judeus não eram nem cristãos, nem pagãos, e essa incerteza, que Paul Veyne relaciona aos estudos de Mary Douglas sobre o puro e o impuro, faz com que a população judia sofra perseguições. No apêndice do livro, onde são analisadas as transformações do judaísmo, de uma monolatria a um monismo e religião nacional, vê-se que o judaísmo, antes da expansão do cristianismo, atraía alguns pagãos e tinha um caráter prosélito.[6] Com as perseguições cristãs, que se iniciaram no período de Constantino, a comunidade judaica fecha-se sobre si mesma, tornando raras as conversões à sua fé. O autor vê na intolerância desses tempos a causa real do antissemitismo atual.
Veyne afirma que, sem o posicionamento de Constantino, o cristianismo estaria fadado ao papel de seita e tenderia a se esvanecer com o tempo. Para ele, a ação do monarca foi crucial para o desenvolvimento e expansão da religião. Com a morte de Constantino funda-se uma tradição de imperadores cristãos, quebrada momentaneamente por Juliano, o Apóstata (331-363 d.C), que tenta restabelecer o paganismo ao seu antigo esplendor. Com sua morte, o exército coloca no poder imperadores cristãos. Arbogast, líder germânico, toma o poder na parte ocidental do Império e põe no trono o imperador-fantoche Eugenio, o que agrada aos pagãos. De fato, durante a primeira metade da década de 390 há um reflorescimento dos cultos pagãos. Teodósio (347-395 d.C), o governante cristão do Oriente, não vê com bons olhos essa manobra, rejeitando Eugenio como coimperador. A proibição dos cultos pagãos em 392 transforma o conflito pelo trono em disputa religiosa, e o paganismo tem fim como religião autorizada em 394. O cristianismo se torna religião de Estado.
Enquanto nos quadros do governo imperial a nova religião avançou rapidamente, a cristianização da população foi um processo que levou séculos, especialmente no campo, onde ocorreu por impregnação progressiva, e não individualmente. A recepção do cristianismo pelas camadas populares provocou a paganização. O fervor cristão dos primeiros séculos de nossa era transforma-se e nos séculos VI e VII o cristianismo, tal como o politeísmo antigo, passa a ser uma religião habitual. Paul Veyne discorda da expressão de Max Weber: para ele não houve um “desencantamento do mundo”, e sim uma especialização 7.[7] Os sincretismos que ocorreram por conta da conversão em massa e que se tornaram a religião popular não são tratados no livro, algo que seria interessante abordar.
No último capítulo o autor nos pergunta sobre as raízes cristãs europeias. Para ele, como uma realidade heterogênea, não é possível que a Europa possua raízes. A formação da Europa atual foi uma epigênese, se fez de etapas imprevisíveis. A religião é apenas um dos muitos traços das sociedades. Um traço que se sobressai, é verdade, mas que sozinho não pode definir uma realidade social. Sendo uma elaboração coletiva e oral, os criadores do cristianismo foram os apóstolos, os primeiros fiéis. O Império Romano, em sua vastidão, significava uma oportunidade maior de expansão dessa nova fé, a qual os judeus não davam crédito. Os valores que hoje são caros às sociedades europeias, tais como a democracia, a liberdade religiosa e sexual, a redução das desigualdades, não são cristãos. O cristianismo não era um programa político: pregava o desligamento das coisas mundanas, uma vivência casta e obediente. Veyne crê que a espiritualidade moderna estaria muito mais ligada á filosofia de Kant e Spinoza que ao Evangelho. As transformações do 7 Ibid., pp.184-185. mundo fizeram com que o catolicismo assumisse algumas posições sociais, porém, os cristãos não estão distantes da moral social vigente. Assim, “não é o cristianismo que está na raiz da Europa, é a Europa atual que inspira o cristianismo ou algumas de suas vertentes”.[8] O cristianismo permanece como um ancestral, mas não se pode dizer que a Europa atual é uma sociedade cristã. O humanitarismo atual não é fruto do cristianismo, mas sim do Iluminismo. Todavia, ele (cristianismo) auxiliou na tarefa de “preparar terreno” para as ideias de igualdade. Mas já não está nas raízes da Europa há muito tempo.
O livro, publicado originalmente em 2007 na França, se tornou um bestseller, e oferece uma visão original sobre os primeiros séculos do cristianismo. Veyne busca as grandes figuras públicas e os eventos, afirmando a importância da ação individual na história.
Notas
1. VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.28.
2. Id. Ibid., p.40.
3. Id. Ibid., p.47.
4. Id. Ibid., p.138.
5. Id. Ibid., p.143.
6. Id. Ibid., p.273.
7. Ibid., pp.184-185.
8. Ibid., p. 232.
Mariana Figueiredo Virgolino.
VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Resenha de: VIRGOLINO, Mariana Figueiredo. Constantino, um Imperador de fé. Cantareira. Niterói, n.17, p. 138-141, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]
Povos indígenas no Caribe contemporâneo / Revista Brasileira do Caribe / 2012
A Revista Brasileira do Caribe, sob a direção atual da professora Isabel Ibarra Cabrera, historiadora da Universidade Federal do Maranhão que já organizou vários fascículos e se encontra vinculada à Revista desde sua fundação, conta também com o apoio da fundadora e diretora anterior de longos anos, professora Olga Cabrera. A Revista está fortemente comprometida com o projeto de desenvolver os estudos do Caribe no Brasil vinculados também com outras culturas e com suas matrizes africanas.
Foi-me uma grande honra receber convite da professora Isabel Ibarra para colaborar na organização de um dossiê que abrangesse, entre outros temas, artigos que tratam da questão indígena na região do Caribe. Ao abordar povos indígenas no Caribe, resolvi incluir artigos que versam sobre alguns povos indígenas contemporâneos em toda a região do Maciço Guianense do norte da América do Sul, região de maior concentração dos povos indígenas que pertencem à família linguística Caribe, incluindo, também, o litoral norte da América do Sul, as ilhas do Caribe e a região Circum-Caribe mexicana. Além de povos indígenas da família linguística Caribe, essa região também abarca outros povos indígenas da família linguística aruaque, alguns povos da família tupi e outros povos de famílias linguísticas menores. Em uma tentativa de caracterizar ospovos de línguas caribe da América do Sul na década de 1970, Ellen Basso (1977) separa oito características que julga serem tipicamente caribes, relacionadas, em parte, a fatores ecológicos. Entretanto, esses traços são encontrados em muitas sociedades indígenas, revelando que diferenças linguísticas não coincidem necessariamente com diferenças socioculturais. Focalizando os povos indígenas do maciço guianense, Peter Rivière (2001 [1984]), na década seguinte, desenvolve uma teoria a partir de um estudo comparativo da organização social ameríndia,
de que os povos da região guianense representariam, ao serem comparados com os povos de línguas jê e os povos do Alto Rio Negro, a cultura das Terras Baixas da América do Sul em sua forma mais simples de todas as possibilidades, referindo-se a possibilidades lógicas, e não como a origem da cultura. Segundo esse autor a economia política das sociedades indígenas da região guianense preocupa-se com o gerenciamento das capacidades produtivas e reprodutivas dos indivíduos, homens e mulheres, sobretudo das mulheres que constituem um recurso escasso. A partir de estudos realizados por pesquisadores do seu grupo de pesquisa centrado na Universidade de São Paulo, sobre os sistemas indígenas multilocalizados de comunicação e intercâmbio na região das Guianas, Dominique Gallois (2005) implode qualquer tentativa de fazer um recorte étnico dos povos indígenas dessa região por ser inadequado para explicar essas sociedades indígenas,ressaltando a importância de estudos da história. Em trabalho publicado no mesmo volume organizado por Gallois, a pesquisadora Denise Fajardo Grupioni (2005) questiona a caracterização típica feita por Rivière e propõe, a partir de uma abordagem que leva em consideração o espaço e o tempo, em que “abertura e fechamento, dispersão e isolamento, exogamia e endogamia, descendência e aliança não se excluem, mas se opõem de forma complementar (2005, p.50)”. Enquanto crescer o número e a qualidade das pesquisas etnológicas com povos indígenas nas Guianas, revela-se uma enorme diversidade sociocultural entre os povos dessa região, e histórias particulares e regionais do contato interétnico entre povos indígenas e as sociedades nacionais, em que as pesquisas sobre temas diversos se complementam. A obra de Nádia Farage (1991) sobre a colonização do rio Branco apresenta uma rica história dos povos indígenas da região guianense, como também o livro de Paulo Santilli (1994) sobre as fronteiras da República do Brasil, e a obra de Niel Whitehead (1988) sobre a história dos povos caribes na Venezuela e na Guiana em tempos coloniais.
O dossiê “Povos Indígenas no Caribe contemporâneo” inclui seis artigos sobre povos indígenas atuais e cinco artigos históricos e literários.
O primeiro artigo, “Dispersão e Concentração Indígena nas Fronteiras das Guianas: análise do caso kaxuyana” de autoria do professor Ruben Caixeta de Queiroz da Universidade Federal de Minas Gerais junto com Luisa Gonçalves Girardi, aborda o povo indígena kaxuyana que habita um tributário direito do médio rio Trombetas, localizado na porção brasileira da Amazônia Setentrional. No final dos anos 1960, esse povo, assolado por doenças trazidas pelas frentes de colonização, dividiu-se, uma parte mudando para o rio Paru de Oeste, outra parte para o rio Nhamundá. Por meio de casamentos com índios Tiriyó no Paru de Oeste, e com os índios Hixkaryana no Nhamundá, a população kaxuyana voltou a crescer, e após quatro décadas separadas, estas duas frentes voltaram a se reunir no seu lugar de habitação tradicional, onde fundaram duas aldeias próximas e distantes ao mesmo tempo para garantir a boa relação dos grupos.
O artigo seguinte, “A Vontade de Saber – a escola e o mundo das profissões entre os Ye’kuana”, escrito por Karenina Vieira Andrade, professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, trata da busca da educação superior por parte do povo indígena Ye’kuana, cujas terras se localizam na fronteira entre o noroeste do estado de Roraima no Brasil e os estados de Bolívar e Amazonas no sul da Venezuela. Na mitologia ye’kuana, Wanaadi, o demiurgo ye’kuana, criou, dentre outras coisas, o papel e a escrita para enganar o anti-herói Odo’sha. Nos últimos anos os Ye’kuana têm se envolvido em um processo acelerado pela formação dos
primeiros professores ye’kuana na licenciatura intercultural do Instituto Insikiran da Universidade Federal de Roraima, e de repensar a escola indígena. Apesar da sua história violenta de contato com a população não-indígena, os Ye’kuana buscam se reinventar novamente por meio da profissionalização no mundo dos brancos, mantendo sua própria cultura.
O terceiro artigo, “Una montaña bañada por el mar: La Sierra Nevada de Santa Marta en el Caribe Colombiano” de autoria de José Arenas Gómez, aluno de Pós-Graduação do Departamento de Antropologia da UnB, aborda a Sierra Nevada de Santa Marta no litoral Caribe da Colômbia, região onde, conforme ressalta esse autor, os estudos
que se têm realizado nos diferentes campos do conhecimento não parecem transcender as fronteiras físicas da zona, e em decorrência disso muitos dos elementos mais interessantes dos grupos ijka, kággaba, viwa y kankuamo, seus habitantes indígenas, são desconhecidos no âmbito acadêmico internacional. O autor analisa aspectos destas comunidades indígenas com o objetivo de abrir possibilidades de diálogo tanto com as zonas vizinhas quanto com outras regiões geograficamente distantes como a Amazônia, que compartilham elementos etnológicos.
O quarto artigo do dossiê, “Estratégia de Aumento de Valência: A Construção Causativa em Waimiri Atroari (Carib do Norte)” da antropóloga e linguista Dra. Ana Carla Bruno, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA/CSAS propõe descrever e analisar alguns aspectos da morfologia verbal concentrando-se em algumas questões comoa estratégia de aumento de valência e a construção causativa na língua waimiri-atroari. Os Waimiri Atroari, povo indígena que habita o norte do estado do Amazonas e sul de Roraima, no Brasil, em comum com outras línguas da família Carib, falam uma língua cuja estrutura do verbo é basicamente prefixo-raiz sufixo. A análise linguística revela que os prefixos, nesta língua, usualmente marcam a pessoa e os sufixos marcam tempo/aspecto/ modo, negação, nominalização e mudança de valência através do processo de causativização.
O quinto artigo “Os povos indígenas Wapichana e Makuxi na fronteira Brasil-Guiana, região do Maciço Guianense”, de autoria de Stephen G. Baines, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPq, aborda as estratégias narrativas entre os Makuxi e Wapichana que vivem ao longo da fronteira internacional entre o Brasil e a Guiana de se reafirmarem etnicamente a partir da crescente consolidação do movimento indígena desde a década de 1970 até o momento. A história indígena é acionada por lideranças dentro do contexto dos Estados nacionais como uma apropriação do passado para fortalecer as identidades indígenas em lutas políticas atuais. Os discursos dos Makuxi e dos Wapichana, cujos territórios tradicionais foram divididos pela fronteira internacional em 1904, revelam as contradições e as ambiguidades dos discursos governamentais dos respectivos Estados nacionais a respeito de nacionalidade e etnicidade.
O sexto artigo “Migraciones mayas y yucatecas a Cuba; notas etnográficas”, escrito pela antropóloga Victoria Novelo O. do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS), México, versa sobre os Yucatecos que, desde
o início da colonização do México participaram de um processo migratório à Ilha de Cuba. Segundo a autora, os maias foram, na maioria dos casos, levados pela força à Cuba colonial para servir como trabalhadores domésticos e da construção. No séculoXIX foram enviados como prisioneiros feitos durante o conflito conhecido como “guerra de castas” em Yucatán e vendidos como escravos. No século XX os migrantes são mais variados, incluindo diaristas e operários, políticos, professionais, artesãos, músicos, artistas, sacerdotes e outros. A migração yucateca e mexicana ao longo dos séculos deixou uma herança cultural visível na cultura popular cubana.
O sétimo artigo, em Artigos históricos e literários, “La apuesta por el “Guano” en Puerto Rico: exploraciones científicas, desempeño empresarial y mercado internacional”, escrito pelos professores María Teresa Cortés Závala e José Alfredo Uribe Salas da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, México, trata da história do “guano” das ilhas caribenhas de Mona e Monito que, a partir da metade do século XIX, havia penetrado no imaginário científico e popular de Espanha como a panaceia para potenciar a produção agrícola e diversificar seus cultivos, e como uma saída à crise do açúcar nos domínios espanhóis de Cuba e Puerto Rico. O crescimento de demanda levou o governo da Espanha a financiar expedições nas ilhas Mona e Monito, no Caribe, com a finalidade de determinar seu valor no mercado. O resultado revelou que se tratava de um mineral com rico conteúdo de cal-fosfato A exploração do minério utilizou mão de obra barata das ilhas de Guadalupe e Bahamas, e deixou pouco para a economia local, até que nos anos de 1920 e 1930 o crescimento da indústria química tornou sua extração obsoleta.
O oitavo artigo, “Uma janela sobre o Haiti: estórias andantes de uma blanc no Caribe” escrito por Pâmela Marconatto Marques, da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propõe uma estética híbrida: é testemunho de viagem atravessado por elaborações poéticas de uma brasileira em sua “viagem de descobrimento” ao Haiti. Conforme a autora, se a estética é ambígua, a ética do trabalho, entretanto, é uma e bem definida: “contar” um Haiti pouco conhecido dos brasileiros, sendo mais complexo e mais humano.
O nono artigo, “A Guiana Francesa, entre o pós-colonialismo e a afirmação nacional” de autoria de Charles Benedito Gemaque Souza, pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/UFPA, aborda a Guiana Francesa, região administrativa da França metropolitana no litoral norte da América do Sul, sociedade etnicamente diversificada que abarca todas as contradições do pós-colonialismo. O modelo estatal francês universalista e integracionista não tolera as diferenças seja aquelas trazidas pelos imigrantes ou originárias dos povos indígenas, e o processo de descolonização reproduz as velhas políticas de dominação colonial.
O décimo artigo desse dossiê, “Notas historiográficas sobre la elección presidencial de Tomás Estrada Palma y el establecimiento de la República cubana, 1902”, escrito pela pesquisadora María del Rosario Rodríguez Díaz, do Instituto de Investigaciones Históricas, da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, objetiva mostrar as tendências gerais da historiografia cubana referente às diferentes discussões que a primeira eleição presidencial na Ilha provocou na narrativa histórica cubana em datas recentes. A autora focaliza textos de dois acadêmicos cubanos, Ana Cairo e Yoel Cordoví, ambos representantes ambos do mais atual da historiografia em torno ao estabelecimento da República em Maio de 1902.
O décimo primeiro e último artigo, escrito pelo professor Amailton Magno Azevedo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, intitulado “Gilberto Gil e Caetano Veloso: ser jovem nos alegres tristes trópicos” visa à identificação e à reconstrução de rastros de um modo de juventude no Brasil a partir das trajetórias musicais de Gilberto Gil e Caetano Veloso nos anos 1960 ao início dos anos 1980. O autor enfatiza que, com as obras desses dois artistas musicais, surgiu a construção de uma nova experiência juvenil no Brasil que moldou uma estética de ser e estar no mundo.
O dossiê apresenta uma variedade de temas, todos versando sobre a região Caribe tomado em sentido amplo. Espera-se que este dossiê apresenta uma contribuição para os estudos dessa região.
Referências
BASSO, Ellen B. Introduction: The status of Carib ethnography, p. 9-22, In: BASSO, Ellen B. (org.). Carib-Speaking Indians: Culture, Society and Language. Anthropological Papers of the University of Arizona nº 28, Tucson: The University of Arizona Press, 1977.
FARAGE, Nádia. As Muralhas do Sertão: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991.
GALLOIS, Dominique Tilkin. Introdução: percursos de uma pesquisa temática. In: GALLOIS, Dominique Tilkin (org.) Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 6-22.
GRUPIONI, Denise Fajardo. Capítulo 1 Tempo e espaço na Guiana indígena. In:
GALLOIS, Dominique Tilkin (org.) Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 23-57.
RIVIÈRE, Peter. O Indivíduo e a Sociedade na Guiana: um estudo comparativo da organização social ameríndia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001 [Cambridge University Press, 1984].
SANTILLI, Paulo. As Fronteiras da República: história e política entre os Makuxi no vale do rio Branco. São Paulo: NHII – USP; FAPESP, 1994.
WHITEHEAD, Niel. Lords of the tiger spirit: a history of the Caribs in colonial Venezuela and Guya na, 1498-1820. Dordrecht, Holland; Providence, U.S.A.: Foris Publications, 1988.
Stephen G. Baines – Professor Associado 3, Departamento de Antropologia, UnB; Pesquisador 1A do CNPq.
BAINES, Stephen Grant. Povos indígenas no Caribe contemporâneo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.13, n.25, p.7-14, jul./dez. 2012. Acessar publicação original. [IF].
Mundo Antigo | UFF | 2012-2017
A Revista Mundo Antigo (Campos dos Goytacazes, 2012-2017) é um periódico científico e de acesso aberto (Open Access Journal). A revista é especializada em História Antiga, História Medieval e Arqueologia, e é publicada pelo Núcleo de Estudos em História Medieval, Antiga e Arqueologia Transdisciplinar (NEHMAAT) subordinada ao Departamento de História de Campos dos Goytacazes – Universidade Federal Fluminense. Este periódico tem por objetivos:
- Promover o intercâmbio entre pesquisadores, professores e pós-graduandos do Brasil e do exterior.
- Disseminar pesquisas de professores e pós-graduandos do Brasil e do exterior.
- Permitir acesso mais ágil e fácil a produção acadêmica de modo a ser usada em pesquisas futuras por discentes e docentes.
- Estimular a produção de conhecimento sobre a História Antiga, História Medieval e Arqueologia Antiga.
- Divulgar publicações, eventos, cursos e sites, quando possível, de modo a contribuir com a pesquisa docente e discente.
- Estabelecer uma relação entre mundo antigo e mundo contemporâneo, quando possível, para uma melhor compreensão dos processos históricos.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2238-8788
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Diáspora, literatura e arte / Revista Brasileira do Caribe / 2012
Como afirma Brah (1996) na diáspora múltiplas posições de sujeitos se justapõem, se questionam, se proclamam, negam e se narram. A região do grande Caribe tem na diáspora experiências fundamentais para entendermos a história de sua sociedade e sua cultura. Seja no que diz respeito às emigrações de caribenhos para a Europa, América do Norte ou do Sul no século XXI, seja no que concerne à diáspora africana, do período moderno, ou as diásporas europeias mais recentes como aquela vivenciada pela comunidade de espanhóis fugidos da queda da República. Isso sem contarmos a diáspora síria, libanesa e chinesa do começo do século XX. Outrossim, a migração de trabalhadores indianos contratados deve ser lembrada.
A diáspora tem sido pensada como intersecção da errância com a fronteira, da localização com o deslocamento; é ponto confluência de processos econômicos, sociais, políticos, culturais ocasionados no trânsito, no deslocar-se. Nesse sentido, como parte da história caribenha, ela marcou as experiências e se constituiu em contextos fundamentais de produção artística e literária caribenha, quando não tema para artistas e escritores caribenhos diaspóricos ou não. Não poucas vezes, para retomar a expressão de Hall (2003) eles foram obrigados a pensar as suas sociedades na diáspora.
Esse número da Revista Brasileira do Caribe reúne textos sobre a relação entre Diáspora, Literatura e Arte no Caribe, fruto do trabalho de cooperação em rede entre grupos de pesquisa das Universidades de Granada, Carlos III y Autônoma de Barcelona, a Filmoteca de Madri, na Espanha, a Universidade Federal do Tocantins, Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal de Maranhão, no Brasil e a Universidade do Atlântico, na Colômbia. Abre o Dossiê o artigo “Anecdotario de una visa imaginaria. Diáspora y activismo en la obra de Jean-François Boclé,” que analisa a produção artística da diáspora caribenha a partir da trajetória e do ativismo do artística plástico Jean-François Boclé. Na sequência, Jordi Lladó, “Literatura catalana en la prensa latinoamericana: una nación en la diáspora” trata da relação estabelecida no século XX entre a literatura catalã e o mundo cultural latino-americano, mostrando, por um lado, o enriquecimento da produção cultural na América Latina e Caribe, e, por outro, como as revistas catalãs na América se constituíram como lugar de fortalecimento cultural da língua catalã quando ela era perseguida na Espanha.
O artigo “La ‘primera piedra’: José Gómez Sicre y la fundación de los museos interamericanos de arte moderno de Cartagena y Barranquilla” de Alessandro Armato, reconstrói a história do primeiro lançamento do museu interamericano de arte moderna em Cartagena de Índias e Barranquilla e o envolvimento de personagens diáporicas, como o cubano José Gómez Sicre e a Martha Traba nesse projeto, mostrando o papel de migrantes no desenvolvimento do modernismo artístico na Colômbia. Seguindo uma mesma perspectiva, Danny González Cueto en “Arte, literatura, prensa e intelectualidad en el Caribe colombiano (1917-1980)” escreve sobre a produção cultural na cidade de Barranquilla, focando, entre outros aspectos, a importância de personagens diáporicos como o judeu David Zacarías López (Penha) e o catalão Ramon Vinyes. Ainda no que diz respeito á produção cultural, Alexa Cuesta Flórez apresenta o artigo “Feminismo, género o reivindicación en el arte del Caribe colombiano: Colectivo La REDHADA” no qual se problematiza a produção artística feminina do Caribe Colombiano, fazendo ênfase nas trajetórias diaspóricas de muitas dessas artistas.
Os estudos que seguem tratam de personalidades inquietas e errantes como o crítico Juan Acha, o escritor Alejo Carpentier e o artista Jaime Suárez. No primeiro caso, aparece o artigo de Dagmary Olívar Graterol “Revisión del latinoamericanismo en la propuesta teórica y crítica de Juan Acha”, nesse propõe estudar a obra desse importante crítico de arte em torno da questão do latino-americanismo. Dernival Venâncio Ramos e Marina Haizenreder Ertzogue em “Performance biográfica e narrativa no Caribe: um estudo de La consagración de la primavera, de Alejo Carpentier” problematizam o lugar da biografia como discurso legitimador na narrativa de um dos maiores escritores cubanos. Por fim, Daniel Expósito Sánchez em “Jaime Suárez ante la crítica de arte puertorriqueña. Impresiones de una década (1975-1985)” problematiza o lugar da crítica de arte na projeção do artista porto-riquenho como um dos mais importantes criadores de seu país.
Este dossiê, tenta contribuir para o aprofundamento da discussão sobre o lugar da diáspora na experiência histórica cultural caribenha. Como se pode perceber, o trânsito de gentes do e pelo Caribe foi um contexto importantíssimo para a produção artística regional; no entanto, a experiência da diáspora tem sido também o contexto no qual muitos escritores, artísticas, críticos têm localizado sua produção artística e literária.
Na sequência aparece o artigo “En torno a la Ciénaga de García Márquez: El proyecto de adaptación de La Casa Grande de Álvaro Cepeda Samudio por Luis Alcoriza” de Javier Herrera. Neste se descreve o projeto de filmar a obra La casa grande de Álvaro Cepeda Samudio. Simultaneamente, mostra a faceta cinematográfica do autor de Cien años de soledad. Fecha essa edição o artigo “Filosofía de la Historia y Teoría de la Frontera en el Ensayo Americano” de Luiz Sérgio Duarte da Silva que, centrado na produção literária e ensaísta, chega a insights que podem ser aplicados a outros campos, como as artes plásticas. Para Silva, a arte é produção de sentido, tentativa de dar conta das demandas sociais e, por isso, tenta orientar à sociedades no modo como ela compreende seu passado e futuro.
Referencias
BRAH, Arthur. Cartographies of Diaspora: Contesting identities. New York: Routledge, 1996.
HALL, Stuart. Da diaspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
CUETO, Danny González; RAMOS, Dernival Venâncio; LLADÓ, Jordi. Diáspora, literatura e arte. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.12, n.24, jan./jun., 2012. Acessar publicação original. [IF].
Tempo Presente | UPE | 2012
O Laboratório de Estudos do Tempo Presente responsável pela revista eletrônica trimestral Boletim do Tempo Presente (Recife, 2012-), informa a todos os interessados em apresentar artigos e resenhas para publicação que continua recebendo artigos e resenhas em fluxo contínuo.
Serão bem-vindas produções de historiadores, geógrafos, cientistas sociais, filósofos, jornalistas, administradores, economistas, psicólogos, estudiosos das relações internacionais, dos meios de comunicação e demais áreas das ciências humanas.
História da Mídia | ABPHM | 2012
A Revista Brasileira de História da Mídia -RBHM (São Paulo, 2012-) é uma publicação em formato eletrônico com periodicidade semestral da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (São Paulo-SP). Lançada em 2012, tem como objetivo principal divulgar pesquisas que enfoquem a relação mídia e história de forma a incentivar a pesquisa nesta área do conhecimento.
Publica a produção acadêmica de pesquisadores da área da comunicação, da história e outras visando também aprimorar as discussões em torno de questões históricas dos meios de comunicação em geral.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2238-5126
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História.com | UFRB | 2012
A Revista Eletrônica Discente História.com (Cachoeira, 2012-) é fruto de um projeto idealizado por cinco estudantes do curso de História do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a partir do mês agosto de 2012.
Este projeto visa a divulgação da produção acadêmica dos pesquisadores em História e áreas afins, e tem como principais objetivos a publicação e divulgação dos trabalhos científicos produzidos pelos estudantes de graduação e pós-graduação, mestres e doutores das diversas instituições de ensino superior do país.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2317-6989
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Acervo | Arquivo Nacional | 2012
Acervo (Rio de Janeiro, 2012-) é a revista do Arquivo Nacional, publicada desde 1986. Seus números são quadrimestrais, e, desde maio de 2021, foi adotado o formato de publicação contínua. A revista tem por objetivo divulgar estudos e fontes nas áreas de ciências humanas e sociais aplicadas, especialmente história e arquivologia. É composta pelas seções Entrevista, Dossiê Temático, Artigos Livres, Documento e Resenha.
O periódico se dirige a todos aqueles interessados nos temas relacionados a arquivologia, ciência da informação e história.
Periodicidade quadrimestral.
Acesso livre
ISSN 2237-8723 (online)
ISSN 0102-700-X (impresso)
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Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi | Soleni B. Fressato
O típico caipira brasileiro foi imortalizado nas telas do cinema pelo Jeca Tatu de Amácio Mazzaropi. Sucesso nas bilheterias dos cinemas brasileiros, as aventuras e desventuras de um caipira ingênuo e ao mesmo tempo malicioso e debochado divertiram numerosas platéias por quase três décadas. Mazzaropi produziu 32 películas entre os anos de 1952 e 1980, atuando como ator, roteirista e produtor. Seus primeiros filmes foram lançados pela Vera Cruz e posteriormente, em 1958, Mazzaropi fundou sua própria produtora – a PAM Filmes, tendo como carro chefe das suas produções o personagem do caipira Jeca, representado seja no contexto urbano ou rural. Não era a primeira vez que a figura do caipira era apropriada e recriada pelas artes; já fazia parte do imaginário brasileiro, por exemplo, o Jeca Tatu criado por Monteiro Lobato – que apesar de ser homônimo ao caipira de Mazzaropi, possuía características distintivas – e tantos outros “caipiras” que fizeram sucesso nos programas humorísticos radiofônicos.
A popularidade do Jeca nas telonas não significou um reconhecimento da crítica cinematográfica. Os filmes de Mazzaropi eram taxados como superficiais, com pouco valor estético e repleto de fórmulas repetitivas e piegas. Além disso, a representação de valores rurais em um contexto histórico de valorização da urbanização e da modernização brasileira colidiu com as percepções e interesses desenvolvimentistas de alguns setores da sociedade que tinham o anseio de extirpar a “cultura atrasada” dos caipiras. A falta de prestígio também é perceptível nas reflexões acadêmicas que ora resumiram-se ao ataque ao conservadorismo das produções de Mazzaropi, ora optaram pelo simples desprezo e ignorância.
Buscando romper com os silêncios e ponderações reducionistas em torno das películas de Mazzaropi, foi lançado recentemente o livro Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi, fruto da tese de doutorado da historiadora e socióloga Soleni Biscouto Fressato. A autora, que é editora da revista eletrônica O Olho da História, desenvolve suas pesquisas em torno da temática cinema-história, abordando as obras cinematográficas como uma forma de representação do real e instrumento de análise sócio- históricas. O seu objetivo é entender como está representada a cultura popular rural no cinema de Mazzaropi e as relações que são estabelecidas com outras esferas socioculturais.
Soleni não recusa ou foge do conceito de cultura popular: ela o historiciza e o problematiza. Sua abordagem teórica, sustentada pelas reflexões introduzidas por Bakhtin em Cultura Popular na Idade Média, identifica a cultura de maneira plural e heterogênea. No processo de circularidade cultural – conceito chave para a interpretação da autora – as práticas culturais populares e hegemônicas se relacionam, se influenciam e ao mesmo tempo se contradizem. Há um fluxo de permeabilidade entre as culturas, o que impede a definição de cultura popular de maneira simplista, orientada pelo signo da pureza cultural. A cultura popular pode ser compreendida como espaço de contestação e resistência, ao mesmo tempo em que há concordância e subordinação.
Um dos meios de questionar e reagir às normas dominantes é a utilização do cômico e da paródia. Tais expressões foram exploradas por Mazzaropi ao representar as dimensões da cultura popular caipira como espaços de sátira e crítica às estruturas socioculturais dominantes. A comicidade não é apresentada apenas como uma ingênua válvula de escape das vicissitudes cotidianas. Torna-se, no cinema de Mazzaropi, uma forma sútil de crítica social.
É importante pontuar que em nenhum momento Soleni defende um suposto caráter revolucionário de Mazzaropi, apenas identifica que, por trás de posturas conservadoras, a filmografia pode apontar inúmeras contradições sociais nas quais estavam (e estão ainda) inseridos os homens do campo. Um pesquisador que tem a proposta de utilizar o cinema como forma de compreender as representações e discursos sobre a realidade deve analisar as imagens para além da intencionalidade do diretor e da produção técnica, apreendendo o dizível e o não dizível. O cinema, ao fazer uma contra- análise da sociedade, revela muito além do que inicialmente era a proposta da película, pois a arte nunca perde o vínculo com o real. Além de observar e descrever os aspectos do cotidiano caipira e os elementos centrais explorados por Mazzaropi na construção dos enredos e personagens, a autora averiguou, por exemplo, os silêncios, ausências e deturpações presentes nas obras.
Soleni analisa especialmente quatro películas: Chico Fumaça (1958), Chofer de praça (1958), Jeca Tatu (1959) e Tristeza do Jeca (1961). Sua abordagem, entretanto, não se deteve apenas a estas, uma vez que a autora trabalha com o conjunto das produções de Mazzaropi, buscando contextualizá-las historicamente. A análise do contexto social do país permite ao leitor perceber como o discurso das décadas de 50 e 60 do desenvolvimentismo nacionalista, que pregava a valorização da industrialização, do trabalho, da cidade e do progresso, se contrapunha totalmente ao caipira preguiçoso de Mazzaropi, considerado pela intelectualidade da época um símbolo do atraso e da ignorância.
A problemática da tradição versus modernidade – ainda tão atual! – foi abordada expressivamente nos filmes de Mazzaropi. A modernidade, que proporcionou a transformação do modo de vida caipira a partir do avanço das práticas e organizações capitalistas, não encantou o caipira. A autora aponta que, na cinematografia de Mazzaropi, quanto mais o país tornava-se urbano e desenvolvido, mais caipira ficava o personagem Jeca Tatu. A oposição cidade versus campo também foi bastante recorrente. Mesmo nos espaço das grandes cidades, o Jeca não se adaptava e os seus gestos, trejeitos e formas de se comportar destoavam dessa nova maneira de viver. A sua inaptidão aos novos códigos suscitava nos espectadores muitos risos e gargalhadas.
Mazzaropi tinha o compromisso de divertir e entreter o seu público. Queria fazer um cinema de fácil compreensão para os brasileiros. Contava histórias nas quais muitos espectadores poderiam se identificar, já que os problemas da modernidade estavam chegando para muitos migrantes que tiveram que abandonar o campo e ir para as cidades.
Caipira sim, trouxa não apresenta ainda o contexto da produção cinematográfica da época, destacando o surgimento e o declínio da Vera Cruz, a fundação da Atlântida e a história da chanchada no Brasil. Por fim, a autora traça comparações entre o Cinema Novo e as produções de Mazzaropi. A proposta do Cinema Novo era promover a reflexão crítica com seriedade a partir de películas ricas em simbologias e elementos de contestação. Tal concepção acreditava que outras formas de fazer cinema, como o cinema de Mazzaropi, eram apenas formas de alienação. Soleni ainda discorre sobre as diferentes visões sobre o campesinato expressas nos filmes de Glauber Rocha e de Mazzaropi, comentando as diferentes maneiras de tecer críticas sociais a partir do uso do cinema.
A pesquisa de Soleni Biscouto Fressato pode abrir caminhos para outros estudos e reflexões sobre as obras de Mazzaropi, principalmente aquelas que se proponham a realizar uma análise sobre a recepção dos seus filmes – aspecto não aprofundado no livro. Acredito, contudo, que a maior contribuição da obra – além de resgatar o cinema de Mazzaropi para as novas gerações que o desconhecem – se insere na utilização do cinema como uma ferramenta de compreensão das contradições da realidade social. Soleni defende que o cinema age como um pesquisador inconsciente das diversas dimensões sociais, construindo até mesmo hipóteses sobre determinados aspectos do real. Deste modo, os estudiosos que ignoram ou desprezam as interpretações cinematográficas desconhecem o grande potencial analítico do cinema.
Ao terminar a leitura do livro percebo que o Brasil do Jeca Tatu de Mazzaropi não está tão distante do Brasil contemporâneo. Um Brasil no qual o discurso do progresso e da modernização ainda impera. Um Brasil repleto de Jecas expropriados que sobrevivem precariamente em um espaço rural cada vez mais mecanizado, ou que têm de ir para as cidades nas quais não existem nem ao menos os empregos de Chofer de praça. Jecas que agora precisam de Bolsa Família para viver – e que milagrosamente sobrevivem. Jecas que criam (e recriarão) suas formas de resistir, se adaptar e reagir sem abdicar totalmente de suas manifestações culturais. Cientistas sociais: aprendei com os nossos Jecas, que apesar de tudo, não abandonaram o riso, o deboche e a crítica.
Catarina Cerqueira de Freitas Santos – Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: catarinacerqueira@yahoo.com.br
FRESSATO, Soleni Biscouto. Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi. Resenha de: SANTOS, Catarina Cerqueira de Freitas. O deboche caipira nas telas do cinema em “Caipira sim, trouxa não”. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.169-172, jan. / jul., 2012. Acessar publicação original [DR]
A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna | Gilles Lipovetsky e Jean Serroy
Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky vivemos já a era hipermoderna, dividida entre a cultura do excesso (o hedonismo de massas) e o elogio da moderação (valorização da saúde, dos direitos humanos, dos afetos, da consciência ambiental etc.). Vivemos não o fim da modernidade – o que o termo pós-moderno parece acusar – mas o aprofundamento do tripé que sempre caracterizou a modernidade: o mercado, o indivíduo e a escalada técnico-científica.
Com efeito, o avanço vertiginoso da globalização e das novas tecnologias de comunicação de massa, a partir da segunda metade do século XX, bem como da legitimidade dos prazeres do consumo, revolucionaram o cotidiano das massas. Decerto, a leveza do ser e os gozos privados da ordem do efêmero e da sedução das coisas, instaurados através da reestruturação da cultura de massas pela lógica da moda – isto é, o mercado organizado pelo efêmero, sedução e novidade permanente – conferiu legitimidade aos valores hedonistas e psicologistas, à renovação contínua, direito à felicidade individual e ao presentismo social [2]. Ou seja, as causas da derrocada do otimismo iluminista (o progresso ilimitado da razão) não se encontram apenas nas decepções comunistas e nas guerras do século XX, mas também em causas positivas da economia do consumo de massas, passando nós de um futurismo social (característico de uma primeira modernidade, nas teleologias de futuro paradisíaco encarnadas nas promessas revolucionárias) a um aqui-agora, e ao correspondente imperativo do carpe diem [3].
Esta concepção geral sobre a atualidade, supracitada, que já era tratada por Lipovetsky em “O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas” e seria sintetizada em “Os Tempos Hipermodernos”, é agora estendida em direção à análise da proliferação de telas e de uma cultura telânica, que não deixa de ter efeitos existenciais, contígua à era hipermoderna, de individualização crescente. Assim, rompendo com as especialidades entediantes das ciências humanas, Jean Serroy (estudioso do cinema) e Gilles Lipovetsky, um verdadeiro outsider dentro da academia, por suas ideias e temáticas, vêm com Tela Global tratar da extensão quase onipresente e certamente hiperespetacular das telas, pois se o século XX foi o século do cinema, sua segunda metade e o século XXI anunciam a era do tudo-tela.
Destarte, numa passagem que integra o último livro aos precedentes, os autores afirmam:
A mutação hipermoderna se caracteriza por envolver, num movimento sincrônico e global, as tecnologias e os meios de comunicação, a economia e a cultura, o consumo e a estética. O cinema obedece à mesma dinâmica. É no momento em que se afirmam o hipercapitalismo, a hipermídia e o hiperconsumo globalizados que o cinema inicia, precisamente, sua carreira de tela global. (p.23)
Vivemos assim uma mediocracia (de mídia, no plural do latim media), ou ecranocracia (ecrã é como usualmente chama-se tela, no português de Portugal), um poder telânico que se imiscui até nas esferas mais banais do cotidiano dos indivíduos comuns.
Como salientam os autores,
A expressão ‘tela ou ecrâ global’ deve ser entendida em vários sentidos. Em sua significação mais ampla, ela remete ao novo poder planetário da ecranosfera, ao estado generalizado de tela possibilitado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (p. 23),
tais como TV, VHS e depois DVD, videoclipe, celular com internet WAP e já WiFi, computador, videogame, câmeras pessoais e/ou de vigilância, publicidade, conversação online, o saber digitalizado, arte digital, telas de ambiente, PCTV, TV que acessa a internet, os recentes Tablets etc.
Na vida inteira, as nossas relações com o mundo e com os outros são cada vez mais mediatizadas através de telas (…). Se convém falar de tela global é também em razão do espantoso destino do cinema, que perdeu sua antiga posição hegemônica e que, confrontado à televisão e ao novo império informático, parece um tipo de expressão ultrapassada pelas telas eletrônicas. (pp. 23-5)
As estatísticas de diminuição do número de salas de cinema traduziriam isto, ou seja, um apregoado (por alguns observadores) “fim do cinema” ou “pós-cinema”.
É contra essa ideia que Lipovetsky e Serroy escrevem o livro. Aqui se encontra, portanto, a tese central da obra, pois é “no momento em que o cinema não é mais a mídia predominante de outrora que triunfa, paradoxalmente, seu dispositivo próprio, não material, é claro, mas imaginário: o do grande espetáculo, o da transformação em imagem, do star-system” (p. 25), isto é, o sistema de constituição de estrelas, que se na era de ouro do cinema eram inacessíveis e idealizadas, hoje são celebridades mais people e em muito maior número, quer dizer, democratizadas num certo sentido.
Deste modo, em vez do “fim do cinema”, o que “vivemos [é] a expansão do espírito cinema em nossa cultura hipermoderna, um espírito que fagocita a cultura telânica, que se encontra nas transmissões esportivas” (p. 23), por exemplo, com suas multicâmeras e zooms, slow motion, igualmente nos reality shows com sua filmagem do cotidiano de pessoas comuns, na cinefilia narcísica que os celulares e câmeras digitais proporcionaram, até mesmo nas violências que são filmadas pelos próprios agentes, e tudo isso é reencontrado (na interatividade, nos downloads) pela tela do computador, que dá acesso ao mundo pela internet. Uma cinemania generalizada, portanto. Uma cinevisão do mundo, por conseguinte.
O cinema como mundo e o mundo como cinema, pois aqui, mais do que nunca, é a vida que imita a arte. E é importante lembrarmos que o cinema é em si mesmo uma arte compósita, que funde fotografia, música, representação, poesia, espaço e tempo etc (p. 302). O cinema que, outrossim, é arte para além da evasão: tem a função social de criar vínculo humano (reunir os espectadores numa mesma sala) e que já foi chamado por isso de “a catedral do século”, e grande força de aculturação que forjou a modernidade, bem como se transformando em vetor de debates, mesmo politizados, especialmente no gênero dos documentários (pp. 301-3). Em vez do declínio do cinema, o que assistimos atualmente é seu auge, o tudo-cinema: “A época hipermoderna consagra o cinema sem fronteiras, a cinemania democrática de todos e feita por todos. Longe da morte proclamada do cinema, o nascimento de um espírito cinema que anima o mundo” (p. 27).
Para finalizar, uma questão profunda debatida pelos autores é a denúncia comum de que essa crescente “espetacularização” nos despojaria da verdadeira vida, nos levaria à desrealização do mundo (a imersão completa no mundo das imagens/fantasia), que o processo de cinematização induziria ao controle dos comportamentos, ao empobrecimento das existências, à derrocada da razão, à padronização da cultura (p. 309); alienados ficaríamos, em suma. Ainda que os autores aceitem a existência de uma tendência superficializante e de certa padronização dos produtos culturais, eles não subscrevem, no todo, esta visão apocalíptica. Assim,
O que o universo telânico trouxe ao homem hipermoderno é menos, como se afirma com frequência, o reinado da alienação do que uma nova capacidade de recuo crítico, de distanciamento irônico, de julgamento e de desejos estéticos (…). Nenhuma derrocada da cultura da singularidade no reinado da barbárie estética, mas também nenhum triunfo daquilo que [Paul] Valéry chamava o ‘valor espírito’. Nenhum filme catástrofe, mas também nenhum happy end. (p.310).
Notas
2. Gilles Lipovetsky. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia das Letras, 1989. pp. 257-60.
3. Gilles Lipovetsky. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. pp.51-65.
Walter Luiz de Andrade Neves – Mestre em História pela UFRuralRJ. Doutorando do PPGHIS-UFRJ.
LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009. 326p. Resenha de: NEVES, Walter Luiz de Andrade. Aedos. Porto Alegre, v.10, n.4, p.173-175, jan. jun. 2012. Acessar publicação original [DR]
J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839) | Valéria A. E. Lima
Jean-Baptiste Debret (1768-1848), pintor afamado e membro correspondente da Academia Francesa, foi também historiador. Sua principal produção, a obra Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d´un artiste française au Brésil, depuis 1816 jusqu´en en 1831 inclusivement, advoga que o Brasil é uma nação civilizada e encontra-se em processo de aperfeiçoamento. Esta é, ao menos, a tese central da obra J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839) de Valéria Lima, publicada em 2007. Conhecido sobretudo por sua condição de pintor, Lima não hesita em caracterizar Debret também como historiador. O fundamento maior disso é a própria intenção do artista ao expressar seu desejo de produzir um livro historiográfico, seja adjetivando-o como histórico, seja manifestando esse anseio numa missiva enviada ao seu discípulo dileto Araújo Porto- Alegre, em 1837 (LIMA, 2007: 277).
A adjetivação da obra como histórica objetiva justamente atribuir legitimidade ao novo status adquirido pelo Brasil: o de nação civilizada (LIMA, 2007: 245). Ao propor uma interpretação histórica, Debret torna-se historiador. O escopo de Lima é justamente resgatar a intencionalidade do pintor-historiador:
Dar ênfase à biografia constitui, portanto, uma das estratégias fundamentais da abordagem que ora se propõe e que irá privilegiar as intenções que o levaram a publicar essa obra e que, ao mesmo tempo, lhe conferem sentido. Procurar entender essas intenções a partir da experiência pessoal e profissional do artista, considerando que o maior documento a seu respeito é, sem dúvida, sua própria obra (LIMA, 2007: 38, grifo meu).[2]
Ao longo de sua obra, contudo, a historiadora irá rever e matizar este intuito. No entanto, antes disso, a fim de alcançar o objetivo proposto, Lima lança mão da metodologia que define a partir de uma metáfora arqueológica. Nas suas palavras:
A escavação será efetuada, portanto, nos volumes da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, em busca de indícios que possam esclarecer sua organização e as ideias que a presidiram. A coleta, por sua vez, será feita no contexto mais geral da época de sua elaboração, com o objetivo de recolher dados que contribuam para o entendimento da proposta de Debret (LIMA, 2007: 130).
Assim, é possível crer que a historiadora propõe uma análise verticalizada da obra, editada em três volumes ainda na primeira metade do século XIX, que perpassa sua estrutura e ordenação, além de revelar as ideias que a determinaram. Aliado a isso, a autora propõe buscar no contexto da sua produção elementos que expliquem a elucidação do projeto debretiano. Lima permanecerá, neste sentido, fiel a sua proposta. Na organização de sua própria obra, é exatamente isso que ela faz. Apresento-a, brevemente, pois.
O capítulo inicial, denominado Paris-Rio de Janeiro-Paris: a dupla travessia de um artista, é dedicado a explorar a biografia artística de Debret. Poderíamos perceber aqui, para fazer referência à metáfora utilizada, que se trata do primeiro momento de coleta do material. Lima parcela a vida produtiva do pintor em três grandes momentos, sendo o elemento central a própria travessia do artista ao Brasil. Assim, após descrever o período inicial da formação do pintor, sua inserção no ateliê do primo e famoso artista Jacques-Louis David e suas produções artísticas até o momento da viagem, a historiadora tenta entender os motivos que levaram os artistas franceses a participarem da travessia. Aqui há a contestação, por exemplo, de explicações limitadoras, como a de que os artistas teriam sido expulsos da França em virtude da instabilidade política. Entretanto, embora problematize a questão, Lima não propõe novas alternativas. A impossibilidade explicativa residirá justamente na subjetividade das intenções dos viajantes:
As condições gerais que podem ter favorecido a vinda dos artistas para o Brasil […] não podem, porém, justificar com exclusividade as opções de cada um dos integrantes do grupo, uma vez que não havia um caráter oficial nesse empreendimento. Os convites foram feitos, e os artistas, movidos por intenções nem sempre fáceis de identificar, mas certamente de cunho muito pessoal, decidiram pela travessia (LIMA, 2007: 98, grifo meu).
Desta forma, embora considere possível recuperar a intenção de Debret na realização de sua obra, a autora hesita na explanação das intenções da vinda dos artistas ao Brasil. Após o retorno à França, por fim, o pintor francês irá se dedicar à organização do material que será publicado. Para Lima, a obra seria uma forma de o artista cumprir o compromisso assumido como membro correspondente da Academia Francesa (LIMA, 2007: 104-105).
No segundo capítulo, intitulado Voyage pittoresque et historique au Brésil – considerações sobre uma obra, Lima se dedica, mais aprofundadamente, a tratar desse momento final e posterior à última travessia. Novamente estabelecido na França, Debret passa a organizar e editar sua obra. Aqui, o escopo é apontar como o pintor-historiador construiu seu projeto, revelando as escolhas e os processos que concorreram para sua constituição. Para isso, a historiadora parte do título atribuído por Debret a fim de propor sua análise inicial. Ele se constitui numa fonte de intenções. O método parece uma boa alternativa e, como constata Umberto Eco, a primeira chave de leitura de um livro reside em seu título (ECO, 1985: 8). Aqui, estamos no momento da escavação da obra; contudo, a análise é ainda mormente externa ao texto. Após debruçar-se sobre o título, Lima aponta a própria organização da obra debretiana – com os volumes apontando uma evolução progressiva da nação – como um indicativo do projeto intelectual do pintor, qual seja, a busca pela delimitação do processo de civilização do Brasil (LIMA, 2007: 131).
No capítulo terceiro, denominado A Voyage de Debret e a literatura de viagem, Lima concentra-se em cotejar a obra debretiana com o gênero largamente difundido dos relatos de viajantes. Como se percebe, trata-se de uma nova etapa da coleta. Para isso, a autora lista e comenta inúmeras produções desse gênero e aponta as aproximações e os distanciamentos com relação à obra debretiana. O intuito é menos afirmar o pertencimento do livro de Debret à literatura de viagens, do que entender as origens de sua produção e de sua composição (LIMA, 2007: 178). Dois aspectos que, de imediato, afastam-no do gênero são sua longa estada no Brasil e seu objetivo antes de informar a nação do que de informar-se. A conclusão, então, é que o livro não se ajusta às categorias dos relatos de viajantes. Novamente aqui, contudo, a historiadora assevera a dificuldade em resgatar a intenção debretiana:
As intenções de um artista e, no caso em questão do autor de uma obra cuja natureza se divide entre a literatura de viagem e os estudos históricos, não são objetos fáceis de identificar. Podemos levantar uma série de hipóteses, imaginar que ele tenha desejado cumprir um determinado programa, mas há um certo limite além do qual não nos é permitido avançar. As obras de arte, bem como a literatura, apontam para essa instância misteriosa e estabelecem limites bem claros a nossos esforços interpretativos. Lembremos, então, que Debret era, antes de tudo, um artista. Sendo assim, suas imagens, e não apenas seus textos, criarão fortes obstáculos ao nosso entendimento (LIMA, 2007: 175, grifos meus).
Assim, a historiadora revela a impossibilidade de expor as intenções do artista. Há limites para essa busca. Diante disso, Lima recorre à expressão “instância misteriosa” e volta a reafirmar a condição de artista de Debret – em detrimento de sua postura historiadora – para indicar a impossibilidade da realização da tarefa a que se propôs.
Por fim, o derradeiro capítulo é dedicado à análise interna da obra de Debret. Após coletar o material, o momento agora é de escavar a obra. Sob o título de A construção de uma obra histórica, Lima busca integrar texto e imagens debretianas para compreender como o pintor francês pensa e interpreta o Brasil. Para a historiadora, a obra deve ser inserida numa matriz de pensamento iluminista na qual a história deve ser pensada de forma progressiva com destino ao desenvolvimento e aprimoramento da civilização (LIMA, 2007: 264). Por isso, a autora estabelece um paralelo entre a obra de Debret e as estatísticas departamentais (no intuito de esquadrinhar a nação), com a Academia Céltica (no objetivo de recuperação do passado e dos monumentos antigos) e, por fim, com a produção de Jules Michelet. Em uma análise mais aprofundada a partir das imagens produzidas pelo artista, enfim, Lima então demonstra como toda a obra está orientada para a exaltação do processo civilizacional.
Entretanto, após coletar e escavar, a autora não conclui.[3] Creio que o mérito maior do livro J.-B. Debret, historiador e pintor reside no seu esforço de problematização da obra debretiana. A historiadora contesta versões anteriores, coteja a produção do pintor com gêneros literários do período, aproxima-a da obra de Michelet, mas, ao cabo, exime-se de fornecer um remate ao texto. Talvez o excesso de considerações paralelas tenha impedido a autora de delimitar uma conclusão. Refiro-me, aqui, à listagem de inúmeras obras da literatura de viagens que são apenas apresentadas ao leitor, mas não exercem nenhum auxílio na problemática proposta pela historiadora, pois não há aproximação ou distanciamento. Parece, além disso, que o intuito maior de buscar as intenções debretianas – que se revelou irrealizável – quedou por obstaculizar uma conclusão. A historiadora anuncia seu projeto; no entanto, não parece concretizá-lo.
Sublinho outra questão: Lima coteja a produção debretiana a fim de invalidar a inserção da obra na categoria literatura de viagens. No entanto, o mesmo procedimento não é realizado na caracterização da obra como histórica. A única confrontação neste sentido é com a produção de Michelet. Igualmente, uma aproximação com a obra de Flora Süssekind poderia revelar novos elementos na escolha de temáticas, na valorização da capacidade artística do indígena (destacada por Debret), no tratamento concedido ao escravo, entre outros. Ao apontar o contato e até a indeterminação de diferentes campos durante o século XIX, Süssekind demonstra, em O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, como esse diálogo era importante. A literatura assumia preocupações históricas, consultava e criticava os relatos de viajantes e cronistas a fim de estabelecer um campo mais autônomo. Entretanto, Lima não trata em nenhum momento desta questão e também se descuida, com exceção do parecer emitido pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da recepção da obra debretiana no âmbito nacional.
Por fim, gostaria de destacar a dimensão da intencionalidade perseguida por Lima na obra debretiana. Como salientado, a autora não concretiza essa proposta. É curiosa, no entanto, a inclusão da obra de Michael Baxandall, Formes de l’intention. Sur l’explication historique des tableaux na referência bibliográfica. Embora conste na bibliografia, não há qualquer referência sua no texto. No entanto, creio que a proposta de Baxandall seria de grande valia para Lima, permitindo inclusive concretizar o escopo almejado pela historiadora. Isso porque o historiador britânico propôs pensar a intenção das obras artísticas de um modo inédito. Para ele, a intenção não se trata de algo específico e característico da mente do artista. De modo diverso, a intencionalidade aqui remeteria a uma produção racional, que pode ser delimitada a partir das relações entre o contexto cultural, o objeto produzido como resposta e a descrição da obra realizada pelo analista (BAXANDALL, 2006: 81).
Ora, independentemente da crítica ou elogio a esse esforço de recuperação da intenção do artista, Lima executa exatamente estas três dimensões. Como exposto, a historiadora preocupa-se em resgatar o contexto cultural, na medida em que explicita as características que definiam a produção de obras do gênero da literatura de viagens do período e acompanha o desenvolvimento das técnicas de produção – aquarela – e reprodução de imagens – litografia. Além disso, há uma caracterização da obra debretiana bastante aprofundada, pois a historiadora compara as aquarelas de Debret com a de outros artistas do período, identifica o destaque dado aos negros no conjunto da obra e percebe os temas neoclassicistas sendo retrabalhados pelo historiador-pintor. Por fim, mormente no capítulo derradeiro, mas de forma esparsa em todo o livro, Lima analisa as imagens debretianas de forma cuidadosa, ou seja, escava a produção do artista francês.
Creio que é possível constatar, por fim, que a intenção pareceu ser um conceito ou categoria inapropriada para a descrição de Lima. Proposta inicialmente, a historiadora reconheceu que era tarefa complicada resgatar a intenção de Debret. Entretanto isso também foi pouco relevante, pois a tese defendida, qual seja, de que Debret pensava o Brasil como uma nação civilizada permaneceu, a despeito da impossibilidade do resgate intencional. Assim, é possível concluir que a intenção antes obstaculizou do que auxiliou a historiadora na sua empresa.
Notas
2. Lima retoma essa posição no início do capítulo inicial de modo ainda mais incisivo: “Parto, portanto, do princípio de que Debret esteve, em todo momento, movido por intenções […]. As condições que determinam essas alternativas devem ser buscadas no contexto cultural da época, permitindo identificar as opções que se colocavam ao artista naquele momento específico” (LIMA, 2007: p. 67-68, grifo meu).
3. Devo esta constatação a Jurandir Malerba que, em crítica à obra, censura a ausência de uma conclusão (MALERBA, 2009: 373).
Referências
BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção. A explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ECO, UMBERTO. Pós-escrito a O nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1985.
HARRISON, Marguerite Itamar. Resenha. In: Luso-Brazilian Review, 46:2, pp. 196-197.
LIMA, Valéria Alves Esteves. J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
MALERBA, Jurandir. Resenha. In: Hispanic American Historical Review – HAHR, maio, 2009, pp. 373-374.
SQUEFF, Letícia. Resenha. In: Revista de História, 159 (2º semestre de 2008), pp. 265-270.
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Eduardo Wright Cardoso1 – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto e bolsista Capes. Desenvolve pesquisa na área de história da historiografia do século XIX. Endereço eletrônico: edowc@yahoo.com.br
LIMA, Valéria Alves Esteves. J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. Resenha de: CARDOSO, Eduardo Wright. Uma arqueologia da intencionalidade debretiana. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.176-181, Jan./jul., 2012. Acessar publicação original [DR]
A Distinção: crítica social do julgamento | Pierre Bourdieu
Publicado originalmente na França em 1979, sob o título La Distinction. Critique sociale du jugement, o último livro de Pierre Bourdieu traduzido para o português no Brasil apresenta uma teoria sociológica do gosto. Em uma perspectiva mais ampla, pode-se dizer que a obra oferece um arcabouço teórico acerca das categorias de percepção e de classificação do mundo social.
Dividida em três partes, além das tradicionais introdução e conclusão, A Distinção expõe, em quatro anexos, localizados no final do livro, reflexões sobre o método e relação comentada de fontes e de dados estatísticos com base nos quais o sociólogo constrói sua argumentação. E, para executar sua proposta, Bourdieu lança mão não apenas de sua tradicional escrita repleta de jogos de palavras, mas também da problematização de gráficos (construídos a partir da metodologia estatística da análise de correspondência), tabelas, ilustrações e trechos de entrevistas. Tais recursos, mais que adornar o texto, evidenciam a complexidade da leitura proposta pelo autor para o tema.
Na primeira parte, denominada “Crítica social do julgamento do gosto”, constituída de um único capítulo, Bourdieu explica que a competência cultural apreendida através da natureza dos bens consumidos e da maneira de consumi-los varia conforme as categorias de percepção dos agentes e segundo os domínios aos quais tais categorias se aplicam, desde os mais legítimos (pintura ou música) até os mais livres (vestuário ou cardápio). Nesse sentido, para buscar a significação sociológica das diferentes preferências, é necessário atentar para a relação que une as práticas culturais ao capital social e ao capital escolar. Nesses termos, o autor começa a deslindar a ideia lançada na introdução e que perpassa toda a obra: “O ‘olho’ é um produto da história reproduzido pela educação” (p.10). Utilizando-se de questionários aplicados a indivíduos de classes diversas e sobre assuntos igualmente variados no início dos anos 1960, Bourdieu analisa – através de indicadores como nível de instrução ou origem social – as preferências musicais e as relativas à pintura e à compra de móveis, demonstrando a existência de gostos mutáveis consoante as diferentes condições de aquisição de capital (econômico e cultural). Dentre tais predileções, o autor destaca o “gosto puro” – aptidão incorporada para perceber e decifrar as características propriamente estilísticas – e o “gosto bárbaro” – relacionado àqueles desprovidos de capital cultural e que, por falta de familiaridade, acabam aplicando ao objeto os esquemas que estruturam a percepção comum da experiência comum.
Na segunda parte, composta por três capítulos e intitulada “A economia das práticas”, o autor dá continuidade à reflexão, afirmando que o gosto relacionado a consumos estéticos está indissociável do relativo aos consumos habituais. Desta ideia deriva a de que o consumo tanto pressupõe um trabalho de apropriação, quanto contribui para produzir (por identificação e decifração) os produtos que se consome (mesmo os industriais). Os significados dos objetos não impõem a evidência de um sentido universal. Eles variam segundo os esquemas de percepção, apreciação e ação produzidos em condições objetivamente observáveis das classes, as quais não são definidas apenas pela posição que ocupam nas relações de produção, mas também pelo conjunto de agentes que, situados em condições de existência análogas, produzem sistemas de disposições homogêneos, os quais originam práticas semelhantes. Significa que é pelo habitus, princípio gerador de práticas objetivamente observáveis ao mesmo tempo em que sistema de classificação de tais práticas, que se constitui o espaço dos estilos de vida. Em seu interior, a distância da necessidade – possível de ser determinada pela renda – engendra o princípio das diferenças, isto é, a oposição entre os “gostos de luxo” – definidos pelas facilidades proporcionadas pela posse de capital econômico – e os “gostos de necessidade”. A alimentação, a cultura e as despesas com apresentação de si são as três estruturas de consumo através das quais a classe dominante pode se distinguir, principalmente pelas maneiras de se comportar. O interesse que as diferentes classes atribuem à apresentação de si – seja na alimentação, seja no esporte – é proporcional às oportunidades de lucros (materiais ou simbólicos) que podem esperar como retorno. No final desta segunda parte, o autor afirma que a relação entre oferta e demanda não é direta, fruto de simples imposição da produção sobre o consumo, mas uma homologia entre um campo e outro, e suas respectivas lógicas. No interior do campo da produção, responsável pelo universo de bens culturais oferecidos, estão os produtores em luta para satisfazerem os interesses/necessidades dos consumidores e, assim, obterem lucro, seguramente alheios às funções sociais que desempenham para este público. Já no campo de consumo, estão os consumidores manifestando interesses culturais diferentes, os quais se devem a sua condição e a sua posição de classe. Eles se apropriam do produto cultural de uma forma exclusiva porque orientados por disposições e competências que não são distribuídas universalmente. As diferentes formas de apropriação dos bens configuram-se verdadeiras lutas simbólicas, travadas entre aqueles que Bourdieu chama de “pretendentes” e “detentores”, pela apropriação dos sinais distintivos ou pela conservação ou subversão dos princípios de classificação das propriedades distintivas. Os “pretendentes” (exagerados, inseguros e obcecados pelo entesouramento), encarnados na figura do pequeno-burguês, tentam se apropriar dos sinais distintivos nem que seja sob a forma do símile para se distanciar dos desprovidos de distinção (as classes populares). Através do “parecer” eles pretendem “ser”. Já os “detentores”, os burgueses, são seguros de seu ser e só quando seus hábitos de consumo são ameaçados de vulgarização procuram afirmar sua raridade em novas propriedades.
Quatro capítulos integram a terceira e última parte, nomeada “Gostos de classe e estilos de vida”. Segundo o autor, no interior das classes – principalmente da burguesia e da pequena burguesia – existem variações de gosto que correspondem às frações de classe, caracterizadas, por um lado, pela distribuição das diferentes espécies de capital e, por outro, pela trajetória social. Primeiramente, ele trata da classe dominante e do que chama de “sentido de distinção”, no seio da qual há constante luta pela imposição do princípio dominante de dominação, que é inseparável do conflito de valores que comprometem toda a visão de mundo. A apropriação (material ou simbólica) confere aos bens de luxo, além de legitimidade, uma raridade que os transforma no símbolo por excelência da excelência, colocando em jogo não apenas a “personalidade”, mas a “qualidade” daquele que se apropria do produto. Em seguida, o sociólogo examina a pequena burguesia, caracterizada por ele pela “boa vontade cultural”, quer dizer, pela capacidade de tomar o símile como algo autêntico. A diferença entre conhecimento e reconhecimento assume formas diferentes dependendo do grau de familiaridade com a cultura legítima, conforme a origem social e seu modo correlato de aquisição da cultura. Daí decorrem três posições tipicamente pequeno-burguesas: a pequena burguesia em declínio (associada a um passado ultrapassado, manifesta-se contra todos os sinais de ruptura), a pequena burguesia em execução (que exibe em grau mais elevado os traços de “pretendentes”) e a nova pequena-burguesia (geralmente indivíduos oriundos da burguesia que operaram um conversão para novas profissões, mas mantendo um capital social de relações importante). Na sequência, Bourdieu trata das classes populares e seu “gosto do necessário”, disposição adaptada à privação dos bens imprescindíveis e que traz consigo um modo de resignação, um princípio de conformidade que incentiva escolhas compatíveis com as imposições das condições objetivas e adverte contra a ambição de se distinguir pela identificação com outros grupos. A submissão à necessidade acaba produzindo uma “estética” pragmática e funcionalista, recusando a futilidade das formalidades e de toda espécie de arte pela arte.
No último capítulo, Bourdieu problematiza a relação entre cultura e política, questionando a noção de “opinião pública”. Responder a um questionário, votar ou ler um jornal, para ele, são casos em que acontece um encontro entre uma oferta – uma questão, uma situação etc. definida pelo campo de produção ideológica – e uma demanda – dos agentes sociais que ocupam posições diferentes no campo de relações de classe e caracterizados por uma competência política específica (uma capacidade proporcional às oportunidades de exercer tal capacidade). A probabilidade de dar uma resposta política a uma pergunta constituída politicamente depende não apenas do volume e da estrutura dos capitais econômico e cultural, mas também da trajetória do grupo e do indivíduo considerado. Assim como o julgamento do gosto, o julgamento político não está indissociado da arte de viver.
Para os neófitos em textos bourdianos, arriscaria um conselho: iniciar a leitura de A Distinção pela conclusão, intitulada “Classes e Classificações”. Nela, o autor retoma e explica minuciosamente as principais categorias teóricas apresentadas ao longo do livro – como gosto, habitus, lutas simbólicas, classe etc. – e o modo como elas se interrelacionam, constituindo uma rede de conceitos que ajudam a tornar inteligíveis os processos de percepção e de classificação do mundo social.
A maior contribuição no livro é mostrar que as diferenciações sociais são definidas relacionalmente, e não essencialmente, contrariando a aparente inflexibilidade da máxima “gosto não se discute”. O autor apóia- se em estudos realizados em áreas diversas – ora acatando, ora questionando Emmanuel Kant, Karl Marx, Max Weber, Ernest Gombricht, entre outros – e aprofunda a reflexão sobre categorias teóricas importantes. Muitos de seus conceitos foram formulados nos anos 1960 e 1970, mas adquiriram popularidade no meio acadêmico brasileiro a partir dos anos 1990 através da organização, no formato de livros, de artigos publicados inicialmente em periódicos franceses. Nesse sentido, A Distinção preenche uma sentida lacuna para aqueles interessados em acompanhar a trajetória intelectual de Bourdieu e em entender sua lógica.
As formulações teórico-metodológicas apresentadas em A Distinção marcam um momento em que, por caminhos diversos, teóricos sociais – como Antony Giddens, Alain Touraine, Marshal Sallins e o próprio Bourdieu – buscavam alternativas ao estruturalismo. Através da perspectiva relacional e operando com um vocabulário conceitual peculiar, o sociólogo francês oferece uma via para explicar o mundo social situando os agentes no interior de estruturas historicizadas, fortalecendo, assim, o diálogo com os historiadores.
Marisângela Terezinha Antunes Martins – Mestre em História pela UFRGS, doutoranda em História pelo PPGHIST-UFRGS. E-mail: marisangelamartins@gmail.com.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008. Resenha de: MARTINS, Marisângela Terezinha Antunes. Os Gostos e a Dinâmica da Distinção Social. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.182-185, jan. / jul., 2012. Acessar publicação original [DR]
Bibliotecas, leitura e educação / Revista do Arquivo Público Mineiro/2012
Cinco artigos compõem o dossiê Bibliotecas, leitura e educação. São eles: “Escrever, ler e rezar”, de Leila Mezan Algranti; “Humanamente indispensável”, de Christianni Cardoso Morais; “O ouro das estantes”, de Laura de Mello e Souza; “Do impresso à pintura”, de Camila Fernanda Guimarães Santiago; e “Leituras libertinas”, de minha autoria.
Em comum a esses artigos, há primeiramente a referência central ao espaço de Minas Gerais e aos marcos cronológicos que se estendem do século XVIII a parte do século XIX, sendo exceções os artigos de Leila Mezan Algranti, que se concentra no Setecentos, e de Christianni Cardoso Morais, que se volta para o conjunto da América portuguesa, focalizando Minas Gerais em seu interior. Há em comum, ainda, o objeto sobre o qual se debruçam, objeto ao mesmo tempo único e múltiplo: a cultura luso-brasileira, ora focalizada sob o prisma da educação no lato sensu, ora tomada no sentido estrito (isto é, como processo desenvolvido no interior de instituições educativas). Versam, contudo, de qualquer forma, de modo direto ou indireto, sobre os livros e as relações com eles estabelecidas por seus proprietários, individuais ou institucionais (caso do Recolhimento das Macaúbas), e leitores, ou ainda pelos órgãos que procuravam controlar sua circulação (a Inquisição, o supracitado Recolhimento ou a monarquia portuguesa, por exemplo). Entre os leitores e/ou proprietários de livros, figuram tanto personagens mais ou menos célebres – como o contratador Manuel Teixeira Queiroga, os irmãos Vieira Couto, o pintor Manoel da Costa Ataíde e o professor régio e poeta mineiro Manuel Inácio Silva Alvarenga – quanto figuras anônimas ou relegadas ao esquecimento, como Joaquina Teodora, a mulher do pintor Francisco Xavier Carneiro, ou Maria Magdalena Salvada, amante de José Joaquim Vieira Couto. Leia Mais
História RLAH | Unisinos | 2012
A Revista Latino-Americana de História – RLAH (São Leopoldo, 2012-), é administrada por discentes, docentes do Programa de Pós Graduação em História – Unisinos e docentes convidados. Está em funcionamento desde o ano de 2012.
Recebe para publicação trabalhos, submetidos a Peer Review, nos formatos de artigos, notas de pesquisa, entrevistas, acervos e fontes, resenhas críticas, iniciação à pesquisa e extensão universitária e experiências escolares em História.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2238-0620
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Divergencia | UV | 2012
Revista Divergencia (Viña del Mar, 2012-), es editada por el Taller de Historia Política O.C.F., en Chile [Universidad de Valparaíso], con una periodicidad semestral. Publica trabajos originales de carácter científico y de opinión, en torno al área de las Ciencias Sociales, enfocándose específicamente en la Historia Política Contemporánea, con el objetivo de difundir, discutir y debatir ampliamente los avances de las nuevas investigaciones que en esta materia se realizan. El contenido de la revista está dirigido a especialistas, investigadores, estudiantes de pre y posgrado, como también al público en general.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 0719 2398
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Humor gráfico: representaciones y usos / Antíteses / 2012
Sobre la definición imposible del humor o la fluidez de la palabra
Este volumen lleva por título “Humor gráfico: representaciones y usos” y propone un conjunto de artículos con el objetivo de consolidar un área de trabajo. Desde esta perspectiva, el volumen busca abordar el lenguaje en narrativa gráfica para debatir sobre el argumento hegemónico del arte, repensar la dimensión política de las representaciones visuales y problematizar los usos sociales de las mismas.
Me complace enormemente presentar esta edición porque pretende, también, funcionar como una intervención en “los márgenes del concepto” y problematizar esos bordes en los cuales el lenguaje se confunde con otra cosa, o sencillamente, desaparece. Quizá como nunca antes el humor gráfico se ha visto atravesado por la reflexión acerca de su propia consistencia. Sus contornos precisos se tornan borrosos y sus bordes inestables. Ya no estamos tan seguros de que sea posible asignarle al humor procedimientos retóricos precisos o circunscribir sus efectos. Por otra parte, gran parte de los problemas que suscita tienen que ver con la porosidad de fronteras entre el arte y el mercado. De ello, también trata este volumen.
Abordar los objetos, prácticas y contextos de las llamadas “narrativas gráficas” no puede ser otra cosa que una agenda en construcción. Durante buena parte del siglo veinte, sociólogos, comunicológicos pero también críticos y artistas, miraron “hacia otro lado” desentendiéndose de las historietas como materia de análisis e intervención crítica. Recién en los últimos años, asistimos a una transformación en este sentido lo que permite avizorar la concreción de un campo de estudios y un área especialización programática.
Este volumen pretende formar parte de ese movimiento más amplio ya que gira en torno a la historia y el presente de la producción académica sobre historieta y humor gráfico. Al mismo tiempo, se establece un contrapunto entre bibliografías globales y locales y ello es posible de ser rastreado en las citas bibliográficas de los autores. En los sistemas de referencias aquí utilizados y en los marcos teóricos que los sustentan, pueden advertirse las redefiniciones de los “estudios centrales”, el debilitamiento de las disciplinas dominantes del campo y más específicamente, los nuevos problemas y preguntas que se formulan los investigadores. Es en este sentido que frente a una diversidad aparentemente irreducible, se torna necesario construir un proyecto de estudios compartido, de integración regional y avanzar en las perspectivas comparadas.
Durante años, los especialistas del campo, han estudiado la historia del cómic de los países centrales sin prestar atención a lo que ocurría en las historias nacionales o bien han puesto el acento en el desarrollo local dejando de lado el contexto en el que se insertaban esas prácticas, imaginarios y significados. Al mismo tiempo, decir “narrativas dibujadas” o “artes secuenciales” designa un coto de investigación de características difusas que si bien ha experimentado un desarrollo alentador, aún no se encuentra plenamente consolidado ya que presenta un conjunto de problemas metodológicos y teóricos que reclaman su atención por parte de los especialistas.
En tanto producto de la industria cultural, las narrativas de la imagen participan activamente en la conformación de subjetividades y en la construcción de identidades. Ya se sabe que el campo de los estudios de las culturas visuales comprende desde preguntas filosóficas del tipo “¿qué es una imagen?” hasta análisis más específicos situados en enclaves históricos determinados y ligados a las inflexiones culturales, políticas y sociales en las que se insertan esas producciones. En este sentido, si el lugar que ocupa la experiencia visual en la cultura moderna es una realidad ineludible, el humor gráfico como artefacto o como objeto no ha sido trabajado de igual modo que otros medios o dispositivos vinculados a la representación.
Las literaturas gráficas constituyen un tema relevante para distintas disciplinas en tanto lenguajes privilegiados para indagar la cultura, la sociedad y la política. De allí que el propósito es reparar en ciertos rasgos de un objeto vacante cuya presencia insoslayable promueve la constitución de un área de estudios programática y anclada en contextos históricos precisos.
Se entiende la imagen dibujada como un lugar de síntesis epistemológica de nuestras representaciones de lo real y como una sofisticada técnica de persuasión. Los distintos ensayos aquí reunidos proponen indagar en su materialidad para poner en escena sentidos, representaciones del poder, prácticas de resistencia y posibilidades de producción visual. Dar cuenta de las interrelaciones entre lenguaje y experiencia, entre imagen y representación, cultura de masas y mercado fueron ejes centrales en la elaboración del volumen que aquí presentamos. Desde este enfoque, los debates sobre las literaturas dibujadas y las artes secuenciales ameritan el desarrollo de una atención específica y, al mismo tiempo, interdisciplinaria. De allí que antes que postulados concluyentes, las intervenciones de este volumen encuentran su mejor forma en la superposición, combinación y amalgama de ideas y escenarios.
Ahora bien, el cambio de siglo, podría decirse, enfrentó al “humor gráfico” al límite de su propio nombre y con ello a una apertura insospechada de sus alcances y potencias. Esta edición de Antíteses da cuenta de la extenuación o fatiga de lo que alguna vez se definió categóricamente como “humor”. La etiqueta es centrífuga y liminar y es así como el “humor gráfico” ya no es tanto una formar de nombrar como una gavilla de sentidos convergentes y divergentes. Sus límites y alcances nos muestran que las formas de hacer reír ya no son tal y como supimos, alguna vez, imaginarnos.
En las Artes Secuenciales hay plásticas narrativas y narrativas que son plásticas. Se trata de lectores de literatura y escritores de narrativa dibujada. Pero también de dibujantes que escriben y escritores que dibujan. Ello supone un tratamiento del relato que dificulta su encorsetamiento semántico. En este número, la meta final ha sido analizar las imágenes humorísticas como uno de los medios expresivos más singulares de la cultura contemporánea.
Finalmente, deseo expresar un especial agradecimiento a todos los especialistas e investigadores que colaboraron en esta edición y contribuyeron a pensar el campo del humor gráfico nacional e internacional. A los lectores, disfruten de la empresa.
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[DR]
Historia del Movimiento Obrero y la Izquierda | ULA | 2012
Archivos de historia del movimiento obrero y la izquierda (Buenos Aires, 2012-) es una publicación científica de historia social, política, cultural e intelectual, que tiene como objetivo impulsar la investigación, la revisión y la actualización del conocimiento sobre la clase trabajadora, el movimiento obrero y las izquierdas, tanto a nivel nacional como internacional, propiciando el análisis comparativo. Es editada en forma autónoma por el Centro de Estudios Históricos de los Trabajadores y las Izquierdas (CEHTI) y cuenta con financiación parcial de proyectos de la Universidad de Buenos Aires.
La cobertura temática de la revista Archivos está centrada en el examen histórico e historiográfico, pero a la vez es amplia e interdisciplinaria: procura abarcar la trayectoria de la clase trabajadora, el movimiento obrero y el mundo de las izquierdas desde los distintos aportes de las ciencias sociales y la producción académica, los cuales incluyen, además de la historia, a la sociología, la ciencia política, la antropología, la filosofía, los estudios de género y la crítica literaria, entre otros.
La revista Archivos está dirigida a un público conformado por investigadores, docentes, profesionales, graduados y estudiantes de Historia, así como de otras disciplinas sociales.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2313-9749
ISSN 2683-9601 (en línea)
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Educação histórica, teoria da historia e historiografia / Antíteses / 2012
Desafios teóricos e epistemológicos na pesquisa em educação histórica
No Brasil, as pesquisas sobre ensino e aprendizagem da História adquiriram grande impulso nas últimas décadas, o que pode ser observado pela expansão das linhas de pesquisa nos cursos de pós-graduação e pelo aumento da produção e da publicação nessa área. Esse boom pode ser também observado em outros países e tem provocado o aparecimento de domínios específicos na área do ensino de História, como o chamado campo da Educação Histórica que se desenvolveu em países como Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Portugal e também no Brasil.
Entre outras temáticas, as investigações e reflexões que têm ocorrido no âmbito do domínio teórico da Educação Histórica circunscrevem-se nas questões relacionadas aos estudos que têm como objeto e objetivo da didática da História, as problemáticas relacionadas à aprendizagem histórica. Essa mudança de foco se justifica, na medida em que a aprendizagem histórica passou a ter como parâmetros as categorias e processos de produção do conhecimento situados na própria ciência da História. São essas categorias e processos que orientam a construção do pensamento histórico, justificando a autoexplicação da História como disciplina escolar e a sua identificação como uma matéria específica e com uma metodologia própria.
A perspectiva da definição e constituição do ensino e aprendizagem histórica situados na própria História que vem sendo desenvolvida principalmente pelo historiador e filósofo Jörn Rüsen e sua relação com o ensino de história tem hoje, como referência, várias investigações, como as realizadas pelo historiador inglês Peter Lee e pelo historiador alemão Bodo Von Borries. Pode-se afirmar que esses trabalhos se integram ao conjunto de investigações e reflexões pertinentes ao campo de estudos da Educação Histórica. Nessa área, os investigadores procuram focar a sua atenção nos princípios, fontes, tipologias e estratégias de aprendizagem histórica, seja no recorte específico das análises das ideias de alunos e professores, seja investigando o significado da aprendizagem histórica nos artefatos da cultura escolar e da cultura da escola.
O momento definidor da mudança do embasamento das investigações sobre ensino e aprendizagem da história, da psicologia para a própria história, pode ser considerado o ano de 1998. Nesse ano foi realizada a Conferência de Pittsburg, na Universidade de Carnegie Mellon, nos Estados Unidos. O tema do encontro era “Ensinar, Conhecer e Aprender História”, e contou com a participação de vários investigadores do ensino de História, como Denis Shemilt, Peter Lee e Rosalyn Ashby. Como indicativos tirados nessa conferência, foram apontadas orientações para novos investimentos em pesquisas, como a questão dos currículos de História pautados nas grandes narrativas universais e a necessidade da inclusão de temáticas nacionais e locais nas propostas curriculares; estudos sobre a visão do passado para alunos e professores e seu significado para a orientação temporal; análise e interpretação das práticas nas aulas de História; análise e interpretação do trabalho dos professores e da sua formação.
As investigações realizadas na esteira desses indicativos implicam em um enquadramento teórico baseado na própria natureza do conhecimento histórico, ancorado na epistemologia da História e em metodologias de investigação como as da sociologia, etnografia e antropologia, de índole qualitativa, as quais permitem investigar quer ideias substantivas, como democracia ou revolução, quer ideias sobre a natureza da História como explicação, narrativa, evidência, significância, consciência histórica. Os conceitos ou ideias substantivas e de segunda ordem foram sistematizados e desenvolvidos em investigações realizadas na esteira das reflexões do filósofo e historiador alemão Jörn Rüsen, como os conceitos históricos. Se os conceitos substantivos ou conceitos históricos permitem entender os processos de compreensão substantiva dos alunos e professores sobre o conteúdo da História, os conceitos de segunda ordem e as categorias históricas possibilitam a compreensão dos processos de aprendizado realizados por eles. Ainda na perspectiva dessas investigações, podem ser destacadas algumas pesquisas sobre progressão conceitual exemplificados pelos estudos sobre empatia e explicação (Lee, 2006;2008); evidência (Ashby, 2006); usos da história e sua ligação com a vida prática (Lee, 2011), bem como sobre as possibilidades de oscilação e estabilidade nas ideias dos jovens ao usarem a variação de perspectivas em História (Chapman, 2011). Outros estudos colocam ênfase na abordagem a partir de ideias por grupos culturais, como os de Barton e Levstik (2004) e Epstein (2009). Trabalhos nessas mesmas abordagens também têm sido realizados em Portugal, conforme Barca (2000; 2001;2005;2011), e, como outros referenciais, são base importante para as investigações realizadas no Brasil, como as que vêm sendo feitas no âmbito do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica, da UFPR e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Londrina.
Os trabalhos que vêm sendo realizados pelos investigadores ligados ao Lapeduh constituem um conjunto diversificado de produtos, os quais podem ser incluídos em, pelo menos, três situações de investigação. A primeira delas diz respeito às sistematizações relativas às experiências que vêm sendo realizadas por professores e alunos de licenciaturas de História, a partir de práticas de ensino e investigação em aulas de História. Essas sistematizações constituem um acervo privilegiado de reflexões acerca da realidade do ensino de História no Brasil, concretizados em relatórios de práticas de estágios, arquivados no Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica, da UFPR.
Outro conjunto de produtos deriva de situações particulares de investigações que envolvem, principalmente, séries sistematizadas de reflexões e especulações acerca de determinados objetos relacionados ao ensino de História, como a análise das ideias históricas de alunos e professores, bem como de suas relações com as ideias históricas em currículos e manuais didáticos. Desse conjunto fazem parte vários trabalhos realizados, alguns publicados e outros em fase de publicação, produzidos por professores de História do ensino fundamental e médio, do Paraná, que constituem o Grupo de Educação Histórica da UFPR.
Nesta mesma direção, emerge uma terceira situação, na qual podem ser contextualizados os trabalhos produzidos a partir de esforços intencionais de investigação, que supõem uma adequação teórica e metodológica, uma delimitação de campos e objetos de pesquisa, bem como uma finalidade em termos de sua significância social na área educacional. Exemplos dessa produção podem ser encontrados nas dissertações e teses produzidas pelo grupo de pesquisa Escola, ensino e Educação Histórica, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.
Indica-se, aqui, a pertinência de investigações “em escolas”, as quais têm como objeto o “ensino de” e, portanto, pautam-se no repertório da ciência de referência e seu ensino específico, mas também encetam um diálogo mais próximo com perspectivas teórico-metodológicas empíricas da pesquisa educacional, como aquelas de cunho antropológico e sociológico. Tais investigações podem contribuir, na opinião de Cuesta Fernandez (1997;1998), para ajudar a compreender a construção do “código disciplinar” da História, apreendido a partir de pesquisas e reflexões acerca de como os “textos visíveis” como currículos e manuais, bem como os “textos invisíveis”, tais como as ideias e as práticas culturais de jovens e crianças se concretizam em experiências escolares, tendo como referência o estado atual da ciência e sua relação com os modos de educar de cada sociedade e suas múltiplas determinações.
Os resultados dessas investigações indicam a opção pelo campo da Educação Histórica, mas com o foco preciso nas situações de escolarização, por exemplo, em estudos na sala de aula, tornando-a o centro de referência para estudos como os de currículo e eficiência do ensino e da aprendizagem e também procurando os processos que têm lugar na sala de aula. Algumas referências das investigações já realizadas ou em andamento, baseiam-se nos fundamentos da sociologia crítica inglesa, cujas manifestações podem ser observadas, por exemplo, nos trabalhos de Raymond Williams, Basil Bernstei e Stuart Hall relativos aos estudos culturais3. Outras referências para o estudo dos processos de escolarização e das relações dos sujeitos com o conhecimento em situações de escolarização estão pautadas nas propostas da pedagogia de Paulo Freire e no campo da sociologia da experiência, particularmente os trabalhos de François Dubet e Bernard Charlot. Esses trabalhos tratam de investigações que englobam temáticas como relações de gênero e ensino, questões de identidades e ensino, exclusão / inclusão e ensino, bem como a especificidade das relações dos sujeitos com o conhecimento escolar, na dimensão da cultura e da sua relação com os processos de escolarização.
De modo geral, os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos propõem um diálogo com as metodologias de investigação qualitativa, na área educacional. Nessa direção, orientam-se, principalmente, em dois pressupostos. O primeiro deles parte da referência à investigação de natureza qualitativa, enquadrando-se na perspectiva de Eisner (1998), da “indagação qualitativa”. Para esse autor, a “indagação qualitativa” procura entender o que os professores e os alunos fazem e os grupos em que trabalham, bem como trabalham. Assim, segundo Eisner, para se alcançar esses objetivos, é necessário prestar atenção às escolas e às aulas, observa-las e utilizar o que vemos como fonte de interpretação e valoração (1998; 28). O segundo pressuposto baseiase na perspectiva da “construção social da escola” (Rockwell, 2011) e, por isto, a escola passa a ser considerada o lugar de onde partem as perguntas iniciais das atividades e investigações, como: o que acontece em aulas de História? Como ocorrem as mudanças? Como se processa ali o ensino? Que tipos de relações os sujeitos estabelecem com o conhecimento histórico? Quais são ou como professores e alunos elaboram a sua compreensão sobre as ideias históricas? Que significados o conhecimento histórico tem para os sujeitos envolvidos no processo ensino / aprendizagem? Como jovens e crianças reagem aos processos de produção do conhecimento histórico? Qual o resultado do conhecimento histórico na formação da consciência histórica de jovens e crianças?
Na Universidade Estadual de Londrina a investigação no campo da Educação Histórica acontece a partir de dois referenciais: do grupo de pesquisa História e Ensino de História certificado no conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), grupo que agrega professores pesquisadores e alunos de iniciação científica e mestrado cujas atividades de pesquisa têm como foco o Ensino de História e, mais particularmente, a Educação Histórica e do Mestrado em Educação mais especificamente a linha de pesquisa Perspectivas Filosóficas, Históricas e Políticas da educação no núcleo de investigação: – História, Cultura, Escola e Ensino.
Os projetos de Pesquisa e as dissertações desenvolvidas assim como o Grupo da Universidade Federal do Paraná se concentram em situações de escolarização com pesquisas qualitativas com perspectiva teórica e metodológica de investigação no campo denominado Educação Histórica, que por sua vez tem como uma de suas preocupações de pesquisa buscar elementos para a compreensão da consciência histórica, em especial de crianças e jovens, tendo em conta que o campo principal de analise é a educação formal e informal. Desta maneira, as pesquisas que se desenvolvem se debruçam com o objetivo de indagar como os conceitos históricos são compreendidos pelos indivíduos em tempos e espaços determinados, em diferentes sociedades.
A perspectiva da Educação Histórica compreende que a História é uma ciência considerando a existência de uma só explicação ou narrativa sobre o passado, mas que possui diversas perspectivas, entendendo que há uma objetividade na produção do conhecimento histórico. Desta forma, a história precisa ser conhecida e interpretada, tendo como base as evidências do passado e o desenvolvimento da ciência e de suas técnicas. Neste sentido, a Educação Histórica atribui uma utilidade e um sentido social ao conhecimento histórico, como por exemplo, a formação da consciência histórica.
Diversos conceitos têm sido alvo na pesquisa da Educação Histórica, como o conceito de significância, mudança, evidência, consciência histórica e narrativa histórica, nas pesquisas desenvolvidas na Universidade Estadual de Londrina nossos objetivos se concentram em investigar processos de aprendizagem em Educação Histórica procurando responder como acontece o processo de produção de narrativas históricas pelos alunos, a partir das aulas de história e do uso de livros didáticos, tendo como suporte o significado do ensino de História na formação do pensamento histórico. Como objetivos específicos dessas investigações podem ser citados: Analisar a produção de narrativas históricas pelos alunos, procurando entender a sua compreensão histórica, tendo como referencia a função da explicação histórica na produção de narrativas históricas.
Caracterizar os tipos de narrativas históricas presentes nos livros didáticos de História distribuídos pelo Ministério da Educação.
Investigar a formação da consciência histórica materializada nas narrativas produzidas pelos alunos do ensino fundamental segundo segmento.
Aprofundar estudos na metodologia da educação histórica especificamente na formulação de categorias de analise dos instrumentos de pesquisa em educação histórica.
Nesse sentido alguns trabalhos desenvolvidos na Universidade Estadual de Londrina merecem destaque. A pesquisa realizada por Tiago Costa Sanches (2010) intitulada Saberes históricos de professores nas séries iniciais: algumas perspectivas de ensino em sala de aula se detiveram em investigar o conjunto de fundamentos teóricos e metodológicos específicos da disciplina de História apropriado pelo professor das séries iniciais no processo de ensino aprendizagem da disciplina. Para tanto o pesquisador observou aulas, entrevistou professores realizou estudos exploratórios em uma escola da prefeitura do município de Londrina.
A dissertação de mestrado desenvolvida por Lidiane Lourençato (2012) intitulada A Consciência histórica dos Jovens-Alunos do Ensino Médio: Uma Investigação com a Metodologia da Educação Histórica investigou como os jovensalunos identificam a evidência histórica e o sentido de fonte para a produção do conhecimento histórico, assim como discutiu o conceito de temporalidade, tanto na história como em sua vida prática. A pesquisa de campo foi realizada em duas escolas localizadas no município de Londrina – Paraná – Brasil. A pesquisa utilizou como metodologia observações das aulas de História e análise de questionários investigando como estes jovens-alunos trabalham com os conceitos históricos, como temporalidade, fonte histórica e como lidam com o caráter de evidência histórica. Também foram observadas quais as relações que estes sujeitos estabelecem entre a história ensinada e a vida prática.
Ainda merece destaque as pesquisas realizadas pelos professores do Grupo de Pesquisa História e Ensino, com projetos de pesquisa que seguem a perspectiva da investigação em Educação Histórica de aproximar-se do pensamento de alunos e professores para compreender as ideias históricas, as relações dos sujeitos com o conhecimento histórico, tendo como referencial a epistemologia da História e relacionar esse conhecimento com a possibilidade de organização didática do ensino, com a aprendizagem nas aulas de História e em outros espaços sociais em que o conhecimento histórico é apreendido. Foram desenvolvidos até o presente momento três projetos: Educação Histórica: Iniciando crianças na arte do conhecimento histórico (2005- 2008), Educação Histórica: um estudo sobre a aprendizagem da história no processo de transição para a quinta série (6º ano) do ensino fundamental. (2009-2011) e atualmente o projeto: Projeto de Pesquisa: Educação histórica: um estudo sobre a forma de constituição do pensamento histórico em aulas de História do Brasil no ensino fundamental (2012 – 2014).
Nos projetos desenvolvidos o grupo de pesquisa está tentando compreender as noções que os alunos constroem sobre a história a partir da progressão da aprendizagem na escola formal. O interesse como afirma Barca (2011) é entender como se forma as ideias históricas dos alunos, em primeiro lugar porque só se pode mudar aquilo que se conhece e em segundo lugar para promover um conteúdo histórico estruturante que não valorize apenas a reprodução pouco refletida de conhecimento de temáticas curriculares, mas também a formação da consciência Histórica. As ideias são coletadas através da construção de narrativas pelos alunos, entendendo a narrativa no sentido atribuído por Isabel Barca (2011) “como expressão de ideias sob qualquer formato – que se comunica a compreensão histórica e os sentidos que lhes são atribuídos” e Rüsen (2001) que afirma ser a narrativa histórica a face material da consciência histórica mesmo que seja um relato descritivo-explicativo do passado.
Assim os artigos apresentados neste dossiê representam junto com os trabalhos desenvolvidos nestas duas instituições referencias das pesquisas que estão sendo realizadas no Brasil com a temática da educação Histórica tendo como perspectiva questões relacionadas à teoria e a historiografia. Também são apresentados dois artigos de pesquisadores convidados do pesquisador Jorn Rüsen da Universidade e o artigo do pesquisador Peter Seixas da University of British Columbia (Canadá). Esperamos que a leitura deste número da revista Antíteses possa contribuir para o aprofundamento das discussões desta área de investigação no Brasil.
Notas
3. Uma discussão sobre esta temática pode ser encontrada em CEVASCO, Maria Elisa. Cultura: um tópico britânico do marxismo ocidental. In. LOUREIRO, I.M. / MUSSE, R. (org.). Capítulos do Marxismo Ocidental. São Paulo: UNESP, 1998, pp.145-171
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Marlene Cainelli – Docente da Universidade Estadual de Londrina, curso de História e do Mestrado em História Social.
Maria Auxiliadora Schmidt – Docente da Universidade Federal do Paraná, curso de Educação e do Mestrado em Educação.
[DR]Las caras del águila: del liberalismo gaditano a la república federal mexicana, 1820-1824 | Ivana Frasquet
Fruto de tese de doutoramento defendida em 2004 na Universitat Jaume I de Castellón e dirigida por Manuel Chust, o livro de Ivana Frasquet é contribuição historiográfica de peso. Não apenas porque vivemos tempos de hiperprodutividade acadêmica a resultar, no campo historiográfico, em uma enormidade de superficialidades e efemeridades – situação acentuada pela recente onda de comemorações dos supostos bicentenários das independências da América espanhola, a mesclar pontuais verdadeiras contribuições acadêmicas com uma montanha de redundâncias ou de ideias apenas rabiscadas; mas, sobretudo, porque a obra de Frasquet é boa por ela mesma, feliz encontro de um tema extremamente relevante com uma pesquisadora de alto nível que o conhece tão bem quanto dele gosta.
A independência do Vice Reino de Nova Espanha e a subsequente formação do Estado nacional mexicano são pautas que há muitas décadas têm merecido atenção de grande número de cientistas sociais, sobretudo os historiadores. Muitos mexicanos, vários norte-americanos e canadenses, poucos europeus; dentre estes, os espanhóis delimitam um círculo mais restrito ainda. Um mérito de antemão ao estudo de Frasquet? Em parte sim; mas apenas em parte, já que a pretensão da autora – tanto em Las caras del águila como no restante de sua numerosa produção tematicamente a ela correlata – não é, simplesmente, tratar de um tema de que seus conterrâneos pouco trataram. Essa eventual postura, ao mesmo tempo presunçosa e ingênua, é a de muitos historiadores de muitas histórias de muitos países, mas não a de Frasquet. É como uma historiadora do chamado liberalismo hispânico e da história mexicana em seus desenvolvimentos oitocentistas que ela deve ser efetivamente tomada, e é por aí que sua obra segue.
Os grandes temas de uma historiografia nacional não se esgotam jamais, todos sabemos. O caso aqui presente não é diferente. Conforme bem mostraram avaliações ao mesmo tempo quantitativas e qualitativas da numerosíssima historiografia acerca da formação do Estado mexicano, reunidas por Alfredo Ávila e Virginia Guedea ainda antes dos bicentenários (La independencia de México: temas e interpretaciones recentes. México: UNAM, 2007), o muito que se fez mostra o muito que não se fez, e, claro, a permanente reinvenção de tal objeto historiográfico. Frasquet encontra em seu livro um filão original, apenas parcialmente explorado por uma historiografia pretérita e da qual em vários momentos ela se mostra tributária (a de autores como Nettie Lee Benson, Jaime E. Rodríguez e do próprio Manuel Chust): os impactos das experiências político-constitucionais espanholas peninsulares (logo hispânicas) na definição de um movimento histórico que, na América, levaria à formação do Estado nacional mexicano. A delimitação cronológica de sua obra implica uma circunscrição: a ela importa sobremaneira o que se passa entre a eclosão da segunda onda constitucional espanhola, em 1820 (com a pronta reunião de novas cortes nacionais nas quais a deputação da Nova Espanha desempenharia papel paradigmático), e a queda da efêmera experiência monárquica mexicana, com a proclamação da Ata Federal de 1823. Cádiz e as Cortes de 1810- 1814 se fazem fortemente presentes na análise, mas como manancial do que se passa nos momentos mais cruciais de definição da independência e da formação do Estado que realmente interessam à autora.
O tema e sua delimitação temporal, por si sós, impõem um corte documental à autora, que realiza, então, uma minuciosa e aprofundada leitura de debates parlamentares, madrilenhos e novohispanos/mexicanos (há outra documentação variada complementar). De tal leitura resulta uma análise do problema central que é, simultaneamente, uma narrativa, passo a passo, do que pensaram, disseram e fizeram homens atuantes naqueles espaços parlamentares, cruzada com o essencial do que, em termos políticos, se passava fora deles, na Espanha, na Nova Espanha e no México. Uma “história política” (que prefiro chamar, apenas, de “uma história focada no político”, sem qualquer pretensão categorial) que muitos consideram fora de moda em afãs novidadescos pouco dignos de nota, mas que obras como as de Frasquet contribuem para tornar incontornável.
Ao longo de oito capítulos cronologicamente sequenciados que agrupam as quase quatrocentas páginas da obra, recheadas de citações primárias, menos de citações secundárias (que, afinal, são secundárias), Frasquet nos oferece magnificamente os ritmos e as direções de uma política construída em espaços parlamentares, permeada de embates, contradições, meias-palavras e mudanças repentinas de posição, em meio à qual discerne, de modo enfático, os momentos em que o constitucionalismo espanhol de Cádiz e de Madri se metaboliza em um constitucionalismo agora americano, também mexicano, ao fim e ao cabo hispânico; por vezes, momentos até mesmo em que aquele constitucionalismo é continuidade, isto é, oferece parâmetro de ação, porto seguro para a prática política dos legisladores americanos.
Ponto fundamental de sua tese é a constatação de que a atuação dos deputados de Nova Espanha nas Cortes de Madri tenha se pautado, até junho de 1821, por sinceras tentativas de construção de uma entidade política que abrigasse tanto a Espanha quanto o que restava de seus antigos domínios americanos, em um arranjo político que contemplasse as demandas de autonomia – não de independência – que aqueles deputados expunham. Afinal, será do esgotamento desta alternativa, resultado de um errático processo de embates nas Cortes nos quais diferenças políticas até então concebidas majoritariamente como pequenas se transformaram em verdadeiras incompatibilidades entre peninsulares e americanos, que emergirá um senso de distinção entre espanhóis americanos novohispanos e peninsulares capaz de, aí sim, amparar um projeto de total separação entre as partes (o paralelismo com o caso lusoamericano salta aos olhos. Quem se arriscará a enfrentá-lo?). Uma vez voltados para a construção de um novo Estado, tais deputados, ao irradiarem uma experiência e um conjunto de saberes, inspirações e modelos a outros indivíduos que com eles passariam a atuar no legislativo mexicano, seriam o elo mais concreto a interligar Espanha e México, tecendo os fios de um constitucionalismo que lhes serviu de parâmetro de ação em meio aos turbulentos anos de 1822 e 1823.
De um autonomismo hispano-americano a um autonomismo provincial mexicano (base da república federal de 1824), passando por uma revolução de independência que redefiniu não apenas os agentes de uma questão nacional, mas sua própria natureza (embora Frasquet seja pouco cuidadosa no tratamento deste arcabouço teórico importante, sobretudo ao utilizar de modo impreciso o termo nacionalismo nos três primeiros capítulos do livro), eis a síntese de uma trajetória complexa, que aqui ganha especial concretude.
Para tanto, contribui a arquitetura geral da obra, assentada em uma permanente reiteração, ao longo do livro, da tese central de sua autora. Leiamos então, suas próprias palavras. Logo em sua “Introducción”, afirma, a propósito de uma das “pontas” de seu recorte cronológico: “La participación de los diputados americanos, novohispanos concretamente, en las Cortes de Madrid de 1820 será de gran importancia para la consecución de las aspiraciones autonomistas de este grupo” (p.19); e, quanto à outra “ponta”, que “a partir de aquí [1822], el liberalismo mexicano aglutinará a todas las facciones que, de uma manera u outra, estaban luchando por la independencia de México. Insurgentes, autonomistas, liberales, monárquicos, republicanos, federalistas, centralistas, etc., todos se unirán para conformar el Estado-nación mexicano, eso sí, partiendo del liberalismo hispano que la legislación doceañista y la Carta de 1812 habían dejado en herencia a los diputados novohispanos” (p.21.) Logo em seguida, um cauteloso e benéfico esclarecimento:
Con eso no queremos decir que toda la obra de los constituyentes mexicanos sea fruto de la legislación doceañista, ni mucho menos. Pero sí queremos resaltar el espacio que el liberalismo hispano, que no español, nacido de las Cortes de Cádiz tuvo en la formación del Estado-nación mexicano. Desde nuestra visión global, integradora e contextualizada, no se puede explicar Cádiz sin América, ni América sin Cádiz (p.21).
Tese exposta e devidamente circunscrita, Frasquet dá início ao seu empreendimento, repitamos, com o fôlego que ele exige; embora exigisse também um tratamento mais circunspecto e polissêmico de termos como liberalismo, federalismo e monarquismo, a respeitar uma dinâmica conceitual com a qual a autora não se preocupou (vide os trabalhos de outro historiador espanhol, Javier Fernández Sebastián, não aproveitados por Frasquet). Como quer que seja, vemos sua tese central reiterada em muitas passagens do texto, relativas a fenômenos específicos por meio dos quais revelar-se-iam formas pelas quais a América continuava a se fazer parte do mundo hispânico. Assim, por exemplo, em 1822 “la frustración autonómica había desembocado en un deseo de independencia sentado sobre las bases del constitucionalismo hispano desarrollado en Cádiz” (p.100); ou “la independencia había sido posible gracias al trabajo de los autonomistas mexicanos que tenían en las Cortes de Cádiz y en la Constitución de 1812 el legado político y parlamentário que formaba parte de su tradición hispana” (p.121); finalmente, “la Constitución de 1812 y sus leyes eran el referente legislativo y liberal de los diputados mexicanos en la construcción de su próprio Estado-nación” (p.199), afirmação reiterada tal qual para o que ocorria em março de 1823 (p.291-292), quando “continuaba así el liberalismo mexicano el caminho iniciado en Cádiz sobre la concepción de los poderes” (p.300).
Em suma, Cádiz seguia siendo útil para sentar las bases de la construcción del Estado-nación mexicano, ¡en 1823! Y en un Estado que, como se insinuaba en el último artículo [das proposições apresentadas ao congresso mexicano em 07 de abril], caminaba hacia formas monárquicas de gobierno. ¿Sería eso posible? (p.307).
A aparente perplexidade da autora perante o que ela observa e as interjeições de seu discurso possuem função retórica, para enfatizar a validade de sua tese central, da qual, aliás, o leitor dificilmente discordará. Ponto positivo, talvez o mais importante. No entanto, após repetidas reiterações que nos acompanham até as última página do último capítulo – o livro de Frasquet não possui “Conclusões” formalmente compostas – algo parece ter mudado nessa tese. Progressivamente, o que fora enunciado na “Introducción”, primeiro ganha pertinência – com as consistentes demonstrações empíricas da autora –, para logo se converter em abandono de cautela e em ênfase excessiva. Ora, repitamos: há aqui um corte documental, que implica obviamente na segmentação de uma história (e não há outro modo de torná-la História). A formação do Estado mexicano se explica parcialmente pela continuidade modificada de conteúdos advindos das experiências constitucionais hispânicas. Com isso, certamente Frasquet se mostrará de acordo; de nossa parte, tal afirmação deve soar como uma valorização do que ela própria afirmou à p.21 (supra), e que parece ter ficado para trás à medida que seu livro caminha para o final. Algumas coisas se explicam por aí, muitas e fundamentais, mas claro que nem tudo.
É possível que esta crítica esteja antes confinada à análise formal do discurso de Frasquet do que ao grosso de sua análise histórica. De todo modo, suas conclusões corroboram a percepção desse progressivo abandono de cautela na reiteração de sua tese. Nas últimas páginas do capítulo 8, ainda é possível ler-se, sem freios, que “a la altura de 1823 con la forma republicana declarada, las províncias levantadas en pro de su soberania, con los españoles todavia en suelo mexicano, con la discusión sobre federalismo o centralismo… ¡la Constitución doceañista y toda la legislación hispana emanada de las Cortes de Cádiz y de las de Madrid eran todavia punto de referencia para la construcción del Estado-nación mexicano!” (como discordar da autora? Ao mesmo tempo, como não sentir falta de um matiz do tipo um dos pontos de referência importantes…?). E no último parágrafo do livro, deparamo-nos com uma dura crítica a “algunos autores” que teriam realizado análises da “herencia liberal hispana” na formação do México “desde el presentismo, desde el conocimiento de como sucedieron los hechos en décadas posteriores y desde otras ciencias no históricas”, e que supostamente resultariam na impossibilidade de “que valoremos en su justa dimensión el impressionante cambio revolucionário que el liberalismo produjo en las sociedades del Antiguo Régimen” (p.367).
É razoável restringir o bom da historiografia ao que historiadores, digamos, de formação formal, fizeram? Ou imputar a todos os autores diretamente mencionados – José Antonio Aguilar, Roberto Breña, Rafael Rojas e Alfredo Ávila, referidos em rodapé, mas apenas parcialmente também na bibliografia final, e de posturas historiográficas bastante diferentes entre si – a pecha de anacrônicos? Minhas respostas são ambas negativas. Inclusive por que vejo em tais autores méritos e posturas em muitos casos perfeitamente compatíveis com muito daquilo que há no livro de Frasquet. Por exemplo, no fato de também eles (todos) terem se preocupado com as experiências constitucionais de Cádiz e de Madrid “lá” e “cá”, jamais confinando os escopos de suas também excelentes análises aos limites geográficos ou intelectuais desenhados pelo nacionalismo historiográfico mexicano (o que, aliás, esvazia a mal-humorada crítica historiográfica realizada por Jaime Rodríguez em seu “Prefacio” a Las caras del águila). Mérito de todos os aqui citados; méritos, aliás, de muitos outros, por toda a parte, voltados às independências e às formações estatais nacionais a elas subsequentes.
Esse antagonismo entre o que se apresenta em Las caras del águila e o que se apresentou antes dele não implode, sequer esvazia muitos de seus méritos, alguns dos quais sequer mencionei – ou teria condições de mencionar – aqui. Se várias de suas passagens, marcadas por um desmedido embate historiográfico, dão a impressão de uma tese em tom excessivo e fecham portas ao debate, todo o resto abre muitas e muitas outras, função última de obras historiográficas reveladoras, pujantes e importantes, qualidades últimas – repitamos – a definirem o livro de Frasquet.
João Paulo Garrido Pimenta – Professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil). E-mail: jgarrido@usp.br
FRASQUET, Ivana. Las caras del águila: del liberalismo gaditano a la república federal mexicana, 1820-1824. Castelló de la Plana: Publicacions de la Universitat Jaume I, 2008. Resenha de: PIMENTA, João Paulo Garrido. A formação do México, entre a Espanha e a América. Almanack, Guarulhos, n.3, p.152-156, jan./jun., 2012.
Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800) | Thais Buvalovas
Hipólito José da Costa é, sem sombra de dúvidas, fundamentalmente conhecido, lembrado e estudado por ter sido o fundador e editor do primeiro veículo de imprensa brasileiro. Apesar de intitulado Correio Braziliense, seu jornal mensal foi publicado em Londres, entre 1808 e 1822. Constitui uma espécie de depositário das ideias de seu criador e gestor, ancoradas essencialmente no liberalismo inglês. Por intermédio do Correio Braziliense, o autor mostrou-se contrário ao poder absoluto, militou pela liberdade de imprensa e de comércio e defendeu o trabalho livre.
A despeito de ter angariado fama com o jornal, as origens de algumas de suas práticas e ideias políticas (como as atividades maçônicas e os ideais abolicionistas) já estavam em desenvolvimento antes de sua atuação como periodista. Elas teriam emergido, ou ao menos se robustecido, durante uma viagem de três anos aos Estados Unidos, para onde partiu quando, aos 24 anos, acabara de se formar em Leis em Coimbra. É o que defende Thais Buvalovas, em Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800), trabalho originalmente realizado como mestrado no Departamento de História da USP, em 2007, que agora a Editora Hucitec traz acertadamente a um público mais amplo, com sua veiculação em formato de livro.
A viagem de Hipólito aos Estados Unidos ocorreu como encargo da Coroa portuguesa, a mando de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro da Marinha de Ultramar. Correspondia às funções de Hipólito da Costa reunir informações sobre a produção agrícola nos Estados Unidos, estudar métodos empregados na mineração, bem como observar a tecnologia usada na navegação dos rios e canais. Também foi incumbido de coletar exemplares da planta e inseto da cochonilha, para que fossem aclimatados no Brasil, mas para isso ele teria que viajar até a fronteira sul dos Estados Unidos e entrar clandestinamente em território mexicano.
A viagem estava situada no contexto da Ilustração, fonte de inspiração para as viagens científicas do século XVIII, por meio das quais estudiosos das nações europeias mais desenvolvidas buscavam investigar e catalogar os elementos da natureza em escala planetária. Também eram instigados por uma nova lógica de mercado, pautada pela busca de domínio comercial sobre importantes centros produtores de recursos naturais. Fazer parte do círculo das viagens científicas significava, de alguma maneira, integrar um processo de modernização que se espraiava pela Europa e que em Portugal vinha sendo fomentado na esteira das reformas pombalinas. Em suma, era preciso garantir o lugar neste circuito.
O périplo de Hipólito pelos Estados Unidos gerou uma gama de documentos, que constitui a base da pesquisa deste livro. Por ordem de importância, o principal documento utilizado é Diário de minha viagem para a Filadélfia, um caderno de anotações pessoais, no qual Hipólito da Costa narra sua estadia nos Estados Unidos, onde fixou-se na Filadélfia (então capital federal), passando também por outros lugares, como, por exemplo, Boston e Nova Iorque. O Diário narra a viagem de dezembro de 1798 a dezembro de 1799. Por razões ainda inexplicadas, não constam do documento as anotações relativas ao ano de 1800, período durante o qual ainda se manteve no país.
Além do Diário, a autora explora outras fontes, como as cartas de ofício, enviadas por Hipólito da Costa a autoridades de Lisboa, e um relatório sobre a viagem, intitulado Memória sobre a viagem aos Estados Unidos (1801). São documentos de naturezas distintas, ainda que todos se relacionem à viagem: o Diário é pessoal, uma escrita sem pretensões literárias ou acadêmicas; as cartas de ofício eram voltadas para superiores hierárquicos, assim como a Memória, ainda que esta guarde a peculiaridade de poder alcançar um público mais vasto.
Tal diversidade possibilitou a comparação entre os diferentes tipos de documentos, evidenciando contrastes nas informações, omissões e liberdades narrativas de um e outro lado, fato bastante enriquecedor numa investigação. Como mostra Luciana de Lima Martins, em O Rio de Janeiro dos viajantes (2001), a pluralidade da documentação contribui para que se obtenha como resultado de pesquisa uma visão menos homogênea, a que um acesso limitado a obras oficiais poderia levar. De acordo com esta autora, “anotações e imagens inacabadas” dos viajantes ajudam a trazer complexidade ao objeto estudado, mostrando diversificados ângulos, sobretudo por se tratarem de documentos “mais abertos e menos polidos”. (p. 38.) As discrepâncias identificadas por Thais Buvalovas nos documentos de Hipólito revelam os artifícios do autor para escolher o que podia ser publicado e relatado em âmbito oficial, e o que deveria ficar resguardado a um universo mais privado, pessoal.
Nesse sentido, um dos resultados centrais de Hipólito da Costa na Filadélfia foi evidenciar, por meio da análise das distintas fontes, que o autor não deu as mesmas informações sobre seus trajetos e ações nos diferentes papéis que produziu ao relatar a viagem. O confronto das fontes mostra certas inconsistências. O exemplo cabal disso se relaciona aos planos de viajar ao sul dos Estados Unidos e adentrar o território sob domínio espanhol. As cartas oficiais mostram uma pretensão nesse sentido, assim como a Memória, por meio da qual Hipólito afirma ter percorrido a região. Contudo, na leitura do Diário tal percurso parece não ter sido realizado. Isso leva a autora a desacreditar no roteiro oficial, que incluía tais viagens ao sul dos Estados Unidos e ao México. A consulta a catálogos de Botânica e a coleta de informações e espécimes na visita ao horto de um amigo naturalista da Filadélfia, teriam poupado o viajante de realizar este roteiro. Não se trata, entretanto, de um consenso. Segundo Neil Safier, em um capítulo sobre Hipólito da Costa em recente coletânea organizada por Bernard Bailyn e Patricia L. Denault (Soundings in Atlantic History, 2009, p.280), não é possível descartar totalmente a possibilidade de Hipólito da Costa ter cumprido tal trajeto, até que novas fontes sejam investigadas.
De qualquer maneira, a discussão que Thais Buvalovas faz em seu livro sobre as fontes é rica e interessante. A autora alerta que as inconsistências na Memória e nas cartas – documentos oficiais – “indicam que eles não refletiam a realidade dos fatos”. Por outro lado, o Diário revela “um esforço muito grande para encontrar alternativas e alcançar resultados em sua missão” (p.73). A despeito disso, a autora não trabalha com a perspectiva de que este seja mais “verídico” do que os primeiros. De acordo com Buvalovas, o Diário também “sonega dados” (p.24), não só em razão de ser uma escrita pessoal, não precisando, assim, esclarecer tudo, mas também porque tem intenção clara e deliberada de omitir nomes, fatos, opiniões, relacionamentos. Mesmo sendo um documento não oficial, está permeado por filtros, omissões e pela auto- censura (como as de motivações políticas).
Este exemplo é particularmente interessante para reforçar os questionamentos, presentes em trabalhos historiográficos contemporâneos, sobre a ideia de fidedignidade das fontes, independentemente do tipo de documento em questão. No caso específico da literatura de viagem, a relativização passa pela discussão do caráter extremamente ambíguo dessa documentação, que trafega entre a materialidade da experiência e a subjetividade do olhar. Para o estudioso que lida com esta fonte, tudo parece ser motivo para dúvidas, e o fato do viajante declarar ter visto, ouvido, sentido, experimentado, nem sempre é suficiente para garantir a credibilidade da narração. Com a viagem e o Diário de Hipólito da Costa não haveria de ser diferente.
Apesar de usar fontes diversificadas, o Diário pessoal de Hipólito da Costa é o documento primordial da pesquisa, que norteia o desenvolvimento dos capítulos, com exceção do primeiro – intitulado A serviço do rei – , que cumpre a função de apresentar as origens familiares e sociais do autor e o contexto histórico no qual se inseria. Neste primeiro capítulo a autora perfaz a trajetória do personagem desde o seu nascimento, na Colônia do Sacramento, em 1774, até se tornar agente da Coroa Portuguesa. Também procura analisar aspectos da história familiar de Hipólito, entremeada nos conflitos entre lusos e castelhanos. Em 1777, quando os portugueses foram expulsos de Sacramento, Hipólito da Costa tinha três anos. A família seguiu para o exílio em Buenos Aires e aí permaneceu até 1778, partindo para Rio Grande de São Pedro, onde Hipólito viveria até os 18 anos, antes de rumar a Portugal.
A respeito deste capítulo, cabe destacar a preocupação da autora em distanciar-se do modelo biográfico. Sua intenção não é saciar a curiosidade a respeito da vida do periodista (p.31-32). A pergunta norteadora no caminho que constrói para explorar as origens de Hipólito da Costa é de cunho social. A autora parece questionar a ideia, por demais geral e talvez banalizada, de que ele fazia parte da elite. Assim, tenta recompor historicamente as condições de vida de seus familiares: as dificuldades enfrentadas pelo lado materno da família, como primeiros lavradores na região da Colônia do Sacramento no início do século XVIII; as inseguranças e deslocamentos a que a família foi submetida em razão das disputas fronteiriças entre lusos e castelhanos, o que resultou na necessidade de exílio em Buenos Aires, onde aparentemente as condições também não foram nada satisfatórias. Uma situação mais favorável só se concretizaria com a mudança para a Vila de Rio Grande, região que se desenvolveu, a partir de fins do século XVIII, seja pela concessão de sesmarias, fruto do processo de demarcação de fronteiras, seja pelo comércio irregular de animais entre os dois lados da fronteira. Na parte referente à fase da vida de Hipólito da Costa como estudante em Coimbra aborda, sobretudo, o contexto de desenvolvimento das reformas ilustradas em Portugal, que acabaram dando ensejo à inserção no circuito das viagens científicas.
Os capítulos que se seguem são primordialmente marcados pela experiência da viagem aos Estados Unidos e calcados na análise das fontes desta viagem. Pode-se dizer que um dos intuitos da autora nos capítulos dois a quatro é identificar as diferentes “vozes” que ajudaram a compor as ideias de Hipólito da Costa e contribuíram para a construção de suas representações. Dessa maneira, temas como a maçonaria, a imprensa, a religião e a política perpassam estes capítulos.
No capítulo 2, intitulado a Aurora da Filadélfia, analisa a “profusão de papéis” que permeiam a construção do Diário de Hipólito da Costa. Segundo a autora, a imprensa fazia a “mediação entre a experiência e a representação da realidade” (p.61). Isto é, entende que o Diário “falava” também por intermédio dos impressos, não sendo compreendido como um tradutor fidedigno da realidade. A ênfase do capítulo é sobre a apropriação que Hipólito fez da gazeta Aurora General Advertiser no Diário. Fundada em 1790, por Benjamin Franklin Bache (neto de Benjamin Franklin), o jornal defendia os republicanos jeffersonianos, grupo no interior do qual alguns emigrados radicais que não tinham espaço na Europa vieram se instalar. Este foi o caso de Willian Duane, diretor do jornal após a morte de Fanklin Bache. A sobrevivência da gazeta se deveu a uma insistência do próprio Thomas Jefferson, que via nela uma chance para a perpetuação da causa republicana.
O contexto político é o da disputa entre os federalistas e republicanos. Ao descrever cada uma das tendências, talvez por forte envolvimento com sua fonte, a autora acaba por tecer um perfil mais simpático dos republicanos, entre os quais se envolveu Hipólito da Costa. De acordo com sua descrição, os federalistas advogavam pelo fortalecimento da União, reuniam grupos do norte, representantes da aliança entre o grande capital e o comércio. Os republicanos, por seu turno, eram adeptos do autogoverno e autonomia em relação ao poder central, concentrados mais ao sul do país e praticantes da agricultura e auto- suficiência da indústria doméstica, incluindo aí o sistema de plantation. Os jeffersonianos criticavam os federalistas pela centralização política, pela cobrança de novos impostos e formação de um exército permanente e apoiavam as liberdades e direitos individuais, o trabalho intelectual, a austeridade moral, o mérito e não os privilégios. A Aurora vinha nesta esteira, denunciando o perfil aristocrático dos federalistas com acusações de um desejo recolonizador. Há algumas questões neste rol de características que merecem ser evidenciadas. Como conciliar a crítica aos privilégios e o apoio às liberdades e direitos individuais com o sistema de plantation? Não haveria interesses concretos, defendidos pelos republicanos, ao criticarem, por exemplo, as propostas federalistas de especularem comercialmente com as propriedades rurais? Até que ponto o perfil assumido pela pesquisadora em relação aos republicanos não reproduz, com pouco distanciamento, a posição mantida por Hipólito no próprio Diário, que possivelmente não diferia da propaganda do próprio partido e os seus partidários?
O livro não trata apenas da política stricto senso. A política, na perspectiva da autora, está entremeada a questões de ordem cultural. É esta compreensão que permite trafegar entre temas como os ideais de limpeza, asseio, simplicidade, austeridade e trabalho, defendidos pelos quacres, entre os quais Hipólito circulou. Também explora temas correlatos, expressões dos republicanos jeffersonianos e da Aurora da Filadélfia, como a crítica ao luxo e ao ócio e a valorização da virtude em oposição à degeneração, ao mundanismo, ao exagero.
Todos estes elementos são recuperados no Diário e explorados pela autora que, recompondo uma trama delicada, consegue enxergar as articulações entre religião, política, partido e imprensa. Situa então o texto do autor num ideário próprio a denominações do protestantismo anglo-americano, entendendo, entretanto, que a leitura religiosa estava conectada com a política. O ideário de ordem, limpeza, trabalho e austeridade estavam presentes também no discurso republicano democrata da Aurora.
No terceiro capítulo explora a presença de uma tendência da maçonaria – a chamada Maçonaria Antiga – nas entrelinhas do Diário de Hipólito. Ele fora admitido entre os “Antigos” da Filadélfia em 1799. Esta ala da maçonaria surgiu em Londres, em meados do século XVIII, formada por irlandeses e ingleses dissidentes da Grande Loja da Inglaterra, que condenavam os “Modernos” por adulterarem antigos rituais da ordem. Do ponto de vista social eram constituídos por grupos menos favorecidos, como os artesãos urbanos, e politicamente eram mais combativos do que os “Modernos”. A corrente prosperou nos Estados Unidos – sobretudo na Pensilvânia –, que acolheu exilados políticos de diferentes partes da Europa (França, Escócia, Irlanda). Ali, associavam-se aos quacres e também aos políticos republicanos. Atuariam politicamente contra os federalistas.
A entrada na maçonaria propiciou a integração de Hipólito da Costa a uma rede de sociabilidades que reunia, além de maçons, republicanos, quacres e refugiados europeus. Sua participação nesta rede garantiu acesso a fontes privilegiadas para a realização de seus encargos. As viagens que faria in loco para estudos e pesquisas teriam sido, de acordo com a autora, poupadas pelo fato de ter conseguido pesquisar material já sistematizado por outros cientistas. No lugar de viajar para coletar espécimes, teria conseguido importá-las por meio de intermediários, para o que seus contatos sociais teriam sido muito úteis. O foco do capítulo é a rede de proteção que a maçonaria significava, que estava interligada aos emigrados, aos quacres e aos republicanos. Para cumprir a tarefa de investigar esta rede, teve que perscrutar as trajetórias dos personagens com quem Hipólito da Costa se relacionou, o que contribuiu, inclusive, para a compreensão de suas afinidades políticas.
Finalmente, o quarto e último capítulo está dedicado a analisar temas que continuariam a ter repercussão no trabalho periodístico de Hipólito da Costa, como o projeto de emancipação gradual dos escravos e a imigração. Nestes pontos, conclui que a experiência nos Estados Unidos foi uma referência importante para o autor, e é esta permanência que Thais Buvalovas busca explorar na análise que faz tanto do Diário, quanto das páginas do Correio Braziliense.
O Diário dá mostras de como o seu antiescravismo pode ter sido assimilado pela via do quacrismo, com a qual conviveu na Filadélfia. Dentre os registros sobre o tema destaca uma visita realizada à Penitenciária da Filadélfia, administrada por quacres. Ali, descreve o clima de relativa tolerância que se impunha como norma, entre brancos e negros, ainda que transparecesse um resquício de segregação. A explicação deste resquício a autora busca na visão de mundo quacre, segundo a qual, a despeito da convivência com a diferença, se mantinha um sentido de diferenciação e de valorização das próprias qualidades em relação à sociedade como um todo.
Ao analisar as ideias antiescravistas no Correio, elenca duas principais possíveis inspirações: uma, de origem quacre, segundo a qual a escravidão destruía a moral de seu senhor, transformando-o num déspota, e a outra, pautada na perspectiva iluminista, por meio da qual a escravidão era considerada um inimigo do Estado e da sociedade. A conclusão da autora é de que a primeira perspectiva pesou fortemente sobre a concepção do autor, o que confirma a sua hipótese em relação ao importante papel que a viagem jogou na constituição de sua ideias.
Por outro lado, parecem discrepar com isso as considerações do autor quando esteve em Nova Iorque. Nesta parte, curiosamente, Hipólito da Costa afirma que os negros eram mais bem tratados no sul do que no norte, onde a agricultura se encontrava decadente, as terras incultas e sem recursos para o cultivo. Afirmações como essa, de acordo com a autora, se deviam ao fato de Hipólito ter também como interlocutores os republicanos, que, além de se posicionarem contra o grande comércio do norte, eram aliados dos escravocratas do sul, que davam apoio a Jefferson. De qualquer maneira, o quacrismo parece ter sido preponderante nas defesas que faria posteriormente, de não sujeição e de abolição gradual da escravidão, nas páginas do Correio Braziliense.
Assim, se confirma a relevância do périplo pela América do Norte na formação do pensamento do autor. Para além disso, se atesta ainda um caminho circular percorrido por suas idéias, pois o Correio Braziliense foi escrito na Inglaterra, isto é, ambiente de origem do ideal de insubmissão defendido pelos quacres, que fora herdado de sua origem leveler. Um jogo interessante e não linear se constrói aqui: o exílio londrino está à frente, na escala cronológica e na biografia do autor estudado; contudo, no universo de pensamento esta viagem é retrospectiva, pois une, por caminhos espiralados e tortuosos, as duas pontas – norte-europeia e norte-americana – de um pensamento de tradição anglo-saxã. Uma curiosa aventura, boa para dar nós nas imagens muito lineares que se possa fazer da história.
Para retomar o título desta resenha, trata-se de uma viagem iniciática. Mas a quê, afinal de contas, a viagem de Hipólito da Costa aos Estados Unidos deu início? Entre a primeira fase da vida (capítulo um) e sua experiência nos Estados Unidos (capítulos três a quatro) parece haver um hiato. A leitura parece sugerir que suas origens luso-brasileiras, com o tempo, vão ficando para trás, num lugar recôndito, para o qual, aliás, o autor nunca mais voltou. Seguindo uma sugestão de Isabel Lustosa, Buvalovas afirma haver, em certas temáticas presentes no Correio Braziliense, como é o caso da escravidão, “pouca identidade [do autor] com o mundo luso-brasileiro”. (p.135).
A viagem, de acordo com esta interpretação, não parece ter sido só experiência cumulativa de conhecimentos. Indica também certo distanciamento em relação a sua origem luso-brasileira e uma incursão profunda numa diferente tradição; enfim, um exercício de resignificação das origens, que marcaria sua trajetória dali por diante. O livro propõe a importância de se entender os caminhos e descaminhos de Hipólito da Costa durante sua viagem aos Estados Unidos para melhor compreender as idéias do editor do Correio Braziliense.
Stella Maris Scatena Franco Vilardaga – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: stella.franco@unifesp.br
BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800). Imprensa, maçonaria e cultura política na viagem de um ilustrado luso-brasileiro aos Estados Unidos. São Paulo: Hucitec, 2011. Resenha de: VILARDAGA, Stella Maris Scatena Franco. Uma viagem iniciática. A experiência norte-americana na constituição do pensamento político de Hipólito da Costa. Almanack, Guarulhos, n.3, p.143-148, jan./jun., 2012.
Visões Políticas do Império: diplomatas belgas no Brasil (1834-1864) | Milton Carlos Costa
Concebido originalmente como trabalho de conclusão de curso em História pela Universidade Católica de Leuvan, na Bélgica, em 1979, a pesquisa do Prof. Milton Carlos Costa vem a público somente agora. O objetivo é reconstituir e analisar as visões políticas do Brasil imperial a partir dos escritos produzidos por representantes belgas que visitaram o país entre 1834, data da chegada do primeiro diplomata, Benjamin Mary, e 1864, momento marcado pela eclosão da Guerra do Paraguai. Para tanto, analisa um corpus documental constituído pelo Dossiê 1192 – Correspondência Política (1831-1870), reunido em cinco volumes, e pelos dossiês pessoais dos representantes belgas no Brasil, a saber, os diplomatas Benjamin Mary, Auguste Ponthoz, Joseph Lannoy, Eugene Desmaisières, Borchgrave d’Altena, Oscar Du Mesnil e Edouard Anspach, além dos cônsules Edouard Tiberghien e Edouard Pecher. Neste amplo trabalho de pesquisa realizado nos Archives du Ministère des Affaires Étrangères de Belgique, o autor percorre temas caros à historiografia brasileira.
Primeiramente, as relações da monarquia brasileira com outros países. A serviço da Bélgica, país industrializado e interessado em expandir seus mercados, os diplomatas e cônsules ocuparam grande parte dos seus escritos examinando-as. O Brasil pós 1822 aparece como integrado no sistema de dependência. Nas relações Brasil-Inglaterra, esses informantes elencaram dois focos de conflito, a Questão Christie e a repressão ao tráfico negreiro. Esta última seria uma tentativa de impedir o desenvolvimento agrícola brasileiro, interpretação que os aproxima da forma como essas problemáticas são tratadas historiograficamente. A análise revela, ainda, uma preocupação com a expansão estadunidense no continente americano, a percepção do imperialismo em gestação, e o sentimento de pavor representado pelo sistema republicano dos países do Prata. Notório, entretanto, é o fato de Costa identificar nessas correspondências um aspecto pouco conhecido das relações Brasil-França, que é a repressão francesa ao comércio de escravos.
Diretamente ligado a isto, um segundo tema de relevo é a questão escravocrata – e suas interfaces. Longe de um consenso, nota-se entre os informantes a existência de posições divergentes acerca deste ponto nevrálgico da sociedade brasileira. Para Tiberghien e Jaegher, a escravidão era uma necessidade indispensável, vital para o Império, ao passo que Lannoy enxergava aí um entrave à expansão capitalista. Assim, emerge a defesa da colonização por imigrantes e a rejeição à colonização assalariada enquanto solução para resolver a crise da agricultura cafeeira e açucareira que adviria do fim do tráfico negreiro. Esta defesa, no entanto, era um meio de servir aos interesses dos países industrializados europeus, como bem frisou Costa.
Adentramos, pois, à interpretação da realidade brasileira propriamente dita. O Brasil aparece como semicivilizado, principalmente nas regiões interioranas, cujo estado de organização parecia deixar a desejar, e para o que defendiam a necessidade de uma reforma institucional. A dificuldade de aplicação das leis é atribuída a influência da extensão territorial e o fato de que as diversas regiões do país viviam em “idades históricas” distintas, com desenvolvimentos desiguais. A economia era tida como rudimentar; a Câmara como verborrágica, indolente e ineficaz; e o Senado, conservador por excelência. Quanto aos partidos políticos, pelos quais demonstravam aversão, foram taxados como violentos, ressentidos e politicamente anêmicos, estando a organização do governo fadada ao revezamento entre conservadores e liberais.
Sob a ótica dos representantes belgas, havia uma clara contradição entre os princípios constitucionais, democráticos, e a realidade político-social brasileira, oligárquica. O “esquema das classes sociais no Brasil” aparece tripartido, hierarquizado em dominantes, dominados e ociosos. As massas, enquadradas nesse último grupo, são descritas como apáticas e ignorantes por razões intrínsecas ao formato da monarquia no Brasil. Singular em sua própria gênese, era antes um sistema passivo, um poder fraco e instável, que culminava na precariedade da vida cultural e do nível de civilização da massa da população, e seria, segundo Jaegher, a causa geral das rebeliões e revoluções do período regencial. De acordo com os informantes, esse problema estrutural teve ramificações profundas na constituição da sociedade brasileira – e aqui passamos a uma terceira questão que convém destacar na obra. Costa pontua a crença, por parte dos diplomatas e cônsules, da existência de um “caráter brasileiro”, constituído pela inconstância, espírito de trapaça, aversão aos estrangeiros, indolência e excessiva vaidade.
Em verdade, a defesa contundente da causa monárquica – e consequentemente dos interesses europeus – permeia o teor de todas as análises, principalmente acerca do que representaria um grande perigo à sua sobrevivência, como o sistema político de Rosas, as relações com os EUA, as conturbações das Regências, a dita “saúde frágil” de D. Pedro II e seu “despreparo” para a política. A lente conservadora e etnocêntrica com que enxergaram o universo brasileiro, conclui Costa, não impediu, porém, de registrarem a realidade do país de “maneira minuciosa, problemática e extremamente crítica” (p.187).
Em que pesem as três temáticas – relações internacionais, escravidão e identificação do “caráter brasileiro” –, inicialmente pode parecer que estamos diante de mais uma pesquisa que busca apreender a história do Brasil a partir de uma perspectiva europeia. E, com efeito, o material deixado por estrangeiros que visitaram o país no século XIX constitui, desde há muito, importante fonte para os estudiosos do Império brasileiro. Que o leitor não se engane, pois é justamente aí que reside o grande mérito da obra em questão. Ao elencar os relatórios enviados a Bruxelas pelos diplomatas e cônsules encarregados de compor um mapeamento das relações entre Brasil e Bélgica, o autor traz a lume um conjunto de estrangeiros se não totalmente desconhecidos da historiografia brasileira, ao menos pouco estudados.
No quadro de europeus que registraram suas impressões sobre o Brasil no Oitocentos, esses representantes belgas são marcados por uma singularidade. Em seus escritos, há pouca ênfase nas “riquezas naturais” brasileiras, muito embora a agricultura fosse vista como a base da prosperidade. Uma provável explicação para isso é o fato de que seus interesses eram fundamentalmente econômicos. O conhecimento científico do território não estava em seus horizontes. Importava antes analisar as possibilidades de expansão das relações comerciais à diversidade ecossistêmica do Brasil, tão exaltada pelos viajantes do século XIX. Em outras palavras, se para estrangeiros como Auguste de Saint-Hilaire, Georg Heinrich von Langsdorff, John Emmanuel Pohl e Carl Friedrich Philipp von Martius o Novo Mundo apresentava-se como um espaço para ampliação dos saberes da História Natural, ainda que voltada ao uso utilitário da natureza, para os diplomatas e cônsules era um mercado em potencial.
O contexto em que foi produzido também faz deste um trabalho pertinente. Escrito na década de 1970, em uma universidade europeia, insere-se num momento bastante significativo do ponto de vista da historiografia mundial. A terceira geração dos Annales, já em fins da década de 1960, ao advogar em favor de um maior contato da História com as variadas disciplinas das Ciências Sociais, abriu o campo de possibilidades, trazendo novas temáticas para o cotidiano do historiador e renovando o interesse pelas problemáticas do político e da política, as quais passaram a ser trabalhadas em uma outra perspectiva. O imaginário social, as representações, o comportamento coletivo, o inconsciente, as sensibilidades, entre outros, são, então, incorporados à investigação histórica sob a chave da Nova História Política, que entende o político como domínio privilegiado do todo social (RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.9-11).
A opção metodológica adotada por Costa é influenciada por este movimento. Por um lado, o reinteresse pela História das Mentalidades, que marca o período, faz-se presente na estruturação dos capítulos, nos quais é possível identificar a convergência dos dois caminhos propostos por Lucien Febvre para a compreensão do real, isto é, o individual e o social. À contextualização biográfica – incluindo os planos intelectuais, pessoais e profissionais – dos representantes belgas são somadas as relações pessoais mantidas com outros diplomatas, ministeriais e representantes de governo, e traços de caráter, como a franqueza de Mary, a sociabilidade de Jaegher, a firmeza de Lannoy, e a inteligência de Anspach. Por outro, o diálogo com a Antropologia histórica é perceptível na noção de alteridade. Ainda que o cônsul Pecher seja singular por ver o Brasil do ponto de vista do próprio país, o parâmetro de análise dos relatórios diplomáticos e consulares é europeu. Esses elementos, pessoais e coletivos, ajudam o autor a compreender melhor a percepção da realidade brasileira sob a ótica dos representantes belgas, muitas vezes de maneira comparativa.
Nesse sentido, Visões Políticas do Império dialoga com importantes trabalhos da historiografia brasileira. Caio Prado Jr, Nelson Werneck Sodré e Maria Odila Leite da Silva Dias são chamados quando da identificação das problemáticas comuns entre eles e as análises dos representantes belgas. E são tangenciados os estudos de Raymundo Faoro, cuja tese, “Os Donos do Poder”, sobre a sociedade patrimonialista, empresta nome a um dos subcapítulos, e de Ilmar Rohloff de Mattos acerca da formação do Estado nacional e dos partidos políticos brasileiros. O leitor tem em mãos, portanto, um sólido trabalho de pesquisa documental, metodologicamente embasado e historiograficamente relevante aos estudiosos do Império brasileiro.
Fabíula Sevilha de Souza – Mestranda no Departamento de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCL/UNESP – Assis/Brasil). E-mail: fsevilhas@yahoo.com.br
COSTA, Milton Carlos. Visões Políticas do Império: diplomatas belgas no Brasil (1834-1864). São Paulo: Annablume, 2011. Resenha de: SOUZA, Fabíula Sevilha de. Política, Economia e Sociedade: o Império Brasileiro sob a perspectiva belga. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 149-151, jan./jun., 2012.
Camino a Baján | Jean Meyer
Alguns meses depois, diante do pelotão de fuzilamento, o padre Miguel Hidalgo tinha de recordar aquele dia em que conclamou seus fiéis, às portas da igreja de Dolores, em Guanajuato, a lutar por uma liberdade que parecia simultaneamente óbvia e difícil. Com o estandarte da Virgem de Guadalupe na mão, Hidalgo transformou o 16 de setembro de 1810 num marco da luta pela independência do México. Ele também iniciava, ali, aos 57 anos, uma impressionante transformação pessoal, que o colocaria na história e que, para o bem e para o mal, redefiniria o sentido de sua fé. O sucesso da ação emancipacionista parecia, no princípio, inevitável, mas as reações dos realistas e da Igreja, a guerra brutal, as traições, as idas e vindas da política, com suas muitas armadilhas, fizeram com que sua trajetória fosse breve e trágica: em março de 1811, o padre foi preso e, em quatro meses, julgado, condenado e executado. Um pouco antes, porém, de enfrentar o pelotão, Hidalgo sentiu os últimos prazeres da comida e da oferta: tomou seu chocolate – reclamando do parco leite que justo no dia da morte lhe serviam—, caminhou até o paredão e então se lembrou dos doces que esquecera no quarto. Parou, pediu que os buscassem e esperou. Quando os trouxeram, retomou seu caminho, comeu alguns deles e repartiu os demais com os soldados que o executariam. Convictamente. Serenamente.
É apenas aparente, no entanto, a tranquilidade do Hidalgo que Jean Meyer nos apresenta numa surpreendente ficção histórica: Camino a Baján (México: Tusquets, 2010), romance que parte da história, dialoga ininterruptamente com ela, retorna a ela. Uma primeira versão do livro saíra em 1993 com o título de Los tambores de Calderón (México: Editorial Diana). Ambos os títulos mencionam lugares decisivos para o desfecho da luta de Hidalgo e metaforizam seu fim: a Ponte de Calderón, onde teriam rufado os tambores, foi o local da decisiva derrota que levou o padre a fugir na direção dos Estados Unidos; Acatita de Baján, a meio deserto, foi a cidade em que o aprisionaram. Seu caminho para Baján é, portanto, mais do que uma fuga; é uma marcha para a morte.
Jean Meyer não buscou Hidalgo por acaso. Pesquisador da história do México e membro da Academia Mexicana de História, já escreveu dezenas de trabalhos sobre temas distintos e próximos, como a Revolução de 1910, as relações entre Estado e Igreja, as revoltas dos cristeros, o sinarquismo e as lutas camponesas. Publicou, em 1996, uma breve biografia de Hidalgo (México: Clio). Circundou o personagem, portanto, cercando-se de farta documentação e de denso levantamento bibliográfico, para traduzir a figura e a trajetória do padre numa ficção.
O livro é de leitura agradável, dispensa esclarecimentos e notas que justifiquem ou legitimem suas afirmações, solta-se dos rigores acadêmicos e historiográficos, inventa seu próprio estilo, valoriza a dimensão imaginativa e cogita possibilidades históricas de incabível comprovação. Meyer combina o discurso indireto e as descrições – registros habituais da historiografia – com discurso direto ou indireto livre, marcas correntes da ficcionalização. Atenua, dessa forma, o efeito da narração em terceira pessoa e da preocupação de assegurar, com seus longos trechos informativos, que o leitor acompanhe o movimento da história e se certifique da veracidade de muitos dos fatos apresentados. Tal compromisso com a verossimilhança aproxima Camino a Baján do romance histórico tradicional, ao mesmo tempo que demonstra o reconhecimento do primado da literatura em relação à história, dada sua capacidade de sondar o que poderia ter acontecido, mas não aconteceu, e não apenas de se ater ao que foi efetivamente vivido.
A obra, no entanto, tem outro lado – historiográfico – porque, embora se trate de um romance, o autor não o escreve apenas como ficcionista. Recorre a estratégias da narrativa de imaginação, mas mantém os pés solidamente fincados no terreno da pesquisa histórica. Recorre fartamente à documentação do período, hesita em se lançar a especulações carentes de sustentação ou em produzir mitificações baldias. Ou seja, ao mesmo tempo que Meyer se preocupa em construir um relato organizado e articulado sobre os últimos meses da vida do padre Hidalgo, ele também evita as simplificações que tanto a história quanto a ficção muitas vezes produzem quando privilegiam a fluidez do relato em detrimento de sua densidade e se isolam em rituais endogâmicos. Ao rejeitar as barreiras que separam as narrativas e situar sua obra na fronteira entre a ficção e a história, o autor se vale das vantagens de ambas e, mais importante, das perspectivas inesperadas e inusuais que o diálogo entre elas oferece. Fronteiras disciplinares ou narrativas, afinal, não são apenas – nem prioritariamente – espaços de separação; ao contrário, são zonas de transição, de porosidade. Nelas, as características mais destacadas de cada lado podem se atenuar e cresce a oportunidade da contaminação, da mistura. Manifesta-se, de maneira categórica, a necessidade de reconhecer a presença do outro e sua perspectiva distinta.
Num livro importante, Carlo Ginzburg (Olhos de madeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001) recorre a uma metáfora de Marcel Proust para defender o valor dos diálogos disciplinares e metodológicos e recusar a banalização da realidade – e, em decorrência, das representações que se fazem a partir dela. O historiador italiano lembra do esforço de um personagem de Em busca do tempo perdido, “para expor as coisas não como ele sabia que eram”. Ele é pintor e pinta “ao revés”: escapa do óbvio, de si mesmo, e assume a perspectiva que lhe é inversa com todas as suas possibilidades. A representação do presente ou do passado —nos ensinam Proust e Ginzburg— é, assim, aprimorada pelo “estranhamento” que podemos sentir ao olhar para um tempo, um episódio ou processo histórico, um personagem. Não é diferente quando encaramos um tipo de narrativa a partir de terreno distinto, quando nossa perspectiva da história é orientada pelo prisma da ficção, ou vice-versa. Em outras palavras, as implicações cognitivas do “olhar de fora”, da distância, nos ajudam a evitar os relatos simplistas, os reducionismos de quaisquer ordens, os tão convenientes, limitados e insuficientes esquemas explicativos. Elas alargam a compreensão e aprofundam o necessário caráter interpretativo e crítico da história.
O Hidalgo de Camino a Baján ilustra com precisão tal movimento. Ele não é apenas o idealista corajoso, o religioso com preocupações sociais ou o emancipacionista convicto que muitos relatos sobre a independência do México sugerem. O Hidalgo de Meyer é um personagem bem mais complexo; é um mito disposto a agir, capaz de enfrentar forças e instituições extremamente poderosas e de acreditar no valor intrínseco de sua ação, mas é também um homem entre homens, perdido na confusão cotidiana, sujeito a instabilidades e temores, um homem tantas vezes hesitante, tantas vezes angustiado. Sua serenidade, expressa no gesto final de comer e partilhar doces, era, de fato, simples aparência. Uma angústia mais funda e mais crua cortava a imaginação e a consciência religiosa e humanista do padre: por que tanta violência, por que tanto sangue na busca da liberdade? Por que a revolução precisava se alimentar continuamente da morte?
Esse Hidalgo – no meio do caminho entre a história e a ficção – convive, sobretudo, com uma profunda divisão interna, que o atormenta: ele se arrepende de muito do que fez, arrepende-se da escolha do caminho da revolução, da violência desmedida, dos incontáveis mortos que sua ação foi deixando para trás no caminho rumo à própria morte. A entonação humanista de sua dúvida atinge o leitor e amplia a ambiguidade: a luta pela justiça pode ser injusta, a busca da igualdade pode resultar iníqua? Eis um mistério talvez tão profundo quanto os da fé que em suas orações o padre preservava e, nas pregações, difundia. Qual é o caminho, então, para que nos libertemos e sejamos capazes de reconhecer a nós mesmos e aos próximos?
A história da independência do México não oferece respostas, pelo menos à primeira vista. O destino de Hidalgo foi exemplar, da mesma forma que o foram os de outros líderes da luta contra a Espanha: José María Morelos morreu igualmente fuzilado, assim como Ignacio Allende, Vicente Guerrero e até o instável Agustín de Iturbide. O redemoinho da história consumiu-os, um a um. A luta emancipacionista para além do sul do México tampouco poupou de morte triste e de aflições profundas outros líderes políticos e militares: é quase inevitável, durante a leitura do livro de Meyer, relembrar a agonia final e a dilaceração íntima de Simón Bolívar, patente em suas últimas cartas e reconstituída com vigor na biografia fictícia em que Gabriel García Márquez o representou (O general em seu labirinto. Rio de Janeiro: Record, 1989).
As respostas para a busca da liberdade e do autorreconhecimento – se existirem – estão na capacidade de visitar e revisitar o passado ininterruptamente, de questioná-lo, de investigar as opções políticas e históricas feitas pelos personagens ilustres e pelos personagens comuns. Essas respostas só podem vir do reconhecimento da complexidade de todo trabalho de representação e da percepção dos inúmeros desvãos que ele nos oferece. Da aceitação de que a realidade é prolixa – envolvida pela neblina do passado – e intangível em sua plenitude, da mesma forma que nenhuma justiça presente ou passada é pura e completa. De que a iniquidade é multifacetada e misteriosa.
Era inevitável que um autor como Jean Meyer, com a obra historiográfica consistente e significativa que já produziu, ao visitar a ficção, o fizesse de forma admirável e não se limitasse a escrever – o que, reconheçamos, não seria pouco – uma boa biografia imaginativa de um dos personagens mais instigantes da história latino-americana. Ultrapassando o terreno da história, Camino a Baján nos oferece uma ótima leitura e uma reflexão profunda sobre o terreno amplo, fértil e atraente das relações e contaminações entre ficção e história.
Júlio Pimentel Pinto – Professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil). E-mail: juliop@uol.com.br
MEYER, Jean. Camino a Baján. México, D.F: Tusquets, 2010. Resenha de: PINTO, Júlio Pimentel. O mistério da iniquidade. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 157-159, jan./jun., 2012.
Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano | Javier Fernández Sebastián
Não seria exagerado dizer que o Diccionario político y social del mundo ibero-americano, dirigido por Javier Fernández Sebastián, constitui-se em uma das iniciativas de trabalho coletivo mais ousadas e meritórias das últimas décadas no campo da história do mundo ibérico e americano entre os séculos XVIII e XIX. Diante da atual profusão de incentivos à produção histórica sobre o período, alavancada pelas comemorações dos bicentenários das Independências na América e do translado da Família Real portuguesa para o Rio de Janeiro, o presente volume pode ser considerado um dos seus mais sólidos produtos. Primeiramente, por reunir pesquisadores de vários países, do Novo e do Velho Mundo, no projeto internacional El mundo atlántico como laboratorio conceptual (1750-1850) – ainda em andamento, e do qual este é um primeiro volume de resultados –, apostando na elaboração coletiva da reflexão histórica, infelizmente ainda pouco comum na nossa área de maneira geral. Mas a maior prova da importância e pertinência do projeto está, sem dúvida, na sua atual capacidade de gerar novas e pulsantes demandas historiográficas. O que significa dizer que hoje, quando se fala em história dos conceitos, é impossível não se remeter ao volume.
A problemática geral do volume – discutida por Fernandez Sebastián na preciosa introdução à obra – parte da teoria de Reinhart Koselleck que, de forma fecunda, consolidou caminhos de análise da profunda mutação no universo léxico-semântico verificada no período anunciado, a qual evidenciava grandes transformações políticas, institucionais e mentais em curso no mundo ocidental. A síntese desse processo está na sua concepção de nascimento da “modernidade”, caracterizada fundamentalmente pela percepção, entre os coevos, de uma ruptura temporal em relação ao passado e abertura de possibilidade de futuro como um tempo marcado por instabilidade e incerteza. Sua base era a crise de legitimidade das antigas monarquias, e mesmo da História como campo capaz de ensinar pelas experiências do passado, ou seja, como “mestra da vida”.
Se tal “terremoto conceitual” foi amplamente analisado para a Alemanha (e parte da Europa meridional e América do Norte) no magistral dicionário histórico de léxicos políticos e sociais do qual o próprio Koselleck foi um dos organizadores – o Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, publicado na década de 1980 em nove volumes – , sua análise global para o mundo ibero-americano era uma tarefa de fôlego ainda a ser feita. Nesse sentido, a presente obra tanto demonstra a vitalidade das assertivas koselleckianas para se pensar transformações estruturais em curso na Espanha, em Portugal e em seus antigos domínios, como enfatiza sua unidade no mundo occidental, numa perspectiva de interconexões. Nas próprias palavras de Fernández Sebastián, um dos objetivos da obra é:
ensayar uma verdadeira historia atlântica de los conceptos políticos. Una historia que tome em cuenta el utilaje conceptual de los agentes – individuales y colectivos – para lograr así una mejor comprensión de sus motivaciones y del sentido de su acción política (p.25).
Dimensão atlântica que, cada vez mais valorizada pela historiografia nos últimos tempos, tem como grande mérito romper com as fronteiras estabelecidas pelas historiografias nacionalistas desde o século XIX, em especial daninhas para análise do período em que as definições e soluções dos novos Estados fizeram parte de um processo de luta política em curso. O que para o caso brasileiro é ainda pior, haja vista que a construção do discurso da sua excepcionalidade, de um “Império entre repúblicas”, remonta ao próprio Oitocentos e continua a ser uma fonte de retroalimentação de desavisadas análises, a despeito de sua desconstrução crítica por parte de recentes trabalhos historiográficos. Um dos possíveis perigos das abordagens que privilegiam a história atlântica, o de se não respeitar os problemas específicos dos processos que se pretende ver em sintonia, é rechaçado pelo Diccionario, pois que a análise de cada contexto político permite o estabelecimento, bem como a problematização, da relação entre o geral e o particular. Ainda assim, é fato que partir da concepção de uma unidade atlântica pode encerrar outros questionamentos, como veremos adiante.
A escolha dos conceitos aqui tratados partiu de algumas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, do esforço em abandonar definições excessivamente normativas que, concebidas posteriormente, ainda impregnam de um ideal valorativo muitas das palavras aqui analisadas. Daí a ênfase na discussão dos seus significados coevos, bem como dos usos que os homens fizeram delas, ambos tensionados pela profunda reviravolta que se viveu no mundo ibérico, sobretudo, após os anos de 1807-1808. Entendendo que discurso e prática políticos são indissociáveis, poder-se-ia falar em uma verdadeira “guerra” de palavras como uma das dimensões da própria política, cuja esfera ampliava-se significativamente nas décadas aqui tratadas.
Nesse sentido, os termos selecionados justificam-se por terem sido fundamentais no vocabulário político da época, ou seja: sem cada um deles, toda a arquitetura argumentativa encontrar-se-ia comprometida. No entanto, a despeito de se considerar que os coevos se serviram de novas linguagens, sabedores de que as antigas apenas parcialmente lhes serviriam na busca de soluções à crise que se desvendava diante de seus olhos, a obra não se propõe a entender os conceitos como parte de um conjunto coerente, canônico e articulado de significados, aos moldes das proposições consagradas por John Pocock e Quentin Skinner. Ao contrário, é exatamente a fluidez e polissemia dos termos, sua apropriação por vozes e protagonistas de projetos políticos dissonantes, que são tidas como pontos de partida centrais para sua análise. Referenda-se assim, a não menos sugestiva definição koselleckiana do que são conceitos: palavras que unificam em si diversos significados, ao mesmo tempo “concentrados de experiência histórica” e dispositivos de antecipação de soluções futuras. A essa amplitude semântica soma-se um nível de generalização/abstração dos mesmos termos que, servindo a uma grande variedade de usos e interpretações, tendem a uma forte ideologização.
À luz de tais definições, dez foram os conjuntos de conceitos considerados fundamentais e prioritários na composição do volume: América/ americanos, cidadão/vecino, constituição, federação/federal/federalismo, liberal/liberalismo, nação, opinião pública, povo/povos e república/ republicanismo. A cada um deles foi dedicado um capítulo que contém uma síntese transversal e comparativa das transformações ocorridas nos termos para o mundo ibero-americano, além de nove textos de referência, um para cada espaço geográfico ou país previamente selecionado. Estes últimos, longos verbetes, foram na sua grande maioria elaborados por especialistas na história das Independências e serviram de base para elaboração das sínteses. O que, de fato, se pode chamar de um investimento de pesquisa coletivo.
Foram elaborados verbetes para: Argentina (Rio da Prata), Brasil, Chile, Colômbia (Nova Granada), Espanha, México (Nova Espanha), Peru, Portugal e Venezuela. Ou seja, a área contemplada é extensíssima, o que mais que justifica a enorme abrangência do Diccionario. A edição traz também um apêndice cronológico para cada um desses espaços, o que muito ajuda o leitor em função da profusão com que os acontecimentos políticos espelham o turbilhão de alternativas e soluções então colocadas em prática. Mas não há como negar que a ausência da América central (incluindo Cuba), banda oriental, Alto Peru (Bolívia) e Paraguai pode ser lamentada. O que, sem dúvida, tem mais relação com o estado da arte das pesquisas e volume de desenvolvimento das historiografias de cada um dos países, do que com a concepção de história que informa o presente volume. O mesmo pode-se dizer sobre o fato das análises se centrarem nos centros urbanos, tratando muito mais do universo dos crioulos do que de grupos indígenas e de africanos e seus descendentes, cuja inserção no processo político foi inegável ainda que seus discursos e práticas tenham sido menos analisados, e que suas trajetórias sejam mais difíceis de reconstruir historicamente.
A despeito do Diccionario seguir a periodização da “modernidade” proposta por Koselleck (1750-1850), há aqui o cuidado em se marcar que ela se trata apenas de uma referência geral. É notável como para o mundo ibero-americano, a maior ruptura política ocorrerá a partir dos anos de 1807 e 1808, como desdobramento dos acontecimentos que impedirão o monarca tradicional de governar na Espanha, e farão com que a Família Real portuguesa tome a direção de seus domínios americanos. O que pode ser claramente visto nas análises de cidadão, constituição, federalismo, nação, opinião pública e povo. Também fica evidente que muitos dos conceitos tendem a uma maior radicalização na década de 1810, e serão dotados de maior moderação a partir das seguintes que, não à toa, coincidem com a maioria das tentativas de consolidação dos novos Estados independentes na América.
Análises bastante profícuas dos conceitos levam em conta os termos/ideias correlatos a ela. É o que se pode ver claramente no texto sobre federação/federal/federalismo, cuja síntese transversal é de autoria de Carole Leal Curiel. A princípio, esses termos aparecem nos discursos coevos somente após 1810, mas a opção feita também pelo rastreamento da dupla conceitual de confederação/federação, bem como da problematização em relação à questão da (des)centralização que existe desde fins do século XVIII nos Impérios ibéricos, mostra-se muito profícua para no seu desvendamento. Nesse sentido, ainda que tais conceitos tenham sido ainda mais prioritários para as repúblicas ibero-americanas, os problemas que eles evocam tiveram importância central também nos debates que permearam as trajetórias das monarquias brasileira, portuguesa e espanhola.
De todos os termos, marca-se uma possível especificidade para América/americanos, cuja análise abre o volume. Como bem questiona João Feres Júnior em seu artigo transversal, em termos teóricos, ambos poderiam ser considerados “contraconceitos”: primeiro, pelo fato do seu uso ter sido valorizado em oposição às antigas metrópoles, ganhando muita força nos anos de consecução das Independências; além disso, haja vista sua decadência em termos políticos, sobretudo a partir da década de 1830, com a consolidação nacional dos novos Estados (quando todos os outros termos demonstram terem se transformado em essenciais para o debate político). No entanto, é pena que a análise não tenha valorizado a dimensão identitária contida no termo “americano”, a qual dialoga com vários dos vocábulos que passaram a definir os vínculos de pertencimento dos indivíduos e sua relação com os projetos políticos em disputa em cada um dos espaços geográficos aqui analisados. Assim já o demonstraram, de maneira profícua, os trabalhos de José Carlos Chiaramonte para o caso das tensões entre os termos “rioplatense”, “hispanoamericano” e outros termos provinciais (questões devidamente incorporadas por Nora Souto no verbete do Diccionario dedicado à Argentina), bem como os de István Jancsó que tratam de sua importância para se entender as rupturas presentes no processo de construção nacional no Brasil. Nessa chave, trata-se de lugar comum a afirmação de que a América portuguesa teria mantido sua unidade após a Independência, ao contrário da espanhola (Feres, p.64); as clivagens identitárias permitiriam se entender como “pernambucanos”, “baianos”, “maranhenses”, etc., que poderiam ser mais ou menos associados com “americanos”, além de revelarem as disputas políticas endêmicas à unidade nacional do Brasil. Raciocínio, em linhas gerais, válido também para toda a América espanhola.
O universo das tensões entre ibero-americanos e peninsulares logo fica explícito nas pujantes análises dos vocábulos constituição e nação. Na primeira, o texto transversal de autoria de José Portillo Valdés, evidencia com acuidade como a utilização do conceito é chave para entendê-las. Assim o faz analisando como, desde meados do século XVIII, predominava na Espanha, e igualmente em Portugal (conforme os verbetes do próprio Portillo e de Nuno Gonçalo Monteiro, respectivamente), uma percepção da necessidade de reformas para se corrigir o desajuste político e econômico de ambos os Estados no âmbito europeu. A economia política seria vista como um desses instrumentos, e o apego à constituição um “antídoto” para se evitar os posteriores acontecimentos revolucionários. Desde então, a percepção da desigualdade entre espanhóis e portugueses de distintos hemisférios é fortemente sentida; mas revelar-se-á especialmente contundente diante da necessidade de se pensar um arranjo constitucional comum após a instalação das Cortes de Cádis, em 1810, e das de Lisboa, em 1820 – já que constituição passava, cada vez mais, a ser sinônimo de projeção de novos governos. Nas décadas seguintes, seu sentido de disciplina social, com o intuito de tornar o Estado presente, acabaria por se sobrepujar ao anterior, evidenciando o sentido de moderação que o uso do termo viria a adquirir.
Na análise do vocábulo nação a percepção dos conflitos em torno dos projetos políticos em disputa são ainda mais evidentes. Conforme salientado na síntese de Fábio Wasserman, desde meados do século XVIII é possível delinear um sentimento dúbio, vivido de forma distinta em ambos hemisférios e expresso pela tensão no uso dos termos nação e coroa: se na Península os letrados deixavam evidente existirem diferenças entre o reino e suas conquistas, na América tal sentimento seria vivido com certo desconforto, e alimentaria iniciativas de defesa das especificidades locais, de “patriotismo crioulo” (p. 856-7). Com a ressignificação do conceito a partir de 1808, e a difusão de uma concepção unitária de nação, associada à soberania e à definição de novos pactos políticos, os embates no seu uso passam a ser imprescindíveis na definição das alternativas políticas. De forma bastante precisa, a América portuguesa (analisada no verbete de autoria de Marco Antonio Pamplona) não é aqui tratada como exceção em função da associação entre monarquia e nação que, mais do que continuidade, aquela pôde ser aqui lida como uma recriação. À exemplo do que ocorre com constituição, mesmo antes da década de 1830 já era possível observar-se em nação a perda do sentido de soberania popular, e uma ênfase na sua associação com um esforço de institucionalização e consolidação do poder.
Movimento semelhante ocorre com os termos cidadão/vecino. O primeiro sofre profunda politização a partir dos acontecimentos de 1808, ainda que o ritmo das mudanças tenha sido muito mais rápido na América do que na Península, conforme analisado por Cristóbal Aljovín de Losada (p.183). Na primeira, é digno de nota como o desafio da cidadania enquanto paradigma universal de direitos e de igualdade perante a lei possui uma série de questões que passam por clivagens raciais, em toda parte presentes. Mas o conceito traz em si mesmo ambiguidades, sendo uma delas a incorporação de diferenças pautadas pelas desigualdades entre direitos civis e políticos durante praticamente todo o século XIX – pouco analisadas por Losada, mas já profundamente discutidas, para o caso francês, por Pierre Rosanvallon em mais de uma de suas obras. Desse modo, não nos admira que tenha sido possível a definição de quem eram os cidadãos mesmo em um Império escravista como o Brasil. Obviamente que suas contradições, pensadas no âmbito da modernidade, continuariam a ser evidentes.
A análise dos termos povo/povos e opinião pública nos remete diretamente a clivagens na construção dos projetos políticos. É notável a duração mais curta na utilização do termo povos, sua maior abrangência na América espanhola logo após os desdobramentos das Cortes de Cádis, e sua associação com projetos de autonomia local e corte federal. A predominância do vocábulo no singular, no entanto, passa a ser efetiva nas décadas seguintes, conforme salienta Fátima Sá e Melo Ferreira na síntese transversal. Nesse sentido, opinião pública, expressão que ganha imensa expressão após a crise de 1808 (na América portuguesa, sobretudo, após 1820), é inicialmente utilizada para se defender os direitos dos mesmos povos. Mas veja-se como já nos anos 1820 ela é predominantemente evocada como “rainha do mundo”, fonte de legitimidade para defesa de posicionamentos políticos diversos. Nas décadas seguintes, no entanto, sua utilização também traz uma desconfiança ou perda de entusiasmo em relação à sua força inicial transformadora, com o termo associando-se igualmente a visões pejorativas.
É o texto transversal de autoria de Noemi Goldman que insere a opinião pública numa perspectiva altamente instigante. Partindo das análises de Elías Palti, a autora a insere no universo intelectual da época, discutindo como a defesa de unanimidade, representada de forma paradigmática pela evocação de “uma verdadeira opinião”, não era estranha aos coevos no século XIX (p.988). Ao contrário, ela está inserida num verdadeiro afã pela criação de assertivas e verdades objetivas que pudessem guiar a construção do futuro; ao menos, assim se imaginava possível, obviamente. Isso nos faz pensar no enquadramento geral de praticamente todos os conceitos aqui analisados, cuja polissemia só viria a comprovar a importância dos embates em torno dos significados por eles expressos.
O sentido de projeção de futuro que o uso das palavras coloca a nu nesse momento é especialmente desvelado na análise do termo liberalismo. É possível que seja esse o conceito que mais carrega o peso de uma tradição histórica normativa que impede, muitas vezes, a apreensão de seus significados específicos e coevos. Por essas razões, a síntese transversal assinada por Javier Fernández Sebastián salienta elementos especialmente significativos para sua compreensão: de como o termo contemplava, no momento em que ganha evidente sentido político (a partir de 1808), um respeito à tradição monárquica, e não sua completa negação; mas, ao mesmo tempo, serviria à afirmação de um governo representativo que pretendia a “regeneração” da Península e a construção de novos Estados na América. É notável que o ideal de “triunfo da civilização” e a crença no progresso que o mesmo termo viria a contemplar, fossem alvo, especialmente a partir da década de 1830, de clivagens marcadas pelas novas filosofias da história, com a ascensão de projetos que falassem em nome de uma maior moderação. Sem dúvida é essa uma chave para compreensão dos próprios “partidos” que, muitas vezes equivocamente, são por toda parte classificados como “liberais” e “conservadores” em função de imputações anacrônicas. Sua relevância para observarmos, por exemplo, a eclosão do chamado “Regresso conservador” brasileiro num universo mais amplo da Ibero-américa é evidente (perspectiva de análise para a qual desconhecemos quaisquer outros estudos para além das conexões aqui estabelecidos a partir do verbete de autoria de Christian Lynch).
Isso nos remete à questão das comparações, e do quanto elas podem ser válidas na perspectiva adotada pelo Diccionario. É igualmente Fernandez Sebastián que, na introdução, destaca a importância dos estudos comparados para se romper com uma historiografia nacional, tanto por meio da observação de um substrato comum na cultura política no mundo ibérico e americano, como pelas diferenças contextuais que explicariam diversidades de usos e de significados dos conceitos (p.31). No entanto, o mesmo autor é consciente de riscos dessas aproximações: por exemplo, o de valorizar os principais traços de cada país concebendo-os como distintos e específicos em relação a outros e, dessa forma, reforçar bases de historiografias nacionais (p.41, nota 14). É verdade que essa tendência aparece em alguns textos da obra, mesmo em algumas das sínteses transversais que foram pensadas justamente como uma forma de evitá-la; mas o resultado geral, construído sob o desafio de uma história comum, compensa amplamente sua ocorrência.
Diante disso, vale retornar ao tema da unidade atlântica. Ao defender um único processo revolucionário, global, a obra se volta contra uma definição apriorística de centro e periferias como categorias prévias para entender clivagens entre os espaços ibérico e americano. No entanto, sagazmente também se faz a ressalva de que tais ideias podem ser adequadas ao propósito da obra, ao menos quando elas se converterem em parte do próprio imaginário dos atores estudados, das representações mentais que constituem o presente objeto de estudo (Fernandez Sebastián, p.697). Em função disso, pode ser aparentemente banal a crítica ao tratamento homogêneo demais que aqui se dá a uma imensidade espacial, marcada por complexas e desiguais relações nos mais de 300 anos de colonização da América. Só nos arriscamos a seguir avante nessa ponderação, diante dos vários indícios que o pujante Diccionario nos oferece quanto aos diversos sentidos de modernidade no Novo e no Velho Mundo.
As análises dos termos história e república, especialmente, nos conduzem a tais questionamentos. Quanto ao primeiro, Guillermo Zermeño Padilha, autor da vigorosa síntese transversal, parte da premissa de que o termo é, em si mesmo, um conceito de temporalidade, e nos apresenta uma irretocável discussão historiográfica sobre sua relação com a construção da modernidade como uma ruptura temporal. Ao analisar os usos do vocábulo, arrisca marcar uma diferença estrutural na emergência de seus significados entre a Europa e a Ibero-américa. Na primeira, eles se articulariam a um processo de reflexão interna dos letrados, autorreferente em relação ao seu passado e consequentemente ao seu futuro – é notável como nos verbetes sobre Espanha e Portugal, de autoria de Pedro José Chacón Delgado e de Sérgio Campos Matos, respectivamente, as independências da América não parecem exercer nenhuma influência na ressignificação do conceito. No Novo Mundo, no entanto, o uso da palavra não resulta de algo imanente, e seu futuro se apresentaria, nas palavras do próprio Zermeño, “como um cheque em branco ao portador” (p.576). Seguindo sua cautelosa análise, seria mesmo excessivo afirmar que na Ibero-américa não teria existido um campo de “espaço de experiência” aos moldes koselleckianos; mas a tarefa de edificação dos novos Estados nacionais, aliada à negação/incorporação do passado colonial, teve, evidentemente, impasses particulares. O que serve para explicar a sensação de desconforto no esforço de construção de histórias locais americanas, desde meados do XVIII, e mesmo na emergência de crítica à condição colonial que, no mesmo período, extrapolavam a ela.
O termo república igualmente explicita grande parte dos desafios impostos aos coevos quanto à construção do futuro. Conforme analisado por Georges Lomné a partir dos verbetes específicos, é um equívoco associar seu uso apenas a uma forma de governo, conforme praticaria a historiografia posteriormente e que, no caso do Brasil, persistiria em vê-lo apenas como uma completa exceção. O que significa dizer que, nem mesmo onde acabariam por vigorar sistemas republicanos, o sentido do termo não se impõe necessariamente desde sempre – veja-se como no caso da Ata Constitutiva dos “Estados Unidos Mexicanos”, em 1824, o termo usado é “federação” e não “república” (conforme demostra Alfredo Ávila p.1339). Em, Portugal, de outro modo e na mesma época, se podia falar da “monarquia como a melhor das repúblicas” (Rui Ramos, p.1361). A matização do modelo norte americano como base para o significado do termo vem associada à exploração de sua associação aos sistemas representativos opostos à democracia, com a defesa da importância que a invenção republicana ibero-americana teve na sua ressignificação em todo mundo ocidental. Talvez por isso, Lomné não enfatize suas representações vinculadas às leituras e imagens da antiguidade, conforme destacam Gabriel Di Meglio (p.1272) e Alfredo Ávila (p.1333), para os casos da Argentina e do México, respectivamente.
A chave da projeção republicana como utopia de futuro é uma das mais contundentes para que se revalorize as clivagens estruturais entre esses mundos unidos pelo Atlântico. Vale dizer que várias das análises dos conceitos aqui apresentadas apontam para evidentes diferenças na sua utilização nos distintos hemisférios, conforme já indicado por nós. No entanto, república carrega para os americanos uma questão de fundo, que se generaliza amplamente em meados do século XIX: o da sua incompletude. Era dessa forma que Juan Batista Alberdi, em 1852, e uma vez derrotado Juan Manuel Rosas na Argentina, sustentava que:
la república deja de ser una verdade de hecho em la America del Sur, porque el Pueblo no está preparado para regirse por esse sistema (Apud Di Meglio, p.1278) Ou seja, para além da dimensão utópica comum à modernidade ocidental, faz-se presente um sentido de travamento em sua efetivação, por condições objetivas que, de uma forma ou de outra, remontam à história da América, dos seus homens e da sua sociedade. Não é de se espantar que mesmo o “progresso” pudesse aparecer, por vezes, como “decadência” (Zermeño, p.568), ao lado da sempiterna esperança de se alcançar os melhores frutos da civilização. Noção não apenas dos coevos, mas que engendrou raízes na modernidade pelas nossas bandas do mundo. Questão que, como outras, a magnitude do presente Diccionario nos permite pensar.
Andréa Slemian – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: slemian@unifesp.br
SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano. Madrid: Ministerio de Cultura, 2009. Resenha de: SLEMIAN, Andréa. Unidade e diversidade das experiências políticas no mundo iberoamericano: Iberconceptos, 1750-1850. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 160-167, jan./jun., 2012.
Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil: textos e silêncios – NUCCI (A)
NUCCI, Priscila. Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil: textos e silêncios. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: RAMOS, Alexandre Pinheiro. Antíteses, v.5, n.9, p.475-479, jan./jul. 2012.
A palavra japonesa hedatari significa “distância”, mas ela também expressa a forma como as relações interpessoais são construídas e afetadas pela distância física entre os indivíduos bem como as subjetividades encerradas em tais relações. Para os japoneses, a distância interpessoal exprime tanto o eventual reconhecimento dos diferentes níveis sociais dos quais os interlocutores fazem parte como uma atitude de reserva ou estranhamento diante de um desconhecido ou pessoa com a qual não se possui muita intimidade. A distância espacial entre os agentes é, assim, variável, pois está relacionada às circunstâncias subjetivas dos encontros – os japoneses alteram “as distância interpessoais conforme avaliações momentâneas de intimidade, reserva, superioridade ou inferioridade, e assim por diante” (Tada, 2009, p. 54). Situação distinta, por exemplo, do comportamento brasileiro, onde a eliminação ou diminuição da distância física – através de apertos de mão, abraços ou beijos no rosto – é, muitas das vezes, o primeiro passo para o engajamento dos indivíduos em uma relação social. Ora, se for possível, a partir daí, fazer uma analogia com a maneira como os pesquisadores relacionam-se com possíveis objetos de estudo, então não soará estranho dizer que, no tocante ao tema do racismo antinipônico no Brasil, nossos intelectuais apresentaram uma “postura japonesa”: o princípio da hedatari, da manutenção da distância diante do desconhecido, passou a informar, após a década de 1940, o modo como aqueles lidaram com a questão do antiniponismo – é o que se pode depreender, dentre outras questões, da leitura do livro de Priscila Nucci. O livro trata da questão do racismo contra os japoneses no Brasil, tomando como objeto privilegiado de análise os intelectuais que, sobretudo nas décadas de 1930 e 1940, envolveram-se em debates acerca da presença daqueles no país. Antes, porém, de proceder ao tratamento mais pormenorizado do conteúdo da obra, acredito ser importante ressaltar não só a iniciativa da autora em trazer à discussão um tema que, como apontado em vários momentos ao longo do texto, ficou por vários anos sob um ângulo morto – em silêncio, para retomar o propício subtítulo do trabalho –, mas também pelo fato deste ser um daqueles livros cujo mérito encontra-se relacionado, também, ao fato de não se deixar limitar pelas divisões entre os campos disciplinares: no prefácio, Elide Rugai Bastos aponta como a temática do livro é “objeto de reflexão nos campos da teoria política, sociologia, antropologia, filosofia do direito, para citar alguns” (Bastos, 2010, p. 16), com o que estou de acordo e prossigo: Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil pode ser lido como um estudo de história intelectual ou de pensamento social; é um trabalho que trata do tema do racismo em determinado momento histórico e da história das ciências sociais no Brasil. Isto pode ser verificado pela forma como a autora constrói seu texto e utiliza as fontes selecionadas, articulando-as com a devida contextualização do tempo e do espaço, ou seja, suas análises acerca dos debates intelectuais travados, por exemplo, durante a Constituinte de 1933-1934 e em periódicos (jornais e revistas especializadas) mostram a relação entre as ideias expressas e o contexto histórico bem como os lugares de onde tais ideias partiram e a maneira como eles transformaram-se em elementos de importância crucial nos processos de legitimação, crítica ou desqualificação daquilo que era debatido. Além disto, ao debruçar-se sobre a produção de Emilio Willems, intelectual privilegiado em seu trabalho, Priscila Nucci analisa ideias e conceitos caros à produção sociológica deste autor (aculturação, assimilação), enriquecendo a compreensão das obras de uma das principais figuras do processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil. O livro possui três capítulos através dos quais a autora busca explorar os textos referentes à presença dos imigrantes japoneses no Brasil e os silêncios acerca do racismo contra os mesmos – enquanto os textos (artigos e livros) estendem-se por toda a pesquisa, fornecendo o material (ideias, argumentos) sobre o qual incidem as análises, os silêncios surgem a partir de determinado momento como uma névoa a encobrir aquilo que era, até então, visível, e conferem substância a uma ausência que se torna palpável em vista do tipo de reflexão empreendida pela autora, prospectiva ao invés de retrospectiva. O primeiro capítulo, “Mapeamento de um Tema”, apresenta a questão do racismo antinipônico, expresso de modo mais enfático em uma série de artigos e livros publicados entre nas décadas de 1930 e 1940, e a constatação da lacuna existente sobre tal assunto – por meio do levantamento crítico da bibliografia que abordou direta ou tangencialmente a questão – entre a década de 1940 e a década de 1980, quando surgiram trabalhos sobre o período Vargas que abordavam, dentre outros temas, o antiniponismo. Sublinha, aqui, a autora o fato de que, neste ínterim, os estudos sobre os japoneses no país centraram-se em aspectos internos deste grupo (relações interna, cultura) e sua inserção na sociedade brasileira (os “casamentos interétnicos”, ascensão sócio-econômica), estando de acordo com um tipo sociologia e antropologia praticada no Brasil cujas origens estavam na Universidade de São Paulo e na Escola Livre de Sociologia e Política. Ainda assim, Priscila Nucci não se furta a criticar tal postura, pois “sem se levar em consideração o racismo sofrido por eles, significa ignorar a própria dimensão histórica da vivência dos japoneses e seus descendentes no Brasil, silenciando um tema crucial para a compreensão dos modos de inserção do grupo no país” (p. 37).
O segundo capítulo, “O antiniponismo brasileiro”, busca reconstruir o debate relativo à imigração japonesa, localizando-se aí os dois lados conflitantes: de um lado, os intelectuais antinipônicos, e do outro, os pró-nipônicos. Em um primeiro momento, a autora aborda, prospectivamente, os embates ocorridos entre os representantes destas posições no período da Constituinte de 1933-1934, utilizando os discursos parlamentares do advogado pró-nipônico Morais Andrade e seus principais antagonistas, os médicos Xavier de Oliveira e Miguel Couto e o sanitarista Arthur Neiva. A ênfase da análise recai nos discursos destes, onde a autora demonstra a posição racista destes personagens, ainda que buscassem, constantemente, negá-la, localizando o racismo fora do Brasil, ou seja, racismo era aquilo que acontecia, por exemplo, na Alemanha nazista. Em suas falas, o conhecimento científico da época (psiquiátrico, médico, eugênico) representado por autores estrangeiros e nacionais – aqui, Oliveira Vianna torna-se uma referência fundamental – era utilizado como argumento de autoridade para afirmar que os japoneses eram “inassimiláveis do ponto de vista antropológico, e principalmente do ponto de vista psíquico” (p. 79), e assim dar um aval pretensamente objetivo às restrições e ações contra a imigração japonesa – a presença e aceitação destas ideias, sem dúvida tributárias do prestígio de seus produtores e dos locais de produção, pode ser verificada na criação do Conselho de Imigração e Colonização (CIC), em 1938, a qual contou com uma publicação oficial, a Revista de Imigração e Colonização. Algumas ideias foram utilizadas, posteriormente, por Vivaldo Coaracy, que escreveu uma série de artigos no Jornal do Comércio publicados na forma de livro, em 1942, com o título O Perigo Japonês. Ao debruçar-se sobre este material, a autora mostra, por um lado, como o discurso racista achava-se rotinizado nos meios intelectuais brasileiros, e por outro, como o racismo antinipônico tornou-se mais virulento diante da participação do Japão na II Guerra Mundial, pois, naquele momento, os japoneses foram tratados como uma ameaça ainda maior à nação brasileira: de elemento “inassimilável”, foi transformado em inimigo do país, da “civilização” da qual este fazia parte e, finalmente, da humanidade, devendo, por isto, ser exterminado. O lado pró-nipônico é representado, no livro, pela atuação do advogado Morais Andrade no período de Constituinte e pelo médico Bruno Álvares da Silva Lobo, que publica, em 1935, o livro Esquecendo os antepassados, combatendo os estrangeiros como resposta aos antinipônicos da Constituinte, denunciando o racismo subjacente em suas falas e ideias a despeito dos esforços daqueles em mostrarem o contrário. A participação de ambos em um debate que extrapolou o período de 1933-1934 deu-se, como mostra a autora, através da refutação dos argumentos contrários à imigração japonesa e, em seguida, da defesa desta e dos benefícios que trariam para o país, também por meio do recurso ao argumento de autoridade fornecido pela ciência, aqui representado pelas referências aos estudos de Roquette-Pinto e Gilberto Freyre. O terceiro capítulo, “Novos paradigmas…”, ocupa-se com o estudo dos textos (da década de 1940) de Emilio Willems, Hiroshi Saito, Donald Pierson e Egon Schaden, mas a ênfase recai, principalmente, sobre a produção intelectual do primeiro. Ao lançar mão de livros e artigos publicados nas revistas Sociologia, Revista de Antropologia e Revista de Imigração e Colonização e no jornal O Estado de São Paulo, Priscila Nucci oferece uma análise multifacetada a qual se beneficia do espaço intermediário onde seu objeto é construído: os textos sobre a imigração japonesa estão articulados à institucionalização das ciências sociais e ao consequente abandono, em tese, da mistura entre política e ciência além de oferecerem o ponto de partida para a análise de algumas questões centrais da sociologia de Willems, tais como os conceitos de assimilação e aculturação e sua preocupação na elaboração de estudos com alto rigor científico e sem pretensões legisladoras. Mas, sem dúvida, um dos grandes benefícios desta posição fronteiriça do objeto, somada à perspectiva de estudo adotada pela autora, é a maneira como a década de 1940 apresenta-se como um período de transição para os trabalhos relativos à imigração japonesa, pois é o momento no qual, com possibilidades crescentes de estudo do racismo antinipônico no Brasil (agora baseados em nova metodologia científica e em pesquisa empírica), este tema vai perdendo força e sendo substituído por outras preocupações advindas desta mesma transformação sofrida pelos estudos sociológicos e antropológicos. Embora alguns trabalhos de Emilio Willems já apontassem indícios de discriminação racial contra os japoneses, e seus artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo e na Revista de Imigração e Colonização – principal ambiente do racismo antinipônico – deixassem explícito seu posicionamento contra o racismo científico praticado pelos intelectuais brasileiros, isto não foi o suficiente para que os cientistas sociais se voltassem para este tema – com exceção, talvez, de Egon Schaden, que em artigo publicado na revista Sociologia, chamou a atenção, através dos estudos de Willems, para o antiniponismo. Contudo, como demonstra a autora, quando não era aceita a ideia de que no Brasil não havia preconceito racial, e sim de classe – como defendido por Donald Pierson, colaborador fixo da Sociologia – a questão do preconceito não abarcava aos grupos de estrangeiros no país, limitandose, sobretudo, à população negra; além disto, o abandono (benéfico) do conceito de raça, bem como sua desqualificação, sendo, assim, substituído pelo de cultura, acabou por contribuir para a perda do foco sobre o racismo contra os estrangeiros imigrados. A denúncia do racismo, em sua forma “científica” ou não, foi enfraquecida, curiosamente, por aquilo mesmo que poderia fortalecê-la, e os intelectuais brasileiros distanciaram-se do problema do antiniponismo. Para finalizar, gostaria de fazer uma última consideração relacionada a alguns aspectos da reconstrução do debate sobre a imigração japonesa e seus envolvidos. Através da análise do material selecionado, a autora conseguiu localizar a atuação e o embate entre duas “comunidades argumentativas” (Pocock, 2003) envolvidas com a discussão de um tema em comum, mostrando, assim, não só a forma como construíam e lançavam no meio intelectual suas ideias, mas também as estratégias adotadas pelos participantes ao responder e refutar os argumentos contrários, valendo-se, para isto, de seu prestígio e posições nos lugares de saber, o que lhes fornecia tanto proeminência nos debates – a atenção que recebiam por parte do público que os acompanhava – como a legitimidade de suas posições. As disputas simbólicas empreendidas pelos intelectuais antinipônicos e pró-nipônicos, por um lado, revelam a dinâmica e os elementos (os discursos parlamentares, livros, artigos em jornais e revistas, as próprias revistas) constitutivos do ambiente intelectual e político em determinado período da história republicana brasileira, mostrando como há uma relação bastante estreita entre ambos ao ponto de sua influência recíproca refletir-se, de algum modo, na organização social – não há como não pensar, aqui, na dupla hermenêutica de Anthony Giddens (2003) diante da apropriação, por parte da sociedade, daquilo produzido pelos intelectuais e que acaba por reentrar na vida social, pois os significados e interpretações produzidos por eles incorporam-se nas relações entre as pessoas e nas instituições. Por outro lado, elas apontam para as formas como transformações no contexto intelectual tomam corpo através, neste caso, da relação direta entre ideias e seu espaço de produção, ou seja, a mudança na percepção do racismo antinipônico achava-se diretamente ligado ao processo de institucionalização das ciências sociais. A localização deste turning point, que esclarece e justifica o vazio bibliográfico entre 1940-1980, indica, assim, os rumos tomados pela discussão da imigração japonesa a qual não se manteve igual e sofreu com os efeitos do contexto nacional e internacional, e os efeitos, ainda que não intencionais, da busca pela separação entre ciência e política. Neste sentido, o que gostaria de sublinhar é a possibilidade de, por meio do estudo de um objeto em particular (o racismo antinipônico) e bem localizado (no campo intelectual brasileiro nas décadas de 1930 e 1940), verificar: os modos como os intelectuais – em grupo ou não – atuavam e se expressavam, em determinado momento, construindo um determinado vocabulário, cujos elementos são apropriados ou mudam de sentido, que permite a identificação dos participantes entre si – e ao pesquisador, a identificação dos grupos envolvidos – e as mudanças que informam ou são provocadas pela atuação intelectual. Ao localizar o debate intelectual e seus participantes, torna-se possível rastrear, a partir deles e dos conteúdos de seus textos, sejam as relações destes com as instituições das quais fazem parte ou com outros intelectuais ou grupos.
Alexandre Pinheiro Ramos – Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Núcleo de Pesquisas em Sociologia da Cultura (NUCS/IFCS/UFRJ). Bolsista CAPES.
Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944) – De LUCA (RBH)
De LUCA, Tania R. Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil (1916-1944). São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 357p. Resenha de: NEVES, Livia Lopes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.63, 2012.
A autora Tania Regina de Luca, que é pesquisadora reconhecida no campo intelectual nacional e internacional, graduou-se em História na Universidade de São Paulo, instituição na qual obteve o título de mestre e doutora em História Social. Sua trajetória afina-se com as discussões relativas à História do Brasil República, e sua atuação profissional envolve principalmente os seguintes temas: Historiografia, História da Imprensa, História Social da Cultura e História dos Intelectuais. A imprensa na Era Vargas tem sido seu foco de pesquisa atualmente, tema esse contemplado em parte por seu livro recém-lançado e objeto da presente resenha. Se seus estudos muitas vezes fizeram referência à Revista do Brasil, como em Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil, a autora não deixou de dar continuidade a seus trabalhos anteriores de forte teor metodológico acerca do trato com o periodismo cultural brasileiro, e o que de fato se agregou ao debate foi o estudo de outras publicações de cunho cultural, o que proporcionou uma visão ampla acerca da produção intelectual do período veiculada por esse suporte. Tal acréscimo permite também a discussão sobre as leituras e os projetos do e para o Brasil, tanto políticos como culturais, que agregaram parte dessa intelectualidade envolvida com tais empreendimentos editoriais.
Ao longo do texto a autora frisa a importância de atentarmos para o percurso metodológico que orientou sua análise, o qual, segundo ela, representa uma colaboração para a construção de uma forma específica de abordagem dos impressos. As contribuições, dessa maneira, seriam dadas por conta de alguns aportes metodológicos, como por exemplo, atentar para a dinâmica dos grupos intelectuais, para os aspectos relativos ao suporte, e também para as apresentações de ordem material e tipográfica (capa, papel, ilustração, propaganda, paginação). Todos esses elementos, de maneira geral, já haviam sido objeto de reflexão da autora, figurando entre as importantes contribuições para estudos dessa natureza no campo da história. Além dos citados, ganharam destaque em sua análise fontes que colaboraram para a apreensão das relações e atuações dos editores e mentores das publicações: as correspondências, as memórias e as produções autobiográficas.
A soma dessas frentes de pesquisa, anunciada na introdução do livro, demonstra de antemão a amplitude da proposta da autora, que estabeleceu diálogo profícuo com autores que se propuseram a discutir as sociabilidades intelectuais, o campo intelectual (brasileiro ou não) e as relações que aproximaram ou distanciaram os intelectuais e o Estado, como Sirinelli (1990), Pluet-Despatin (1992), Bomeny (2001), Miceli (2001) e Candido (2001), ou com autores que, assim como ela, ofereceram aportes para a análise de jornais e revistas, como Doyle (1976), Prado e Capelato (1980), e mesmo com os que se debruçaram sobre publicações específicas, como Boaventura (1975), Caccese (1971), Guelfi (1987), Lara (1972), Leonel (1976), Napoli (1970) e Romanelli (1981), entre outros.
Estruturado em quatro capítulos que seguem cronologicamente as fases mais expressivas de sua publicação o livro confronta a Revista do Brasil às demais revistas coetâneas. Pareceu ser essa uma boa forma de se aproximar de um panorama editorial – ainda que sobremaneira calcado na retomada das mais destacadas revistas da época, certamente as mais estudadas atualmente – que consistiu em uma grande revisão bibliográfica sobre cada uma dessas publicações e na consulta a diversas fontes periódicas orientada por um olhar mergulhado em novas preocupações. Ao somar os estudos das fontes aqui citadas, De Luca nos apresenta uma obra enriquecida e madura, que evidencia a importância de se atentar para as redes de sociabilidade intelectuais e para a fluidez do campo intelectual, bem como para o impacto de um elemento sobre o outro.
No primeiro capítulo, “A Revista do Brasil (primeira e segunda fases) e os periódicos modernistas”, a autora procurou articular as fases iniciais da revista com as publicações modernistas fundadas a partir de Klaxon, realizando a análise com dupla perspectiva: da sincronia e da diacronia, sendo a primeira responsável por dar conta do momento da publicação de cada fase da Revista do Brasil e do diálogo com as congêneres contemporâneas. A segunda perspectiva ocupou-se das diferentes fases e de suas possíveis articulações. Para tanto, a autora elaborou um gráfico (reproduzido no livro entre as páginas 69 e 70), no qual apresenta uma seleção das revistas literárias e culturais em circulação entre o lançamento da Revista do Brasil, em janeiro de 1916, e meados da década de 1940, quando do encerramento de sua quarta fase. Nesse capítulo ganham destaque: Novíssima, Estética, A Revista e Terra Roxa e outras terras.
Já no segundo capítulo, nomeado “Revistas literárias e culturais (1927-1938)”, a autora nos traz uma visão panorâmica percebendo que em termos de longevidade, até o início da década de 1930 continuaram a ser fundadas revistas de breve duração – à exceção da Revista Nova, que circulou durante mais de um ano –, Verde, Festa, Revista da Antropofagia, Movimento Brasileiro, Boletim de Ariel, Revista Acadêmica, Lanterna Verde, Dom Casmurro, Diretrizes, Cultura Política e Movimento Brasileiro recebem uma análise não muito minuciosa, conforme previamente anunciado pela autora ainda no título. Nesse capítulo foram discutidos, do mesmo modo, aspectos como o alinhamento de projetos editoriais a tendências políticas e a elementos do mundo editorial na conjuntura do pós-1930, encerrando discussões sobre as condições do exercício da atividade intelectual e a proliferação de editoras no Brasil. A autora promove, de forma bastante pertinente, o debate sobre a censura à imprensa e o alinhamento de periódicos à plataforma governista durante o Estado Novo e defende uma análise historiográfica que priorize a dinâmica de posicionamentos em detrimento de rótulos unidimensionais, o que, via de regra, anula uma série de complexidades que envolvem os empreendimentos editoriais.
“Revista do Brasil (3ª fase): inserção no mundo letrado, objetivos, características e conteúdo” é o título do terceiro capítulo, que trata da retomada da publicação da Revista do Brasil em julho de 1938, com sua diversidade de assuntos e a preocupação com problemas nacionais, ainda que se explicitasse como um projeto cultural de corte elitista.
No quarto e último capítulo, intitulado “A Revista do Brasil e a defesa do espírito”, é retratado o momento em que a publicação voltou a circular, período marcado pela ascensão das forças autoritárias na Europa e do Estado Novo no Brasil, o que gerou limitações impostas à liberdade de expressão por parte do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Ao atentar para o fato de que as práticas liberais, o individualismo e a democracia eram aspectos defendidos por vários articulistas da revista, De Luca destaca a especificidade da publicação em questão frente a algumas coetâneas, quadro que se alterou após 1942 com a adesão brasileira à política pan-americana.
O que se apresenta em Leituras, projetos e (Re)vista(s) do Brasil é um método de análise novo e frutífero, capaz de esclarecer o lugar ocupado pela publicação na história da imprensa, especialmente com base em alguns diálogos com as congêneres contemporâneas, o que demandou, segundo De Luca, que se aliassem sistemáticas consultas às coleções citadas à leitura e ao estudo de outras fontes, sobretudo as advindas do que se convencionou chamar de ‘escritas de si’.
Sentiu-se certamente a ausência de imagens relacionadas ao tema e aos periódicos recorrentemente citados, o que enriqueceria a obra e poderia angariar, talvez, um público leitor mais amplo que o acadêmico. A iniciativa de dinamizar a leitura disponibilizando no site da Editora uma série de tabelas produzidas ao longo da pesquisa, conforme consta na nota dos editores presente no livro, mostrou-se pouco eficiente tendo em vista a dificuldade em encontrá-las de fato. Mais interessante seria que essas tabelas constassem na obra e acompanhassem a linha de pensamento desenvolvida, clarificando muitos dos nós relacionados ao objeto de estudo do livro.
Destarte, a contribuição que pode ser apreendida a partir desse trabalho reside, a meu ver, na aplicação metodológica plural que propôs a agregação de aportes que tratam do estudo de periódicos como objeto e fonte, desde os primeiros estudos gerais sobre periódicos – empreendidos sob a coordenação do professor José Aderaldo Castello, que estribou sua pesquisa preferencialmente nos acervos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) – aos obtidos a partir da renovação das práticas historiográficas, que vislumbram a importância do estudo do periodismo cultural cotejado com outras fontes, como as iconográficas, epistolares, os relatos memorialísticos e autobiográficos.
NEVES, Livia Lopes.- Mestranda do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CNPq. [endereço] livialneves@hotmail.com.
Memoria Americana | UBA | 2012
Memoria Americana. Cuadernos de Etnohistoria (Buenos Aires, 2012-) es una publicación que edita la Sección Etnohistoria del Instituto de Ciencias Antropológicas de la Universidad de Buenos Aires. Se trata de una Revista Científica de aparición semestral on-line cuyos fascículos son publicados los meses de mayo (primer semestre) y noviembre (segundo semestre).
Publica artículos originales de investigación de autores nacionales y extranjeros en el campo de la etnohistoria, la antropología histórica y la historia colonial de América Latina, con el objetivo de difundir ampliamente los avances en la producción de conocimiento de esas áreas disciplinares. Sus contenidos están dirigidos a especialistas, estudiantes de grado y posgrado e investigadores de otras disciplinas afines. […]
El propósito de esta publicación es difundir trabajos de investigación de especialistas -formados y en formación, nacionales y extranjeros- que aporten avances sobre las distintas problemáticas que son objeto de atención de nuestra disciplina: las sociedades indígenas en etapas previas y posteriores a la conquista, los cambios, transformaciones y continuidades en sus formas de organización social, política y económica; los procesos de conformación de las sociedades coloniales en hispanoamérica; los conflictos, rebeliones y disputas que enfrentaron a distintos actores sociales en diferentes coyunturas políticas y económicas; las instituciones sociales, políticas, económicas y religiosas del mundo colonial y del período independiente, etc.
Estos problemas son abordados tanto a través de planteos teóricos y metodológicos como de estudios de caso que responden a diferentes regiones, áreas o jurisdicciones tales como el Tucumán colonial, el litoral, Chaco, Pampa-patagonia, el Surandino y comprenden períodos en estudio desde fines del siglo XV hasta el siglo XIX. Otros temas importantes que atraviesan la producción presentada son el mestizaje, la dinámica de la frontera, la formación de grupos de poder, la familia y el matrimonio tanto en el sector indígena como hispano-criollo. Los trabajos incluidos en los números ya publicados combinan una perspectiva doble de análisis, teórica y metodológica, proveniente de la historia y la antropología.
Periodicidade semestral.
Acess livre.
ISSN 1851-3751
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Monções | UFGD | 2012
A revista eletrônica Monções – Revista de Relações Internacionais da UFGD (Dourados, 2012-) tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento das Relações Internacionais e seus campos afins a partir da publicação de artigos inéditos submetidos por pós-graduandos ou pós-graduados.
O público alvo da Monções são pesquisadores, acadêmicos e público interessado nas áreas de Política Externas, Política Internacional, Integração Regional, Economia Internacional, Teoria das Relações Internacionais, História das Relações Internacionais, Organizações Internacionais, Meio Ambiente, Direitos Humanos, Direito Internacional e Dinâmicas da Fronteira, entre outras.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN [?]
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Cultura Histórica & Patrimônio | UNIFAL | 2012-2017
A revista Cultura histórica & Patrimônio (Alfenas, 2012-2017) é um periódico do curso de História da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), de periodicidade semestral, dedicado à publicação de artigos originais, resenhas de livros e entrevistas da área de História, com ênfase para a produção acerca da Cultura histórica, do Patrimônio, da Educação histórica e da História pública.
Periodicidade semestral
Acesso livre
ISSN 2316 5014
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História, Natureza e Espaço | NIESBF | 2012
Educação Histórica | UFPR | 2012
A Revista de Educação Histórica (Curitiba, 2012-) é um Periódico do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica da Universidade Federal do Paraná – LAPEDUH/UFPR. É produzida por professores e destinada a professores de História. Ter como referência o diálogo respeitoso e compartilhado entre a Universidade e a Escola Básica. Colaborar na produção, distribuição e consumo do conhecimento na área da Educação Histórica, pautada na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Periodicidade quadrimestral
Acesso livre
ISSN: 2316-7556
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Participação e representação sociopolítica / Ágora / 2012
Participação e representação sociopolítica / Ágora / 2012
Apresentação indisponível na publicação original
[DR]Dinâmica socioeconômica do sertão / Ágora / 2012
Dinâmica socioeconômica do sertão / Ágora / 2012
Apresentação indisponível na publicação original
[DR]Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos | Cyril Lionel Robert James
I. Sobre o Sr. Cyril Lionel Robert James [2]
O historiador, romancista e jornalista Cyril Lionel Robert James nasceu em janeiro de 1901 na ilha de Trinidad. Teve uma infância e juventude privilegiada, marcada por uma excelente formação escolar e pela prática esportiva do cricket. Com apenas 19 anos deu início a sua carreira docente, lecionando literatura, na Royal Queen’s College.
Em 1932, aos 31 anos, muda-se para a Grã-Bretanha, devido a sua paixão e conhecimento sobre cricket tornasse repórter esportivo do Manchester Guardian. Na terra da rainha, filia-se ao Partido Trabalhista Independente, (Independent Labour Party) e, em 1938, aderiu a IV Internacional Comunista, entrando em contato, mais intensamente, com as ideias de Leon Trotsky.
É notória a influência que as teses marxistas, em especial as interpretações trotskista, exercerão em suas obras “A Revolução Mundial 1917-1937”, publicada em 1937, e os “Jacobinos negros” de 1938. Vale destacar, que nesse período, a Europa passava por grande instabilidade política, devido à ascensão do nazi- -fascismo e pelo totalitarismo stalinista na URSS.
Por conta da Segunda Guerra Mundial, James refugia-se nos Estados Unidos, onde deu prosseguimento a suas atividades acadêmicas e políticas. Membro fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party ou SWP) publicou em 1948 o manifesto “Uma resposta revolucionária ao problema do negro nos Estados Unidos”.
Devido a sua militância, em 1953, James foi expulso dos Estados Unidos. Ele decidiu voltar à Inglaterra, onde permaneceu até 1958, quando, então, retorna a Trinidad. Em sua terra natal, envolve-se na luta pela libertação anti-colonialista britânica. Ainda na década de 1950 publica a obra “Navegantes, Renegados e Náufragos: Herman Melville e o mundo em que vivemos” em 1953.
A década de 1960 foi bem movimentada para o nosso autor, no campo político James se envolve nos movimentos de independência na África e em Trinidad, é entusiasta dos ideais do Pan-Africanismo e da integração das ilhas caribenhas em uma – Federação das Índias Ocidentais.
No tocante a carreira acadêmica e produção intelectual publica em 1960, “Política Moderna”, em 1962, “Partidos Políticos Livres nas Índias Ocidentais” e, em 1963, “Além da Fronteira”. Em 1968, vem o convite para lecionar na prestigiada Universidade de Columbia nos Estados Unidos.
Durante a década de 1970, James retorna para a Inglaterra e ainda encontra fôlego para publicar “Nkruma e a Revolução de Gana” em 1977. Na década de 1980 retorna para Trinidad aonde veio a falecer em 1989, deixando como legado, uma produção acadêmica respeitada e de referência para estudos nas ciências humanas, bem com, um exemplo de vida marcado pela entrega a militância e a seus ideais.
II. Sobre a obra: Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos
Em 1938 James, residindo em Londres, publica “Os jacobinos negros” (The black jacobins), a obra trás questões referentes à revolução negra de São Domingos e a sua relação com a sua principal liderança: Toussaint L’Ouverture. No Brasil o texto terá sua primeira tradução apenas em 2000, feita por Afonso Teixeira Filho, com uma edição revisada em 2007 pela Editora Boitempo. Em suas 400 páginas a estrutura física do livro está dividida em 13 capítulos acompanhados de um apêndice intitulado “De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”.
Para maior compreensão do livro, temos que levar em conta o contexto em que foi escrito: descrédito do liberalismo, auge do nazi-fascismo e predominância das teorias eugênicas. Tal cenário acabou motivando o autor a escrever um texto, que denunciava o estado de opressão em que vivam os africanos e seus descendentes, seja na África ou em outras partes do globo, tornando a posteriori leitura obrigatória para estudos sobre a diáspora Africana.
Embora o ano de publicação date de 1938 James já havia escrito sobre o assunto antes, em 1932. O trabalho de levantamento bibliográfico e de fontes foi grandioso, sendo necessário até “importar da França livros que trataram seriamente desses eventos tão célebres na história daquele país.” [3]. A pesquisa também contou com correspondências e relatórios oficiais, compêndios de história do comercio colonial, narrativas de viajantes, dados estatísticos e biografias.
Ainda no tocante a função social da obra e sua importância para a interpretação histórica, James nos aponta, que a grande virtude contida no “Os jacobinos negros” é a ênfase dada ao protagonismo dos escravos no processo revolucionário, nas palavras do autor: “foram os próprios escravos que fizeram a revolução.” [4] , tendo especial destaque a figura do líder do movimento – “foi quase totalmente trabalho de um único homem: Toussaint L’Ouverture” [5] .
III. A tese central
A viabilização da revolução no Haiti deve-se, em parte, ao fato dos escravos já se encontrarem, em certa mediada, organizados e disciplinados, devido o sistema fabril, já implantada, no século XVIII, nas lavouras da ilha. Para o autor:
Trabalhando e vivendo juntos em grupos de centenas nos enormes engenhos de açúcar que cobriam a Planície do Norte, eles estavam mais próximos de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores daquela época, e o levante foi, por essa razão, um movimento de massas inteiramente preparado e organizado [6]. (Grifo nosso)
Observa-se que para o autor, já no século XVIII, havia entre os escravos do Haiti uma consciência de classe, que os permitiu se organizarem para combater a exploração colonial. Deve-se destacar também, que os revoltosos tinham o desejo de libertar-se da tirania a que eram submetidos, deste modo, se insurgiam contra os maus tratos, ainda nos navios negreiros – “Morriam não apenas por causa do tratamento, mas também de mágoa, de raiva e de desespero. Faziam longas greves de fome; desatavam as suas cadeias e se atiravam sobre a tripulação numa tentativa inútil de revolta.” [7]
III. Leitura Marxista Revolta escrava ou uma luta de classes?
Mesmo para os leitores que não tem contato com a biografia de James, a terminologia empregada por ele, deixa claro que se trata de uma leitura fundada no marxismo. Não são poucos os conceitos empregos em seu texto: proletariado, imperialismo, luta de classes, revolta das massas trabalhadoras, exploração dos escravos, dos trabalhadores – constituem a interpretação dado pelo nosso autor para o problema em que se dispões a analisar além das citações a Lênin e a Trotsky.
É possível afirmarmos, diante do seu livro, bem como de sua biografia, que James, como filiado ao Partido Trabalhista Independente, militante da IV Internacional, fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) e integrante ativo de diversos movimentos sociais, de que demarcou sua interpretação sobre a História a partir de sua leitura da “teoria da revolução permanente” proposta por Leon Trotsky.
Respondendo a questão feita acima, se partirmos da leitura de nosso autor sobre o fato histórico que ocorreu no Haiti, foi à demonstração de uma luta de classes. Tal leitura recebeu diversa criticas, uma das mais conhecidas no Brasil foi feita pelo professor Dr. Jacob Gorender
As rebeliões, no começo do século XIX, no continente americano, só podiam ter caráter antiescravista e anticolonialista. No mundo atual, o cenário internacional é sacudido pelas lutas anticapitalistas e antiimperialistas. Trata-se de etapas históricas profundamente diversas. Não obstante, o anacronismo não prejudica o texto que se segue ao Preâmbulo.[]8
Não podemos deixar de mencionar a crítica feita pelo professor Jacob Gorender ao preâmbulo datado de 1980, em que James liga as rebeliões escravas no Haiti com as lutas operárias do século XX cometendo aquele que é considerado o maior dos pecados para o historiador: o Anacronismo. Todavia dentro de uma abordagem histórica e social, entendemos que devemos contextualizar o autor e sua obra com sua leitura de vida, nos parece que a escrita de “Os jacobinos negros” e o prefácio de 1980, antes de um texto acadêmico é um esforço militante, que tem como pretensão denunciar, conforme o próprio autor, a “perseguição e opressão” que vivem os africanos e os afro- descendentes.
VI. O caso Haiti
Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era parte integral da vida econômica da época, a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. A sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.[9]
Basta ligar a televisão, sintonizar o radio ou acessar a internet e entrar em contato com as notícias que vem do Haiti. Logo nos depararmos com as palavras: tragédia, caos, crise, fome, morte, doenças. Estas informações quando soam aos nossos ouvidos nos faz refletir – como uma colônia produtora de açúcar, café, anil, cacau, algodão, entre outros produtos, responsável por dois terços do comércio exterior da França, que em 1789, exportou 11 milhões de libras [10], fracassou no projeto de Estado-nação livre da miséria e das desigualdades? James propôs uma resposta.
Para o nosso autor, o fracasso do projeto Haiti não se deve apenas a falta de diversidade econômica, uma vez que, a produção primária dominava a paisagem, não havendo maiores perspectivas de geração de riqueza, em especial ao desenvolvimento industrial.
Na análise de James o isolamento ou quarentena imposta pelas potências imperialistas e até mesmo as nações latino-americanas, foram responsáveis pelo atrofiamento econômico da ilha caribenha, não permitindo o desenvolvimento de uma economia mais sólida, tendo por consequência o agravamento das desigualdades históricas já bem conhecidas pela massa trabalhadora do Haiti.
V. Considerações finais
Compreendemos o texto de Cyril Lionel Robert James, como sendo um esforço para responder questões que não se restringem somente ao caso da independência do Haiti, mas como uma leitura sobre a exploração do trabalho escravo e as formas de relação do sistema escravista e colonial na América.
Para finalizarmos, podemos dizer que ainda hoje, o texto serve como instrumento de análise para entendermos as relações de trabalho em muitos países latino-americanos, onde encontramos cada vez mais latente essa realidade apregoada pelo método capitalista de exploração, proposta pela manutenção dos grandes latifúndios, das monoculturas de exportação e da exploração da mão de obra dos trabalhadores do campo.
Notas
2. Informações extraídas da comunicação feita pelo doutorando, Unesp/Franca, Rubens Arantes no curso “A escravidão na cultura ocidental”; e pela comunicação de: SILVA, Tiago Hilarino Christophe da. Um marxista caribenho: o pensamento e a práxis de Cyril Lionel Robert James. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
3. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 11.
4. Idem, p. 14.
5. Idem, p. 15.
6. Idem, p. 99.
7. Idem, p. 23.
8. GORENDER, Jacob. O épico e o trágico na história Haiti. Estudos Avançados. V. 18, n. 50, 2004, p. 296.
9. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 15.
10. Idem.
Carlos Alexandre Barros Trubiliano1 – Doutorando em História Política da Universidade Julho de Mesquita (Unesp – Campus Franca)/ Bolsista FAPESP. E-mail: trubiliano@hotmail.com
JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 4, n. 7, p. 225-230, jan./jun., 2012.
História e Cultura | Unesp | 2012
História e Cultura (Franca, 2012-) é uma publicação eletrônica semestral, com números regulares anuais em março e em setembro, editada por discentes do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), com sede na cidade de Franca, São Paulo, Brasil.
Este periódico tem como objetivo principal divulgar pesquisas de pós-graduandos das diversas áreas do conhecimento, privilegiando aquelas que sejam de interesse ao campo da História ou que apresentem uma perspectiva historiográfica.
História e Literatura / Albuquerque: Revista de História / 2012
A revista Albuquerque cumpre mais uma vez o seu compromisso de divulgar a produção acadêmica de qualidade, representando a área de História e suas articulações com as demais Ciências Humanas. Nesta edição de número oito, em seu quarto ano de teimosa existência sob o seu formato em papel e a despeito das dificudades inerentes à publicação tradicional de artigos, a Albuquerque apresenta o dossiê História e Literatura.
Os trabalhos aqui publicados atenderam à chamada pública através de edital espefícico, submetidos à avaliação e aprovação de conformidde com os seus critérios e normas. Entretanto, neste caso, os responsáveis pela resvista se surpreenderam com o resultado desta chamada, prontamente atendida com a afluência de bons trabalhos e em quantidade que extapolou as expectativas desta edição.
Entende-se, dessa forma, que a Albuquerque se fortalece e se consolida, buscando sempre atrair os pesquisadores que elegeram a área da História para focar seus estudos e que escolheram também a forma convencional de revista acadêmica, editada como brochura. Isso não sinifica uma reação conservadora diante das ferramentas eletrônicas, das redes sociais e demais instrumentos de divulgação via internet que, sem dúvida nenhuma, socializam a produção científica de forma muito mais rápida e democrática. Muito ao contrário, acredita-se que em breve a Albuquerque será editada também em versão eletrônica, sem excluir a sua forma tradicional.
Como bem demonstram os artigos do dossiê que seguem publicados, a escrita, o texto e a literatura, expressada sob as suas mais diversas modalidades e através dos diálogos possíveis com a ciência da História, remetem à tradição da pena, do papel e da prensa que produziram epístolas, documentos, códices e livros. Essa tradição é ainda muito importante e o prazer que proporcionam aos leitores e pesquisadores jamais será superado pelas inovações tecnológicas por mais fantásticas que se apresentem.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.4, n.8, 2012. Acessar publicação original [DR]
Biopunk: DIY Scientists Hack the Software of Life | Marcus Wohlsen
O movimento punk emergiu na década de 1970, na América do Norte e na Inglaterra, em resposta às mudanças causadas pelas guerras e pelos rearranjos geopolíticos ocorridos na época. Teve como principais adeptos jovens londrinos, de famílias tradicionalmente operárias, ou que viram-se frustrados com as políticas conduzidas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Provocou rupturas estéticas e conceituais, buscando autonomia política e social. Cunharam o termo do it yourself (DIY) para propagar a ideia do faça-vocêmesmo.
Em contraponto da estética hippie que, uma década atrás, cultuava valores espitituais, ligação com a natureza e o viver em comunidade. O punk trouxe a estética do improviso, do escuro, do sujo, como representação da sociedade que, para o movimento, desprezava as práticas e os contextos que não se adequavam ao sistema capiltalista.
Quase meio século depois, na década de 2010, o conceito de punk é revisitado. Surge o biopunk: um movimento diverso que busca possibilidades de pesquisa, produção e engajamento em processos muitas vezes restritos aos moldes da comunidade científica contemporânea, fomentados em instituições de ensino e pesquisa tradicionais ou em grandes laboratórios.
Biopunk: DIY Scientists Hack the Software of Life (em tradução livre, BioPunk: Cientistas do faça-você-mesmo raqueando o software da vida) do jornalista científico Marcus Wohlsen, publicado em 2011, traz uma abordagem lúdica da ciência, enquanto relata experiências possíveis, aplicadas em laboratórios estabelecidos em cozinhas ou garagens. O livro reforça que biopunks não precisam de estruturas perfeitas ou honrarias acadêmicas pois estão focados a equacionarem suas pesquisas.
Wohlsen revisita a ciência como atividade secular, e afirma que o DIYbio (a ciência do faça-você-mesmo) não é uma nova ciência, mas sim uma nova forma forma de fazer ciência: na maioria das vezes autodidata, baseada em processos de tentativa-erro, encontra-se sob os pilares da ciência clássica que abrange experimentação, observação e análise de resultados.
A obra faz alusão ao movimento hacker que, em meados de 1980, concebeu descobertas e criações revolucionárias, conectou pessoas e ideias a partir de um modelo descentralizado e compartilhado, proporcionado pela internet. Assim como o movimento biohacking que compartilha informações sobre biotecnologia e desenvolve pesquisas descentralizadas em plataformas que proporcionam a inteligência distribuída, como: redes sociais, redes peer-to-peer e grid computing [1].
O livro traz exemplos de biohackers que estão usando o crowdsourcing [2] no desenvolvimento de medicamentos para a cura do câncer, e reconfigurando bactérias presentes no iogurte para gerar análises de contaminação do leite. Wohlsen enfatiza que a tecnologia de manipulação do DNA está disponível, e já é utilizada por cientistas DIY em suas garagens ou cozinhas, com baixo custo, de forma descentralizada e inovadora.
Notas
1. Modelo que permite alta taxa de processamento dividindo as tarefas entre diversas máquinas.
2. Utiliza a inteligência e os conhecimentos espalhados na internet para desenvolver novas tecnologias.
WOHLSEN, Marcus. Biopunk: DIY Scientists Hack the Software of Life. Inglaterra: Penguin Group, 2011.Resenha de: BEGALLI, Maira. A História da Ciência revisitada: os cientistas do faça você mesmo. Revista Ágora. Vitória, n.15, p.210-212, 2012. Acessar publicação original [IF].
História da Unimontes – Educação / Caminhos da História / 2012
Apresentamos a Revista Caminhos da História, periódico editado desde 1998, sob a responsabilidade de pesquisadores do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes e convidados.
A Unimontes comemora, no ano de 2012, cinquenta anos de existência. Atualmente, desenvolve significativas atividades, entre pesquisa, ensino, extensão e gestão, para o desenvolvimento do norte de Minas Gerais e para todo o Estado mineiro.
Na oportunidade, organizamos os Dossiês intitulados: “História da Unimontes” e “Educação” com trabalhos que refletem sobre a Instituição e o papel da educação nas relações sociais e no desenvolvimento regional. Embora a maioria dos textos trate da Unimontes e / ou da cidade que a abriga, também integram este Dossiê três artigos que abordam outros espaços geográficos, o que certamente contribuíra para o alargamento de nossas reflexões sobre o papel da educação na História do Brasil.
Os artigos livres, em consonância com a política de publicação do periódico, trazem contribuições de pesquisadores de diversas regiões do país. Aquilo que os caracteriza enquanto conjunto é, certamente, a multidisciplinaridade, tanto em relação à temática quanto aos métodos de investigação. Por fim, a resenha do livro “Uma Arqueologia Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica”, de autoria de José de Souza Martins, fecha esta edição que, por sua extensão, reúne os números 1 e 2 do volume 17 da Revista.
Agradecemos, em nome da Comissão Editorial, os colaboradores, autores, pareceristas e Corpo Técnico, que contribuíram conosco desde 1998. Aproveitamos para informar aos leitores que a partir da próxima edição, volume 18, editaremos a Revista somente na sua forma eletrônica. Desejamos a todos boa leitura,
Márcia Pereira da Silva
Regina Célia Lima Caleiro
CALEIRO, Regina Célia Lima; SILVA, Marcia Pereira da. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 17, n.1, n.2, 2012. Acessar publicação original [DR]
Gnarus | [?] | 2012
A proposta da Gnarus Revista de História ([?], 2012-) é a de reunir em uma publicação tanto historiadores experientes e de renome como, e principalmente, abrir espaço aos iniciantes, aos estudantes de graduação e pós-graduação interessados em participar e contribuir na produção e análise da historiografia do Brasil e do mundo.
Nosso desejo não é fazer apenas uma revista de História, mas também de empreender um instrumento da divulgação de um conhecimento que extrapole o traçado dos limites acadêmicos, que compreenda o fazer História não como um objetivo exclusivamente douto, mas também com uma preocupação essencial para a experiência cotidiana de educação e cidadania.
[Periodicidade semestral]Acesso livre
ISSN: 2317-2002
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Filosofia e História | GVAA | 2012
A RBFH – Revista Brasileira de Filosofia e História (Pombal, 2012-) se propõe a divulgação de trabalhos nacionais e internacionais. publicando artigos, relatórios, relatos, notas, resenhas e outras informações sobre estudos desenvolvidos no campo da Filosofia e da História, que poderão servir de fontes de consulta para alunos, professores, pesquisadores, etc. A Revista pertence ao GVAA – Grupo Verde de Agroecologia e Abelha (Pombal-PB).
Periodicidade anual
Acesso livre
ISSN 2447-5076
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História Oral e poder / Ágora / 2012
História Oral e poder / Ágora / 2012
Apresentação indisponível na publicação original
[DR]
História | UEG | 2012
A Revista de História da UEG (Morrinhos, 2012-) é uma publicação do Programa de Pós Graduação em História da UEG (PPGHIS), Campus Morrinhos.
É um periódico de fluxo contínuo (ahead of print) que tem como objetivo publicar artigos, resenhas, notas, dossiês, entre outros, de professores e pesquisadores de instituições de ensino e pesquisa de prestigio regional, nacional e internacional, preferencialmente na área da História ou áreas afins (Geografia, Teologia, Ciências Ambientais, Letras, Sociologia, Antropologia, etc), desde que tenham convergência com uma análise historiográfica das fontes e no uso de conceitos relativos ao fazer histórico.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2316-4379
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Igualitária | UES | 2012
A Igualitária: Revista do Curso de História da Estácio BH (Belo Horizonte, 2012-), com periodicidade semestral, publica trabalhos da área de História, com ênfase em História do Brasil e História Contemporânea, nos formatos: Dossiê temático, Artigos oriundos de pesquisas originais, Artigos de revisão, Entrevistas e depoimentos, Traduções, Resenhas, Fontes primárias/documentos e Material iconográfico.
Os trabalhos são recebidos em fluxo contínuo e são analisados por, pelo menos, dois membros do Conselho Consultivo ou assessores ad hoc. Cabe ao Conselho Editorial avaliar a pertinência ou não da publicação dos artigos.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2317 0174
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Trabalho e Movimentos Sociais: Velhas, novas, outras questões / Canoa do Tempo / 2011-2012
Como no passado, nosso mundo contemporâneo tem se mostrado prenhe de transformações as mais diversas – econômicas, políticas, sociais, culturais, que trazem, todavia, percepções de uma aceleração do tempo nunca antes vivenciada pela humanidade, em especial por estarem, tais transformações, ancoradas numa arrancada tecnológica igualmente sem precedentes.
Como argumenta Marshall Berman, diante do turbilhão do novo, muitas vezes se afiguram tanto uma sensação de desencanto, com a perda do mundo antigo que se esvai; quanto o receio e a incerteza diante dos processos desconhecidos que vão se avizinhando no horizonte. [1] No cruzamento de tais percepções, é sempre comum ver emergir uma plêiade de profetas a brandir suas sentenças aos quatro cantos do planeta.
Há não mais de duas décadas, em nosso próprio ofício, uma propalada crise de paradigmas das ciências sociais, nos prostraria aos pés de doutrinas e posturas niilistas, a apregoar nossa condição de mero gênero literário, desprovido da capacidade de prova e aferição da verdade, deixando em seu lugar a pluralidade de discursos e jogos de linguagem. [2] Em paralelo, passamos à contagem regressiva para o desaparecimento do livro e do impresso diante das novas mídias. [3] No plano político, com o alardeado fim da história, os ideais de um mundo socialmente mais justo se viram expurgados para os escombros da história junto com as marcas do socialismo real e de seus muros, dando lugar a novas sacralizações do mercado e do capital. [4] Vigoroso esforço teórico foi igualmente estabelecido para decretar a perda de centralidade do trabalho, [5] levando de roldão a classe trabalhadora e seus movimentos, tidos, outrora, como incômodos e inconvenientes, e agora como personagens de um passado a ser esquecido. [6]
As dimensões mais propriamente conservadoras desses processos, bem como seus impactos no cenário historiográfico contemporâneo, têm sido frequentemente percebidos e denunciados. [7] Em que pese à riqueza e o adensamento alcançado no interior de nosso campo disciplinar, não se deve descuidar, tampouco, de abordar os caminhos historiográficos recentes de forma crítica [8 ]e atenta à pluralidade de suas dimensões. [9]
Felizmente, como nos lembra Chartier, “os historiadores têm sido sempre os piores profetas”, [10] e a dinâmica histórica contemporânea tem nos apontado para a necessidade de repensar integralmente aqueles postulados lançados há duas décadas. Assim, o livro e o impresso reafirmaram sua força e vigor, chegando em 2012 a patamares editoriais nunca alcançados; a construção historiográfica tem resistido ao ceticismo das interpretações pós-modernas [11] e, no interior dos mundos do trabalho, os movimentos sociais recobram suas forças e voltam ao cenário das ruas. [12]
Com efeito, a explosão de novos temas, a centralidade adquirida pelo conceito de cultura no interior do trabalho historiográfico e mesmo certa supremacia da História Cultural, não anularam os aportes e o legado da História Social. Antes, permitiram um diálogo novo e enriquecedor,13 em que a retomada de temas tradicionais é flagrada em dimensões novas e inusitadas. [14]
Os artigos que compõem o dossiê temático, assim como as demais contribuições que integram este número da revista Canoa do Tempo, trazem a marca desse complexo e profícuo diálogo, em que a articulação do eixo temático Trabalho e Movimentos Sociais, reafirmando sua vitalidade e pertinência, alcançam dimensões e perspectivas inovadoras.
Em primeiro lugar, longe das tradicionais noções hierarquizantes, que frequentemente, na análise dos movimentos sociais, opunham em escala valorativas descendentes, movimentos revolucionários às rebeliões de escravos ou à simples turbas urbanas, [15] os movimentos sociais aqui analisados são pensados em suas dimensões e potencialidades intrínsecas, que existiram enquanto possibilidades históricas de intervenção e transformação social.
Em segundo lugar, tampouco são os movimentos sociais ou os processos de trabalho que articulam crianças, mulheres, seringueiros, posseiros ou operários, abordados aqui em esquemas interpretativos arcaicos e/ou alheios aos aportes historiográficos contemporâneos. Ao contrário, eles nos dão a ver dimensões culturais, que se veem incrustadas nos processos de experienciação e identificação vivenciada por esses múltiplos sujeitos.
Por fim, outro ponto importante a ser salientado está no fato de que as análises presentes no dossiê – sejam elas acerca dos movimentos de rebeldia e sedições do século XIX, dos mocambos do Baixo Amazonas ou dos portuários riograndinos – passam ao largo de recorrentes perspectivas polarizadoras como as noções de centro/periferia ou mesmo a de história nacional/história regional. Com efeito, a produção historiográfica que elas articulam e exemplificam dão conta de processos singulares que, materializados em diferentes espaços do país, reconfiguram outras histórias do Brasil. [16]
Por tais dimensões, fica aqui o convite para uma leitura que desejamos ser ao mesmo tempo instigante e prazerosa.
Notas
1 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1999. p. 15-35.
2 MALERBA, Jurandir. Teoria e História da Historiografia. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 13.
3 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1998.
4 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. 537-562.
5 ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 13-14.
6 GORZ, Andre. Adeus ao Proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
7 DOSSE, François. A História em Migalhas: Dos Annales à Nova História. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
8 VAINFAS, Ronaldo. Avanços em Xeque, Retornos Úteis. In: CARDOSO, Ciro Flamarian e VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Eselvier, 2012, p. 319-335.
9 Veja-se o comentário de Antoine Prost acerca do caso francês: “É verdade que se alterou a conjuntura do fazer história. O complexo de superioridade dos historiadores franceses, orgulhosos de pertencerem, em maior ou menor grau, à escola dos Annales – cuja excelência, supostamente, é elogiada pelos historiadores do mundo inteiro – começou a tornar-se , não propriamente irritante, mas injustificado”. PROST, Antoine. Doze Lições de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 9.
10 CHARTIER, Roger. A História ou a Leitura do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 8.
11 GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
12 SANTOS, Boaventura de Souza. Trabalhar o Mundo: Os caminhos do novo internacionalismo operário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
13 PROST, Antoine. Social e Cultural Indissociavelmente. In: RIOUX, Jean-Pierre e SIRINELLI, Jean-François (Orgs.). Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa, p. 123-137.
14 Cf.: BATALHA, Cláudio, SILVA, Fernando Teixeira da e FORTES, Alexandre. Culturas de Classe: Identidade e Diversidade na Formação do Operariado. Campinas-SP: Editora Unicamp, 2004.
15 GARCIA, Marco Aurélio. Reforma ou Revolução/ Reforma e Revolução. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 10, n.º 20, mar.91/ago.91, p. 9-38.
16 Cf: MONTENEGRO, Antonio Torres et al. História, Cultura e Sentimento: Outras histórias do Brasil. Recife: Editora da UFPE; Cuiabá: editora da UFMT, 2008.
Referências
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.
BATALHA, Cláudio; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre. Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas-SP: Editora Unicamp, 2004.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1998.
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
DOSSE, François. A história em migalhas: Dos Annales à Nova História. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
GARCIA, Marco Aurélio. Reforma ou Revolução/ Reforma e Revolução. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 10, n. 20, p. 9-38, mar.91/ago.91.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
GORZ, Andre. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
MALERBA, Jurandir. Teoria e História da Historiografia. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.
MONTENEGRO, Antonio Torres et al. História, cultura e sentimento: outras histórias do Brasil. Recife: Editora da UFPE; Cuiabá: Editora da UFMT, 2008.
PROST, Antoine. Doze Lições de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
PROST, Antoine. Social e Cultural Indissociavelmente. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Org.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, [s.d.], p. 123-137.
SANTOS, Boaventura de Souza. Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
VAINFAS, Ronaldo. Avanços em Xeque, Retornos Úteis. In: CARDOSO, Ciro Flamarian; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Eselvier, 2012. p. 319-335.
Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro – (Ufam)
Maria Luiza Ugarte Pinheiro – (Ufam)
[DR]América Latina frente a pandemia do Covid-19 / Boletim do Tempo Presente / 2020
A pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 (COVID-19) inseriu a humanidade em uma profunda crise sanitária, socioeconômica e psicológica, cujos efeitos políticos se demonstram imprevisíveis. O pânico decorrente da possibilidade de contração da doença afetou o bem-estar individual e coletivo, ao mesmo tempo em que gerou diversas preocupações com o futuro. Esse mal-estar, de uma sociedade sem horizonte de expectativas, levou a diversas crises no modelo de representação, das instituições políticas e das formas de organização social.
Paralelamente a este processo, a COVID-19 fortaleceu críticas às práticas econômicas neoliberais, acentuando as disparidades econômicas entre os países que compõem o sistema internacional. Ao mesmo tempo, o vírus expôs as profundas desigualdades sociais, em especial em países da América Latina, Caribe e África. A pandemia deixou em evidência, para parcelas da sociedade civil, as mazelas que envolvem o dia a dia dos segmentos sociais pauperizados, como ashabitações precárias, que tornaram o distanciamento social irrealizável, até mesmo desumano, ou os deletérios efeitos da informalidade no mercado de trabalho.
Na América Latina e Caribe, relatórios preliminares sobre os efeitos sociais e econômicos da pandemia, organizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a CEPAL, projetaram cenários desalentadores. Vislumbram-se retrações de até 23% no Comércio Internacional, 9,1% do Produto Interno Bruto (PIB) e o PIB per capita regional deve retroceder aos patamares do ano de 2010, ocasionando, assim, uma nova década perdida. A pobreza e a extrema pobreza devem elevar-se, respectivamente, em 7,1% e 4,5%. Com isso, em torno de 327 milhões de latino-americanos (52,8% da população local) estarão na condição de extrema pobreza ou pobreza ao fim de 2020.[1]
A pandemia também impactou as Relações Internacionais. O cooperativismo e o multilateralismo consistiram em um dos seus efeitos, como observamos no apoio às iniciativas realizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o combate à pandemia. No entanto, em paralelo, notamos uma ampliação das disputas entre as potências internacionais. A “corrida global” para a descoberta de uma vacina, o fortalecimento da autonomia do Estado-Nação e o robustecimento das tensões entre norte-americanos e chineses, causadas pela narrativa de Donald Trump acerca da “cupabilidade chinesa” pela pandemia, evidenciaram isso.
O Sars-Cov-2 demonstrou os efeitos da racionalidade moderna, impulsionada pelo neoliberalismo e globalização, que submeteu as sociedades globais à espoliação, à reprodução do capital e a um desprezível individualismo. Assim, esse dossiê, que atesta os esforços das Universidades em entender o complexo presente, buscará debater os múltiplos impactos econômicos, sociais, políticos, psicológicos, educacionais e culturais causados pela pandemia nos dez artigos que o compõem.
Em Pandemia e Cosmovisões – Solidão, Medo e Morte Maria Teresa Toribio Brittes Lemos realiza um breve histórico das epidemias a partir de uma narrativa que percorre suas ocorrências da Antiguidade à COVID-19. A autora ressalta sentimentos, como a angústia, o medo e a solidão, ocorridas em outros momentos pandêmicos da história da humanidade e destaca os efeitos desses eventos nas memórias coletivas e nos imaginários sociais com o intuito de observar possíveis sequelas, individuais e coletivas, da atual pandemia para as nossas sociedades.
Johannes Maerk, em Será la pandemia de Covid-19 el fin del neoliberalismo?, aborda os impactos socioeconômicos e políticos da crise da década de 1929 nos países ocidentais, a teoria keynesiana e o modelo de Indústrias de Substituições de Importações (ISI). Ademais, o artigo analisa as motivações para a implementação das práticas políticas e econômicas neoliberais a partir da década de 1970 em diversos países e traz pertinentes reflexões sobre a possibilidade de surgimento de um modelo alternativo a este, em virtude dos impactos econômicos e sociais da atual pandemia.
No artigo América Latina e os Impactos Estruturais Ocasionados pela Covid-19, Paulo Maurício do Nascimento abordou os resultados estruturais da pandemia em nível global e, em especial, na América Latina e Caribe. Destacam-se a abordagem acerca das suas consequências econômicas e as ações governamentais adotadas nos seguintes países: Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, México, Paraguai e Peru.
Oscar Barboza Lizano, em Disputas Imperiales: Mirares de la pandemia COVID-19 desde Centroamérica, avaliou os impactos comerciais, políticos e diplomáticos decorrentes da pandemia. O artigo tem o mérito de analisar os seus efeitos nos espaços centro-americanos e caribenhos, além de tecer breves considerações sobre as conjunturas de países que enfrentaram recentemente um ciclo de instabilidade política, como Bolívia e Chile. Além disso, há uma importante avaliação das disputas entre China e Estados Unidos no sistema internacional, aspecto este relevante em virtude da recente guerra comercial entre as duas superpotências.
Alberto Dias Mendes, em Pandemia, Cuba e a revolução solidária, avalia as repercussões da COVID-19 na China, Europa e na América Latina e Caribe a partir de uma minuciosa comparação entre o número de casos e óbitos em países selecionados entre março e setembro de 2020. O autor localiza, ainda, a pandemia e os seus efeitos como parte de uma crise civilizatória e ressalta o papel das Brigadas Médicas Henry Reeve no combate interno ao vírus e em ações de solidariedade internacional.
Em A pandemia da COVID-19 e as mudanças na atuação docente: o trabalho em casa como (falta de) estratégia didática, José Lúcio N. Jr e Patrícia Mª P. do Nascimento abordaram os efeitos da pandemia na prática docente e na sala de aula. Ressalta-se a importante diferenciação entre o Ensino à Distância e o Ensino Híbrido, este imposto à prática docente em decorrência da pandemia e que é baseado na ampla utilização de Novas Tecnologias da Informação e Comunicação, aos quais grande parte dos docentes não estava (ou está!) habituada. O trabalho tem o mérito de trazer pertinentes reflexões para educadores e setores da sociedade civil que, hoje, preocupam-se com os rumos da educação brasileira, sobretudo do setor público, em um momento de inviabilidade de aulas presenciais e de acefalia do Ministério da Educação.
André Luis Toribio Dantas, em Educação Remota em um contexto pandêmico: Isonomia e Universalidade – Educação Pública/RJ, examinou os impactos da COVID-19 na educação pública do Estado do Rio de Janeiro. As dificuldades de implementação do Ensino Híbrido motivadas, entre outras razões, pelo não acesso dos estudantes à internet e plataformas digitais, e os resultados da suspensão das aulas presenciais na comunidade escolar estiveram entre alguns dos elementos que compuseram as pertinentes reflexões do autor sobre as repercussões da pandemia no ensino público.
No artigo Povos Indígenas do Brasil: Um novo capítulo de uma velha história, Aimée Schneider Duarte avaliou os efeitos da COVID-19 sobre as populações indígenas brasileiras e as medidas implantadas pelo governo de Jair Bolsonaro na mitigação dos impactos da pandemia sobre os nossos povos originários. Igualmente, há uma análise histórica da participação indígena e dos seus apologistas na Constituinte de 1987-1988 e algumas medidas legais implantadas para a sua proteção.
Em Possíveis cidades pós-pandêmicas: COVID-19 e a passagem da cidade modernista à cidade “não moderna”, Rodrigo Agueda analisou as consequências sociais da pandemia e as suas possíveis influências no meio urbano. O artigo aponta que os aspectos excludentes das grandes cidades devem permanecer, apesar de, mundialmente, existirem debates relevantes acerca do aproveitamento do contexto pandêmico para se debater mobilidade urbana e organização espacial das cidades.
Anderson Barbosa Paz em O Papel dos Estados da América Latina em Tempos de Pandemia Global a partir do pensamento de John Keynes examinou alguns elementos da teoria keynesiana e a importância de existência de políticas públicas para mitigar os efeitos da pandemia entre as populações latino-americanas.
1. As informações aqui inseridas foram retiradas do Observatorio COVID-19 en América Latina y el Caribe – Impacto económico y social. Disponível em: https://www.cepal.org/es/temas/covid-19. Acesso: Nov/2020.
Érica Sarmiento – Professora adjunta de História de América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista Produtividade CNPQ nível 2, pesquisadora Jovem Cientista Nosso Estado-FAPERJ (2014-2017; 2017-2020). É coordenadora do Laboratório de Estudos de Imigração (Labimi) e coordenadora do mestrado do Programa de Pós Graduação em História (UERJ). Pós-doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em história pela Universidade de Santiago de Compostela na área de América e Contemporânea. Foi Professora visitante no Instituto de Estudos da América latina (ILAS), Universidade de Columbia (Nova York) e na Universidade de Santiago de Compostela.
Karl Schurster – Professor Livre Docente da Universidade de Pernambuco. Pós Doutor pela Freie Universität Berlin. Organizou juntamente com Francisco Carlos Teixeira da Silva e com Francisco Eduardo Alves de Almeida a obra Atlântico: a história de um Oceano (Civilização Brasileira), vencedora do prêmio jabuti (2º lugar em Ciências Humanas 2014). É professor permanente do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Pernambuco. Foi bolsista do Instituto Yad Vashem em Jerusalém/Israel (2014) onde desenvolve pesquisa sobre a memória do Holocausto, recebendo nova bolsa de estudos em 2018. É Diretor de Relações Internacionais, exerce a coordenação científica da EDUPE/UPE e é Coordenador Acadêmico do Mestrado Profissional em Ensino de História/ProfHistoria – UPE.
Rafael Araujo – Professor Adjunto de História da América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC)/UFRJ. Doutor em História pelo PPGHC/UFRJ (2013). Participa como historiador convidado do projeto “1914-1918-online. International Encyclopedia of the First World War” organizado pela Freie Universität e pelo Friedrich-Meinecke-Institut. Membro do Grupo de Trabalho (GT) de Ensino de História e Fontes da ANPHLAC. Pesquisador associado ao Laboratório de Estudos da Imigração (LABIMI)/UERJ e ao Grupo de Estudos Sociocultural da América Latina da Universidade de Pernambuco (UPE).
Integralismo brasileiro: passado e tempo presente / Boletim do Tempo Presente / 2012
A Revista Eletrônica do Tempo Presente traz nessa Edição Especial o tema do Integralismo no Brasil, a partir da contribuição de especialistas e estudiosos do tema de partes diferentes do país.
Colaboram com essa Edição João Fábio Bertonha da Universidade Estadual de Maringá e coordenador do Laboratório do Tempo Presente da UEM, também conhecido especialista dos estudos do integralismo no Brasil e suas relações com o fascismo italiano. Nesta edição ele nos oferece uma discussão sobre questões metodológicas para o estudo do antissemitismo integralista. Na sequência temos uma analise da imprensa integralista, particularizando-se o caso da Revista Anauê e sua circulação num ano que foi crucial para o crescimento dos integralistas, 1935, com Rodolfo Fiorucci do Instituto Federal do Paraná (IFPR/Jacarezinho) e Doutorando pela UFG, estudioso do integralismo desde os tempos de Mestrado.
As relações externas do integralismo com o nazismo não poderiam deixar de ser contempladas nessa Edição. Nesse lugar, temos a contribuição da Ana Dietrich, da Universidade Federal do ABC, especialista nos estudos do nazismo no Brasil e suas relações com o Integralismo no Sul do país, com uma importante contribuição acerca das percepções de Hitler sobre essa relação.
Outra importante contribuição à edição vem do também especialista no tema Renato Dotta da Universidade Federal do ABC nos dando a conhecer da trajetória do integralismo brasileiro desde a fundação da Ação Integralista Brasileira em 1932 até a atualidade, incluindo-se uma reflexão da utilização dos ciberespaços utilizados pelos chamados “Neo-integralistas”.
No âmbito da história do tempo presente do integralismo temos a oralidade e a memória dos que viveram a experiência do integralismo na contribuição de Márcia Regina da Silva Ramos Carneiro, da Universidade Federal Fluminense. Especialista em estudos da memória integralista, ela nos brinda com uma discussão bem atual do movimento a partir do tema “Uma velha novidade: o integralismo no século XXI”.
Informamos aos leitores que o integralismo brasileiro teve seu início em 1932 com o lançamento do Manifesto de Outubro de 32, atuando oficialmente até 1937, quando foi proibido por decreto do Estado Novo. Em 1938, alguns integralistas tentaram derrubar Getúlio Vargas, através de uma invasão armada à residência presidencial no Rio de Janeiro, sendo a partir daí objeto de perseguição e controle da polícia política. Seu líder Plínio Salgado foi enviado para exílio em Portugal, onde ficou até 1946. Voltando ao Brasil fundou o PRP (Partido de Representação Popular) com o qual compareceu novamente ao campo político brasileiro na dita democratização do país. Durante o regime militar continuou atuando, agora ao lado dos militares, até 1975, quando veio a falecer. Alguns militantes e seus herdeiros, contudo, nunca esqueceram o “Chefe” e continuam até nossos dias circulando em algumas capitais do país e, principalmente, através da internet.
Desta forma, apresentamos nesta edição um tema de suma importância para nossa vida política e, com isso, esperamos levar uma contribuição aos interessados em estudar e conhecer mais detalhes do que foi esse movimento, tido como o “fascismo brasileiro”.
Giselda Brito Silva – Coordenadora do Núcleo de Documentação de Historiografia das Ditaduras e do Autoritarismo no Tempo Presente e professora da UFRPE.
Argentina hoje / Boletim do Tempo Presente / 2012
O Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade do Brasil / UFRJ publica o primeiro número da Revista Eletrônica do Tempo Presente / UFRJ. Este primeiro número, por sua vez em abertura de uma nova série, terá o caráter de número especial ao compor um dossiê sobre a Argentina contemporânea, agora denominado “Argentina, hoje”. Escolhemos como motivo para tal dossiê especial a Argentina, não apenas pelo seu peso como a mais destacada parceira histórica do Brasil na América do Sul – e aí devemos sublinhar dimensões políticas, comerciais e estratégicas – como pelo destaque contido na própria importância enquanto país influente na comunidade internacional e membro constante do grupo das vinte mais relevantes economias globais, o G20. Não deixamos de notar, ainda, a relevância argentina para as instituições, a política, a cultura e a constituição da unidade sul-americana.
Neste mesmo sentido, notamos o protagonismo argentino nas relações internacionais, com a retomada do desenvolvimento econômico, cujo ponto de destaque se demonstrou nas nacionalizações destacadas do governo Cristina Kirchner (2007-) em 2008, com o resgate das Aerolíneas Argentinas, e em março de 2012, a suspensão do contrato de concessão dos jazimentos petrolíferos nas mãos da Repsol YPF, culminando na expropriação da majoritariedade das ações desta mesma empresa em Abril. Ao mesmo tempo e no mesmo sentido da retomada do discurso e ação sobre a soberania nacional como demanda, a crise das Malvinas ressurge no seu trigésimo aniversário como forma de tensão diplomática, em função da presença acusada de jazimentos de petróleo e gás. As Américas se manifestaram de apoio na Cumbre de las Americas de 2012, em Cartagena de las Indias, Colômbia.
Este número conta com especialistas brasileiros e argentinos sobre o tema. Entre os especialistas argentinos, está o prof. Hector Saint-Pierre (Professor Titular em Segurança Internacional e Resolução de Conflitos da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP), e diretamente da Argentina, dando prosseguimento a uma tradição de cooperação entre o TEMPO / UFRJ e Universidad Nacional de La Plata / Instituto de Relaciones Internacionales, estão os artigos de Laura Bogado Bordazar & Laura Maira Bono, professoras do instituto argentino, bem como Julia Esposito. Dois pesquisadores brasileiros, Maria Paula Nascimento Araújo, Professora Associada de História Contemporânea, e Iuri Cavlak, Professor Adjunto da Universidade Federal do Amapá, estão presentes neste número especial.
Procuramos ainda construir um diálogo intenso sobre a questão das Malvinas através de uma entrevista, sob a forma de mesa redonda, com estes mesmos especialistas mais o Norberto Osvaldo Ferreras, argentino, Professor Associado da Universidade Federal Fluminense, sobre o significado atual da crise das Malvinas. Este dossiê, além dessa reforçada contribuição com artigos de nível doutoral e entrevistas, apresenta resenhas fílmica e literária sobre obras de destaque notadas internacionalmente, e ainda a contribuição discente em formação do exercício de perfilagem biográfica e de alguns dos mais relevantes documentos impreteríveis para a análise histórico-política das relações internacionais do país com o mundo.
Por fim, é necessário mencionar o apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) através do projeto “Caminhos da Integração Sul-Americana”, sem os quais os últimos avanços e intentos em pesquisa não seriam possíveis. Nessa direção, os trabalhos aqui apresentados são parte integrante e constitutiva dos resultados deste projeto.
Clio | Clio ’92 | 2012
Il Bollettino di Clio (2012-) è il periodico on-line dell’Associazione Clio ‘92: è scaricabile dal sito da parte di tutti i soci, e risponde al desiderio di far circolare informazioni, idee, materiali che possono contribuire a formare la professionalità e la condivisione di prospettive rispetto all’insegnamento della storia.
L’associazione CLIO ’92 è stata costituita da un gruppo di insegnanti di storia nel 1998 con lo scopo di approfondire e dare impulso alla ricerca teorica ed applicata sui problemi dell’insegnamento e dell’apprendimento della storia.
La sua ambizione è di tenere la storia insegnata fortemente collegata alla storia degli esperti. Le sue posizioni sulla didattica della storia sono manifestate nelle tesi pubblicate nel 2000 nel primo numero della rivista “I Quaderni di Clio”, aggiornate nelle assemblee nazionali dei soci che si tengono ogni anno e pubblicate nel sito dell’associazione www.clio92.it.
[Periodicidade semestral]ISSN 2421-3276 (Online)
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Pueblos indígenas. Interculturalidad, colonialidad, política – TAMAGNO (AN)
TAMAGNO, Liliana (Coord.). Pueblos indígenas. Interculturalidad, colonialidad, política. Buenos Aires: Colección Culturalia, Editorial Biblos, 2009, 206p. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 34, p. 397-402, dez. 2011.
Hace casi diez años, Liliana Tamagno nos proveía de una obra que iba a convertirse en una referencia ineludible para los estudios antropológicos e históricos sobre los pueblos indígenas en contextos urbanos: se trataba de Nam qom hueta’a na doqshi lma’. Los tobas en la casa del hombre blanco (2001). Si aquella obra se centraba específicamente en el caso de los grupos tobas que, provenientes de la provincia del Chaco, se habían asentado en la periferia transicional entre las ciudades de Buenos Aires y La Plata (Argentina), dando por tierra a través de las refl exiones vertidas allí con muchas ideas fuertemente arraigadas en el sentido común sobre la pérdida de identidad étnica, aculturación o exclusión, construidas desde la globalización y la desigualdad en las sociedades modernas, la compilación Pueblos indígenas.
Interculturalidad, colonialidad, política – objeto de nuestra reseña – continúa a la vez que renueva esta senda investigativa. La continúa en tanto se ocupa de algunas de las más relevantes problemáticas del campo antropológico de las últimas décadas, como la migración de las minorías a las grandes ciudades, sus formas de inserción en el espacio y la vida urbana multicultural, la reproducción de procesos de identificación étnica en espacios lejanos y culturalmente no afines con el de los migrantes. Y también la renueva en tanto compila en un volumen los avances de proyectos que han conformado y conforman la línea de investigación Identidad, etnicidad, interculturalidad, desarrollada en el Laboratorio de Investigaciones en Antropología Social (LIAS), perteneciente a la Facultad de Ciencias Naturales y Museo de la Universidad Nacional de La Plata (UNLP).
En este sentido, el libro reúne diversas investigaciones: algunas desarrolladas por Liliana Tamagno en los últimos años; otras, expresan las preocupaciones, de larga data, de académicos de reconocida trayectoria en el medio argentino, como Alejandro Balazote y Juan Carlos Radovich, o las recientes producciones de jóvenes becarios y doctorandos. Los proyectos han tenido y tienen como objetivo analizar la diversidad y el pluralismo en contextos nacionales, incluyendo la refl exión acerca de los modos en que la estructura de clase se articula con las relaciones interétnicas e interpretando las presencias actuales de los pueblos indígenas, en contextos neocoloniales, como el resultado de complejos y polifacéticos procesos de aceptación/ rechazo de los modelos impuestos o que se pretenden imponer desde lo hegemónico; sintetizan además el resultado de la relación con distintos referentes empíricos y en diferentes momentos de trabajo etnográfico, privilegiando la observación de las dinámicas en lo que tienen de creativo, de insospechado e incluso de asombroso.
Igualmente, los artículos que conforman este volumen se fundan en analizar situaciones particulares, referidas tanto al pueblo toba, como al mapuche, al huarpe y al mbya guaraní, en las que se ponen en evidencia las tensiones entre el discurso hegemónico sobre la interculturalidad y las prácticas que devienen de políticas concretas en los campos de la educación, la salud, la cultural, el patrimonio y el turismo. Demuestran además que el carácter crítico y propositivo que anima al término “interculturalidad” desde lo conceptual, se ve limitado por intereses de clase y por obstáculos epistemológicos que limitan la posibilidad de construir modos de relacionamiento exentos de racismo. De manera que lo que surge de las diferentes colaboraciones del libro no se limita a la mera comprensión y análisis de casos particulares, sino que procuran proyectarse al debate académico actual de las ciencias sociales, en especial a la discusión acerca de la sociedad argentina, sus tensiones, sus indefiniciones, sus crisis.
El prólogo de la obra, a cargo del reconocido antropólogo Miguel Alberto Bartolomé, subraya justamente este aspecto, enmarcando las producciones particulares en una profunda y esclarecedora refl exión sobre la pluralidad y fundamentalmente sobre la propia antropología argentina y latinoamericana.
Así, algunos de sus pasajes objetivan en palabras las preocupaciones que aquejan a sus autores cuando observan la realidad junto con miles de varones, mujeres y niños que sobreviven en condiciones de pobreza, violencia, discriminación, subestimación y racismo; cuando se encuentran frente a la criminalización de la miseria, frente a expresiones y actitudes que asocian la lucha contra la inseguridad con la lucha contra los pobres, frente a la limpieza de clase, ante los muros y las barreras que se levantan cerrando espacios habitacionales o líneas de fuga de posibles delincuentes, ante el recrudecimiento de la segregación y la desigualdad, ante el modo en que el ideario hegemónico gestado en los procesos de conquista y colonización se proyecta a nuestros días en un pensamiento que continúa siendo colonial. Otros párrafos, sin embargo, ponen en evidencia que, en tanto la historia es transformación, las demandas y los reclamos, los sueños y las utopías de los pueblos indígenas – y a pesar de ello incluso las diferencias que tensan sus organizaciones – se levantan como subversiones cotidianas que cuestionan la voracidad del sistema capitalista; un orden fundado en la competencia y contradicción entre unos bienes que son escasos y unas necesidades que se suponen infinitas. Ejemplo de ello es la lucha de los pueblos indígenas en defensa del territorio y de la naturaleza oponiéndose a explotaciones mineras, madereras, agrícolas y turísticas que atentan contra la biodiversidad y contaminan los suelos, el aire y el agua en grados impensados desde la lógica de la reciprocidad y desde el concepto de “ser en el mundo” que animó las tradiciones indígenas y que aún hoy está presente en la memoria de muchos de ellos, como se ha expresado dramáticamente, desde hace bastante tiempo y en diferentes regiones de Argentina, en los enfrentamientos entre los pueblos originarios, las políticas gubernamentales y los megaproyectos económicos.
La primera parte del libro, Territorios y memorias, contiene seis artículos. La sección se abre con un trabajo de Alejandro Balazote y Juan Carlos Radovich intitulado Turismo y etnicidad…, donde se indaga el impacto del turismo en la población mapuche localizada en el sur del territorio argentino como continuidad de las preocupaciones que, desde 1987, condujeron a estos autores a analizar la incidencia de los denominados proyectos de gran escala en la vida de los pueblos originarios. El artículo focaliza en los procesos identitarios y las luchas indígenas en el contexto de los procesos de inversión y desinversión de capital en la región de norpatagonia y sus relaciones con las disputas territoriales de pequeños productores criollos e indígenas.
El segundo artículo, Volver a la tierra…, de Carolina Mai dana, presenta la relación entre parentesco, migración y procesos de territorialización expresada en la conformción de los denominados “barrios tobas”, repensando el espacio físico y social en la superación de las dicotomías rural/urbano y local/global para así indagar y comprender la dinámica sociocultural de la población indígena toba en tanto integrante del pueblo qom. El tercer artículo, El mestizaje como dispositivo biopolítico, de Leticia Katzser, evisa críticamente censos, historiografías y monografías etnográficas y los interpreta como textos constitutivos y constituyentes de un régimen político específico, fundado en declarar la “extinción” del pueblo huarpe, una refl exión crítica que se proyecta a su vez al concepto contemporáneo de “indios emergentes”.
En el cuarto trabajo de esta sección, Las luchas por el territorio…, a cargo de Ana Cristina Ottenheimer, Bernarda Zubrzycki, Stella Maris García y Liliana Tamagno, se discute la tensión entre la población mbya guaraní del Cuña Pirú, localidad ubicada en la provincia de Misiones (Argentina), y la Universidad Nacional de La Plata, propietaria por donación de la Empresa Celulosa Argentina desde 1991 de las tierras habitadas por estos grupos indígenas. A lo largo del trabajo, los modos en que se ha ido estableciendo la relación y las concepciones que animan el tratamiento de la cuestión por parte de las autoridades de esta Universidad son analizados a la luz de una serie de consideraciones respecto de la identidad étnica, la interculturalidad, los derechos sobre el territorio, la concepción de la propiedad privada, lo legal y lo legítimo.
El quinto trabajo, Imágenes del ‘tiempo de los antiguos’… de Alejandro Martínez, discute el rol de la fotografía en la construcción de la memoria y la historia de los pueblos indígenas del Chaco argentino.
Las fotografías permiten al autor reconstruir la cotidianeidad de los trabajadores indígenas en los ingenios azucareros, las relaciones entre los indígenas y no indígenas y las condiciones de trabajo en esos establecimientos, presentando a los pueblos originarios como sujetos activos en la historia. En diálogo con los anteriores, el último trabajo de la sección, Saberes, ética y política…, de Liliana Tamagno, estudia el reclamo y la restitución de restos humanos por parte del Museo de La Plata, revisando críticamente algunas ideas fuerza que ordenaron el surgimiento, la constitución, el desarrollo y el afianzamiento de la identidad nacional y que aún perdura en el imaginario actual de una sociedad que se pensó sin indios y una modernidad que se imaginó sin diversidades, contradicciones y/o desigualdades.
La segunda parte del libro, Salud y Educación, que reúne cuatro estudios, se inicia con un artículo de María Adelaida Colangelo, La salud infantil en contexto de diversidad sociocultural, cuyo objeto central es recuperar el concepto de “interculturalidad” en su sentido crítico. La autora describe los modos en que el cuidado de la salud de los niños tobas pone en juego diferentes articulaciones entre la medicina tradicional-popular, la medicina oficial y los aspectos terapéuticos presentes en el ritual de la iglesia pentescostal. Por su parte, en Políticas públicas y prácticas educativas, María Amalia Ibánez Caselli se detiene en el examen de situaciones referidas a propuestas de educación intercultural bilingüe referidas al pueblo toba, preguntándose si la interculturalidad se practica y planteando que el concepto de interculturalidad se impuso en Argentina más como una moda a seguir que como el producto de las refexiones críticas y las sistematizaciones que supone toda planificación cuando de políticas de Estado se trata.
El tercer artículo, La interculturalidad desde la etnografía escolar, de Mariel Cremonesi y Mariel Cappannini, se detiene en los avances legislativos que proponen una “educación intercultural”. Desde una “etnografía del aula”, las autoras refl exionan sobre los modos de abordaje de la “diversidad” y la “identidad”, señalando contradicciones entre el discurso sobre la interculturalidad y las prácticas escolares. En Investigar en la escuela, Stella Maris García y Verónica Solari Paz describen el recorrido de una investigación antropológica guiada por la cuestión de si la escuela conseguirá poner en marcha una educación intercultural para atender a una población culturalmente heterogénea y con profundas desigualdades sociales. Frente a este interrogante, las autoras proponen entonces un modelo en el que el docente mismo se asuma en su identidad, un modelo que vincule diversidad y derechos y que, reconociendo la heterogeneidad de la comunidad a la que la escuela atiende, historice los procesos socioculturales que le dieron origen.
Se trata en definitiva de un libro intrépido a la vez que necesario, en tanto se atreve a problematizar y proseguir – más allá de lo establecido y sin ningún tipo de tapujo – un debate considerable para Argentina y, en una escala más amplia, para todos los países latinoamericanos: los sentidos de la diversidad y el pluralismo en relación al diseño y aplicación de políticas gubernamentales en diferentes campos y áreas. Libro aún más importante cuando, como en esta ocasión, posee el mérito de convertir la aparente insensibilidad de la más rigurosa investigación etnográfica en sentidas y afables situaciones de diálogo con aquellos hombres que nos relatan sus historias de dolor y alegrías, contenidas en la permanente resistencia a los dispositivos de poder en diferentes momentos de la gestación, la consolidación y el desarrollo del Estado-Nación.
Horacio Miguel Hernán Zapata – Escuela de Historia – Centro Interdisciplinario de Estudios Sociales (CIESo), Facultad de Humanidades y Artes, Universidad Nacional de Rosario (UNR)/ Sección de Etnohistoria, Instituto de Ciencias Antropológicas (ICA), Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires (UBA). E-mail: horazapatajotinsky@ hotmail.com.
História Indígena na América / Anos 90 / 2011
É com grata satisfação que a Revista Anos 90, do programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, apresenta um Dossiê dedicado à História indígena na América. No total foram selecionados doze artigos, para integrarem o volume de número 34. O expressivo número de trabalhos enviados para submissão é um indicativo da vitalidade dessa temática atualmente.
Como proposta geral, o Dossiê tem a pretensão de repensar a história dos índios na América, fato que implica estabelecer uma reinterpretação geral dos processos históricos e contatos culturais em que as populações originárias estiveram envolvidas. Para tanto, é necessário investir em uma perspectiva que considere os indígenas como sujeitos, valorizando os acontecimentos nos quais foram agentes de suas próprias histórias e as estratégias dessas populações diante das novas conjunturas encetadas pela presença europeia no continente americano.
Nos últimos anos, pesquisadores de diferentes disciplinas têm dedicado atenção as sociedades indígenas. As contribuições oriundas da antropologia, arqueologia, história e educação têm proporcionado avanços promissores à temática indígena. Nesse sentido, a interdisciplinaridade tem contribuído para o entendimento sobre as diversas formas de interação e relação sociocultural entre as populações indígenas e a sociedade envolvente.
Os debates historiográficos mais recentes, amparados pelos subsídios provenientes da pesquisa em arquivos, têm enfatizado o papel desempenhado pelos indígenas enquanto agentes sociais, privilegiando as atitudes e respostas manifestas frente às situações de conflitos, além do papel das lideranças e sua atuação como mediadores culturais. Afinal, o mundo indígena não foi um receptor passivo das políticas e iniciativas que emanavam da colonização, muito pelo contrário, foi capaz de elaborar respostas e gerar ações próprias.
Entre os textos que integram este Dossiê, há uma preponderância da produção histórica recente, resultado de dissertações e teses de doutorados defendidas nos últimos anos nos Programas de Pós-Graduação do país. Trabalhos gestados e inseridos no panorama atual de debates sobre a participação e, especialmente, a capacidade indígena de agir em diferentes contextos históricos.
Assim, o conjunto de textos aqui reunidos constitui uma amostra do que vem sendo discutido e debatido a respeito das possibilidades e das potencialidades da temática indígena, destacando a sua relevância para um projeto de país que se quer diverso e plural. É certo que tal perspectiva somente foi garantida através da Constituição Federal de 1988, ao reconhecer os direitos coletivos dos povos indígenas no Brasil, além é claro de suas terras tradicionais. No seu conjunto, estas medidas asseguraram o direito à diferença de determinados grupos, pois eles, agora, diante de uma nova legislação, passam a integrar a nação brasileira de fato e de direito. Enfim, começamos a superar o estigma assimilacionista que vinha sendo propalado desde a época do Marquês do Pombal.
E uma nação, quanto mais plural for, mais rica será, principalmente diante das possibilidades de gestar um futuro promissor. A efetivação dessa pluralidade deverá ser divulgada nas escolas de todo país através da Lei n. 11.645, de março de 2008. Tal lei, grosso modo, determina que conste nos currículos escolares conteúdos referentes a afro-descendentes e indígenas, ou seja, procura garantir que o ensino de História no Brasil contemple e inclua aqueles que até então estavam ausentes, ou pouco representados, nas narrativas nacionais. Afinal, a escrita da história nem sempre foi igualitária.
No primeiro artigo, Guillermo Wilde, professor na Universidade Nacional de San Martín e pesquisador do Conicet (Argentina), propõe repensar criticamente alguns dos aspectos presentes na configuração das lideranças indígenas, tema ao qual dedicou atenção em sua tese de doutorado (UBA, 2003). O modelo de análise proposto por Wilde procura avançar em relação aos esquemas estáticos adotados para analisar a emergência das lideranças indígenas nas terras baixas da América do Sul, privilegiando uma perspectiva que valoriza o ponto de vista histórico e processual destacando as mudanças sociais, culturais e políticas verificadas na sociedade colonial, particularmente nas reduções de índios guaranis instalados na Província do Paraguai. Assim, os atores sociais não agem unicamente movidos por uma dinâmica pautada na tradição ou apenas é o mero resultado de uma imposição externa. Enfim, o que importa é destacar as adaptações, as reformulações e as ressignificações de sentidos verificadas nas organizações políticas indígenas.
O segundo artigo que integra este dossiê é de Elisa F. Garcia, professora de História da América na Universidade Federal Fluminense, que tem dedicado atenção às populações indígenas instaladas na região platina. Território caracterizado pela questão da fronteira entre os dois Impérios Ibéricos, e no qual as populações indígenas jogaram um papel de destaque nas políticas indigenistas das respectivas monarquias, quer como aliados ou inimigos. Ao investir nas classificações coloniais, nas maneiras pelas quais foram identificados os diferentes grupos ameríndios instalados na região ela rompe com o tratamento tradicional dispensado pela historiografia que concebiam tais grupos como estanques e com papéis previamente definidos. Elisa procura dar ênfase ao caráter ativo das populações ameríndias nesse contexto de fronteira e de como os ameríndios procuravam tirar proveito de tal situação em prol de suas necessidades. Ao enfatizar as interações entre os diferentes grupos indígenas instalados na região platina, Elisa enfatiza que as identidades indígenas são o resultado de um processo histórico e dinâmico, no qual as dicotomias discutíveis perdem sentido ao serem analisadas a partir de situações concretas e de um contexto relacional.
O artigo de Ricardo Cavacanti-Schiel, doutor pelo Museu Nacional / UFRJ e pós-doutorando na Unicamp, aborda a história indígena nos Andes, especialmente os andes meridionais. Seu artigo é uma síntese primorosa que, a partir de inquietações etnológicas geradas a partir da comparação com as demais regiões nucleares da América, procura propor uma interpretação inovadora quanto aos mecanismos de funcionamento das sociedades andinas. Ao articular de forma direta e objetiva os dados da etnologia, da arqueologia e história, o autor estabelece uma discussão densa e consistente que desemboca em uma reavaliação de alguns dos pressupostos que serviam de fundamento para o caso andino. Ao investir na lógica cultural da incorporação, eles acabam por revelar outros mecanismos que conferem coerência e inteligibilidade às ações encetadas pelos nativos radicados na região dos Andes. Ao repensar o “principio ordenador” do Tawantisuyu (“as quatro partes do mundo”, como os Incas denominavam seu território), o autor acaba por revelar os demais códigos que serviam de fundamento para as sociedades andinas.
Paulo Rogério de Melo de Oliveira, professor na Universidade do Vale do Itajaí / SC, dedica atenção aos episódios conhecidos como a rebelião de Ñezu, um poderoso cacique e pajé que concentrava poderes políticos e religiosos entre os guaranis. Apesar dos contatos iniciais promissores, ao iniciarem a evangelização no território que atualmente corresponde à região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, logo os jesuítas enfrentaram a tenaz oposição de Ñezu, tido como um grande “feiticeiro”. Sua reação resultou na morte do missionário Roque Gonzáles, de destacada atuação na região. Através dessa atitude, ele visava a preservar o antigo modo de vida dos guaranis, que considerava ameaçado diante da presença dos padres em seu território, no qual procuravam introduzir a prática dos batismos entre os indígenas e erradicar a poligamia. O autor procura, a partir de uma leitura criteriosa dos interrogatórios realizados com os indígenas simpatizantes de Ñezu, esclarecer as motivações que levaram o referido pajé a executar os três jesuítas. Tal rebelião é indicativa das relações sempre tensas e ambíguas no tocante ao projeto catequético empreendido na America colonial.
O artigo de Maria Elena Imolesi, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA), dedica atenção ao cotiguazu, ou casa das recolhidas, espaço dentro das reduções guaranis destinado a acolher mulheres de distintas procedências e condições, tais como viúvas, órfãos ou mulheres de outras parcialidades indígenas. Apesar das escassas referencias a este espaço nos documentos jesuíticos de circulação pública, há muitas menções na documentação interna cuja preocupação era a de garantir a reprodução da organização social estabelecida nas reduções do Paraguai. A autora explora esse espaço como um indicador da instabilidade e do conflito das reduções com o seu entorno, a partir das medidas tomadas para preservar as mulheres e garantir a reprodução física, indicando que houve excessos na adoção de algumas medidas pelos jesuítas, sintetizadas na expressão “el cotiguaçu no és carcél”. Ao reconstruir a história social desse espaço, a autora procura demonstrar que nem tudo saiu de acordo com o planificado pelos missionários.
O artigo de Giovani José da Silva, professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, aborda a trajetória etno-histórica dos indígenas conhecidos como Chiquitanos, população ameríndia localizada atualmente no território que corresponde à Republica da Bolívia. A história desse grupo está relacionada ao projeto de catequese empreendido pelos missionários jesuítas na América que, apesar de uma continuidade em termos de práticas e inserção territorial, também apresenta uma série de ressignificações e adaptações em função da situação histórica e de contatos com a sociedade envolvente. A constante necessidade de mão de obra acabou determinando uma precarização das relações de trabalho nessa região, que conjugada a outros fatores resultaram em condições desumanas de exploração do trabalho indígena, em que castigos e torturas eram práticas correntes. Apenas na segunda metade do século XX, é verificado um movimento de libertação dos indígenas, que culminou com a consolidação das Tierras Comunitárias de Origen, servindo de base para uma reformulação das leis agrárias, que tem conferido visibilidade aos Chiquitanos em suas demandas atuais.
O texto de Susane Rodrigues de Oliveira, professora na Universidade de Brasília, dedica atenção ao ensino de história. Para tanto, aborda como as sociedades indígenas estão representadas nas fontes coloniais, muitas vezes apresentadas como imagens estanques da realidade ameríndia, sem esmiuçar em que condições e contexto elas foram produzidas. Sua pesquisa é o resultado de um projeto mais amplo que contou com o recurso de questionários aplicados aos alunos do ensino médio nas escolas do Distrito Federal. A proposta da autora é a de problematizar, a partir das fontes coloniais, os pressupostos que norteiam a produção do conhecimento histórico referente às populações ameríndias, para então desconstruir a noção recorrente presente em muitos livros sobre a história como uma verdade inconteste. Enfim, pretende demonstrar como o estudo do passado pode auxiliar na compreensão do presente e lançar desafios para o futuro.
Karina Moreira e Melo, doutoranda na Unicamp, apresenta-nos uma discussão pouco presente na produção historiográfica regional, no caso as questões referentes à definição de uma política indigenista na Província de São Pedro. O estudo de Karina está centrado na instalação do aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo – que até o momento não contava com um trabalho sistematizado sobre este espaço indígena formado em sua maioria por guaranis egressos das reduções. Através dos discursos proferidos pelos eclesiásticos e os políticos, principalmente no século XIX, a autora procura identificar as práticas indígenas, por vezes invisibilizada nessas manifestações públicas. A população do aldeamento de São Nicolau participou de inúmeros episódios bélicos na Província de São Pedro, com uma destacada atuação nos conflitos militares ou em atividades relacionadas à pecuária. A vivência nesse aldeamento, cuja longevidade chama atenção, permitiu a esses indígenas reelaborarem suas identidades, além de possibilitar a eles configurar novas relações sociais de maneira mais ampla e destacada do que imaginávamos até então.
Soraia Sales Dorneles, também doutoranda na Unicamp, apresenta-nos um texto que procura dimensionar o contato entre os indígenas do grupo Kaingang e as iniciativas de colonização no Rio Grande do Sul, durante do século XIX, primeiro com colonos alemães e posteriormente com os italianos. Com o avanço das frentes de colonização e a consequente ocupação das terras indígenas, foram intensificadas as experiências de contatos entre sujeitos que se desconheciam mutuamente. A autora procura demonstrar que a experiência cultural resultante desses encontros acaba por gestar novas formas de conceber as relações de alteridade e que nesse contexto a expressão “bugres” poderia tanto referir-se aos próprios indígenas como denotar certa indianização de pessoas que mantiveram uma proximidade com o mundo ameríndio. Nesse contexto, os processos de formação identitária são a resultante de situações concretas, no caso as contextuais.
A luta pela terra entre os Kaingang é o tema do artigo elaborado a quatro mãos por Ana Lúcia Vulfe Nötzold, professora na Universidade Federal de Santa Catarina, e Carina Santos de Almeida, doutoranda na mesma instituição. Tomando como estudo de caso os conflitos verificados na Terra Indígena Xapecó, em Santa Catarina, no século XX, as autoras procuram denunciar a expropriação territorial a que foram submetidos os Kaingangs instalados em Xapecó. Em boa medida, a usurpação dessas terras reservadas aos indígenas contou com a conivência de funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e mesmo de agentes do governo catarinense, pois consideravam a existência dessa Terra Indígena como um entrave ao modelo de desenvolvimento regional.
Marcio Antônio Both da Silva, professor na Unioeste / SC, em seu artigo, dedica atenção à questão fundiária e à política indígena no Rio Grande do Sul durante o governo do Partido Republicano Rio Grandense (PRR). O autor destaca que a apropriação territorial promovida nessa época, base da política de colonização e imigração no estado, foi verificada em uma região na qual estavam instaladas as principais reservas indígenas. Na sua avaliação, havia uma grande distância entre as políticas de proteção e tutela aos indígenas com o que se verificava na prática. Para exemplificar seu argumento recorre a um caso verificado em Palmeira das Missões / RS, através das informações contidas em um Processo crime, cujo desfecho resultou na morte de um índio e outros tantos feridos.
O último artigo que integra este Dossiê é de autoria de Antonio Carlos Amador Gil, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, que através de uma discussão pautada na bibliografia especializada procura dimensionar o espaço dedicado aos indígenas nas manifestações dos intelectuais mexicanos no período posterior à Revolução Mexicana. O autor demonstra que apenas com o governo de Lázaro Cárdenas começava a vigorar uma postura integracionista, que apesar de valorizar o papel dos indígenas na configuração do Estado mexicano deixava muito a desejar quanto às políticas públicas direcionadas às comunidades indígenas que seguiam atuantes no México pós-revolucionário.
Para finalizar o Dossiê, publicamos ainda a resenha de autoria Horácio Zapata, da Universidade Nacional de Rosário (Argentina), que aprecia o livro coordenado por Liliana Tamagno, intitulado: Pueblos indígenas: interculturalidad, colonialidad, política (Buenos Aires: Biblos, 2009).
Como organizador deste Dossiê, avalio que no seu conjunto a grande maioria dos textos reunidos para este volume procurou abranger diferentes situações vivenciadas pelos indígenas no Continente Americano, fato que resultou, como mencionou Guillaume Boccara, na gestação de Mundos Novos no Novo Mundo.
Eduardo Neumann
NEUMANN, Eduardo. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 34, dez., 2011. Acessar publicação original [DR]
A Idade Média no cinema – MACEDO; MONGELLI (CTP)
MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. Resenha de; PRATA, Rafael Costa. A Idade Média no Cinema, de José Rivair Macedo e Lênia Márcia Mongelli. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 05 – 05 de outubro de 2011.
Em 28 de dezembro de 1895, os irmãos Lumiere projetavam no porão de um salão de café em Paris, seus primeiros rolos de filmes compostos por imagens do cotidiano da sociedade francesa de outrora. Pouco tempo depois, em 1899, George Meliès, encenava “para a câmera cenas históricas recentes, como em L´affaire Dreyfus”.2 Conforme Rosenstone:
Os primeiros filmes históricos dramáticos não eram concebidos como investigações serias a respeito do significado dos acontecimentos passados. Eram momentos nacionais breves, muitas vezes não mais do que encenações teatrais que a platéia facilmente reconheceria (…).3
Contudo, “no final da década de 1910, houve o surgimento de uma outra tradição de filmes históricos que não hesitam em fazer perguntas e apresentar interpretações serias sobre o significado do passado”.4 Com isso, o Cinema começa a ganhar força, suscitando assim intensos debates envolvendo a apropriação do conhecimento histórico produzido pelo saber erudito por parte do campo cinematográfico.
Esses debates, em grande parte surgiam em decorrência de que o Cinema até então era visto pelo saber erudito como uma arte voltada às camadas populares, um entretenimento pueril despossuído de qualquer tipo de responsabilidade metodológica e histórica. Nascido nos porões de um café em Paris e reduzida a um publico muitas vezes formado pela classe operaria, o Cinema amargou por muito tempo ter de levar esse fardo adiante.
Esse muro foi sendo lentamente derrubado quando a partir da terceira geração dos Annales, historiadores como Pierre Nora e Marc Ferro, imbuídos da necessária defesa do alargamento das fontes históricas, criaram “um clima que permitiu que os acadêmicos passassem a levar a cultura popular mais a serio e começassem a observar mais de perto a relação entre filme e conhecimento histórico”.5 Não obstante, será então curiosamente o período histórico convenientemente denominado como Idade Média, marcado por uma gama de preconceitos e legendas negras edificadas historicamente pelos humanistas e posteriormente pelos iluministas do século XVIII, esta, a “Idade das Trevas” ou “Longa Noite de Mil anos”, o momento histórico mais procurado para as ambientações cinematográficas.
Procurando refletir como se dá tais relações, é que a obra “A Idade Média no Cinema” aparece com grande importância dentro do polêmico e conturbado cenário das relações entre o Cinema e os seus usos do saber histórico. Lançada em 2009 pelo Ateliê editorial, e de organização dos medievalistas, José Rivair de Macedo (UFRGS) e Lênia Márcia Mongelli (USP), tal obra nasceu curiosamente como fruto de inúmeras palestras, congressos e seminários realizados a partir do primeiro semestre do ano de 2001, quando, encabeçadas pela ABREM,6 foram realizadas em todo o país, lotando universidades, e outros centros de estudo, sempre levando daqueles locais, a certeza de que seria necessário se aventurar mais ainda sobre a temática a fim de responder aos inúmeros questionamentos que daqueles ambientes emergiam em profusão.
Partindo destas premissas, a obra então nos leva a uma importante reflexão acerca das representações incidentes sobre o Medievo no campo cinematográfico, principalmente quando “o que está em discussão é a necessária distinção entre uma Idade Média propriamente histórica, objeto de estudo dos medievalistas, e uma Idade Média vista em retrospectiva, isto é, uma certa idéia do passado medieval visto pela posteridade”.7 A proposta metodológica é a mais sensata possível, haja vista que todos os articulistas ao desviarem o seu olhar a estas apropriações cinematográficas, não procuram esquecer-se da linguagem, das subjetividades e objetivos, que são próprios ao Cinema, que devem ser entendidos, para se evitar os eternos choques entre ambos os campos.
Não é de se surpreender, portanto, que grandes obras de reconstituição histórica, feitas com consultoria de renomados historiadores, acabam sendo repudiadas por estes mesmos durante sua produção por diversos motivos apontados. Tal situação pode ser vista com clareza a partir de dois paradigmas clássicos ocorridos durante as filmagens da película de destaque, “O Nome da Rosa”, quando o renomado medievalista Jacques Le Goff, convidado para atuar como consultor histórico, acabou abandonando seu ofício durante a produção do filme e pediu para não ter seu nome posto nos créditos da obra, ao discordar em absoluto das decisões tomadas pelo cineasta Jacques Annaud durante o andamento da produção fílmica. Outro caso talvez mais significativo do que pode resultar tais choques, aconteceu durante a produção do filme “O Retorno de Martin Guerre”, no ano de 1982, quando a também consultora histórica contratada para a obra, a historiadora Natalie Zemon Davis, também discordara da recriação feita pelo cineasta Daniel Vigne, e indo mais além, em 1987, cinco anos após então, lança uma obra homônima ao filme, onde demostra toda a sua insatisfação e as diferenças de leituras ocorridas entre ela e o cineasta.
Em geral, A Idade Média que acaba aparecendo nas telas do Cinema, não é mais do que um mero espelho das angustias, sofrimentos e desejos da contemporaneidade, que encontram numa Idade Média sonhada ou fantasiosa, campo propicio como subterfugio ou como fuga da realidade. Um Medievo de Bruxas, de princesas e cavaleiros encantados e envoltos na mais pura magia do amor cortês e da coragem, cavalgando em meio aos perigos de uma floresta onde residem magos e outras figuras estranhas. O Medievo será “inapelavelmente, a Idade Média do fantástico e da religião, do Graal e do amor, das grandes guerras e das heroínas como Joana D`arc”.8 Daí é que:
É no âmbito da Medievalidade [conceito cunhado pelo mesmo e de fundamental importância no decorrer da obra], e não da historicidade medieval, que o cinema alusivo a Idade Média deve ser pensado.9 (…) As motivações da Medievalidade encontram-se estreitamente ligadas aos problemas atuais: os dilemas éticos do herói, a fidelidade aos princípios morais do individuo em relação ao grupo, a prevalência do bem sobre o mal.10
Sobre o aspecto temporal e temático: Áreas ou períodos da Idade Média aparecem com maior frequência no cinema do século XX. Não seria demais insistir no fato de que, comparativamente, os temas medievais que mais interessam aos cineastas digam respeito aos séculos posteriores ao XI, poucos filmes tendo abordado a Alta Idade Média (séculos V – X). Enquanto determinados temas (como a peste, as Cruzadas, os Vikings, as guerras, as querelas dinásticas) e determinados personagens (como Joana D´arc, Robin Hood, Henrique V, o Rei Arthur) são reiteradamente retratados, a partir de diversos ângulos ou pontos de vista.XI Para concluir, além destas e outras reflexões, esta significativa obra nos traz ainda seis ensaios independentes, que procuram manter a coesão ideológica sobre filmes renomados ambientados na Idade Média, procurando discutir como tais obras constroem e se utilizam deste tão procurado Medievo.
“A Idade Média no Cinema”é uma obra fundamental e que consegue contribuir em muito para o estudo da relação Cinema – História, demonstrando como o bom relacionamento entre os campos não precisa ser necessariamente uma utópica relação amorosa, mas uma compreensão de suas particulares dimensões, construções simbólicas e signos, que respeitadas, podem e muito contribuir para a construção do conhecimento histórico em todas as suas dimensões.
Notas
2 ROSENSTONE, Robert. A História nos filmes, os filmes na História, São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.27.
3 Idem, p.29.
4 Idem.
5 Idem, p.40-41.
6 ABREM – Associação brasileira de estudos medievais.
7 MACEDO, José Rivair. Introdução – Cinema e Idade Média: perspectivas de abordagem. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p.14.
8 PEREIRA, Nilton Mullet. Imagens da Idade Média na Cultura escolar. AEDOS, vol.2, No. 2, 2009, p.4.
9 MACEDO, José Rivair. Introdução – Cinema e Idade Média: perspectivas de abordagem. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p.18.
10 Idem, p.47.
11 Idem, p.46-47.
Referência
MACEDO, José Rivair ; MONGELLI, L. M. (Orgs.) . A Idade Média no Cinema. 1ªed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. v. 01. 268 p .
Rafael Costa Prata – Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: rafaelcostaprata@hotmail.com.
Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio – SILVA (AN)
SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p. Resenha de: ELMIR, Cláudio Pereira. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 273-279, jul. 2011.
Em agosto de 2011, completaram-se 50 anos desde a renúncia de Jânio Quadros da presidência da República. Este ato fundador, se assim podemos designá-lo, foi responsável, em parte, por estarmos comemorando, na sequência, os 50 anos da campanha liderada pelo governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, pela garantia da investidura constitucional do vice-presidente João Goulart no cargo deixado vago por Quadros. A campanha, ou movimento, da legalidade é definitivamente um levante gaúcho; o último, talvez (para aqui parafrasear o subtítulo do livro de Joaquim Felizardo, publicado pela Editora da UFRGS, em 1988). Este entendimento pode levar a crer — não como corolário necessário – que o patriotismo dos sulrio- grandenses, notadamente o de suas lideranças políticas, forjou o sentido do cumprimento da lei naquela circunstância, chamando a atenção da nação brasileira para, agora sim, uma necessidade inescapável.
A “coragem quase provocativa” de Leonel Brizola fez um presidente (SILVA, 2011, p. 11).
O livro de Juremir Machado da Silva dá voz às tantas vozes que ressoam essa história desde o momento em que o evento se fez acontecimento, no já longínquo inverno do ano de 1961. O autor, “[…] historiador, doutor em sociologia, jornalista, tradutor, romancista, professor universitário, colunista do Correio do Povo e apresentador da Rádio Guaíba” (SILVA, 2011, segunda aba do livro), traz em sua narrativa a polifonia do acontecimento. Por vezes, contudo, as vozes sobrepõem-se, e ao leitor fica difícil bem discriminar a origem exata da vocalização. De resto, dificuldade que alcança, com frequência, aos historiadores mais experimentados. A estrutura da narrativa — em parte determinada pelo critério cronológico, em parte subjugada às ações de Leonel Brizola – desdobra-se conforme o sabor da evocação errática do autor, não seguindo, portanto, um roteiro expositivo anunciado ao leitor. Este navega sem norte, porém, sem grandes surpresas.
Escrito no calor das comemorações do cinquentenário – atendendo, quem sabe, a “[…] essa estranha obsessão dos homens por datas chamadas de redondas” (SILVA, 2011, p. 218) –, o livro cumpre o desígnio de se interpor, na babel da história, como mais uma voz a compor o emaranhado discursivo que acompanha as efemérides no trabalho de construção da memória.1 Os “feitos” e os “fatos” nele encontram guarida e se imiscuem caprichosamente na narrativa. Neste trabalho de trazer à tona a “muita história” que a cronologia estrita requer, não é difícil encontrar as petites histoires (por exemplo, p. 118, 150, 170 e 214) que não cabem em trabalhos convencionais produzidos por historiadores acadêmicos já faz algum tempo. Nas palavras do autor: “Jornalistas sempre adoram anedotas sobre fatos históricos e fatos históricos como anedotas” (SILVA, 2011, p. 119). Se estas pequenas histórias que se conta – e se as conta muito no livro – não puderem ser verificadas ou demonstradas suficientemente, isso não importa.
Afinal, “[…] as lendas são sempre mais rápidas do que a verdade e quase sempre mais interessantes” (SILVA, 2011, p. 169). O império da voz do povo, quem sabe, pode nos eximir de nossas responsabilidades profissionais com o tratamento ponderado das versões urdidas, eliminando, inclusive, a necessidade de citar discriminadamente, no corpo do texto, as 55 obras lidas e as 25 pessoas com as quais o autor teve a oportunidade de “[…] conversar sobre os episódios”, ao longo de “um ano de trabalho” (SILVA, 2011, p. 223).
A escolha pelo método heterodoxo de inquérito aos documentos (entrevistas, jornais, programas de rádio, textos de memória) e à bibliografia reverbera em uma narrativa de justaposição, na qual a diferenciação do lugar de origem das fontes e o escrutínio das mesmas pelo autor não são capazes de produzir um exercício interpretativo nos moldes daquele que é feito usualmente no âmbito da crítica historiográfica. Ao citar, por exemplo, as memórias produzidas pelo Marechal Machado Lopes no final dos anos 1970 (ver capítulo 21) (SILVA, 2011, p. 189-198), o autor chama a atenção para erros de grafia de um sobrenome cometidos pelo militar em seu livro (Morgen, no lugar de Moojen); (SILVA, 2011, p. 194), embora não os localize expressamente, e ao fato de que “O narrador altera ligeiramente os fatos”; “Inventa outros fatos”; “Colore o passado”; “[…] comete […] anacronismo”2 (SILVA, 2011, p. 197). Entretanto, a resenha do livro do marechal, condensado este no referido capítulo, não contrapõe diretamente aos equívocos da memória – se assim pudermos entender – os fatos (segundo estabelecidos pela historiografia) ou outras memórias, mais exatas quem sabe. Um segundo exemplo diz respeito a uma conversa havida entre o autor e o Coronel Emílio Neme. O fato de o octogenário membro da Brigada Militar não se lembrar, em certo ponto do diálogo, em que ano teria ocorrido a Legalidade (SILVA, 2011, p. 147), deveria, desde o ponto de vista de um historiador habituado ao trabalho com fontes orais, ter demandado o estabelecimento de relações complexas no ato da interpretação da fala. De outra sorte, o princípio da alusão reina sobre o princípio da demonstração (por exemplo, p. 51). E, com isso, ficamos, novamente, com a etérea conclusão circular dita e redita intermitentemente no decorrer da narrativa: “Conta-se que tudo sempre depende de quem conta” (SILVA, 2011, p. 173). Aliás, “conta-se” excessivamente no livro.
Entretanto, não há apenas uma única ocasião em que o autor sugere captar o sentimento íntimo dos agentes sociais. Quando menciona um dos discursos proferidos por Brizola dos porões do Palácio Piratini, Silva estabelece uma analogia entre o então inquilino daquela casa e o governador que liderou a Revolução de 1930: “Talvez sinta a presença espiritual de Vargas enquanto sobe o tom do seu discurso” (SILVA, 2011, p. 65). Da mesma forma, mais adiante, quando diz: “Brizola comporta-se como uma mistura de esfinge e oráculo. Às vezes, tem o olhar perdido. Outras [sic], ordena maquiavelicamente isto e aquilo […]” (SILVA, 2011, p. 89). As conjecturas acerca do que passa na cabeça do jovem governador nas diferentes circunstâncias daqueles dias de tensão entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart continuam alimentando a imaginação do autor: “Em que pensa?” (SILVA, 2011, p. 132). Depois de algumas alternativas levantadas, assevera finalmente: “É mais provável que não pense em coisa alguma grandiosa, que siga sua intuição, sem metafísica nem grande arte, apenas com a determinação de um guerreiro, disposto a ser, se necessário, o último homem” (SILVA, 2011, p. 133). Aqui, como em outras – várias — passagens, insinuase o Brizola candidato a herói.
Não obstante algumas simulações de ironia no correr do texto acerca da biografia de Leonel Brizola, de maneira geral percebe-se que o tom da narrativa direciona-se no caminho de manter uma certa imagem difusa do líder político no Rio Grande do Sul, segundo a qual Brizola encarna alguns dos valores positivos do povo gaúcho. “Se fosse encostado na parede [pelo General Machado Lopes], cuspiria fogo pelas ventas. Afinal, [Brizola] era um gaúcho. E os gaúchos gostam de ver-se como indomáveis” (SILVA, 2011, p. 83). Caráter forjado na dificuldade da vida, órfão prematuro, Brizola responderia, nas ações de sua trajetória pessoal – e, especialmente, política – a um destino anunciado desde sempre. O governador do Rio Grande do Sul, na hora difícil da campanha pela posse de Jango, traria consigo, e fundiria em si mesmo, a imagem do pai que ele, a rigor, nunca conheceu. “Não seria impróprio imaginar que, encastelado no Palácio Piratini, em 28 de agosto de 1961, disposto a morrer pela Legalidade, Leonel de Moura Brizola […] pensava no seu pai, José Brizola, assassinado por resistir aos abusos do poder” (SILVA, 2011, p. 9-10). De fato não é fácil medir a distância que separa a retórica política das intenções mais íntimas de um homem. Mas é possível reconhecer nele, desde cedo, desde menino, “olhos cheios de determinação” (p. 16, 19 e 32). Nas palavras graves do autor:
[…] há homens que crescem na adversidade e fazem do risco a oportunidade de um salto para o futuro, homens como Leonel Brizola, saído dos confins do Rio Grande do Sul para escrever sua história em paralelo com a do Brasil, fundindo-se, por vezes, com ela, seguindo-a de perto, intuindo, quem sabe, que certas ações marcam para sempre uma vida e delas depende uma biografia (SILVA, 2011, p. 132).O começo e o fim. O fim no começo. O destino predestinado.
A ilusão biográfica? No livro Vozes da legalidade, é possível reconhecer a opção por uma dicção francamente regional. Esta escolha se faz perceber tanto pela abordagem empreendida quanto pelas referências documentais e bibliográficas que a sustentam. No primeiro caso, a ênfase na figura de Leonel Brizola – sem ser uma biografia propriamente – ofusca o estabelecimento de relações em âmbito nacional que são fundamentais para compreender o processo histórico do qual se quer tratar. No segundo caso, o autor sustenta seus argumentos em bibliografia flagrantemente desatualizada e pouco especializada. Por outro lado, dedica-se um capítulo à Maria Teresa Goulart, esposa de Jango, atribuindo a ela uma importância questionável, ao dizer: “Maria Teresa não tem currículo. Tem biografia. Falta-lhe um biógrafo” (SILVA, 2011, p. 206).
O texto expressa o propósito de ser uma espécie de “conversa com o leitor”. É como se tivéssemos, pelo livro, mais uma voz a contar a história. As marcas de oralidade nele presentes são muitas.
É quase uma memória. A decisão de contar a história é mais intensa, no meu juízo, que a articulação sistemática das razões que explicam a mesma. Consoante com esse esforço, os lugares-comuns proliferam (2011, p. 185) e a narrativa precipita-se em interjeições (2011, p. 212) e em longas frases, com dezenas de linhas sem ponto (por exemplo, o início do capítulo 20). Não se sabe ao certo se, nesse caso, faltou um cuidado maior no processo de editoração, ou se, na verdade, trata-se de “escolha estilística” do autor.
O primeiro e o último capítulo remetem-se mutuamente. Em ambos, a discussão sobre o nome assume a centralidade da narrativa; mais no capítulo inicial do que no derradeiro. Contudo, é na última folha do livro que a decifração se dá. Tanto a do nome que sua mãe quis para Brizola, “Itagiba”, quanto aos outros, os quais ele efetivamente carregou pela vida: Leonel de Moura Brizola. Diz o autor: “Conta-se que a palavra indígena Itagiba significa braço forte e duro como a mais dura das pedras. Conta-se que o nome Leonel vem do latim e quer dizer pequeno leão (SILVA, 2011, p. 218). Sobre o nome do meio, Moura, faz-se uma digressão mais longa, associando o mesmo a uma localidade de igual nome em Portugal vinculada aos mouros: “Conta-se que o portador desse sobrenome é dotado de muita energia, como dona Oniva [mãe de Brizola], e tem espírito aguerrido” (SILVA, 2011, p. 219). Por fim, resta a menção ao sobrenome que o tornou conhecido: “Conta-se que o nome Brizola, de origem italiana, significa grisalho e que quem o carrega já nasce maduro” (SILVA, 2011, p. 219). Na inscrição do nome, o caráter. No nome, o destino. Novamente, o princípio determinando o desfecho.
Para concluir, algumas palavras sobre o nome do livro: Vozes da legalidade. Política e imaginário na era do rádio. Embora o título e a ficha catalográfica elaborada pela editora possam fazer supor, o “rádio” não é um personagem (tampouco um objeto de investigação) importante da narrativa. O “imaginário” é um termo que não se sustenta como articulador da abordagem empreendida. Já a expressão “era do rádio”, não obstante o fundamental papel desempenhado por esse meio de comunicação ainda no início dos anos 1960 e, notadamente, no evento em questão, é um designativo que faz justiça, a bem da verdade, às décadas de 1940 e 1950.
Notas
1 Vale dizer que esta não é a primeira vez que o autor se dedica a escrever sobre temas relacionados a efemérides. No cinquentenário da morte de Getúlio Vargas, o autor publicou um livro (romance) sobre o político (SILVA, Juremir Machado da. Getúlio. Rio de Janeiro: Record, 2004) e, em 2010 – passados oitenta anos do levante que levou Vargas ao poder – Silva publicou, pela mesma editora carioca, um romance sobre a Revolução de 1930 (SILVA, Juremir Machado da. 1930. Águas da revolução. Rio de Janeiro: Record, 2010). Note-se que, nestes dois casos citados, diferentemente do livro em exame, não se verifica uma opção editorial pelo gênero histórico ou historiográfico.
2 A tentação do cometimento de anacronismo parece rondar a todos quando tempos inconciliáveis se encarregam, segundo nossa particular vontade, de se fazerem unos: “Naquele agosto gelado de 1961, em Porto Alegre, ninguém podia imaginar que quase 30 anos depois haveria um Jânio sem o mesmo português, mas com a mesma megalomania moralista, o ‘caçador de marajás’, Fernando Collor, que com apoio das mesmas e outras elites, tentaria varrer a sujeira nacional, jogando-a para baixo do tapete, até ser enxotado por não ter tido, como Jânio, a sabedoria de cair fora” (SILVA, 2011, p. 53). Nas páginas 96 e 97, encontra-se, novamente, um comentário anacrônico, identificado pela narrativa como “nota de rodapé”, ainda que as referidas “digressões” ocupem lugar no corpo do texto, e não na parte inferior da página, como seria de se esperar de um texto acadêmico.
Referências
FELIZARDO, Joaquim José. A legalidade. Último levante gaúcho. 3ª ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.
LOPES, José Machado. O III exército na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: Alhambra, 1980.
SILVA, Juremir Machado da. Vozes da legalidade. Política e imaginário na Era do Rádio. Porto Alegre: Sulina, 2011. 223p.
Cláudio Pereira Elmir – Professor do PPG-História da Unisinos. E-mail: elmir@unisinos.br.
João Goulart. Uma biografia – FERREIRA (AN)
FERREIRA, Jorge. João Goulart. Uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713p. Resenha de: WASSERMAN, Cláudia. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 281-285, jul. 2011.
“Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos.” Jorge Ferreira
Para que serve a biografia de um ex-presidente do Brasil? Para esquadrinhar a história de vida de um personagem importante do século XX brasileiro, conhecer suas motivações, sua vida pessoal, suas dúvidas ocultas e suas realizações palpáveis. Neste trabalho, Jorge Ferreira gastou dez anos de sua vida profissional, pesquisando, explorando e indagando sobre João Goulart. Os outros tantos anos que Ferreira tem de estrada no ofício de historiador serviram como bagagem cognitiva para que a biografia de Jango não fosse apenas o retrato do personagem, mas também se configurasse como uma análise aguçada sobre nossa história contemporânea.
O livro desenrola-se em ordem cronológica, desde antes do nascimento de Janguinho, em 1919, até sua morte, em 1976, sem deixar de examinar os desdobramentos decorrentes das investigações sobre a hipótese de assassinato, concluídas com o arquivamento do processo de averiguação em 2010.
A tendência de construir uma ilusão biográfica, identificada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (A Ilusão Biográfica, 1996), não se confirma para a biografia construída por Jorge Ferreira, ainda que o autor de Jango: uma biografia tenha recorrido à “sucessão cronológica, às sequências ordenadas e às relações inteligíveis” (BOURDIEU, 1996, p. 75). Essas, no entanto, não cedem à “ilusão retórica” (p.76), porque foram desenhadas a partir de pesquisa minuciosa, que deixa entrever “a estrutura da rede” (p. 81).
Mesmo fiel à diacronia, Ferreira rejeita os conceitos de unidade e coerência do sujeito, fornecendo ao leitor suficientes elementos para compreender que João Goulart teve uma sinuosa trajetória, perpassada pelo mutável panorama da sociedade brasileira: “[…] não procurei montar um quebra-cabeças para, ao final, encontrar um quadro de coerências. Também evitei, o equívoco, tão comum ao relatar a vida de um personagem, de apontar suas diversas incoerências.” (p. 18). Em outras palavras, Jorge Ferreira conseguiu driblar a “ilusão biográfica”. Para tanto, valeu-se de infl uências teóricas consistentes – entre as quais ele menciona Jean-René Pendaries, Phillipe Levillain, Giovanni Levi, Chrisopher Lloyd, Vavy Pacheco Borges – e do quase infalível procedimento de “[…] recorrer a uma multiplicidade de fontes” (p. 16-17).
O controle da técnica, a consistência teórica e a profusão de fontes não fazem do volume um compêndio enfadonho com centenas de citações. O livro tem uma linguagem propositadamente fl uida, mas não peca pelo excesso de empiria. Ao contrário, seu primeiro mérito é realçar duas polêmicas, presentes, nem sempre tão evidenciadas, na historiografia brasileira. Em primeiro lugar, a respeito da ausência/quase-supressão de João Goulart dos estudos históricos do nosso país e, em segundo lugar, sobre a personalidade dessa personagem e sua suposta vacilação diante do golpe de 1964.
Ao realçar esses dois pontos, Ferreira evidencia sua admiração pela personagem. Mas o que poderia parecer falta de objetividade, merece ser investigado. Ferreira consegue, com habilidade indisfarçável, compreender a origem dessas características da historiografia brasileira em relação a Jango. Explica – a partir da noção de “[…] usos políticos do passado” – porque e por quais grupos sociais Jango foi acusado de covarde, bem como que setores da sociedade se interessaram, ao longo da história recente, por esquecer/eclipsar a sua passagem pela presidência da república. Com isso, apesar da aparente admiração pelo biografado, o que Ferreira procura é despersonalizar a história, evitando recair sobre o indivíduo todo o peso do passado.
Ao longo do livro, Jorge Ferreira vai mostrando que a construção da personalidade de Jango não estava definida a priori, mas que foi sendo moldada a partir de infl uências, de lealdades e até mesmo, fruto da ingenuidade e da inconsistência política que caracterizaram seus primeiros passos na vida pública. A profusão de outras personagens da história do Brasil, algumas altamente estudadas pela historiografia e outras desconhecidas, obscurecidas pelo tempo e pelas omissões propositais, é um mérito adicional do livro. Nesse aspecto, o livro também aborda instituições – algumas delas igualmente pouco estudadas pela historiografia brasileira – como a trajetória do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), lugar privilegiado de militância ao qual Jango dedicou sua vida inteira; o sindicalismo brasileiro, que cresceu enormemente na década de 1950, acompanhado de perto pelo percurso do político João Goulart. A imprensa, as forças armadas, o parlamento são algumas outras instituições brasileiras abordadas no livro. Foram evidenciados também processos, tais como a industrialização e o capitalismo brasileiros, oscilantes entre os ideólogos do nacional-desenvolvimentismo e do desenvolvimento integrado ao capital monopólico.
Os capítulos oito e nove, respectivamente, De março a março: rumo à radicalização e Rumo ao desastre, são eletrizantes. Ferreira utiliza grande parte da bibliografia disponível a respeito do golpe civilmilitar e narra o desenrolar daquele processo através da figura presidencial, de seu apreço pela democracia e pela conciliação. O título do capítulo dez, Dois dias finais sugere o início de uma narrativa linear dos fatos que se sucederam entre os dias trinta de março e primeiro de abril de 1964, mas o capítulo surpreende com um intenso debate historiográfico, motivação principal do livro e de toda a pesquisa.
De um lado, Ferreira não aceita que políticos, cientistas sociais e historiadores tenham responsabilizado Jango pelo golpe, ou que tenham atribuído o desfecho trágico daqueles dias à clara indisposição do presidente em resistir ao golpe. Para corroborar sua perspectiva e explicar os motivos desse uso abusivo do passado, o autor da biografia de Jango ressalta a personalidade conciliadora do presidente, ressaltando que “Conciliação, aliás, era o termo mais insultoso entre as esquerdas naquele momento. Em uma conjuntura política de crescente radicalização, aquele que não fosse radical era considerado conservador ou, mesmo, reacionário” (FERREIRA, 2011, p. 292).
Acompanhando o raciocínio de Ferreira: o Brasil vivia um dos períodos mais democráticos de toda a sua história. A participação e as reivindicações das classes subalternas, antes ignoradas e/ou mantidas sob rígido controle coercitivo, somente aumentavam em ritmo alucinante. Um dos horizontes desses grupos sociais era o socialismo que, segundo eles próprios, e a partir do exemplo cubano, deveria ser desencadeado a partir de uma revolução.
Neste contexto, as propostas de conciliação só poderiam soar como um obstáculo concreto ao seu projeto e, portanto, como adesão velada ao projeto antagonista. Sendo que os antagonistas da transição ao socialismo e da revolução brasileira também não confiavam que a postura conciliadora de Jango pudesse garantir a continuidade do sistema econômico, político e social por eles defendido.
Por isso, a postura conciliadora do presidente João Goulart foi tão veementemente contestada. Porque ser conciliador, em meio ao contexto de polarização, não significava ficar em cima do muro, mas adquiria sentido de um firme posicionamento político, nesse caso, contrário às transformações sistêmicas.
Restaria discutir criticamente esse termo tão difuso para nosso campo da história e tão caro aos cientistas políticos: o conceito de conciliação. Buscar o entendimento entre as partes, procurar fazer acordos e compromissos políticos é um comportamento louvável nos homens públicos, que pode impedir graves crises políticas.
Mas, até onde pode ir o acordo, o entendimento e a conciliação? Até onde se pode abrir mão das próprias convicções? Diante de projetos antagônicos de sociedade e de nação, as convicções devem ser abandonadas pelos homens públicos em nome da conciliação?
Por outro lado, Ferreira tem razão, não foi efetivamente essa personalidade conciliadora de Jango que provocou o golpe nem uma atitude mais consistente poderia ter impedido o desfecho, mas isso também não vem ao caso. A história não é mestra da vida, certamente não teremos uma repetição desses episódios que possam desmentir uma ou outra interpretação.
Fato emblemático e, ao mesmo tempo, curioso, no entanto, é que o apelo à conciliação e à boa acolhida a essa postura de negociação pacífica dos confl itos sociais, harmonização das relações etc.
esteve presente nos dois momentos mais polarizados da nossa história contemporânea: o período pré-64 e a luta pela redemocratizado por volta dos anos 80. No primeiro período, a posição conciliatória não impediu o golpe de morte à democracia e, no segundo, essa harmonização impediu que a sociedade brasileira soubesse de verdade quem foram os responsáveis por esse atentado.
A pesquisa sobre o exílio do presidente Goulart foi primorosa, ajuda a compreender as relações entre exilados, os ambientes dos países de acolhida, as relações entre os militares dos países assolados por ditaduras e as tentativas de articulação política para o retorno ao país. Jango voltou morto ao Brasil em 1976, para ser enterrado em São Borja, segundo Ferreira, uma concessão do governo militar; não sabemos como ele agiria politicamente caso tivesse sido anistiado em 1979. Mas sabemos o que disse Leonel Brizola ao chegar ao país, o mesmo Brizola impaciente que tanto criticou a “falta de atitude” do cunhado presidente. Entrou no Brasil por Foz do Iguaçu no dia 06 de setembro de 1979 e falou pouco, deixando claro que aqueles que o seguissem no retorno ao Brasil deveriam ter “cautela, paciência e prudência”. Um indício de que a ideia da conciliação voltaria a assombrar a história recente do país.
Claudia Wasserman – Professora do PPG-História da UFRGS. E-mail: claudia.wasserman@ufrgs.br.
Campanha da Legalidade / Anos 90 / 2011
A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX – MORGENTHAU (A)
MORGENTHAU, Henry. A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 314 p. Resenha de: SILVA, Rogério Fernandes. Antítese, v. 4, n. 8, jul./dez. 2011.
Demorou 92 anos para que a obra do embaixador dos Estados Unidos Henry Morgenthau fosse traduzida e editada em língua portuguesa. O livro cujo título em nossa língua é extremamente longo: “A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX (Tradução de Marcello Lino)” diferente do título original em inglês “Ambassador Morgenthaus Story” bem mais simples. A obra é um dos documentos mais importantes do século passado, pois relata o início do extermínio étnico e cultural contra os cristãos armênios (1915-1923), inaugurando uma prática que, com o passar dos anos, seria conhecida através da palavra genocídio. A expressão surgida em 1944 gerou um termo que visava dar um estatuto jurídico específico aos crimes de guerra contra minorias étnicas, religiosas ou culturais na Segunda Guerra Mundial. O livro é dedicado ao presidente americano Woodrow Wilson (1912-1921), idealizador da Liga das Nações. A obra é dividida em 29 capítulos curtos, sendo os últimos um pouco mais longos, todos eles ricos historicamente. As 324 páginas passam rapidamente, pois o texto é elegante e de fácil compreensão. Pode-se dividir em apresentação em língua portuguesa dos tradutores, um pequeno prefácio do autor e o corpo do livro em duas partes principais. A primeira seria sobre a convivência de Henry Morgenthau com os políticos turcos. A segunda parte começa a partir do capítulo vinte e dois que está relacionada com o genocídio do povo armênio. Na segunda parte, estão muitos dos relatos dos massacres que foram feitos por missionários norte-americanos, pois ao chegarem à capital do império procuravam o embaixador para comunicar as atrocidades.
Diante das informações dessas fontes e de outras um quadro terrível de atrocidades começa a ficar nítido. Demorou um pouco até que a história das atrocidades armênias chegar à embaixada americana com todos os detalhes horríveis. Em janeiro e fevereiro, relatórios fragmentados começaram a surgir aos poucos, mas a tendência, no início, era considerá-los meras manifestações das desordens que haviam prevalecido nas províncias armênias por muitos anos. Quando chegaram de Urumia, tanto Enver quanto Talaat os descartaram como exageros descabidos […]. Naquele momento não estava claro, agora vejo que o governo turco estava determinado a esconderas notíciais do mundo exterior enquanto fosse possível (MORGENTHAU, 2010, p. 255).
Os dois principais grupos envolvidos nos massacres têm origens distintas. Primeiramente é preciso uma breve introdução eles. A nação Armênia fazia parte do Império Otomano. Uma nação de tradição milenar, com língua própria e cultura. São descendentes das tribos hurritas que vieram da Índia a partir do século XVIII a.C. Os armênios são, portanto, do ramo linguístico indo-europeu. Eles chegaram à Ásia Menor e lá se estabeleceram. No primeiro século de nossa era, segundo a tradição, a região foi evangelizada por Bartolomeu e Judas Tadeu, apóstolos de Cristo. Os dois foram martirizados na região, mas implantaram o cristianismo nas áreas montanhosas da Armênia. A nação teve uma história de numerosos martírios um forte indício da implantação a fé cristã na região. No ano de 301, a Armênia tornou-se o primeiro país do mundo a proclamar essa doutrina religiosa como religião de Estado.
Na formação do antigo Império Otomano e, consequentmente, da atual Turquia, o grupo étnico dos turcos seljúcida, ramo dos turcos oguzes, vieram da região onde hoje é o Turquestão, eram um povo guerreiro que aderiu a fé islâmica. A partir do século XI eles invadiram a Ásia Menor e converteram-se ao Islã, através da força, a maior de todos os habitantes desta região. Dominaram os povos de outras etnias, entre estes, os armênios. Em 1071, invadiram a região da Armênia e em 1300 chegaram à Anatólia, tomou todo o leste do Império Bizantino, Constantinopla no oeste caiu, no meado século XV, junto do que restava de tal Império.
Voltando à narrativa de Henry Morgenthau, norte-americano de origem judia, foi embaixador na Turquia no período da Primeira Guerra Mundial e presenciou uma das primeiras atrocidades promovida por um Estado-nação. A Alemanha, no início do século XX, levou a Bulgária, a Romênia e a Turquia a Primeira Guerra como aliadas, Morgenthau era na época embaixador norte-americano em Constantinopla. A obra em questão é um depoimento pessoal de quem conviveu com os políticos turcos, estes diretamente responsáveis pelo mais longo massacre do século XX. Cerca de um milhão e meio de cristãos armênios foram mortos a mando dos fundadores da Turquia moderna, um grupo que ficou conhecido como os Jovens Turcos.
O grupo dos Jovens Turcos pretendia modernizar a sua região de maneira autoritária: Essa afirmação representava o ideal dos Jovens Turcos para o novo Estado, mas era ideal que evidentemente estava além da capacidade de realização do grupo. As raças que foram maltratadas e massacradas durante séculos pelos trucos não podiam se transformar da noite para o dia em irmãs, e os ódios, ciúmes e preconceitos religiosos do passado ainda subdividiam a Turquia em uma miscelânea de clãs em guerra.
Acima de tudo, as devastadoras guerras e a perda de grandes partes do Império Turco haviam destruído o prestígio da nova democracia. Houve muitos outros motivos para o fracasso, mas não é necessário discuti-los neste momento (MORGENTHAU, 2010, p. 22). Os Jovens Turcos formaram um grupo político heterogêneo que pretendia reverter às perdas territoriais e esfacelamento do Império Otomano. Além de promover reformas constitucionais, muitas de caráter secular e pró-ocidente, e assim acabaram impondo suas idéias através de muito derramamento de sangue. Os principais articuladores, para Henry Morgenthau, foram Talaat Paxá, ministro do interior, o germanófilo Enver Paxá, ministro da guerra. Como Morgenthau os descreve? Apesar do ideal inicial dos Jovens Turcos, este acabar sendo deixado de lado por causa das prerrogativas do poder político. Eles não eram mais uma força política regeneradora, pois haviam abandonado qualquer expectativa de reforma. Talaat, Enver e Djermal (outro Paxá) tinham por detrás deles uma comissão de quarenta homens. Morgenthau chega a comparar os Jovens Turcos com gangues americanas, isto por causa do recurso do assassinato e “homicídio oficial” o governo turco não era bem visto pelas autoridades americanas da época.
O embaixador americano conviveu com os administradores do Império Otomano que usurparam o poder com um golpe. Esses homens pretendiam modernizar a nação que acreditavam estar em frangalhos depois de sucessivas derrotas militares.
Para tanto, o embaixador notou que a aproximação da Turquia com a Alemanha levaria o país, contando com capital alemão, a uma reestruturação. Os Jovens Turcos acreditavam na possibilidade de tornar-se uma potência regional graças à aliança com as nações da Europa central. Alguns vislumbravam o Império retornar a sua glória antiga e estender seu poder pelo mundo. Os dirigentes turcos estavam interessados na ajuda modernizadora dos germânicos e esses últimos na posição estratégica da Turquia, que poderia ser utilizada para ameaçar o Império Russo, em caso de guerra.
Como bom americano, o embaixador fala sobre a Doutrina Monroe de forma positiva, para ele foi ela que salvou o México da interferência francesa e faltou igual à Turquia, pois esta acabou nas mãos alemãs sem que nenhuma potência ocidental interviesse (Idem, p.33).
No caso do México, a ingerência desastrada do Imperados francês Napoleão III, na tentativa de estender a influência na América, implantou uma monarquia fantoche no México (1864–67). Com ajuda dos americanos esse governo foi derrubado e o imperador estrangeiro Maximiliano, arquiduque austríaco executado. A Doutrina Monroe podia ser resumida como “América para os americanos” que visava à interferência dos norte-americanos em caso de haver novas ações dos países europeus sobre as Américas. Essa ideologia possibilitou a reserva de mercado para os americanos e intervenções militares em vários países da América Latina.
Vale ressaltar que o primeiro capítulo do livro é dedicado a influência alemã sobre o Império Otomano e ao representante máximo desse poder: o embaixador barão Von Wangenheim, escolhido pessoalmente pelo Kaiser, representante perfeito dos preconceitos teutônicos, raciais e militaristas, em moda no império alemão. Von Wangenheim foi um dos maiores incentivadores da aliança turca com a Alemanha e ficou indiferente diante dos massacres. Para o embaixador americano, a atitude alemã e de seu embaixador no Império Otomano foram responsáveis pelo genocídio durante os anos da Primeira guerra Mundial. Ao descrevê-lo, Henry Morgenthau ressalta: “Ao escrever sobre Wangenheim, ainda me sinto afetado pela força de sua personalidade; […], ele era fundamentalmente impiedoso, despudorado e cruel.” (MORGENTHAU, 2010, p. 19). Consequentemente, Morgenthau via o embaixador alemão como seu antagonista perante a defesa de sentimentos humanitários, segundo ele, em uma terra governada por bárbaros.
A luta para assegurar a integridade dos estrangeiros pelo embaixador, junto às autoridades turcas foi titânica, pois os alemães as instigavam e manipulavam. No princípio dos combates o governo do Império Otomano já estava nas mãos da Alemanha. Os argumentos da oposição civilização versus barbárie foram usados diversas vezes por Morgenthau. A polidez do embaixador não permitia expressar sua opinião publicamente seus preconceitos sobre a cultura turca, que apesar de compreendê-la um pouco, via-os como “selvagens com sede de sangue” (MORGENTHAU, 2010, p. 200).
A época está relacionada à consolidação do Imperialismo, a disputa por mercados lucrativos levam as nações mais industrializadas a ocuparem regiões diversas pelo mundo. Os países europeus acabaram criando Uma das justificativas era que as colônias seriam tuteladas pelas nações mais adiantadas, por isso mais civilizadas.
Seriam como crianças bárbaras aprendendo a crescer como civilizações e o modelo seria a própria Europa Ocidental. No período que exerceu como embaixador em Constantinopla eclodiu a Primeira Guerra Mundial. As nações europeias já estavam há muito tempo em disputa pelas colônias mais lucrativas começam a combater umas as outras, o embate era ansiosamente esperado. O Antagonismo Inglaterra e Alemanha cresceu tanto que leva diversos países ao combate levando outros países com eles.
Porém, existia um medo de que elementos cristãos dentro do Império Otomano se aliar aos russos. A intenção de eliminar os armênios foi premeditadamente planejada com afinco pelos governantes turcos. Quando ocorre a Primeira Guerra Mundial os turcos aproveitam a chance: Para que aquele plano de assassinar uma raça fosse bem-sucedido, dois passos preliminares teriam de ser dados: seria necessário neutralizar o poder de todos os soldados armênios e privar de armas os armênios em todas as cidades e vilarejos. Antes que a Armênia pudesse ser massacrada, era necessário torná-la indefesa (MORGENTHAU, 2010, p. 237).
O governo turco resolveu deportar os armênios sobreviventes dos massacres iniciais, em sua maioria idosos mulheres e crianças e os forçaram a sair de suas casas e marcharem para o deserto, muitos só com as roupas do corpo. Forçados a voltar para sua terra ancestral foram expulsos das cidades e vilarejos, pois estavam espalhados por todo Império. Numerosos morreram no caminho de fome e exaustão; nessas marchas da morte as pessoas eram atacadas e mortas ou feitas prisioneiras para servirem de escravas.
Em vez de simplesmente massacrar a raça armênia, eles decidiram deportá-la. Nas seções sul e sudeste do Império Otomano fica o deserto sírio e o vale da Mesopotâmia […], e hoje uma terra estéril triste e desolada sem cidades, aldeias nem vida de qualquer espécie, povoada apenas por algumas tribos beduínas selvagens e fanáticas (MORGENTHAU, 2010, p. 242).
O autor conta detalhes quase íntimos da diplomacia envolvida e os planos dos embaixadores europeus em Constantinopla. Tramas políticas, movimentos militares, características culturais, físicas e psicológicas dos personagens, nada fica de fora da percepção de Morgenthau. Sua estadia propiciou um relacionamento muito próximo como os protagonistas políticos da região. E essa intimidade fora determinante para seu afastamento voluntario de Constantinopla e retorno aos EUA, não aguentava mais a companhia dos homens responsáveis por tantas mortes. Muitos desses políticos locais queriam que ele permanecesse como embaixador, mas: Meu fracasso em deter a destruição dos armênios transformou a Turquia em um lugar terrível para mim e considerava intolerável a minha associação diária com homens que, por mais gentis, […], ainda exalavam o cheiro do sangue de quase um milhão de seres humanos (MORGENTHAU, 2010, p. 296).
A impressão que fica é a de um Henry Morgenthau que se tornou em Constantinopla uma figura quase quixotesca lutando pelos seus ideais humanitários, porém, amargurado pela sua impotência. Os políticos turcos demonstravam afabilidade para com sua pessoa, mas dissimulavam que iriam resolver em favor dos armênios e continuaram com as mortes. O que o desanimou foi uma estrutura de poder antiga alicerçada na subjugação violenta, no ódio e na intolerância. Portanto, a leitura desse livro é de suma importância, pois nos ajuda a compreender o surgimento do genocídio no século XX, e a sua relação com o Estado-nação moderno. Esse tipo de eliminação em massa persistiu durante todo o século passado, mas ainda ameaça persistir e continuar a desenvolver-se nos tempos atuais.
Rogério Fernandes da Silva – Professor de rede pública da cidade de Maricá e Estadual do Rio de Janeiro, especialista em História do Brasil. E-mail: prof_rfernandes@yahoo.com.br.
O tutu da Bahia. Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850 | Dilton Oliveira de Araújo
Nos últimos anos, os estudos sobre a conformação política do Estado e da Nação brasileiros no Oitocentos têm fornecido valiosas contribuições para a compreensão das experiências vivenciadas por homens e mulheres em um período fortemente marcado por amplas transformações políticas. Ao se debruçarem sobre temas relacionados à dinâmica da vida política no Brasil do século XIX, sobretudo no que diz respeito à diversidade de buscas de alternativas em meio a um conturbado processo de construção do Estado nacional nas primeiras décadas desse século, as pesquisas apontam para uma sociedade rica em manifestações políticas de variado tipo, cujo elemento central indica um acentuado aprendizado coletivo e individual resultante dos muitos confrontos políticos que, não raras vezes, saíram dos gabinetes e dos espaços institucionais para ocuparem as ruas e as praças públicas do Brasil Imperial. Felizmente, aos poucos começa a adquirir solidez o entendimento de que a constituição do Estado nacional, formalizado enquanto corpo político em 1822, não foi um projeto conquistado sem grandes atritos nas diversas províncias que compunham o vasto território da antiga América portuguesa. É, nesse sentido, que se insere o livro de Dilton Oliveira de Araújo, O tutu da Bahia: transição conservadora e formação da nação, 1838-1850, fruto da sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal da Bahia, onde atua como professor.
O que chama a atenção, de imediato, no livro de Dilton Araújo é o título – O tutu da Bahia – adotado para exemplificar o clima tenso e de suspeição que se instalou na província nos anos seguintes à derrota da Sabinada. Conforme esclarece, tutu significava medo, pavor, algo que provocava nos indivíduos o receio de que alguma coisa temível estava para acontecer. “A insurreição era uma tutu para meter medo aos legalistas”, dizia o Correio Mercantil de 19 de junho de 1838, poucos meses depois de as tropas do governo reconquistarem a cidade de Salvador do controle dos sabinos. E aqui reside, certamente, a originalidade do seu trabalho. A violenta repressão que se abateu sobre os rebeldes que promoveram a sabinada foi suficiente para varrer da província baiana novas tentativas de contestação? O que aconteceu com as personagens centrais – e outras menos conhecidas – das lutas rebeldes ocorridas nas décadas de 1820 e 1830? Quais as dificuldades, antigas e novas, encontradas pelas autoridades locais para selar o pacto político necessário à conformação da unidade nacional? Essas são algumas das questões que o autor busca responder ao se debruçar sobre a conjuntura política que marcou a Bahia nos anos de 1838-1850. Para isso, recorre, principalmente, aos periódicos que circularam no período, responsáveis, em grande medida, por dar vazão ao clima de insegurança presente naqueles anos. Mas, em que medida, essa instabilidade política tinha correspondência na realidade?
A hipótese levantada pelo pesquisador é que a tão propalada pacificação da Bahia após os anos 1840 foi um objetivo duramente perseguido pelas autoridades políticas – tanto da província quanto em âmbito nacional – associadas às elites econômicas locais. No entanto, a pulsação da sociedade baiana, evidenciada pela documentação, delineava um quadro oposto ao desejado: “A pacificação, mais do que uma realidade consumada, era um devir histórico, que foi, a posteriori, incorporado ao discurso dos historiadores e, anacronicamente, imputado a uma época à qual não pertencera” (2009, p.22). A conquista da estabilidade política após um período de grande turbulência foi, portanto, fortemente almejada por grupos políticos e econômicos e variados foram os caminhos utilizados para a sua efetivação.
Uma das primeiras constatações importantes feitas por Dilton Araújo é que a historiografia sobre o período pós-Sabinada deixou um imenso vazio sobre o tema. A rigor, os estudos que têm a questão política como foco de análise se dirigiram quase que exclusivamente para as rebeliões ocorridas em 1798 e 1838. Quando muito, as abordagens sobre a dinâmica política na província baiana restringiram-se aos espaços institucionais sem fazer alusão ao que ocorria fora desses ambientes. Afora isso, a ênfase é dada nas questões econômicas ou culturais. Desse modo, o que sobressai nas obras analisadas pelo autor – inclusive em estudos clássicos sobre a história da Bahia a exemplo daqueles produzidos por Braz do Amaral e Luiz Henrique Dias Tavares e que serviram como referências importantes em trabalhos posteriores –, é a incorporação reiterada da ideia de pacificação da província e, em decorrência, a omissão, com raras exceções, de posicionamentos distintos aos projetos políticos capitaneados pelos governos local e central.
Na esteira das pesquisas recentes que buscam recuperar a historicidade de categorias como nação, federalismo, centralização, o historiador parte da concepção de que o processo de unificação da nação brasileira se deu em meio às distintas identidades políticas coletivas que anteriormente compunham o território da América portuguesa. Os empecilhos para se concretizar a unidade nacional foram uma constante após a ruptura política com Portugal em 1822 e o estabelecimento da autoridade monárquica sob o comando dos herdeiros da casa de Bragança. A Bahia, ao lado de outras províncias como Pernambuco e Pará, foi palco privilegiado de diversas manifestações de descontentamento com a linha política centralizadora assumida pelas autoridades situadas no Rio de Janeiro. De fato, as décadas de 1820 e 1830 expressam da maneira mais veemente que a constituição da nação não seria conquistada pelo recém-Estado independente senão à custa de virulenta repressão às atitudes e práticas oposicionistas. No entanto, a complexidade dessa dinâmica política somente pode ser apreendida em suas conexões mais amplas quando associadas às fortes mudanças do período decorrentes da expansão das ideias liberais e nacionalistas no mundo Ocidental, às condições políticas vivenciadas pelo Brasil nesse contexto e, sobretudo, às especificidades de uma província que detinha um papel importante – tanto econômico quanto político – na construção do Estado imperial.
Importante notar que a despeito das linhas centrais de contestação dos movimentos ocorridos nos anos 1830, com exceção da rebelião escrava dos malês, serem definidas pela crítica ao processo de centralização política, as motivações dos participantes não se restringiam a isso. Militares, homens pobres livres e de cor buscavam, cada qual a seu modo, inserir-se na cena política de maneira a solucionar os seus problemas imediatos, seja àqueles relacionados aos baixos e atrasados soldos, seja as condições precárias de sobrevivência marcada por uma estrutura econômica fortemente desigual e restritiva. A combinação da insatisfação política e social aparecia assim como um elemento impulsionador tanto no que se refere à adesão dos segmentos menos favorecidos, quanto na radicalidade a que estavam dispostos a assumir. Para estes, as novas condições políticas abririam amplas possibilidades de inserção, contrariamente ao intento das elites dirigentes. No projeto de Estado e de Nação a ser efetivado, nem todas as aspirações poderiam ser contempladas ou, dito de outro modo, era preciso ceifar as propostas desagregadoras de modo a afirmar a unidade política e territorial do Império do Brasil sem maiores sobressaltos. Dilton Araújo mostra que, no caso da Sabinada – uma experiência que afrontou fortemente os poderes local e central tendo em vista que os rebeldes ocuparam a cidade de Salvador por alguns meses (7 de novembro de 1837 a 16 de março de 1838) –, a repressão não se restringiu ao período subsequente à derrota do movimento. Pelo contrário, os anos que se seguiram foram testemunhas de um processo intermitente de erradicação de possíveis lideranças e das práticas rebeldes, no qual, autoridades políticas e camadas economicamente dominantes firmaram alianças para assegurar a tranquilidade pública e desobstruir o caminho rumo à desejada unidade nacional.
Em que medida a derrota dos sabinos significava a impossibilidade de ocorrência de novos movimentos rebeldes? Esta parece ter sido uma questão frequentemente formulada pelas autoridades. O estudo de Araújo se apoia fortemente na visão dos periódicos para demonstrar que, na opinião da imprensa conservadora e legalista, o tutu não poderia ser menosprezado, razão pela qual, o castigo infligido aos rebeldes deveria ser exemplar sob o risco de que novas rebeliões pudessem ocorrer caso o governo se mantivesse leniente. Esta é a posição do Correio Mercantil que, de maneira permanente, insistiu na necessidade de o Estado não descuidar da vigilância e acentuar os modos de enquadramento dos desviantes. Não obstante a intensidade da repressão contra os envolvidos, evidenciada em número de mortos, presos e deportados pela justiça, os editores desse periódico não se davam por satisfeitos assim como alguns dos seus correspondentes, a exemplo do Lavrador do Recôncavo, que conclamava os defensores do trono e do Império a se unirem contra os opositores da ordem, além de defender a centralização do poder nas mãos do Imperador. A fala do Lavrador expressa a insatisfação com os rumos políticos trilhados pelo Brasil sobretudo no que se referia à legislação imperial, com os seus variados códigos legais, assim como a atuação do parlamento, incapaz de apresentar soluções compatíveis com as exigências demandadas pela sociedade. A Bahia, mais uma vez, enfrentava uma forte crise política, momento propício para a emersão de posições conservadoras que encontravam guarida na imprensa e, certamente, possuíam muitos adeptos entre determinadas camadas sociais da província. O período de reação, como aquele vivenciado logo após a derrota dos sabinos, motivava a exposição dessas posturas, cujas denúncias potencializavam a falta de segurança das propriedades e das liberdades caso as instituições não agissem com rapidez e eficiência, como afirmavam os signatários das representações à assembleia geral em 1839, publicadas pelo Correio Mercantil. Para além de uma preocupação meramente local, essa movimentação das classes proprietárias revela um interesse com as novas formas de organização política do Estado que, em seus contornos mais amplos, apontavam para as articulações entre o centro e os poderes regionais, necessárias para debelar as inquietudes locais, sem perder de vista, no entanto, as aspirações políticas e econômicas da elite baiana.
Essa interlocução entre o governo local, as elites econômicas da província e o poder central – questão a exigir maior aprofundamento – denota que a almejada eficácia das formas de ordenamento político era um projeto difícil de ser consolidado. O autor busca extrair das fontes documentais que a apregoada paz política no pós-Sabinada não condizia com o quadro de intranquilidade delineado a partir dos próprios discursos das autoridades e reforçado pela imprensa local. A frequência com que as notícias sobre possíveis inquietações aparecem nesses registros na década de 1840 informa sobre um período no qual o desejo de pacificação da província estava longe de ser concretizado. Os distúrbios poderiam ser promovidos por escravos, homens livres pobres, índios, militares ou até mesmo ex-integrantes da sabinada à espera do momento mais apropriado para voltarem à ativa. O fato de não ter ocorrido um evento de maior envergadura no período não retira a gravidade das tensões sociais e políticas que colocaram o governo em estado permanente de alerta. Prova disso, foram as medidas para intensificar a segurança na província, além do cerco em torno dos suspeitos de envolvimento em ações ameaçadoras da ordem e o combate à imprensa oposicionista, sobretudo, o Guaycuru, cuja contundência da crítica formulada aos governos local e central levou seus editores a enfrentarem alguns processos judiciais. Dilton Araújo mostra como foram variadas as tentativas para legitimar a nação brasileira, seja por meio das comemorações cívicas das datas consagradoras do futuro promissor da Bahia e do Brasil, ao tempo em que outras deveriam ser menosprezadas, seja pela desaparição, alijamento ou cooptação de antigas lideranças dos movimentos rebeldes. Sobressai da leitura de O tutu da Bahia, a constatação de que as profundas alterações ocorridas com a independência e a organização do Estado imperial não foram suficientes para resolver problemas antigos, que em meados do século XIX apareceriam renovados em meio a um processo de experiência e aprendizado também compartilhado pelas elites.
Com base em uma pesquisa rigorosa na documentação, com destaque para os dois importantes periódicos da época – o Correio Mercantil e o Guaycuru –, a dinâmica política da Bahia nos anos 1840 retratada por Dilton Araújo não somente preenche uma lacuna nos estudos sobre a complexa formação do Estado e da nação brasileiros, quando vista sob outras perspectivas, como também aponta possibilidades para novos estudos sobre uma sociedade oitocentista em busca da construção de uma unidade nacional obstaculizada pelas muitas contradições geradoras de conflitos outros, nas quais a província da Bahia, com a sua tradição de lutas e rebeldias, adquire particular relevância.
Maria Aparecida Silva de Sousa – Professora adjunta no Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Vitória da Conquista/Brasil). E-mail: sousa.mariap@gmail.com
ARAÚJO, Dilton Oliveira de. O tutu da Bahia. Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850. Salvador: Edufba, 2009. Resenha de: SOUSA, Maria Aparecida Silva de. Tempos de paz, tempos de tensão política. A Bahia no pós-Sabinada. Almanack, Guarulhos, n.2, p.147-150, jul./dez., 2011.
O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão | Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves
O título do livro soa pomposo. A quem os autores chamam de Epaminondas Americano? Logo nas primeiras páginas vimos não se tratar de um pseudônimo, mas de um dos heterônimos assumidos por um português, o bacharel em Direito Manoel Paixão dos Santos Zacheo, em vários escritos que fez publicar, nos decênios de 1820 e 1830, manifestando seus posicionamentos nos debates ocorridos no Maranhão, após a Revolução do Porto (ou Vintismo) e nos primeiros tempos da constituição do Estado brasileiro.
Esse advogado é um personagem intrigante. Na Universidade de Coimbra, onde estudou, seu nome consta como Manoel Paixão dos Santos, mas o sobrenome Zacheo ou Zaqueu já estava incorporado nos documentos que atestam sua chegada ao Maranhão em 1810, e permaneceu nos registros posteriores. Os autores do livro levantam a hipótese de ele ter querido associar sua imagem à conotação hebraico-religiosa do termo “zacheo”, que significa “puro”. Quanto ao heterônimo Epaminondas, supõem ser uma possível “referência ao general tebano, que liderou a vitória contra as tropas espartanas na batalha de Leuctras (371 a. C.)”. E explicam:
Vencedor de lutas sangrentas – que lhe custaram a vida –, Epaminondas também ficara conhecido como homem de larga cultura e pelo princípio de jamais mentir. Coragem, conhecimento e sinceridade, aliadas à “pureza” pregressa, parecem compor a base da personalidade assumida por Manoel Paixão dos Santos – o Zacheo-Epaminondas –, forma de legitimar uma imagem de si e desqualificar a de seus oponentes (p.27).
A autoimagem favorável aparece em outro heterônimo que usou em duas publicações – o Arguelles da província. Para este, os autores levantam a hipótese de uma “provável alusão a Augustin de Arguelles Alvarez, deputado espanhol às Cortes de Cadiz, instância na qual ficou conhecido como o ‘divino’, dada a qualidade de sua oratória” (p.28).
No Maranhão, Zacheo não tardou a se integrar em várias redes de sociabilidade. Quando seus escritos vêm a público, dez anos após sua chegada, está casado com uma moça da terra, é advogado do Tribunal da Relação do Maranhão, juiz demarcante dos julgados do Mearim e das vilas de Viana, Tutóia e Icatu, além de declarar-se dono de fazendas e escravos em Rosário e Alcântara. Atuava, portanto, na capital da Província, a cidade de São Luís, situada numa ilha costeira, e em localidades do continente.
Em abril de 1821, foi um dos oito cidadãos que votou contra o prolongamento da administração de Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca – o último governador da província do Maranhão antes do Vintismo – e defendeu a instalação de uma junta governativa. Em janeiro daquele ano, uma representação de sua autoria havia sido lida nas Cortes portuguesas. Outras foram apresentadas nos meses seguintes. Denunciava tramoias do governador e fazia sugestões para o trabalho dos constituintes. A oposição a Pinto da Fonseca levou-o a refugiar -se na vizinha província do Grão-Pará e Rio Negro, para escapar da prisão que este lhe decretara. Retornou ao Maranhão no ano seguinte.
No início de 1823, como essa província permanecesse fiel a D. João VI, Zacheo foi um dos deputados eleitos para a segunda legislatura das cortes portuguesas. Viajou para Lisboa, mas não assumiu o cargo, pois encontrou as Cortes dissolvidas e o antigo regime restaurado. Permaneceu alguns meses em Portugal. Em 1º de janeiro de 1824, a bordo da escuna que o trazia para o Brasil, participou de um ato solene de juramento à independência do novo país. Retornando ao Maranhão, retomou as atividades políticas. Continuou com os escritos inflamados; os opositores acusavam-no de ter “má língua”. Apoiou o conturbado governo de Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce, o primeiro presidente nomeado pela Coroa brasileira para a província. Criticou D. Pedro I, mas dedicou-lhe um trabalho de quase cem páginas, para subsidiar os Códigos Civil e Criminal que o Brasil precisava elaborar. Elegeu-se deputado para o Conselho Geral da Província e integrou o Conselho Presidial (ou de Governo).
A singular personalidade de Zacheo, sua trajetória de vida e o teor dos escritos que publicou o tornam um objeto de estudo privilegiado. Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves, professores da Universidade Estadual do Maranhão, foram extremamente felizes ao escolhê-lo, especialmente porque puderam potencializar o capital cultural acumulado em outras vivências intelectuais. Galves defendeu, em 2010, na Universidade Federal Fluminense, a tese de doutorado em História, intitulada “Ao público sincero e imparcial”: imprensa e independência do Maranhão (1821-1826). E Costa fundamenta-se na dupla formação de historiador e bacharel em Direito.
Os autores foram felizes também na maneira como apresentam os resultados do estudo realizado. Organizaram o livro O Epaminondas Americano em duas partes. Na Parte I – Advogado, Proprietário e Político –, estruturada em quatro capítulos, a proposta é fazer um “recorte biográfico”, entremeado pelas tensões de “ação individual” e “contexto” (p.19). Na Parte II – Documento, nos presenteiam com a reprodução facsimilar de um exemplar existente na Fundação Biblioteca Nacional – Brasil da publicação, que certamente é a mais importante entre as lançadas pelo advogado: Projectos do Novo Código Civil e Criminal no Império do Brasil, oferecidos ao Senhor D. Pedro I, Imperador Constitucional seu Protector e Defensor Perpétuo e ao Soberano Congresso Nacional e Legislador.
Na Introdução, avisam aos leitores que tratarão apenas da atuação pública de Zacheo no Maranhão, principalmente dos dois decênios em que publicou seus trabalhos. Mas fazem bem mais que isso. No primeiro capítulo da Parte I, Um publicista irrequieto, traçam uma narrativa biográfica que informa sobre a família, o local de nascimento e o período em que o biografado esteve em Coimbra; especulam acerca dos significados dos nomes que adotou; delineiam suas múltiplas inserções na vida política da Província e contextualizam as polêmicas em que ele se envolveu e que geraram seus escritos, além de outros aspectos de sua vida pública.
No segundo capítulo, O bacharel e as leis, enveredam pela cultura jurídica luso-brasileira da época. A intenção é situar a produção de Zacheo nos dois processos em que ele foi partícipe: a “modernização da cultura jurídica em Portugal” e a “construção organizacional e legislativa do Brasil independente”. É também buscar entender as “práticas e as representações que se originam no (ou perpassam o) campo jurídico e dão sentido à atuação de profissionais do Direito (p.43)”, em Portugal e no Brasil.
Expõem o teor da reforma acadêmica implantada na Universidade de Coimbra, a partir da década de 1770, e as principais mudanças que a reforma trouxe nas concepções e nas práticas jurídicas na metrópole e em sua possessão na América. Adotam a periodização da História do Direito Português, elaborada por Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, que lhes permite situar nosso advogado na transição do período de influência iluminista (que vai da metade do Setecentos à Revolução de 1820) para o período de influência liberal e individualista (dessa revolução liberal ao início do Novecentos). Mostram que Zacheo conviveu com a crítica ao Direito românico e à tradição medieval canônica, com a valorização do Direito nacional (o então chamado Direito pátrio), a formulação do Direito natural moderno e as concepções ilustradas sobre o Estado e o indivíduo. Veem em sua obra diferentes concepções teóricas, fruto da formação acadêmica e das experiências vividas na América Portuguesa. Era, por exemplo, um entusiástico defensor do constitucionalismo, julgando-o perfeitamente conciliável com a monarquia e a escravidão. Entendia que as “boas leis” eram fruto do intelecto humano, e não deveriam servir apenas para nortear as ações dos governantes, mas ser um meio de viabilizar “a distribuição da ‘felicidade’ no corpo social” (p.41). Além disso, seriam boas as leis que tivessem redação clara e simples, de modo a permitir compreensão correta e eficaz execução. E Zacheo procurava seguir esses princípios nas sugestões que enviou a legisladores e governantes.
Os autores entendem que ele, informado e formado nestes e por estes debates intelectuais e jogos políticos, procurou ser um cidadão participante, como jurista, publicista e político, tanto em relação ao Estado português quanto ao Estado brasileiro que via nascer. E historiam suas múltiplas atuações e analisam-lhe as publicações, dialogando com a literatura que trata das ideias presentes nos projetos políticos em discussão no Brasil nas primeiras décadas do Oitocentos.
No terceiro capítulo, Da justiça ou da falta dela, a análise dos escritos e da atuação de Zacheo volta-se mais para as denúncias que ele fez a homens públicos da província do Maranhão. Foi um áspero crítico dos desmandos das autoridades judiciais, acusando-as de negligência, abuso de poder e conluio com os governantes. Fundamentava as acusações com casos vivenciados como advogado no Tribunal da Relação dessa província e chegou a sugerir a extinção não só deste, como dos demais Tribunais da Relação, justificando que desembargadores, corregedores e juízes tinham práticas espúrias.
Mas sua ira não se voltava apenas para os togados. Era vigilante em relação aos jogos políticos e às ações dos ocupantes dos altos cargos do Executivo. Abordando essa faceta do biografado, os autores entram nos meandros da história da imprensa no Maranhão. Como a primeira tipografia da província foi instalada na administração de Pinto da Fonseca e sob os auspícios do governo, por ser desafeto dessa autoridade e crítico de outras pessoas gradas na política local, Zacheo precisou publicar a maior parte de seus primeiros escritos em outros lugares.
Esse capítulo analisa também as posições do advogado acerca do sistema escravista, criando a ocasião para Costa e Galves entrarem nos debates que tratam da história das ideias sobre a escravidão. Mostram que Zacheo, como muitos outros declarados adeptos do liberalismo àquela época, não via qualquer possibilidade de “grandeza” e “opulência” para o Brasil sem o recurso do braço escravo. A familiaridade dele com a obra de Antonil é notada não apenas na utilização desses dois termos; revela-se ainda na metáfora consagrada pelo padre de serem os escravos os “braços” e “pernas” de quem almejasse ser proprietário por essas terras. Assim, não propunha o fim da escravidão nem do tráfico humano transatlântico. Julgava que o constitucionalismo monárquico não era afetado pela existência de escravos, pois estes eram naturalmente inclinados ao cativeiro. Aliava este argumento – baseado na concepção milenar da “servidão natural”, que subordina alguns povos e/ou pessoas – a outros com base religiosa e racionalista. Desse modo, a inferioridade e a preguiça que atribue serem inatas aos “negros” e “índios” não resultariam apenas da vontade divina. Deus criara todos com o livre arbítrio de “obrar ou não obrar”. Foram eles que decidiram não trabalhar e permanecer na ociosidade e na libertinagem (p.98). No “estado natural” em que se encontravam, tornavam-se “cidadãos impossíveis”.
O quarto capítulo da Parte I, A adaptação aos novos tempos: o Zacheo “brasileiro”, aborda a inserção dele na política, após o retorno de Portugal, quando o Maranhão já fazia parte oficialmente do Império do Brasil. Os autores especulam sobre as razões que o teriam levado a optar pela volta.
Em tal decisão, talvez tenham pesado, de um lado, a guinada absolutista da política portuguesa; e de outro, a perspectiva constitucional brasileira, corporificada pela reunião de uma Assembleia Constituinte. Porém, não é possível ignorar outras razões, como os vínculos familiares que criou na província, o patrimônio que acumulou e a legitimidade que conquistou, como fatores de seu regresso (p102).
Seguindo indícios encontrados em escritos de Zacheo e de outros publicistas da época, consideram que ele integrava e (ou) apoiava o grupo político que subiu ao poder na Província, com o presidente Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce (1824-1825), após a adesão à Independência. O curto governo de Bruce foi bastante tumultuado. Por mais de uma vez os opositores tentaram derrubá-lo; houve repetidas sublevações da “tropa” e do “povo”; além de ter sido acusado de apoiar a Confederação do Equador. Acusação que recaiu também sobre nosso advogado, que conta em um de seus escritos ter sido preso em São Luís, no ano de 1824, possivelmente num dos motins contra esse governo.
Nesse capítulo o foco é no Zacheo que jurou a independência do Brasil e participou das tramas políticas em momentos de fortes manifestações de antilusitanismo na Província, quando a expulsão de portugueses constava da pauta das reivindicações dos movimentos populares. Inclusive, ele integrava o Conselho Presidial da Província, quando houve a Setembrada (em 1831) e participou das deliberações sobre as principais exigências dos rebelados: “expulsão dos postos militares dos ‘brasileiros por Constituição’; expulsão dos ‘brasileiros adotivos’ de todos os empregos civis, de Fazenda e Justiça […]“ (p.111).
Por fim, à guisa de introdução da Parte II, no texto Os Projetos de Zacheo e seu tempo, os autores fazem ainda uma análise do documento reproduzido, cotejando-o com outros projetos que lhe foram contemporâneos, à luz da discussão historiográfica sobre os assuntos abordados.
O Epaminondas Americano insere-se, portanto, na profícua produção acerca do processo de independência, da construção do Estado e formação da nação brasileira. Embora essas temáticas possuam lugar cativo nos clássicos da História do Brasil, nas últimas décadas foram retomadas com renovado interesse, devido ao fortalecimento da “nova história política” e à diversificação das abordagens no campo histórico. O vigor dos debates pode ser visualizado nos balanços historiográficos sobre a produção clássica e a recente, bem como na grande quantidade de novos títulos publicados, entre os quais este livro vem ocupar importante lugar.
Regina Helena Martins de Faria – Mestre e doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (CFCH/UFPE – Recife/Brasil), e professora no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (CCH/UFMA – São Luis/Brasil). E-mail: rhfaria@yahoo.com.br
COSTA, Yuri; GALVES, Marcelo Cheche. O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão. São Luís: Café & Lápis / Editora UEMA, 2011. Resenha de: FARIA, Regina Helena Martins de. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 151-155, jul./dez., 2011.
Pueblos y Soberanía en la Revolución Artiguista. La región de Santo Domingo Soriano desde fines de la colonia a la ocupación portuguesa | Ana Frega
Ana Frega Novales é docente e historiadora na Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de Universidad de La República de Montevidéu, onde é Profesora Titular y Directora del Departamento de Historia del Uruguay.
A Introducción (p.11) adianta que o principal objetivo do trabalho é superar as visões que prefiguram o Estado Oriental e Artigas como seu “herói fundador”. Observa a importância de autores como Barrán, que destacou o encobrimento do protagonismo popular de Artigas, de Chiaramonte e sua ênfase nas províncias como unidades políticas do século XIX, além das pesquisas de Gelman sobre a demografia da Banda Oriental. Ana Frega apresenta as partes do livro numa ordem cronológica: a conformação da região de Santo Domingo Soriano no antigo Vice-Reino do Rio da Prata; a constituição da Província Oriental desde a perspectiva de Soriano durante a Revolução (1810-1820); e a dominação portuguesa, desde 1818 no caso de Soriano.
A Primeira Parte, Una región de la Banda Oriental a comienzos del siglo XIX, é formada por dois capítulos. O Capítulo 1 (p.19), Características de la región de Santo Domingo Soriano, trata da formação deste espaço nas disputas fronteiriças entre Espanha e Portugal. O subcapítulo 1 (p.23), El espacio geográfico y La evolución de La población, destaca o papel estratégico de Santo Domingo Soriano, nas margens do Rio Negro, sua centralidade em relação às localidades de Mercedes e San Salvador, e sua influência até o Paysandú, ao norte. No sub-capítulo 2 (p.31), Explotación y apropriación de los recursos naturales, aborda a evolução de Soriano de redução de indígenas na colônia, para incorporar-se à extração florestal e, posteriormente, à pecuária depois. Aqui aparece a “insegurança na campanha”, ameaçada pelos “infiéis” e desertores.
O Capítulo 2 (p.53), La crisis metropolitana y los poderes locales, tem três sub-capítulos. No primeiro (p.54), El cabildo como fortaleza de los poderes locales, historia a importância desta instituição desde a colônia, não apenas no controle das riquezas, como também no enfrentamento com os comandos centrais, usando exemplos concretos. O subcapítulo 2 (p.64), Conflictos jurisdicionales de Santo Domingo Soriano con Capilla Nueva de Mercedes y Paysandú, trata das disputas provocadas pela política expansiva de Soriano. Na medida em que cresciam os núcleos de povoação, eles tendiam a enfrentar-se na obtenção de privilégios. No subcapítulo 3 (p.70), La desestructuración del régimen colonial, é enfatizada a colaboração de Soriano com Buenos Aires nas invasões inglesas de 1807, o como isto influiu na disputa entre os defensores do livre comércio com os monopolistas.
A Segunda Parte, La constitución de la Provincia Oriental en el marco de la Revolución, 1810-1820, é formada por três capítulos. O Capítulo 3 (p.83) Guerra y Revolución en Soriano, 1810-1812, aborda a presença em Soriano de forças realistas, patriotas e até luso-brasileiras, bem como requisições, saques e levas de soldados. No subcapítulo 1 (p.88), La crisis revolucionaria desde una perspectiva local, mostra a submissão de Soriano ao governo realista de Montevidéu, e como os notáveis procuraram regularizar a apropriação da terra. Mas foram as milícias formadas localmente que garantiram a sublevação dos “pueblos orientales”.
O subcapítulo 2 (p.107), El “ejército nuevo”, inicia com a arrancada da insurreição em Mercedes (28/2/1811), o famoso “Grito de Asencio”, nome de um arroio que banhava a povoação. Artigas dirige suas atenções para Mercedes no início de abril de 1811. Havia ainda a questão do abastecimento, vestuário, armas, munições, erva-mate e tabaco. A mobilização das massas preocupava as autoridades portenhas, para quem as “gentes de Artigas” ou “Montoneras” tinham pouca noção de autoridade. Esta condição de “libres” criava sentidos de “pátria” e de “nação” desvinculados do território, mas associados a governos e leis novas para a plebe do campo.
O subcapítulo 3 (p.127), Existir y resistir durante la Revolución, mostra Soriano como um lugar estratégico que era objeto das diversas facções combatentes. Na luta, as milícias populares criaram uma nova “cotidianidad”, onde a questão da propriedade trazia expressões e conflitos sociais novos que solapavam as hierarquias. A mobilização criava uma identidade “americana”, em equivalência à de “oriental”.
No subcapítulo 4 (p.141), Identidades en Soriano en los comienzos de la Revolución, Ana Frega aborda a guerra depois do armisticio entre autoridades de Montevidéu e Buenos Aires. A presença luso-brasileira na Província Oriental tornava óbvio o caráter “estrangeiro” do acordo, e a luta por “independência” oporia os “orientais” à fidelidade que Buenos Aires tinha a Fernando VII. Assim, no chamado “Êxodo do Povo Oriental”, quando as massas rurais seguiram Artigas na sua retirada para Entre Rios, afastamento das decisões do Triunvirato de Buenos Aires tornava os “orientais” um “pueblo en armas” a um passo da ruptura social, que transcendia a disputa entre diferentes grupos.
O Capítulo 4 (p.167), Lecturas locales de la “soberanía particular de los pueblos”, tem como um de seus eixos as pesquisas de Chiaramonte, especialmente no que diz respeito às “províncias” na crise revolucionária, às quais ele atribuiu o caráter de “soberanías independientes”. Aqui, Ana Frega propõe examinar a formação da Província Oriental a partir do “pueblo libre” de Soriano.
No subcapítulo 1 (p.174) Una aproximación a la noción de “soberanía particular de los pueblos”, a autora inicia pela concepção de soberania a partir de vários filósofos da Ilustração, como a legitimidade – associada ao uso da força – garantida pelo “Direito Natural das Gentes”. Tais ideias circularam pela Província Oriental através de letrados, clérigos, militares, pela edição de folhas soltas, gazetas ou manuscritos; elas formaram as bases tanto para aprofundar a participação popular, quanto para freá-la. Além disto, tinha havido um antecedente significativo no cenário platino que antecedeu a Revolução durante as invasões inglesas, na formação das milícias locais.
O subcapítulo 2 (p.194), Una provincia compuesta de “pueblos libres” trata da grande novidade na ideia de soberania, predicando que o novo Estado independente da metrópole se estabelecesse desde a base, os “pueblos libres”, e esta seria a proposta dos “orientais” para a Asamblea General Constituyente (ou Asamblea del “Año Trece”). Para Artigas este encontro teria que garantir a representação e liberdade de todos “pueblos”, vilas e cidades, raízes de independência, república, confederação, separação dos poderes, liberdade civil e religiosa, a constituição da Província Oriental em território próprio, e a exigência de que Buenos Aires não fosse a capital.
No subcapítulo 3, Entre La unión y La unidad: intereses sociales y alianzas políticas (p.214), Ana Frega afirma, de início, que o artiguismo impulsionou a “soberanía particular de los pueblos” como o verdadeiro dogma e o objeto principal da Revolução, o que contrariava a concepção de uma soberania da nação que se procurava criar, subordinada às decisões do Triunvirato de Buenos Aires. Marcava-se a radicalização das diferenças entre a Província Oriental e as Províncias Unidas do Rio da Prata.
O subcapítulo 4, Los cabildos en la construcción de un gobierno provincial (p.226), trata da participação dos “pueblos”, caso de Santo Domingo Soriano, na organização da Província Oriental. Em 1815, acentuava-se a tensão entre a proposta de Artigas e o cabildo de Montevidéu em relação à eleição de representantes dos “pueblos”, já que agora, os cabildos, além das funções judiciais e municipais, exerciam funções legislativas. Na reinstalação dos cabildos em 1816 repousava a “soberanía particular de los pueblos”, com eleições populares incorporando as variadas povoações e jurisdições. Estas mudanças não foram aceitas em várias partes. Soriano, por exemplo, procurou beneficiar os “títulos primordiais”. As exigências de mais sacrifícios em função da guerra provocavam reclamações do “vecindario”, mostrando que as relações tensas destes com Artigas eram atravessadas por conflitos sociais anteriores, como as referências novamente a “vagos” e “malentretenidos” para os milicianos artiguistas.
O capítulo 5 (p.259), Identidades y poderes en la etapa radical de la Revolución. Una mirada desde Santo Domingo Soriano, acentua no sub-capitulo 1 (p.267), Una aproximación a la etapa radical de la revolución, que as etapas radicais dos processos revolucionários se deram quando ocorreu a busca por igualitarismo, também em relação aos direitos de propriedade. Durante a Revolução circularam as ideias de Tom Paine: em “Justiça Agrária”, ele defendia os princípios de igualdade e propriedade comum da terra aos homens. Também a experiência jacobina francesa criticando o direito à propriedade privada da Declaração Universal de 1789 era trazida à baila: Robespierre, baseado em Rousseau, afirmava que a liberdade era um “direito natural”, enquanto a propriedade era uma instituição da sociedade. Também alguns “curas patriotas”, como Montessoro, teriam influenciado o Reglamento de Artigas.
O subcapítulo 2 (p.283), Los conflictos por la propiedad y la justicia revolucionaria, aprofunda muito as propostas constantes na Memoria de Félix de Azara de 1810, porque propõe o confisco e distribuição de terras dos melhores campos da Província Oriental, não apenas os da região fronteiriça. Além disto, o privilégio dado a “los más infelices” pelo Reglamento de Artigas, se configurava como uma peça chave na “pedagogia revolucionária”, se estendendo a todas as províncias da liga artiguista. A seguir a autora trata de Soriano, exemplificando reações distintas ao programa agrário.
No subcapítulo 3 (p.312), Construcción de identidades en el proceso de la lucha, Ana Frega discorre sobre as relações sociais que se desenvolveram entre os participantes da Revolução, e de como esta experiência coletiva transcendeu àqueles laços anteriores de família, compadrio ou mesmo amizade. Neste sentido, foi gerada uma identidade destes setores populares com Artigas, em contrapartida a um desencanto com as novas autoridades que se impunham desde Buenos Aires e aliados. Assim, a expressão “Oriental” passou a ser muito mais que um lugar, passando a significar uma ativa atuação política, justificando o título dado a Artigas de “Jefe de los Orientales”, assim como Revolução viria a ser chamada de “tiempo de los orientales”.
A Terceira Parte, La ocupación portuguesa, é formada apenas pelo Capítulo 6 (p. 329), La “soberanía particular de los pueblos” en el “Estado Cisplatino, 1818-1822, sempre com referência empírica a Santo Domingo Soriano. O sub-capítulo 1, Soriano ante la invasión luso-brasileña, trata da legitimação que buscava a Coroa portuguesa para interferir nas questões da Província Oriental. O propósito de liquidar com a “anarquia” representada por Artigas, tinha também a intenção de atrair apoios desde as Províncias Unidas e mesmo de orientais já temerosos dos rumos que tomava o artiguismo. A convocação dos paisanos à resistência não impediu que a Província Oriental fosse sendo ocupada, e Soriano caiu em 1818.
No subcapítulo 2 (p.336), Espacios de resistencia y negociación de los poderes locales, Ana Frega mostra como se acentuou o processo de formação de um “estado provincial” na Banda Oriental, fortemente centralizado em Montevidéu, ocupada desde o início de 1817. Nos antigos “pueblos libres”, como Soriano, Mercedes e San Salvador, foram instaladas autoridades locais, os alcaldes. No Congreso General Extraordinario convocado em 1821, compareceram representantes de todas as povoações, evitando as reuniões e comícios populares do artiguismo. Reconstituía-se o “verdadeiro corpo político”, usando os cabildos para resolver os danos da Revolução. Além dos conflitos pela terra, entre latifundiários e os beneficiários do Reglamento, havia a questão dos luso-brasileiros que se aboletavam nas suas terras.
O subcapítulo 3 (p.354), Identidades luso-brasileñas en territorio oriental, salienta as relações que existiam desde muito tempo entre populações fronteiriças, e que muitas vezes se colocavam acima das questões políticas. Desta forma, os conflitos se deveram muito mais a razões de Estado, antes e depois do processo de independência. Uma expressão disto era a presença em Santo Domingo Soriano de um terço de sobrenomes portugueses na população.
Em Síntesis y conclusiones (p.363), a autora recupera o propósito do trabalho em examinar a Revolução de Artigas em três escalas: uma “micro”, em Santo Domingo Soriano; uma “média”, referida à Província Oriental; e uma “macro”, considerando o espaço do antigo Vice-Reino do Rio da Prata. A pesquisa foi focada na “soberanía de los pueblos”, investigando seu papel para a legitimidade que esta autonomia conferia ao processo de independência. A reconstituição de um espaço regional como Soriano mostrou uma complexa trama de alianças, direitos e hierarquias sociais, que encobriam uma longa história de resistência. Portanto, a “soberanía particular de los pueblos” significou um projeto igualitário que se reportava a antigos direitos reclamados pelas camadas populares.
O livro de Ana Frega se constitui, assim, numa sofisticada obra que alia a cuidadosa investigação empírica a um avanço interpretativo em relação às produções anteriores sobre o radicalismo do Projeto de Artigas. Lucía Sala e seu grupo determinaram o caráter social do artiguismo, centrando-se na questão da apropriação da terra e sua redistribuição aos trabalhadores rurais. Barrán e Nahum acentuaram o papel de Artigas como representante de um movimento social que ia muito além da busca de uma mera autonomia provincial, encoberta pela ideia do “herói fundador”. O livro Pueblos y Soberanía en la Revolución Artiguista, da forma como foi concebido e realizado, a partir do “pueblo” de Soriano traz, à tona a construção de uma cidadania a partir de uma proposta revolucionaria que, de baixo para cima, pretendia uma nação que, além de contrariar os interesses centralizadores do grupo exportador de Buenos Aires, comprometia a organização do latifúndio pecuário. Mais que autonomia e federalismo, Artigas trazia a ameaça da insurreição popular.
Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (CFCH/UFRJ – Rio de Janeiro/Brasil) e Professor Associado no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH/UFRGS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: cguazza@terra.com.br
FREGA, Ana. Pueblos y Soberanía en la Revolución Artiguista. La región de Santo Domingo Soriano desde fines de la colonia a la ocupación portuguesa. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2007. Resenha de: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Soriano, Província Oriental: Revolução Artiguista revisitada. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 156-159, jul./dez., 2011.