Historia de la Educación Latinoamericana | UPTC | 1998

Revista Historia de la Educacion Latinoamericana

The Journal History of Latin American Education  (Tunja, 1998-) is a diamond open access publication, (no costs for authors), peer-reviewed with two monographic issues (January and July) in each of its volumes.Rhela accepts research articles resulting from theoretical and empirical methodologies, as well as reviews on the history of education with an emphasis on Latin America, written in Spanish, Portuguese and English. Rhela’s scientific target community: researchers, graduate students, professionals in history, heritage and cultural affairs, mainly.

Rhela also welcomes comparative or research works from other regions and continents dealing with history of education, in contexts with problems similar to those of Latin America.

  1. The Latin American and Caribbean university
  2. Latin American educators, their formation and leadership
  3. Education in rural, indigenous and Afro-descendant communities
  4. Normal schools
  5. Pedagogies, peace and resilient populations
  6. Education based on new technologies
  7. University and university movements
  8. History of comparative education

Since its creation in 1998, Rhela has been funded by the Faculty of Educational Sciences of the Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia (Uptc) and the Society for the History of Latin American Education (SHELA).

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN 0122-7238.

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Sertão História | URCA | 2022

Sertao Historia

Sertão História – Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente tem como missão contribuir para o debate teórico e a difusão das pesquisas em História e áreas afins, bem como democratizar o acesso ao conhecimento científico. Podem publicar graduados, estudantes de pós-graduação lato e stricto sensu (mestrado e doutorado), mestres e doutores.

Sertão História é um períodico semestral, eletrônico, do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente – NEHSA, da Universidade Regional do Cariri.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN  2764-3956

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Crítica Historiográfica | UFRN/UFS | 2021

Critica Historiografica

Crítica Historiográfica (Natal/Aracaju, 2021-) Publica resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas especializadas, resultantes da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História.

A revista cumpre o objetivo de fomentar a cultura da avaliação da escrita da História, com foco no diálogo entre autores(as) de resenhas e autores(as) e leitores(as) de obras de História. Assim, abre espaço não apenas para a resenha, mas aceita também as réplicas dos autores e eventuais comentários dos leitores da obra resenhada e da resenha.

A revista também se engaja na valorização do gênero textual resenha como instrumento de comunicação científica, reivindicando, inclusive, a sua inclusão como produto intelectual na Plataforma Lattes e no Sistema de Coletas Capes.

Crítica Historiográfica aceita e publica em média sete trabalhos por volume bimestral, produzidos por pesquisadores(as) de todos os níveis de formação, com espaço distribuído na seguinte proporção: doutores (a partir de 50%), doutorando(a)s, mestre(a)s, mestrando(a)s/especialistas/graduado(a)s graduandos (até 50%).

Trata-se de empreendimento criado e mantida por um consórcio de grupos de pesquisa radicados em instituições públicas de ensino superior: a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Periodicidade bimensal

ISSN SSN 2764-2666

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Rural e Urbano | UFPE | 2016

RURAL E URBANO1

A Revista Rural-Urbano (2016-) é um periódico semestral vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e gerida pelos grupos de pesquisas “Produção do Espaço, Metropolização e Relação Rural-Urbano” da Universidade Federal Rural de Pernambuco (GPRU/UFRPE) e “Sociedade & Natureza” da Universidade Federal de Pernambuco (Nexus/UFPE). Seu objetivo é constituir-se enquanto canal de veiculação científica da rede de pesquisadores sobre as relações rural-urbano, bem como congregar artigos, ensaios e resenhas científicas a partir da História e da Geografia, que versem sobre processos passados e atualmente existentes no espaço rural e no urbano. A revista também objetiva congregar trabalhos das áreas de História, Geografia, Sociologia, Economia, Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Serviço Social e Educação.

Periodicidade Semestral

Acesso livre

ISSN 2525-6092

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La ciencia de la erradicación. Modernidad urbana neoliberalismo en Santiago de Chile, 1973-1990 | César Leyton Robinson

ROBINSON Cesar Leyton
César Leyton Robinson | Foto: Werken TV |

ROBINSON C La ciencia de la erradicacionEl interés historiográfico por las dictaduras del siglo XX es relativamente reciente. Era preciso que pasara un tiempo para que el horror y el dolor producido por las mismas fuera soportado por la generación de historiadores que, solo en las últimas décadas, han sido capaces de acometer una tarea en la que historia y memoria histórica se atraviesan de manera constante e inevitable. Así ha ocurrido en Europa, con la historia de la Alemania nazi, del fascismo italiano o de la España del franquismo, o en América Latina, con las dictaduras surgidas al amparo de la siniestra Doctrina de la Seguridad Nacional. El libro que comentamos es un reciente producto de esta línea de trabajo desde la perspectiva de la historia de la ciencia y en el contexto de la dictadura de Pinochet. Su autor, César Leyton Robinson, es un historiador solvente y comprometido que pertenece a una generación de investigadores chilenos, entre los que citaré a Claudia Araya y Marcelo Sánchez entre otros, empeñados en situar el conocimiento y la práctica científica en unas coordenadas históricas, políticas, sociales y culturales.

La obra que nos ocupa constituye una aportación original y rigurosa por su factura, pero arriesgada en sus contenidos y conclusiones, pues supone una muestra de historia y pensamiento crítico, que tal vez no todos estén dispuestos a aceptar, pues la advertencia machadiana de las dos Españas se hace extensiva a otros muchos lugares y contextos, y Chile no es una excepción. Con todo, el rigor metodológico y la calidad de sus contenidos hizo que la tesis doctoral que está en el origen de este libro mereciera la máxima calificación y el reconocimiento académico de la Universidad de Chile. Leia Mais

Canguilhem e a gênese do possível. Estudo sobre a historização das ciências | Tiago Santos Almeida

ALMEIDA Tiago S
ALMEIDA T Canguilhem 2Marlon Salomão e Tiago Santos Almeida. “VI Colóquio de História e Filosofia da Ciência: As ciências humanas”. Goiânia, 2019 | Foto: PPGH/UFG

Este libro es la reelaboración de la tesis doctoral defendida en la Universidad de Sao Paulo por Tiago Santos Almeida, profesor en la Facultad de Historia de la Universidad Federal de Goiâs, y sin duda una de los mejores conocedores actuales de la obra del filósofo, médico e historiador de las ciencias Georges Canguilhem. La monografía ha sido prologada Carvalho Mesquita Ayres, profesor de Medicina Preventiva en la Universidad de Sao Paulo, y esto no es una casualidad. A diferencia de lo acontecido en España, los estudios sobre Salud Colectiva y Medicina Preventiva fueron marcados decisivamente en Brasil, desde su despegue en la década de 1970, por algunos de los trabajos más representativos de la tradición francesa en historia de las ciencias, en particular textos como Lo normal y lo patológico de Canguilhem y El nacimiento de la clínica, de Michel Foucault.

El desafío del libro consiste en dilucidar, a través de distintas calas en la obra de Canguilhem, hasta qué punto existe un “estilo francés” a la hora de pensar la historicidad de las disciplinas científicas. En su indagación, el autor no recurre sólo a los volúmenes publicados por Canguilhem. Avalado por una prolongada estancia de investigación en el CAPHÈS (Centre d’Archives de Philosophie, Histoire et Èdition des Siences), donde frecuentó a algunos de los principales especialistas y discípulos del pesador francés (Limoges, Debru, Braunstein), utiliza entrevistas y artículos poco conocidos del filósofo de Castelnadaury, y lo más importante, un importante acopio de los manuscritos inéditos procedentes del Fond Canguilhem, sito en el mencionado centro. Leia Mais

Palavras ABEHrtas | ABEH | 2021

PALAVRAS ABERTAS2 2

A proposta de Palavras ABEHrtas (Ponta Grossa, 2021) é que ele se configure como território amplo e aberto para divulgação, informação e debates no que se refere e afeta o ensino de História, conforme os atuais valores e missões da ABEH de estabelecer interlocuções cada vez mais abrangentes e de valorizar o trabalho de professores e professoras de História em todos os níveis e âmbitos de ensino, gestão, pesquisa e divulgação. A intenção é reunir depoimentos e relatos de experiências, produções de estudantes da Educação Básica e do Ensino Superior, debates conceituais no campo do Ensino de História, bem como discutir temáticas de demandas contemporâneas e divulgar projetos e iniciativas pelo Brasil e pelo mundo.

A revista será composta por sete colunas, cada uma contando com uma dupla de curadores/as e coordenada por uma editoria renovada anualmente. Os textos serão publicados quinzenalmente (com ahead of print), a partir de convites da curadoria e também por livre demanda. Os textos deverão estar conformes ao escopo de cada coluna e adequados às normas de formatação, além de respeitar os princípios éticos da Revista. Serão aceitos também diversos formatos de expressão, tais como: textos escritos, vídeos, podcasts, canções, entre outros meios de interação, sempre acompanhados de uma apresentação que contextualize o conteúdo.

Os materiais enviados serão submetidos a uma comissão editorial e a um conselho de consultores que avaliarão criticamente as propostas. Textos bilíngues também serão aceitos, privilegiando a publicação de versões em inglês e em espanhol.

Pretendemos constituir um espaço de divulgação científica em um formato ágil, que atue como um portal de atividades comentadas da área, de troca de experiências de sala de aula, de debate político geral e das políticas públicas para a área em particular. Vislumbra-se a perspectiva de integrar o periódico com as diversas iniciativas de produção de conteúdo no Ensino de História, como os projetos Chão da História, Bate Papo sobre ensino de História, atividades do GT Nacional e dos GTs regionais de ensino de História da Anpuh, laboratórios, grupos de pesquisa, ações de extensão, etc.

Por fim, é importante que os textos e outros materiais sejam provocadores de debates e de ampliação das trocas. Assim, as curadorias podem convidar pessoas para comentar os materiais publicados. Esses comentários poderão aparecer sob a forma de novos textos linkados aos iniciais, de modo a ir criando uma rede de materiais e de discussões. Adicionalmente, os conteúdos também serão divulgados e debatidos nas redes sociais da Abeh.

Propomos sete colunas com escopo definido, que publicarão tanto conteúdos encomendados quanto avaliarão o que for recebido em livre demanda, de modo a garantir a periodicidade semanal, mas que se adaptem às necessidades de discussão e comunicação da nossa comunidade. Cada coluna contará com uma dupla de curadores/as composta por sócias/os da ABEH.

Essa iniciativa da ABEH visa possibilitar, em seu site, a divulgação de trabalhos desenvolvidos no Brasil e no exterior sobre o ensino de história, no formato de divulgação científica. Além disso, o objetivo é amplificar discussões que vão dar sequência aos textos publicados, ou seja, buscamos criar oportunidade de encontros entre todas-os-es que pensam, refletem, pesquisam e mobilizam práticas sensíveis nos mais diversos espaços que envolvem o ensino de história: escolas, espaços culturais e de memória, redes sociais, arquivos, universidades, movimentos sociais, entre outros.

As publicações serão feitas semanalmente com textos, imagens, registros, descrições, lançamentos e informações sobre diversos temas do ensino de história, conforme o escopo de cada coluna. Serão aceitos materiais de docentes e discentes da educação básica assim como do ensino superior e das pós-graduações.

Periodicidade semanal.

Acesso livre.

ISSN 2764-0922

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Cadernos Pagu | Campinas, n.61, 2021.

 


Edição n. 61 (2021)

Artigos

Resenhas

ERRATA ERRATA

 

Revista do IHGPA | Belém, v.8, n.1, 2021.

EDITORIAL

ARTIGOS

DOSSIÊ

Ars Historica | Rio de Janeiro, v. 21, jan./jun., 2021. (S)

v. 21 (2021)

Publicado em: 26 maio 2021.

Editorial | Luis Henrique Souza dos Santos, Eric Fagundes de Carvalho | PDF

Artigos

O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul 1917-1920 | Carlos Fernando de Quadros (R)

Bilros 10
O discurso de Lenin na fábrica Putilov em maio de 1917. Izaak Brodsky, 1929 | óleo sobre tela, Museu Histórico do Estado, Moscou. Reprodução: Hora do Povo |

SCOTT The common wind 25Com “O horizonte vermelho. O impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul, 1917-1920” o historiador Frederico Bartz realiza importante contribuição a diferentes campos de investigação: a história do movimento operário, a história das ideias políticas, bem como a própria seara da história do Rio Grande do Sul. Não obstante, como o próprio autor atenta, o recorte regional deva ser matizado, pois, como o seu objeto impõe, há íntimas conexões entre a história gaúcha e a de outras regiões brasileiras e mesmo de paragens internacionais. Essa é uma distinção de cariz didático, pois um dos méritos do livro é justamente entender tais determinações em um todo articulado. Um momento histórico propício para isso é justamente a conjuntura estudada por Bartz, a do final dos anos 1910.

O momento era de intensas lutas sociais, com o protagonismo da classe operária nos centros urbanos, e de redefinições organizativas e ideológicas. Em tal processo, teve papel fundamental o impacto da Revolução Russa, vitoriosa em 1917. Esse impacto foi objeto de variadas expressões historiográficas, recenseadas por Bartz. É partindo de tal procedimento que seu estudo se distingue de uma divisão interpretativa dominante sobre o período, a qual ultrapassa o campo da produção historiográfica, remontando às próprias divisões políticas gestadas pouco após o processo em tela. Trata-se de duas leituras dicotômicas da adesão anarquista no Brasil ao exemplo russo: em suma, há quem creia que isso se deu por um “engano” dos militantes libertários de então, que desconheciam particularidades das medidas dos bolcheviques, cada vez mais opostas ao ideário ácrata; de outro lado, defende-se que a origem anarquista de parte relevante dos primeiros entusiastas da Revolução Russa se devia a debilidades organizativas do movimento operário de então. A adesão ao comunismo – que se gestou como ideologia no bojo da vitória de outubro –, especialmente com a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, foi uma modernização política do proletariado brasileiro, que teria alcançado “a verdadeira consciência de classe”. Frederico Bartz critica os limites que ambas as perspectivas acarretam: ao contrário de uma tendência atenta a fatos ocorridos “em outro lugar”, de outra que valoriza ocorridos futuros, “em outro tempo”, ele propõe explicar os impactos da Revolução Russa “[…] a partir das tradições que estes militantes tinham e das lutas que travavam no momento” (p. 30).

Contribui para essa mudança na compreensão do processo o esforço do autor em estudá-lo no espaço do Rio Grande do Sul. Para tanto, atentou especialmente a um corpo documental que compreende jornais e revistas (não apenas gaúchos), panfletos, processos-crime e correspondências. Referências bibliográficas as mais variadas, reforçando o argumento referente à articulação de diferentes espaços. Para além da destacada produção gaúcha referente ao movimento operário, o autor também se apropria de clássicos da historiografia nacional e estrangeira, evidenciando a complexidade do fenômeno.

“O horizonte vermelho” é dividido em seis capítulos, todos intitulados a partir de frases extraídas da documentação consultada. O primeiro, “O círculo que se expande indefinidamente”, trata-se de uma contextualização da Revolução Russa de referência aos processos por ventura aludidos pelos militantes gaúchos estudados. Uma leitura dispensável, portanto, aos leitores familiarizados com o tema.

Em “Hosanna, Hosanna, filha da justiça que vem para nós em nome da liberdade”, o autor estabelece as bases de sua intepretação em torno de uma tradição de militância como terreno no qual as imagens dos ocorridos no Leste podiam vicejar de diferentes formas. Para tanto, foi condição sine qua non apresentar a configuração do movimento operário gaúcho a partir de suas organizações e órgãos de imprensa estabelecidos em 1917, remontando ao período de Proclamação da República. A rivalidade entre socialistas e anarquistas tem destaque aqui, especialmente no que toca às disputas em torno da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), sem deixar de discutir centros gaúchos importantes para além da capital. São levantadas as primeiras referências à Revolução Russa no espaço gaúcho e interpretadas a partir das diferenças entre mencioná-las em um comício ou em um texto de intervenção em um jornal, por exemplo. Bartz não omite o caráter indiciário das fontes em discussão, que explora seja na forma de sua circulação, seja no que há de revelador na linguagem e terminologias utilizadas. Expõe, assim, as divergências e similitudes nas primeiras apropriações da Revolução Russa pela militância gaúcha no ardente momento da greve de 1917.

No terceiro capítulo, “A humanidade é um turbilhão e o mundo um crepitar de chamas”, partindo de um maior manancial de documentos, o historiador atenta a um processo de efervescência de lutas operárias no Sul, o que conforma novas leituras do referencial russo. Fundamentalmente, o que ocorria na Rússia era tomado pelos militantes estudados enquanto uma manifestação da revolução mundial da qual os ocorridos gaúchos também eram parte. No exemplo russo, portanto, mais do que uma expectativa, havia uma marcha concreta em expansão, o que é demonstrado pelas publicações de notícias de outros episódios estrangeiros na imprensa estudada (Hungria e Alemanha). Ainda na toada de enfocar as manifestações jornalísticas, o autor relaciona as respostas da militância à apreciação da imprensa burguesa em torno da Revolução Russa. Denunciavam os interesses de classes de veículos como o Correio do Povo. Era uma denúncia que implicava na continuada defesa da experiência russa a partir de argumentos que visavam também legitimar o seu próprio projeto de revolução. Não era apenas o referido cariz burguês que era acusado, mas também as bases do noticiário, como “boatos infundados” e “fontes duvidosas” (p. 121). Por fim, Bartz se dedica à análise dos textos que expressam a “necessidade de analisar a nova situação” (p. 125), escritos que identifica como de opinião editorial, distintos pelo seu caráter “mais doutrinário e teórico do que propriamente informativo” (p. 126). É meritória a explicitação sutil e direta dos critérios de escolha do corpus inquirido. Identifica-se aí uma variedade de impressões, com predomínio das “[…] que ligaram a revolução às lutas políticas e econômicas dos trabalhadores organizados” (p. 136). Resulta-se da análise exposta uma demonstração da fraqueza de uma das hipóteses correntes sobre o fenômeno estudado (o apoio dos anarquistas brasileiros à Revolução Russa como fruto de equívoco).

Um momento destacável em “O horizonte vermelho” encontra-se no quarto capítulo, “Parecerá absurdo que um libertário que tem por lema a paz exclame: Salve a Revolução!”. A exposição aqui adquire caráter distinto, iluminando elementos já abordados, com a aproximação biográfica de militantes com diferentes inserções no processo. A variedade de apropriações que trazem da Revolução Russa é um elemento relevante à compreensão da pluralidade própria à experiência operária no período analisado e no Rio Grande do Sul: “[…] a aproximação com os ideais da revolução foi um processo diferente para diferentes sujeitos, que tinham histórias e tradições diversas” (p. 175). É assim que Bartz se volta para as figuras de Friedrich Kniestedt, Zenon de Almeida, Abílio de Nequete e Carlos Cavaco, sendo eles dois anarquistas, um livre-pensador e um socialista, respectivamente. Foram variadas as suas experiências militantes, para além de questões próprias às trajetórias de vida em geral, fato notório na importante apropriação étnica de Almeida e Nequete. Também foram diversificadas as formas com que travaram contato com as notícias da Revolução Russa e como as ressignificaram de acordo com a sua atuação e inserção política, configurando distintos caminhos no complexo processo que se desenrolava.

Em “A vossa fraqueza é filha da vossa divisão – uni-vos pois! E não haverá força alguma que possa vos enfrentar”, é observada a peculiaridade dos primeiros grupos comunistas gaúchos, a sua inserção no movimento operário local, bem como a sua relação com as organizações assemelhadas do centro do país – o que, por si só, implicou em se concentrar na rede de difusão de informações entre diferentes regiões, objeto histórico importante. Também se avalia como esses grupos participam em um novo tipo de ação política, indício das transformações de vulto em processo. No que toca às particularidades sul-riograndenses, o autor lembra que as associações operárias de cariz comunista surgem mais rapidamente em relação a outras regiões do Brasil, sendo este “o aspecto mais visível do impacto da Revolução Russa”. Bartz retoma experiências efêmeras citadas antes em seu livro, tendo em vista a devida fidelidade factual. Sua atenção às organizações de tipo novo reside no quanto elas expressam alterações em objetivos programáticos, bem em sua inserção nas lutas concretas do período. A variedade regional dos grupos comunistas originais demandou à pesquisa uma atenção dividida entre diferentes centros gaúchos. A relação dos primeiros comunistas do Rio Grande do Sul com seus congêneres de São Paulo e Rio de Janeiro é exposta a partir da narrativa de um episódio pouco lembrado pela historiografia brasileira como um todo: a insurreição de 1919. A experiência, de caráter revolucionário, é abordada especialmente no que toca os novos elementos nela atuantes, como o novo tipo de laços políticos que se estabeleciam e as novas leituras com que militantes como Abílio de Nequete travavam contato.

O último capítulo da obra tem por título “Não se pode descrever o que se passou na cabeça de boa parte de nossos velhos amigos – num piscar de olhos tornaram-se nossos inimigos”. Ele versa sobre um aspecto fundamental do objeto: o refluxo do movimento operário após o agitado triênio inaugurado em 1917 e a crise interna no bojo desse refluxo, manifesta pela radical cisão entre anarquistas e bolchevistas. A recepção do processo russo e de suas notícias estava no centro do conflito. No caso gaúcho, demonstra Bartz, é precoce o imbróglio, sendo “[…] provavelmente um dos primeiros estremecimentos do movimento operário brasileiro causados por este motivo” (pp. 226-227). Um processo mais complexo, contudo, do que as aparências podem sugerir. O autor contempla as experiências e tradições de classe locais, escapando de armadilhas próprias às memórias dos envolvidos, as quais discute com o devido cuidado analítico (pp. 238-239). Outro aspecto fundamental do momento de refluxo das atividades do movimento operário é identificado pelo historiador no esforço repressivo em curso especialmente a partir de 1919. Isso é comprovado por documentos policiais e noticiário da grande imprensa, nos quais localiza o empenho em não apenas desmerecer a experiência russa, mas especialmente criminalizar as associações operárias, que se manifestavam em um crescendo, tanto no vulto de suas atividades quanto na radicalização de sua linguagem. Por fim, apresenta-se o estudo das disputas internas do movimento operário gaúcho a partir das lutas desenvolvidas no seio das organizações locais, processo que o autor interpreta a partir da hipótese das sequelas da repressão há pouco citada, bem como das discordâncias em torno da atuação nas instâncias internas a esses trabalhadores. Essa explicação – não resta dúvida – reforça a constante matização de outras que atribuem as cizânias entre anarquistas e os recém constituídos comunistas apenas aos debates internacionais.

É relevante a leitura de “O horizonte vermelho” para todas e todos que se interessem não só pela história do movimento operário, mas também pela história política e das ideias no período abordado. O autor soube reutilizar em diferentes momentos de seu estudo as mesmas fontes, o que em nada tornou maçante a sua narrativa, pois interrogava-as de acordo com diferentes aspectos do complexo processo investigado, conseguindo, portanto, extrair distintas informações de um mesmo documento ao sabor da determinação à qual atenta. Elabora-se, assim, uma relevante explicação em torno de um momento decisivo na conformação de um importante ator da cena histórica brasileira que se desenvolvia.

Carlos Quadros – Doutorando em História Econômica e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Substituto do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Campus Itaquaquecetuba. E-mail: carlosfquadros@gmail.com.


BARTZ, Frederico. O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul, 1917-1920. Porto Alegre: Sulina, 2017. 319 p. Resenha de: QUADROS Carlos Fernando de. Um capítulo na história da esquerda brasileira: o impacto da Revolução Russa no Movimento Operário Gaúcho. Projeto História. São Paulo, v.70, p.340-345, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS | Júlia Rocha (R)

Bilros 4
Júlia Rocha | Imagem: Canal Júlia Rocha |

Critica Historiografica capas 9Está expresso na constituição brasileira, conhecida como constituição cidadã, promulgada em 1988, que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” [2]. Entretanto, para que a saúde se tornasse direito de todos e dever do Estado houve um longo processo de reformas e lutas políticas e sociais. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o coroamento desse processo, já que a saúde como um direito da população pode ser acessada por meio dele um sistema que se pretende “público, universal e descentralizado” (PAIVA & TEIXEIRA, 2014). Fortalecê-lo, portanto, é assegurar que brasileiros e brasileiras possam exercer plenamente a sua cidadania.

O livro “Pacientes que Curam: O cotidiano de uma médica do SUS”, não narra uma experiência ou um ambiente exclusivamente de assistência hospitalar – como o título pode sugerir. Em vez disso, nos apresenta as vivências de Júlia Rocha – mulher, negra que trabalha como médica de família e comunidade no SUS [3] – com pouco mais de 10 anos de carreira. Graduada em medicina no ano de 2010 e com residência médica concluída em 2015, a autora destaca a partir de sua formação e experiência profissional que o “cuidado em saúde é algo impossível de se fazer só” (ROCHA, 2020, p: 301). Assim, embora o livro não faça referência à história institucional do SUS, ele nos apresenta questões fundamentais para a reflexão sobre a importância desse sistema e sua atuação diante das mais profundas contradições brasileiras. Leia Mais

A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica | Mariana Muaze e Ricardo H Salles (R)

MUAZE e SALLES
Mariana Muaze e Ricardo Salles | Foto: Divulgação

MUAZE e SALLES A segunda escravidaoO desembarque do conceito de segunda escravidão na historiografia brasileira encontra importante expressão com a publicação do estudo crítico que, além da apresentação do historiador norte-americano Dale Tomich, reuniu quinze historiadores para o exame da relação entre capitalismo e escravidão no século XIX.

Denominada A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica, a coletânea é resultado dos trabalhos de pesquisas e discussões do grupo interinstitucional “O Império do Brasil e a segunda escravidão”, formado por pesquisadores da Unirio, Mast, UFF, USP, Unifesp, UFJF e UFSC e pelos integrantes do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Lab-Mundi/USP).

Se o propósito era pensar a porosidade do conceito de segunda escravidão, ele se configura na breve apresentação de Dale Tomich, que nos indica que “segunda escravidão é um conceito aberto que tem o objetivo de repensar a relação entre capitalismo e escravidão e as causas desta última no Oitocentos” (Tomich, 2020, p. 13). Pretendendo sublinhar que a abordagem da segunda escravidão trata “as relações escravistas históricas reais [que] são constituídas […] pela forma das relações senhor-escravo […] por processos de produção materiais específicos (açúcar, café, algodão) […] por sua posição relativa na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial […]” (p. 14), realça que a origem do conceito é fruto da “insatisfação com histórias lineares da escravidão que a veem como incompatível com o capitalismo industrial e as ideias liberais de propriedade e liberdade” (p. 13).

É nesse quadro de “escravidão em interação com a construção dos Estados nacionais e com a expansão internacional do mercado escravista” (Muaze, Salles, 2020, p. 19) que se deve colocar o livro organizado por Mariana Muaze e Ricardo Salles. O que primeiro chama a atenção é que a coletânea tem como pilar central “o problema histórico de como a escravidão moldou o capitalismo brasileiro no século XIX e na atualidade” (p. 20). De fato, esse eixo central, colocando problemas, proporciona análises, revisões e novidades que enriquecem o conhecimento que se tem da escravidão.

A obra é dividida em quatro partes. Na primeira, aborda-se a constituição da “Segunda escravidão e o capitalismo histórico em perspectiva atlântica”. Seu mérito reside na estimulante e bem arejada exposição de Leonardo Marques sobre o percurso historiográfico das ideias que compõem o espectro analítico do conceito de segunda escravidão e sobre os desafios de integrar o mundo político e cultural nas narrativas de emergência e destruição da segunda escravidão. Além de contar com o “ensaio de historiografia” de Ricardo Salles, no qual direciona especial atenção para o debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão, partindo da consideração de que nos Estados Unidos “o problema dessas relações se apresentou de forma mais aguda” (Salles, 2020, p. 27). Já no último capítulo da primeira seção, Rafael Marquese tece comentários críticos.

A segunda parte, “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”, reúne quatro trabalhos. No primeiro, Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico, com o intuito de investigarem a associação entre escravidão e a modernização da economia brasileira no século XIX, identificam as relações entre as economias mercantis escravistas regionais e a segunda escravidão. Em seguida, Walter Pereira direciona especial atenção para o dinamismo econômico do município de Campos dos Goytacases, ao longo da segunda metade do século XIX. As reflexões críticas desses artigos condensam os comentários de Renato Leite Marcondes e Gabriel Aladrén.

Já a terceira parte confere centralidade à relação entre segunda escravidão e o período Colonial Tardio. Valendo-se dos artigos de Carlos Gabriel Guimarães e Carlos Leonardo Kelmer Martins e comentários de Rodrigo Goyena Soares, essa seção combina reflexões epistemológicas e resultados preliminares de pesquisa.

A última seção do livro apresenta discussões metodológicas. O debate gira em torno das possíveis articulações entre o micro e o macro. Em outras palavras, do entrelaçar das propostas advindas da segunda escravidão e da micro-história. Três historiadores, Mariana Muaze, Thiago Campos Pessoa e Waldomiro Silva Junior, se dedicam a esse esforço. No último capítulo, a historiadora Mônica Ribeiro de Oliveira elabora os comentários críticos sobre as proposições metodológicas.

Ricardo Salles, no primeiro capítulo, faz uma longa travessia historiográfica desde Graham, Genovese, Fogel e Engerman aos recentes estudos de Sven Beckert e Seth Rock­man. Retoma tradições de pensamento sobre escravidão e capitalismo: os esforços comparativos entre o “Velho Sul” e o Brasil; o problema das mentalidades ditas “mais racionais” diante dos comportamentos patriarcais de status e poder; a lucratividade, racionalidade e caráter capitalista da escravidão propostas pela New Economic History; os riscos dos excessos de empirismo ou de abstração teórico-metodológica no ofício do historiador; o capitalismo da escravidão de Rockman e Beckert; a centralidade da economia sulista norte-americana no desenvolvimento capitalista; a escravidão nos Estados Unidos face ao pacto político da estrutura de poder federativa; e, no caso brasileiro, o Império do Brasil e sua estrutura de poder unitária, assentada na difusão da escravidão por todo território, alicerçada na hegemonia política e social da fração da classe senhorial da bacia do Paraíba do Sul. E, por fim, a validade instrumental do conceito de segunda escravidão como uma estrutura histórica específica.

Salles aponta que o conceito de segunda escravidão “hibernou” entre 1988 e até fins da década de 1990. Em 1999, de maneira “pioneira e isoladamente” Christhopher Schmidt-Nowara valeu-se do conceito para analisar a escravidão cubana e porto-riquenha no Novo Império Colonial Espanhol do século XIX. Em 2004, o conceito desembarcou no Brasil. Rafael Marquese o empregou em Feitores do corpo, missionários da mente.

No plano da historiografia brasileira, subjacente a essa escolha conceitual, Salles indica que a apropriação do conceito de segunda escravidão relaciona-se diretamente ao “abandono do conceito de capitalismo” pelas correntes historiográficas do “sentido arcaico da escravidão brasileira e a historiografia com ênfase na agência escrava” (Salles, 2020, p. 36). O novo aporte não apenas conduz a análise para o dimensionamento do processo de longa duração e os quadros globais do capitalismo histórico como também para “a discussão da relação entre escravidão e desenvolvimento do capitalismo dependente, periférico e excludente no país” (p. 36).

No capítulo seguinte, cujo objetivo é aprofundar o debate historiográfico sobre escravidão e capitalismo, Leonardo Marques aponta limites e potencialidades do conceito de segunda escravidão. Valendo-se de amplo espectro historiográfico, perpassa o marxismo, a noção de sistema-mundo, Global History e a New History of Capitalism. A exposição reconhece como mérito da segunda escravidão, além de recolocar em cena o tema escravidão e capitalismo, o questionamento que ela oferece contra “o nacionalismo metodológico que ainda informa uma parcela importante da produção historiográfica mundial […]”. (Marques, 2020, p. 55). Para Marques, a contribuição historiográfica essencial é a visão integrada dos mútuos condicionamentos das três principais sociedades escravistas das Américas (Cuba, Brasil e Estados Unidos), pois permite reconstituir o lugar dessas sociedades no capitalismo global do século XIX. Tomando por base essa perspectiva, indica que, diante desse enquadramento analítico, ultrapassa-se o conceito de segunda escravidão, pois, nesse caso, “o procedimento sugerido por Tomich é mais importante do que o próprio conceito […]” (Marques, 2020, p. 68).

Como resultado dos dois capítulos iniciais, Rafael de Bivar Marquese propõe reflexões historiográficas sobre a escravidão histórica e o capitalismo histórico. Nesse debate, ganham contornos as divergências entre as interpretações de Ricardo Salles e Leonardo Marques. O dissenso centra-se na tensão entre o lugar dos Estados nacionais na especificidade das trajetórias dos espaços escravistas das Américas e a perspectiva de que o capitalismo como sistema transpõe fronteiras políticas e combina múltiplas formas de trabalho compulsório. Marquese sublinha, de um lado, a importância da profunda descontinuidade das trajetórias dos espaços escravistas na virada do século XVIII para o XIX, a “segunda escravidão” e, de outro, a integração da economia-mundo, novos espaços escravistas e as relações de produção, distribuição e consumo. Essa afirmativa desloca o olhar para as totalidades como interdependências mútuas, tais como as relações entre mercado mundial, divisão internacional do trabalho e o fenômeno do “ciclo britânico de acumulação”.

É nesse quadro do pensamento econômico que a coletânea avança para a segunda parte “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”. Os capítulos representam não apenas esforços analíticos que visam examinar de maneira integrada economias mercantis escravistas regionais, inovações tecnológicas, indústrias e segunda escravidão mas também nos revelam uma agenda de pesquisa, como nota Renato Marcondes. O texto “Raízes escravas da indústria brasileira” procura mapear a persistência da escravidão, diversidade regional e modernização da economia brasileira nos séculos XIX e XX. Com enfoque regional, o capítulo seguinte, de autoria de Walter Pereira, analisa a dinâmica econômica e da escravidão na bacia do rio Paraíba do Sul, suas atividades agrícolas e bancárias, inovações tecnológicas, ferrovias, embarcações a vapor e bondes.

Ao longo da terceira parte, no primeiro artigo de Carlos Gabriel Guimarães, o que se verifica é uma grande riqueza de análise que, apesar da advertência do autor que “as pesquisas nos arquivos ainda estejam no início”, revela a especificidade da inserção dos negociantes ingleses Joseph e Ralph Gulston e suas conexões globais financeiras e comerciais, em especial, com a comunidade mercantil lisboeta, carioca e africana.

Numa outra proposta, intitulada “O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob a égide mercantilista”, o historiador Carlos Kelmer Martins enfatiza, do ponto de vista teórico e metodológico, as interseções e diálogos entre as premissas do conceito de segunda escravidão, do mercantilismo e da complexidade política, social, cultural e econômica do sistema mundial setecentista. Rodrigo Soares, responsável pelos comentários críticos, considera que o mérito de Kelmer Martins “está na percepção da desigualdade entre as sociedades ou no seio de cada uma, como decorrência de uma forma combinada integrada” (Soares, 2020, p. 226).

Na quarta e última parte, intitulada “Segunda escravidão, micro-história e agência”, o que está em jogo no par macro e micro é um redimensionamento dos objetos e questões. Em todos os capítulos a abordagem é convergente. Reafirma-se o ofício do historiador como possibilidade de articulação da dimensão macroestrutural aos elementos da micro-história, assim como se procura sofisticar as pesquisas a partir do conceito de segunda escravidão. Mariana Muaze aponta caminhos para superar a incompatibilidade fundante entre a micro-história e a segunda escravidão. Em outra chave, Thiago Pessoa conjuga análise empírica, decorrente dos resultados de pesquisa no Arquivo Nacional, a abordagem metodológica da micro-história e as contribuições do conceito de segunda escravidão. Nesse movimento, valoriza as contribuições da redução de escala e as potencialidades da perspectiva global a fim de examinar a classe senhorial do Império do Brasil, as redes de negócios e sociabilidade, o complexo cafeeiro, o tráfico e a escravidão.

Por essas razões, Waldomiro Lourenço da Silva Júnior afirma que a segunda escravidão, como conceito analítico que abrange zonas de plantação mais dinâmicas e capitalizadas da economia global, em especial, no Brasil, o complexo cafeeiro, não estaria invalidada por não contemplar a escravidão urbana e portuária, a produção com pequenas escravarias voltadas para o abastecimento em Minas Gerais ou a indústria baleeira catarinense. Para o autor, a validade da noção de segunda escravidão configura uma “questão elementar de epistemologia” em que “a validade cognitiva de uma categoria de análise não se limita necessariamente às constatações empíricas que respaldaram a sua formulação” (Silva Júnior, 2020, p. 282). Portanto, as evidências da escravidão em economias como Minas Gerais, Santa Catarina ou de regiões portuárias ou urbanas seriam decorrência direta da dinâmica da segunda escravidão: “as outras formatações da escravidão só persistiram a longo prazo no Brasil porque existiu uma base material nuclear suficientemente sólida (a base da segunda escravidão), que garantiu, no campo político, as condições para sua perpetuação” (p. 282).

Como bem lembra Monica Ribeiro de Oliveira, apesar das contribuições de Muaze, Silva Júnior e Pessoa, os desafios postos pela articulação da micro-história à perspectiva macro permanecem em aberto.

De modo geral, o conceito de segunda escravidão, subjacente a todos os trabalhos do livro, nem sempre alcança o objetivo de dotar a obra de relativa unidade e também da porosidade conceitual desejada por Dale Tomich na apresentação. No entanto, certamente, alguns trabalhos ganharão espaço na historiografia, mais pelo valor do debate apresentado do que pelas conclusões.

É importante compreender que a obra reflete, ao mesmo tempo, o esvanecimento da história econômica, hegemônica por décadas na academia brasileira e em seus cursos de graduação e pós-graduação em história, e também sintetiza uma retomada.

Apesar dos novos horizontes metodológicos, a formulação do conceito de segunda escravidão (1988) é oriunda, em parte, no caso da interpretação sobre a economia brasileira, das ideias encontradas em Formação econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado, um dos autores citados por Tomich no capítulo fundador do conceito de segunda escravidão. É no mínimo curioso que nenhum dos capítulos de A segunda escravidão e o império do Brasil em perspectiva histórica mencione o livro de Celso Furtado em suas referências bibliográficas, nem o possível impacto da interpretação de Furtado na gestação conceitual de segunda escravidão, ou associe o fato de que concepções furtadianas ganharam nova roupagem historiográfica.

Referências

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil [1959]. 15a ed. São Paulo: Editora Nacional, 1977.

MARQUES, Leonardo. Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 53-74.

MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SALLES, Ricardo H . A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão: ensaio de historiografia. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 27-52.

SILVA J JÚNIOR, Waldomiro Lourenço da. A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl? In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 279-285.

SOARES, Rodrigo Goyena. Comentário: benefícios e limites da segunda escravidão como método para uma razão dialética. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria , 2020, p. 223-238.

TOMICH, Dale. The “second slavery”. In: TOMICH, Dale. Through the prism of slavery Lanham: Rowman & Littlefield, 2004, p. 56-71.

Télio Cravo – Pós-doutorando em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). São Paulo(SP), Brasil. teliocravo@gmail.com.


MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H. . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica.São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. 298p. Resenha de: CRAVO, Télio. Desembarque da segunda escravidão na historiografia brasileira. Tempo. Niterói, v.27, n.1, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil | Yuko Miki

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Yuko Miki | Foto: Fordham News |

MIKI Y Frontiers of citizenshipA especialização no campo das pesquisas históricas trouxe inegáveis avanços para o nosso conhecimento a respeito das indagações que fazemos sobre o passado. Ao lado desses avanços há armadilhas, quase que inevitáveis, especialmente para os historiadores em formação. É na definição dos recortes – seja ele espacial, cronológico, bibliográfico ou de grupos sociais – que se antevê o tamanho do cabresto que cerceia a visão do autor e retroalimenta interpretações de escolas clássicas. São recortes que não nascem livremente de perguntas – o único meio de dar unidade coerente à pesquisa, como ensinava Marc Bloch – e, sim, estão naturalizados pelos campos ou pelas instituições. No Brasil, uma das especializações mais curiosas é a que separa de forma extremamente rígida a história dos povos indígenas e dos escravizados afro-brasileiros. De modo geral, persiste a crença de que o avanço territorial da escravização afro-brasileira tinha como sua consequência o desaparecimento ou perda de importância dos povos indígenas. Os estudos sobre o século XIX vem sistematicamente negando essa perspectiva, mas muitas vezes também criando uma história dos povos indígenas no Império do Brasil quase autônoma à da escravização dos afro-brasileiros. [3]

Frontiers of Citizenship, de Yuko Miki, já mereceria ser saudado por explorar essa primeira “fronteira”: a que separa a história de afro-brasileiros e de indígenas no Império do Brasil. Mais uma vez, o olhar estrangeiro nos ajuda a questionar os cânones da história nacional. Miki nascida em Tóquio, mas há muitos anos radicada nos Estados Unidos, onde é professora da Fordham University (NY), conta ao longo do livro o seu estranhamento em ver a história desses dois grupos tão apartada. Por outro lado, o livro – e especialmente seus comentários de contracapa – lhe atribuem muitas vezes uma originalidade que não é verdadeira. Muitos pontos – sobretudo em relação à história dos povos indígenas – podem ser pouco conhecidos do público estrangeiro, mas são absolutamente sabidos entre os historiadores brasileiros. A despeito disso, o esforço em buscar uma única interpretação, ou mesmo pontos de encontros, para a história de indígenas e afro-brasileiros escravizados é um ganho real.

Desde o início o livro chama a atenção por essa fusão que não está apenas na capa – uma bela arte de sobreposição de imagens de indígenas e afro-brasileiros – mas por se tratar de um volume da “Afro-Latin America” da Cambridge que tem como recorte espacial o vasto território conhecido na historiografia por ser aquele que foi alvo de D. João, em 1808, para se fazer guerra aos indígenas botocudos. Poucos territórios têm tão marcadamente um tema e uma cronologia: a guerra justa contra os botocudos e o período de 1808 a 1831, quando esta prática é extinta pelo Parlamento. Quase que exclusivamente tratado pela historiografia sobre os povos indígenas, é centro de discussão para as políticas indigenistas e as modalidades de trabalho imposta a estes povos. [4]

Miki implode esses parâmetros. Em primeiro lugar, avança a análise até o final do Império, permitindo revelar um quadro de mudanças muito mais complexo do que aquilo que se vê apenas até 1831, passando inclusive pelo Regulamento das Missões (1845) [5], o movimento abolicionista e a própria abolição. Ainda mais importante, Miki tenta enxergar essa região – que ela chama de “Fronteira Atlântica”, algo que problematizaremos adiante – como uma espécie de síntese, de um laboratório do Império. Afinal, foi ali que se abriu no começo do século XIX uma política generalizada de extermínio indígena. É verdade que isto jamais foi suprimido no Império português, mas especialmente depois de Pombal as políticas que tentavam transformar os indígenas em portugueses tornaram-se centro da estratégia do Império na disputa por territórios com Madri.

Ao mesmo tempo, o espaço colonial é o símbolo de uma mudança política com a vinda da Corte, Corte que não valorizava mais “zonas tampão” – papel que o território e os botocudos tinham ocupado até 1808 para impedir o desvio de pedras preciosas. Ao invés disso, o que se precisava era expandir-se “para dentro”, feliz expressão de Ilmar Mattos que fará ainda mais sentido já no Império do Brasil. [6] A expansão agrícola na “Fronteira Atlântica” é acompanhada de tentativas de implementação de novas alternativas de propriedade e trabalho. A mais famosa dessas iniciativas é a Colônia Leopoldina, incentivada pela própria Coroa através da vinda imigrantes e a distribuição de pequenas propriedades. A rápida transformação dessa experiência em apenas mais uma grande monocultura tocada com braços de escravizados afro-brasileiros, somada ao fato de ter se tornado um dos símbolos da resistência escravista, é extremamente destacado pela autora. Em alguma medida, o tom pessimista de toda a obra é sintetizado no “fracasso” da Colônia Leopoldina em manter-se com o trabalho livre.

Ainda que não dito explicitamente, Miki parece descrever um processo de mudança que nunca ocorre totalmente, como se o peso do passado fosse intransponível. A polissemia da palavra fronteira é habilmente explorada pela autora. A “Fronteira Atlântica” é a região que estuda. Os indígenas e afro-brasileiros estão fisicamente nesta fronteira, mas a sua cidadania também está em uma fronteira mais intangível, em uma área difícil de saber com clareza quem está dentro e quem está fora. Ainda que se valendo de análises já bastante conhecidas – sobretudo, de Sposito e Slemian [7] – Miki faz uma problematização dessa questão, lembrando que a constituição brasileira não era racializada. Ou seja, não era a cor da pele que determinava os direitos políticos. Por outro lado, condições jurídicas intrinsicamente ligadas à condição de homens e mulheres não brancos – como ser escravo ou considerado “selvagem” no caso dos indígenas – excluíam essas pessoas do “pacto político”. É apenas no final do livro – já discutindo o abolicionismo e o final do Império – que Miki deixa explícito que a negativa de direitos políticos para indígenas e negros era um projeto e não uma deficiência do sistema. Nesse ponto, há uma perfeita sintonia entre os projetos que analisa para indígenas e para os escravos após a abolição: em todos esses casos jamais se pensa em entregar terras e autonomia a esses povos. Ao contrário, a condição de subordinados, tutelados por fazendeiros ou religiosos é vendida como a única forma para impedir que ex-escravizados ou indígenas se entregassem ao ócio. Um discurso que se sustentou por décadas – e no caso dos indígenas, por séculos – e que ela registrou ecoar até mesmo entre os mais radicais abolicionistas da “Fronteira Atlântica”.

Se ao discutir a extensão da condição de cidadãos para indígenas e afro-brasileiros, Miki consegue uma análise mais integrada, o mesmo não acontece a respeito de outros aspectos. O exemplo mais evidente nesse sentido é o uso desses homens como mão de obra. Há, evidentemente, a demonstração de que em todo esse território havia o emprego significativo de indígenas e afro-brasileiros. No entanto, este são universos que estavam no mesmo território, mas que a narrativa organiza em sistemas produtivos bastante distintos. Ou seja, o enfoque para os indígenas está, de modo geral, nas missões e os escravizados afro-brasileiros nas fazendas. A pureza dessas separações tão estanques é difícil de acreditar em um território como esse. Bezerra Neto já mostrou que as fazendas monocultoras do Pará, por exemplo, sempre foram tidas como tocadas por mão de obra exclusivamente escravizada afro-brasileira, mas na verdade dividia os campos com indígenas. [8]

Antes que se diga que se trata das “excentricidades” do Cabo Norte, Marco Morel, em belíssimo e recente trabalho sobre os botocudos, justamente mostra como a sua mão de obra era frequentemente requisitada para os mais diferentes tipos de trabalho, ocupando frentes inclusive no entorno da Corte. Além do trabalho em obras públicas, Morel dá vários exemplos de como eram recorrentes as denúncias do emprego de indígenas em fazendas em toda essa região, muitas vezes desviados de instituições públicas sob a alegação de que era um método de civilização mais barato. [9] Para além disso, Miki passa ao largo da discussão mais interessante da historiografia recente: aquela que implode a visão dicotômica que separava todo o trabalho no Brasil do século XIX nas categorias de trabalho livre ou trabalho escravo. Em vez disso, há uma gigantesca zona cinzenta – não só no Brasil, mas em todo o mundo – em que homens livres são obrigados a trabalhar sob as mais diferentes formas de coerção, inclusive físicas. [10] Indígenas e afro-brasileiros eram especialmente alvo dessas ações que Miki totalmente ignora no livro.

Por fim, há ainda uma última consideração geral: a ideia de classificar esta região de ataque aos botocudos como “Fronteira Atlântica”. Miki insiste muito na ideia da fronteira, certamente influenciada pela tradição americana e critica o pouco uso desse termo na historiografia brasileira. No entanto, esta designação parece ter muitas fragilidades: no Império do Brasil, no processo de “expansão para dentro”, a fronteira é o recorrente e não a exceção. Nesse sentido, a região estudada por Miki parece estar longe de ser algo particularmente singular.

Mais especificamente sobre a distribuição dos capítulos é importante salientar que as suas divisões são temáticas, ainda que de modo geral a evolução dos capítulos também siga em alguma medida um avanço cronológico. Assim, o primeiro capítulo explora as “fronteiras da cidadania”, enquanto o segundo busca dar uma interpretação ao que ela chama de “política popular” (em tradução livre). Nos capítulos seguintes, outros temas giram em torno de tópicos como a mestiçagem, a violência, os “campos negros” e o abolicionismo. Os capítulos podem ser lidos separadamente, quase sem prejuízo do seu entendimento, o que por sua vez revela um problema de coesão da obra no seu conjunto. Também é peculiar a mistura de abordagens mais “estruturais” – como as discussões da cidadania a partir de documentos do centro político do Império – com narrativas totalmente focadas na “agência”. Especialmente nesse último ponto a obra encontra mais dificuldades. Há alguns insights maravilhosos, mas custa enxergar que alguns eventos possam ser usados para generalizações reiteradamente feitas.

Apesar das críticas, Frontiers of Citizenship é um livro que provoca muitas reflexões e incomoda ao buscar análises de ângulos inusuais. Isso por si só já basta para merecer a sua leitura.

Notas

3. Entre outras novas evidências, percebe-se o uso da mão de obra indígena mesmo em regiões irrigadas com escravizados afro-brasileiros, como São Paulo ou mesmo a região do Vale do Paraíba, pelo menos até um determinado período. Entre outros, veja LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de Café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016; DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial: reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 38, nº 79, 2018.

4. Para uma síntese, SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português. Análise da política indigenista de D. João VI. Revista de História (USP), v. 161, p. 85-112, 2010.

5. Trata-se da primeira lei para os povos indígenas como validade em todo o território do Império.

6. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense, n. 01, maio de 2005.

7. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-45). São Paulo: Alameda, 2012; SLEMIAN, Andrea. “Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823 – 1824)”. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: História e historiografia. São Paulo: Editora HUCITEC; FAPESP, 2005.

8. BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão Negra no Grão Pará (séculos XVIII-XIX). Belém: Paka-tatu, 2012.

9. MOREL, Marco. A Saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistência indígena. São Paulo: Hucitec, 2018.

10. Entre outros, MACHADO, André Roberto de A. O trabalho indígena no Brasil durante a primeira metade do século XIX: um labirinto para os historiadores. In: Henrique Antonio Ré, Laurent Azevedo Marques de Saes e Gustavo Velloso. (Org.). História e Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: novas perspectivas. 1ed.São Paulo: Publicações BBM / Alameda, 2020; Mamigonian, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017; LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: UNICAMP, 2013; STEINFELD, Robert J. The invention of free labor: the employment relation in English & American Law and Culture, 1350-1870. EUA, The University of North Carolina Press, 1991.

Referências

BEZERRA NETO, Jose Maia. Escravidao Negra no Grao Para (seculos XVIII-XIX). Belem: Paka-tatu, 2012.

DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsorio e escravidao indigena no Brasil imperial: reflexoes a partir da provincia paulista. Revista Brasileira de Historia. Sao Paulo, v. 38, nº 79, 2018.

LEMOS, Marcelo Sant’ana. O indio virou po de Cafe? Resistencia indigena frente a expansao cafeeira no Vale do Paraiba. Jundiai: Paco Editorial, 2016.

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma historia global do trabalho. Campinas: UNICAMP, 2013.

MACHADO, Andre Roberto de A. O trabalho indigena no Brasil durante a primeira metade do seculo XIX: um labirinto para os historiadores. In: Henrique Antonio Re, Laurent Azevedo Marques de Saes e Gustavo Velloso. (Org.). Historia e Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: novas perspectivas. 1ed.Sao Paulo: Publicacoes BBM / Alameda, 2020.

MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construcao da unidade politica. Almanack Braziliense, n. 01, maio de 2005.

MOREL, Marco. A Saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistencia indigena. Sao Paulo: Hucitec, 2018.

Resenha de MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018.

SLEMIAN, Andrea. “Seriam todos cidadaos? Os impasses na construcao da cidadania nos primordios do constitucionalismo no Brasil (1823 – 1824)”. In: JANCSO, Istvan (org.). Independencia: Historia e historiografia. Sao Paulo: Editora HUCITEC; FAPESP, 2005.

SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime portugues. Analise da politica indigenista de D. Joao VI. Revista de Historia (USP), v. 161, p. 85-112, 2010.

SPOSITO, Fernanda. Nem cidadaos, nem brasileiros. Indigenas na formacao do Estado nacional brasileiro e conflitos na provincia de Sao Paulo (1822-45). Sao Paulo: Alameda, 2012.

STEINFELD, Robert J. The invention of free labor: the employment relation in English & American Law and Culture, 1350-1870. EUA, The University of North Carolina Press, 1991

André Roberto de A. Machado – Universidade Federal de São Paulo, Departamento de História. Guarulhos – São Paulo – Brasil. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. É graduado e doutor em História pela Universidade de São Paulo e realizou pós-doutorados no CEBRAP e nas universidades de Brown e Harvard. E-mail: andre. machado@unifesp.br


MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018. Resenha de: MACHADO, André Roberto de A. Construindo fronteiras dentro das fronteiras do Império do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021.

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The Sacred Cause: The Abolitionist Movement – Afro-Brazilian Mobilization and Imperial Politics in Rio de Janeiro | Jeffrey Needell

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Jeffrey Needell | Foto: University of Florida |

NEEDELL J The saacred cause1Devido às contradições que os formam, problemas históricos como a abolição da escravatura no Brasil são forçosamente de difícil resolução. Largo e plástico, o cativeiro moldou nossas relações econômicas, nossas tramas políticas e nossas regras de convivência. O escravo tornou-se ao longo do tempo, mas finalmente a um só tempo, mão de obra, mercadoria, insumo e derivativo financeiro. No campo político, fez das classes latifundiárias uma barreira intransponível para as dirigentes, quando não as forjou em simbiose. Delimitou por extensão o padrão de inserção internacional do país e regeu a vida social a ponto de definir quem era quem, aliviando apenas superficialmente os menos prósperos das misérias hierárquicas próprias a uma sociedade, igualmente por causa do cativeiro, formada a partir de desigualdades.

Jeffrey D. Needell , professor na Universidade da Flórida e também autor de A Tropical Belle Epoque (1987) e The Party of Order (2006), reorientou em The Sacred Cause sua já costumeira análise a partir das elites políticas, de modo a avaliar o Treze de Maio na perspectiva das inter-relações entre o movimento abolicionista, pelo baixo, e a vida parlamentar, pelo alto. Na complexidade multidimensional da escravidão, Needell autonomizou três variáveis e as aplicou a um espaço apenas, a Corte, porque julgada berço e cova do abolicionismo. O recorte temático e espacial atravessa o texto por inteiro e dá o tom dos porquês do Treze de Maio. À pergunta como foi possível a abolição quando o Estado era dominado por escravocratas? Needell responde: por obra de duas forças congraçadas – a saber, a solidariedade afro-brasileira e o movimento abolicionista – contra um reduto parlamentar, pelo resto, também pressionado pela Coroa.

Com o estilo ríspido que por vezes lhe é característico, Needell põe em xeque boa parte da historiografia que tratou do movimento abolicionista. Emília Viotti da Costa (1966), Robert Conrad (1972) e Robert Toplin (1972) não teriam logrado integrar o abolicionismo às urdiduras da alta política. Com os olhos voltados para os oprimidos e respaldados por interpretações materialistas, o que nem sempre foi o caso, não teriam compreendido, o que talvez não seja de todo justo, como o regime verdadeiramente funcionava. Seria esse o mesmo – e suposto – defeito de Angela Alonso (2015), malgrado o mérito de procurar entender o movimento abolicionista em escala nacional. A historiografia mais recente que se albergou na ideia de agência escrava, quer Needell, tampouco teria feito melhor, porque, calcada nos indivíduos, não teria assimilado o movimento em seu conjunto – mas foi essa a vocação dos agenciais?

Desejoso do inédito, Needell dividiu seu texto em sete capítulos, que, à exceção do quadro de socialização afro-brasileira composto no primeiro, seguem a ordem cronológica dos acontecimentos. O segundo traça o advento do movimento abolicionista, logo após a edição da Lei do Ventre Livre em 1871, até sua primeira derrota em 1881. Vislumbrando fases rápidas e movediças, Needell propõe no terceiro capítulo o soerguimento do movimento entre 1882 e 1883, particularmente em suas feições populares e suas solidariedades racialmente amplas. No quarto, discute o governo de Sousa Dantas, a posição agora mais contida, porque atenta à radicalização, de um monarca de claras tendências emancipacionistas e a saída paliativa da Lei dos Sexagenários, editada em 1885, com o retorno dos conservadores ao poder.

Daí em diante Needell presta-se à análise da resposta abolicionista à lei de 1885, procurando seu objeto – como nos outros capítulos – na imprensa, nos diários, nas memórias, nos relatórios oficiais e na troca de correspondências. Conclui o quinto capítulo com a implosão do bloco conservador e a decorrente intervenção abolicionista do Imperador, articulada de maneira a preservar o país de uma desestabilização final. Diferentemente dos Estados Unidos, onde a abolição ocorreu após severa guerra civil, Needell sugere uma saída relativamente pacífica para o trabalho livre no Brasil- implicitamente também por obra de um poder pessoal do monarca. Discutida a abolição propriamente dita no sexto capítulo, Needell argumenta no sétimo o resultante colapso da monarquia e, sobremaneira, o fracasso do movimento em lidar com a inserção do negro na sociedade de classes, malgrado ter sido transversalmente afro-brasileiro.

Porque permanentes no relato, são as três variáveis de Needell que interessam a esta resenha, e começaremos pela que talvez seja a mais polêmica: a solidariedade afro-brasileira na formação, na radicalização e nos estertores do movimento abolicionista.

Desde cedo, propõe Needell, escravos de diferentes nações encontraram meios para fazer suas próprias comunidades. Angolas, benguelas, cabindas, congos ou moçambiques importaram divisões étnicas que somente se desfizeram com o tempo, mas especialmente após o término do tráfico transatlântico em 1850. Socializados em irmandades religiosas e em confrarias políticas, os cativos moldaram progressivamente uma identidade afro-brasileira, em primeira instância, por oposição a outrem e, em segunda, pela partilha de experiências comuns – conceito que Needell, sem levá-lo até suas últimas consequências, parece tomar emprestado de E. P. Thompson. Transitando por uma Corte que não formou guetos, pelo menos para o autor, os escravos relacionavam-se com o operariado em constituição, também de origem negra. A troca teria amadurecido após a Lei Eusébio de Queirós (1850), não apenas em razão da diversificação da malha societária, mas sobretudo em consequência do aumento no preço do escravo. Sem recursos para diferenciar-se pela posse cativa, a classe popular encontrou-se tão desamparada quanto a igualmente afrodescendente classe média em suas expectativas de ascensão social, o que, sugere Needell, teria apenas redobrado a solidariedade racial.

Nesse enredo e à contracorrente do usualmente acreditado, o movimento abolicionista teria surgido afro-brasileiro desde o começo. A historiografia não teria suficientemente percebido – sequer Rebecca Bergstresser, cuja tese sobre a participação da classe média no movimento Needell apadrinha – um protocolo relacional do Império moldado para acobertar origens raciais, quando necessário. As plateias abolicionistas eram afro-brasileiras, argumenta o brasilianista norte-americano, e a inclemência das fontes quanto a isso apenas ratifica uma etiqueta que impunha mudez sobre a descendência negra de homens e mulheres de maior envergadura social – ou de potenciais lideranças abolicionistas, ainda que populares. É desses silêncios que emergem na análise de Needell novas figuras abolicionistas, pouco ou nada conhecidas do público especializado. Para além dos famigerados André Rebouças, Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, tratados com rigor e à exaustão no texto, Vicente Ferreira de Souza e Miguel Antônio Dias teriam sido lideranças de proa, porque orgânicas – para retomar um conceito de Antonio Gramsci, ao qual Needell não recorre. Entre a novidade historiográfica e o embasamento material, o equilíbrio é por momentos imperfeito, visto que, especialmente no caso de Miguel Antônio Dias, as fontes parecem não ser satisfatórias o bastante para lhe dar o mérito que parece ter. O problema, no entanto, é pó de traque perto da imaginação que o bom historiador conduz entre as frestas dos documentos.

Mais quebradiço é o imediato pós-abolição de um autor que viu tanta solidariedade racial entre afro-brasileiros. Em parte, o movimento abolicionista teria fracassado em promover uma sociedade menos segregada após o Treze de Maio, porque, contrariamente à percepção corrente, o racismo não era vislumbrado pelos abolicionistas como barreira à mobilidade social ou como tema relevante em seu tempo. Se consentirmos com a interpretação, como pôde então a raça, na avaliação do próprio Needell, ser tão matricial na formação do movimento abolicionista? A incoerência, nos parece, poderia eventualmente ser melhor resolvida pela perspectiva de classes, que o autor realça e embaça, a depender do instante argumentativo. Por todas as evidências dadas no próprio texto, numa sociedade em que a imbricação das relações sociais nas econômicas, para recuperar um conceito de Karl Polanyi, expressava os pródromos da formação capitalista brasileira, raça e classe, assim como geração e gênero, combinaram-se nas hierarquias coletivas daquele tempo – muito largamente constituídas pela renda. Sintomaticamente, o negro que enriquecia embranquecia, o jovem que fazia fortuna amadurecia e a mulher que trabalhava empobrecia. Se afro-brasileiros como Rebouças, Vicente de Sousa e Patrocínio, na recomendação de Needell, agitaram-se contra a pobreza e a opressão, urbana e rural, no lugar de se apegarem ao racismo, foi porque os silêncios sobre a raça estavam encastelados na renda – que, antes de ser um critério, é um reflexo de um determinado lugar nas relações sociais que mercadorias produzidas e consumidas materialmente expõem.

Disso sucederia a necessidade de reposicionar as classes imperiais, melhor revisitando suas respectivas instâncias de integração e interação social. Caberia também avaliar seus espaços organizativos, como as entidades mutualistas que fundaram e as sociedades políticas que compuseram. Assim a identidade racial expressaria sobremodo uma condição material que serviu de fundamento para uma coligação abolicionista socialmente larga. Parece-nos, pois, que a solidariedade do movimento não foi racial, mas antes socioeconômica e, efêmera como se mostrou, autorizada apenas pela associação popularmente ressentida entre os que possuíam escravos e os que dirigiam a economia política do Império. Nesses termos, a proposta conceitual de identidade afro-brasileira, para o Oitocentos, guarda menos relevância do que a equivalente norte-americana, mais rigorosa para uma sociedade amplamente menos miscigenada e juridicamente, naquele então, mais obstrutiva.

Se o fracasso do movimento, após o Treze de Maio, não se deveu ao suposto não-tema racial, consideramos mais oportuna a hipótese de Needell que enxerga os tolhimentos ao reformismo do pós-abolição no advento de um regime de ambição política e composição social, malgrado os ajustes, semelhantes às do derrocado. Ocorre que, e assim passamos às variáveis parlamentar e real, Needell tendeu a omitir as forças que – também abolicionistas, não obstante agendas e intensidades diferentes – remodelaram o país. Atento à atividade parlamentar e aos impactos determinantes de movimento no desfecho da abolição, traçando paulatina e seguramente as pressões abolicionistas sobre o gabinete de Paranaguá, as alianças com o de Sousa Dantas e a radicalização posterior à Lei dos Sexagenários, Needell inclinou-se a ver nos debates legislativos a vida de todo o Império. Emascaradas em fontes oficiais que não as delatam por inteiro, as movimentações dos cafeicultores paulistas, o calor da caserna e as apostas financeiras dos principais bancos do Império empalideceram frente a um decisivo movimento abolicionista. Quiçá excesso historiográfico de nosso tempo, a análise das estruturas produtivas e financeiras, assim como as alianças esporádicas e arrivistas do grande capital com a tropa, costumam cheirar a naftalina. Ganham toda a atenção em consequência os movimentos subalternos, quando em última instância não são variáveis relativamente autônomas, mas exteriorizações das contradições políticas, sociais e econômicas que os constituem.

Um pouco pelas mesmas razões, a Coroa como variável emerge com suas volições independentes na obra de Needell. Já havia sido o caso em The Party of Order, quando o autor se amparou na retórica dos conservadores, nomeadamente dos ortodoxos, para sugerir que eles teriam hostilizado o Ventre Livre devido a sua suposta inconstitucionalidade. Seria a lei, nessa leitura, obra da ingerência imperial. Needell estendeu a proposta de um poder pessoal do Imperador à década de 1880, matizando-o com as agitações abolicionistas, porém ao fim sem tirar-lhe o brilho. Na raiz da fórmula estão talvez as principais inspirações do autor: em linhas superpostas de influência, Roderick J. Barman (1999), Sérgio Buarque de Holanda (1972)Heitor Lyra (1938) e Joaquim Nabuco (1897), cuja história do pai, não à toa uma biografia, se presta em boa medida à ideia da força pessoal do monarca. Teria tido tanta influência emancipacionista o Imperador, sem as contradições que caracterizam o mundo escravista posterior à Guerra de Secessão (1861-1865) ou, ainda, sem àquelas que remodelaram os eixos econômicos nacionais, produtivo e financeiro, subsequentes à Guerra do Paraguai (1864-1870)? Quais os termos do poder imperial, se Needell viu o monarca avançar e recuar, tanto em função do movimento abolicionista quanto em razão, num exame provavelmente mais próximo de Ilmar Rohloff de Mattos (1987), da constante representação latifundiária na Assembleia Geral do Império?

Seja como for, o caso é que certamente, para o endosso ou a crítica, será custoso de agora em diante produzir relato qualquer sobre a abolição sem recorrer ao último livro de Jeffrey D. Needell – e a todos os outros que lhe serviram de fundamento ou ponto de partida. É uma obra de méritos, que, também voltada para o público norte-americano ou simplesmente estrangeiro, deverá encontrar no Brasil boa tradução.

Referências

ALONSO, Angela. Flores, votos, balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). Sao Paulo: Companhia das Letras, 2015.

BARMAN, Roderick J. Imperador cidadao. Sao Paulo: Editora UNESP, 2012.

CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2016.

CONRAD, Robert. The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1972.

COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala a colonia. Sao Paulo: Editora UNESP, 2012.

GOYENA SOARES, Rodrigo. “Estratificacao profissional, desigualdade economica e classes sociais na crise do Imperio. Notas preliminares sobre as classes imperiais”. Topoi, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 41, pp. 446-489, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2237-101×02004108

GOYENA SOARES, Rodrigo. Racionalidade economica, transicao para o trabalho livre e economia politica da abolicao. A estrategia campineira (1870-1889). Historia (Sao Paulo), Sao Paulo, vol. 39, 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1980-4369e2020032

HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). Historia Geral da Civilizacao Brasileira. Tomo II: O Brasil monarquico. Vol. 5: Do Imperio a Republica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

LYRA, Heitor. Dom Pedro II. Belo Horizonte: Editora Garnier – Itatiaia, 2020.

MARQUESE, Rafael e SALLES, Ricardo(orgs.). Escravidao e capitalismo historico no seculo XIX. Cuba, Brasil, Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2016.

NABUCO, Joaquim. Um estadista do Imperio. Nabuco de Araujo: sua vida, suas opinioes, sua epoca. Paris, Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1898.

TOPLIN, Robert. The Abolition of Slavery in Brazil. New York: Atheneum, 1972.

YOUSSEF, Alain El. O Imperio do Brasil na segunda era da abolicao, 1861-1880. Tese (Doutorado em Historia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas, Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 2019

Rodrigo Goyena Soares – Universidade de São Paulo (USP). São Paulo – São Paulo – Brasil. Professor colaborador no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), onde também realiza estágio pós-doutoral com apoio da FAPESP (processo n. 2017/12748-0), instituição à qual o autor agradece. Doutor e mestre em História pela UNIRIO, formou-se em Ciências Políticas na Sciences Po Paris, onde igualmente obteve mestrado em Relações Internacionais. Pesquisa atualmente a Proclamação da República no âmbito do pós-doutorado na USP.


NEEDELL, Jeffrey D. The Sacred Cause: The Abolitionist Movement, Afro-Brazilian Mobilization, and Imperial Politics in Rio de Janeiro. Stanford: Stanford University Press, 2020. Resenha de: SOARES, Rodrigo Goyena. Um solidário treze de maio os afro-brasileiros e o término da escravidão. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil | Cristiane A. C. dos Santos

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Cristiane Alves Camacho dos Santos | Foto: LabMundi-USP |

O livro de Cristiane Camacho dos Santos, adaptação de sua dissertação de mestrado (SANTOS, 2010), se propõe a identificar e analisar a utilização política de leituras sobre o passado da colonização portuguesa da América mobilizadas nos debates travados na imprensa luso-americana, entre 1821 e 1822. A autora argumenta que dentre os diversos sentidos atribuídos à colonização portuguesa da América, seu entendimento como empresa “exploradora” e “opressiva” balizou algumas das alternativas disponíveis aos agentes políticos durante o esfacelamento da unidade da monarquia portuguesa. E, em sendo assim, delineou os limites daquilo que era percebido como possível para alguns dos projetos políticos voltados ao futuro da América portuguesa, dentre os quais a ruptura política com Portugal e a independência do Brasil. Essa experiência do tempo, prossegue a autora, ocorreu concomitantemente à politização da identidade coletiva daqueles entendidos, gradualmente, como “brasileiros”. Em suma, trata-se da conversão do passado da colonização portuguesa da América em instrumento político de sustentação de projetos que inseriram a independência do Brasil no horizonte do possível, dando os contornos para a politização de uma nova identidade coletiva.

O livro é estruturado em três capítulos balizados por uma introdução e um epílogo. O primeiro capítulo versa sobre a experiência do tempo durante a crise do Antigo Regime em Portugal vivenciada por diferentes identidades políticas da América portuguesa. Nesse capítulo, ressalta a constituição da história luso-americana como uma parte específica e complementar da monarquia lusa, entre os séculos XVI e XVIII, a nova dignidade adquirida pelo território português da América com a transferência da Coroa em 1808 e sua correspondente inauguração de novas expectativas. No bojo dos acontecimentos ensejados pelo início da dissolução dos impérios ibéricos, constitui-se uma oposição semântica entre “colônia” e “nação” que encontrava respaldo concreto nas experiências engendradas a partir de 1808 e que delineavam a percepção de um “novo tempo” (SANTOS, 2017, 151-152). O capítulo dois debruça-se sobre as disputas semânticas acerca da presença portuguesa na América, cuja lógica de complementariedade, vigente no reformismo ilustrado, perde sua estabilidade na percepção contemporânea da valorização dos territórios americanos no início do século XIX. Neste capítulo analisa, a partir de cotejamento historiográfico, a importância da imprensa periódica na delimitação dos espaços públicos em 1821, seu potencial para investigações sobre identidades políticas em período de profunda transformação e, por fim, como a colonização portuguesa da América subsidiou a representação de certa unidade desses territórios, embora fosse cenário para disputas semânticas ambíguas. O terceiro e último capítulo, baseado em sólida análise documental, fornece respaldo à hipótese do uso político do passado durante o esfacelamento das condições de reciprocidade e compatibilidade entre Portugal e a América portuguesa, sobretudo a partir da conjuntura ensejada pelos decretos das Cortes de Lisboa de setembro de 1821. Aponta que o mês de dezembro daquele ano demarcou, nos periódicos analisados, a conversão do topos dos “trezentos anos de opressão” em leitura difundida do passado da colonização portuguesa da América como denúncia das arbitrariedades associadas à condição colonial (SANTOS, 2017, 199). Essa significação da experiência, exprimida nos jornais, tensionava identidades coletivas divididas entre “metropolitanos” e “colonos”, desdobradas, posteriormente, na oposição entre “portugueses” e “brasileiros”. Essa forma discursiva, portanto, sintetizava trezentos anos de história – sinal de encurtamento da experiência – sobre o denominador comum da “opressão” vinculada à condição colonial, cuja manutenção era, paulatinamente, associada aos interesses de portugueses peninsulares.

Em termos de método, Santos procede a uma análise de evocações do passado mobilizadas por diferentes impressos das províncias do Rio de Janeiro, Pará, Bahia e Pernambuco – com ênfase na primeira – que deram os contornos a diferentes características e aspectos dos usos políticos do passado pelos periodistas. A intenção da autora é inferir uma experiência do tempo a partir de elaborações e interpretações do passado que, exprimidas em jornais, integraram o debate político de múltiplos grupos e indivíduos da América portuguesa. Do ponto de vista teórico, Santos qualifica essas formulações sobre o passado como fontes capazes de indicar a tensão entre a experiência e a expectativa dos atores políticos, ou seja, permitem diagnosticar um certo passado e futuro presentes que desempenharam a função de guias parciais das atuações políticas. Além disso, concebe que a organização da tensão entre um conjunto de sentidos atribuídos a um passado e às perspectivas abertas de um futuro parcialmente novo contribuíram para a definição e politização de uma nova identidade coletiva, a “brasileira”, e a recomposição de outras preexistentes.

Por essas razões, Santos articula-se a diferentes campos historiográficos reunidos, principalmente, sob o escopo de uma teoria do tempo histórico e das identidades políticas coletivas. A principal teoria a subsidiar atualmente pesquisas sobre a experiência do tempo histórico é, direta ou indiretamente, tributária dos escritos do historiador alemão Reinhart Koselleck. De acordo com Koselleck, o tempo histórico é o produto da tensão, estabelecida na modernidade, entre experiência e expectativa, tensão que permite interpretar o entrelaçamento interno entre o passado e o futuro cuja dinâmica baliza as histórias vislumbradas pelos agentes sociais como sendo possíveis (KOSELLECK, 2006, 305-327). Em segundo lugar, outra tradição historiográfica à qual a autora se vincula refere-se à consolidada utilização de periódicos, ou jornais, como fontes históricas capazes de traduzir e produzir fenômenos políticos no passado (MOREL; BARROS, 2003, 11-50). Em terceiro lugar, Santos parte de premissas acerca da criação e transformação de diferentes identidades políticas elaboradas por autores como Tulio Halperín Donghi (DONGHI, 2015), José Carlos Chiaramonte (CHIARAMONTE, 1997), István Jancsó (JANCSÓ; PIMENTA, 2000) e João Paulo G. Pimenta (PIMENTA, 2015). Por fim, no relativo ao debate sobre as diferenças entre o Estado e a nação, adere às perspectivas adotadas por Anthony Smith (SMITH, 1997), em oposição à Eric J. Hobsbawm (HOBSBAWM, 1990), ao definir que o Estado não teria sido um demiurgo da nação, esta última seria o resultado da recombinação de elementos preexistentes – recordações históricas partilhadas, mitos de origem comuns, elementos culturais diversos, associação a um determinado território e etc. – que, em determinado momento histórico, teriam sido “outorgados” como sinais diferenciadores de uma nacionalidade (SANTOS, 2017, 210-213).

Essa arquitetura teórica e metodológica, informada por ampla historiografia, permitiu que os periódicos fossem considerados como vetores simbólicos das disputas políticas, portadores de discursos sobre o passado que, ao organizar seus significados, delimitaram o futuro possível da ação política, então conduzida por agentes cuja identidade coletiva era simultaneamente reposicionada mediante a sua experiência temporal. Esse complexo processo correspondia às dialéticas conflituosas da formação do Estado e da nação concomitantes à modificação do estatuto e da qualidade da História, doravante entendida como capaz de legitimar projetos políticos. Observando-se a sua trajetória de pesquisa, Santos associa-se diretamente ao ambiente intelectual ensejado pelo projeto coletivo denominado Formação do Estado e da nação, organizado no início dos anos 2000 e coordenado pelo Prof. Dr. István Jancsó, no Departamento de História da Universidade de São Paulo.

Embora o resultado atingido pela autora seja louvável, sobretudo em função de seu rigor teórico e analítico, algumas questões permaneceram irresolutas. A primeira delas refere-se a um aspecto cronológico relativo à dialética entre Estado e nação. De acordo com Santos, a independência do Brasil inaugurou o período de construção do Estado nacional, o qual, segundo afirma, prolongou-se de modo conflituoso até a década de 1850 (SANTOS, 2017, 208). Qual teria sido, então, o marco histórico a delimitar o fim do caráter “conflituoso” da relação entre o Estado e a nação? A importante demonstração de que a história colonial não foi o desenvolvimento natural da nação – ou de que a independência não foi seu resultado obrigatório -, mas sim parcialmente produto do manejo político do tempo, uma construção simbólica durante o acirramento das incompatibilidades de grupos da monarquia portuguesa, deixa em aberto a questão do corpo social. Noutros termos, os contornos iniciais da identidade política coletiva nacional “brasileira”, delineada nas trepidações políticas dos anos de 1821 e 1822, não buscou integrar a totalidade da população e, desse modo, aponta para uma das condições de compatibilidade entre a formação dos “brasileiros” e a manutenção reinventada da escravidão após a independência. Seria pertinente especificar os conjuntos sociais abarcados por esse uso político do tempo para, assim, diagnosticar os excluídos de uma identidade seletiva emergente que provavelmente condicionaria diversos conflitos entre o Estado e a nação. Por fim, observo que a ausência da incorporação da dissertação de mestrado de Rafael Fanni (FANNI, 2015), elaborada após a dissertação de Santos e antes de sua readaptação em livro – e que é abertamente tributária da interpretação de Cristiane Camacho dos Santos -, prejudicou a possibilidade de aprofundar o rigor e expandir a envergadura das constatações da autora.

Teórica e metodologicamente bem estruturado, o livro de Cristiane Camacho dos Santos representa uma contribuição historiográfica importante aos estudiosos da história social do tempo e da formação do Estado e da nação do Brasil. Um estudo acadêmico que, embora concentrado em cronologia curta, é capaz de demonstrar a espessura temporal subjacente aos discursos políticos veiculados em jornais durante o processo de independência do Brasil. Em suma, e utilizando o vocabulário de Koselleck, trata-se de uma boa demonstração acadêmica da interrelação entre a temporalização da política e politização do tempo devidamente mediadas por identidades políticas coletivas, cuja investigação é plenamente realizável através de periódicos contemporâneos.[1]

Nota

1. Esta resenha foi concebida durante os debates do núcleo de pesquisa “História do Tempo: teoria e metodologia”. <http://labmundi.fflch.usp.br/historia-do-tempo> Agradeço a Edú T. Levati pela correspondência das citações.

Referências

CHIARAMONTE, Jose Carlos. “La formacion de los Estados nacionales en Iberoamerica”. InBoletin del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani, 3ª serie, 1º semestre de 1997.

DONGHI, Tulio Halperin. Revolucao e guerra: formacao de uma elite dirigente na Argentina criolla. Sao Paulo: Hucitec, 2015.

FANNI, Rafael. Temporalizacao dos discursos politicos no processo de Independencia do Brasil (1820-1822). 164 p. 2015. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.

HOBSBAWM, Eric J. Nacoes e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1990.

JANCSO, Istvan; PIMENTA, Joao Paulo G. “Pecas de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da emergencia da identidade nacional brasileira”. InRevista de Historia da Ideias. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, v. 21, 2000, p.389-440.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuicao a semântica dos tempos historicos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Contraponto, 2006.

MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. “O raiar da imprensa no horizonte do Brasil”. InPalavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do seculo XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.11-50.

PIMENTA, Joao Paulo G. A independencia do Brasil e a experiencia hispano-americana (1808-1822). Sao Paulo: Hucitec , 2015.

SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. Sao Paulo: Alameda, 2017.

SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. 186 p. 2010. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.

SMITH, Anthony. A identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997.

Thomáz Fortunato – Departamento de História da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil. Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial e do grupo Temporalidad (Iberconceptos). Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: thomaz.fortunato@usp.br


SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil. São Paulo: Alameda, 2017. Resenha de: FORTUNATO, Thomáz. A politização do tempo histórico na Independência do Brasil1. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

 

Becoming Free – Becoming Black: Race Freedom and Law in Cuba – Virginia and Louisiana | Alejandro de la Fuente e Ariela J. Gross

GROSS e LA FUENTE1
Ariela J. Gross e Alejandro de la Fuente | Foto: Medium |

LA FUENTE e GROSS Beconing free1Em tempos que reascendem os debates sobre o racismo institucional nas Américas, a publicação de Becoming Free, Becoming Black responde tanto às demandas do presente quanto aos dilemas que moveram as ciências humanas ao longo do século XX. Após décadas de pesquisas que revelaram as desventuras de sujeitos escravizados, pelo cotidiano do cativeiro e pelos labirintos jurídicos, Ariela Gross e Alejandro de la Fuente dão um passo à frente, assim como uma mirada atrás. Reivindicando teórica e metodologicamente uma história “de baixo para cima”, os autores revisitam os debates clássicos sobre a relação entre a escravidão, o direito e a constituição de diferentes regimes raciais no continente, ao empreender um ambicioso estudo comparativo sobre Cuba, Virgínia e Louisiana entre os séculos XVI e XIX. [3]

De partida, Gross e de la Fuente fazem de Frank Tannenbaum seu antagonista e, também, em menor grau, uma inspiração. Assim como em artigos publicados anteriormente, eles reforçam as críticas a Slave and Citizen, em especial às premissas teóricas, que atribuíram às normas escritas nas metrópoles um papel determinante dos rumos das sociedades coloniais. Igualmente contestada foi a projeção das diferenças raciais entre os Estados Unidos e a América Latina ao passado, como se decorressem de um devir inevitável, fundado pelos regimes jurídicos anglo-saxão e ibéricos. Por outro lado, tanto a historiografia revisionista (que preteriu o direito e a religião pela economia e a demografia) quanto os estudos recentes no campo da cultura legal, se limitaram a demolir o modelo de Tannenbaum, sem oferecer uma interpretação definitiva sobre as origens das diferenças raciais nas Américas. Assumindo o desafio, Gross e de la Fuente resumiram ainda na introdução seu postulado: não foi o direito da escravidão, mas o direito da liberdade o elemento crucial para a constituição dos regimes raciais no continente.[4]

Embora a maioria dos homens e mulheres escravizados jamais tenha rompido as correntes do cativeiro, a minoria que conquistou a alforria, constituindo comunidades negras livres, teria sido a chave para a construção da raça nas Américas. Gross e de la Fuente convidam o leitor a embarcar em uma longa jornada, que se inicia na travessia atlântica e na colonização de Cuba, Louisiana e Virgínia, perpassa as águas turbulentas da Era das revoluções, para enfim desembarcar nos regimes raciais do século XIX, cujos legados se estendem até hoje. Antecipando suas conclusões, os autores sustentam que as diferenças entre as três regiões não decorreram do reconhecimento da humanidade dos escravizados e tampouco da fluidez racial. O fator determinante teria sido o grau de sucesso das elites escravistas na imposição da relação entre branquitude e liberdade, e entre negritude e escravidão. O enunciado contém um dos principais manifestos políticos do livro, mas deixa uma questão em aberto-que será retomada adiante.

Os dois capítulos iniciais transitam pelas sociedades coloniais de Cuba, Virgínia e Louisiana, partindo do regime jurídico e da experiência espanhola das Américas. Embora as Siete Partidas reconhecessem a humanidade das pessoas escravizadas, o efeito prático do precedente social e legal dos ibéricos foi a definição prévia das distinções raciais por lei. A inversão do pressuposto de Tannenbaum é radical. A escravidão em Portugal e o princípio da limpeza de sangre na Espanha ofereceram aos ibéricos as pré-condições para o pioneirismo na criação de regimes legais racializados na América. Nesse ponto, os autores cederam em parte a Tannenbaum, identificando, na raiz romanista do direito ibérico, a alforria como instituição sólida. Mas incorporando as contribuições da historiografia recente, eles avançaram ao demonstrar como, em solo americano, foram os escravizados-no caso, os da ilha de Cuba-que fizeram da norma uma tradição e, por conseguinte, um direito.

Em paralelo, o colonialismo francês constituiu seu próprio regime no Caribe por meio das diferentes versões do Code Noir, que progressivamente restringiram tanto a alforria e os direitos das comunidades negras livres. À época da ocupação da Louisiana, a experiência e os precedentes normativos serviram à constituição do regime mais excludente do Império francês, mas que ainda assim não cerceou em absoluto a liberdade e o direito de negros livres, especialmente em Nova Orleans. A Virgínia, por sua vez não contou com precedentes legais ou experiências coloniais prévias. Sem incorporar os precedentes de Barbados e da Carolina do Sul, a colônia inglesa se converteu em uma espécie de laboratório, onde as diferenças raciais não estavam pré-determinadas jurídica ou socialmente. Invertendo mais uma vez as premissas de Tannenbaum, Gross e de la Fuente desvelam uma Virgínia relativamente aberta à prática da alforria e à formação de comunidades de negros livres no início do século XVII.

Privilegiando as fontes jurídicas, com destaque para as ações de liberdade, os autores esbanjam rigor metodológico sem comprometer a fluidez da narrativa de pessoas escravizadas que recorriam à justiça. Embora esse procedimento fosse comum nas três regiões no século XVII, ela se manteve constante em Cuba, enquanto rareou na Virgínia e na Louisiana no século XVIII, onde também aumentaram as restrições aos casamentos inter-raciais. De acordo com Gross e de la Fuente, essa progressiva distinção na trajetória das sociedades escravistas em questão não foi o resultado da pretensa benevolência ibérica, mas de razões econômicas, demográficas e de gênero. Eram principalmente as mulheres que conquistavam a alforria, predominantemente de forma onerosa, e consequentemente serviam à reprodução das comunidades negras livres. Os franceses precocemente haviam fechado o cerco às manumissões, embora incapazes de pôr fim à presença de negros livres em Nova Orleans. Enquanto isso, a Virgínia transitou gradualmente de uma sociedade desregulada para a mais restritiva das três, especialmente após a Rebelião de Bacon, em 1676.

Recuperando a interpretação de Edmund Morgan, segundo o qual as restrições visavam à solidariedade branca contra a aliança entre servos brancos, indígenas e negros, os autores acrescentam argumentos econômicos e políticos. A conversão da Virgínia em uma sociedade escravista começara antes mesmo da revolta, por conta do barateamento do preço de africanos em relação ao custo da servidão. Fortalecida, a elite virginiana conseguiu a um só tempo restringir as alforrias e solidificar a solidariedade branca na colônia, diferentemente de seus pares de Louisiana e de Cuba, que foram incapazes de abolir um precedente jurídico estabelecido. A consequência foi a formação de comunidades negras livres e miscigenadas de diferentes tamanhos nas três regiões, e não favorecidas pelas elites, mas maiores ou menores de acordo com sua capacidade de resistir aos esforços para evitá-las. No final do segundo capítulo, Gross e de la Fuente retomam sua hipótese, insistindo que as elites de Cuba, Virgínia e Louisiana tentaram igualar a raça negra à escravidão, pois enxergavam nos negros livres uma ameaça à ordem. As diferenças, contudo, não decorreram do precedente legal, mas das diferentes realidades sociais e demográficas que permitiram o maior sucesso na Virgínia e na Louisiana, e o menor em Cuba.[5]

Tema do terceiro capítulo, a Era das Revoluções consistiu no período de maior aproximação entre as três regiões, onde tanto as alforrias quanto as comunidades negras livres cresceram. Ao mesmo tempo, a escravidão avançou nos territórios, respondendo aos estímulos do mercado mundial. Em Cuba e na Louisiana, o paradoxo era apenas aparente, pois a alforria era uma tradição jurídica e socialmente vinculada ao cativeiro. Já na Virgínia a libertação de escravizados se associou ao ideário da independência. Enquanto as comunidades negras livres de Havana e de Nova Orleans eram fruto do Antigo Regime, a de Richmond respirava os ares da revolução. Consequentemente, as elites virginianas reagiram ao horizonte que se abria, seguidos por seus pares do Vale do Mississippi, recentemente integrados aos Estados Unidos e movidos pelos interesses açucareiros e algodoeiros. Entre 1806 e 1807, a promulgação do Black Code da Louisiana e de uma série de leis na Virgínia restringiram a alforria e os direitos dos negros livres, dando o tom de um regime racial que chegaria à maturidade em meados do século XIX, apartando em definitivo o modelo estadunidense do cubano.

O movimento esboçado nos Estados Unidos se agravou entre as décadas de 1830 e de 1860, das quais tratam os capítulos finais do livro. Neles, Gross e de la Fuente esboçam uma guinada metodológica, organizando-os a partir de eixos temáticos, em vez de compararem pormenorizadamente as ações de liberdade em cada um dos espaços. Nas páginas que seguem, os autores descrevem o recrudescimento das forças e discursos escravistas nos Estados Unidos, como reação ao avanço do abolicionismo e de revoltas como a de Nat Turner. A elite cubana enfrentou seus próprios inimigos, pressionada pela campanha da Inglaterra contra o tráfico de africanos e ameaçada frontalmente por um ciclo de resistência dos escravizados, que se estendeu da revolta de Aponte, em 1812, à de la Escalera, em 1844. As três elites compartilharam do temor de que se formassem alianças entre negros livres e escravizados, como ensaiado mais propriamente em Cuba. Por meio de leis restritivas à alforria, além de políticas de remoção das populações negras livres, para fora dos estados ou do país, as elites da Virgínia e da Louisiana deram passos largos no sentido da construção de um regime racial pleno, em que a negritude fosse sinônimo não apenas de degradação, mas do cativeiro. De acordo com os autores, houve esforços similares em Cuba, assim como ataques às comunidades negras livres, mas estes não foram sistêmicos ou capazes de cindir as mesmas linhas raciais dos Estados Unidos.

Na década de 1850, Cuba, Virgínia e Louisiana eram sociedades escravistas maduras, nas quais os negros eram tidos como social e legalmente inferiores. No entanto, o processo de destituição de direitos foi muito além nos Estados Unidos, dando forma a um regime racial particular, que destoava daqueles desenvolvidos na América Latina. Retomando o debate com Tannenbaum na conclusão do livro, Gross e de la Fuente, arrolaram as variáveis que incidiram sobre a diferenciação dos regimes nos três territórios. As tradições legais teriam tido o seu peso, embora não nos termos propostos em Slave and Citizen. Os ibéricos teriam sido pioneiros na criação de legislações raciais, mas o reconhecimento jurídico da alforria cindiu a brecha por onde mulheres e homens escravizados encontraram seus tortuosos caminhos para a liberdade. A agência dessas pessoas e a mobilização do direito “de baixo para cima”, portanto, teria cumprido um papel central, tão ou mais importante que o precedente normativo. Consequentemente, os negros livres de Cuba fizeram da tradição um direito e de suas comunidades uma realidade incontornável para a elite da ilha.

Nesse sentido, o fator determinante na formação dos diferentes regimes raciais, segundo os autores, foi o tamanho das comunidades negras livres, que pressionavam pelo reconhecimento de direitos e dificultavam o cerceamento das alforrias. Um segundo ponto levantado pelos autores foram os diferentes regimes políticos. A constituição de uma democracia liberal nos Estados Unidos entrelaçou os princípios da liberdade, da igualdade e da cidadania, tendo por contrapartida os esforços reacionários que negaram seu acesso à população negra. Enquanto a democracia branca se consolidava ao Norte, Cuba preservou sua condição colonial, assim como as hierarquias políticas locais. A liberdade de uma parcela minoritária de negros respondia antes a uma tradição do Antigo Regime do que à extensão da cidadania. Não havia necessidade de uma ideologia supremacista racial onde sequer vigia o pressuposto da igualdade.

Na conclusão, Gross e de la Fuente reforçam o postulado de abertura, segundo o qual as elites de Cuba, da Virgínia, da Louisiana buscaram constituir a dicotomia perfeita entre raça e escravidão. Frente à resistência das comunidades negras livres, nenhuma delas obteve o êxito pleno, mas as estadunidenses foram mais bem sucedidas. Não há dúvidas de que na Virgínia, na Louisiana e em grande parte do sul dos Estados Unidos, prevaleceram esforços nesse sentido. Mas a despeito de discursos e medidas legais apresentados pelos autores, não se depreende da narrativa e das fontes que a elite cubana tenha se dedicado à questão com o mesmo afinco. Em mais de uma passagem, Gross de la Fuente relativizam seu próprio enunciado, reconhecendo que as autoridades de Cuba preferiram não se contrapor à tradição legal e aos direitos de comunidades estabelecidas. Seguindo os passos dos próprios autores, é possível levar a questão além.

Se como dizem Gross e de la Fuente, os ibéricos foram pioneiros da constituição de regimes raciais legalizados, eles também foram os primeiros a conhecer os efeitos da alforria na escravidão negra nas Américas. A formação de comunidades negras livres não foi resultado de um projeto, mas das condições demográficas e da ação dos próprios escravizados. Por conseguinte, os ibéricos foram também os primeiros a usufruir desse arranjo social e racial que, na maior parte do tempo, contribuiu para a preservação do cativeiro. A proximidade entre negros livres e escravizados era um risco real, mas a experiência histórica revela que na maior parte das vezes, a aliança entre os livres de diferentes cores prevaleceu sobre a solidariedade racial, ainda mais em sociedades marcadas por um alto grau de miscigenação. O sucesso das elites estadunidenses em cindir as raças também conteve em si a chave de seu fracasso, reforçando a identidade e a solidariedade negra, que se voltaram contra a supremacia branca durante a Guerra Civil e tantas vezes após a abolição. Em contrapartida, o suposto fracasso da elite cubana, nos termos dos autores, conteve o segredo de seu sucesso. Afinal, o escravismo experimentado pelos ibéricos não foi apenas pioneiro nas Américas, mas o mais longevo, tendo perdurado em Cuba e no Brasil até o último quartel do século XIX. Não à toa, as elites desses países tantas vezes se valeram dos Estados Unidos como contraponto, para preservar suas próprias hierarquias sob o mito das “democracias raciais”.[6]

São os próprios autores que fornecem os dados e argumentos para esse breve contraponto. Em mais de uma passagem, eles descrevem a alforria como instituição escravista em Cuba, assim como reconhecem a hesitação das elites em cerceá-la. Ao enunciarem na introdução e na conclusão que as três elites escravistas compartilharam de um mesmo horizonte racial, Gross e de la Fuente miraram dois alvos. A crítica se voltou tanto às elites do passado, quanto aos discursos mais recentes que, na política e na historiografia, ainda se valem da escravidão e do racismo explícito nos Estados Unidos como um contraexemplo, a fim de sustentar a suposta benevolência do cativeiro e a pretensa harmonia das relações raciais na América Latina. A posição dos autores no debate público é mais do que bem-vinda, e contribui para a desmistificação do tema. De todo modo, o próprio livro revela como Cuba antecedeu e sucedeu o cativeiro na América do Norte, e como sua elite constituiu o seu próprio regime racial. Sem cindir a ilha entre o branco e o negro, ela preservou por mais tempo a escravidão valendo-se de um racismo velado, tão eficaz e talvez mais perverso que o estadunidense.

Nas derradeiras páginas do livro, Gross e de la Fuente alçam voo sobre os anos que se seguiram à abolição, contrastando os Black Codes e as Leis Jim Crow no Sul dos Estados Unidos com o relativo reconhecimento dos direitos dos negros em Cuba. Em seus termos, a transição da escravidão à cidadania resultou das lutas políticas dos negros de cada região. Nas entrelinhas, os historiadores convidam seus pares a desbravar o campo das relações raciais nas sociedades do pós-abolição, à luz de suas importantes contribuições. Trazendo mais uma vez Tannenbaum ao debate, Gross e de la Fuente concluem que o tecido de conexão entre o negro escravizado e o cidadão negro, no pós-abolição, não decorreu da relação entre “slave and citizen” mas de “black to black”. Como enunciado no título e na introdução, não teria sido o direito da escravidão, mas a mobilização do direito à liberdade pelos próprios sujeitos escravizados que selou o caminho para a construção, não só dos regimes, mas das identidades raciais. É possível questionar se o direito à liberdade existiria senão como contradição interna do direito da escravidão, em uma relação dialética. No entanto, foi por meio dessa inversão do prisma que Gross e de la Fuente miraram um velho debate sob um ângulo novo, trazendo à luz outros sujeitos e respostas.

Becoming Free, Becoming Black coroa os resultados de uma tradição historiográfica que trouxe à luz a complexidade da escravidão e das disputas sobre os sentidos da liberdade e da justiça nas Américas. Reivindicando os ganhos metodológicos e políticos da história “de baixo para cima”, e preservando no centro da narrativa os sujeitos escravizados e sua agência, Gross e de la Fuente deram um passo além. Instigados pelos debates postos no presente, ousaram revisitar os clássicos para oferecer respostas e questionamentos originais. Em tempos de crise das representações e de revisionismos históricos, Becoming Free, Becoming Black nos reabre uma janela ao passado, exibindo as raízes pérfidas de mazelas que ainda nos assolam. No entrepasso do caminhar de tantos homens e mulheres, os autores nos lembram das lutas pretéritas, e quiçá nos apontam possíveis caminhos para os embates que se anunciam no horizonte.

Notas

1. Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.

2. Marcelo Ferraro é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e estuda a relação entre direito, violência e escravidão no Vale do Paraíba e no Vale do Mississippi no longo século XIX.

3. Apenas para citar a principal referência dos autores, ver Rebecca J. Scott, Degrees of Freedom: Louisiana and Cuba After Slavery. Cambridge, MA, 2005; e mais recentemente Scott, R., & Hébrard, J. Freedom Papers: An Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012.

4. Frank Tannenbaum, Slave and Citizen. Boston, 1992). Sobre as publicações anteriores de Gross e de la Fuente, ver De la Fuente, Alejandro, & Gross, Ariela. (2010). Comparative Studies of Law, Slavery, and Race in the Americas. Annual Review of Law and Social Science, 6(1), 469-485. Gross, Ariela, & De la Fuente, Alejandro. (2013). Slaves, free blacks, and race in the legal regimes of Cuba, Louisiana, and Virginia: A comparison. North Carolina Law Review, 91(5), 1699. De la Fuente, A. (2010). From Slaves to Citizens? Tannenbaum and the Debates on Slavery, Emancipation, and Race Relations in Latin America. International Labor and Working Class History, 77(1), 154-173. De la Fuente, A. (2004). Slave Law and Claims-Making in Cuba: The Tannenbaum Debate Revisited. Law and History Review, 22(2), 339-369.

5. Morgan, Edmund. American slavery, American freedom: The ordeal of colonial Virginia. New York: W.W. Norton &, 2003.

6. A título de exemplo, ver os discursos de representantes de Cuba e do Brasil sobre a questão dos negros livres, assim como suas divergências, em Berbel, Marcia., Marquese, Rafael, & Parron, Tamis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Editora Hucitec: FAPESP, 2010. Sobre o racismo em Cuba no século XX, é o próprio Alejandro de la Fuente que sustenta a interpretação aqui esboçada. Ver Fuente, Alejandro de la. A Nation for All: Envisioning Cuba. The University of North Carolina Press, 2011.

Referências

DE LA FUENTE, A. (2010). From Slaves to Citizens? Tannenbaum and the Debates on Slavery, Emancipation, and Race Relations in Latin America. International Labor and Working Class History, 77(1), 154-173.

DE LA FUENTE, A. (2004). Slave Law and Claims-Making in Cuba: The Tannenbaum Debate Revisited. Law and History Review, 22(2), 339-369

DE LA FUENTE, Alejandro, & GROSS, Ariela. (2010). Comparative Studies of Law, Slavery, and Race in the Americas. Annual Review of Law and Social Science, 6(1), 469-485.

GROSS, Ariela, & DE LA FUENTE, Alejandro. (2013). Slaves, free blacks, and race in the legal regimes of Cuba, Louisiana, and Virginia: A comparison. North Carolina Law Review, 91(5), 1699.

SCOTT, Rebecca. Degrees of Freedom: Louisiana and Cuba After Slavery. Cambridge, MA, 2005;

SCOTT, R., & HÉBRARD, J. Freedom Papers: An Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012.

TANNENBAUM, Frank. Slave and Citizen. Boston, 1992).

Marcelo Rosanova Ferraro – Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil. Marcelo Ferraro é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e estuda a relação entre direito, violência e escravidão no Vale do Paraíba e no Vale do Mississippi no longo século XIX.


DE LA FUENTE, Alejandro; GROSS, Ariela J. Becoming Free, Becoming Black: Race, Freedom, and Law in Cuba, Virginia and Louisiana. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. Resenha de: FERRARO, Marcelo Rosanova. O direito à liberdade e a dialética das raças nas Américas. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

Migrações: identidades, culturas e trajetórias / Aedos / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 26
Migrações | Imagem: Fundação FHC |

Há pouco mais de um ano, nossos editores finalizavam o volume onze, número vinte e cinco, da Revista Aedos, já sob as recomendações sanitárias de isolamento social, fundamentais para o enfrentamento da pandemia de Covid-19. Este é o volume doze, vigésimo sétimo número desse periódico, e a terceira publicação finalizada, integralmente, sob tais circunstâncias. A crise sanitária persiste, acompanhada por uma dolorosa paisagem de mortes e destruição econômica e social. No Brasil, passado um ano dos primeiros alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a disseminação em massa do novo coronavírus, ainda há uma assombrosa carência de políticas efetivas e coordenadas pelo governo federal para mitigar esses efeitos – o que nos lançou tragicamente ao epicentro da crise mundial nas últimas semanas. Enquanto estas palavras são escritas, o país beira as três mil mortes diárias, sem contar subnotificações, de um total de mais de trezentas mil vidas perdidas. Os profissionais da saúde encontram-se exaustos; por toda parte, faltam leitos e medicamentos essenciais para o tratamento dos pacientes.

Embora o vírus não descrimine ninguém, demonstrando como a comunidade humana é igualmente frágil, a desigualdade, segundo Judith Butler (2020, p. 60-62), que inclui “o nacionalismo, a supremacia branca, a violência contra as mulheres, as pessoas queer e trans, e a exploração capitalista”, atribui-lhe esse componente de modo cada vez mais “radical”. Ora, pois não seria ao menos emblemático que a primeira vítima notificada no Brasil tenha sido uma empregada doméstica de 63 anos? E, já que falamos disso, como não recordar, conforme Achille Mbembe (2020, p. 4), de “todas as epidemias imagináveis e inimagináveis que, durante séculos, devastaram povos sem nome em terras remotas”? Como esquecer das guerras e ocupações predatórias que mutilam e lançam milhares de pessoas a uma vida errante?1 Ou ainda, que tem a saúde e a expectativa de vida comprometidas pela “ação de empresas poluidoras e destruidoras da biodiversidade.” A propósito, na medida em que o vírus quebrava as barreiras do espaço e dos alvéolos pulmonares, as florestas brasileiras (os pulmões da Terra), juntamente com a sua fauna, arderam em chamas, tal qual qualquer imagem arquetípica do juízo final. A fumaça liberada daquele “inferno” transformou dia em noite.

Ainda que muitas vezes queiramos nos livrar do fato, é no mínimo lamentável tamanha destruição para “olharmos para a história humana como parte da história da vida nesse planeta”, como tanto insistiu Dipesh Chakrabarty (2013, p. 15). Nessa perspectiva, nos voltamos ao “corpo”, com seus medos, desejos e sensibilidades – e, agora, isolado; nos voltamos à experiência do “frágil e minúsculo corpo humano”, a que Walter Benjamin (1987, p. 114) tanto se esforçou para evidenciar no século passado. Diante de tamanha catástrofe, esperamos que os trabalhos reunidos em mais uma edição “pandêmica”, com um dossiê temático dedicado às migrações, identidades, culturas e trajetórias, possa talvez servir como um “sopro”. Não como aquele que vem da “tempestade do paraíso”, impedindo o “anjo da história” de Benjamin (1987, p. 226) de “acordar os mortos e juntar os fragmentos”; mas como o “(co)movedor”, no “jogo de palavras” de Alistair Thomson (2002, p. 359), toque da cítara dos aedos

Notas

1. Com a pandemia, segundo o último relatório de Tendências Globais (2020) do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), “o número de pedidos de asilo registrados na União Europeia em março de 2020 caiu 43% em comparação com fevereiro, à medida que os sistemas de asilo diminuíram ou pararam com países fechando fronteiras”.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1.

BUTLER, Judith. El capitalismo tiene sus limites. In: AGAMBEN, Giorgio et. al. Sopa de Wuhan. Pensamiento contemporáneo en tiempos de Pandemias. [S.l.]: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da História: quatro teses. Sopro, São Paulo, n. 91, jul. 2013.

MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. N-1 Edições, São Paulo, 2020.

THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: História Oral e estudos de migração. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 341-364, 2002.

UNCHR. Global Trends. Forced Displacement in 2019. The UN Refugee Agency, Genebra, 18 jun. 2020

Lúcio Geller Junior – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). E-mail: lucio.geller@gmail.com


GELLER JUNIOR, Lúcio. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março, 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Os arquivos na Cadeia de Produção do Conhecimento – Formação Profissional | Revista do Arquivo | 2021 (D)

Bilros 2

Como acontece a produção do conhecimento humano? Eis aí um dos enigmas que perpassa quase toda a história. A cada resposta esboçada, novos questionamentos se impõem. Afinal, a sociedade humana, sob todos os aspectos, está em permanente mutação, especialmente no cultural. Portanto, esse será sempre tema oportuno, sobre o qual haverá muito o que se refletir e se escrever.

Esperemos que esta nossa edição nº 12 se apresente como mais um grão no debate sobre os saberes humanos.

INTRODUÇÃO AO DOSSIÊ

“…se a Arquivologia é muito antiga como prática, é recente como saber”. Esta afirmação é do texto introdutório de Mariana Lousada, que nos oferece uma apresentação sumular do desenvolvimento dos conceitos e conhecimentos da arquivologia. Trata-se de um bom aperitivo para esta edição que nos propõe reflexão sobre a produção do conhecimento na arquivologia.

A professora doutora Marcia Pazin Vitoriano foi a nossa entrevistada para tratar do tema do dossiê. Feliz escolha da nossa editoria, Pazin tem o perfil perfeito como atuante docente do curso de arquivologia, com larga experiência em organização de arquivos e produção intelectual sobre o tema do dossiê. Não bastasse tudo isso, a nossa entrevistada é colaboradora de longas datas do Arquivo Público do Estado de São Paulo e colaboradora e membro do Conselho Editorial da Revista do Arquivo. De forma objetiva e substancial, essa querida professora aborda temas candentes e polêmicos sobre o assunto.

ARTIGOS DO DOSSIÊ TEMÁTICO

Quatro são os artigos que apresentam bem distintas abordagens sobre o tema do dossiê temático, e se somam a outros dois que tratam de temas que não dialogam diretamente com o dossiê proposto, mas abrilhantam esta edição, colaborando com excelentes reflexões que expandem o nosso conhecimento sobre os arquivos e suas fontes de informação.

Atentem os leitores desta edição para a dimensão das questões levantadas pelo artigo assinado por Beatriz Carvalho Betancourt, Eliezer Pires da Silva e Priscila Ribeiro Gomes: “a formação em arquivologia contempla as atribuições profissionais? O que a regulamentação profissional e o mundo do trabalho demandam da formação? Como a análise entre currículo, legislação e concursos públicos contribui para a harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro?”. Na busca de respostas a questões desse quilate os autores do artigo intitulado Recomendações para harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro atingem o âmago do proposto pela chamada de artigos, apresentando excelente reflexão teórica fundamentada em “pesquisa documental e bibliográfica em arquivologia, educação, sociologia e história”.

A classificação é atividade essencial e central dos arquivos e, portanto, um dos conceitos articuladores da área da arquivologia, cujos “desdobramentos teóricos e metodológicos foram responsáveis por alçar a Arquivologia ao posto de disciplina científica”, conforme justificam as autoras do artigo intitulado A Função Classificação na Formação do Arquivista: Uma Análise Histórica dos Modelos de Ensino dos Cursos de Arquivologia do Sudeste do Brasil, assinado por Juliana de Mesquita Pazos e Clarissa Moreira dos Santos Schmidt. Fruto de investigação empírica, Pazos & Schimidt tecem ótima reflexão teórica sobre tema crucial da área, com a originalidade de pensá-lo sob ótica do ensino no nível superior, buscando “identificar os modelos de ensino dos conteúdos fundamentais relativos à função classificação”.

A Revista do Arquivo tem o prazer de anunciar a publicação de artigo que tem originalidade como ponto forte e oferecer ao público a primeira reflexão descritiva sobre aspectos da elaboração daquele que é o “primeiro curso técnico em arquivos do Brasil”, fruto de “uma parceria entre Arquivo Público do Estado de São Paulo e Centro Paula Souza”, conforme consta no título do artigo de autoria de Antonio Gouveia de Sousa, Fernanda Mello Demai, Noemi Andreza da Penha, Aline Santos Barbosa e Flávio Ricci Arantes. Eis aí um bom motivo para se multiplicar a reflexão sobre esse importante tema, que também aparece na citada entrevista de Márcia Pazin.

Outra abordagem inusitada é publicada por Ismaelly Batista dos Santos Silva, que nos oferece a oportunidade de reflexão sobre um assunto ausente como objeto de pesquisa, que aparece explicitado no título Consultoria arquivística: da contextualização ao planejamento do consultor. Ismaelly Silva ousa afirmar que seu objetivo é “estruturar ideias passíveis de serem convertidas em conhecimento explícito”, almejando, assim, “compor referência literária para aprendizagem de potenciais consultores na área de Arquivologia”. Confiram e avaliem os leitores.

AUTORES CONVIDADOS

Desta vez, publicamos três artigos na subseção autores convidados, com temas bem distintos, mas idênticos em qualidade e relevância.

A edição nº 12 da Revista do Arquivo tem a honra de publicar o artigo cujo título já divulga o trabalho de mais de uma década sobre O processo de atualização do Plano de Classificação e da Tabela de Temporalidade de Documentos da Universidade de São Paulo (USP): desafios e soluções heterodoxas, subscrito por Ana Silvia Pires, Johanna Wilhelmina Smit, Lílian Miranda Bezerra e Marli Marques de Souza de Vargas.

Utilizando-se de narrativa descritiva de um caso, o artigo disserta sobre um processo de trabalho específico e não expõe grandes reflexões teóricas. No entanto, trata-se de um texto original, de extrema relevância, capaz de gerar pulsantes debates no meio arquivístico e, acima de tudo, que demonstra o processo de aprendizagem, de acúmulo e de produção do conhecimento exemplares a partir do “chão” de arquivos, tendo como objeto instrumentos de gestão, que são uma das pedras de toque da arquivologia: o plano de classificação e tabela de temporalidade de documentos.

Pesquisadora do teatro brasileiro, pela segunda vez publicamos artigo de Elizabeth R. Azevedo1, agora sob o título A inserção do patrimônio artístico na estrutura universitária: o caso do centro de documentação teatral (USP). O artigo trata da criação e da trajetória do Centro de Documentação Teatral na ECA/USP, reflete sobre as escolhas teórico-metodológicas para sua constituição, sua relevância para a comunidade artística, sua importância para a preservação do patrimônio histórico e cultural, bem como sua inserção na estrutura da universidade.

Não são raros os exemplos de cooperação entre instâncias universitárias e instituições executivas do poder público com finalidade de compartilhamento de benefícios mútuos para usufruto do manancial informativo cultural dos arquivos. Mirem-se no Acordo de Cooperação firmado entre a Universidade de São Paulo, por meio da área de Filologia e Língua Portuguesa, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e a Justiça Federal de Primeiro Grau de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. O artigo sob o título Da arquivística à produção linguística: estudo interdisciplinar de um Summario de Culpa de 1892 é um exercício multidisciplinar de exploração conjunta de uma instigante peça de processo judicial do final do século XIX, assinado por Phablo Roberto M. Fachin, Vanessa M. do Monte, Sílvio de Almeida Toledo Neto, Ana Carolina E. P. do Amaral, Ana Laura M. Cinto, Carla A. di Lorenzo Midões de Mello, Heloisa Ribeiro Bastos e Luisa Biella Caetano. Mais uma boa oportunidade para rememorarmos as profícuas interfaces entre a linguística, história e arquivos, conforme já publicamos nas edições nº 1 e nº 4 deste periódico. Vale conferir.

RESENHA

A Revisa do Arquivo realizou esforço suplementar em decorrência do falecimento de Vicenta Cortés Alonso em 4 de janeiro passado e propôs a elaboração de resenha que abordasse a obra, parte da obra ou a vida intelectual dessa arquivista que nos lega produção vasta e fecunda. Tivemos a felicidade de receber a contribuição de Rafaela Basso, Diretora de Gestão e Preservação de Documentos e Informação no Arquivo Central da Unicamp, que engrandece esta edição com sua resenha intitulada Vicenta Cortés Alonso, uma vida dedicada à luta pelos arquivos. Com ela, fica aqui registrada a nossa singela homenagem.

INTÉRPRETES DE ACERVO

Essa seção traz relatos fascinantes sobre pesquisas em arquivos, com ótimos depoimentos de pesquisadoras com suas distintas experiências, apresentando objetos de estudos muito interessantes e dicas para quem se propõe a buscar informações nos labirínticos arquivos. Façam companhia às brilhantes historiadoras Marisa Midori, Marília Cánovas e Yaracê Morena.

PRATA DA CASA

Monitoria e fiscalização: funções inusitadas em instituição arquivística. É o título da matéria do Prata. O que faz um Núcleo com essas aparentes competências expressas na sua nomenclatura? Como assim, “monitoria”? Como assim “fiscalização”? Como atua esse setor? Ele pratica, de fato, o que propõe sua nomenclatura. O que se fiscaliza? Têm os arquivos públicos essa competência?

Leia a entrevista com o diretor da área, Benedito Vanelli, e tire suas dúvidas.

VITRINE

Nesta edição, um belo depoimento de uma pesquisadora que revela com paixão as suas experiências e descobertas nos arquivos sobre A indústria oleira da Vila de Piratininga. Ao final do texto de Edileine Carvalho Vieira fica aquela sensação de “quero mais”.

O segundo texto é de Isaura Bonavita que nos toca com sua refinada crônica memorialística sob o título Lembranças miúdas.

Conteúdo de qualidade.

Atentem. Comentem. Critiquem!


Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 12, abr. de 2021. Acessar publicação original [DR]

O protagonismo da Mulher Negra na Escrita da História das Áfricas e Améfricas Ladinas / Revista Transversos / 2021

“Nwanyi buaku” (a mulher é riqueza)

A mulher é riqueza, diz o provérbio Igbo. A maior riqueza, pois é a mulher que dá a vida, que planta os alimentos, que nutre a sociedade. A “unidade matricêntrica” é um traço que une todas as sociedades africanas, um legado civilizatório deste continente, concluiu Amadiume ao examinar os papéis sociais desempenhados pelas mulheres Nnobi, subgrupo Igbo. No dia-a-dia das comunidades, são as mulheres que garantem a existência da população e isso é amplamente reconhecido e venerado, como indica o ditado acima.

A grande importância que as mulheres africanas tiveram desde a Antiguidade é alvo de estudos há décadas. Desde a década de 1970, Cheikh Anta Diop apontou evidências de que as sociedades africanas pré-coloniais foram governadas por mulheres, o que ele enxergou ser o traço que unia toda a África Negra. Diop nomeou “matriarcado africano” o modelo caracterizado pela preponderância da agricultura, em que a mulher ocupa o centro enquanto detentora dos segredos da natureza e dos ritos de fertilização da terra. Mas o polímata senegalês chamou atenção que o matriarcado não pode ser entendido como o oposto do patriarcado branco Ocidental, o qual estabelece uma dicotomia entre feminino e masculino, oprimindo as mulheres e todos os valores/comportamentos relacionados ao feminino em benefício de um padrão masculinista-opressor da diversidade da existência, da vida. Não há essa matriz de poder dicotômica no matriarcado africano e sim uma complementariedade cosmogônica entre masculino e feminino, com efeitos diretos nas organizações sócio-hitóricas.

A História da África é repleta de exemplos de mulheres que assumiram a liderança política, militar, espiritual de suas sociedades. São elas as mais aptas a se comunicarem com as forças da natureza, a mandarem as chuvas descerem dos céus, a transmitirem conselhos dos antepassados. A espiritualidade africana, de forma geral, ancora-se em divindades femininas que trazem a fertilidade, a prosperidade, o equilíbrio: Auset, Mut, Maat (em Kemet, Egito Antigo), Oxum (Yorubá), Idemili (Igbo). Estas concepções cosmogônicas dão grande peso ao feminino, diferente das religiões monoteístas que exaltam UM Deus único, pai criador, associado ao masculino.

Assim, nas sociedades africanas pré-coloniais, as mulheres exerciam papéis sociais relevantes, não apenas nas altas esferas do poder político e espiritual, mas também na base, na estrutura de cada família, clã ou linhagem, eram as mulheres as responsáveis por transmitir os valores, as regras morais, princípios estéticos, técnicas de artesanatos como cerâmica, tecelagem, pinturas corporais, tranças etc.

Essa complementariedade entre masculino e feminino possibilitou diferentes atuações, organizações e expressões de poder relacionadas às mulheres. Na verdade, esse conceito de “mulher” enquanto determinismo biológico não pertence às sociedades africanas, como vem argumentando Oyèwùmí. O que quer dizer que a compreensão física do corpo pela modernidade Ocidental, seu dimorfismo sexual e seu padrão cis-heteronormativo, que formam “o que se entende por sexo biológico é socialmente construído” (LUGONES, 2008: 84). Inclusive a “ideologia de gênero” para as sociedades africanas tradicionais é bem mais fluída do que nas concepções ocidentais.

Na sociedade indígena, o princípio do sexo duplo subjacente à organização social foi arbitrado por um sistema flexível de gênero na cultura tradicional. O fato de o sexo biológico nem sempre corresponder ao gênero ideológico significava que as mulheres podiam desempenhar papéis geralmente monopolizados pelos homens ou serem classificados como homens em termos de poder e autoridade sobre os outros. Elas não eram rigidamente masculinizadas ou feminizadas, o colapso das regras de gênero não era estigmatizado. (AMADIUME: 1987, p. 8)

Contudo, séculos de escravidão, colonialismos, imperialismos transformaram os lugares sociais ocupados pelas mulheres africanas e suas descendentes em diáspora. Vamos observar na contemporaneidade: quais espaços e funções as mulheres negras ocupam nas sociedades atuais? Uma breve análise de dados sobre escolaridade, remuneração e violência doméstica, nos indica que, atualmente, as mulheres africanas e afro-diaspóricas estão nas bases das pirâmides sociais. Ou seja, com a imposição da civilização moderna-Ocidental como única possibilidade de organização social legítima, sua matriz de opressão (COLLINS, 2019) colonial, patriarcal, racista e cis-heterosexista, deixaram como legado a interseccionalidade de opressões que posicionou e continua posicionando as mulheres negras na base da subalternidade moderna-colonial.

A imagem da capa traz as mulheres Sam-sam, grupo de mulheres do vilarejo de Kabadio, Casamance, Senegal. Sam-sam reúne mulheres que já perderam pelo menos um filho – por aborto natural, no parto ou por doença- que performam ritos para garantir a fertilidade do grupo, a cura uterina e a cura de forma coletiva; configurando força, vitalidade e capacidade reprodutiva. Ao centro da imagem está Khadi Diabang, liderança que conduzia o banho de ervas Tiossane – que restitui o poder criador dos úteros.[1] Ela fez sua passagem em 2014. Ao lado esquerdo da imagem há uma criança, uma alusão à perda dos filhos. Esta fotografia é de autoria de Daniel Leite, que gentilmente nos cedeu para este dossiê, e integra o projeto humanitário em PermaKabadio. Daniel Leite reverte todos os lucros resultantes da venda de fotografias para a realização de projetos de permacultura no vilarejo, visando gerar renda para a comunidade e evitar a migração dos jovens.[2]

Este dossiê é mais uma contribuição ao movimento de de(s)colonização do saber ao visibilizar e legitimar, academicamente, as mulheres negras na História. Assim, assumimos o compromisso ético-político e acadêmico-científico de transgredir a tradicional monocultura do saber moderno-ocidental (SANTOS, 2002), apresentando diferentes protagonismos de mulheres negras da História da África e da Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988).

Tathiana Cassiano, em História das áfricas e literatura: as mulheres igbos na escrita literária de Flora Nwapa, problematiza os papéis sociais das mulheres Igbo, um dos três grupos mais expressivos numericamente na Nigéria, por meio da escrita literária de Flora Nwapa. Desconhecida no Brasil devido ao epistemicídio cristalizado em nossa produção de conhecimento, Flora Nwapa é reconhecida internacionalmente como uma das pioneiras no reconhecimento literário das mulheres africanas. Neste artigo, Tathiana Cassiano analisa personagens de seu livro: Eufuru, nos apresentando a Nigéria em meados do século XX não pela tradicional escrita da história, mas por outras relações de espaço-tempo-ser provenientes da cosmogonia Igbo, nas quais os colonialismos, as ancestralidades, os laços de linhagem, a educação e as relações sociais são analisados a partir do pensamento pós-colonial e decolonial, com destaque para o protagonismo das mulheres igbos.

A senegalesa Fatim Samb em: A experiência ilusória e a existência difícil das mulheres, analisa o impacto da migração de homens e jovens para as mulheres do Senegal a partir do romance “Celles qui attendent”, de Fatou Diome. A autora utiliza fontes etnográficas, históricas e literárias para tecer reflexões sobre o problema da emigração na África Ocidental, trazendo as vozes das mulheres que sofrem com a angústia de ver seu marido ou filho, ou ambos, não retornarem para casa.

Thuila Ferreira em: Sujeitas da própria história: influência, organização e movimentos de mulheres africanas, analisa a inserção política das mulheres em algumas sociedades africanas subsaarianas entre 1940 e 1990, a partir de fontes produzidas pelas próprias mulheres africanas. Nudez, magia, e rebeliões mostram as formas de agir e resistir encontradas por essas protagonistas, as quais potencializaram verdadeiras transformações em suas sociedades.

Marilda de Santana Silva nos brinda com reflexões e análises acerca da cantora Elisete Cardoso, a qual completaria cem anos em julho de 2020, por meio de cinco de suas canções. A autora do artigo, que também é cantora, apresenta trajetórias de mulheres negras e suas escrevivências (EVARISTO, 2006) por meio da música, possibilitando o reconhecimento e conhecimento profissional, intelectual e artístico dessas mulheres.

Ao apresentar a história da Dr.ª Carolina Maria de Azevedo, Jonê Carla Baião mobiliza histórias familiares como centrais na ressignificação da mulher negra e pobre no Brasil. Sua tia, tia Calu, somente conhecida nos hospitais e universidades, posto ter recebido o título de Doutora Honoras Causis pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, construiu um legado ao afirmar que “Se eles fazem mil, temos que fazer mil e um”. Assim, a autora apresenta densa reflexão acerca da mulher intelectual preta no Brasil.

Solange Pereira Rocha, Valéria Gomes Costa, Joceneide Cunha Santos e Iraneide Soares Silva discutem a trajetória histórica de grandes mulheres do século XIX: Catharina Mina (Maranhão), Thereza de Jesus de Souza (Pernambuco), Luiza (Paraíba) e Rozarida Maria do Sacramento (Bahia) são apresentadas como exemplos de mulheres negras que foram muito bem-sucedidas, ainda que pese o contexto da escravidão. As autoras analisam estas experiências, refletindo sobre suas capacidades de elaborar estratégias de sobrevivência, suas redes de solidariedade horizontais e verticais no período oitocentista.

Em “O farol que ilumina caminhos da Revolução moçambicana”: a imagem de Josina Muthemba Machel como instrumento Político (1975-1986), Júlia Tainá Monticeli Rocha apresenta por meio de diferentes documentos a presença feminina no imaginário popular de Moçambique durante o governo de Samora Moisés Machel, primeiro presidente de Moçambique e dos significativos militantes que aturaram na Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) do período da luta anticolonial. Por meio de uma “política de memória” nos apresenta a presença feminina e de seu posicionamento político.

Ricardo Alexandre da Cruz traz a biografia de Eunice Prudente, a primeira professora da Faculdade de Direito da USP. Essa mulher de origem humilde enfrentou e resistiu a uma série de violências do entrecruzamento de opressões racistas e patriarcais da moderna-colonizada sociedade brasileira, conseguindo alcançar altas posições através de uma série de estratégias, analisadas pelo autor a partir dos conceitos proposto por Pierre Bourdieu.

Isadora Durgante Konzen, Karine de Souza Silva refletem sobre a participação das mulheres sul-africanas na luta contra o apartheid. As autoras apresentam uma análise de gênero das estruturas racistas e discutem o surgimento dos coletivos de mulheres e suas táticas de ativismo no processo de libertação nacional. Apresentam as características do “feminismo maternista” sul-africano e “maternidade combativa” como estratégia de luta.

Miléia Santos Almeida em “Mulheres negras sertanejas e suas relações afetivas sob a pena da lei” analisa processos criminais de defloramento, homicídio e lesões corporais protagonizados por mulheres pretas e pardas em Caetité, região do alto sertão da Bahia, nas primeiras décadas da República para refletir como essas experiências atravessam a existência feminina destoando-se dos padrões das classes dominantes.

Na seção “Experimentações”, Myriam Moise, em: Para uma nova genealogia da negritude, apresenta a participação das mulheres caribenhas na constituição do movimento: Negritude. Várias intelectuais da Martinica produziram escritos significativos, contudo seus nomes permanecem desconhecidos enquanto associamos automaticamente o movimento à Aimé Cessáire e Leopol Senghor. O texto traz o pensamento de Suzanne Roussi-Césaire e Paulette Nardal que refletiram sobre as questões da negritude na perspectiva de gênero, uma grande contribuição para se refletir sobre a invizibilização das mulheres nos diversos fóruns.

Na seção “Notas de Pesquisa” temos o texto Ocupando o terreno: revisitando “além dos significados de miranda: des/silenciando o ‘terreno demoníaco’ da mulher de calibã, Carole Boyce-Davies revisita o posfácio desta obra, publicada pela primeira vez em 1990, cujo texto em questão foi escrito por Sylvia Wynter. O livro figura como a primeira coletânea de textos voltados especificamente à pesquisas sobre escritoras afro-caribenhas. No artigo, a autora analisa o conceito de “terreno demoníaco” (demonic ground) do posfácio de Wynter, entendendo-o como uma ferramenta para pensar a presença/ausência da mulher negra e sua relação com a ontologia e episteme da modernidade-colonial; bem como as possibilidades de reconstrução de si por meio das outras formas de conhecer e ser abertas pelas práxis das mulheres que foram circunscritas no “terreno demoníaco”.

Agradecemos às p rofessoras Raissa Brescia dos Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Taciana Almeida Garrido de Resende (Instituto Federal de Minas Gerais) pela tradução destes dois últimos textos e professora Vanicléia Silva Santos pela mediação com as autoras, permitindo a melhor democratização do acesso ao pensamento destas duas intelectuais afro-caribenhas que são importantes referências internacionais.

Uma vez no centro deste dossiê esperamos que a mulher negra no mundo, de modo geral, e, particularmente no Brasil, ocupe os lugares ainda negados econômica, social e politicamente. Na relação entre passado e presente podemos perceber a força da mulher negra no desafio cotidiano de sobreviver, viver… Saberes antepassados, ainda presentes, contribuem no processo de laços de solidariedade percebidos em pequenos gestos, nas comunidades, nas favelas, onde elas são a maioria a chefiar famílias.

Sendo riqueza, como afirma o provérbio Igbo que inicia essa apresentação, a mulher negra se ressignificou e se ressignifica na construção de identidades e na manutenção de memórias e histórias. E, nesse processo, contribuiu e contribui na construção de diferentes sociedades, entrelaçando suas ancestralidades africanas, apropriadas e reinventadas nas diásporas do continente americano. Mulheres, mães, filhas, esposas, trabalhadoras suportaram e suportam ainda muitas violências contra seus corpos e subjetividades.

Herdaram ofícios múltiplos, mas não entre os que detêm status social ou econômico. E ainda assim, subverteram a ordem construída e imposta desde o período colonial, no caso brasileiro. Mulheres como Lélia Gonzalez, filha de indígena doméstica e ferroviário negro, se tornou professora e intelectual de referência na luta contra o racismo. Assim como ela, muitas outras mulheres… Refletir a relação entre as antepassadas africanas e afro-brasileiras ou afro-americanas, nos permite conhecer a origem de tal riqueza que compõe as potencialidades sócio-históricas das mulheres negras. Potencialidades de lutas, de re-existências, de movimento, de reinvenção da história das Áfricas e das Améfricas Ladinas!

Notas

1. O banho Tiossane é uma tradição das mulheres Mandinga com poderes de cura para os úteros, restituindo a capacidade reprodutiva feminina.
2. Conheça mais sobre o projeto no Instagram @permakabadio. Para contribuir, visitem a @galeria_danielleite. Todo o valor arrecadado com a venda de fotografias é enviado integralmente ao vilarejo Kabadio, Casamance, Senegal.

Referências

AMADIUME, Ifi. Reinventing Africa: matriachy, religion and culture. London: Zed Book, 1997

AMADIUME, Ifi. Male daughters, female husbands. London: Palgrave Macmillan, 1987.

BELLO, Thomson Temitope. The Image of God and Image of Women in Africa: African Feminist Liberation Theology. In: FALOLA, Toyin; FWATSHAK, S.U. Beyond Tradition: African Women and Cultural Spaces. Trenton: Africa World Press, 2011. Pp.70-72.

BEY, Aziza Braithwaite. The Role of Women in Kemet, Dogon, Mayan and Tsalagi Societies. Journal of Pedagogy, Pluralism, and Practice: Vol. 3: Iss. 3, Article 2. https://digitalcommons.lesley.edu/jppp/vol3/iss3/2

COLLINS, Patricia Hill. O pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.

COQUERY-VIDROVITCH, Catherine. African Women: a modern History. WestView Press, 1997.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, RJ, n. 92/93, 1988.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá, nº09, p. 73-101 2008.

MONGES, Miriam Ma’At-Ka-Re. “Reflections on the Role of Female Deities and Queens in Ancient Kemet.” Journal of Black Studies, vol. 23, no. 4, 1993, pp. 561–570. JSTOR, www.jstor.org/stable/2784386..

OYEWÙMÍ, Oyèrónké. The invention of Women: making an African Sense of Western Gender Discourses. London/ Minneapolis: university of Minnesota Press, 1997.

VAN SERTIMA, Ivan. Black Women in Antiquity. (Revised Edition) Boston: Transaction Press, 1984

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 63, 2002.

Editoras

Profª Drª Marina Vieira de Carvalho: Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduíche em Université Paris VII (Paris- Diderot), fomentado pela CAPES. Possui mestrado em História pelo PPGH / UERJ; Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil pela UFF; Licenciatura e Bacharelado em História pela UGF. É professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH/UFAC), coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/UFAC), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos das Diferenças Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ) e ao Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus. Atualmente desenvolve pesquisas sobre de(s)colonialidades, com destaque para os femininos de(s)coloniais.

Profª Drª Iamara da Silva Viana: Professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de História da PUC-Rio. Doutora em História Política UERJ com estágio na EHESS/Paris (2016); Mestre em História Social UERJ/FFP (2009); Bacharel e Licenciada em História UFRJ (2004). Professora Colaboradora do PPGHC/IH/UFRJ; Coordenadora da Pós em África e Cultura afrodescente PUC-Rio, Pólo Duque de Caxias; Coordenadora do Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC/PUC-Rio); Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA/PUC-Rio); Pesquisadora do Laboratório de Estudos de História Atlântica das Sociedades coloniais e pós-coloniais (LEAH/IH/UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre Escravidão no Brasil no século XIX e suas conexões Atlânticas, Caribe Francês, Corpos escravizados e pensamento médico, Ensino de História, Cultura Material, Patrimônio Cultural e Relações étnico raciais.


VIANA, Iamara da Silva; BRACKS, Mariana; CARVALHO, Marina Vieira de. O protagonismo da mulher negra na escrita da história das Áfricas e Améfricas Ladinas. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 21, p. 6-13, abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution | Julius S. Scott (R)

Copia de SCOTT The common wind
Julius Sherrard Scott / Foto: Scholars and Publics /

SCOTT The common windProfessor emérito do Departamento de Estudos Afro-Americanos e Africanos da University of Michigan, nos Estados Unidos, Julius Sherrard Scott III doutorou- -se em 1986 na Duke University, em Ann Arbor, com a tese intitulada The Common Wind: Currents of Afro-American Communication in the Era of the Haitian Revolution. Com uma ligeira mudança no subtítulo, a tese ganhou o formato de livro em 2018: The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Os mesmos cinco capítulos da tese compõem o livro, acrescido de um prefácio escrito por Marcus Rediker, [1] professor da University of Pittsburgh, já bem conhecido do leitor brasileiro, com quem o diálogo e a perspectiva teórica da história vista de baixo são evidentes.

É difícil entender o intervalo de mais de trinta anos entre a defesa da tese e a impressão do livro, sobretudo porque o conteúdo manteve-se praticamente inalterado, porque o assunto é relevante e a narrativa é bem construída. Desinteresse editorial, desejo do autor em rever sua obra ou espera por um momento oportuno para reavivar a lembrança coletiva de que o Haiti ainda existe, como o terremoto de 2010, talvez possam ser elencados como hipóteses possíveis para essa longa espera. A bibliografia sobre o Haiti e, de forma mais ampla, o Grande Caribe, como Scott aborda no livro, não é extensa em inglês e é praticamente inexistente em português. [2] Por isso, talvez o primeiro ponto a ser destacado nesta resenha seja a necessária iniciativa de traduzir esse livro no Brasil, sem esperar a passagem de outras três décadas para que os leitores possam acessar uma experiência tão próxima à história colonial e imperial do país e tão inspiradora para os estudos históricos sobre a formação cultural brasileira e a história marítima ainda pouco praticada por aqui.

Chama a atenção a profusão e diversidade de materiais de que Scott se valeu para a escrita de sua história da circulação de ideias revolucionárias no Caribe setecentista: manuscritos oficiais de agentes da Coroa em arquivos espanhóis e cubanos, o mesmo tipo de fontes para a administração britânica em Londres e nas Índias Ocidentais, documentos de fundos privados em coleções estadunidenses, baladas cantadas por marinheiros negros e brancos em circulação por aquelas águas, narrativas de viajantes, propaganda abolicionista e jornais editados na América do Norte, nas Antilhas, no Reino Unido e na França. Exceto por periódicos que circularam em Portau-Prince e Cap Français, as fontes haitianas são praticamente ausentes do estudo, sinal de seu desaparecimento ou inacessibilidade ao longo da conturbada história humana e natural do país desde o século XVIII. “Pandora’s Box: The Masterless Caribbean at The End of the 18th Century”, o capítulo inicial, anuncia o contexto da ação revolucionária no Caribe. A perspectiva não é exatamente comparativa, mas leva em conta a diversidade de experiências coloniais e a grande expansão econômica baseada no boom da produção de açúcar na região. Aqui são consideradas também as formas de dominação oriundas de diferentes autoridades europeias a partir da vitória contra os piratas, bucaneiros e renegados que ocupavam aquelas ilhas e se organizavam por meio de regras próprias. Foi ao longo do século XVIII que a presença de escravizados africanos passou a se dar no Caribe de forma massiva – o que, se veio a transformar substantivamente a região, ao mesmo tempo manteve a imagem daquelas ilhas como lugares atrativos para desertores, escravos fugidos e toda a multidão de gente espoliada que pretendia viver sem obedecer às ordens de senhores.

O capítulo 2, “Negroes in Foreign Bottoms’: Sailors, Slaves, and Communication”, remete à visão de mundo de escravizados e seus senhores. Ambos reconheciam o potencial transformador do conhecimento das técnicas e formas de navegação. Tratava-se de algo perigoso e que criava homens insolentes, na visão senhorial, e que tendia para a construção de uma igualdade, no entendimento dos escravos. Olaudah Equiano, escravo marinheiro em meados do século XVIII e autor de uma celebrada autobiografia que parece guiar o capítulo, percebeu claramente que a mobilidade advinda dessa ocupação permitia certa igualdade com seus senhores, e não hesitou em “dizê-lo para sua mente”. Desgraçadamente para os senhores, muitos escravos com dificuldades de aceitar a disciplina que se lhes queria impor se engajaram no mundo do trabalho marítimo, inclusive porque seus senhores queriam se ver livres deles justamente por serem indisciplinados.

O terceiro capítulo, “The Suspense Is Dangerous in a Thousand Shapes’: News, Rumor, and Politics on the Eve of the Haitian Revolution”, pretende dar um aporte maior ao entendimento da revolucionária década de 1790 considerando seus antecedentes. O foco está dirigido à mobilidade de escravos, homens livres de cor e desertores militares e da marinha mercante que circulavam entre uma propriedade e outra, entre o campo e as cidades e entre as diversas ilhas, colocando em questão o controle social e a autoridade imperial. Ao fazer isso, alimentaram uma tradição de “resistência móvel” construída ao longo do Setecentos e que se radicalizaria nas décadas finais daquele século e no início do Oitocentos. As reações e tentativas de controle social mais severo por parte de autoridades metropolitanas e coloniais inglesas, espanholas e francesas são apresentadas nesse capítulo.

O capítulo 4, “Ideas of Liberty Have Sunk So Deep’: Communication and Revolution, 1789-93”, lança novas luzes sobre a repercussão da Revolução no Haiti nas demais ilhas. Ideias revolucionárias circularam não apenas em busca de adeptos, mas também como estratégia das autoridades imperiais em interação repressiva. Além de informações, oficiais baseados em uma ilha trocavam, com seus homólogos de outras Coroas, ajuda de todo tipo, militar inclusive. Os da Martinica pediram tropas ao governador de Cuba em 1790, diante das desordens que enfrentavam naquela colônia e da confusão revolucionária em que a própria metrópole francesa mergulhara em 1789, inviabilizando o envio de qualquer apoio. A causa da manutenção do controle social ultrapassava fronteiras linguísticas, imperiais e senhoriais. Mas os acontecimentos de 1789 e 1790 no Caribe, como afirma Scott, também ativaram as redes de comunicação afro-americanas. Se autoridades e proprietários ingleses, espanhóis e franceses construíram diálogos e articularam ações para se autopreservarem no Caribe ao longo do tempo, os escravos e homens livres de cor fizeram o mesmo.

O quinto capítulo, “Knows Your Interests’: Saint-Domingue and the Americas, 1793-1800”, concentra-se no impacto pós- -revolucionário nos impérios coloniais remanescentes e nos Estados Unidos. Porém, a amplitude geográfica do capítulo é menor do que o título promete. Houve mobilização militar nas colônias, num esforço para manter a ordem. Os escravos, por sua vez, mobilizaram- se e articularam ações que não foram apenas respostas ao aumento da severidade e da vigilância, mas que diziam respeito às suas próprias tradições organizativas. Esse processo foi intenso em Cuba [3], na porção oriental de Hispaniola, na Venezuela, em Curaçao e na Luisiana, apenas para mencionar algumas colônias em que a escravidão era a base da exploração dos trabalhadores. Desafortunadamente, a América portuguesa, maior colônia escravista do continente, ficou fora do quadro comparativo, decerto pela falta de domínio da língua portuguesa por parte do autor e pela reduzida bibliografia sobre a repercussão da Revolução Haitiana produzida no Brasil e em Portugal.

A circulação ou mobilidade espacial é o grande tema do livro. Negros africanos ou nascidos no Caribe e mestiços iam de uma colônia às outras, navegando distâncias que, embora relativamente curtas, lhes davam acesso a comunidades estrangeiras, com diferentes línguas e experiências de escravização e resistência. As oportunidades de disseminar conhecimentos e ideias e trocar informações objetivas não foram perdidas por aqueles escravos que se ganharam o mar e o mundo além do horizonte. O movimento dos navios e dos marinheiros oferecia não só oportunidades de desenvolver habilidades ou viabilizar fugas, mas criava formas de comunicação de longa distância e permitia que os afro-americanos transportassem, física e simbolicamente, seus modos de enfrentar as adversidades do cativeiro a outras partes, construindo resistências e concepções de liberdade globais.

A cultura marítima no Caribe era multirracial e multinacional. Escravos africanos ou nascidos nas colônias americanas eram partes importantes do contingente de trabalhadores do mar, mas o “submundo dos marinheiros” na região ao fim do século XVIII era formado também por milhares de britânicos e franceses. Tratava-se de uma população instável e que, por vezes, em razão de questões de mercado de trabalho ou de saúde, se estabelecia em alguma ilha à espera de melhores condições, enraizando- -se na cultura local de transitoriedade e de exposição às informações que circulavam rapidamente para os padrões daqueles tempos. No Caribe sabia-se dos acontecimentos das ilhas vizinhas, da Europa e da América do Norte: ali era a encruzilhada do mundo Ocidental, mais especificamente do hemisfério Norte, graças às correntes de comunicação estimuladas pela relativa proximidade, pelas facilidades da navegação e pelo aumento da atividade agroexportadora caribenha ao longo do século XVIII.

O axioma segundo o qual marinheiros eram desordeiros em terra encontrava plena comprovação no Caribe. Milhares de homens em trânsito representavam um problema para as autoridades locais responsáveis pela manutenção da ordem. Inúmeras leis foram postas em vigor para discipliná-los, do mesmo modo como se fazia para tentar regular a conduta dos escravos. Em tempos mais explicitamente conflituosos, como na Guerra dos Dez Anos (1780-1790), chegou-se a proibir que marujos britânicos nas Índias Ocidentais servissem a príncipes ou Estados estrangeiros. A proibição mostrou-se ineficaz.

A comparação entre escravos e marinheiros não é aleatória no trabalho de Scott. Ele nos deixa ver como ambos tiveram experiências em comum e causas pelas quais militavam juntos: o engajamento compulsório independentemente da condição, a submissão a punições arbitrárias, a pressão para embarcarem em navios mercantes contra sua vontade e a visão sobre ambos como perturbadores da ordem pública. Bom exemplo foi um ato policial de 1789, em Granada, prevendo penalizar escravos, mestiços livres e marinheiros que atentassem contra a própria saúde e a moral, porque seus comportamentos, vistos como dissolutos, eventualmente seduziam pessoas de outras condições.

Escravos e marinheiros conviviam a bordo, como tripulantes dos mesmos navios, mas a experiência também replicava em terra. Marinheiros eram os consumidores naturais das roças escravas caribenhas e, apesar do empenho policial, era difícil impedir que escravos lavradores ou em fuga fizessem comércio com marinheiros famintos e fragilizados depois de uma longa viagem, ávidos sobretudo por frutas e outros alimentos frescos. O contato e o convívio entre marinheiros e negros naquelas ilhas não tiveram apenas consequências econômicas, mas também forjaram elementos da cultura: muitas canções de trabalho populares no mar, disseminadas por marujos britânicos pelo mundo afora no século XIX, têm extraordinária semelhança com as canções escravas do Caribe. Scott afirma haver evidências consideráveis de que muitas canções podem ter se originado da interação de marinheiros e negros nas docas das Índias Ocidentais e que a teoria da origem e desenvolvimento das línguas crioulas no Caribe enfatiza o contato entre marinheiros europeus e escravos africanos e africano-americanos.

O ponto de intersecção de toda essa gente trabalhando em trânsito era Saint-Domingue, lugar de extraordinária diversidade de grupos de marinheiros europeus, a julgar pelos relatos do próprio ministério da Marinha francês na década de 1790. Mesmo com os monopólios coloniais e suas diferentes nomenclaturas (a flota espanhola, o exclusif francês, o British Navigation Act inglês), o contrabando grassava por ali, pondo em contato colonos europeus, marinheiros de diferentes metrópoles e escravos caribenhos e de variadas origens africanas. A razão dessa diversidade também entre os escravos, para além do tráfico direto com a África, era a sede por mão de obra em Saint-Domingue, o que fazia daquela colônia francesa um repositório de escravos fugidos a partir de 1770, vindos de Jamaica, Curaçao e, a julgar pela língua de alguns deles, também do Brasil. Muitos desses escravos em fuga se engajaram ativamente em rebeliões antes mesmo de 1789 e desempenharam papéis relevantes nos anos revolucionários – por exemplo Henry Christophe, segundo presidente do Haiti independente, nascido em St. Kitts, nas Índias Ocidentais britânicas.

O comércio e a circulação de marinheiros por aquelas bandas não só traziam notícias de fora como transmitiam ao resto do mundo o que se passava em Saint-Domingue. Scott reconhece que as revoltas de negros no Caribe em fins do século XVIII inspiraram os escravos nos Estados Unidos e em muitas das Antilhas. Em termos materiais, a afirmação encontra base no volume comercial entre Estados Unidos e Saint-Domingue em 1790: o montante das trocas, nessa altura, excedia aquelas feitas com todo o restante do continente americano, e era superado apenas pelo comércio com a Grã-Bretanha.

Scott foi um dos primeiros historiadores a identificar na mobilidade espacial advinda da navegação um importante indicador de autonomia e, eventualmente, liberdade para os cativos que conseguissem trilhar esse caminho. Os navios carregados de açúcar e rum circulando pelo Caribe possibilitavam escapar do rigoroso controle social existente nas sociedades escravistas e principalmente os navios menores eram vistos como instrumentos de fuga. Problemas diplomáticos e policiais decorriam dessa mobilidade não autorizada, mas o foco do autor se firma nos marinheiros e escravos desertores que elegeram as ilhas caribenhas como seus locais preferidos.

No Atlântico, mais do que em outros oceanos, e no Caribe, de forma concentrada, o comércio marítimo de longa distância e de cabotagem envolvia homens escravos e livres de cor. No caso dos escravos, envolvia também perspectivas de autonomia e liberdade dadas não só pela mobilidade como também pelas chances de se diluir em meio à multidão reunida nos portos, formada por indivíduos que, ao serem observados, não podiam ser definidos como livres ou cativos apenas pela cor de suas peles. Os mesmos jornais jamaicanos que publicavam anúncios de senhores vendendo negros especializados em trabalhos marítimos também publicavam anúncios de fuga de gente que certamente usara o mar como rota para desaparecer das vistas de seus senhores. Scott interpreta a “mística do mar” nas sociedades escravistas insulares do Caribe, ao salientar a vida a bordo de um pequeno navio de cabotagem ou do comércio intercolonial como uma alternativa atrativa à vida marcada pela hierarquia severa nas lavouras açucareiras. Mesmo escravos sem experiência marítima podiam conhecer alguns termos náuticos graças aos versos das canções populares e fingirem serem marinheiros livres. Ávidos por força de trabalho, os capitães dos navios quase nunca inquiriam cuidadosamente cada marinheiro engajado. Durante a década de 1790, antes e depois da Revolução de Saint-Domingue, sujeitos envolvidos no mundo do trabalho marítimo – marinheiros da navegação de longa distância, de pequenos navios de cabotagem no comércio intercolonial, escravos fugidos, marujos desertores brancos e negros – assumiram o centro do palco. No mar ou em terra, homens e mulheres sem senhores desempenharam um papel vital, espalhando rumores, reportando notícias e atuando como correia de transmissão de movimentos antiescravistas e, finalmente, da revolução republicana em curso na Europa.

A Revolução do Haiti tornou-se lendária não só porque foi a primeira experiência de liberdade coletiva e de construção de uma nação por ex-escravizados que retiraram à força seus senhores de cena, mas também pelo que representou como possibilidade na imaginação de escravos e senhores espalhados pelo mundo ocidental onde a escravidão era a base da acumulação de riquezas. A crença na determinação histórica, fruto da autocondescendência pela suposta descoberta de modelos explicativos eficazes, encontra nesta encruzilhada do Ocidente um incômodo para os historiadores mais seguros de suas opções teóricas. O passado torna-se sempre mais complexo quando é considerado da perspectiva de seus agentes.

Referências

ANDRADE, Everaldo de Oliveira. Haiti, dois séculos de história. São Paulo: Alameda, 2019.

FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, n. 3, p.37-53, jun. 2012.

FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana na época da Revolução Haitiana. In: CUNHA, Olívia Maria Gomes da.

Outras ilhas: espaços, temporalidades e transformações em Cuba. Rio de Janeiro: Aeropolano/FAPERJ, 2010. p. 37-64.

GRONDIN, Marcelo. Haiti. Col. Tudo é História. São Paulo: Brasiliense, 1985.

JAMES, Cyril Lionel Robert [1938]. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.

REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

REDIKER, Marcus; LINEBAUGH, Peter. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SCOTT, Julius S. The Common Wind: Afro- American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Londres; Nova York: Verso, 2018.

Notas

  1. Autor de A hidra de muitas cabeças: marinheiros, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário (em parceria com Peter Linebaugh) (2008) e O navio negreiro: uma história humana (2011).
  2. Exceções são os livros de Grondin (1985); de Andrade (2019) e, é claro, a tradução muito tardia de James (2000), editada pela primeira vez em 1938.
  3. O impacto da Revolução do Haiti em Cuba pode ser conhecido pelo leitor brasileiro com mais detalhes pelos trabalhos já traduzidos de Ada Ferrer (2010 e 2012).

Jaime Rodrigues – Professor da Universidade Federal de São Paulo / Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas / Departamento de História, Guarulhos/SP – Brasil. E-mail: rodriguesjaime@gmail.com.


SCOTT, Julius S. The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Londres; Nova York: Verso, 2018. 246p. Resenha de: RODRIGUES, Jaime. Uma encruzilhada do Ocidente: o Caribe setecentista como espaço histórico Topoi. Rio de Janeiro, v.22, n.46, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

 

A intergeracionalidade nas graphic novels autobiográficas “Persépolis” e “bordados” de Marjane Satrapi | Caroline A. M. Nunes

A INTERGERACIONALIDADE NAS GRAPHIC NOVELS AUTOBIOGRÁFICAS “PERSÉPOLIS” E “BORDADOS” DE MARJANE SATRAPI. | Caroline Atencio Medeiros Nunes | PDF | 614-640 | Aedos. Porto Alegre, v.12, n.27, 2021.

Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico 1450-1850 | Marcello Carmagnani

As conexões mundiais e o Atlântico: título sugestivo para um livro que se propõe a tratar de tema tão amplo. Como fazê-lo, contudo, é questão proeminente. O percurso escolhido nos é explicitado na introdução:

Será necessária uma profunda revisão dos instrumentos analíticos, elaborando os dados históricos até então utilizados apenas descritivamente, para traçar os modelos, os esquemas e as constantes do processo histórico. Fernand Braudel dizia que a história é a representante de todas as ciências sociais no passado: a ampliação da visão de história atlântica aqui proposta depende também da capacidade de elaborar conceitos analíticos que considerem os processos históricos em âmbito econômico, sociológico, político e cultural, sem os quais a história não pode ser nada além de uma mera coleção de conhecimentos [3].

Portanto, como ambicionado, a abordagem das esferas de existência histórica do mundo atlântico depende de uma elaboração conceitual e de uma revisão dos instrumentos analíticos que dê conta das constantes de seu processo formativo. O que, dentro da produção italiana sobre o tema, é de grande significado. Como em países europeus e americanos, os estudos atlânticos ganharam relevo nos últimos anos dentro dos cursos de graduação e pós-graduação. A publicação deste livro, por exemplo, vem cinco anos depois do ótimo Il Mondo Atlantico: una storia senza confini (secoli XV-XIX), de Federica Morelli. Porém, em muitos casos, o Atlântico acaba sendo fortemente concebido como um prolongamento temporal da ordem geopolítica norte-atlântica pós-1945, sendo representado pelos países membros da OTAN (deixando pouco ou nenhum espaço para o Leste Europeu e a Península Ibérica), e excluindo em grande medida o Atlântico Sul, concebendo o ocidente a partir de um interesse que projeta uma interpretação de escopo reduzido.

Portanto, a tarefa assumida requer não apenas amplo conhecimento bibliográfico e documental, como também uma perspectiva metodológica que seja totalizante, por adição ou por relação. Neste campo historiográfico, Bernard Bailyn afirmara que fazer uma história atlântica implica a agregação do conhecimento de histórias locais e suas extensões ultramarinas, bem como as relações desse agregado, operando no campo da descrição de suas dinâmicas e elementos fundamentais e processuais [4]. Apresentando estes aspectos, o presente livro, além de vir em boa hora, é também fruto de uma carreira construída a partir de pesquisas de fôlego sobre a Europa e as Américas. Nos últimos anos, os estudos de Marcello Carmagnani vão da relação intrínseca entre o consumo de produtos extra-europeus e as transformações materiais e imateriais em suas sociedades [5] à formação e plena inserção da América Latina nas sendas do mundo ocidental [6]. E neste livro, como bem descrito, o enquadramento atlântico dos processos históricos e suas relações são delineados plenamente.

Dividindo a obra em cinco capítulos, Carmagnani inicia explorando seus pontos de partida. Pontos que não necessariamente levaram desde o princípio à sua formação, mas que foram determinantes para a estruturação de suas dinâmicas. Neste quesito, as técnicas de navegação e o delineamento das primeiras ocupações atlânticas merecem destaque. Encontramo-nos diante de um processo definido pela experiência e apresentado do seguinte modo: a adoção de técnicas originárias de contatos anteriores, em especial com a Ásia, são, junto com as técnicas locais, adaptadas para a uma realidade que posteriormente se transforma a partir da experiência prática adquirida. No que se refere à busca e ocupação de pontos intermédios no oceano Atlântico, verdadeiras pontes oceânicas, seus papéis são salientados pelas potencialidades como locais de troca e abastecimento/restauração de embarcações, e como primeira experiência de povoamento no além-mar. Com a instalação de estruturas produtivas baseadas no uso do trabalho escravo africano que engendrariam posteriormente o comércio e produção das colônias europeias na América, é ressaltado o desenvolvimento de uma rede mercantil europeia em torno do comércio açucareiro. Juntando estes dois fatores ressaltados, o desafio representado pelo Atlântico vê um número reduzido de agentes envolvidos e possui como seus mecanismos de propulsão a busca de ouro africano e o início do tráfico negreiro em direção às ilhas produtoras de açúcar, que acenavam à conexão entre comércio, técnica e experiência que simbolizam um círculo vicioso.

No segundo capítulo, os efeitos da conquista e o processo de territorialização de espaços americanos são centrais. A catástrofe demográfica americana, o consequente repovoamento e a transposição integral do tráfico negreiro ao mundo atlântico são ressaltadas por duas razões. A primeira diz respeito ao nascimento da articulação entre a costa, o interior e a fronteira aberta, ligando o comércio, as estruturas produtivas e político-jurídicas instaladas na América, tendo a prata e o açúcar como eixos indissociáveis. A segunda é a formação de sociedades específicas, que apesar das divergências locais, eram marcadas por conflitos e violências que visavam a dominação e subordinação da mão de obra. Deste modo, o repovoamento e a instalação produtiva nas Américas representa o nascimento de conflitualidades que levam os poderes coloniais a criarem mecanismos de limitação de contestações e perda de controle sobre o tecido social e produtivos cujas estruturas ainda reverberam.

O terceiro e quarto capítulos devem ser abordados em conjunto, pois enquanto dedica o primeiro à consolidação deste mundo, no outro descreve minuciosamente as plantações, a “originalidade atlântica”. Taxativamente, Carmagnani nos diz que o período entre 1650-1850 é o da afirmação atlântica como principal ator das conexões mundiais. O que era delineado anteriormente passa à concretude: não mais momentos fundamentais e de processos socioeconômicos formativos, mas de ação e projeção dos agentes históricos dentro e a partir deste mundo. Assim ocorre a mudança nos padrões de consumo dentro da Europa, com a oferta maciça de produtos extra-europeus, como café, tabaco, cacau e açúcar. Igualmente, a renda e acumulação de capital dos países europeus norte-atlânticos neste período atingiu índices de crescimento inimagináveis, levando-o, em referência à Eric Williams, a afirmar que o fluxo de capitais ingleses derivantes do comércio mundial, gerado no mundo atlântico e posteriormente na Ásia, permitiu em boa medida os investimentos à Revolução Industrial. Na África, o vínculo entre os mercadores locais e a ampla rede atlântica impulsiona a monetização das regiões costeiras. No Daomé, o equilíbrio entre sociedade, mercados locais e a administração monárquica nos ajuda a compreender por que o comércio atlântico em determinadas localidades africanas podia coexistir com as vicissitudes locais sem criar um mercado único, mas sim uma forte vinculação. No caso da Senegâmbia, o poder local foi ainda mais fortalecido por meio do comércio negreiro.

Tema que merece maior atenção, pois Carmagnani afirma que a expansão do trato transatlântico de escravos é conectada com as mudanças ocorridas não apenas na Europa, mas também na África, e com as estruturas produtivas americanas. Com isso, em um período de queda na oferta europeia de mão de obra, concomitante com a expansão produtiva nas Américas, o comércio de escravos, responsável por uma catástrofe demográfica na África, adquire amplas proporções e desencadeia um fenômeno de grandes dimensões. Diversas redes de comércio se aderiam aos portos de trato que leva ao incremento na demanda africana de tecidos, tabaco, e cachaça, ligando as economias ao ponto de, em determinados períodos do século XVIII, 40% dos produtos ingleses desembarcados na África serem usado para este comércio, enquanto no mundo português foi a sua quase totalidade, inclusive mudando profundamente seu circuito atlântico responsável por 41,8% do escravos desembarcados na América, quando o controle passa de mercadores não mais estabelecidos na Europa, mas sim no Rio de Janeiro e Bahia. Concomitante a essas redes de comércio, o incremento da produção de açúcar após a entrada em cena dos impérios do noroeste europeu aumenta a concorrência produtiva, levando áreas até então açucareiras a diversificarem suas produções.

Por fim, no que se refere ao trabalho e à produção, à parte as importantes considerações sobre as técnicas que favorecem o incremento produtivo, como o sistema de irrigação adotado em meados do século XVIII em Saint-Domingue e investimentos em vias de comunicação e meios de produção que permitiram o aumento da produtividade na Baía de Chesapeake, há um aspecto contraditório originado por uma questão semântica. Em uma passagem, o autor nos diz que escravos africanos, uma vez nas plantações, tinham um duro período de adaptação ao trabalho e de ambientação, aliado às parcas condições materiais, em sociedades que se formavam a partir de pressupostos raciais, dando vida a um sistema produtivo dividido entre um horizonte hierárquico e outro orientado ao lucro. Essa organização do trabalho apresentava tensões latentes, devido ao ritmo e ao controle produtivo. A formação de quilombos e comunidades maroons são exemplos de que esta adaptação não ocorria de fato. A busca de regulamentações e de controle por parte das sociedades coloniais nos leva a pontuar um fator que, em um leitor desatento, pode induzir a um erro de compreensão.

No último capítulo, dedicado às revoluções, a abordagem se baseia principalmente na recente produção historiográfica, dividindo-a em fases ascendente e descendente: a primeira compreende o período entre 1763 e 1815, e a segunda, até 1848. Analisemos as linhas gerais. Sobre a Revolução Americana, Carmagnani reitera que, diferentemente do que afirmam outros autores no cotejo dos eventos revolucionários nos Estados Unidos e na França, sugerindo certo disciplinamento e moderação na história norte-americana, ocorreram sim conflitos civis de monta e também se intensificou o massacre indígena. Ao mesmo tempo, parte significativa dos escravos participou diretamente no conflito, fato que influenciou aspirações de liberdade alhures, formando parte do processo que desembocou na grande rebelião escrava de 1791 na colônia francesa de Saint-Domingue (atual Haiti).

Na Revolução Francesa, se ressaltam suas idas e vindas bem como a leitura da situação política norte-americana. As relações com Saint-Domingue e o papel dos representantes caribenhos na abolição da escravidão em 1794 são cruciais pois sua inserção dentro da política revolucionária demonstra que, diferentemente da Jamaica, a contestação alcançou outra dimensão: não houve apenas uma influência advinda do processo francês, mas esta foi uma experiência que contribuiu ativamente na liberdade dos escravos e na superação, com a declaração de independência de 1804, do restabelecimento escravista decidido pelo governo imperial.

O êxito haitiano, contudo, é em parte responsável pelo caráter mais contido de diversas revoluções liberais posteriores. A moderação se deveu aos temores da classe proprietária e às revoltas eclodidas nas áreas escravistas atlânticas, sem abrir mão, contudo, dos ideais de cidadania e de governo representativo, como se vê na América ibérica, onde as classes dirigentes eram favoráveis à ampliação das reformas que ampliassem a participação política da elite colonial. Como exemplo, a independência brasileira deu luz à uma constituição liberal que centrou mais na organização do Estado que nos direitos dos cidadãos, reiterando o máximo possível a dinâmica da organização social advinda da ordem colonial. Portanto, Carmagnani é cético em afirmar que dessas revoluções nasce a democracia moderna: a representação não dependia da vontade direta da maioria dos cidadãos, e o peso dos interesses das elites foi preservado.

À guisa de conclusão, a obra faz um apanhado bibliográfico geral suficiente e amplo, apresentando os leitores a produção dos últimos 40 anos e instigando um campo de pesquisa promissor em âmbito italiano – os minúsculos erros de digitação na bibliografia não impedem a compreensão da citação, como A Costruçao do Orden. Em Connessioni Mondiali, Marcello Carmagnani, estudioso de projeção internacional, dá um passo importante em direção à “atlantização” da historiografia europeia em geral e italiana em particular.

Notas

1. Università degli studi di Torino. Turim – Itália.

2. Mestrando em Scienze Storiche na Università degli studi di Torino, Torino (TO), Italia. E-mail para contato: joao.covolansilva@edu.unito.it.

3. CARMAGNANI, Marcello. Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico, 1450-1850. Torino: Einaudi, 2018, p.5.

4. BAILYN, Bernard. Atlantic History: concepts and contours. Cambridge: Harvard University Press, 2005, pp.60-61.

5. CARMAGNANI, Marcello. Le Isole del Lusso: prodotti esotici, nuovi consumi e cultura economica europea, 1650-1800. Torino: Utet, 2010.

6. CARMAGNANI, Marcello. L’Altro Occidente: l’America Latina dall’invasione europea al nuovo millennio. Torino: Einaudi, 2003.

Referências

BAILYN, Bernard. Atlantic History: concepts and contours. Cambridge: Harvard University Press, 2005.

CARMAGNANI, Marcello. L’Altro Occidente: l’America Latina dall’invasione europea al nuovo millennio. Torino: Einaudi, 2003.

_____. Le Isole del Lusso: prodotti esotici, nuovi consumi e cultura economica europea, 1650-1800. Torino: Utet, 2010.

_____. Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico, 1450-1850. Torino: Einaudi, 2018.

MORELLI, Federica. Il Mondo Atlantico: una storia senza confini (secoli XV- -XIX). Roma: Carocci, 2013.

João Gabriel Covolan Silva1;2 – Università degli studi di Torino. Turim – Itália. Mestrando em Scienze Storiche na Università degli studi di Torino, Torino (TO), Italia. E-mail para contato: joao.covolansilva@edu.unito.it


CARMAGNANI, Marcello. Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico, 1450-1850. Torino: Einaudi, 2018. Resenha de: SILVA, João Gabriel Covolan. A afirmação do Atlântico na historiografia italiana. Almanack, Guarulhos, n.26, 2020. Acessar publicação original [DR]

O triunfo da persuasão: Brasil/ Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial / Alexandre B. Valim

Bandeiras Brasil x EUA
Bandeiras – Brasil x EUA

VALIMNa obra “O triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa- Vizinhança durante a II Guerra Mundial”, o autor Alexandre Busko Valim nos apresenta uma discussão sobre o uso do cinema na política de aproximação entre Brasil e Estados Unidos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Buscando estabelecer influência tanto no Brasil quanto em outras repúblicas da América Latina, os Estados Unidos desenvolveram a Política da Boa- Vizinhança, que foi aprofundada e inovou nos métodos de controle e dominação durante a Segunda Guerra Mundial. Nesse novo quadro essa política era relevante pois visava garantir aos Estados Unidos: o potencial mercado latino-americano, o apoio do Brasil que possuía posição estratégica no cone sul durante o conflito bélico e por último – e importante – garantir o acesso a matérias primas essenciais para o esforço bélico dos Aliados.

O objetivo de Valim, possuindo como base teórico-metodológica a História Social do Cinema, é analisar os usos do cinema que objetivava o estreitamento das relações entre Brasil e Estados Unidos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Uma das originalidades do livro é a abordagem escolhida pelo autor para tratar do tema; ele não busca fazer uma análise dos filmes produzidos, ou seja, reconhecer seus significados e representações, que é o comum dentro da bibliografia que trata do cinema na Política de Boa-Vizinhança. Indo além, busca se explicitar como se deu a estruturação da OCIAA (Office of the Coordinator of Interamerican Affairs) e a implantação das regionais no Brasil, e mais a frente à fundação da Brazilian Division (a sessão brasileira do Office). Abrangendo a parte burocrática da ação, analisando também o papel do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) no período. Focando sua discussão em apresentar como se deu a criação e o planejamento das atividades do Office no Brasil, analisando como os grupos dirigentes se decidiam, quais eram seus objetivos e suas ações, mais que isso, quais foram os entraves burocráticos encontrados no Brasil e quais foram as soluções realizadas. Chama atenção para a necessidade de se conhecer os processos de concretização do Office para dessa forma não colocarmos o período como uma mera consequência do imperialismo onipotente norte-americano.

Outro ponto original da obra se remete as fontes utilizadas pelo autor, sendo elas documentos depositados na National Archives em College Park, nos Estados Unidos (NARA II).

Essas fontes são um conjunto de memorandos, relatórios, cartas que circulavam entre as instituições (regionais, Brazilian Division, Office). O conteúdo delas variavam, desde aviso sobre decisões tomadas, relatórios qualitativos e quantitativos, preocupações compartilhadas pelos grupos, demandas, interesses, impasses e etc. Sendo assim, essas fontes são cruciais para se entender como se deu a idealização, organização e ação das atividades do Office no Brasil.

Utilizando o conceito de “zona de contato”, Valim também contribui originalmente ao propor uma análise onde observa os conflitos culturais existentes nos espaços sociais conjuntos construídos durante o contexto estudado. Dirigindo atenção a atores sociais que não possuíam destaque dentro das instituições oficiais, atores esses que foram peças chaves dentro da estruturação do Office e realização de suas atividades. Dessa forma, ele coloca sob o holofote estes que por muito foram ignorados pela historiografia do tema, mas que tiveram papel essencial no período.

Partindo para a estruturação da obra, tirando a introdução e as considerações finais, o livro apresenta seis capítulos no total, e em cada um deles os argumentos são articulados para com sua ideia principal. Na introdução são apresentados os objetivos gerais do livro, como também é explicitada qual metodologia será utilizada e qual documentação foi acessada para construção da obra. Em linhas gerais é abordado o contexto da Política da Boa-Vizinhança, suas bases e seus ideais, e também é apresentado um breve debate historiográfico sobre as produções que abordam esse período. Um breve histórico da criação do Office e da Motion Picture Division é exposto, além de apontar o porquê do interesse dos Estados Unidos na América Latina, em específico o Brasil. O autor segue e explicita os conceitos de persuasão e propaganda, e argumenta do porquê da escolha do cinema como instrumento de aproximação entre os países. Outro ponto importante abordado é sobre os entraves causados pelo governo brasileiro, no âmbito do DIP, que serão mais bem analisados nos capítulos seguintes.

No primeiro capítulo, intitulado “The Brazilian Division: a chegada do Office no Brasil”, o autor foca em apresentar como se deu a estruturação do Office no Brasil e a criação da Brazilian Division. Aponta as limitações legais encontradas no país e as ações tomadas para burlar o governo varguista que era lido possuindo um teor “muito nacionalista”, que não agradava o Office. Seguindo, é apresentado dados sobre quem seriam os responsáveis do Office, da Brazilian Division e das regionais instaladas. O capitulo é uma extensa explicação sobre a estrutura política do Office, suas divisões, cargos e tarefas; é a apresentação da parte técnica e burocrática do mesmo. O segundo capítulo, “Aliados precisam ter atitudes amigáveis: propaganda, oportunidade e lucro”, é desenvolvido a parte do embate entre a legislação brasileira e os desejos do Office, nesse caso, em relação à taxação dos filmes estrangeiros. São elencados quais eram as obrigatoriedades da Brazilian Division em relação à produção e divulgação dos filmes. Discorre-se sobre os esforços de se extinguir os filmes do Eixo. Por fim, ele pincela um pouco sobre a tentativa de se conseguir ajuda da Motion Picture Division para produzir filmes nacionais, e também sobre os esforços da Brazilian Division em treinar com eficácia os técnicos para produção e divulgação dos filmes.

Já o terceiro capítulo, intitulado “O show precisa continuar: o cinema da boa-vizinhança adentra o país” é focado em discutir sobre as dificuldades de expansão das exibições para o interior do Brasil. É explicada as dificuldades técnicas que envolviam disponibilidade de material, equipe treinada e transporte, por exemplo. Para, além disso, o capítulo aborda a recepção dos filmes no interior a partir de relatórios das equipes envolvidas. Aponta algumas situações onde ocorreram impasses com as autoridades locais no que tange permissão para as exibições, e debate sobre como esses embates eram retirados dos relatórios que eram enviados ao Offiice, numa tentativa de não manchar a atuação do mesmo no país o que poderia pôr em risco a continuação das suas atividades.

A argumentação sobre a recepção dos filmes pelo interior segue no quarto capítulo, “Acenando as cabeças para filmes extraordinários: os maiores hits do cinema da boavizinhança”.

É abordada a preocupação no quesito mensagem do filme vs. receptor, ou seja, a atenção dispendida em relação aos efeitos que as histórias dos filmes causavam no público, onde houve casos que não eram agradáveis porque não se identificavam com a realidade apresentada nas obras. Ainda nesse capitulo, é discutido sobre alguns requisitos relacionados a filmagens realizadas no Brasil, como por exemplo, o ponto de evitar pobres e negros nas cenas gravadas. Um pouco mais a frente, é abordado um pouco sobre a relação de Disney e a política da boa-vizinhança, abordando alguns filmes que o mesmo realizou no período diretamente relacionado a política de aproximação. Por fim, discute também a censura realizada pelo DIP aos filmes que seriam exibidos no país, as diretrizes para o cinema no Brasil, e elenca filmes proibidos que eram considerados simpáticos aos alemães e a URSS.

O quinto capítulo, “Caçando com os melhores cães: os projetos de cinema do Office”, a partir de três projetos chamados: William Murray Project, John Ford Project e o Production of 16mm in Brazil, o autor aborda as ideias do Office no que tange exibição e produção cinematográfica em âmbito nacional. Analisa toda a parte burocrática, que seria o orçamento, equipe técnica, parcerias privadas e públicas que permeavam essa empreitada de se investir na produção cinematográfica brasileira. Aponta também os argumentos daqueles que foram a favor e contra ao investimento estadunidense na indústria cinematográfica local e quais foram os desfechos. O sexto e último capítulo, chamado “Mais dramático que qualquer ficção as múltiplas fronteiras exploradas pelo cinema da boa-vizinhança”, analisa as ações para incentivar a produção da borracha para os esforços de guerra a partir da relação entre cinema e a “batalha da borracha”, além disso, também discute os estereótipos que associavam o Brasil a um local exótico e selvagem, e por último aborda novamente a discussão sobre a construção de uma indústria cinematográfica nacional a partir de investimentos norte-americanos.

Como é possível ver a partir das sínteses dos capítulos, o autor desenvolveu sua ideia principal de acordo com a evolução da obra. Utilizando as fontes da NARA II, Valim destrincha uma parte que até então não recebia muita atenção da bibliografia, que é a idealização e estabelecimento do Office no Brasil. As questões burocráticas que se desenrolaram, os impasses entre governo estadunidense e brasileiro. Salienta o embate entre ideais do governo varguista e os ideais propagados do ‘american way of life’, de liberdade e democracia pelos estadunidenses.

Para, além disso, destrincha a imagem estereotipada e até mesmo idealizada produzida sobre o Brasil, ressaltando inclusive o interesse do governo nacional nessa retratação que ignorava as desigualdades e mazelas sociais. Um fator interessante levantado na obra é sobre como em alguns casos funcionários estadunidenses se compadeceram mais pela causa brasileira e passaram então defendê-las, como por exemplo, dentro do projeto John Ford, onde os funcionários possuíam interesse de produzir filmes sobre a cultura do Brasil, sobre as músicas, o samba, mas foram inibidos porque isso ia de encontro com os interesses do Office.

A obra de Valim, lançada em 2017, se posiciona em um momento onde se faz muito necessário reconhecer a força e influência que os canais de comunicação possuem sobre a formulação da opinião pública. Como dito anteriormente, a obra não foca em analisar os signos representados nos filmes da época, mas se propõe a um estudo mais aprofundado sobre a natureza das atividades do Office e da sua relação com os grupos dirigentes do país. A partir de sua argumentação, é possível perceber como a Política da Boa-Vizinhança aprimorou os métodos de controle e dominação. “O Triunfo da Persuasão” não se mostra original apenas nos documentos que utiliza como fontes primárias, mas na abordagem que busca observar a relação entre dois países com poderes assimétricos, conseguindo, dessa forma, demonstrar as limitações da suposta onipotência norte-americana no contexto. Este livro se coloca enquanto leitura essencial para aqueles interessados em História Social do Cinema, sobre uso do cinema no contexto da aproximação do Brasil e dos Estados Unidos durante a Política da Boa- Vizinhança, além de abrir inúmeras possibilidades de pesquisas dentro da temática que aborda.

Carolina Machado dos Santos – Graduanda pela Universidade Federal Fluminense no curso de História (Licenciatura).


VALIM, Alexandre Busko. “O triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial”. 1. Ed. São Paulo: Alameda, 2017.Resenha de: SANTOS, Carolina Machado dos. Cinema e política da boa-vizinhança. Cantareira. [Niterói], v.34, p.675-678, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

História das mulheres, das relações de gênero e das sexualidades dissidentes / Estudos Ibero-Americanos / 2021

A pesquisa sobre História das Mulheres, relações de gênero e sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade vem rendendo muitos textos publicados na forma de livros, capítulos e artigos. Essa trajetória de pesquisa que, em 1989, rendeu o primeiro dossiê intitulado “A mulher no espaço público”, publicado na Revista Brasileira de História e organizado por Maria Stella Martins Bresciani,[3] tem crescido significativamente, ampliando seus debates, incorporando novas discussões e enfrentando novos desafios.

Quando fomos convidadas a propor uma chamada de artigos para o dossiê, sabíamos que havia no campo uma grande quantidade de resultados merecendo ser divulgados. Foi com agradável surpresa que recebemos 43 artigos. Desses, 12 estavam fora das normas e foram devolvidos; e 31 foram enviados para avaliação. Da lista dos que tiveram pareceres ad hoc favoráveis, escolhemos apenas 12, como constava das regras da revista.

Essa experiência foi gratificante, mas nos causou preocupação. Muitos artigos com grande qualidade e bons pareceres não puderam ser publicados aqui, nesse dossiê. No entanto, demonstram a potencialidade do campo, resultado de recursos investidos na pesquisa, especialmente entre 2005 e 2016, da criação de grupos de estudos nas universidades e da vitalidade de movimentos sociais. Mostra, também, que a chamada “onda conservadora” antifeminista e homofóbica na América Latina, apesar dos seus ganhos eleitorais, não tem conseguido implantar seu “pânico moral”[4] na academia. Ao contrário, observa-se resistência, crescimento e diversificação.

Os artigos escolhidos para publicação neste dossiê se concentram, principalmente, na discussão sobre História das Mulheres. Apenas um dos artigos focalizou as sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade. Pelo menos três artigos fizeram balanços historiográficos. O debate com a mídia, tendo como fontes livros, novelas e jornais, foi o principal suporte para a discussão sobre as subjetividades e a prescrição de normas para mulheres em diferentes momentos.

Abrindo o dossiê, o artigo “Relações de gênero, capitalismos afetivos, literatura ‘Chick-lit/Soft Porn’ e a ‘nova’ escrita contemporânea de/para mulheres”, escrito por Ana Carolina Eiras Coelho Soares, focaliza a literatura recente, sucesso de vendas, voltada para mulheres. A autora mostra como, apesar de essa literatura partir do pressuposto de que o prazer no sexo é um direito das mulheres, muitas imagens antigas são revisitadas. Nos pares que se formam, nessa literatura, os homens são sempre brancos, bem-sucedidos profissionalmente e muito mais ricos que as mulheres. Essas, possuem empregos insignificantes e nunca têm carreiras de sucesso. Elas se submetem “livremente” aos desejos do homem, por mais violentos que esses sejam. Uma cinderela contemporânea?

Raquel de Barros Pinto Miguel, no artigo “Fotonovelas: prescrevendo normas, modos e modas”, analisou as fotonovelas publicadas na revista Capricho nas décadas de 1950 e 1960. Nelas, as mocinhas, em geral pobres e órfãs, sofriam até encontrar a felicidade, casando-se com homem rico e lindo. A autora analisa essa “literatura de escape” e mostra o sucesso que obteve, observando a constituição das subjetividades engendradas.

O artigo “Modernidad, cultura y vanguardia feminista: Concha Méndez, una adelantada a su tiempo. De la voluntad emancipadora al exilio trasatlántico”, de Esmeralda Broullón, trata de analisar a trajetória pessoal e cultural da poetisa da geração de 1927, Concha Méndez, destacando o seu papel como escritora, editora e promotora cultural na Espanha nos anos 1920 e 1930, juntamente com o conhecido poeta Manuel Altolaguirre. Enfoca o período caracterizado pela grande efervescência política, pelo avanço do feminismo no país ibérico e por instituições de estudos como o Lyceum Club, um influente círculo cultural do qual Concha Méndez fez parte e onde se conheceram destacadas feministas que, pouco depois, em 1931, defenderam a conquista do voto feminino. A trajetória da autora no exílio mexicano, após a derrota da república espanhola em 1939, é, também, rapidamente delineada no artigo.

As discussões que articulam gênero e decolonialidade ou, como dizem as autoras, as “perspectivas contra coloniais” estão presentes no texto de Cintia Lima Crescêncio e Gleidiane de Sousa Ferreira, intitulado “Da História das Mulheres às perspectivas Contra-Coloniais? Reflexões sobre a historiografia do gênero no Brasil (2001-2019)”. Buscando, em eventos promovidos pela Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) e pelo Fazendo Gênero a presença da discussão contra-colonial entre pesquisadoras/es que discutem História das Mulheres e gênero, as autoras constatam que esse é um tema iniciante e com pouca presença, o que demonstra um pouco de resistência do campo da historiografia para essa questão.

Utilizando com principal fonte o periódico argentino Brujas, Júlia Glaciela da Silva Oliveira, no artigo “’Sin senderos prefijados’: a defesa da autonomia feminista nas páginas de Brujas (1981-1996)”, discute a autonomia do movimento feminista. Além de apresentar a historicidade desse debate nos anos 1970, a autora articula o tema com o avanço neoliberal na América Latina.

Também usando periódicos como a principal fonte, o artigo “As mulheres e suas tramas impressas: um repensar historiográfico das produções sobre a sociedade carioca e portenha dos anos iniciais da segunda metade do século XIX”, escrito por Bárbara Figueiredo Souto, mostra como a historiografia da imprensa e a que focaliza intelectuais ainda não deu a devida visibilidade às mulheres que escreveram e dirigiram periódicos em Buenos Aires e no Rio de Janeiro no século XIX. No artigo, Joanna Paula Manso de Noronha, por sua trajetória como editora e escritora, tanto na Argentina como no Brasil, é classificada como uma intelectual-mediadora-feminista-transnacional.

Patrícia Lessa e Claudia Maia, no artigo “Feminismo, vegetarianismo e antivivisseccionismo em Maria Lacerda de Moura”, trazem do início do século XX uma discussão que tem ganhado força neste início do século XXI: o antiespecismo. No caso de Maria Lacerda de Moura, tratava-se de um feminismo que se articulava com a questão da classe, com a luta pelo vegetarianismo e contra a vivissecção. Importante destacar como questões que hoje ganham destaque eram alvo de discussões e de publicações por Maria Lacerda de Moura e, no entanto, ficaram esquecidas.

O artigo “Algunas reflexiones sobre género y memoria en las narrativas sobre los años setenta en Argentina”, de Ana Laura Noguera, levanta questões importantes sobre a memória e a História do Tempo Presente na Argentina. A autora aponta as discussões teórico metodológicas que articulam gênero e memória na história recente. Mostra a importância da história oral para a pesquisa em História das Mulheres e do Gênero. Destaca, também, a forma como homens e mulheres narram suas histórias de vida e o impacto historiográfico das diferentes histórias para a noção de agência.

Caroline Pereira Leal, no artigo “’Mais bela do que o sol, mais bela do que o céu’: representação feminina no discurso carnavalesco da Porto Alegre do início do século XX (1906-1914)”, nos leva de volta ao início do século passado para mostrar as tentativas de definir, nas elites e com repercussões duvidosas, como deveriam se comportar as mulheres nas festas de carnaval.

O artigo “Memória em disputa: Inah Costa e os desafios da história das mulheres artistas”, escrito por Rebecca Corrêa e Silva, discute a invisibilidade, as dificuldades e o impacto do gênero na vida das mulheres que atuam no campo da arte. Ela traz a história de uma artista que passou da pintura figurativa para a moderna e abstrata.

O único artigo que discute sexualidades dissidentes é o de Marina Leitão Mesquita, intitulado “Gênero, dissidência e tradição na (re)invenção da feminilidade em concursos de beleza gay”. Trata- -se de uma etnografia sobre concursos de beleza gay em Fortaleza, Ceará. A discussão sobre as hierarquias, formas de feminilidades aceitas, assim como a memória de momentos em que a polícia interferia, marcam a narrativa. A discussão sobre a “feminilidade espetacular”, como padrão de beleza, ajuda a questionar as configurações de gênero.

O artigo de María Laura Osta Vázquez, intitulado “Manos que mecen la cuna: las nodrizas uruguayas bajo el control del discurso médico en el siglo XIX”, mostra o fim de uma profissão assumida por muitas mulheres pobres, negras, mestiças e estrangeiras: as amas de leite. Na segunda metade do século XIX, o discurso médico passou a questionar as mulheres que entregavam seus filhos para amas de leite e a discutir a saúde e a moral dessas profissionais. Toda essa campanha foi feita pela imprensa e pelo discurso médico higienista que – em nome da redução da mortalidade infantil – passou a cobrar das mulheres o “amor materno”.

Temos a honra que encerrar este dossiê com a entrevista de Maria Odila Leite da Silva Dias, professora emérita da Universidade de São Paulo (USP). Autora, entre outros, do livro Quotidiano e Poder, que abriu caminhos para a história das mulheres no Brasil, focalizando mulheres pobres, escravizadas e forras nas suas lidas para prover a existência no início do século XIX, ela é responsável pela formação de pesquisadoras que trouxeram inúmeras contribuições para o campo da História das Mulheres, do gênero e das sexualidades dissidentes.

Boa leitura.

Notas

3. BRESCIANI, Maria Stella Martins (org.). A Mulher no Espaço Público. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 18, p. 7-8, ago./ set. 1989.

4. MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, Brasília, v. 32, n. 3, p. 725-744, set./dez. 2017

Joana Maria Pedro –  Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil; pós- doutora na França, na Université d’Avignon e, também, nos Estados Unidos, na Brown University; professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, SC Brasil. Coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), Florianópolis/SC, Brasil. Atuou como Presidenta da Associação Nacional de História (ANPUH), na gestão 2017-2019. orcid.org/0000-0001-5690-4859 E-mail: joanamaria.pedro@gmail.com

Pilar Domínguez Prats –  Doctora en Historia por la Universidad Complutense de Madrid (UCM), en Madrid, España. Profesora honorífica del área de Historia del Pensamiento Político y Movimientos Sociales de la Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, España. En la actualidad es investigadora del proyecto: Redes de Cooperación Interuniversitaria Canarias-Africa en Políticas de Igualdad desde metodologías colaborativas” y del Centro de Estudios y Difusión del Atlántico, CEDA. Socia fundadora del Seminario de Fuentes Orales de la Universidad Complutense de Madrid y del Instituto de Investigaciones Feministas de la UCM; presidenta de la Asociación Internacional de Historia Oral, IOHA (2008-2010) y miembro del Consejo de IOHA (2004 a 2012). orcid.org/0000-0002-8829-2508 E-mail: dominguezprats@gmail.com


PEDRO, Joana Maria; PRATS, Pilar Domínguez. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 47, n. 1, jan./ abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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Mundos do Trabalho / Cantareira / 2021

Cantareira Mundos do Trabalho 1

A tradição da temática do trabalho na historiografia não impediu que apenas após 18 anos da sua primeira edição, a Revista Cantareira trouxesse entre suas publicações o seu primeiro dossiê inteiramente dedicado ao tema da História do Trabalho. Esta ausência se torna ainda mais surpreendente quando nos deparamos com a grande procura de pesquisadoras e pesquisadores não só de todo o Brasil, como também de outras partes do globo. De fato, as pesquisas de História do Trabalho e dos Trabalhadores e Trabalhadoras nas últimas décadas vem cada vez mais ampliando seu escopo e seus debates, mostrando que a experiência do homem branco, adulto e operário, que por muito tempo figurou na historiografia como o trabalhador ideal, não é a experiência universal dos mundos do trabalho.

Com um número recorde de artigos submetidos e aprovados, os trabalhos deste Dossiê mostram uma História do Trabalho dinâmica, plural, e que extrapola os grandes centros urbanos e as fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo que os temas clássicos da História do Trabalho são revistos com novos olhares, abordagem e fontes, demonstrando a riqueza das pesquisas produzidas e a sua diversidade.

Refletindo os objetos discutidos pela sociedade atual, pesquisas abordando a convergência de classe, raça, gênero, identidade, orientação sexual aparecerem em diversos artigos do Dossiê. A ruptura dos paradigmas que segmentavam as investigações historiográficas entre trabalho e trabalhadores livres e não livres ajuda na formação de um complexo mosaico do Mundos do Trabalho. Dentro dessa seara, destacamos os artigos de Thompson Alves e Antônio Bispo, Ferreiros, “escravos operários” e metalúrgicos: trabalhadores negros e a metalurgia na cidade do Rio de Janeiro e na microrregião Sul Fluminense (Século XIX e XX) e de Karina Santos, Composição de trabalhadores na Fábrica de Ferro de Ipanema (1822-1842).

Para operacionalizar o rompimento da separação entre as análises sobre o trabalho livre e cativo, a ferramenta metodológica da interseccionalidade se mostra fundamental para pensar as complexidades do processamento da dominação e opressão de diversos grupos sociais dentro da classe trabalhadora. É o que podemos ver no artigo de Caroline Souza, Giovana Tardivo e Marina Haack, Localizando a mulher escravizada nos Mundos do Trabalho, bem como no de Caroline Mariano e Lígya de Souza, Mulheres úteis à sociedade: gênero e raça no mercado de trabalho na cidade de São Paulo (fim do século XIX e início do século XX), que mostram como a análise sobre o lugar social de mulheres escravizadas e os mundos do trabalho pode refinar a análise historiográfica. Ainda sobre a importância da interseccionalidade com o objetivo de pensar os trabalhadores, o artigo de João Gomes Junior, A “indústria bagaxa”: prostituição masculina e trabalho no Rio de Janeiro e na constituição da ordem burguesa aborda questões sobre a experiência de homens, trabalhadores sexuais que desviam do padrão heteronormativo, como parte formadora da classe trabalhadora carioca do início da República.

A utilização dos processos da Justiça do Trabalho emergiu como importantes fontes documentais há alguns anos e continuam rendendo pesquisas inovadoras: Tatiane Bartmann em Eles querem menos, elas querem mais: as reivindicações por trabalho na 1ª JCJ de Porto Alegre (1941-1945) e Vitória Abunahman, Trabalhadoras ou esposas? Um estudo sobre reclamações na Justiça do Trabalho de mulheres que trabalhavam para seus companheiros na década de 1950, trazem a luz as reivindicações das trabalhadoras, e Paulo Henrique Damião, A Justiça do Trabalho enquanto palco de disputas: entre estratégias e discursos, e Arthur Barros, Márcio Vilela, Fernanda Nunes, Marmelada de tomate: as relações de trabalho a partir do “sistema de parceria” na Fábrica Peixe (Pesqueira / PE), discutem as diversas estratégias e relações de trabalho a partir da instância judicial.

A cidade e a geografia nos mundos do trabalho se cruzam com diferentes fontes, temas e análises teórico-metodológicas, apresentando uma nova visão sobre o espaço urbano. Sob essa lente, podem ser lidos os trabalhos de Gabriel Marques Fernandes em A vida urbana em Tudo Bem (Arnaldo Jabor, 1978): a figuração dos “operários” durante a decomposição do “milagre” econômico brasileiro, de Amanda Guimarães da Silva em Lavadeiras na cidade: trabalho, cotidiano e doenças em Fortaleza (1900-1930), e de Aline Crunivel e Claudio Ribeiro em Memória, trabalho e cidade: contribuições para o debate contemporâneo sobre o lugar da classe trabalhadora.

Fora dos centros urbanos, a relação dos trabalhadores rurais, indígenas e migrantes com suas lideranças, com os empregadores e o Estado, suas lutas e representações, são temas dos artigos de Leandro Almeida, Os comunistas e os trabalhadores rurais no processo de radicalização da luta pela terra no pré-1964, de Idalina Freitas e Tatiana Santana, Entre campos e máquinas: histórias e memórias de trabalhadores da Usina Cinco Rios – Maracangalha, Bahia (1912-1950), e de Pedro Jardel Pereira, “A legião dos rejeitados”: trabalhadores migrantes retidos e marginalizados pela política de mão-de-obra em Montes Claros / MG, na década de 1930, e de Eduardo Henrique Gorobets Martins, As denúncias de trabalhadores indígenas do cuatequitl no códice Osuna durante a visita de Jerónimo de Valderrama na Nova Espanha.

Temas cânones dos estudos sobre o trabalho, como suas entidades representativas e seus discursos, o contato com o mundo da política, suas estratégias de luta e a organização burocrática, são discutidos sob novas perspectivas teóricas, metodológicas e bibliográficas nos artigos de Bruno Benevides, “Eu não tenho mais pátria!”: a primeira guerra mundial à luz da propaganda libertária de Angelo Bandoni, de Igor Pomini, As Jornadas de Maio de 1937, o antifascismo e o refluxo da Revolução Espanhola, de Eduard Esteban Moreno, Manifiestos políticos para la acción del movimiento obrero: Brasil y Colombia durante las primeras décadas del siglo XX, de Frederico Bartz, Os espaços da luta antifascista em Porto Alegre (1926-1937), de Pedro Cardoso, A atuação militar contra a greve do Porto de Santos em 1980, e de Guilherme Chagas, O corporativismo na construção do discurso da Revista Light (1928-1940).

Extrapolando os limites da História e da historiografia e nas suas interseções, o Dossiê também conta com contribuições de distintas áreas das Ciências Humanas e Sociais, o que mostra a importância do diálogo constante e como o tema do trabalho continua provocando discussões interdisciplinares sobre o sistema capitalista e os novos regimes de trabalho e explicação, de acordo com os artigos de Leonardo Kussler e Leonardo Van Leeuven, Da alienação em Marx à sociedade do cansaço em Han: fantasia e realidade dos trabalhadores precarizados, de Evandro Ribeiro Lomba, As estruturas históricas da formação para o trabalho no sistema capitalista e de Gustavo Portella Machado, Entre desemprego e freelance: a atual configuração do mundo do trabalho na cultura a partir da ocupação de produtores culturais como microempreendedores individuais. Ainda dentro dessa temática, este número também conta com a resenha de Regina Lucia Fernandes Albuquerque sobre o livro de Tom Slee, Uberização: a nova onda do trabalho precarizado.

Finalizando o Dossiê Mundos do Trabalho, apresentamos a entrevista concedida pelos professores Paulo Fontes (PPGH / UFRJ) e Victoria Basualdo (COCINET / FLACSO) para as organizadoras, Clarisse Pereira e Heliene Nagasava. Na conversa, os professores discutem suas formações acadêmicas, trajetórias de pesquisa, transformações no campo da história do trabalho e a importância do pensamento e da atuação dos historiadores, em especial os historiadores do trabalho e trabalhadores, fora dos muros da Universidade.

Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!

Clarisse Pereira – Mestra e licenciada em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolve pesquisa na área de História do Brasil Republicano, atuando principalmente no tema sobre trabalhadores rurais na ditadura civil-militar. Atualmente é doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense, com bolsa CAPES, e desde 2019 faz parte da Comissão Editorial da Revista Cantareira. E-mail: clarissepereira.snts@gmail.com

Heliene Nagasava – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV), pesquisadora do Laboratório de Estudos de História do Trabalho (LEHMT / UFRJ) e funcionária do Arquivo Nacional. E-mail: hnagasava@gmail.com


PEREIRA, Clarisse; NAGASAVA, Heliene. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.34, jan / jun, 2021. Acessar publicação original [DR]

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História da saúde e das doenças: instituições, discursos e relações de poder / História – Debates e Tendências / 2021

BARRIERE Professores da Faculdade de Medicina

A saúde e as doenças não podem ser pensadas como conceitos estanques, a complexidade que envolve o estar são ou doente tem uma relação direta sobre como as sociedades interpretam e assimilam esses dois estados. Assim, a conceituação também está envolvida nas relações de poder, nas disputas discursivas que dizem respeito aos diversos comportamentos referentes à multiplicidade de doenças existentes.

O saber médico precisa ser problematizado nos diversos contextos, possibilitando ver como os discursos se articulam e garantem a sua condição de existência. Neste sentido, as representações sociais sobre as doenças estarão diretamente relacionadas com os mecanismos de controle, definição e exclusão dos indivíduos em diferentes conjunturas históricas. Leia Mais

Paz en la República. Colombia, siglo xix | Carlos A. Camacho, Margarita O. Garrido e Daniel A. Guriérrez

Filosofia e Historia da Biologia 12
Margarita Garrido | Foto: LaVozDeMacondo |

SCOTT The common wind 16Este libro compilado es un esfuerzo muy pertinente por hacer la historia relevante para el presente. En medio de las controversias que han suscitado recientemente las negociaciones de paz con las farc y el eln, este grupo de historiadores se propone “enriquecer estos debates con el estudio de los periodos de paz decimononicos, con el fin de darle profundidad a la inmediatista mirada habitual” (p. 16). Ojala con mas frecuencia los historiadores nos animaramos a enriquecer el debate publico con una perspectiva de mas larga duracion, tan fundamental para la comprension de la coyuntura. Ademas de aportar profundidad historica, nos invitan a romper con la creencia generalizada de que la guerra ha sido una constante en la historia de Colombia. Para hacerlo, abordan el siglo xix, que repetidamente hemos llamado “el siglo de las guerras civiles”, y nos demuestran que no lo fue: afirman que, despues de 1839, cuando empieza la primera guerra civil propiamente dicha, hubo catorce anos de guerra y cien de paz. Los capitulos estudian las paces hechas tras cada una de las ocho guerras civiles del siglo xix y su conexion con el retorno posterior a la guerra. De esta manera, dirigen nuestra atencion a lo que ha sido mayoritariamente espacio negativo ante nuestros ojos, mas acostumbrados a ver la guerra.

A pesar de que el libro es sobre la paz, tambien nos ensena sobre las guerras civiles, pues la fluidez entre paz y guerra hace necesario estudiarlas atendiendo a las dos caras de la moneda. Cada capitulo explica las causas de una guerra (excepto el de Malcolm Deas, que aborda dos, correspondientes a 1885 y 1895), la forma como se negocio y alcanzo la paz, asi como las limitaciones de esta ultima que generaron la detonacion de una nueva guerra posteriormente. Los autores y autoras hacen enfasis en la heterogeneidad de las guerras, explicando en detalle las situaciones particulares que conllevaron a cada una de ellas y sus variaciones de region en region. La de los Supremos (1839-1842), estudiada por Luis Ervin Prado, no fue una: fueron una serie de levantamientos provinciales que tuvieron en comun un llamado a la federalizacion. La de 1851, abordada por Margarita Garrido, fue motivada por la abolicion de la esclavitud, pero tambien por la intervencion del Estado en asuntos de la Iglesia y de las provincias, asuntos que amenazaban la nocion del mundo y del orden social de los rebeldes. Leia Mais

Ciencia, lengua y cultura nacional. La transferencia de la ciencia del lenguaje em Colombia, 1867-1911 | Andrés Jimenez Ángel

Filosofia e Historia da Biologia 13
Andrés Jimenez Ángel | Foto: UR |

SCOTT The common wind 17Este libro se ocupa de la configuracion de la ciencia del lenguaje en Colombia desde 1867 —ano atado a las reformas educativas de los gobiernos del Olimpo radical y en el que se publico la primera edicion de la Gramática de la lengua latina de Miguel Antonio Caro y Rufino Jose Cuervo— hasta 1911 —fecha del deceso de Cuervo; Caro habia muerto en 1909—. Al insistir en el proceso productivo de la forma vernacula de un conocimiento tecnico con pretensiones universales, evita hacer enfasis en lo que se haya recibido de tradiciones intelectuales foraneas o valorar esa recepcion en los terminos del centro y la periferia. Asi, el principal valor del libro es que se concentra en la circulacion de un saber y los efectos de ese movimiento sobre el modo de ser de ese saber circulante.

Adicionalmente, el punto de vista de la circulacion asumido por Jimenez Angel nos permite desmitificar la unidad de los saberes para verlos en sus formas multiples, relativas a marcos espaciotemporales diversos. Gracias a ello, podemos enfatizar los aspectos locales del proceso y tambien dar a Europa un lugar mas adecuado en la vida intelectual de otros centros de produccion de conocimiento. Leia Mais

Soberanías fronterizas. Estados y capital en la colonización de Patagonia (Argentina y Chile, 1830-1922) | Albert Harambour

Filosofia e Historia da Biologia 14
Soberanías fronterizas | Detalhe de capa |

SCOTT The common wind 18Uno de los rasgos comunes en la historiografia sobre los procesos poscoloniales de formacion nacional en America Latina ha sido la nocion de la soberania como una fuerza civilizatoria encarnada en el estado,1 el cual se ha asumido a su vez como un aparato que se expande siguiendo una trayectoria centrifuga, absorbiendo gradualmente territorios y poblaciones por fuera de su control o resistentes al mismo. En esta lectura, el fracaso o exito de los estados se ha concebido frecuentemente como un efecto de su capacidad —o incapacidad— de extender su poder a la totalidad del territorio bajo su jurisdiccion, y de construir y sostener en el tiempo una identidad politica homogenea.

En contravia de esta nocion, Soberanías fronterizas. Estados y capital en la colonización de Patagonia (Argentina y Chile, 1830-1922) desplaza la atencion hacia los margenes del estado como epicentro que permite desentranar sus mitos fundacionales, logicas y efectos espaciotemporales. En un trabajo solido, sustentando en una variedad amplia de fuentes primarias, Alberto Harambour examina criticamente las dinamicas de expansion capitalista y construccion estatal en la Patagonia argentina y chilena durante el siglo xix y comienzos del xx. Leia Mais

Hacer la revolución. Guerrillas latino-americanas, de los años sesenta a la caída del Muro | Aldo Marchesi

Filosofia e Historia da Biologia 15
Aldo Marchesi | Foto: Brecha |

SCOTT The common wind 20Uno de los temas recurrentes en los estudios sobre la historia reciente de America Latina es la violencia politica de la segunda mitad del siglo xx. En particular, para el caso de los paises del Cono Sur, las reflexiones academicas en torno a las luchas sociales y politicas protagonizadas por distintos sectores y organizaciones armadas o civiles; la respuesta autoritaria de las dictaduras militares; sus respectivas consecuencias humanitarias; y los procesos de transicion politica hacia la democracia, han sido temas relevantes para el conjunto de las ciencias sociales de la region y del mundo. Pues bien, el libro del historiador uruguayo Aldo Marchesi, ganador del premio a “Mejor libro en Historia reciente y Memoria” de la Latin American Studies Association en 2020, nos presenta una version novedosa e integral sobre estas tematicas como resultado de su investigacion doctoral.

En el texto, el autor dibuja una geografia politica de la izquierda radical de los paises del Cono Sur a partir del trabajo riguroso con fuentes documentales y testimoniales que son utilizadas para presentar los distintos flujos estrategicos, biograficos e ideologicos de una cultura politica transnacional que fue construida y compartida por cuatro organizaciones armadas en el arco temporal comprendido por el estudio. Estas organizaciones fueron el Movimiento de Liberacion Nacional-Tupamaros (mlnt) uruguayo; el Ejercito de Liberacion Nacional (eln) boliviano; el Partido Revolucionario de los Trabajadores (prt) argentino y su estructura militar, el Ejercito Revolucionario del Pueblo (prterp); y el Movimiento de Izquierda Revolucionaria (mir) chileno. Leia Mais

Y a la vida por fin daremos todo… Memorias de las y los trabajadores y extrabajadores de la agroindustria de la palma de aceite en el Cesar, 1959-2018 | Centro Nacional de Memoria Histórica

Filosofia e Historia da Biologia 16
SMNH. Y a la vida por fin daremos todo… | Detalhe |

SCOTT The common wind 19Este libro es una reconstruccion colectiva de la memoria de las y los trabajadores y extrabajadores de la palma en el departamento del Cesar (Colombia) entre 1950 y 2018, donde hubo al menos 249 victimas que tuvieron relacion directa con la organizacion sindical. Las organizaciones que participan del informe son la Fundacion de Apoyo y Consolidacion Social para los desplazados por la Violencia en Colombia —fundesvic—, el Sindicato Nacional de Trabajadores de la Industria del Cultivo y Procesamiento de Aceites y Vegetales —sintraproaceites— y el Sindicato Nacional de Trabajadores de la Industria Agropecuaria —sintrainagro—.

Este ejercicio de memoria se llevo a cabo entre el 2017 y el 2018 y abarca seis decadas. Tuvo como trasfondo un conjunto de informacion proveniente de distintas tecnicas y fuentes: entrevistas, documentos personales de los afiliados a los sindicatos, talleres de memoria, prensa escrita, archivos institucionales, material secundario. Aunque es el primero que, desde el Centro Nacional de Memoria Historica (cnmh), tiene como eje central al sector palmero, la violencia antisindical ha sido abordada, a nivel de registro e investigacion, tanto por organizaciones no gubernamentales, como por entidades sindicales y academicos, desde hace ya al menos tres decadas en el pais.[1] Si bien el informe fue publicado por el cnmh en 2018, su lanzamiento publico no estuvo exento de polemica con la actual direccion del cnmh, en cabeza del historiador Ruben Dario Acevedo Carmona, teniendo lugar finalmente en la Universidad de los Andes, el 29 de mayo de 2019. En su momento, el portal La Silla Academica titulo el episodio como “la lucha de poder detras de la memoria”.[2] El capitulo introductorio del informe lleva por nombre “Siembra y ampliacion del cultivo de palma, conflictos laborales e inicios de la organizacion sindical”. Alli se describen los antecedentes de la llegada de la palma y el proceso social y politico de formacion de la organizacion sindical. El capitulo narra que antes de la llegada de la palma, en el Copey (norte del Cesar), habia cultivos de algodon, arroz, tabaco y sorgo, donde empresas como El Labrador s.a. y empresarios que vinieron de menos a mas en la region —tal es el caso de Alfonso Lozano Pinzon o Misael Carreno— jugaban un papel importante. A partir de relatos de exfuncionarios de una de las empresas formada en 1971, Palmeras de la Costa s.a., y de extrabajadores de Indupalma, se reconoce que el cultivo de palma comienza a entrar en San Alberto (sur del Cesar) entre 1958 y 1961 a traves de Agraria La Palma o Indupalma, y que su llegada, ademas de traer consigo “gentes de todas las regiones, facilita las primeras formas de organizacion de los trabajadores […] y la creacion del primer sindicato de Indupalma en 1963” (p. 39). Estos relatos dan cuenta del rol de los sindicatos en las huelgas de 1971 y 1977 y las distintas “acciones de presion” a Indupalma. Ademas, describen la institucionalidad comunitaria local impulsada por el activismo sindical, especialmente en San Alberto, a traves de la creacion de juntas comunales, comites de mujeres, comite de presos politicos, fondo de solidaridad, comite deportivo y creacion de barrios obreros como El Primero de Mayo (pp. 80-84). Leia Mais

Cultura y violencia: hacia una ética social del reconocimiento | Myriam Jimeno

Filosofia e Historia da Biologia 17
Myriam Jimeno (terceira, da esquerda à direita) | Foto: Agência de Notícias UNAL |

SCOTT The common wind 21Una reseña tradicional suele parecerse a un resumen analítico de la obra  en cuestión. Para el caso, aquí se referiría a la compilación de catorce artículos  sobre la violencia escritos por Myriam Jimeno entre 1996 y 2015. Los artículos  están organizados en cuatro partes que incluyen, cada una, aspectos sobre la  relación entre violencia, cultura, política y emociones. Si bien en el prólogo  Joanne Rappaport recomienda leer los artículos en orden cronológico y tomar el  concepto “configuración emotiva” para evidenciar cómo la autora fue evolucionando en su investigación, esta recomendación de la prologuista también tiene  intención pedagógica: mostrarles a los estudiantes que “la investigación es algo  que se desarrolla a través del tiempo y que nunca es algo aislado y puntual” (p. 8).

En lo metodológico, se destacan dos consideraciones, una inductiva y otra  deductiva. Sobre la primera, Jimeno subraya que la compilación de artículos  retoma la tradición antropológica de entender los fenómenos sociales a partir  de la comprensión que sobre ellos tienen los propios actores sociales. Luego de  tamizar estos relatos un investigador haría evidentes las regularidades detectadas. En la deductiva, se identifican algunos trabajos que han procurado relacionar el análisis sobre subjetividad y violencia con los macroprocesos políticos  o históricos. En este mismo enfoque se ubican los artículos de la tercera parte,  destacando entre ellos uno sobre el partido radical del siglo xix . Leia Mais

El mundo en movimiento. El concepto de revolución en Iberoamérica y el Atlántico norte (siglos xvii-xx) | Fabio Wasserman

Filosofia e Historia da Biologia 18
Fabio Wasserman | Foto: Ana López |

SCOTT The common wind 22En las ultimas dos decadas el examen de los conceptos politicos fundamentales ha sido un campo de estudio que sigue produciendo interesantes resultados.

A partir de la red Iberconceptos y la elaboracion del Diccionario político y social del mundo iberoamericano —que ya posee dos tomos—,1 se ha logrado examinar la importancia de una veintena de conceptos claves para comprender el devenir de los procesos sociopoliticos de diversos paises entre 1750 y 1870. Precisamente este libro, bajo la compilacion de Fabio Wasserman, amplia y enriquece esta linea investigativa centrando su mirada especificamente en el concepto “revolucion”.

Ademas, incorpora otros procesos de transformacion politica y social que antecedieron o sucedieron paralelamente a los desarrollados en Iberoamerica, tales como los ocurridos en Inglaterra, Francia, America del Norte y las Antillas Francesas. Leia Mais

História Social dos Sertões / Outros Tempos / 2021

SPIVAK Gayatri 1
Gayatri Spivak / Foto: Tweetar /

Outros Tempos v 18 n 31 1Pode o subalterno falar? Essa foi a questão formulada por Gayatri Spivak em artigo publicado em 19881 . A pergunta da professora e crítica literária indiana vem há décadas inspirando esforços na direção da descolonização da produção do conhecimento. Eivada pelo olhar certeiro da autora, a incômoda indagação conectou-se a inúmeros debates intelectuais das ciências humanas nas últimas décadas, atribuindo amplitude e autoridade ao ponto de vista feminino de uma intelectual egressa de uma ex-colônia inglesa, que colocou na berlinda o pensamento social e a teoria crítica ocidental. Podemos questionar, seguindo a reflexão de Spivak, se é válido auscultar personagens e territorialidades subalternizadas utilizando somente o arcabouço teórico-analítico oriundo de pensadores europeus entronados em instituições historicamente identificadas com diversas formas de colonialismo.

A provocação levantada pela autora ajudou a fortalecer a tendência do deslocamento do olhar acadêmico do centro para as periferias, do Norte para o Sul global, das nações centrais do capitalismo para suas margens. Essa tem sido a contribuição dos estudos pós-coloniais e decoloniais, que vem validando a instrumentalização de uma utensilagem analítica calibrada para entender os silêncios e os silenciamentos dos subalternizados, de olhos fitos nas especificidades de seus espaços de criação e reprodução sociocultural. Tal debate vem igualmente influenciando pesquisas no Brasil, especialmente no campo das humanidades. Mais que inserir os “vencidos” nos estudos acadêmicos, é preciso investigar e produzir outras epistemologias, pensadas a partir das margens. A História Social dos Sertões se insere nesses esforços, posicionando o foco em processos históricos de um Brasil distante dos grandes centros urbanos, jungidos à mesma lógica global que produz riquezas e multiplica desigualdades. Cumpre notar que a temática “sertaneja” vem sendo discutida grandemente em universidades situadas em cidades pequenas e médias, que foram contempladas no processo de interiorização de instituições de ensino superior em tempos de governos democráticos populares.

O sertão, antigo e polissêmico, historicamente observado na arte, na literatura, na música e na imagética nacional como o avesso da modernidade, tem retrucado o olhar na direção de seus intérpretes. A dita réplica pode ser observada, por exemplo, na obra de Sérvulo Roberto, artista plástico amazonense residente em Codó – MA há 30 anos, que forjou uma rica galeria temática, na qual podem ser encontradas as quebradeiras de coco babaçu, cenas de festejos locais, imagens da religiosidade popular, tudo criado em seu ateliê no Bairro São Pedro, em Codó. Destacam-se em seu repertório quadros com narrativas visuais dos mundos do trabalho, como no caso da tela “Bem perto”, produzida em 2019, que serve de capa para o presente dossiê. A obra apresenta um belo panorama em três planos, com uma quebradeira de coco debaixo das folhagens de um babaçual, ladeada por diversos homens, mulheres e crianças negras com cestos de palha na cabeça, que miram conjuntamente uma grande cidade, recoberta por um imenso sol ao fundo. Na cena, o sertão dos cocais observa a urbe, dando a impressão de que as palmeiras e as fileiras de trabalhadores empurram a metrópole, que se resguarda como uma fortaleza de prédios esguios e enfileirados. Os olhares dos personagens, segundo o artista, carregam esperanças de melhoria “bem perto” da cidade, mas a metrópole não se mostra receptiva, disposta em terceiro plano encurralada pelos olhares dos camponeses.

A urbe apresenta-se sitiada pelos camponeses. As possibilidades interpretativas da arte reposicionam o cotidiano da migração sazonal de trabalhadores pobres oriundos da região dos cocais, alvos de grave espoliação, que buscam em centros urbanos e também em grandes propriedades rurais melhores possibilidades de sobrevivência. Sob os olhos de Sérvulo Roberto, o sertão espreita a cidade.

É por esse olhar investigativo dos sertanejos, atentos ao mundo circundante do sertão, que o presente dossiê traz artigos que vão ao encontro da inquietação do artista. Textos produzidos por autores e autoras que manifestam diversas nuances da polissemia dos estudos sobre os sertões, contemplados em suas composições históricas e discursivas. Abre a edição da Revista Outros Tempos a pesquisa de José Reinaldo Miranda de Sousa, intitulada Codó: uma África sertaneja, que reflete acerca das dimensões e contribuições dos africanos na cidade de Codó, experiência que desenha no cenário dessa cidade aspectos identitários de uma África em terras maranhenses.

Logo em seguida, temos a possibilidade de encontrar o sertão dos homens no texto de Jakson dos Santos Ribeiro, intitulado, Performances masculinas em cena: o homem público da Princesa do Sertão à luz da imprensa caxiense, em que o autor problematiza as formas de ser e estar, dando possiblidades para compreender as masculinidades que se encontram e desencontram em discursos que circularam na imprensa da cidade de Caxias – MA durante a Primeira República.

Entre os textos desse dossiê também podem ser observados os sertões do período colonial, em artigo de autoria de Samir Lola Roland, denominado Sesmarias, ocupação e conflitos de terra nos sertões do Maranhão e Piauí colonial (1700-1759), em que o autor reflete acerca das disputas num interior atravessado pelos interesses de fazendeiros que esbulhavam terras indígenas seguindo os caminhos dos rios. A dita espacialidade servia de palco para constituição das experiências dos interesses do Estado e do cotidiano de exploradores adventícios, que buscavam ampliar seus domínios nos sertões do Maranhão e do Piauí.

Ainda na rota dos conflitos, encontramos outras páginas de história retratadas no texto de Anderson Coelho da Rocha, com o título: Nos sertões dos Oitocentos: escravidão, liberdade e criminalidade nos sertões da Província do Ceará (1830-1888). O autor posiciona as tensões no âmbito da sobrevivência e das relações interpessoais entre populações sertanejas, classificadas à época como “gente da pior espécie”, atravessadas pelo viés racista e pelas políticas de combate à vadiagem, que acometiam grandemente populações pobres e não-brancas, livres ou escravizadas.

Populações pobres interioranas também aparecem nas reflexões de Janille Campos Maia, que devassa em sua pesquisa um sertão de muitos conflitos e dificuldades de sobrevivência, piorados pela ocorrência da grande seca de 1877-1879. A autora trata da migração de trabalhadores do interior do Ceará em demanda da capital da província. Em Exilados do sertão: migração cearense na seca de 1877, Janille revisita tema já bastante discutido na historiografia dos sertões, adensando informações sobre o cotidiano de personagens desvalidos durante os horrores da estiagem, com foco nas ações e políticas de socorros públicos na cidade de Fortaleza.

A ambiência de pobreza e rarefeitas políticas de assistência historicamente contribuíram para maximizar a ocorrência de surtos epidêmicos, presentes nas narrativas sertanejas e em suas memórias da morte. Algumas das interpretações desses sertões adoecidos aparecem nos apontamentos realizados por Maria de Fátima Morais Pinho e Jucieldo Ferreira Alexandre, autores do texto Em toda parte só se ouvia falar em morte: a gripe espanhola no Cariri (1918-1919), cujas reflexões discorrem sobre os enfrentamentos do período da grave epidemia de gripe em terras caririenses.

Na sequência do dossiê, esse sertão de muitos sentidos também nos mostra o lugar do futebol, através das reflexões realizadas pelos autores Francisco Demétrius Luciano Caldas, Álvaro Rego Millen Neto e Bruno Otávio de Lacerda Abrahão, com o texto intitulado O futebol no sertão nordestino brasileiro: o torneio BAPE em Juazeiro e Petrolina na década de 1990, em que é possível encontrar um time de futebol protagonizando momentos relevantes para as sociabilidades locais.

Momentos de encontro e descontração apontam possibilidades de investigação para além das narrativas da pobreza que marcam as paisagens sertanejas. Nesse direcionamento, também há espaço para pensar um sertão conectado com tendências globais, que projetava um cenário de crescimento econômico através da indústria. Este é o tema central no texto de Naudiney de Castro Gonçalves, que aborda as facetas de Antonio Linard: um industrial no sertão do Cariri cearense, personagem que introduziu mudanças perceptíveis na economia local a partir da inserção de novas tecnologias, capazes de criar um movimento significativo de transformações socioeconômicas.

No campo das artes, o dossiê é contemplado por um interessante estudo de caso de Jonas Rodrigues de Moraes, intitulado História, memórias, oralidades, cultura e artes na Baixada Maranhense, importante levantamento das manifestações culturais de mestres e grupos populares nas cidades de Pinheiro, São Bento, Santa Helena e Presidente Sarney. A pesquisa fez uso de técnicas etnográficas e da história oral, cujos resultados estimularam gestores públicos locais a pensarem as possibilidades de um mapeamento cultural de seus respectivos municípios.

Por fim, mas não menos importante, este dossiê segue com a entrevista de José Carlos Aragão Silva, cujas experiências docentes servem de bússola para pensarmos as problemáticas enfrentadas por profissionais de História nos sertões maranhenses. Professor do Colegiado de Ciências Humanas / História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Codó, o entrevistado vem trabalhando na formação de profissionais da educação básica atuantes em áreas rurais e em municípios do interior. Aragão nos convida a refletir sobre as agências desses docentes, que podem servir de farol para pensarmos a formação e a importantíssima atuação de professores fora dos grandes centros.

Como se vê, as páginas deste número da Revista Outros Tempos são compostas por diversas interpretações dos sertões, pluridimensionais e complexas. Por isso, esperamos que a audiência do dossiê possa apreciar e encontrar nos estudos que seguem inspirações e instrumentos para refletir sobre a temática, repleta de narrativas, experiências e sentidos. Boa leitura!

Antonio Alexandre Isidio Cardoso – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP Professor da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Campus Codó Codó, Maranhão, Brasil. E-mail: alexandre.antonio@ufma.br

JaKson dos Santos Ribeiro – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará – UFPA Professor da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, Campus Caxias Caxias, Maranhão, Brasil. E-mail: noskcajzaionnel@gmail.com

Jonas Rodrigues de Moraes – Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP Professor da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Campus Codó Codó, Maranhão, Brasil. E-mail: jonasacroa@yahoo.com.br

Os organizadores


CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio; RIBEIRO, Jakson dos Santos; MORAES, Jonas Rodrigues de. O Sertão à espreita (Apresentação). Outros Tempos, Maranhão, v. 18, n. 31, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Caliandra | ANPUH-GO | 2021

Caliandra

Caliandra – Revista de História da ANPUH GO (Goiânia, 2021-) foi criada para fortalecer um processo de construção coletiva de conhecimento que já vem se realizando com reconhecida qualidade no estado. O periódico tem a intenção de participar desse esforço e ampliar possibilidades de divulgação científica, numa perspectiva plural e democrática.

Para isso, a revista foi pensada a partir de inúmeras sugestões, através de reuniões com membros da diretoria, coordenações de Grupos de Trabalho (GTs) e consulta aos filiados e filiadas, utilizando-se de formulários virtuais. Neste percurso, fizemos uma primeira consulta para coletar sugestões de nomes para o periódico. Numa segunda etapa, disponibilizamos as sugestões apresentadas e o nome mais votado foi esse que agora intitula a revista.

CALIANDRA, conforme o autor da sugestão, é o nome de uma flor típica do cerrado que representa práticas e vivências plurais. Essa é a intenção desse espaço, para o qual contaremos com um conselho editorial composto por pessoas de diferentes instituições do estado e do país. A equipe editorial estará assim composta: Kênia Érica Gusmão Medeiros e Cristiano Nicolini, como editores chefes; Álvaro Ribeiro Regiani, Ana Carolina Eiras Coelho Soares, Eliane Martins de Freitas, Ricardo Lenard Alves e Thais Alves Marinho, como editores científicos.

A Caliandra – Revista de História da ANPUH GO pretende ser um espaço amplo de discussão acadêmica de temas históricos. Tem como objetivo a publicação de produções originais resultantes de pesquisa científica.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre.

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Fronteiras Étnicas e Conflitos Sociais no Rio Madeira / Canoa do Tempo / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 29
Rio Madeira | Foto: Santo Antônio Energia |

Os artigos que compõem o presente dossiê articulam-se a partir de duas dimensões: o eixo dos encontros e confrontos entre grupos étnicos distintos em um contexto de avanço do extrativismo da borracha no sentido dos altos rios; a dimensão conflitiva, marcada por estratégias de resistências e formas de agenciamento que permeavam a vida dos múltiplos agentes envolvidos.

São investigações sobre a história social na região do rio Madeira, área situada ao Sul do Estado do Amazonas, que abarcam um período que vai de meados do século XIX a meados do século XX. Todos os textos vinculam-se a ideia de construção de uma fronteira étnica1 reveladora das complexas teias de alianças e das múltiplas relações de conflito que atravessaram as histórias dos grupos sociais envolvidos. Destaca-se ainda o fato de que as mais recentes pesquisas no campo da história e das ciências sociais na Amazônia têm adotado como eixo articulador de temas e problemas de investigação os rios2 que compõem a bacia hidrográfica da região. Aparentemente, não há distinção entre as novas pesquisas e o clássico trabalho de Leandro Tocantins. Entretanto, hoje os rios emergem como uma unidade política de reflexão e mobilização, marcada por situações sociais que redefinem as modalidades de percepção, pois estão relacionadas a uma tomada de consciência ambiental.3

Embora esteja ligado a um dado natural, o que está em jogo na atualidade é a compreensão sócio-histórica das transformações pelas quais os povos que vivem nesses rios vêm passando, certamente como resultado de suas próprias ações, bem como a busca do entendimento das estratégias de dominação desenvolvidas pelos aparelhos burocráticos de poder ligados a contextos mais amplos. Trata-se de se estabelecer relações entre contextos locais e as dinâmicas mais ampliadas do capitalismo global, evitando-se, portanto, abordagens de caráter regional, desvinculadas dos elementos transnacionais que ligam a história da Amazônia ao sistema mundo.

Essa é abordagem proposta por Antônio Alexandre Isídio Cardoso ao problematizar as relações que se estabelecem na fronteira étnica formada por povos indígenas, operários e engenheiros de diversas origens étnicas e sociais no contexto de construção da rodovia Madeira-Mamoré. Recuperando os relatos de Ernesto Matoso Maia Forte, secretário da Comissão Morsing, Cardoso situa os diversos momentos em que os encontros de alteridade entre Mundurucu, Mura, Acanga-Piranga e os adventícios exploradores do rio, se deram. Tensões, conflitos e também múltiplas possibilidades de agência permeavam as relações sociais entre esses múltiplos agentes.

Essa vertente analítica também foi explorada pelo texto de Jorge Oliveira Campos ao investigar o avanço da frente de expansão de comerciantes e seringalistas sobre os territórios étnicos dos índios Parintintin desde meados do século XIX. A sanha capitalista de acesso aos recursos naturais que estão dentro dos caminhos da guerra dos Kawaiba, transforma esses povos indígenas e alvos privilegiados de ataques e correrias. A estratégia Parintintin de fazer a guerra mantem-se intacta por toda segunda metade do Oitocentos e adentra os anos iniciais do século XX.

Conforme demonstrado por Jordeanes Araújo, os Parintintin passaram a adotar uma nova estratégia etnopolítica a partir dos movimentos de aproximação e “pacificação” entabuladas pelo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais” (SPILTN), tendo como principal mediador o mais conhecido e respeitado indigenista atuando no Brasil à época, Curt Nimuendajú. A parir de 1921, pequenos grupos foram se aproximando dos barracões de Manoel de Souza Lobo, um dos mais destacados seringalistas da região do médio e alto Madeira, e estabelecendo relações de trabalho e sociabilidades com os moradores do seringal Três Casas.

Vanice Siqueira, Alik Nascimento e Letícia Pereira abordam as dinâmicas históricas e territoriais dos índios Mura na região do médio e baixo Madeira. Remontando aos conflitos do século XVIII, as autoras(es) recuperam a forma como para os índios Mura a fronteira étnica foi sendo redefinida. Das guerras contra a dominação europeia na região do interflúvio, passando pela debatida redução dos Mura e o processo de “pacificação” até o retorno dos conflitos já contra as forças imperiais no período da cabanagem, os Mura foram historicamente definindo espaços de resistências e formas de apropriação das relações étnicas.

O processo de esbulho e intrusão dos territórios étnicos no rio Madeira segue no século XX, gerando tensões e conflitos nas áreas de coleta de castanha. Dário Duarte e Davi Leal recuperam essa dimensão para o rio Anitinga, município de Manicoré, a partir da reveladora trajetória de Carolina Rosalina de Oliveira, índia Mundurucu, que liderou uma revolta contra Hélio Rego e Raimundo Avelino, dois comerciantes locais que intentaram intrusar as terras da comunidade. A disputar ganhou as páginas dos grandes jornais do Estado, gerou uma interessante documentação no SPI e chegou ao conhecimento do presidente Juscelino Kubitscheck quando da sua passagem por Manaus em 1956.

Os textos confluem, portanto, para desvelar aspectos muitas vezes insuspeitos do processo de construção política das relações de alteridade, em um contexto histórico fortemente impactado por forças econômicas exógenas que haviam se vinculados às correntes mercantis e que passaram a adentrar a região do rio Madeira em meados do Oitocentos.

Referências

ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. Seringueiros, Caçadores e Agricultores: trabalhadores do rio Muru (1970-1990). São Paulo: PUC-Dissertação de Mestrado, 1995.

BARAÚNA, Gláucia Maria Quintino. As políticas governamentais que afetam as “comunidades ribeirinhas” no municipio de Humaitá- Am, rio Madeira. In: ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Conflitos Sociais no Complexo Madeira. Manaus: UEA edições, 2009.

BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2000.

DAVIDSON, David M. “Rivers and Empires: The Madeira Route and the Incorporation of the Brazilian Far West, 1737-1808, Ph.D. diss, Yale Univ. 1979;

MENEZES, Elieyd. Conflitos socioambientais e transformações sociais em Novo Airão. In: ALMEIDA, Alfredo W. B. de. (Org). Mobilizações Étnicas e Transformações Sociais no Rio Negro. Manaus, UEA edições, 2010.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1973.

Davi Avelino Leal


LEAL, Davi Avelino Apresentação. Canoa do Tempo. Manaus, v.13, n.1, p.3-6, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF]. Acessar publicação original [IF].

Fascismos (?): análises do integralismo lusitano e da ação integralista brasileira (1914-1937) | Felipe Cazetta

Filosofia e Historia da Biologia 24
Fascismos… | Detalhe de capa |

SCOTT The common wind 24En la amplíssima literatura dedicada al anàlisis del fascismo, no faltan los trabajos comparativos. A título de ejemplo pueden citarse a Linz, Poulantzas, Nolte. Payne, Levy, Felice y se puede recordar que uno de los primeros congresos, después de la revolución de los claveles, que reunieron a los historiadores portugueses en 1986 [2], recibió las contribuciones de sus colegas (Woolf, Payne, Tusell, Paxton, Gentile, Fischer.Galati. Kühnl….) de otros países que precisamente se habían dedicado a esta labor comparativa. Pero, salvo alguna excepción [3] no abundan las investigaciones que contrastan la evolución del ideario fascista entre Europa y América Latina, y aún menos, estrictamente entre Brasil y Portugal. Por lo tanto, esta ausencia que ahora queda cubierta, sería una primera razón para poner de relieve el valor de la obra de Felipe Acevedo Cazetta

Una segunda razón para resaltar este trabajo es que el realizar esta comparación, permite iluminar con mayor intensidad determinados aspectos, que si solo se hiciera un examen nacional no saldrían a la luz. Una tercera razón es la coherencia y el rigor de este libro que es el resultado adaptado de una tesis presentada en el año 2016

El autor de este libro acierta con su título “Fascismos”, por cuanto como más se profundiza en el análisis del fascismo más se descubre que, sobre un fondo comùn, aparece su carácter heteróclito. Así cada vez está más claro que hubo variadas expresiones fascistas influenciadas por las evoluciones económicas, sociales, políticas y culturales de cada estado, que aun dentro de un mismo país, estas expresiones tenían connotaciones diversas y que fueron adaptando su discurso en las diferentes fases que vivieron. Este es el caso del integralismo lusitano y de su correspondiente brasileño. No solo hubo organizaciones diversas sino dentro de ellas, discursos relativamente heterogéneos, que de todos modos alimentaban un tronco común. Descubrir este tronco común y al mismo tiempo ser sensible a las diferencias no es tarea fácil. Esto es lo que hace esta publicación

Esta característica se pone de manifiesto en este libro por cuanto su principal óptica es la de hacer un análisis teórico doctrinario de los fascismos brasileño y portugués y ver cuales son sus principales similitudes y diferencias y sus mutuas influencias. Para concretar este objetivo, el autor recorre a explicar sintéticamente las biografías de los principales líderes, a estudiar detalladamente sus discursos y publicaciones y a rastrear las referencias que se hacían mutuamente, en sus periódicos y revistas, donde destacan Naçao Portuguesa y América Brasileira

Viajes, contactos, noticias, artículos compartidos y alabanzas mutuas prueban que el Integralismo Lusitano y el Nacional Sindicalismo de este país no estaban tan lejos de la Acçao Integralista Brasileira y aun de la Acçao Imperial Patrianovista Brasileira. Durante un cierto tiempo bebían unos de otros y encontraban una común inspiración en Maurras y el corporativismo que la Iglesia católica preconizaba desde la encíclica Rerum Novarum y que la Qudragesimo Anno de Pio XII reafirmó en 1931. También admiraban los avances de Mussolini en Italia. En cambio, no deja de ser sorprendente que casi no se encuentren referencias a los autores y líderes fascistas españoles o al rumano Manoilescu que fue uno de los divulgadores del corporativismo más conocido en Europa en los años treinta. Parece evidente que la lusofonia y un pasado comùn entre Brasil y Portugal debió jugar un positivo y contradictorio papel entre aquellos movimientos

Contradictorio, porque la afirmación nacionalista y su fijación por reconstruir la historia, propias de estas posiciones, les llevaban a ensalzar la época imperial de Portugal y su dominio sobre Brasil. De ahí que como Cazetta ilustra, algunos líderes brasileiros oscilasen entre la lusofilia y la lusofobia. Pudo más la primera y por lo que parece las relaciones fueron estrechas y positivas. Queda por ahora sin responder la pregunta de hasta que punto estas relaciones fueron favorecidas por los emigrantes portugueses en Brasil y por la propaganda que el Estado Novo hacía en este país [4]. De todos modos, ¿que tenían en común los integralismos brasileño y portugués y sus líderes? En primer lugar, según Cazetta, comparten un pasado literario y hasta cierto punto elitista. Hubiera sido interesante profundizar en el primero ya que el modernismo [5] artístico y literario fue predominante en aquella época y hubiera podido dar algunas claves para entender mejor los origenes culturales de aquellos líderes y de sus expresiones fascistas. No deja de ser curioso que algunos de ellos compartan estudios jurìdicos en las facultades de derecho de Coïmbra y de Recife y Sao Paulo y que allí se forme una identidad de grupo. En el caso portuguès no deja de ser sorprendente que autores tan diferentes como Herculano, Garrett y Antero de Quental sean los referentes anteriores del naciente integralismo

En segundo lugar, ambos movimientos comparten su crítica al liberalismo y a los regímenes parlamentarios a los que adjudican todos los males históricos y reaccionan contra el comunismo. Dios. Patria y Familia podría ser el lema que les une en una concepción tradicionalista que tratan de justificar con una visión histórica peculiar que ellos reconstruyen a su manera. Esta visión les lleva hasta la época medieval en la que florecían organicismo y corporativismo, que constituyen sus fundamentos organizativos para la sociedad que se proponen construir. Un estado fuerte, con ansias expansionistas y centralizado políticamente, pero que otorga poderes administrativos a los municipios les parece ser la mejor fórmula de gobierno. Monárquicos convencidos en su origen, algunos aceptan un cierto republicanismo que no caiga en los defectos de las denunciadas constituciones de 1891 en Brasil y del régimen republicano portugués de 1910

La descripción de estas características es una parte muy substantiva de este libro, que a veces se hace repetitiva como cuando se alarga la presentación del ideario Maurrasiano. Era casi inevitable, ya que, a pesar de pequeñas matizaciones ligadas a itinerarios personales, las expresiones doctrinarias de estas dos corrientes fascistas se parecen y no brillan por su originalidad. Quizás, hubiera sido útil dedicar más espacio a explicar su articulación con el contexto cronológico y politico de cada país. Esto hubiera facilitado la tarea de los potenciales lectores de los dos países. Los brasileños no conocen muy bien la evolución política de Portugal de después de la primera guerra mundial y al revés, no muchos portugueses saben las vicisitudes de la vida política brasileña

Igualmente, si se hubiesen caracterizado mejor a las organizaciones (fuerza, afiliados, modos de organización interna, actividades externas, …) se habría podido pasar a otros niveles de interpretación [6]. Pero esto se escapa a los objetivos del trabajo. El cual hace avanzar en el conocimiento de dos movimientos protofacistas en sus inicios y más declaradamente fascistas en sus respectivas maduraciones, en dos países, tan lejanos y cercanos, como Brasil Y Portugal

Igualmente contribuye a comprender mejor sus relaciones y mutuas influencias, Abre así un estimulante campo, relativamente inexplorado, que hay que esperar sea cultivado por otros investigadores. En cualquier caso, permite sugerir que las expresiones fascistas en Brasil, como en el caso de Mejico [7], no fueron meras copias o mimetismos de lo que sucedía en Europa

Tuvieron sus rasgos específicos. En este sentido, con esta publicación, se da un paso adelante con respecto a las consideraciones que formulaba Helgio Trindade [8] hace casi cuarenta años atrás

Por fin, para finalizar esta nota de lectura hay que constatar como lo hace Felipe Cazetta que en los últimos tiempos los movimientos y las posiciones de extrema derecha han aumentado no solo en su presencia en gobiernos y administraciones en todo el mundo sino también en las practicas cotidianas de muchos ciudadanos y compartir con el, su preocupación por este crecimiento. Conocer mejor sus origenes y despliegues ideológicos se convierte así en una manera de empezar a combatirlo. Es lo que hace este libro que ahora se recomienda

Notas

2. AA.VV. (1987) O estado Novo. Das origens ao fim da dictadura. 1926-1959. Lisboa Ed. Fragmentos. II Vol

3. Larsen, S.U. (Ed.) (2001). Fascism outside europe. N.Y. Columbia University Press7

4. Paulo.E. (2000 ) Aquí tambem é Portugal: a colónia portuguesa no Brasil e o Salazarismo. Coimbra, Quarteto

5. Griffin,R. (2003) Modernism anf fascism. The sense of a beguining under Mussolini and Hitler. N.Y. Palgrave Mac-Millan.

6. Para una interpretación comparativa de las politicas sociales de los fascismos en Portugal, Itàlia, España y Alemania ver Estivill. J. (2020) Europa nas trevas. As politicas sociais nos fascismos. Lisboa Universidad Nova de Lisboa

7. Meyer, J. (1977) Le sinarquisme: Un mouvement fasciste Mexicain. Paris. Ed. Hachette

8. Trindade, H.(1982) El tema del fascismo en America Latina, Revista de Estudios Politicos n. 50

Jordi Estivill – Universidade de Barcelona – Espanha. E-mail: jordi_estivill@hotmail.com


CAZETTA, Felipe. Fascismos (?): análises do integralismo lusitano e da ação integralista brasileira (1914-1937). Jundiaí: Paco editorial, 2019. Resenha de: ESTEVILL, Jordi. Caminhos da História. Montes Claros, v.26, n.1, p.241-244, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF]

Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica / Almanack / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 32
Fronteira do Brasil com a Venezuela | Foto: Poder 360 |

As fronteiras e as relações transfronteiriças nas sociedades ibero-americanas, tema deste dossiê da revista Almanack, coloca em evidência algumas dificuldades no campo dos estudos históricos que sobre elese debruçam. Primeiro, o caráter polissêmico do próprio conceito de fronteira, principalmente quanto se tem em conta seu uso para diferentes objetos, situações e temporalidades, e sua relação com outros conceitos igualmente importantes para o estudo do espaço, como paisagem e território. Segundo, o recorte interdisciplinar em sua abordagem, tendo em vista as substanciais contribuições da outras ciências sociais, como a geografia e a antropologia, para seu estudo. Por fim, a ampla produção propriamente historiográfica que trata sobre os espaços concebidos como “fronteiras”, seja em relação ao período colonial ou ao nacional, entendidas como confins, limites territoriais, espaços lindeiros ou como zonas de expansão, de mobilidades, circulações, encontros e confrontos socioculturais.

O estudo das fronteiras, seja para os impérios modernos, seja para os Estados Nacionais a partir do XIX, ocupou uma parcela importante da produção historiográfica sobre a América ibérica. A própria montagem das sociedades coloniais no continente põe em relevo a vigência de operações de inclusão e exclusão responsáveis pela delimitação de fronteiras espaciais, culturais, políticas e econômicas. As revoluções de independência e os processos de construção dos Estados Nacionais, oriundos da dissolução dos impérios ibéricos, marcam novos projetos políticos de conhecimento e de controle dos espaços; desse modo, o discurso sobre os limites da nação assume papel de relevo nas projeções de futuro para os novos países e na formulação de ações concretas visando a “territorialização do Estado” [3].

Como dito anteriormente, esse dossiê não compreende somente as abordagens sobre fronteira, mas também propõe a discussão sobre relações transfronteiriças, entendidas como aquelas que vinculavam, de diferentes formas, populações, redes econômicas, discussões políticas e circulações de informação entre espaços imperiais ou nacionais confinantes. De modo geral, os estudos sobre as fronteiras internacionais foram produzidos nos marcos das histórias diplomáticas, valorizando-se as narrativas de constituição das territorialidades e as relações entre as esferas centrais dos poderes monárquicos e nacionais nas negociações sobre as demarcações de limites no espaço americano. De outro lado, as histórias de corte militar, destacando guerras e enfrentamentos nas zonas de litígio, também trouxeram importantes contribuições para as escritas historiográficas sobre as fronteiras. No entanto, pode-se perceber um deslocamento da discussão nesse campo, de um “paradigma estatal” no estudo das fronteiras para uma história mais atenta para as dinâmicas locais – os fluxos, as conexões, os arranjos e as disputas entre populações que habitam espaços fronteiriços – ou para a interação entre local e global noslimites territoriais [4]. É possível, além do mais, constatar uma produção crescente sobre fronteiras ibero-americanas a partir de recortes da história social e cultural, colocando em evidência a análise de fenômenos de mestiçagens e de intermediações em zonas de fronteira, entendidas muito mais como espaços de encontros e confrontos envolvendo múltiplos atores, e não apenas como limites territoriais de soberanias políticas [5].

Esse reposicionamento dos estudos sobre fronteiras não significa desconsiderar as tensões e condicionantes das relações internacionais que marcaram esses espaços, mas colocar em evidência conflitos e colaborações que também envolviam as populações fronteiriças, os sentidos de fronteira construídos por elas, e o impacto dessa dinâmica local na gestão das fronteiras a partir dos centros políticos [6].As interações entre habitantes nos espaços fronteiriços não devem ser compreendidas somente a partir das relações mantidas pelos Impérios modernos e pelos Estados Nacionais, mas também a partir do que Renaud Morieux definiu como uma “diplomacia vista de baixo”, focada na compreensão dos acordos construídos pelas comunidades fronteiriças [7]. Por outro lado, deve-se ter em contaos vínculos entre fronteiras internas e externas, no qual se tecem conexões entre esses espaços limítrofes e os centros administrativos internos, relações essas viabilizadas por diferentes mecanismos e agentes que concretizam as mediações entre poderes locais e centrais [8].

Os textos selecionados para este dossiê cobrem o recorte cronológico do final do século XVII à segunda metade do XIX, tratando sob diferentes enfoques as fronteiras internas e externas da América de colonização ibérica e posteriormente das nações latino-americanas. De modo geral, os trabalhos valorizam as relações, conflituosas ou colaborativas, de aproximações ou atritos, mantidas pelas populações que habitavam os espaços de fronteira. Outra questão levantada pelos trabalhos deste dossiê é a mediação política e econômica entre autoridades locais e poderes centrais, bem como a importância dos sujeitos que atuavam como intermediários entre os diferentes grupos presentes nas fronteiras.

No primeiro artigo, a historiadora francesa Soizic Croguennec aborda a multiplicidade de relações e identidades acionadas por sujeitos que habitavam as fronteiras da Lousiana e da Flórida, durante a fase de incorporação dessas colônias no Império espanhol, do final da Guerra dos Sete Anos até o começo do século XIX. Esse espaço constituía uma zona particularmente importante nas disputas imperiais entre espanhóis, britânicos e franceses na América do Norte e no Golfo do México. A partir da documentação judicial espanhola, principalmente sobre soldados e indígenas, a autora analisa como os sujeitos fronteiriços tinham de lidar não somente com as pressões geopolíticas mais amplas, mas igualmente construir suas próprias estratégias individuais e coletivas de sobrevivência e integração nesse espaço, tomando parte de um jogo fluido de alianças e conflitos, com demarcações imprecisas entre o legal e o ilegal, que também influenciou na conformação dos limites imperiais na América do Norte.

Em seguida, Jonas Moreira Vargas toma o caso do brigadeiro David Canabarro para desenvolver, a partir de uma perspectiva microanalítica, um estudo sobre sua trajetória e a formação de redes econômicas, sociais e políticas por ele articuladas na fronteira da Província do Rio Grande com o Estado Oriental do Uruguai entre as décadas de 1830 e 1860. Canabarro estabeleceu-se como grande liderança político-militar local a partir de suas atuações nas guerras que marcaram o sul do Império e a região platina na primeira metade do XIX, consolidando seu poder por meio de formas de negociação com o poder central e com outros segmentos da sociedade na fronteira. Trata-se, desse modo, de uma liderança que, antes de exercer seu poder de forma absoluta, precisavam manejar alianças com os atores do espaço fronteiriço e com o Estado Nacional em formação, destacando-se como mediador entre a burocracia imperial e as elites nos limites meridionais do país.

Jaime Rosenblitt, por sua vez, trata da atuação de quatro comerciantes britânicos na região Tacna-Arica entre as décadas de 1830 e 1860, abordando os fluxos mercantis que operavam nos limites entre Peru, Bolívia e Chile e que articulavam a costa do Pacífico e o altiplano. Muito embora se tratasse de um espaço politicamente secionado pela formação dos Estados Nacionais citados e de um período marcado por disputas político-militares, Rosenblitt destaca o espaço sul-andino como um mesmo território, o que relativizava as divisões indicadas pelas fronteiras políticas. O estabelecimento desse espaço integrado valeu-se, entre outros pontos, da existência de um mercado articulado principalmente pela entrada de manufaturas importadas e pela saída de produtos minerais. A pesquisa da documentação notarial de Arica e Tacna possibilitou ao autor analisar as estratégias e trajetórias desses comerciantes britânicos, os quais se projetaram regionalmente a partir da diversificação de atividades, da associação com grupos mercantis locais e de alianças familiares e políticas. Tomando como foco os quatro comerciantes, Rosenblitt atenta para o papel desses sujeitos na construção de redes mercantis que coordenavamessas fronteiras.

O quarto artigo deste dossiê, de autoria de Rafael Chambouleyron, Pablo Ibáñez Bonillo e Vanice Siqueira de Melo, trata dos projetos de comunicação para a difusa fronteira entre oestado do Maranhão e o estado do Brasil nas décadas finais do século XVII, almejando fortalecer o comércio interno, a comunicação intracolonial e as cooperações administrativas na América lusitana. Além de abordar as projeções enunciadas pelas autoridades coloniais do Maranhão, os autores analisam as estratégias de controle territorial postas em prática nessa fronteira, e como afetaram diretamente as populações indígenas ao promover descimentos de comunidades nativas ou ao decretar a guerra justa. As conexões projetadas para os limites entre as duas possessões portuguesasna América estavam inseridas em um contexto de expansionismo da sociedade e da economia coloniais, objetivando-se realizar a abertura de novas frentes de penetração, de incorporação de terras e de controle sobre a mão de obra indígena.

O historiador equatoriano Santiago Cabrera Hanna investiga os debates e ajustes que marcaram a montagem espacial da estrutura administrativa republicana colombiana no Distrito do Sul (equivalente aproximadamente ao território do Equador), tomando como marcos a aplicação do regime de intendências e a Lei de Divisão Territorial na primeira metade da década de 1820.As reformas aplicadas versavam sobre questões sensíveis ao exercício local do poder e as relações com a administração central, como fiscalidade, aplicação da justiça e organização das eleições. Esse processo foi caracterizado pelas disputas de poder entre cidades e municípios do Distrito do Sul, principalmente entre Quito, Cuenca e Guayaquil, cidades que irradiavam suas zonas de influência no território correspondente à antiga Audiência de Quito. As relações desses poderes locais com o central foram marcadas por ajustes e negociações com lideranças políticas e militares, o que era importante para garantir a administração e a defesa de uma área fronteiriça no sul da República da Colômbia em um contexto de guerras.

Retornando para o Império do Brasil, o texto de Mariana Thompson Flores investiga questões centrais para o entendimento da formação do Estado imperial a partir dorecorte local da fronteira, mais especificamente o oeste da Província do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX, ao tratar de duas instâncias importantes para o exercício do poder: a justiça e a fiscalidade. Nesse espaço, a administração da justiça configura um desafio não apenas pelas dificuldades de provimento do cargo de juiz nas cidades de Alegrete e Uruguaiana, mas também pelas formas de criminalidade que grassavam na fronteira, com intensa movimentação de fugitivos entre países limítrofes. O fisco, por sua vez, era constantemente tensionado pela recorrência do contrabando entre o Rio Grande e o espaço platino, com alianças duradouras entre negociantes-contrabandistas e funcionários da alfândega. Tanto as aplicações da justiça quanto dafiscalidade dependeram, em boa medida, de ajustes e mediações entre poder central e grupos hegemônicos locais, o que tornava possível a capilaridadedessas instâncias de poder e o processo de construção do Estado Nacional “para dentro” quanto também na sua relação com outros Estados confinantes.

Adriano Comissoli, por fim, investiga a política de informação e as práticas de espionagem portuguesas a partir da Capitania de São Pedro do Rio Grande e direcionadas à região do Prata, entre as décadas de 1770-1810. Os extremos meridionais da América portuguesa foram marcados pelo estado de guerra ou pela recorrente tensão nas relações luso-espanholas, de modo que a espionagem desempenhava um papel importante para a comunicação política transfronteiriça e para os planejamentos bélicos das duas coroas ibéricas. Tomando como base a documentação produzida por comandantes militares das tropas de 1ª linha dos distritos do Rio Pardo e Rio Grande, Comissoli analisa as redes de comunicação política operadas por esses oficiais e a presença de espiões lusos na região do Prata.

Como em qualquer dossiê, a seleção aqui apresentada de artigos é extremamente parcial, não logrando abarcar o amplo quadro de objetos, fontes, debates e possibilidades dos estudos históricos sobre as fronteiras na América ibérica. A despeito das limitações próprias dessa empreitada, não se pode perder de vista os avanços que os trabalhos aqui reunidos apontam. Os diferentes espaços em foco, dentro do amplo recorte cronológico dos textos selecionados, são analisados com a devida atenção sobre a interrelação de escalas, vinculado espaços locais e dinâmicas globais. A agência dos atores das fronteiras, suas formas cotidianamente construídas de apropriação do espaço e as mediações culturais, sociais e políticas, são igualmente colocadas em destaque. O olhar atento para os espaços fronteiriços pode trazer à tona outros ângulos de análise ou novos questionamentos que elucidem processos mais abrangentes -como sugere Karl Schögel, as fronteiras oportunizam o estudo de “processos de mescla, transferências e amálgamas que trazem algo novo” [9].A partir dos textos que compõem esse dossiê, o leitor tem em mãos uma amostra qualificada desse potencial.

Notas

3. GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: América Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

4. MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introducción. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y prácticas de integración y conflictos entre Europa y América (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017, p. 17. ZÁRATE BOTÍA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Letícia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazónico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

5. LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnationalreframing of Brazil’sInlandColonization. History Compass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

6. HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge,MA: Harvard University Press, 2015. ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

7. MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford, v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

8. LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras, Op. Cit.,p. 365-385.

9. SCHÖGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilización y geopolítica. Madrid: Siruela, 2007. p. 146, tradução nossa.

Referências

ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: America Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015.

LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnational reframing of Brazil’s Inland Colonization. HistoryCompass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integración y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017. p. 365-385.

MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introduccion. In: FAVARO, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integracion y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017.

MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford,v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

SCHOGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilizacion y geopolitica. Madrid: Siruela, 2007.

ZARATE BOTIA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Leticia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazonico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

Carlos Augusto Bastos – Universidade Federal do Pará. Ananindeua- Pará- Brasil. Doutor em História pela USP, Professor da Faculdade de História do Campus Universitário de Ananindeua/UFPA. Professor do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História/Prof Historia. Autor de No Limiar do Impérios. A frontera entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas projetos, circulações e experiências (c.1780-c.1820). (Hucitec, 2017), além de artigos e capítulos de livros. E-mail: carlosbastos@ufpa.br.


BASTOS, Carlos Augusto. [Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica]. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Histórias das diversões: algumas possibilidades investigativas / Caminhos da História / 2021

Caminhos da Historia CH 1

Como dizer das histórias do que aqui chamamos de diversões? Para conhecer o fenômeno é necessário primeiro considerar a palavra. De acordo com a etimologia do termo, diversão se origina do verbo latim dīvertēre4, o qual, na língua portuguesa, trata-se de um substantivo feminino que pode ser traduzido como aquilo que dá prazer; por isso, afasta o espírito dos assuntos que apoquentam e é empregado como sinônimo de passatempo, recreio, entretenimento, recreação, desvio, distração, divertimento e esporte.

No entanto, compreender a ideia de diversão exige um exercício mais ampliado de percepção do que os sinônimos de um simples olhar etimológico sugerem, já que o uso do termo está necessariamente interligado a experiências concretas e a contextos históricos e culturais específicos. Nesse sentido, para compreender uma dada manifestação considerada como diversão, é preciso situá-la no tempo histórico em que existiu, percebê-la como produto de uma sociedade que a legitimou como costume e interpretá-la por meio das experiências dos indivíduos que a vivenciaram em seu cotidiano.

Sendo assim, as práticas que chamamos de diversão são muitas e atemporais: equitação, tiro, leitura, pintura, bordado, encontros amorosos; sentar no passeio, caminhar na praça, ir ao bar, conversar na esquina após a missa; assistir ao filme, ao futebol, praticar esportes de maneira recreativa, viajar, integrar um grupo musical ou simplesmente fazer cantoria nas ruas, vielas e avenidas; organizar e integrar uma festa; passar na sorveteria depois do trabalho, desviar o caminho de casa para penetrar no desfile de um bloco carnavalesco ou beber um paliativo no cabaré; laçar a vaca, o boi, o touro; aproveitar o escuro da sala do cineteatro antes e depois do espetáculo; desbravar-se em atividades de aventura; fazer da rua um lazer; subir em árvore; coordenar uma apresentação dançante ou simplesmente dançar em um, dois, três, sem limites.

O dossiê aqui apresentado é fruto de uma coletânea de artigos sobre manifestações de diversão em diferentes regiões do país, tais como Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Ainda que representem localidades particulares e estejam situadas em tempos históricos díspares, as investigações se conectam em muitos aspectos, compartilhando práticas, eventos e produções culturais.

O artigo de autoria de Renata Oliveira e Ronaldo de Souza Júnior, intitulado “Itinerantes e Citadinos: a Companhia de Teatro Coimbra e suas interações com a população de Diamantina / MG”, destaca a presença da Companhia Coimbra no Teatro de Santa Izabel, em Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1899. Para os autores, o estabelecimento foi, ao longo da segunda metade do século XIX, um dos principais espaços de divertimento da cidade, chamando a atenção o tempo em que a Companhia esteve na cidade, e os constantes noticiários carregados de elogios por sua atuação. Os autores concluem que, durante os nove meses de apresentação na cidade, os espetáculos contribuíram para a divulgação de atividades públicas de diversão, com aspectos instrutivos no que tange ao ensino da atuação teatral para a população de Diamantina.

O texto assinado por Marcela Ariete dos Santos, intitulado “O teatro em Mato Grosso (1877-1928)” analisa a forma de organização desta prática naquele período, abordando-a como um forte elemento da diversão no estado. Algumas das conclusões da autora residem na constatação de que os espaços físicos do teatro em Mato Grosso eram todos particulares e apresentavam estruturas ainda incipientes, com tempo curto de sobrevivência, principalmente por falta de recursos financeiros. A autora ainda destaca que, na óptica da imprensa, além de um entretenimento, o teatro tivera também grande importância entre os ideais civilizadores e educativos.

Já o artigo de Fábio Santana Nunes, intitulado “ ‘A Los Toros!’: As touradas em Feira de Santana (1893-1905)”, almeja identificar e analisar os espetáculos tauromáquicos promovidos em Feira de Santana, Bahia, na transição entre os séculos XIX e XX. Nos espetáculos de Feira de Santana, de acordo com o autor, foram identificados toureiros profissionais espanhóis e a possível presença de portugueses, inexistindo evidências de toureadoras. Relata ainda que, para atender as touradas na cidade, existiram arenas armadas provisoriamente em espaço já projetado, o hipódromo, ou em área aberta contígua ao traçado urbano orgânico, o Campo do Gado. O autor conclui que a festa de touros se expressou na cidade como uma diversão mercantilizada exibida de forma esporádica por companhias tauromáquicas itinerantes, já que as práticas experimentadas não foram capazes de transformála em um divertimento tradicional na cidade.

O texto de autoria de Rogério Othon Teixeira Alves e Georgino Jorge de Souza Neto, intitulado “Volley-ball e Basket-ball no sertão mineiro: o advento dos esportes americanos em Montes Claros-MG na primeira metade do século XX”, tenciona investigar a veiculação e o desenvolvimento dessas modalidades e sua profunda relação com um evidente processo de incremento de uma cultura esportiva local. Os autores destacam que, ao passo em que entidades como escolas e associações vão surgindo, algumas práticas esportivas destacam-se no projeto modernizador / civilizatório em curso, para além do decantado e popular futebol. Relatam, ainda, a ocorrência dos festivais esportivos no período, com destaque às partidas de voleibol e basquetebol, que acentuavam a busca da distinção de uma coletividade atenta às novidades modernas, especialmente pelo viés do esporte.

“Bloco afro Ilê-Aiyê: uma história de luta antirracista” é o artigo apresentado por Juliana Araújo de Paula e tem como objetivo apresentar reflexões sobre a constituição do Bloco Afro “Ilê Ayiê”, fundado em 1974. Para a autora, trata-se de um bloco de carnaval que transborda suas realizações para além dessa festa e que tem forte papel social na luta pela igualdade racial. Ressalta ainda que a revisão de literatura da produção sobre esse contexto indica que suas práticas cotidianas de produção, divulgação, compartilhamento e fortalecimento da cultura afro-brasileira e, especialmente, de empoderamento da mulher negra, apresentam-se como tempos / espaços de ações de re-existência.

Outra importante contribuição ao dossiê é o artigo de Jordania de Oliveira Eugenio, intitulado “Os traçados históricos das ruas de lazer presentes na “abertura” da avenida paulista”, que busca refletir de que forma os traçados históricos das Ruas de Lazer, existentes em São Paulo desde 1976, compuseram o encadeamento da abertura para pessoas e fechamento para o tráfego de veículos da Avenida Paulista a partir de 2015. A autora destaca que a implantação do Programa Rua Aberta na Paulista foi cercada por embates e disputas políticas, sendo o seu uso para o lazer um dos principais argumentos dos grupos favoráveis à abertura. Além disso, identificou similaridades e contrariedades entre as Ruas de Lazer que se difundiram em São Paulo a partir de 1976 e o uso da Avenida Paulista após sua “abertura” em 2015. Por conseguinte, conclui que o exercício da cidadania, por meio da apropriação das ruas pelos próprios cidadãos, parece ocupar centralidade – ainda que indiretamente – no processo de ressignificação da Avenida Paulista.

Já o texto de Marília Martins Bandeira e Sarah Teixeira Soutto Mayor, intitulado “A construção da ‘capital brasileira da aventura’: a transformação da cidade de Brotas em destino turístico-esportivo nas décadas de 1980 e 1990”, aborda parte do percurso histórico que culminou na transformação da referida cidade, localizada no interior do estado de São Paulo, em importante destino turístico-esportivo e possibilitou uma construção discursiva que autodenominou a localidade como “capital brasileira da aventura”. O apelo recorrente à especificidade da formação geológica da região alia-se a narrativas fundadoras fragmentadas, provenientes de documentos do início do século XX, reproduzidos no website da prefeitura, folhetos turísticos e matérias jornalísticas, confererindo à cidade uma vocação natural e espontânea para a prática do turismo de aventura. As autoras sinalizam o enaltecimento de certo prestígio, relacionado a uma origem remota, por meio da valorização de um passado selecionado, para legitimar interesses e ações construídos no presente, tais como o ecoturismo esportivo como alternativa econômica menos predatória, ainda que também produtora de certos impactos mal geridos.

Por fim, o artigo de Igor Maciel da Silva, intitulado “O maior cinema na história de Barbacena: panorama dos primeiros anos do Cine-Theatro Apollo (1923 a 1925)” objetiva apresentar um panorama dos primeiros anos de funcionamento do referido estabelecimento, o cinema de rua da cidade de Barbacena, Minas Gerais, que esteve em atividade por maior número de anos, respectivamente de 1923 a 1998, a fim de entender como se deu o funcionamento, qual a equipe de trabalho, público, filmes e programações. O autor conclui que a casa abrigou diferentes tipos de programações adulto, infantil, artística e beneficente; contemplou a presença de diferentes estratos sociais, incluindo pessoas brancas e negras; inovou na compra de filmes e, por fim, incluiu mulheres de modo público em sua equipe de trabalho.

Ao final dessas apresentações dos textos que compõem esse dossiê, ressaltamos a nobre proposta da Revista Caminhos da História, visto que as produções acadêmicas sobre a história das diversões são muitas e multidisciplinares, narradas por diferentes áreas e campos dos saberes, porém, ainda são poucas as propostas que reúnem compilados heterogêneos sobre esse fenômeno.

Nesse sentido, essa reunião de artigos, tomada em conjunto, abarca parte dos desafios mais gerais para a articulação de um campo de pesquisas especializado na história do lazer ou das diversões. Primeiro, o desafio de apreender, simultaneamente, um conjunto amplo e heterogêneo de práticas, desde o teatro ao carnaval, passando pelos esportes, cinema ou outros gêneros de espetáculos, para não mencionar outros mais. Segundo, a necessidade de considerar variações regionais, o que parece especialmente relevante em um país com as dimensões e com os níveis de desigualdades do Brasil. Sudeste ou Nordeste, capitais ou cidades do interior, áreas urbanas ou rurais, são todas clivagens que atravessaram e atravessam o modo de constituição histórica das diversões no país. Quarto, há ainda desafios advindos da necessária contextualização desses fenômenos dentro de um arco temporal maior e mais longo, capaz de oferecer uma compreensão histórica mais profunda. Assim, diferenças e semelhanças entre práticas diversas no fim do século XIX ou nos princípios do século XXI constituem parte do esforço analítico e interpretativo de uma agenda de pesquisas sobre a história do lazer ou das diversões. Finalmente, tudo isso é ainda transpassado pelas relações, ora tensas, ora convergentes, entre forças da economia de mercado e intervenções políticas de diferentes ordens, da mobilização associativa de parcelas da sociedade civil à atuação do aparelho burocrático do Estado.

Um mosaico de problemas dessa ordem não é para um grupo reduzido de autores, mas para uma comunidade acadêmica inteira. Nossa expectativa é que este fascículo ofereça um tijolinho adicional para esta construção, que há de ser bonita e grandiosa. Desejamos excelentes e divertidas leituras!

Notas

4. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon Editora Digital, 2007, p. 272-273.

Igor Maciel da Silva – Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0002-6560-0475 E-mail: professorigormaciel@gmail.com

Sarah Teixeira Soutto Mayor – Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0003-1643-6223 E-mail: sarahsoutto@gmail.com

Cleber Dias – Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0001-9126-5992 E-mail: cleberdiasufmg@gmail.com


SILVA, Igor Maciel da; MAYOR, Sarah Teixeira Soutto; DIAS, Cleber. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 26, n.1, jan / jun, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Antígona | UFT | 2021

Antigona

A revista Antígona (Porto Nacional, 2021-) destina-se a publicações no campo de História, Educação e Áreas afins, prezando pela produção, pelo ineditismo e pela inovação. Visando difundir as pesquisas dos professores e dos alunos e, assim, ampliando a visibilidade do Curso de História e do PPGHispam.

Antígona, de Sófocles, coloca-se no espaço público como expoente e defensora dos direitos individuais e coletivos, heroína do direito natural, da ética, do desejo, da resistência e da subversão. Por seu nome e sua inspiração, a Revista Antígona deve vivificar propostas que questionam doutrinas pré-estabelecidas, levantando novas problematizações, novas abordagens, novos temas e novas metodologias.

Seus dossiês, artigos, resenhas e traduções devem contribuir para o aprofundamento e consistência da História e da Historiografia, da Licenciatura em História, das Ciências Humanas e Áreas afins, bem como para o debate sobre o Direito dos Povos, desenvolvidos nesse campus. Seu candelabro simboliza a inspiração da chama do conhecimento, da solidão do trabalho intelectual e da luz regeneradora que atravessa caminhos na escuridão.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

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Uberização: a nova onda do trabalho precarizado / Tom Slee

SLEE T Uberizacao 2
Tom Slee / Foto: Sally Montana – Divulgação /

Sobre a obra

O fenômeno da economia do compartilhamento − que se populariza pela propaganda de um negócio em escala local, que conecta proprietários de dados recursos com pessoas em necessidade desses bens − é retratado na obra de SLEE (2017). Através de intensa pesquisa em fontes jornalísticas e utilização de bancos de dados públicos, o autor analisa a atuação de empresas no setor de economia do compartilhamento e desmistifica a propaganda que levou essas corporações a assumirem proporções gigantescas. Ocupando uma significativa proporção no mercado de Wall Street, corporações, como Rappi, Ifood, Lyft, TaskRabbit, WeWork e Airbnb, promoveram lobby nos setores financeiro, jurídico e imobiliário visando à garantia da flexibilização do vínculo trabalhista adotado por essas empresas.

O estudo minucioso de Slee (2017) pode ser tomado como referência para além dos casos descritos pelo autor. Assim, seria possível o extravasamento dessa análise fazendo paralelos com iniciativas atuais de flexibilização dos vínculos trabalhistas em setores nos quais esse impacto ainda é mais tímido, como, por exemplo, no setor educacional. Além do exemplo da massificação de cursos online no Ensino Superior (SLEE, 2017, p 52), nos últimos anos, a categoria do magistério assistiu à implementação de flexibilização do trabalho docente no setor público através da criação do vínculo empregatício de professor eventual. Esse tipo de vínculo não oferece ao trabalhador uma renda fixa, sua remuneração é calculada mediante à demanda por seu trabalho. Dessa forma, o professor eventual trabalha substituindo faltas ou licenças de professores efetivos, recebendo por aulas lecionadas (VENCO, 2018, p 9). Um vínculo empregatício com características que se enquadram no fenômeno de economia do compartilhamento (SLEE, 2017, p14-16) ou uberização do trabalho (FONTES, 2017, p 54). Ainda no campo educacional, as projeções para os próximos anos se relacionam com o desafio da garantia de direitos trabalhistas do magistério a longo prazo. Após a pandemia provocada pela Covid-19, expandiu-se a compra do uso de plataformas para veiculação de atividades pedagógicas por acesso remoto. Essa conjuntura fomenta incertezas sobre a continuidade dos programas de oferecimento de atividades pedagógicas não presenciais fora do período da pandemia. Aponta-se que em uma eventual decisão de continuidade dessas políticas de acesso remoto, estas seriam beneficiadas pela estrutura utilizada no período da Covid-19. Além disso, há receio sobre o investimento no vínculo de trabalho docente por tutoria remota em detrimento da promoção de editais de concurso público para sanar o déficit de professores nas redes públicas de ensino. Dessa maneira, o estudo de caso das corporações da economia do compartilhamento de Slee (2017) permite a extrapolação dessa análise a outras iniciativas que adotam esse mesmo modelo de flexibilização dos vínculos trabalhistas. Nesse sentido, a obra apresenta relevância para o campo das humanidades por sua análise de um fenômeno atual e em corrente expansão. O livro divide-se em nove capítulos que serão descritos a seguir.

Nas notas de edição, por Tadeu Breda e João Peres, e no prefácio à edição brasileira, de Ricardo Abramovay, fica explícito, que no original, Tom Slee (2017) não se utiliza do termo “uberização”. Esse emprego poderia restringir o fenômeno da economia do compartilhamento a apenas essa corporação. O autor utiliza os termos economia do compartilhamento (sharing economy), economia dos bicos (gig economy), consumo colaborativo (collaborative consumption), economia em rede (mesh economy), economia sob demanda (on-demand economy) e plataformas igual para igual (peer-to-peer plataforms) para definir a atuação dessa modalidade de negócios. Dessa maneira, o título original em inglês, What’s yours is mine: against the sharing economy (O que é seu é meu: contra a economia do compartilhamento), não foi traduzido de maneira literal para o português. Essa foi uma opção assumida pelos tradutores por compreenderem que a discussão sobre economia do compartilhamento no Brasil se intensifica a partir da popularização da Uber nas principais capitais nacionais.

O primeiro capítulo da obra de Slee (2017), intitulado “A economia do compartilhamento”, introduz a temática e apresenta o discurso sedutor de propaganda desse setor. A economia do compartilhamento se autodefine como plataformas de conexão de pequenos grupos de compartilhamento com foco comunitário. Contudo, as pequenas empresas que se enquadrariam nesse perfil ou foram compradas ou serviram de transferência de clientes para grandes empresas. Já as grandes corporações desoneram-se de sua responsabilidade com os trabalhadores que empregam, conclamando-se como intermediadores entre aqueles que prestam o serviço e aqueles que o demandam. Ainda no primeiro capítulo, são apresentadas a sequência e a segmentação da obra, a justificativa para sua elaboração e a defesa sobre o perigo da desregulação trabalhista trajada sob o discurso da sustentabilidade e empreendedorismo individual.

O segundo capítulo, intitulado “O cenário da economia do compartilhamento”, apresenta alguns mecanismos que as corporações utilizaram para manterem seus interesses. A organização Peers teve protagonismo na representação das corporações da economia do compartilhamento. Em específico, sobre a promoção de lobby nos setores legislativos e no movimento pela desregulação. A Peers atuou nas disputas judiciais entre a Airbnb contra ações mobilizadas pelo ramo da hotelaria de distintas cidades, assim como atuou na flexibilização de regras para o setor de transporte no estado da Califórnia, o que beneficiou a Uber. Tom Slee afirma que os três setores mais expressivos na economia do compartilhamento seriam o setor de hospedagem (43%), transporte (28%) e educação (17%) (SLEE, 2017, p 55). Em relação ao setor educacional, mostra-se plausível a hipótese de que seu percentual pode ser maximizado a partir da oferta de atividades pedagógicas não presenciais em virtude da pandemia pela Covid- 19. Período no qual houve grande expansão da venda de plataformas para vinculação de aulas online.

O terceiro capítulo, intitulado “Airbnb, um lugar para ficar”, dedica-se à descrição da origem do Airbnb até seu crescimento exponencial, alterando a mobilidade nos centros urbanos de cidades turísticas como Paris. Entre 2013 e 2015, o Airbnb em Nova York contava com 40% de seus anunciadores sendo proprietários de mais de um imóvel. Os anúncios desses proprietários representavam 43% das reservas efetivadas pela plataforma. Fato que invalida o discurso da empresa de representar pessoas comuns, compartilhando acomodações em seus apartamentos com turistas que buscam reservas temporárias. Da mesma maneira, a narrativa Airbnb contra o monopólio de grandes hotéis torna-se retórica vazia diante do investimento de grandes empresas hoteleiras no setor da economia do compartilhamento (SLEE, 2017, p 83). Se há algum prejuízo no setor de hospedagens, este tem sido acumulado por pequenos hotéis independentes com o maior gasto com taxas e regulações. O que torna desigual a competição entre essas acomodações com aquelas que não arcam com os custos da regulação (SLEE, 2017, p 84).

O capítulo 4, intitulado “De rolê com a Uber”, é dedicado à atuação do setor de transporte na economia do compartilhamento. O autor aponta que o manual de redação da agência de notícias Associated Press afirma que o termo economia do compartilhamento não deveria ser usado para descrever as ações da Uber, designando o serviço prestado pela empresa como “serviço de viagem chamada” (SLEE, 2017, p 102). Como a Uber se beneficiou da atuação da Peers e como a relação que a empresa estabelece com seus motoristas enquadra-se nos moldes da desregulação, Slee localiza a empresa no setor da economia do compartilhamento, ao lado da Zip car e Lift. A Uber, ainda que não tenha se associado diretamente aos lobistas da Peers, beneficiou-se de uma campanha promovida por essa associação na Califórnia. Este estado criou, em 2013, uma regulação específica para o setor de Empresas de Rede de Transporte. Esse segmento conta com motoristas sem registro na prefeitura, que não precisam submeter seus veículos ao mesmo tipo de inspeção pelo qual passam as empresas de táxi, por exemplo. Para além da atuação da Uber lucrando mediante a não garantia de direitos trabalhistas e da dispensa de gastos com regulação, a empresa também se mostrou falha na seleção de seus motoristas a partir de critérios de idoneidade que garantam a segurança dos passageiros (SLEE, 2017, p 132).

No capítulo 5, intitulado “Vizinhos ajudando vizinhos”, o autor se dedica a analisar as plataformas que oferecem serviços domésticos de limpeza, trabalhos de manutenção e entregas de supermercado, como a Taskrabbit, Instacart, homejoy e handy. Apesar de serem menos conhecidas no Brasil, são empresas comumente acessadas nos Estados Unidos. A receita é bem parecida com a dos outros setores da economia do compartilhamento: uma plataforma se populariza com o slogan de conectar pessoas que precisam de um serviço e aquelas dispostas a oferecê-lo. Contanto que aqueles que oferecem o serviço aceitem que o deslocamento, que as ferramentas e que os recursos para realização do trabalho sejam custeadas pelo próprio trabalhador. Enquanto, por exemplo, a plataforma homejoy que oferece o serviço, recebeu 40 milhões de fundos de investimento da google (SLEE, 2017, p 166-167).

O capítulo 6, intitulado “Estranhos confiando em estranhos, dedica-se ao trato dos sistemas de avaliação das plataformas como um mecanismo que aferiria confiabilidade. Slee (2017) aponta que o sistema de avaliação pode refletir como o usuário avalia a eficiência do serviço prestado, como o conforto ou presença de lençóis limpos em uma diária de hospedagem.

Contudo, a maioria dos hóspedes não conseguiria avaliar se a acomodação respeita as prescrições de prevenção e combate a incêndio ou se os alimentos a serem consumidos foram manipulados com higiene (SLEE, 2017, p 181-182). Ou seja, o sistema de avaliação dos aplicativos não consegue cobrir questões referentes à regulação do serviço prestado. O sentido de avaliação das plataformas baseia-se em um sistema de reputação sem critérios prévios que orientem a avaliação. Portanto, de maneira subjetiva e informal, em uma sociedade fortemente estruturada pela estratificação social, misoginia e racismo. Como não considerar que esses elementos incidam sobre essas avaliações? Para além disso, Slee aponta para uma tendência no sistema de avaliações, evidenciando a relação frágil entre qualidade do serviço e as notas recebidas (SLEE, 2017, p 189-190).

O capítulo 7, intitulado “Uma breve história da abertura, assim como o capítulo 8, traça um panorama do ambiente digital do qual emergiu a economia do compartilhamento. Slee afirma que a política de dados abertos em vez de produzir mais equidade, substituiu um conjunto de instituições poderosas por outro (SLEE, 2017, p 207). A abertura não poderia ser considerada uma alternativa ao mercado comercial ao passo que convive com este. Por exemplo, o Youtube, ao mesmo tempo que compartilha conteúdo gratuito, também, gera lucro a uma grande empresa (SLEE, 2017, p 210). Assim, o autor aponta que a abertura apresenta uma tendência a criar “mercados menos competitivos e negócios mais poderosos” (SLEE, 2017, p 211).

O capítulo 8, intitulado “Escancarado, analisa a combinação entre lucro e a evocação de um caráter mais pessoal advindo da noção de compartilhamento, manifesto através da internet. O livro encerra-se com a conclusão de Slee (2017), já anunciada no título do capítulo 9 “O que é seu é meu. O autor afirma que os valores não comerciais na economia do compartilhamento foram deixados de lado em prol da expansão do livre mercado. A evocação de um modelo mais humano para o universo corporativo resultou em uma forma mais agressiva do capitalismo, com desregulação das garantias trabalhistas e uma nova onda de trabalho precarizado (SLEE, 2017, p 297).

Síntese

A obra de Slee (2017) brinda a literatura do campo das humanidades ao apresentar um texto que sumariza a gênese e a atuação das corporações da economia do compartilhamento, fenômeno recente e em crescente expansão. O estudo de caso das corporações retratadas permite a extrapolação dessa análise a outras iniciativas que adotam flexibilização dos vínculos trabalhistas em setores em que esse impacto ainda é mais tímido. Como, por exemplo, no setor educacional. Aqui, infere-se que esse setor pode apresentar significativa expansão dentro da economia do compartilhamento a partir da compra em larga escala de pacotes de vinculação de aulas remotas em plataformas online, em virtude da suspensão de atividades pedagógicas presenciais como uma das medidas de contenção do espalhamento da Covid-19, durante o ano letivo de 2020.

Referências

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SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

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Regina Lucia Fernandes Albuquerque – Doutoranda no Programa de Pós graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre pelo Programa de Pós graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro na modalidade técnica de Formação de Professores. Atua com pesquisa em Sociologia da Educação.


SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017. Tradução de João Peres. Resenha de: ALBUQUERQUE, Regina Lucia Fernandes. Cantareira, [Niterói], v.34, p.678-683, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

 

Masculinos & Masculinidades: performances, invenções e práticas / Crítica Histórica / 2020

Inicialmente, gostaríamos de registrar que este dossiê é publicado em um momento crítico da nossa história recente: a pandemia da covid-19, que alterou hábitos e práticas cotidianas, deslocou nossa maneira de ser e estar no mundo, inclusive no âmbito acadêmico, acelerando e forçando uma urgente adaptação a outros modos de vida – mais recluso e individualizado – e rotinas de escrita, de interação social e de trabalho mediadas pelas tecnologias digitais. Ao longo desse processo, no qual ainda estamos imersos, destacamos também que a chamada para este dossiê foi aprovada antes desse cenário de crise sanitária, mas em um momento em que já experimentávamos uma profunda crise política e social, acentuada pela desigualdade de gênero e as violências contra as populações mais vulneráveis.

Nossa proposta inicial foi acolher reflexões e análises diversas acerca das narrativas, das práticas, dos ritos e das produções discursivas contemporâneas sobre os modos de produção e subjetivação masculina, bem como os itinerários sobre ou em torno das experiências das masculinidades. Assim, reconhecemos a relevância e destaque que assume a intersecção dos estudos feministas, das relações de gênero e das sexualidades, como condição de possibilidades para a emergência dessas análises que ora serão apresentadas no dossiê.

Logo, não poderíamos deixar de agradecer a cada autor e autora que se empenhou em escrever e submeter seus manuscritos sob condições atípicas de existência, assim como o trabalho dos pareceristas e dos editores da Revista Crítica Histórica, persistindo e resistindo em tempos de insidiosos ataques ao conhecimento e à universidade pública brasileira.

No Brasil, desde os anos 1990 (MATOS, 2002; SOUZA, 2009; SILVA, 2015, 2018; OLIVEIRA, 2015), os estudos sobre as masculinidades têm se constituído num amplo e complexo campo de análise e investigação sobre os modos de construção dos homens, dos masculinos e das masculinidades. Desta forma, antropólogos / as, sociólogos / as e historiadores / as têm matizado o debate em torno de temas como: violências (CECCHETTO, 2004), sexualidades (SEFFNER, 2003), saúde masculina (GOMES, 2008), corporalidades e indumentária (SIMILI; BONADIO, 2017), “crise” das masculinidades (SIQUEIRA, 2006), transmasculinidades (ÁVILA, 2014), relações de amizade (NASCIMENTO, 2011; SANTOS, 2016), masculinidades e relações raciais (MISKOLCI, 2012; VIGOYA, 2007, 2018; RESTIER; SOUZA, 2019), entre tantos outros. A maioria desses estudos é produzida a partir de uma perspectiva relacional do gênero (MATOS, 2002; GROSSI, 2004; GIFFIN, 2005; PEDRO, 2011), mostrando que, se as mulheres não foram sempre as mesmas ao longo da história, os homens (AMBRA, 2015), muito menos.

De acordo com o historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, fazer uma história dos homens é pensá-los “não mais como indivíduos ou partícipes de feitos coletivos, mas como gênero, não a história de homens como agentes do processo histórico, mas como produtos deste mesmo processo” isto é, “a história de homens construindo-se como tal, a história da produção de subjetividades masculinas, em suas várias formas, a história da multiplicidade de ser homem” (2013, p. 23).

A partir dessa premissa, atenderam ao nosso convite mais de 20 pesquisadores e pesquisadoras que, individual ou coletivamente, colaboraram na reflexão, análise e compreensão das múltiplas maneiras de ser e de se fazer homem no Brasil e fora dele (KIMMEL, 1998, 2005, 2016; WELZER-LANG, 2001, 2004; CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013). Nos campos historiográfico, sociológico e antropológico, mas também na educação, na psicologia, entre outros, são muitas as contribuições que permitem mapearmos a produção das subjetividades masculinas e assim aguçar a reflexão que, ao tensionar esses campos disciplinares, evidenciam o potencial do gênero enquanto categoria de análise histórica (SCOTT, 1994).

Todavia, antes de situarmos cada texto, gostaríamos de destacar também a imagem que integra a capa deste Dossiê na Revista Crítica Histórica. Sob o olhar e foco atento das lentes do fotógrafo brasileiro Leonardo Barros Medeiros, temos a fotografia Guardarropa, protagonizada por um modelo espanhol e que faz parte da série ACasa|OCorpo. A partir de uma articulação entre as imagens, as palavras e as coisas, conforme sugere Didi-Huberman (2012), entendemos que a imagem produz um corte na realidade, mobiliza sentidos, expressa momentos e nos permite observá-la como um sintoma de possíveis mudanças e transformações no espectro das masculinidades. Além disso, a articulação / interposição entre imagem e a palavra, nos possibilita vislumbrar a dimensão poética imanente das narrativas históricas (HUSSAK, 2020). Sendo assim, apresentamos, a seguir, uma breve síntese dos treze textos selecionados para compor este Dossiê, Masculinos & Masculinidades: performances, invenções e práticas.

No artigo que abre o dossiê, Fernando Botton promove um encontro teórico refinado entre Raewyn Connell e Judith Butler. Em Considerações críticas acerca das teorias de Raewyn Connell e Judith Butler para o estudo das masculinidades, Botton apresenta um balanço crítico entre a sociologia connelliana das masculinidades e a teoria butleriana das relações de gênero, focalizando as tensões entre distintas teorizações e concepções de gênero a partir de uma relação assimétrica entre as epistemologias do Sul e do Norte Global. Mediador crítico desse encontro entre a socióloga australiana e a filósofa estadunidense, Botton destaca e evidencia apropriações, aproximações políticas entre a perspectiva queer, tal qual forjada por Judith Butler, e as masculinidades hegemônicas, signatárias dos escritos de Connell.

Kathleen Kate Dominguez Aguirre elabora uma profícua articulação das proposições de autores como María Lugones, Ochy Curiel e Raewyn Connell, em Masculinidades colonizadas e feminicídio na América Latina. Considerando essa abordagem interseccional das categorias gênero, masculinidades e raça, a autora engendra uma teorização sobre a permanência de um “continnum de violência patriarcal moderno-colonial”, denunciando a persistente e histórica violência contra as mulheres (cis e trans) na América Latina.

A partir das críticas feministas, em Intervenções com homens para a equidade de gênero: crítica às abordagens individualizantes, Vanessa do Nascimento Fonseca analisa o predomínio de práticas individualizantes nas políticas de intervenção entre homens, no Brasil, desde os anos 1970, em torno da equidade de gênero. Argumenta-se que os homens são importantes aliados no enfrentamento dos efeitos danosos das relações de gênero, todavia, a autora defende ser necessário que os homens se engajem no enfrentamento e na luta interseccional contra um sistema que articula múltiplos pontos de opressão, indo além de mudanças focalizadas apenas no aspecto da conduta dos indivíduos mas recorrendo ao âmbito coletivo.

Tendo como fonte de análise um artefato audiovisual, em “Não é uma fantasia, este sou eu”: Discussões sobre a representação e performance da masculinidade negra na série Sex Education (2019), Andrey da Cruz e João Paulo Baliscei apresentam Eric Effiong, um jovem negro gay que é o melhor amigo do protagonista da série britânica Sex Education (2019). A partir da desconstrução da personagem, os autores conseguem mapear a intersecção entre gênero e raça na constituição de uma masculinidade afeminada juvenil. Com destaque em três cenas da série, eles pontuam a desestabilização causada por Eric Effiong no sistema hegemônica da masculinidade, bem como a cobrança que o sistema faz sobre ele, com a concreta homofobia. A masculinidade negra e afeminada performada na série não é uma fantasia, há muitos Erics na sociedade britânica e também na brasileira.

Neste provocativo e instigante ensaio, O negro-lugar do homem preto brasileiro – episódios de racismo cotidiano em AmarElo (2019), Milton Ribeiro posiciona-se do lugar de homem negro paraense e dedica sua análise à obra de Emicida, AmarElo. O corpo é lido e percebido a partir do “negro-lugar” que ocupa na sociedade brasileira, enfrentando o racismo multifacetado. Em uma análise cuidadosa e problematizadora das letras das músicas que compõem o álbum, Ribeiro destaca as resistências e o ritmo da música também embala a leitura do texto. Ao final, ou mesmo antes disso, será impossível não buscar o álbum para ouvir cada música e atentar às palavras problematizadas no texto.

Salientando as dinâmicas específicas das relações de gênero no espaço escolar, no artigo Espaços de meninos: reflexões sobre a construção das masculinidades por adolescente de uma escola pública do município do Rio de Janeiro, Aline Carvalho apresenta uma importante iniciativa desenvolvida em uma escola pública no Rio de Janeiro, em que os meninos foram convidados a refletir e falar sobre si mesmos. Amparada na literatura sobre as masculinidades hegemônicas, Carvalho oferece aos leitores e leitoras uma instigante reflexão sobre como a educação escolar formal pode contribuir para a promoção da igualdade de gênero a partir da intervenção dialógica com meninos na fase da adolescência.

Ainda no campo educacional, mas agora focalizando outra personagem de destaque, em Professores homens nos anos iniciais: relações de gênero e formação docente, Thomaz Fonseca e Anderson Ferrari problematizam a, por vezes incômoda, presença de professores homens nos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede pública municipal de Juiz de Fora, MG. A pesquisa demonstra o que comumente é percebido sem muita dificuldade: a rara presença de homens cisgêneros na docência dos anos iniciais; mas vai além disso, ao acompanhar os percursos trilhados por esses docentes, destacando suas estratégias e desafios enfrentados, particularmente ao terem que responder às interpelações de gênero que lhes foram colocadas ao longo de suas carreiras.

Tomando como ponto de partidas as mudanças históricas nas relações de trabalho e familiares, após os anos 1990, que possibilitaram o aumento de mulheres na condição de provedora do lar, em O declínio do homem provedor chefe de família: entre privilégios e ressentimentos, Caíque Diogo de Oliveira argumenta como as mudanças gestadas no capitalismo em sua dimensão neoliberal, tem feito com que muitos homens assumam uma posição ressentida diante das novas dinâmicas das relações de gênero e, por isso, acabam buscando num passado idílico um lugar de segurança e de mando masculino.

O que querem os homens pais? Qual o sentido da paternidade? Pode um filho ou filha fazer um homem gozar da paternidade? Há uma paternidade gestante? Essas são algumas das perguntas suscitadas pelo cuidadoso artigo de Camila Rebouças Fernandes Masculinidades e paternidades: novos olhares. Com um trabalho de campo realizado em um serviço de pré-natal na cidade do Rio de Janeiro, Fernandes aborda as expectativas de mudanças experienciadas por 10 homens-pais que acompanhavam as mulheres-gestantes e oferece algumas pistas valiosas para pensarmos sobre as paternidades na contemporaneidade.

Em “Contra as investidas leoninas de uma indomável fera humana”: masculinidades e família, Lucas Kosinski problematiza como determinada concepção de masculinidade hegemônica foi produzida e volatizada pelo discurso jurídico de Iraty, região interiorana do sudeste do Paraná, entre os anos de 1912 e 1920. Na ocasião, o autor argumenta como um ideal de branquitude da população brasileira também foi agenciado nos discursos e práticas jurídicas e políticas no intuito de normatizar as relações de gênero através de uma judicialização das condutas, dos corpos e dos desejos.

Atenta ao carnaval em Porto Alegre / RS no final do século 19, em Masculinidades e carnaval na Porto Alegre do último quartel do século XIX, Caroline Leal dedica sua análise à emergência de duas importantes sociedades carnavalescas: Esmeralda e Os venezianos. Para realizar esse estudo histórico, Leal recorre à imprensa do período e percebe como masculinos e masculinidades foram gestados na reconfiguração da festa de rua e nos bailes fechados. Nesse exercício analítico, a autora também percebe a constituição de hierarquias produzidas a partir da classe social e destaca como esse “novo carnaval” fez parte de um jogo político mais amplo, que pretendia refletir e representar a modernização do país.

Daniel Welzer-Lang (2001) escreve sobre alguns espaços esportivos que são historicamente constituídos como masculinos, como os estádios de futebol. Sendo assim, no artigo Reflexões sobre os abalos da masculinidade hegemônica no futebol: das torcidas gays na década de 1970 aos campeonatos homossexuais da atualidade, Leonardo Martinelli reconhece essa realidade, mas é desafiado por torcedores de futebol da década de 1970 que criam as primeiras “torcidas gays”. Martinelli percorre as publicações que noticiaram essa emergência no Sul e Sudeste do Brasil, problematiza os preconceitos sofridos por esses torcedores autodeclarados como homossexuais e chega até os dias atuais com a criação de campeonatos nacionais que congregam jogadores homossexuais. Da arquibancada ao campo de futebol, Martinelli encontra sujeitos que nessas últimas décadas provocaram a masculinidade hegemônica no futebol. Atento às estratégias mobilizadas por esses sujeitos, o autor também evidencia que a homofobia é como um zagueiro de marcação cerrada, mas que não impede os bons dribles e a invenção criativa de modos de ser homem no futebol.

A alimentação tem gênero? Ou melhor, os nossos hábitos de alimentação também podem ser generificados? A pergunta que mobiliza dois campos aparentemente distantes está presente na análise atenta produzida por Marina Pedersen no artigo Heteronormatividade e homofobia na propaganda de uma hamburgueria. No texto, a autora parte de uma propaganda de hambúrguer publicada no Facebook e desconstrói os símbolos e sentidos das masculinidades que são agenciados na tentativa de incentivar o consumo do hambúrguer; para tanto, demonstra como a carne é colocada como um alimento que além de masculino, serve para confirmar a heterossexualidade compulsória a ser assumida pelo “homem de verdade”. Assim, o prato perfeito da heteronormatividade é composto pelo o consumo de carne, a homofobia e a heterossexualidade masculina.

Por fim, e a partir dos textos citados, enfatizamos a potência que o olhar amplo e multifacetado sobre as masculinidades pode nos proporcionar, complexificando e interrogando as narrativas hegemônicas, e denunciando criticamente as hierarquias sociais pautadas na naturalização da condição do homem, dos masculinos e das masculinidades, apontando outros e novos (des)caminhos na produção histórica, social, política e subjetiva das masculinidades, inclusive nesse tempo pandêmico.

Referências

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Rafael França Gonçalves dos Santos – Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Membro do LabQueer – Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros / UFRRJ. E-mail: rafael.fgs@hotmail.com


Natanael de Freitas Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPHR / UFRRJ / CAPES). Membro do LabQueer – Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros / UFRRJ e do Laboratório de Educação em Direitos Humanos, da UFABC. E-mail: natanaelfreitass@gmail.com


SANTOS, Rafael França Gonçalves dos; SILVA, Natanael de Freitas. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 11, n. 22, dezembro, 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Direitos humanos, sensibilidades e resistências / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2020

A história como ciência, desde há muito tempo, é alvo de disputas políticas e intelectuais que colocam em xeque um discurso amplamente difundido, que sustentava a existência de uma suposta imparcialidade no ofício do historiador e da historiadora. No entanto, ao se aproximar de diversas áreas que compõem as Ciências Humanas e Sociais, com intuito de pluralizar seus sujeitos e objetos, a história, e, portanto, a própria historiografia, viram-se envoltas em problemáticas que as questionavam como campo discursivo neutro, impelindo-as à produção de um tipo de conhecimento marcado pelas posições políticas e ideológicas, que por sua vez, possuem uma forte ancoragem em processos socioculturais do presente que transbordam em subjetividades.

Desta intersecção entre história, novos sujeitos, objetos multifacetados e pluralização dos discursos sobre o passado, a temática dos direitos humanos, surge como um campo que convoca historiadores e historiadoras a pensar a produção de sujeitos, os processos de violação e as diversas formas de existência, em seu atravessamento por questões da interculturalidade, identidades, igualdade, equidade, justiça social e representatividade, entre outras, que constroem as concepções atuais de dignidade humana e respeito a diversidade.

Este Dossiê, n. 36, intitulado Direitos humanos, sensibilidades e resistências, que se apresenta com caráter multi, trans e interdisciplinar, é constituído por dez artigos, uma entrevista, um texto composto por relatos e duas resenhas. Os trabalhos aqui apresentados, versaram sobre as relações da história com os direitos humanos, as sensibilidades e os processos de resistência.

O historiador Reinaldo Lindolfo Lohn no artigo intitulado A utopia dos direitos humanos na cidade: o direito à cidade, reformas urbanas e projeções sociais em Florianópolis (SC) – entre a ditadura e a democracia (1964-2004) discutiu os conflitos gerados pela imposição de reformas urbanas em Florianópolis (SC), ao longo da ditadura militar, com desdobramentos no período democrático. Tomando o acesso à cidade como uma das dimensões dos direitos humanos, o autor discute a constituição do espaço urbano como um elemento de disputa entre as camadas médias e os grupos populares urbanos.

Ernani Soares Rocha e Sueli Siqueira no artigo, Percepção dos jovens sobre o novo território 10 anos depois da desterritorialização: o caso de Itueta, abordaram, por meio de entrevistas, a percepção dos jovens do município Itueta que vivenciaram, entre os anos de 2000 e 2006, o processo de realocação de sua sede em função da instalação da Usina Hidrelétrica Eliezer Batista. Ao centrar suas análises em entrevistas, as autoras buscaram compreender os efeitos dessa Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização, nas trajetórias de vida de jovens e adolescentes que habitavam até então a sede do referido munícipio

O artigo A educação no município de Xaxim: dimensões históricas e políticas da universalização da educação básica (1910-2020), de Paulo Roberto Da Silva e Joviles Vitório Trevisol, analisou a trajetória da educação no município de Xaxim (SC) no período entre 1920 e 2020. Enfatiza que o direito à educação para todas as crianças em idade escolar do Ensino Fundamental tornou-se realidade apenas no final do século XX, demonstrando a existência das desigualdades regionais que estruturam o Brasil no campo das políticas públicas.

Natalia Ferreira, com o artigo Os desafios do tempo presente e a colonialidade da natureza: intersecções para pensar novas sociabilidades, intenciona discutir sobre a colonialidade a partir de seus aspectos, demonstrando as sobreposições das opressões da Matriz Colonial do Poder a partir da análise de linguagens e hábitos recorrentes que são naturalizados por nossa sociedade.

No artigo Ilha da Magia seletiva: religiões de matrizes africanas e a intolerância religiosa em Florianópolis, Hilton Fernando da Silva Pinheiro evidencia os desafios que as comunidades religiosas de matrizes africanas enfrentam, no que se refere aos direitos de fruição ao espaço público. As reflexões partiram da análise de um ato de intolerância religiosa ocorrido em setembro de 2019, na cidade de Florianópolis – SC, que visibilizou os conflitos existentes em torno de símbolos, monumentos, sujeitos e manifestações religiosas de matriz africana.

Com o artigo intitulado Dignidade humana: o desaparecimento do preto velho Jeronymo – Palmas / PR, meados do século XX, os historiadores Renilda Vicenzi e Carlos Eduardo Cardoso, por meio de um inquérito e de um processo crime, do início do século XX, na Comarca de Palmas / PR, buscam compreender as estruturas de racialização e exclusão social, conferidos a população negra, que marcaram de forma profunda a organização sociojurídica do Estado brasileiro.

Susana Cesco, no artigo O que, como e por que censurar: o trabalho de censura da Polícia Federal na década de 1970, analisou o trabalho de censores, autoridades policiais e a própria reestruturação e atuação da Polícia Federal nas décadas de 1960 e 1970 que passou a atuar como órgão responsável pela censura no país. A autora descreve os caminhos percorridos pela política de controle estatal, especialmente no que diz respeito às normas e critérios adotados para proibir e cercear a livre circulação de ideias.

A historiadora Marlene de Fáveri no artigo Violência política em tempo de guerra: a Exposição de Material Nazista: a Exposição de Material Nazista tratou da Exposição de Material Nazista organizada pelo Departamento de Ordem Política e Social de Santa Catarina nos anos de 1942 e 1943, quando o Brasil declarava guerra aos países do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao se debruçar sobre tal processo histórico, a autora visa analisar o papel da Polícia Política na repressão e perseguição de populações originárias da Itália e Alemanha, destacando a atuação de tal instituição na construção de discursos políticos que fomentavam o medo e a repulsa pelo outro entre a população catarinense.

O artigo Marcelino Chiarello: um defensor dos direitos humanos, de Cesar Capitanio e de José Carlos Radin, evidenciou a formação e a militância do vereador Marcelino Chiarello, de Chapecó-SC, sobretudo, o seu envolvimento na defesa dos direitos humanos, relacionandoa com uma formação sociopolítica alicerçada na vertente religiosa da Teologia da Libertação e da influência do Bispo Dom José Gomes. Os autores destacam sua atuação junto aos movimentos sociais e sindicatos, em um projeto que visava radicalizar o campo da política formal.

Com o artigo Rezar, lutar, lavrar: missionários, militares e indígenas na composição das fronteiras da Província do Amazonas (1851 – 1852), Paulo de Oliveira Nascimento abordou o projeto de construção das fronteiras da / na Província do Amazonas, num momento em que as autoridades imperiais (1851 – 1852) buscavam nortear a ação política e administrativa para modernizar a região. Através da expansão da fronteira, pretendiam implementar o projeto geopolítico de “civilização” dos indígenas e modernização da economia naqueles rincões do Império do Brasil, na tentativa de integrá-los a um projeto modernizador da sociedade brasileira

A atual edição de Fronteiras conta ainda com uma entrevista realizada por Kelly Caroline Noll da Silva que dialogou com a professora Solange Ramos Andrade sobre a temática da religião e da religiosidade católica no Brasil Contemporâneo.

Este número da revista traz uma proposta inovadora, com publicação de um texto composto a partir dos relatos das professoras Andréa Vicente, Adriana Fraga Vieira, Adriana Signori, Elandia S. Thiago e Karla Andrezza Vieira. Os textos foram agrupados e denominado Vozes docentes: lugar de escuta em tempos de pandemia. As professoras participaram da mesa redonda “Lugares de escuta: ensinar História em tempos de pandemia” que compunha a programação do XVIII Encontro de História da ANPUH / SC. Além dos tocantes relatos, o texto é introduzido pelo historiador Rogério Rosa Rodrigues, idealizador da mesa e diretor da ANPUH-SC (2018-2020). Os relatos voltam as luzes às professoras da rede básica de ensino e são traduzidos por Rogério Rosa como narrativas contundentes, sensíveis e engajadas.

Finalizando o número, duas obras compõem a seção resenha. A primeira, realizada por José Antônio Fernandes, analisa as discussões presentes no livro Peronismo: como explicar lo inexplicable, obra organizada por Santiago Farrell, que apresenta uma pluralidade de interpretações sobre o Peronismo, observando que tal temática é ainda bastante controversa e pouco homogênea. A segunda, de Kauê Pisetta Garcia, trata-se do livro intitulado Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade, de Caroline Silveira Bauer. A obra se constitui a partir do resultado de uma pesquisa realizada pela autora sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade.

Neste ano conturbado, em meio a uma pandemia – que nos marcou por muitas perdas, a Fronteiras: Revista Catarinense de História reúne textos sensíveis a diversas causas. São artigos, entrevista e relatos envoltos de sensibilidades e que narraram processos de resistências.

Desejamos uma boa leitura!

Ismael Gonçalves Alves (UNESC)

João Henrique Zanelatto (UNESC)

Michele Gonçalves Cardoso (UNESC)

Organizadores do Dossiê Direitos Humanos, Sensibilidades e Resistências

Samira Peruchi Moretto (UFFS)

Editora da Fronteiras: Revista Catarinense de História


ALVES, Ismael Gonçalves; Cardoso, Michele Gonçalves; MORETTO, Samira Peruchi; ZANELATTO, João Henrique. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.36, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Filosofia e História da Biologia | USP | 2006

Filosofia e Historia da Biologia 39

Filosofia e História da Biologia (São Paulo, 2006-) é uma revista da USP com a parceria da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB). Ela integra as publicações do Centro Interunidades de História da Ciência (CHC) da Universidade de São Paulo. Criada em 2006, passou a ter periodicidade semestral a partir de 2010.

Publica artigos resultantes de pesquisas originais referentes a filosofia e/ou história da biologia e suas interfaces epistêmicas, como história e filosofia da biologia e educação científica.

[Periodização semestral].

Acesso livre.

ISSN 1983-053X (Impressa)

ISSN 2178-6224 (Online)

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Perda de informação e de bens em arquivos e instituições responsáveis por guarda do patrimônio / Revista do Arquivo / 2020

Sinistro, palavra comum no jargão arquivístico e também no vocabulário de seguradoras e órgãos de prevenção a desastres, em quaisquer dos sentidos indicados por sua sinonímia transmite ideia de negatividade.

Segundo o dicionário [1], no adjetivo, sinistro é tudo o que é de “mau agouro, que pressagia desgraças”, ou ainda que “infunde temor, ameaçador, assustador, temível”, ou “o que provoca o mal, perigoso, pernicioso… o que é trágico, calamitoso”. No caso específico do significado substantivo da palavra, sinistro é “qualquer acontecimento que acarreta dano, perda ou morte; acidente, desastre, soçobro”, ou “grande prejuízo material, dano …. sobre o qual se faz seguro”, e finalmente, “risco”.

Entretanto, o sinistro aqui é tratado como uma dimensão da preservação. Dito de outro modo, sob o astuto viés da dialética, o sinistro é a preservação em sua negatividade.

Nesta décima primeira edição da Revista do Arquivo, esse ‘mau agouro’, ou ‘acontecimento’ que incide na realidade dos arquivos, é o foco central de nossas preocupações.

Não é para gostar, é para ficar atento!

Introdução ao Dossiê

Desta vez, um pequeno e substancial mosaico de olhares sobre o tema. Cinco assinaturas em quatro textos a refletirem sobre o tema da preservação nas suas variadas dimensões.

Marcelo Chaves e Marcio Amêndola abrem o espectro da Revista com contundente grito de alerta sobre a cotidianidade e a invisibilidade dos sinistros nos arquivos brasileiros. Faltam números e estatísticas, mas sobram condições e motivações para o “mau agouro que pressagia desgraças” nos arquivos brasileiros. Buscam-se números nos silenciosos relatórios administrativos e também na barulhenta e nem sempre consequente imprensa. Leiam e reflitam com A perda de patrimônio cultural como negatividade da preservação.

Uma das maiores autoridades em conservação e preservação de patrimônio cultural e “alto funcionário” do ICCROM [2], Luiz Pedersoli nos deu a honra de sua entrevista que destila muito conhecimento, equilíbrio e assertividade: O gerenciamento de riscos é um processo contínuo e tem que constar entre as prioridades institucionais.

Tratando da Perda de informações e de bens em arquivos e segurança da informação e o viés digital, Vanderlei dos Santos reitera estudo realizado pelo Ministério da Justiça canadense, que conclui serem quatro os grupos que ameaçam a segurança da informação nos arquivos digitais: a) de natureza tecnológica; b) falha da instituição na adoção de medidas de segurança adequadas; c) ação de usuários autorizados; e d) ação de usuários não autorizados. Confiram!

“Então, é fundamental a visão da preservação digital sempre levando em consideração o que eu chamo do tripé do documento digital, que é o hardware, o software e o suporte, ou seja, onde a informação está registrada”. Com esse trecho da ótima entrevista que conclui o brilhante bloco introdutório, convidamos o leitor a ‘escutar’ com atenção as orientações de Humberto Innarelli em texto intitulado Sinistros em ambientes digitais de arquivos.

Artigos

Recomendações para acervos de arquivo após perdas causadas por incêndio é o título de artigo em que “apresenta-se parte dos resultados da pesquisa que teve como objetivo servir de orientação para o desenvolvimento de um plano de recuperação do acervo pós-desastre. Tudo isso baseado no caso da Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR), sinistrado em setembro de 2018”. Os seus autores são Jorge Dias da Silva e Eliezer Pires da Silva.

Denise Aparecida Soares de Moura, no seu Montando as peças de um quebra-cabeças: dispersão de informações e bens em arquivos, trata de um dos fenômenos mais comuns e dos menos difundidos no rol de sinistros que causa perda de informações e fere pilares da ciência arquivística, como os princípios da proveniência e da organicidade dos documentos de arquivo: trata-se do pouco conhecido fenômeno da dissociação.

“Cada vez mais, obras de arte, artefatos arqueopaleontológicos, antiguidades, fauna/flora e obras bibliográficas são subtraídas, furtadas ou roubadas de seus lugares de salvaguarda para que sejam empregadas no mercado internacional…”. Este tema abordado por Rodrigo Christofoletti e Nathan Agostinho é de suma importância e remete-nos à reflexão sobre os sistemas de segurança das instituições de guarda de bens culturais. Leiam Tráfico ilícito de bens culturais: uma reflexão sobre a incidência do furto de patrimônio bibliográfico raro no Brasil.

Pablo Antonio Salvador Vasquez e Maria Luiza Emi Nagai são autores que nos apresentam a Contribuição da tecnologia de ionização gama na recuperação de acervos do patrimônio cultural, a partir de revisão bibliográfica e de exposição de práticas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Um alento em meio às sombras.

Isis Baldini escreve ensaio em que arrola dados comparativos de diferentes fontes, de vários sinistros ocorridos no mundo, e no Brasil, em particular, chamando a atenção para o aumento significativo desses eventos nas instituições de patrimônio cultural. Suas análises são também baseadas em ocorrências experimentadas em sua vida profissional, com as quais ela se deparou “com inúmeras situações de emergências, sendo que algumas vieram a público, pela sua própria magnanimidade do evento, e outras não”.

Ainda dentro do tema do dossiê, esta edição nº 11 oferece aos seus leitores a oportunidade de acesso inédito em nossa língua pátria, ao excelente artigo do canadense Jean Tétreault, gentilmente cedido e autorizado pelo periódico Jornal da Associação Canadense para a Conservação e Restauro (J.CAC). Trata-se de verdadeira obra de referência sobre o assunto.

A subseção Autor(a) convidado(a) traz excelente texto coletivo que nos oferece a oportunidade de conhecermos Waldisa Rússio, sob a perspectiva apontada pelos complexos trabalhos de organização do arquivo pessoal dessa importantíssima museóloga brasileira. A assinatura é coletiva e multidisciplinar: Viviane Panelli Sarraf, Paula Talib Assad, Karoliny Aparecida de Lima Borges, Sophia Oliveira Novaes, Guilherme Lassabia Godoy, Carlos Augusto de Oliveira e Lia Cazumi Yokoyama Emi. O título do artigo é Museus, Arquivos Pessoais e Memórias Coletivas – uma análise baseada na experiência de sistematização do Fundo Waldisa Rússio no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Tanto conteúdo de primeira qualidade é para encher de alegria e de orgulho a instituição e os editores da Revista do Arquivo.

Intérpretes do Acervo

Karoline Santana Moreira, assistente social e pedagoga, Katherine Cosby, historiadora e Joyce A. Martirani, comunicadora social. Pesquisadoras, cujos interesses abrangem distintas áreas do conhecimento e a busca por dados e contextos que agregam veracidade às suas respectivas linhas de pesquisa, tendo em comum a singularidade da presença no (do) Arquivo do Estado de São Paulo.

Prata da Casa

Desta vez, não é um setor em destaque, mas uma atividade coadjuvante e silenciosa para resguardar o trabalho dos diversos setores e fazeres técnicos de uma instituição arquivística. Convidamos o leitor a conhecer um pouco das estratégias utilizadas por profissionais responsáveis pela coordenação dos trabalhos de gerenciamento de riscos no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Vitrine

Os dramas para quem quer pesquisar arquivos da televisão brasileira; a riqueza dos documentos cartoriais para a escrita da História; a falta de visão patrimonial para manutenção de arquivos escolares e crônica de memórias de uma garagem. Esses são grandes assuntos tratados no formato ligeiro desta seção, assinados, respectivamente, por Eduardo Amando de Barros Filho, Mara Danusa Bezerra, Priscila Kaufmann Corrêa e Isaura Bonavita.

Arquivo em Imagens

O inverso (perverso) da preservação. O título já nos incita a um mergulho em imagens do “lado B” da preservação. Para quem tem sensibilidade e apreço pelo patrimônio cultural, são imagens chocantes, como uma arte em estado degenerado.

Memórias na Pandemia

Oferecemos duas distintas expressões do impacto da “pandemia” em nós. Camila Brandi, que condensou suas sensações relacionadas ao cotidiano do(s) arquivo(s), no exato dia 19 de junho; e Isaura Bonavita, em sua crônica lírica desaguada na poesia de Cora Coralina.

Atentem. Comentem. Critiquem!

Notas

1. Ver: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=kLNdM

2. Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (a sigla ICCROM é a original do Inglês)

Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 11, out., 2020. Acessar publicação original [DR]

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The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith – Workers and Race before Liberation Theology | Ricardo Cubas Ramacciotti

O livro “The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884-1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology”, deRicardo D. Cubas Ramacciotti, publicado em 2018, chegou em boa hora. Abrange uma temática importante para o campo dos estudos sobre a história do catolicismo na América Latina na virada do século XIX para o XX.

Destacamos, ainda, a alta relevância que os temas relacionados à relação entre religião e política têm tido nas últimas décadas. Não se trata mais tão somente de conflitos localizados, na Irlanda, na Palestina, nos Balcãs, como o noticiário internacional tornara rotineiros no último quartel do século XX. Para compreender e analisar a conjuntura política internacional, nacional ou regional tornou-se indispensável nos despirmos das fantasias iluministas. As interpretações iluministas consideraram os espectros da irracionalidade produzidos por séculos de predominância da dominação religiosa e da sacralização do poder como superados, dado o avanço do desencantamento do mundo.

À relevância da obra que apresentamos aos leitores de Almanack, junte-se a qualidade de sua edição, publicado na coleção Religion in the Americas Series da prestigiada editora Brill, criada em 1683 em Lieden, nos Países Baixos, e que tem sede também em Boston, nos EUA [3]. Em português tem por título: “A política da religião e a ascensão do catolicismo social no Peru (1884-1935): Fé, Operários e Raça antes da Teologia da Libertação”. Tendo realizado estudos de mestrado e doutorado na Universidade de Cambridge na Inglaterra, o historiador havia feito sua graduação em História na Universidade Católica do Peru. Atualmente, é professor associado na Universidad de los Andes, em Santiago do Chile.

Ricardo Cubas optou pela metodologia e pelas técnicas de pesquisa da história das ideias (selecionando e organizando conteúdos temáticos). Estamos diante de um livro potente, que cobre uma lacuna para os estudos da história do pensamento católico na América Latina. E, diga-se de passagem, “Latina”, porque constituía a América que rezava em latim, na percepção dos maçons das lojas de Londres e da Filadélfia, tão atuantes que foram nos processos de independência dos países ao Sul do rio Grande (do México até a Patagônia). A nosso ver, mais importante do que destacar as disputas entre Inglaterra e França pelo espólio dos impérios ibéricos no século XIX, convém atentar para o olhar colonial dos agentes dos novos impérios, que levou os franceses a proclamarem suas afinidades com a latinidade para justificar suas ambições imperialistas. Entretanto, as associações entre a catolicidade da América Latina e o “atraso” e outras desqualificações intelectuais e morais se apresentaram no palco destas disputas e estão a produzir efeitos políticos e ideológicos que ecoam até o tempo presente. [4]

O livro aborda a problemática da relação entre religião e política no contexto mais amplo do conflito entre o catolicismo e os movimentos de secularização da sociedade peruana. Analisa o processo de renovação do mundo católico, face às transformações socioeconômicas da expansão global do capitalismo industrial a partir da década de 1860. A temporalidade enfocada vai de o fim da Guerra do Pacífico (1879-1884) até os anos imediatamente posteriores a crise mundial de 1929 e a queda do regime de Augusto B. Leguía em 1930. Neste período, a formação histórica peruana iniciou um processo de reconstrução nacional caracterizada pela aplicação de novos modelos de crescimento econômico e desenvolvimento urbano.

Entretanto, os processos históricos transnacionais não implicaram tão somente questões referidas à expansão econômica e modernização urbano-industrial. Em toda esta temporalidade abrangida pelo livro em tela, ocorreram disputas entre a reação conservadora (do fundamentalismo católico ultramontano) e o processo de modernização e reforma do catolicismo. Durante o papado de Pio IX (entre 1846-1878) ocorreu uma forte reação conservadora que promoveu a devoção ao Sagrado Coração e estimulou a revivificação [5] da teologia tomista, atualizando o neotomismo das reformas religiosas do século XVI (também conhecido como segunda escolástica). No papado seguinte, Leão XIII promulgou a encíclica Aeterni Patris que, mais do que qualquer outro documento, forneceu uma carta para a atualização histórica do tomismo – o sistema teológico medieval baseado no pensamento de Tomás de Aquino (século XIII) que fora atualizado no século XVI; e que se tornou oficial e tido como sistema filosófico e teológico da Igreja Católica na virada para o século XX. Deveria ser normativo não apenas no treinamento de padres nos seminários da igreja, mas também na educação dos leigos nas universidades. Por outro lado, introduziu na igreja de Roma, através da encíclica Rerum Novarum (de 1891), a reflexão sobre a “questão social”, que convocou os católicos a pensarem e agirem diante do avanço do movimento operário organizado internacionalmente (Associação Internacional dos Trabalhadores, de 1864, e II Internacional Socialista, de 1889, marcada pela reorganização após a forte repressão política aos movimentos operários depois da Comuna de Paris, de 1871). Estavam dadas as condições históricas de avanço e consolidação das duas posições políticas que dividem o campo político do catolicismo romano desde o último quartel do século XIX: o integrismo e o solidarismo.

Temos no livro de Ricardo Cubas um enquadramento da circulação de ideias entre Europa e América Latina, que foi tratada em sua complexidade e abrangência, envolvendo tanto um processo de expansão da internacionalização do capitalismo, quanto uma retomada vigorosa do catolicismo e do tomismo [6], que constitui também um processo inscrito no plano internacional. Afinal, “católico” é sinônimo de “universal”.

O livro de Cubas Ramacciotti analisa como ocorreram mudanças no catolicismo em termos globais e como manifestaram-se no caso peruano, onde a secularização do poder implicou um processo de transição de um governo confessional que proibia a culto público de credos não católicos ao reconhecimento legal de diferentes religiões, especialmente a partir de 1915, e, posterior à separação entre igreja e Estado. Também implicou uma influência eclesiástica decrescente sobre a legislação peruana, especialmente sobre temas relacionados à educação pública e à concepção católica de direito natural, família e casamento. O capítulo dedicado a estas questões está muito bem construído.[7] Ocorreram, ainda, a eliminação de tribunais corporativos especiais para o clero e o deslocamento gradual da Igreja de funções que passaram para o controle estatal, como o registro civil, o bem-estar social e a saúde pública. Outra característica, que não é o foco principal de estudo neste livro, mas está bem colocado no livro, foi a transformação das relações econômicas entre igreja e Estado, incluindo uma expropriação antecipada de algumas propriedades eclesiásticas e uma redução gradual – embora não a eliminação – de certos privilégios fiscais e subsídios públicos à Igreja.

Do ponto de vista sociopolítico, a secularização foi caracterizada pela influência de novos atores: liberais, maçons e positivistas, que, por razões muito diferentes, desafiaram a hegemonia cultural e social do catolicismo no Peru. Por outro lado, os protestantes visavam alcançar maior tolerância religiosa para expandir seus projetos pastorais e educacionais. Marxistas e apristas questionaram as estruturas econômicas e sociais do país como um todo e defendiam uma revolução radical. O livro aborda, portanto, um universo de três tópicos interconectados: a resposta eclesiástica à secularização da política, a revitalização interna da Igreja no Peru e a ascensão do catolicismo social. Paradoxalmente, essa situação permitiu à Igreja promover várias iniciativas pastorais, sociais, educacionais e políticas que, por sua vez, foram fundamentais para preservar e expandir a presença católica na sociedade peruana.

A interpretação de Ricardo Cubas é de que a aplicação do pensamento social católico no Peru teve que ser adaptada à realidade específica do país e apresentou respostas distintas daquelas implementadas na Europa. O livro analisa, assim, uma tendência dentro do catolicismo peruano algumas décadas antes do surgimento da Teologia da Libertação, que foi moldada por diferentes paradigmas teológicos e políticos. Tal situação avançou com uma agenda reformista, mas anti-revolucionária, que abordava a nova política social, incluindo os trabalhadores urbanos e as populações indígenas. Essa agenda englobava uma defesa dos direitos individuais e corporativos de trabalhadores e dos índios contra seus detratores e exploradores. Demandava também mudanças legais e institucionais para proteger esses direitos; iniciativas de bem-estar; uma reavaliação de culturas e línguas nativas; e esforços para integrar as populações indígenas.

Na organização dos capítulos, o livro inicia com informações históricas sobre o regalismo no mundo hispano-americano, de fins do século XVIII, que deu suporte à monarquia católica. Situou o Absolutismo Ilustrado e suas reformas até a independência política, provocando uma crise eclesial que ficou sujeita às pressões da Santa Aliança e tudo que implicou de afirmação da reação conservadora, na América Latina, tanto quanto na Europa.

As Parte II e III do livro são as melhores que o autor nos apresenta, seja pela pesquisa que aparece em sua plenitude na narrativa histórica empreendia pelo autor, seja pelas novidades que aporta. Nelas o livro se desprende da formatação de pesquisa de tese de doutorado que deixava transparecer até então. Os subtítulos são sugestivos: A revivificação católica (The Catholic Revival) [8] e Catolicismo Social (Social Catholicism) [9]. Nesta parte III, não podemos deixar de ressaltar o tratamento dado à criação dos círculos operários [10], uma estratégia global da igreja romana. Paralelamente à formação intelectual do laicato através de uma política educacional, o catolicismo social voltou-se para o operariado dos centros urbanos latino-americanos (no Peru, e no Brasil). [11]

Entre os pontos altos do livro está a forma como Ricardo Cubas pontua numa cadência bem distribuídas as forças políticas divergentes no interior do catolicismo romano. Analisa, por exemplo, o renascimento da educação católica, e aqui estamos traduzindo literalmente a expressão utilizada no original do texto de tese: “The rebirth of Catholic Education”.[12] No Brasil, a historiografia tem usado outra terminologia para referir-se à reforma católica do final do século XIX: recristianização pelo novo esforço de evangelização e repovoamento das diferentes regiões que compõem o país. A nosso ver, esta outra conceituação é mais adequada, pois, de fato, os episódios analisados envolvem a evangelização promovida durante o período colonial e a estratégia de conversão abrangente através dos colégios dos jesuítas. Com a expulsão dos jesuítas da Europa (que atingiu também as áreas colonizadas nas Américas), no século XVIII, e com o avanço do processo de secularização produzido pela radicalidade da revolução burguesa na França, mas não só, seria demasiado e historicamente impróprio denominar a reforma religiosa de modernização do catolicismo em fins do século XIX de “renascimento da Educação católica”. No Peru, como também no Brasil, ocorreu, desde então, uma pregação religiosa de que o Estado não é capaz de manter escolas públicas de qualidade [13]. De fato, a estratégia tão bem descrita por Ricardo Cubas, para o caso do Peru, mas que também ocorre em outras formações históricas da América Latina, foi o “repovoamento da Igreja”, com a vinda de educadores missionários para criação de colégios confessionais católicos, com motivações claras na direção de formação do laicato urbano, letrado e moderno.[14]

Para o caso do Peru, Ricardo Cubas destaca a força política da Educação católica, tendo em vista uma atuação política diante da separação entre igreja e Estado. Muitos colégios foram criados (tal como no Brasil), e ressalta a importância da Congregação dos Sagrados Corações (de Jesus e de Maria), que chegou no Peru em 188815, sendo muito prestigiada pela elite católica peruana. A Congregação havia sido criada em Paris, na Rue Picpus, em 1800.

Não por acaso, a efervescência política e excelência da produção intelectual peruana neste período é notável, pelas possibilidades de elaboração de uma reflexão marxista original e de peso teórico na pena de José Carlos Mariátegui (em seu livro, “Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana”, de 1924); tanto quanto a criação de condições históricas para a elaboração mais acabada da Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez, monge dominicano de ascendência quéchua. Tanto o revolucionário, quanto o teólogo estudaram na mais antiga universidade das Américas, a Universidad Nacional de San Marcos. O livro mais conhecido de Gutiérrez, “A Teologia da Libertação: História, Política e Salvação”, de 1971, responde ao movimento mais amplo emergido no Segundo Pós-Guerra (décadas de 1950-60) que resultou na convocação das conferências episcopais latino-americanas16, cujos primeiros resultados influíram diretamente na inclusão da pauta de justiça social e opção preferencial pelos pobres.

Notas

3. CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology, Lieden/ Boston: Brill, 2018, 311 p.

4. NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Sobre o Conceito de América Latina: Uma Proposta para Repercutir nos Festejos do Bicentenário. Revista Pilquen. Sección Ciencias Sociales, v. XII, p. 1-7, 2010.

5. Empregamos aqui a expressão “revivificação” retirada do livro de Carl Schorske: SHCORSKE, Carl. A revivificação medieval e seu conteúdo moderno: Coleridge, Pugin e Disraeli, In Pensando com a História. Indagações na Passagens para o Modernismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 88-107.

6. Temos referido a este movimento de revigoramento do tomismo que avança pelo século XX, como “terceira escolástica”. Nem tanto pela “revivificação” neotomista do medievalismo da reação conservadora e do conservadorismo romântico, mas, sobretudo, pela reforma religiosa de modernização e inclusão da “questão social” no pensamento católico, em sua incidência sobre o campo jurídico. NEDER, Gizlene. Duas Margens. Ideias Jurídicas e Sentimentos Políticos na Passagem à Modernidade no Brasil e em Portugal, Rio de Janeiro: Revan, 2011.

7. Parte I, capítulo 2: The Secularisation Process during the Aristocratic Republic (1884–1919), p. 49-68. O tema é importantíssimo. O debate sobre o casamento civil no Brasil arrastou-se por longos anos onde a confrontação entre o catolicismo ultramontano (que concebia o casamento como um sacramento, indissolúvel) e o catolicismo ilustrado (defensor da modernização do direito de família) criou impasse que resultou no uso dos dispositivos legais das Ordenações do Reino (livro IV, Ordenações Filipinas de 1603) por quase um século depois da independência do país de Portugal (1822) e 27 anos depois da república proclamada. NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Ideias Jurídicas e Autoridade na Família, Rio de Janeiro: Revan, 2007.

8. CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology, Parte II, p. 99-168.

9. Ibidem, Parte III, p. 169-200.

10. Ibidem, p. 184.

11. Os círculos operários no Brasil foram pesquisados e interpretados no trabalho pioneiro de Jessie Jane de Sousa Vieira. SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários- a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2002.

12. Ibidem, p. 144-145.

13. Ibidem, p. 145.

14. GOMES, Francisco José. Le projet de néo-chrétienté dans le diocèse de Rio de Janeiro de 1869 à 1915. Tese de Doutorado. Toulouse: UTM, 1991. GOMES, Francisco José Silva. De súdito a cidadão: os católicos no Império e na República,.In: MARTINS, Ismênia de Lima; IOKOI, Zilda Márcia Grícoli e SÁ, Rodrigo Patto de. (Orgs.). História e Cidadania. São Paulo: Humanitas Publicações/FFLCH-USP, ANPUH, 1998. pp. 315-326.

15. No Brasil, a Congregação dos Sagrados Corações chegou em 1911.

16. Rio de Janeiro (1955), seguida da de Medellín, Colômbia (1968) e Puebla, no México (1979), as mais importantes.

Referências

CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884-1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology, Lieden/ Boston: Brill, 2018, 311 p.

GOMES, Francisco Jose Silva. De sudito a cidadao: os catolicos no Imperio e na Republica, In: MARTINS, Ismenia de Lima; IOKOI, Zilda Marcia Gricoli e SA, Rodrigo Patto de. (Orgs.). Historia e Cidadania. Sao Paulo: Humanitas Publicacoes/FFLCH-USP, ANPUH, 1998. pp. 315-326.

GOMES, Francisco Jose. Le projet de neo-chretiente dans le diocese de Rio de Janeiro de 1869 a 1915. Tese de Doutorado. Toulouse: UTM, 1991.

NEDER, Gizlene. Duas Margens. Ideias Juridicas e Sentimentos Politicos na Passagem a Modernidade no Brasil e em Portugal, Rio de Janeiro: Revan, 2011.

NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO FILHO, Gisalio. Ideias Juridicas e Autoridade na Familia, Rio de Janeiro: Revan, 2007.

NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisalio. Sobre o Conceito de America Latina: Uma Proposta para Repercutir nos Festejos do Bicentenário. Revista Pilquen. Seccion Ciencias Sociales, v. XII, p. 1-7, 2010.

SHCORSKE, Carl. A revivificacao medieval e seu conteudo moderno: Coleridge, Pugin e Disraeli, In Pensando com a Historia. Indagacoes na Passagens para o Modernismo, Sao Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 88-107.

SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Circulos Operarios- a Igreja Catolica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2002

Gizlene Neder1;2 – Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Professora Titular de História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail: gizlene.neder@gmail.com


CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology. Lieden/ Boston: Brill, 2018. Resenha de: NEDER, Gizlene. Secularização e reforma católica no Peru na virada para o século XX. Almanack, Guarulhos, n.26, 2020. Acessar publicação original [DR]

El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823)

O bicentenário do triênio liberal (1820-1823-2020-2023) espanhol ensejou comemorações e lançamentos menores do que o impacto dos eventos de duzentos anos atrás. Se ninguém mais afirma, como Menéndez Pelayo, que foi um tempo “patológico” na história espanhola [3], a atenção concedida ainda é pequena, principalmente se comparada aos conflitos atlânticos da década anterior.

A “Espanha de Fernando VII” voltou a ser estudada com afinco ao menos desde a célebre obra de Artola, [4] mas o triênio liberal ainda tinha como seu livro mais conhecido um opúsculo do começo da década de 80, a síntese de Alberto Gil Novales [5]. Desde então, houve uma renovação historiográfica gigantesca, principalmente na história política. Ganharam maior fôlego os estudos sobre territórios específicos, sobre a imprensa, novas sociabilidades e, principalmente, aqueles que “desnacionalizavam” os episódios [6].

Dentro dessa perspectiva “internacionalista”, o triênio liberal tem dois atrativos únicos. O primeiro é seu inegável impacto europeu, pois o levantamiento de Riego foi feito numa Europa que, no começo de 1820, era dominada pela Santa Aliança e pelas monarquias restauradas. Ao impulso espanhol, houve também revoluções importantes em Portugal e nos territórios italianos. O segundo é sua faceta atlântica. Se no começo da década de 20 se concretizaram as independências na América, também foi naqueles anos que mais uma vez se colocou em jogo a possibilidade de uma nação atlântica, experiência fundamental tanto para o mundo hispânico quanto para oportuguês [7]:

La revolución española de 1820 tuvo desde el inicio una repercusión que trascendía al espacio peninsular. En primer lugar, porque habiendo estallado en el seno de las tropas reunidas en Andalucía para combatir la insurrección de los territorios de ultramar, su triunfo supuso la paralización de la política de expediciones militares que pretendía devolver los territorios de América a la obediencia de la monarquía española. (…) Y, en segundo lugar, porque el triunfo del movimiento en España colocó en el primer plano de la actualidad el valor de la Constitución de 1812 como instrumento para transformar las monarquías en regímenes liberales. (p. 155)

É justamente no esforço de desnacionalizar o período que a nova obra de Pedro Rújula e Manuel Chust faz sua maior contribuição ao condensar em poucas páginas um apanhado das últimas contribuições historiográficas dos dois lados do Atlântico. A envergadura espacial da obra também resulta, em parte, das trajetórias individuais dos dois autores. Ao passo que Chust tem enveredado pelo tema americano, Rújula é especialista nas questões aragonesas entre o triênio liberal e as guerras carlistas [8].

O resultado é um livro único que atualiza o objetivo de Gil Novales nos anos 80, o de fazer uma obra de referência para os estudos do triênio liberal, agora juntando a questão americana, antes ausente. De fato, não apenas adiciona o tema das independências, mas o toma como um dos mais importantes para definir os rumos do Triênio.

Há um esforço de distanciamento dos antigos preconceitos acerca do Triênio, de ter sido um intervalo liberal de pouca profundidade, com baixa popularidade entre as classes populares e tomado pelo caos das facções. Para isso, enfatiza principalmente a experiência política que significou, extrapolando o caráter parlamentar e difundindo novas culturas políticas tanto entre os liberais – exaltados e moderados [9] – como entre os absolutistas:

el marco constitucional establecido por la revolución de 1820 permitió la aparición de una esfera pública donde los ciudadanos comenzaron a participar según sus posibilidades y sus intereses. El Gobierno moderado hubiera deseado que la política se hiciera en el seno de las instituciones, pero existían otros actores que habían experimentado la posibilidad de actuar en el terreno político y que no estaban dispuestos a renunciar a potenciales parcelas de poder. El debate fue muy intenso. (p. 46)

Como é negada a tese reacionária de que a Constituição de 12 e o primeiro liberalismo eram ideias importadas, exógenas à Espanha, resta aos autores pincelar respostas a questões inevitáveis para o triênio. Por que fracassou? Qual a relação entre os liberais e as independências na América?

A resposta que os autores oferecem para explicar o “fracasso liberal” passa pela atuação do rei Fernando VII e pela reação estrangeira. A tentativa liberal de reformar a monarquia, desde as propostas moderadas de instituir uma segunda câmara, tendo os exemplos ingleses e franceses como mote, até as mais revolucionárias, com as Sociedades Patrióticas e a diminuição do poder da nobreza e da Igreja, criava uma ameaça institucional permanente às monarquias mais absolutistas. Daí que foi justamente a Rússia a dar maior apoio a Fernando VII para abolir qualquer tipo de Constituição. Ao mesmo tempo, a invasão francesa de 1823 servia para reposicionar a monarquia bourbônica na balança internacional de poder, enfraquecida como estava após as derrotas napoleônicas.

É perceptível que a resposta de Chust e Rújula nega a própria ideia de “fracasso liberal”. O triênio acabou não por seus erros internos, mas por um verdadeiro golpe reacionário europeu. A inversão procedida pelos autores também é uma negação da historiografia que visava mais as questões socioeconômicas da época, muitas vezes crítica à ineficiência prática das medidas liberais. [10]

Quanto à questão americana, os autores também se alinham com a nova história política, principalmente na negação das nacionalidades pré-existentes [11]. Logo, não se poderia explicar as independências como luta da nação mexicana para se libertar da Espanha. Com a tomada do poder pelos liberais, os autores também negam que houvesse uma arbitrariedade por parte da Espanha em relação aos americanos, visto que a igualdade estava concedida pela Constituição, que transformava o Império num gigantesco Estado-Nação. Essa tese igualitária tem mais oponentes historiográficos, como Portillo Váldes.[12]

Recusando as explicações tradicionais, os autores mais uma vez se voltam às questões políticas, pensando principalmente o caso novohispano, o de maior repercussão ao longo do Triênio e também aquele sobre o qual Manuel Chust tem mais familiaridade.[13] Com base na análise do Plano de Iguala [14], a conclusão do livro é que um dos principais motivos para a independência foi o caráter revolucionário da Constituição de Cádis, que tirava poder da elite Criolla para distribuir a outros setores sociais, com destaque para o voto indígena. Sendo assim, a independência ganhava contornos moderados e até reacionários, em perspectiva já ensaiada também para o caso brasileiro:

Para la insurgencia fue mucho más difícil enfrentarse políticamente al liberalismo doceañista que al monarquismo absolutista, dado que ahora podían participar de los mismos presupuestos ideológicos, pero no políticos ni nacionales. Y además estaban los intereses particulares de las diversas fracciones del criollismo, cada vez más proclives a la independencia. No porque esta solo estaba ganando por las armas, sino porque su creciente moderantismo le podía asegurar un control social y político que el liberalismo doceañista podía poner en duda al ser más progresista en bastantes medidas políticas y sociales como, por ejemplo, dar voto a los indígenas universalmente (p. 112).

Livro de entrada nos estudos do período e de síntese de uma nova perspectiva política, El Trienio Liberal é uma defesa do período do liberalismo espanhol do início do século XIX. É notável a simpatia dos autores com os protagonistas estudados, como se escrever a história deles fosse também escrever a defesa de sua luta. Poucas épocas hispânicas foram vividas tão passionalmente quanto aqueles anos, daí que esse resgate histórico não deixa de ser um tributo àqueles sonhos e ilusões.

Notas

3MENÉNDEZ PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003, p. 1362. Vide DURÁN LÓPEZ, Fernando. “Menéndez Pelayo contra Blanco White, o la heterodoxia como patología.” TEJA, Ramón; ACERBI, Silvia. (org.). Historia de los heterodoxos Españoles”. Estudios. Santander: PubliCan, Ediciones de la Universidad de Cantabria, 2012.

4. ARTOLA, Miguel. La España de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999 [1968].

5. GIL NOVALES, AlbertoEl trienio liberal. Madri: Siglo XXI, 1980.

6. ROCA VERNET, JordiPolítica, liberalisme i revolució. Barcelona, 1820-1823. 840 f. Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea). Universitat autònoma de Barcelona, Barcelona, 2007; El argonauta español, nº 17, 2020. Exemplar dedicado a “El trienio liberal en la prensa contemporánea (1820-1823); RUIZ JIMÉNEZ, MartaEl liberalismo exaltado. La confederación de comuneros españoles durante el trienio liberal. Madri: Fundamentos, 2007. LA PARRA, Emílio. RAMÍREZ ALEDÓN, Germán (coord.) El primer liberalismo: España y Europa, una perspectiva comparada. Valencia: Colección literaria, 2003.

7. BERBEL, Márcia Regina. “A constituição espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.

8. HUST, Manuel. La cuestión nacional americana en las Cortes de Cádiz. Valencia: Centro Francisco Tomás y Valiente UNED Alzira-Valencia. Fundación Instituto Historia Social/ Instituto de Investigaciones Históricas de la Universidad Nacional Autónoma de México, 1999; Pedro Victor Rújula. Constitución o muerte: el Trienio Liberal y los levantamientos realistas en Aragón (1820-1823). Zaragoza: Edizións de l’Astral, 2000.

9. pesar dos nomes já consagrados, os estudos específicos sobre cada um desses “liberalismos”, inclusive para apontar seus muitos pontos de fricção internos, são bastante recentes. Vide MORANGE, ClaudeEn los Orígenes del moderantismo decimonónico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e índice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019; e BUSTOS, SophieLa nación no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinión Pública. Tese (Doutorado em História). Universidad Autónoma de Madrid, Madri, 2017.

10. A crítica vinha desde os próprios liberais exilados, passando depois por Marx e sua famosa análise: “en la época de las Cortes, España se encontró dividida en dos partes. En la Isla de León, ideas sin acción; en el resto de España, acción sin ideas”. New York Daily Tribune, 27/10/1854. Disponível em MARX, Karl; ENGELES, Friederich. La Revolución española. Artículos y crónicas, 1854-1873. Madri: AKAL, 2017. A crítica foi atualizada para os termos mais técnicos da historiografia na influente visão de FONTANA, JosepLa crisis del Antiguo Régimen, 1808-1823. Barcelona: Crítica, 1979.

11. As referências para o assunto, por vezes em vieses muito diferentes, são GUERRA, François-XavierModernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica e Fundación MAPFRE, 1992; e RODRÍGUEZ, JaimeThe independence of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

12. PORTILLO VÁLDES, José MaríaCrisis Atlántica – Autonomía e independencia en la crisis de la monarquía. Madri: Marcial Pons Historia, 2006.

13. Embora Chust tenha organizado livros sobre a independência em toda a América, nos artigos costuma trabalhar mais com a do México, como emCHUST, Manuel; SERRANO, José Antonio. “El ocaso de la monarquía: conflictos, guerra y liberalismo en Nueva España. Veracruz, 1750-1820”. Ayer, nº 74, 2009.

14. Sobre o Plan de Iguala, em abordagem também bi-hemisférica, vide FRASQUET, Ivan. Las caras del águila. Del liberalismo gaditano a la república federal mexicana. Castellón: Universitat Jaume I – Instituto Mora – Universidad Autónoma de México – Universidad Veracruzana, 2008.

Referências

ARTOLA, Miguel. La Espana de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999.

BERBEL, Marcia Regina. “A constituicao espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.

BUSTOS, Sophie. La nacion no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinion Publica. Tese (Doutorado em Historia). Universidad Autonoma de Madrid, Madri, 2017.

FONTANA, Josep. La crisis del Antiguo Regimen, 1808-1823. Barcelona: Critica, 1979.

GIL NOVALES, Alberto. El trienio liberal. Madri: Siglo XXI, 1980.

GUERRA, Francois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispanicas. Cidade do Mexico: Fondo de Cultura Economica e Fundacion MAPFRE, 1992;

LA PARRA, Emílio RAMIREZ, ALEDON, German(coord.) El primer liberalismo: Espana y Europa, una perspectiva comparada. Valencia: Coleccion literaria, 2003.

MORANGE, Claude. En los Origenes del moderantismo decimononico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e indice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019.

PORTILLO VALDES, Jose Maria. Crisis Atlantica – Autonomia e independencia en la crisis de la monarquía. Madri: Marcial Pons Historia, 2006.

ROCA VERNET, Jordi. Política, liberalisme i revolucio. Barcelona, 1820-1823. 840 f. Tese (Doutorado em Historia Moderna e Contemporanea). Universitat autonoma de Barcelona, Barcelona, 2007.

RODRIGUEZ, Jaime. The independence of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

RUIZ JIMENEZ, Marta. El liberalismo exaltado. La confederacion de comuneros espanoles durante el trienio liberal. Madri: Fundamentos, 2007.

Lucas Soares Chnaiderman1;2 – Possui graduação em História – Universidade de São Paulo, mestrado em história pela mesma universidade (2015) e atualmente cursa o doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


RÚJULA, Pedro; CHUST, Manuel. El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823). Madri: Catarata, 2020. Resenha de: CHNAIDERMAN, Lucas Soares. Em defesa da experiência liberal. Almanack, Guarulhos, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

Regalismo no Brasil colonial: a Coroa portuguesa e a Ordem do Carmo – Rio de Janeiro 1750-1808 | Leandro F. L. Silva

Superando a tradicional concentração de estudos nas atividades da Companhia de Jesus, as historiografias portuguesa e brasileira produziram nas últimas décadas uma quantidade significativa de trabalhos sobre a atuação de outras ordens religiosas na Época Moderna.[3] Apesar disso, no que tange ao impacto das medidas adotadas na segunda metade do século XVIII para reforçar a autoridade da Coroa face às corporações regulares, o caso paradigmático da expulsão dos jesuítas dos territórios lusitanos em 1759 continua a ser visto como evento quase exclusivo da prática regalista naquela esfera. Nesse quadro, o trabalho de Leandro Ferreira Lima da Silva oferece novas luzes para a compreensão mais ampla das medidas de controle da Coroa portuguesa sobre as ordens religiosas daquele período. Defendida originalmente em 2013 como Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo, a obra foi contemplada em 2016 com o prêmio História Social do referido Programa.

Duas características se destacam na investigação do autor: a abrangência da análise e o caráter minucioso da reconstituição de diferentes contextos que atravessam o período em exame. A consequência é o ambicioso plano da obra, desdobrando-se em quinze capítulos divididos em cinco partes, num total de 556 páginas. A matéria-prima para a análise proveio de diferentes acervos documentais. Devido à perda de grande parte da documentação da antiga Província Carmelitana Fluminense, o autor montou um repertório documental procurando recompor um quebra-cabeça cujas fontes estavam dispersas em arquivos tão distintos e distantes como o Arquivo Central da Província Carmelitana de Santo Elias, em Belo Horizonte; o Arquivo Nacional, o Arquivo Geral da Cidade e o Arquivo da Cúria Metropolitana, no Rio de Janeiro; e diferentes fundos documentais digitalizados do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. A impressão que fica é que o autor praticamente esgotou as fontes disponíveis no Brasil, restando por analisar apenas os arquivos europeus.

A historiografia também recebeu cobertura extensiva no livro. Dialogando com as obras de Evergton Sales Souza e José Pedro Paiva, para mencionar apenas alguns, Leandro Silva se mostra atualizado com relação à produção luso-brasileira sobre as questões da Igreja católica, da Ilustração, da Coroa e da colonização portuguesas no século XVIII. Com base na historiografia, Leandro Silva define o regalismo praticado nos domínios portugueses na segunda metade do século XVIII segundo uma dupla dimensão: a subordinação da Igreja e do clero aos poderes temporais da Coroa, “erradicando privilégios e imunidades”; e a manutenção do catolicismo como religião oficial do Estado, livrando-se, não obstante, das pressões da Santa Sé (p. 27). O tema da reforma regalista na Província do Carmo do Rio de Janeiro não é novo na historiografia. Inaugurado por Francisco Benedetti Filho, foi continuado por Sandra Rita Molina, cuja leitura o rigoroso escrutínio do autor deixou escapar.[4] As questões da administração dos bens da Província, da limitação do quantitativo de religiosos e do relaxamento moral dos carmelitas atravessam as três investigações sobre o tema. Mais recentemente, outro trabalho de Sandra Molina estendeu a análise dos referidos pontos até o final do período imperial, mostrando a continuidade da política regalista do Império do Brasil em relação às medidas adotadas anteriormente pela Coroa portuguesa.[5]

O diálogo com a historiografia internacional é relativamente pequeno na obra de Leandro Silva. Em que pese a lembrança do importante livro coletivo organizado por Ulrich Lehner e Michael Print, como também do já clássico estudo de Samuel Miller, o trabalho carece de referências mais amplas sobre o impacto de medidas de teor regalista que, adotadas por diferentes monarquias europeias na segunda metade do Setecentos, tiveram consequências diretas sobre as atividades das ordens religiosas em seus territórios.[6] Por fim, não existe a tentativa de efetuar um balanço historiográfico das mudanças estimuladas pelas reformas bourbônicas no campo da administração eclesiástica dos domínios hispano-americanos, cujo exame comparativo poderia constituir uma frutífera via de análise para o autor.Mesmo assim, o trabalho possui abrangência e profundidade incomuns para um projeto desenvolvido no âmbito do Mestrado. É o momento de se retomar essa dupla característica, aproximando-se agora do objeto. Trata-se de uma pesquisa que tem como objetivo assinalar os efeitos de diferentes medidas regalistas tomadas pela Coroa portuguesa com relação à Província do Carmo do Rio de Janeiro. Fundada em 1720, a Província do Carmo do Rio de Janeiro constituía desde 1595 uma vice-província que se encontrava até então dependente da Província de Portugal. A fundação fluminense abrangia os conventos do Rio de Janeiro, do Espírito Santo, de Angra dos Reis, de Santos, de São Paulo e de Mogi das Cruzes, bem como o hospício de Itu. Em informação remetida à Corte em 1763, o bispo do Rio de Janeiro denunciava que a própria fundação da Província ocorrera “com o dinheiro angariado através de negociações nas Minas e em outras regiões do Brasil”, com cujos recursos fr. Francisco da Purificação, o primeiro provincial, “soube merecer o agrado dos religiosos de Roma, onde tudo se compra” (p. 146, grifos do autor).

O recorte necessariamente monográfico da pesquisa não impede comparações com outros contextos. O autor traz à análise a recepção de medidas de teor análogo ocorridas nas províncias do Carmo da Bahia e na reformada de Pernambuco. Paralelamente, no que tange à capitania do Rio de Janeiro, o autor discute seu tema à luz de outros quadros, como as medidas de reforma empreendidas pela Coroa junto aos frades capuchos da Província Franciscana da Imaculada Conceição e o papel de carmelitas e franciscanos no mencionado território após o afastamento dos missionários jesuítas. A primeira parte da obra, abrangendo um único capítulo intitulado “A mentalidade regalista setecentista e o clero regular no Império Português”, anuncia o caráter amplo da abordagem do autor. Nessa parte, busca em textos basilares da Ilustração portuguesa, como o Testamento político de D. Luís da Cunha, um conjunto de argumentos que depois seriam postos em prática, ao longo dos reinados de D. José I e de D. Maria I, para o controle das corporações regulares. No discurso dos estrangeirados, a ênfase recai sobre o acúmulo de bens efetuado pelas ordens religiosas, quase sempre pela via de legados testamentários; o ingresso muito numeroso de noviços nas fundações conventuais; a ociosidade dos religiosos; as isenções relativas aos poderes seculares; e a falta de observância das regras. No processo da reforma dos frades carmelitas do Rio de Janeiro, tais pontos reapareceram com força nas ações das autoridades da Província.

A fina reconstituição dos contextos representa o que há de mais valioso no trabalho de Leandro Silva. A segunda parte, a maior da obra e que abrange seis capítulos, intitula-se “A Província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro e o ‘tímido’ regalismo pombalino (1750-1778)”. Na verdade, o material tratado no capítulo é mais amplo do que o indicado no recorte cronológico. O autor examina inicialmente a sublevação ocorrida no Convento do Carmo do Rio de Janeiro em 1743, quando lutas de facções davam o tom da administração da Província, dividindo ocupantes dos cargos em dois grupos opostos: os “filhos do Rio”, que abrangiam os religiosos naturais da referida capitania, e os “filhos de fora”, que, em sua maior parte, agrupavam os religiosos nascidos em Portugal e nas demais capitanias da Colônia (p. 106). Ao longo da segunda parte, o autor desenvolve um argumento muito convincente. Apesar da existência de sérios conflitos na Ordem, e da edição de numerosas medidas que, idealizadas por Sebastião José de Carvalho e Melo na década de 1760, destinavam-se a limitar a entrada de noviços e a diminuir o volume dos bens que ingressavam nas corporações regulares, ao longo do reinado de D. José I as diferentes autoridades coloniais não tomaram medidas rígidas de controle sobre os frades carmelitas do Rio de Janeiro. No contexto em pauta, os poderes coloniais sediados na capitania encontravam-se inteiramente envolvidos nas disputas de limites com a Espanha na região sul da Colônia, que foram apenas solucionados com o Tratado de Santo Ildefonso, em 1777.

A terceira parte da obra abrange dois capítulos. Conforme o seu argumento principal, “se o consulado pombalino deu embasamento teórico às políticas regalistas e aos poderes dos bispos na Igreja nacional e frente à Santa Sé, no reinado mariano a Coroa aprofundou essas posições”. (p. 378). Seguindo, assim, as tendências da historiografia mais recente, o autor não identificou mudanças significativas na política regalista após a saída do Marquês de Pombal, em 1777. Além disso, as autoridades coloniais encontravam-se na ocasião já desembaraçadas dos problemas nas fronteiras do sul. Após a suspensão das eleições da Província em 1783, o vice-rei do Estado do Brasil apresentou à rainha D. Maria I um dossiê, “para fazer conceito do miserável estado em que se acha uma Corporação Religiosa que só serve de descrédito à Religião e de peso e mau exemplo ao Estado” (p. 259). No documento, que pautou os rumos da reforma que seria iniciada dois anos depois, acusa-se uma sucessiva quebra das regras religiosas e dos fundamentos da economia da Província: religiosos adquiriam em Roma ou em Lisboa privilégios honoríficos, afastando-se dos atos litúrgicos e do trabalho em comum; possuíam grande número de escravos pessoais para lhes servir, em contrariedade aos votos de pobreza; e tinham até concubinas, por vezes estabelecidas publicamente em residências próximas às sedes dos conventos, contrariando os votos de castidade. O vasto patrimônio imobiliário da Província, constituído por dezenas de moradias urbanas e fazendas, era mal administrado, chegando ao ponto de não produzir alimento suficiente para os próprios religiosos.

A quarta parte da obra estende-se por cinco capítulos. Após o envio da denúncia do vice-rei à Corte, D. José Joaquim Mascarenhas Castelo Branco, o bispo do Rio de Janeiro, foi nomedo como visitador e reformador da Província do Carmo. A atuação reformadora deste se direcionou principalmente a combater as irregularidades já apontadas pelo vice-rei. Suas ações visaram aprimorar o rendimento econômico das fazendas dos conventos, combater a concessão de distinções pessoais de caráter honorífico e regulamentar as atividades da comunidade, obrigando os frades à celebração dos atos litúrgicos e à assistência no refeitório coletivo. Além da intervenção direta de poderes externos à Ordem, a reforma na Província do Carmo do Rio de Janeiro se distinguiu por sua longa duração se comparada a iniciativas semelhantes introduzidas em outras ordens regulares. Após a resistência dos religiosos, e em aliança com poderes locais, como a Câmara do Rio de Janeiro, a reforma foi encerrada em 1800. A atuação do bispo promoveu um verdadeiro expurgo nos quadros da Província. Seu quadro de religiosos passou de 180 para 47 entre 1780 e 1799.Da perspectiva metodológica, a obra leva em conta que as inúmeras cartas produzidas pelos agentes administrativos envolvidos na reforma da Província Carmelita Fluminense – tais como o bispo do Rio de Janeiro, o vice-rei, os frades representantes da Província, o Senado da Câmara e o Conselho Ultramarino – podem ser vistas simultaneamente como instrumento de dominação da Coroa e como veículo “de negociação de súditos instalados nos mais longínquos pontos do ultramar” (p. 47). Recentemente, essa linha de estudos se revelou importante para um expressivo conjunto de historiadores, que sistematizou o funcionamento dos canais de comunicação política que uniam os diferentes poderes em funcionamento na monarquia portuguesa, nos dois lados do Atlântico.[7]

Introduzida na América Portuguesa em 1580 para cuidar da catequização do gentio e atender demandas espirituais dos colonos moradores na capitania de Pernambuco8, a Ordem do Carmo estabelecida no Rio de Janeiro não foi mais considerada capaz de realizar aquelas tarefas na segunda metade do século XVIII. Analisando os avanços e recuos das iniciativas de reforma, as relações estabelecidas entre os agentes seculares e eclesiásticos, bem como as bases teológicas e canônicas que fundamentaram a iniciativa da Coroa, a obra de Leandro Silva merece figurar ao lado de outras que constituem pontos de partida obrigatórios para o tema, como o clássico trabalho de Caio César Boschi, ou a recente coletânea organizada por Francisco Falcon e Cláudia Rodrigues.9

Notas

3. Com relação à América Portuguesa, a título ilustrativo: AMORIM, Maria Adelina. Os franciscanos no Grão-Pará e no Maranhão: missão e cultura na primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa: Universidade Católica Portuguesa, 2005; SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Para além do claustro: uma história social da inserção beneditina na América portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Niterói: Eduff, 2014.

4. BENEDETTI FILHO, Francisco. A reforma da Província Carmelitana Fluminense (1785-1800). 1990. 190f. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990. MOLINA, Sandra Rita. (Des)obediência, barganha e confronto: a luta da Província Carmelita Fluminense pela sobrevivência (1780-1836). 1998. 338f. Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

5. MOLINA, Sandra Rita. A morte da tradição: a Ordem do Carmo e os escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889). Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Esta obra foi resenhada por BARBI, Rafael José. Catolicismo, escravidão e a resistência ao Império: Um outro olhar. Almanack, n. 15, 2017, pp. 366-370.

6. LEHNER, Ulrich L.; PRINT, Michael (Dir.). A Companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010; MILLER, Samuel J. Portugal and Rome (c. 1748-1830). An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Universitá Gregoriana Editrice, 1978; BEALES, Derek. Prosperity and Plun der. European Catholic Monasteries in the Age of Revolution, 1650-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

7. FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Um Reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

8. HONOR, André Cabral. Envio dos carmelitas à América portuguesa em 1580: a carta de Frei João Cayado como diretriz de atuação. Tempo, v. 20, 2014, p. 1-19.

9. BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; FALCON, Francisco; RODRIGUES, Cláudia (Orgs.). A “época pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV: Faperj, 2015.

Referências

AMORIM, Maria Adelina. Os franciscanos no Grao-Para e no Maranhao: missao e cultura na primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de Estudos de Historia Religiosa: Universidade Catolica Portuguesa, 2005.

BARBI, Rafael Jose. Catolicismo, escravidao e a resistência ao Imperio: Um outro olhar. Almanack, n. 15, 2017, pp. 366-370.

BEALES, Derek. Prosperity and Plunder. European Catholic Monasteries in the Age of Revolution, 1650-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

BENEDETTI FILHO, Francisco. A reforma da Provincia Carmelitana Fluminense (1785-1800). 1990. 190f. Dissertacao (Mestrado em Historia), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 1990.

BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder: irmandades leigas e politica colonizadora em Minas Gerais. Sao Paulo: Atica, 1986.

FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia (Orgs.). A “epoca pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV: Faperj, 2015.

FRAGOSO, Joao; MONTEIRO, Nuno Goncalo. Um Reino e suas republicas no Atlântico: comunicacoes politicas entre Portugal, Brasil e Angola nos seculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2017.

HONOR, Andre Cabral. Envio dos carmelitas a America portuguesa em 1580: a carta de Frei Joao Cayado como diretriz de atuacao. Tempo, v. 20, 2014, p. 1-19.

LEHNER, Ulrich L.; PRINT, Michael (Dir.). A Companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010.

MILLER, Samuel J. Portugal and Rome (c. 1748-1830). An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Universita Gregoriana Editrice, 1978.

MOLINA, Sandra Rita. A morte da tradicao: a Ordem do Carmo e os escravos da Santa contra o Imperio do Brasil (1850-1889). Jundiai: Paco Editorial, 2016.

MOLINA, Sandra Rita. (Des)obediência, barganha e confronto: a luta da Provincia Carmelita Fluminense pela sobrevivência (1780-1836). 1998. 338f. Dissertacao (Mestrado em Historia), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

SOUZA, Jorge Victor de Araujo. Para alem do claustro: uma historia social da insercao beneditina na America portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Niteroi: Eduff, 2014.

William de Souza Martins – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Professor Associado da Área de História Moderna do Instituto de História da UFRJ, onde atualmente ocupa a função de vice-diretor. Membro permanente do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, atuando como editor associado da Topoi: Revista de História. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (2001) com a tese Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700 – 1822), que foi publicada em 2009 pela Edusp. Participa dos grupos de pesquisa Ecclesia (UNIRIO), ART (Antigo Regime nos Trópícos – UFRJ) e Sacralidades (UFRJ).


SILVA, Leandro Ferreira Lima da. Regalismo no Brasil colonial: a Coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808. São Paulo: Intermeios/USP; Brasília: CAPES, 2018. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Monarquia portuguesa e política regalista: ordens religiosas no final do setecentos. Almanack, Guarulhos, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

História, Sujeitos Marginalizados e Alteridades / História Revista / 2020

O dossiê História, Sujeitos Marginalizados e Alteridades que apresentamos na História Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade Federal de Goiás traz para a reflexão, no campo das ciências humanas e sociais, a partir da relação dialógica entre a exclusão e a indiferença, a problemática da alteridade e da marginalização na história e na historiografia. Partindo da crítica às epistemologias das narrativas hegemônicas que privilegiaram a manutenção do status quo e a interpretação factual e determinista do contexto sócio‐histórico, os autores apoiam‐se nas contribuições críticas que remontam às contribuições dos Annales, dos estudos culturais e da decolonialidade.

A teoria da enunciação de Bakhtin nos ensinou que é a partir do dialogismo e da alteridade que nos relacionamos com o outro, nos constituindo e transformando, constantemente, nessa interação. Portanto, somente através das relações dialógicas com outros sujeitos, discursos, saberes, que podemos nos constituir. Existimos a partir do diálogo com o outro, como afirma o autor: “Eu só pode se realizar no discurso, apoiando‐se em nós” (BAKHTIN, 1926, p.192). Partindo dessas reflexões, reunimos nesse dossiê produções narrativas das ciências humanas que rompem com as perspectivas hegemônicas acadêmicas que obliteram as vozes e / ou narrativas dos interlocutores, quase sempre marginalizados, e os reconhecem como coautores da pesquisa numa relação dialógica entre os sujeitos pesquisador / interlocutor, possibilitando assim a produção de vozes polifônicas em suas escritas. Os textos trazem para o centro as visibilidades dos sujeitos e seus saberes em relação a suas regiões, espaços, lugares e não‐lugares, e trânsitos imersos nas práticas socioculturais das diferenças. Refletindo sobre os processos de marginalização dos sujeitos, dos marcadores da diferença que operam exclusões, das resistências, da produção / diluição de identidades, aspectos necessários para compreensão da sociedade local‐global contemporânea.

Esses estudos são de suma importância pois fraturam a fronteira entre cultura de elite e cultura de massas e favorecem a visibilidade de outros sujeitos nas narrativas histórico‐ sociais. Permitem‐nos pensar como a construção do “outro”, que ocupou e ocupa a outra margem das imaginárias linhas abissais, pôde em um espaço ambivalente e intersticial construir estratégias de (re) existência e sobrevivência. Nesse espaço da produção da diferença e da diferenciação como sinalizou Homi Bhabha, nos é possível refletir nestes textos: o agenciamento de sujeitos e movimentos sociais que se articulam a partir do gênero e da sexualidade; uma história a contrapelo dos sujeitos indígenas; as relações de alteridade entre colonizadores e nativos que resistem em terras africanas e ou palestinas. Ainda, no local da cultura e da resistência, podemos refletir sobre como a lógica colonizadora se imiscuiu nas sociedades contemporâneas que, a partir de processos de racialização dos corpos que habitam a preferia do Maranhão, dos homens e mulheres encarcerados na Guiana francesa, vítimas da necropolítica estatal, ou dos trabalhares candangos que foram e são sistematicamente apagados da memória pública do Distrito Federal, cobram da história uma luta pela humanização num sentido freiriano.

É possível pensar ainda como a diferença se manifesta nas representações culturais seja para analisar a exclusão dos negros e latinos nas políticas educacionais dos EUA ou as experiências de reconstrução da democracia no Chile pós‐ditadura por meio do cinema. Em perspectiva semelhante, as contribuições de Raymond Williams para uma revisão da leitura marxista sobre a cultura atestam a possibilidade de pensar culturas alternativas ou de oposição no interior da cultura dominante, como no caso dos sujeitos marginais das “subculturas” jovens das grandes cidades, a exemplo da cena heavy metal do ABC paulista. Pelo viés decolonial os estudos se voltam, ainda, para necessidade de pensar os corpos da juventude negra brasileira e das mulheres negras e trabalhadores na sociedade brasileira.

Assim, Aguinaldo Rodrigues Gomes, Robson Pereira da Silva e Antônio Ricardo Calori de Lion em Educação & emancipação pela agência dos movimentos sociais de sexualidade e de gênero refletem sobre uma pedagogia da diferença que desafia a “machocracia” e indica a capacidade de agenciamento dos movimentos sociais pautados pelo gênero e pela sexualidade. Tiago Duque apresenta um percurso semelhante em uma sensível leitura sobre um regime de (in)visibilidade (reconhecimento) que envolve pessoas trans e não trans, utilizando a categoria analítica da “passabilidade” no texto Epistemologia da passabilidade: dez notas analíticas sobre experiências de (in)visibilidade trans”. Bruno Rodrigues, no texto O contrapelo da história: os negros e indígenas nos caminhos fluviais até o Mato Grosso nas narrativas elaboradas pelos viajantes (séculos XVIII e XIX), valendo‐se das contribuições benjaminianas, analisa a menção e abordagens dos negros e povos indígenas em obras produzidas por viajantes que transitaram pelo Mato Grosso entre os séculos XVIII e XIX, especialmente através das rotas fluviais. Refletindo sobre a colonialidade das relações e seus impactos na construção da alteridade em Moçambique, o texto A missão civilizadora como factor de construção da alteridade colonial em Moçambique, de Denisse Omar, demonstra como os portugueses conseguiram o direito de civilizar os povos considerados atrasados ignorando / silenciando suas histórias. Fabio Bacila Sahd, em Edward Said e os paralelos entre a ocupação da Palestina e o apartheid na África do Sul, analisa as obras saidianas pela chave do colonialismo, estabelecendo comparações recorrentes entre a ocupação israelense e o apartheid sul‐africano. Ainda pensando as apropriações contemporâneas da colonialidade do poder os textos de Vinícius Pereira Bezerra e Luiz Eduardo Lopes: O “Comando Organizado do Maranhão” (C.O.M) e a guerra de facções na periferia maranhense; de Dinaldo Silva Junior: Enseigner en prision: Un devoir d’histoire; de Karolline Santos: Entre a cidade imaginária e a cidade sensível: breve análise da imaginação museal no Distrito Federal; de Pedro Barbosa: A violência social e o genocídio da juventude negra do Brasil, focalizam de maneira competente e acurada como essa lógica produz a violência, o encarceramento, o apagamento das memórias e o genocídio da população negra e pobre no Brasil contemporâneo.

No espectro de uma pedagogia cultural que capta sentidos produzidos na educação histórica ou aprendida nas representações culturais cinematográficas ou musicais, os autores e títulos que apresentamos a seguir se propuseram a refletir sobre as relações entre o pensamento intelectual, as linguagens e o campo histórico / político / cultural. Assim, Rodrigo de Oliveira Soares, em O papel do aprendizado histórico na construção do sujeito na obra de Paulo Freire: desenvolvimento da consciência histórica, dedica‐se às contribuições de Paulo Freire para o processo de aprendizagem pela via da historicidade enquanto ferramenta de conhecimento que permite pensar a história dos excluídos. Leandro Candido de Souza, em seu texto Cartografias da cultura underground: o surgimento da subcultura heavy metal no ABC paulista e os deslocamentos da identidade suburbana, inspirado pelos Estudos Culturais, pensa a cena heavy metal como uma “subcultura” e sua relação com a consolidação da indústria cultural no Grande ABC. Ao lado disso Flávio Trovão e Roberto Moll Neto, no artigo Conservadorismo e política nos Estados Unidos no filme “Curtindo a vida adoidado”, discutem, principalmente no campo da educação, como as políticas conservadoras da década de 1980 atingiram as comunidades negra e latina no país. Também refletindo sobre a relação cinema e história, Thais Vieira e João Pedro Rosa Ferreira, em Política cool, humor fun: o código humorístico e a perda da dimensão coletiva no filme No, de Pablo Larraín, discorrem sobre o papel do humor nas relações da sociedade do espetáculo e do consumo na política latino‐ americana, a partir do filme “No”, de Pablo Larraín, no qual se apresenta uma leitura sobre o plesbicito de 1988, quando os chilenos decidiram não perpetuar a ditadura de Pinochet. Cleonice Elias da Silva, em Mulheres negras em cena, analisa os documentários “Mulheres Negras: Projeto de Mundo” (Day Rodrigues; Lucas Ogasawara, 2016) e “Sementes: Mulheres Pretas no Poder” (Éthel Oliveira; Júlia Mariano, 2020), refletindo sobre o feminismo negro e as experiências cinematográficas de construção de outras narrativas por mulheres negras brasileiras.

Em A Hidra nos trópicos: trabalhadores britânicos nas margens da ordem, Rute Andrade Castro desconstrói a imagem idealizada dos trabalhadores europeus e da imigração, evidenciando, a partir da documentação de época, um processo de resistência ao trabalho por parte desses trabalhadores que “estavam nas ruas das cidades, nas áreas rurais do país, nas praias, nos bares ou em qualquer lugar onde desejassem estar”. Finalmente, também na esteira das contribuições de feministas negras, no texto Ela era doméstica: trabalhadoras domésticas e donas de casa no Triângulo Mineiro‐MG, Jorgetânia Ferreira da Silva nos traz reflexões sobre experiências de trabalhadoras domésticas e donas de casa da região do Triângulo Mineiro, indicando a importância de compreender as trajetórias dessas sujeitas.

Transpondo a linha artificial, pós‐abissal, já aludida por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes, que invisibiliza os corpos das mulheres negras, seja na vida ou nas representações cinematográficas – ou simplesmente apaga e elimina os corpos da juventude negra brasileira e subalterniza os corpos das mulheres trabalhadoras domésticas – buscamos apresentar uma história revista pelo viés da alteridade. Esperamos que os leitores apreciem, desfrutem e divulguem!

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul / Aquidauana. E-mail: aguinaldorod@gmail.com

Magdalena López – Universidade de Buenos Aires / CONICET. E-mail: lopezmagdalena@gmail.com

Murilo Borges Silva – Universidade Federal de Jataí. E-mail: muriloborges.historia@gmail.com


GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LÓPEZ, Magdalena; SILVA, Murilo Borges. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 25, n. 3, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História da África: possibilidades e estratégias | Abatirá | 2021

O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa,

o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar.

Chimamanda Adichie (2015)

A década de 1990 constituiu um marco importante no que concerne o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas brasileiras da rede pública. Embora de forma relativamente não sistematizada, a contribuição dos africanistas brasileiros tem-se demonstrado, ao longo das últimas duas décadas, relevante no que concerne o ensino da história e cultura africanas nas escolas da rede pública (LIMA, 2017, p. 117-140). Paralelamente, a promulgação da Lei Federal 10639/2003 definiu novos caminhos, favorecendo reflexões mais articuladas e propostas pedagógicas e didáticas mais eficazes no âmbito do ensino da História da África. De acordo com Anderson R. Oliva (2007, p. 143-173), a aprovação da Lei incentivou, embora de forma desigual e fragmentada, iniciativas importantes em termos de ensino, pesquisa e extensão, tendo sido implementados, a partir dos primeiros anos do novo milênio, cursos de especialização e levadas a cabo ações de formação de professores, congressos e seminários, bem como publicações científicas. A Lei constituiu um ponto de viragem fundamental no ensino, embora de um modo geral se tenham privilegiado temáticas relacionadas com a história e cultura afro-brasileira, em detrimento do ensino da história africana. É nesta linha de reflexão que o autor sublinha o fato de intelectuais africanos terem apontado para a necessidade de uma “inversão de foco histórico de matriz eurocêntrica para um foco conduzido por uma matriz afrocêntrica” (OLIVA, 2009, p. 155). No entanto, cabe interrogar em que medida tais reflexões e produções têm correspondido aos objetivos fixados pela lei federal referenciada e como esse percurso tem sido traçado e quais os principais desafios? Leia Mais

Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola | Carlota Boto

Com análise acurada e aprofundada pesquisa, Carlota Boto ofereceu ao público leitor um estudo atento acerca de temas fundamentais para a História da Educação, como as concepções de ciência, infância e escola. O livro Instrução pública e projeto civilizador é resultado da tese de livre-docência da autora, defendida em 2011, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e publicada em 2017, pela Editora Unesp.

A pesquisadora é reconhecida pelas discussões e trabalhos que desenvolve no campo da História da Educação no Brasil. Pedagoga e historiadora, mestre em Educação e doutora em História Social, Carlota Boto é atualmente Professora Titular da Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Entre seus diversos livros, capítulos e artigos publicados em periódicos, merece destaque A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa, publicado pela Editora Unesp, em 1996.

Em Instrução pública e projeto civilizador, a autora desenvolveu uma análise sobre alguns dos pensadores do século XVIII que se preocupavam com questões muito proeminentes à sua época, relativas, sobretudo, às ideias de aprimoramento da vida em sociedade e de construção de um novo modelo sociopolítico. O objetivo principal do estudo foi identificar esses sujeitos como intelectuais e homens de saber que atuaram na esfera pública propondo ideias e discutindo questões complexas, no interesse último de lançar as bases para a nova sociedade que se forjava naquele período (BOTO, 2017). Uma das discussões que atraíram a atenção desses intelectuais com mais vigor, como demonstrado no livro, dizia respeito à instrução pública e seu papel civilizador na sociedade moderna.

Do objetivo traçado na pesquisa que deu origem ao livro emergiu uma categoria conceitual que teve importância fundamental no desenvolvimento de toda a análise: a noção de intelectual. Em vista da relevância do conceito, Carlota Boto dedicou um preâmbulo especialmente para discuti-lo. A partir de um esforço teórico, a autora buscou arregimentar diversas conceituações acerca da figura do intelectual na história, mobilizando autores que se ocuparam desse tema, desde o século XVIII até os dias atuais. Assim, as concepções construídas a partir das reflexões de Julian Benda, Max Weber, Norberto Bobbio, Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre e Edward Said, com seus encontros e desencontros, foram articuladas visando definir o que a historiadora chamou de “modo de ser iluminista” (BOTO, 2017, p. 23). Este modo de ser, no que se diz respeito aos homens de letras cujas obras foram analisadas no livro, se caracterizava por uma atitude ativa perante a esfera pública. Os escritores no Iluminismo se constituíam, para a autora, como intérpretes e analistas de seu próprio tempo (BOTO, 2017).

A partir dessa base teórica, a pesquisadora transcorreu pelos vários textos e autores ilustrados que formaram a matéria prima do seu estudo. Todos os letrados analisados foram compreendidos como representantes do “modo de ser iluminista”, empenhados na construção de alternativas para os problemas políticos e sociais.

Instrução pública e projeto civilizador é composto por três grandes capítulos, subdivididos em vários tópicos, nos quais a autora, com escrita fluída e narrativa coesa, analisou a produção de pensadores iluministas, articulando-a ao contexto político e cultural do século XVIII. De forma sutil e indireta, cada um dos capítulos revela, num nível mais profundo, um estudo sobre as três categorias que formam o subtítulo do livro: ciência, infância e escola.

Na primeira parte, intitulada Iluminismo em territórios pombalinos: a formação de funcionários como alicerce da nação, Carlota Boto tomou como objeto de pesquisa a produção de três autores portugueses que, segundo ela, construíram suas reflexões tendo como base as experiências filosóficas iluministas: D. Luís da Cunha (1662-1749), António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782) e Luís António Verney (1713-1792). O objetivo principal da autora foi apontar para a intrínseca relação entre as ideias pedagógicas e científicas desses intelectuais e o projeto de reforma do Estado português, empreendido por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, Secretário de Estado dos Negócios do Reino de Portugal, a partir de 1759.

O argumento central do capítulo é a afirmação de que ação estatal dirigida pelo Marquês de Pombal, especialmente no que tange à educação e à ciência, foi referenciada nas reflexões teóricas dos autores iluministas em foco no estudo. Assim, para a autora, analisar a obra desse grupo de letrados corresponde a investigar parte das diretrizes e orientações centrais da pedagogia encampada e difundida pelo Estado português sob a direção de Pombal.

Para a realização da análise, foram mobilizados dois grupos de fontes. O primeiro é composto por livros e tratados dos três homens de letras estudados pela pesquisadora. Já o segundo conjunto abarca documentos relativos às reformas pombalinas na Universidade de Coimbra, como o Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771) e os Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). O último, conforme a autora, pode ser considerado “o principal arcabouço da modernidade portuguesa do século XVIII em matéria de educação” (BOTO, 2017, p. 150).

A primeira parte do estudo apresenta, assim, uma discussão ampla a respeito de temas variados. A análise se deteve sobre o pensamento de cada um dos autores em foco, de maneira atenta e específica. Além disso, a historiadora se debruçou sobre a organização da escola pública traçada pelo Marquês de Pombal, bem como sobre a reformulação dos cursos e da estrutura da Universidade de Coimbra. Contudo, merece destaque o fato de que toda a narrativa esteve marcada por uma assertiva comum e sempre presente. Tratase da afirmação de que o pensamento dos iluministas portugueses e as reformas pombalinas favoreceram a elevação do alicerce central que conduziu o movimento de modernização em Portugal durante o século XVIII, qual seja, a ciência moderna pautada pela secularização, pela racionalização e pela ampliação do papel do Estado nos campos acadêmicos.

Na segunda parte do livro, a pesquisadora dedicou-se ao estudo da obra de outro importante personagem do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau. Intitulado Política e pedagogia na arquitetura ilustrada de Rousseau, o segundo capítulo teve por objetivo analisar os escritos do filósofo buscando identificar a correlação entre seu pensamento político e suas ideias pedagógicas. Segundo o argumento central, Rousseau representa a síntese da sensibilidade social que marcou o período da Ilustração na Europa. Para a autora, sua doutrina política e pedagógica passou a representar um marco fundamental na organização do mundo político e social engendrado pelo Iluminismo, tendo grande influência nas práticas educativas. Nesse sentido, o intelectual francês seria um “autor primordial para se compreender a moderna acepção de criança” (BOTO, 2017, p. 182).

Para a efetivação dessa análise, Carlota Boto se propôs a realizar uma revisão bibliográfica dos escritos do teórico, dando ênfase a sua literatura pedagógica. Paralelamente, a pesquisadora buscou refletir sobre aspectos biográficos do autor do Emílio, apontando para um entrelaçamento entre sua vida e obra. Assim, foram colocados em foco, diversos textos publicados por Rousseau, em diferentes momentos de sua vida, dentre os quais o Discurso sobre as ciências e as artes (1749), o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), as Considerações sobre o governo da Polônia e sua projetada reforma (1772) e – a principal delas – o Emílio (1762).

Na investigação, foram retomados alguns dos temas principais do pensamento rousseauniano, já amplamente discutidos pela historiografia, como o do “estado de natureza” e o da crítica ao processo civilizador. Entretanto, a análise empreendida foi além das discussões consideradas clássicas e se baseou em um mote principal: a ideia de infância. O grande acerto do argumento que orienta a narrativa reside na identificação da ligação estreita entre a compreensão política e as ideias pedagógicas de Rousseau. A partir dessa perspectiva, a autora alcançou uma discussão mais profunda sobre a importância da educação para o modelo de sociedade proposto na literatura iluminista.

Uma das assertivas principais, nesse sentido, aponta para a existência de uma crítica ao modelo pedagógico vigente no século XVIII, isto é, o modelo jesuítico. Segundo a autora, no julgamento que Rousseau empreende a respeito do processo civilizador, a afetação dos costumes é compreendida como a responsável pelo afastamento do ser humano da perfectibilidade do estado de natureza. A crítica se dirige, conforme esse argumento, também à educação praticada nos colégios da época, marcados pelo ensino da polidez. O modelo pedagógico dos colégios era apontado pelo intelectual francês como voltado para o cultivo de falsos valores e, assim, responsável pela corrupção do ser humano e da sociedade civil (BOTO, 2017).

Ao analisar a escrita do Emílio, Carlota Boto defendeu que, mais do que um tratado de pedagogia, o livro é voltado para a compreensão da infância como uma das fases principais da vida humana. Segundo a historiadora, naquela obra, a reflexão sobre a idade pueril estava relacionada à possibilidade de entendimento do homem no estado de natureza, uma vez que a criança guardaria os resquícios do que foi o homem natural. Em seu tratado, Rousseau construiu uma análise que põe em destaque a infância como um estágio específico da vida, cuja marca principal é a possibilidade do aprendizado. Esse período da existência humana foi assim alçado à categoria de objeto de investigação para a compreensão da sociedade. A partir dessa operação, o autor do Emílio alcançou novidades importantes para o seu tempo e que seriam definidoras das práticas educativas posteriores, entre as quais se sublinha a definição mais precisa das diferentes fases da vida. Nas palavras da autora, “Rousseau, esticou a infância; ao nomeá-la, ele a prolongou” (BOTO, 2017, p. 261). E essa foi sua contribuição mais original.

O terceiro capítulo de Instrução pública e projeto civilizador, complementando os dois anteriores, é dedicado ao último item que compõe o subtítulo do livro: a escola. Para discutir o tema, a autora se ocupou em investigar a obra de um protagonista da Revolução Francesa, o Marquês de Condorcet. Nessa parte, foi desenvolvida uma análise em conjunto das concepções pedagógicas e da filosofia da história concebida pelo personagem. Novamente, as fontes utilizadas foram as obras do próprio autor, sendo as principais o Esboço para um quadro histórico dos progressos do espírito humano (1795) e as Cinco memórias sobre instrução pública (1791).

De antemão, a historiadora empreendeu uma reflexão acerca das concepções de história e de modernidade presentes no pensamento de Condorcet. O interesse principal foi analisar a doutrina e evidenciar a filosofia da história construída no Esboço, destacando a característica etapista e teleológica do desenvolvimento histórico que marcam a obra. Como herdeiro direto do Iluminismo, o intelectual construiu uma narrativa sobre a caminhada dos homens na história em direção ao aperfeiçoamento e ao progresso. Baseando-se na noção de perfectibilidade humana, tradição do pensamento ilustrado, Condorcet apontou para a capacidade do ser humano de aperfeiçoar a si e ao seu meio através de etapas sucessivas (BOTO, 2017).

Posteriormente, a autora analisou também as ideias pedagógicas do teórico, buscando enfatizar suas reflexões acerca da instrução pública enquanto política de Estado. Segundo o argumento central, a instrução apareceu no pensamento do intelectual francês como materialização de sua filosofia da história. O modelo de escola formulado por Condorcet se organizava por etapas sucessivas, marcadas por um caráter progressivo, e se baseava na crença no aperfeiçoamento humano. Isto é, a escola concebida por Condorcet se orientava pela marcha da humanidade na direção do progresso e do auto aperfeiçoamento. A cada série superada na escolarização, tal qual concebia o autor, o aluno subiria um degrau a mais na escala de aperfeiçoamento pessoal em direção a razão. Desse modo, como aponta a historiadora, havia uma vinculação inseparável entre a filosofia da história do Marquês de Condorcet e seu projeto de fundação da escola moderna. Esta última deveria estar voltada principalmente para o processo de aperfeiçoamento humano que, por sua vez, levaria à construção de uma sociedade melhor pela difusão da razão.

Assim, perpassando temas fundamentais do período da ilustração, Carlota Boto construiu, em Instrução Pública e Projeto Civilizador, uma análise ampla sobre o pensamento pedagógico de letrados iluministas. Além disso, a autora conseguiu inscrever as reflexões destes sujeitos no contexto político e social de fins do século XVIII, no qual a formulação de um novo modelo de sociedade figurava como a principal demanda intelectual.

É necessário ressaltar que, ao longo de todo o estudo, é possível acompanhar o desenvolvimento de um argumento central que demonstra a importância que a educação passou a ter no movimento intelectual iluminista. Esta importância, pelo que se apreende do livro, é ressaltada sobretudo como recurso político. Se o Iluminismo, na Europa, forjou as bases para o rompimento de uma ordem política arcaica e impulsionou a criação de um novo modelo social, Carlota Boto conseguiu demonstrar que a educação representou uma categoria basilar na construção desse projeto.

Ciência, infância e escola, portanto, se articulam no argumento da historiadora como concepções fundamentais para a compreensão não só do pensamento pedagógico engendrado na filosofia iluminista, mas também do projeto político encampado pelos homens de letras naqueles tempos. Tratava-se de um projeto civilizador cuja ferramenta principal a ser utilizada seria a educação.

Referência

BOTO, Carlota. Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2017.

Danilo Araújo Moreira – Mestrando em História – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES.

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Ensino e Pesquisa em História Antiga e História Medieval no Brasil | Politeia: História e Sociedade | 2020

Um mergulho na história antiga e na história medieval

A História Antiga e a História Medieval vieram para ficar. No Brasil, esses campos expandiram-se significativamente nas últimas três décadas, marcando presença em revistas especializadas, dossiês, livros autorais, coletâneas de artigos e em eventos acadêmicos de toda sorte. A História Antiga, legatária ou não das perspectivas marxistas, weberianas ou da Escola de Cambridge, conquistou espaços na universidade brasileiras e, como apontaram Margarida Maria de Carvalho e Pedro Paulo A. Funari, “os investigadores antiquistas escolherão seus métodos, técnicas e teorias de abordagem, associando tais interpretações à análise iconográfica e à cultura material” (CARVALHO; FUNARI, 2007, p. 15). A História Medieval, vinculou-se às três gerações da Escola dos Annales, estruturalistas ou não, assumindo escolhas semelhantes à História Antiga, e constituiu-se igualmente como uma espécie de manancial inesgotável de temas, métodos e abordagens teóricas, cuja capacidade é testar as identidades e alteridades com o passado, que ultrapassam a crença nas perspectivas temporais continuístas e baseadas em noções problemáticas tais como origem, sobrevivência, reminiscências ou herança (BASTOS, RUST, 2008, p. 187-188; SILVA, 2004, p. 87-107). Leia Mais

Fascismos e novas direitas | Cantareira | 2020

Observamos, nos últimos anos, vitórias como a de Boris Johnson, no Reino Unido; a ascensão de Jean-Marie Le Pen, como grande figura na França; Viktor Orbán, porta-voz da anti-imigração na Hungria; a reeleição de Sebastián Piñera no Chile; o retorno de partidos neofascistas na Alemanha; Rodrigo Duterte, o fascista das Filipinas; e, entre muitos outros, as expressivas vitórias de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Essa guinada nos alerta para uma tendência na configuração da política mundial.

Em um contexto de crescimento de movimentos de extrema-direita pelo globo, as temáticas dos fascismos e das novas direitas vêm ganhando cada vez mais destaque e relevância nos debates acadêmicos. Seria o fascismo uma atitude desviante? Uma doença? Uma anomalia do sistema? Um retorno nostálgico a um passado “glorioso”? Além disso, seriam todas as direitas mais radicais, fascistas? Esta discussão foi objeto de grandes nomes dentro da historiografia e das ciências humanas e sociais, como Leandro Konder, Daniel Guerin, Ian Kershaw, William Reich, Antônio Gramsci, Umberto Eco, Hannah Arendt, Robert Paxtone e até mesmo, José Carlos Mariátegui. Cada um, a partir de diferentes abordagens –aproximadas ou discordantes –, elaboraram as suas perspectivas muitas vezes ancorados nas questões anteriormente apontadas.

A despeito das diferentes abordagens, bem como das análises de conjunturas, há um ponto em comum entre os autores: essas correntes, em geral, encontram terreno e se ampliam em cenários de crise, momento em que a classe dominada se sente atacada em todas as suas frações. Acreditamos que, diante da falta de horizonte, perda de status e déficit econômico, é comum que ideias salvacionistas sejam tentadoras. A percepção das causas de tantas perdas é deixada de lado em prol de uma luta contra seus efeitos.

Discursos que ressaltam problemas como: as crises econômicas e moral, a perda de status social e incompetência, a traição e fragilidade do governo etc., tornam-se demasiadamente atraentes para setores da sociedade que não se identificam com as transformações recentes. Assim, todos os medos sentidos são estereotipados na figura do “outro”, o qual, por muitas vezes, será compreendido como inimigo a ser combatido.

Ao analisar a ascensão tanto política, quanto eleitoral, de movimentos de extrema-direita, racistas, xenófobas ou, até mesmo, inteiramente fascistas na atualidade, Michael Löwy ressalta que a crescente emergência desses movimentos tem se dado principalmente em países inseridos no processo de internacionalização da economia e da tecnologia. No ápice do neoliberalismo e, portanto, da transnacionalização do grande capital, as tecnologias e os meios de comunicação também se desenvolveram de modo que abarcasse as novas dimensões das demandas impostas pelos interessados nesta transnacionalização e em suas novas dinâmicas funcionais. Antes, se por um lado, os meios de comunicação operavam de maneira verticalizada, partindo de um para muitos, e sendo unidirecional – como os grandes jornais impressos e os canais de radiodifusão. A internet, por outro, se conforma como uma enorme rede digital de troca de informação maciça, sendo menos centralizada, horizontal e multidirecional. É o que Manuel Castells denomina como “Mass Self-Communication”. Devido ao interesse dos movimentos de direita e extrema-direita contemporâneos em trazer a política para o cotidiano, esses grupos aplicam seus investimentos em canais populares de difusão da informação. Assim, expandem sua ação para a mídia digital, por ser moderna, de fácil acesso, de custo relativamente baixo de produção e ilimitada capacidade de difusão.

Ao considerar o papel das historiadoras e dos historiadores na análise destes fenômenos, o objetivo do dossiê é refletir, conceituar e problematizar a questão do fascismo e das novas direitas, reunindo pesquisas que os discutam e identifiquem suas particularidades, rupturas, continuidades etc. Agrupamos, desta maneira, uma coletânea de seis artigos – que perpassam desde as experiências do século XX até o tempo presente, em distintas partes do Globo –, diretamente associados aos temas centrais. Devido a sua pluralidade, estas produções estão ancoradas em distintas visões e tradições teóricas, com vista a ampliar um rico e diverso debate.

Contamos, no primeiro bloco de artigos, com fascículos acerca da experiência alemã, de essencial importância para a temática. Os autores, habilmente, levantaram questões de extrema relevância para qualquer discussão acerca do nazismo alemão e seus estudos, feito de maneira criteriosa. Karina Fonseca em Como a democracia em Weimar morreu: antirrepublicaníssimo e corrosão da democracia na Alemanha e a ascensão do Nazismo, relaciona a derrocada da República de Weimar aos discursos e práticas políticas antirrepublicanas e antidemocráticas que circulavam durante o período. Luiz P. Araújo Magalhães, em Intelectuais de extrema direita e a negação do Holocausto nos EUA dos anos 1960, analisa a formação de uma rede de intelectuais de extrema-direita estadunidense em torno da prática de negação do Holocausto. O texto defende a hipótese de que essa negação incorpora, informa e é informada por valores, visões do passado, esquemas de percepção e hábitos de pensamento desse campo político. Dessa forma, essa falsificação do passado nazista aparece como criadora ou reprodutora de comunidades de sentido e unidades potenciais de ação.

Breno César de Oliveira Góes oferece uma rica aproximação interdisciplinar entre história e a literatura no que concerne à experiência do Salazarismo em Portugal, fortalecendo o tema deste dossiê com o artigo Os fascistas que liam Eça de Queirós: estratégias da propaganda salazarista em torno de uma celebração literária. O texto analisa o plano original das celebrações oficiais do primeiro centenário de Eça de Queirós em 1945 e os motivos que causaram os descontentamentos da base de apoio do regime em relação a esse projeto. Dessa forma, o autor traz à luz o estudo de ditaduras fascistas na Península Ibérica, muitas vezes posposto pelas produções do nazismo alemão e do fascismo italiano de Mussolini.

O segundo e último bloco de texto se articula a partir da temática do avanço conservador e a articulação da direita no Brasil. Com o delicado e necessário debate sobre a educação em tempos de conservadorismo brasileiro, Eduardo Cristiano Hass da Silva e Gabbiana Clamer Fonseca Falavigna dos Reis, analisam em Avanço conservador na educação brasileira: uma proposta de governo pautada em polêmicas (2018) a superficialidade e apresentação polêmica das propostas educativas presentes no plano do atual governo brasileiro e retomam a importância do papel do intelectual no Brasil.

Na esteira das análises sobre a ascensão do conservadorismo brasileiro, os autores Giovane Matheus Camargo, Pedro Rodolfo Bodê de Moraes e Pablo Ornelas Rosa trazem à tona a importância que a Internet e o ciberespaço tomaram no campo político na contemporaneidade. A (des)construção da memória sobre a ditadura pós-1964 pelo governo de Jair Bolsonaro analisa as estratégias no meio digital para a difusão de uma determinada memória, ancorada no revisionismo histórico que as novas direitas brasileiras têm defendido para sustentar seus projetos de sociedade.

Finalmente, apresentamos duas entrevistas de conteúdo mais estritamente teórico. A primeira, apresenta o diálogo entre o entrevistador Sergio Schargel e o pesquisador multidisciplinar neerlandês e filósofo cultural Rob Riemen. As perguntas, levantadas por Schargel, esclarecem a abordagem do diretor do Nexus Institute, que através de uma tradição teórica consistente e calcada no liberalismo, recuperar a importância do conceito de fascismo e sua utilização na atualidade. A segunda, realizada pelas organizadoras do presente dossiê, foi realizada com docentes de países, vivências e perspectivas teóricas diferentes. A professora italiana Fulvia Zega (Università Ca’Foscari Venezia), e a professora brasileira Tatiana Poggi (IH / UFF), relataram suas posições sobre a ascensão conservadora no mundo, as possíveis particularidades no contexto da América Latina, a utilização do conceito fascismo e neofascismo, bem como de outros aprofundamentos.

O dossiê Fascismos e Novas direitas, nesta edição da Revista Cantareira, nasceu em meio à pandemia do coronavírus (COVID-19), uma crise sanitária internacional que, no contexto brasileiro, ganha o reforço de um Estado suicidário, para fazer menção às palavras de Vladimir Safatle. Como em outros governos – que vêm demonstrando uma preocupação desproporcional com a Economia –, o Brasil pretere a vida humana em nome de uma pretensa preocupação com os números. O intuito, portanto, é contribuir com a análise de acontecimentos recentes, discussões teóricas pertinentes e recuperação histórica das ciências humanas em geral, essenciais para a compreensão crítica do mundo em que vivemos. Através das ilações dos nossos autores, percebemos que não somente há um avanço fascista na política mundial, mas um intento de consolidar uma narrativa conservadora sobre a sociedade civil e a política, bem como das organizações alternativas mais conservadoras. Estes aspectos não são uma novidade do século XXI; tampouco, algo exclusivo ao século passado.

Boa Leitura!

Bárbara Aragon – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Milene Moraes de Figueiredo – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.


ARAGON, Bárbara; FIGUEIREDO, Milene Moraes de. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.33, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Epistemologia e Escrita da História | Historiae | 2020

O presente dossiê da Revista Historiæ, possui como objetivo apresentar estudos que estão sendo realizados atualmente por pesquisadores e pesquisadoras que abordam, a partir de variados ângulos, questões relacionadas com a Epistemologia e a Escrita da História. Logo, os estudos em Epistemologia e Escrita da História solidificaram-se, a partir segunda metade do século XX, como um dos principais campos de pesquisa da historiografia. Desse modo, em diálogo com a Teoria Literária, a Filosofia Analítica e Hermenêutica, a Antropologia e as Ciências Sociais a indagação epistemológica e, também, sobre a escrita da História atravessou distintas transformações que suscitaram complexos caminhos e perguntas, em uma ampla variação de propostas metodológicas aprofundaram a investigação histórica.

Carlos Prado, no texto Braudel e a pluralidade do tempo: a história entre o estrutural e o factual, aborda como Fernand Braudel responde ao avanço do estruturalismo lévi-straussiano na década de 1950 a partir do tema da longa duração e de uma abordagem plural do tempo, buscando superar a oposição entre o estrutural e o factual. Primeiramente, apresenta o estruturalismo antropológico, ressaltando suas características e considerações diante do pensamento histórico. Num segundo momento, evidencia-se como Braudel se apropria do estruturalismo de Lévi-Strauss ao mesmo tempo em que o nega e apresenta a História como a ciência capaz de permanecer hegemônica entre as Ciências humanas, além de tratar do conceito de longa duração e da pluralidade temporal. Por fim, são traçadas algumas considerações sobre a ampliação da história estrutural, destacando sua diversidade e seus riscos, especialmente, o de produzir uma história imóvel. Leia Mais

Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia (I) / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2020

A Revista Clio abre este número com a primeira parte do Dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia, que traz artigos voltados às interfaces entre o poder, as culturas políticas e a sociedade, a partir de perspectivas teórico-metodológicas que focalizem as rupturas, as permanências, os antagonismos e as ambivalências historicamente tecidas nas múltiplas formas de relações sociais entre as elites e as camadas populares no Brasil durante o século XIX, nas mais diversas dimensões de envolvimentos do poder e seus reflexos na sociedade e na economia. A inserção da esfera micro na dimensão macro, as atualizações e ressignificações do local e do regional diante das injunções produzidas pela dinâmica do global, como também apreender os processos e as tramas que singularizam as histórias do local e regional, e o espaço de negociação estabelecido pelos seus atores sociais instituídos nacionalmente. As práticas políticas, a cultura do clientelismo, a organização social e econômica, bem como a inserção e participação das famílias livres e pobres em meio ao universo escravista. As relações e articulações políticas, e econômicas, bem como o perfil dos movimentos sociais, entre os diversos atores, são fundamentais para entender a participação e o protagonismo político de diversos grupos de elite e das camadas populares no “longo século XIX”.

Os cinco primeiros artigos tratam do mundo rural no XIX, a partir do debate sobre o trabalho e as políticas de colonização. Abre esse bloco o artigo de Júlia Leite Gregory, Esquecidos, desclassificados e sem razão de ser? Revisitando a historiografia para localizar o pobre no mundo rural, que traz uma importante análise historiográfica sobre o universo das famílias de trabalhadores livres no meio rural nos séculos XVIII e XIX. Gregory focou sua investigação nos trabalhos que discutem as trajetórias e experiências dos lavradores na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, e mostra os avanços da historiografia em torno deste vasto grupo, que numericamente era maior do que o universo de trabalhadores escravos, mas que ainda apresenta várias lacunas em torno de temas importantes para a compreensão de um grupo complexo e heterogêneo, e que ainda constituem um campo “em aberto” às investigações dos historiadores.

Ainda sobre o universo das famílias livres e pobres do mundo rural no oitocentos, temo o segundo artigo de autoria de Leandro Neves Diniz, intitulado A política de mão de obra no Império brasileiro: da conturbada unificação à precarização do trabalho livre, que discute a precarização do trabalho livre na Paraíba após o fim do tráfico internacional de escravos na década de 1850. Diniz parte da análise do impacto das revoltas regenciais sobre o universo do trabalho livre, especialmente nas relações estabelecidas entre os pequenos lavradores e os grandes proprietários. A desarticulação do tráfico internacional tem destaque na análise de Leandro Diniz, que mostra que o fim da alternativa de renovação das senzalas, mesmo que pela obtenção ilegal de escravizados, criou uma série de ameaças aos libertos, além do direcionamento das políticas de estado para a solução da “crise de braços” para a contratação de imigrantes europeus, relegando-se a um segundo plano os lavradores livres e pobres nacionais. Um cenário que contribuiu para a precarização do trabalho livre no Brasil da segunda metade do século XIX.

As dinâmicas do mundo do trabalho e a superexploração de trabalhadores rurais são o tema do terceiro artigo do dossiê, de autoria de Christine Paulette Yves Rufino Dabat, intitulado Ópio e açúcar: o capitalismo e suas drogas na superexploração dos trabalhadores rurais (Índia e Brasil, séculos XVIII-XIX). Dabat realiza uma investigação comparativa entre o Brasil e Índia no “longo século XIX”, permitindo ao leitor uma boa experiência metodológica da história conectada, tão em voga em Portugal na atualidade. Nesse artigo são analisadas as cadeias produtivas do açúcar e do ópio e o impacto desses produtos no universo do trabalho. Esses dois produtos distintos em suas propriedades e efeitos foram utilizados na expansão na expansão industrial e colonial da Grã-Bretanha: o ópio para enfraquecer os trabalhadores chineses frente às imposições coloniais inglesas, o açúcar como fonte de energia para os trabalhadores na indústria.

Ainda em torno do debate sobre a questão da mão de obra e a colonização no Brasil oitocentista, temos em seguida o artigo de Marcos Antônio Witt, intitulado Projetos de desenvolvimento para o Brasil: imigração, colonização e políticas públicas, que analisa os projetos de imigração no Império do Brasil articulados com as mesmas políticas em curso nos países vizinhos, especialmente a Argentina, o Chile e o Uruguai. Witt discute esses projetos de colonização mostrando as suas várias faces: da questão da mão de obra às teses do “branqueamento”. Além disso, Witt inova o debate ao analisar os limites desses projetos no Brasil oitocentista, especialmente no caso da imigração alemã no sul do Brasil. As políticas imperiais em torno da imigração encontraram barreiras de origens diversas, que frearam os projetos do Império em torno da colonização europeia.

No processo de colonização o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas teve, a partir de 1860, um papel central. No quinto artigo dessa coletânea, Pedro Parga em seu trabalho intitulado O funcionamento da Diretoria de Agricultura e as solicitações de adiamento de prazo para medição entre 1873 e 1889, discute as políticas e o papel do órgão na promoção da colonização. Parga discute a atuação desta repartição nas solicitações de adiamento do prazo de medição e demarcação de terras e também na aplicação das leis agrárias oitocentistas. A investigação desses mecanismos permitiu uma análise dos interesses de grupos específicos articulados em tonos do Estado Imperial.

Em seguida temos um bloco de trabalhos voltados à História Política do Brasil Império. No sexto capítulo temos o artigo de Kelly Eleutério Machado Oliveira intitulado O tempo da província”: revisão bibliográfica crítica da política imperial no Brasil oitocentista, no qual analisa a abordagem historiográfica das províncias e das assembleias provinciais no debate sobre a construção do Estado nacional. Oliveira parte da discussão da obra de Francisco Iglésias sobre a Província de Minas Gerais que, para a autora, criou um divisor de águas na historiografia ao privilegiar a esfera da província na investigação. A partir da obra “Política econômica do governo provincial mineiro (1835-1889)” Kelly Oliveira percorre as obras herdeiras do legado de Francisco Iglésias, debatendo as correntes historiográficas formadas a partir das pesquisas em torno das administrações provinciais.

Em seguida temos o sétimo artigo, intitulado Rupturas e Continuidades na Assembleia Constituinte de 1823: a autoridade do monarca e o lugar do poder local, de autoria de Glauber Miranda Florindo, no qual analisa a estruturação do Estado brasileiro a partir da primeira constituinte do Brasil. Florindo parte da discussão da Constituinte de 1823 no que diz respeito ao debate em torno das administrações dos municípios e províncias. O autor mostra os caminhos percorridos em torno das reformulações das esferas municipais e provinciais, e como elas se apresentavam no debate em torno do pretendido equilíbrio dos poderes no arranjo monárquico-constitucional brasileiro. Glauber Miranda Florindo destaca em seu trabalho uma continuidade discursiva e prática, de alguns elementos oriundos do estado português antes da Constituição de 1822, a base da formação do Estado brasileiro. Florindo mostra as continuidades dos elementos basilares da velha ordem colonial na Constituinte do Brasil de 1823.

Sérgio Armando Diniz Guerra Filho, é o autor do nosso oitavo artigo, intitulado As Câmaras e o Povo: a crise antilusitana de 1831 no interior da província da Bahia, no qual analisa os acontecimentos políticos ocorridos no interior da província da Bahia que tiveram como pano de fundo a crise antilusitana de 1831. Guerra Filho centrou a sua análise na atuação das câmaras municipais, especialmente àquelas do recôncavo baiano, região de grande importância econômica e política para a Bahia. O autor trata das tensões e conflitos políticos ocorridos nestas localidades, demonstrando o impacto dos acontecimentos protagonizados pelos de setores populares nas deliberações das câmaras. Ainda discute a atuação política do povo em geral nesse processo, além dos posicionamentos das autoridades frente aos movimentos rebeldes de 1831 na Bahia.

Seguindo no debate sobre a política no Estado Imperial, o nono artigo cognominado O Visconde da Parnaíba e a construção da ordem imperial na Província do Piauí de autoria de Pedro Vilarinho Castelo Branco, no qual analisa a trajetória de Manuel de Sousa Martins, o Visconde da Parnaíba, um dos personagens centrais da História do Piauí Oitocentista. Castelo Branco investigou a trajetória de vida do visconde, da sua construção a partir dos seus horizontes de expectativas no final do século XVIII, no Piauí. O autor mostra que, apesar das adversidades e das barreiras iniciais impostas pelos limites das suas redes de relações sociais, Manuel de Sousa Martins teve a oportunidade de utilizar as ferramentas de ascensão social presentes nas sociedades colonial e imperial, para si e sua parentela: poder, honra, prestígio social e patrimônio. Pedro Vilarinho Castelo Branco discute ainda a longevidade do visconde frente ao Governo Provincial do Piauí (1823-1843), mostrando várias faces da história política do Império na trajetória do Visconde da Parnaíba.

Amanda Barlavento Gomes é a autora do décimo artigo do dossiê, cognominado Negócios de família: políticos, traficantes de escravizados e empresários pernambucanos no século XIX. Gomes analisa a trajetória do comerciante pernambucano de grosso trato Francisco Antonio de Oliveira e seu filho Augusto Frederico de Oliveira, negociantes que aturam em diversos ramos do comércio e também no tráfico atlântico de escravizados. A autora mostra que em função da proximidade da Lei Antitráfico de 1831, eles diversificaram as suas atividades a partir de investimentos modernos de capitais e na fundação de empresas, contando com articulações políticas importantes dentro e fora do Império do Brasil. Amanda Barlavento Gomes analisou a atuação política desses personagens, que ocuparam os cargos de vereador e deputado geral, mostrando os mecanismos através dos quais eles defenderam os seus interesses familiares, especialmente a partir de suas redes de relações sociais com políticos e comerciantes, o elemento central para o sucesso financeiro da família.

Encerra esse bloco de trabalhos voltados à História Política o artigo de André Átila Fertig e Guilherme Gründling, intitulado Dos campos de batalha à Corte imperial: a relação entre os militares Visconde de Pelotas e Marquês do Herval através de suas correspondências (1869-1879). Fertig e Gründling abordam a trajetória política dos militares sul-rio-grandenses José Antônio Correa da Câmara (Visconde de Pelotas) e Manoel Luís Osório (Marquês do Herval) na segunda metade do século XIX, especialmente as suas articulações após a Guerra do Paraguai. Os autores investigaram as correspondências trocadas entre eles, tecendo uma interessante análise do fenômeno histórico do ingresso de militares no sistema político nas últimas décadas do Império do Brasil.

O décimo segundo artigo do dossiê é de autoria de Carlos Alberto Cunha Miranda, intitulado Médicos e engenheiros no Recife oitocentista: higienismo, implantação de projetos arquitetônicos e de serviços urbanos. Carlos Miranda analisa alguns aspectos dos saberes médicos na cidade do Recife, na perspectiva de implantação de um urbanismo higiênico no século XIX. Neste trabalho foi mostrado que o alto índice de epidemias e de insalubridade dos lugares públicos passou a preocupar os médicos, engenheiros e autoridades governamentais que, a partir daí, procuraram intervir no espaço urbano, nos novos prédios públicos, nos serviços de abastecimento de água e no saneamento, com o objetivo de modernizar a cidade e diminuir o perigo das epidemias que assolavam a Província de Pernambuco, especialmente a cidade do Recife no século XIX. Miranda discute a influência dos médicos e engenheiros nas construções de novas edificações e na implementação de serviços urbanos.

Encerra o Dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia o artigo de Vandelir Camilo, intitulado Homem de cor: as performatividades de um “mulato” frente ao racismo Doutor José Mauricio Nunes Garcia Junior (1808-1884). Camilo analisa a trajetória de vida de José Mauricio Nunes Gracia Junior, um homem de cor que, apesar das adversidades do racismo no XIX e ciente das suas estratégias de sobrevivência naquele meio, logrou a formação na Academia Médico Cirúrgica em 1831, e ainda alcançou a docência Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e na Academia de Belas Artes. Vandelir Camilo traz uma perspicaz análise de temas como a liberdade e cidadania no Brasil Império a partir deste estudo de caso.

Cristiano Luís Christilino – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professor adjunto na Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: christillino@hotmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-9683-2885

Suzana Cavani Rosas – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora associada na Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: suzanacavani@uol.com.br ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0001-5528-0909

Maria Sarita Cristina Mota – Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Atualmente é Investigadora Integrada do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia. E-mail: Sarita.Mota@iscte-iul.pt ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-1705-3999


CHRISTILINO, Cristiano Luís; ROSAS, Suzana Cavani; MOTA, Maria Sarita Cristina. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.38, n.2, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio e Relações Internacionais / Locus – Revista de História / 2020

As relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia?

Como é de costume em épocas de crise, a COVID-19 evidenciou a

necessidade da existência da cultura para o aliviar o estresse de pessoas e

comunidades. Em um momento no qual bilhões de pessoas estão

fisicamente separadas umas das outras, a cultura nos une.

(Ottone 2020)

Em momentos de crise, pessoas precisam de cultura. É com esse chamamento que Ernesto Ottone, Diretor Assistente Geral para a Cultura da UNESCO ilustra o cenário em que vivemos no primeiro semestre de 2020. É esta a dimensão que os atores vinculados ao patrimônio mundial começam a tomar conhecimento. Atualmente, estamos enfrentando uma crise global diferente de qualquer outra que vimos neste século. Milhares de pessoas perderam a vida para o COVID-19 e muitas outras foram infectadas. Bilhões de pessoas agora tem estado confinadas em suas casas em todo o mundo. O impacto do COVID-19 provavelmente será sentido muito tempo após o término desta crise sanitária.

A UNESCO está incentivando os locais do Patrimônio Mundial e plataformas da UNESCO, como as Jornadas Europeias do Patrimônio Mundial, a oferecerem meios para as pessoas explorarem o Patrimônio Mundial em suas casas. Numa época em que bilhões de pessoas estão fisicamente separadas uma da outra, a cultura nos une, mantendo-nos conectados e diminuindo a distância entre nós. Então, diante dessa mudança na visão global, como ficarão os agora já “antigos” temas do patrimônio? Como não sair impactado dessa nova ordem mundial?

Em publicação recente, Guilherme d’Oliveira Martins convoca a atualidade do tema do patrimônio cultural e de seu valor econômico, afirmando a urgência em desenvolver a ligação entre o patrimônio comum, os valores humanos universais e o equilíbrio entre as diferenças (2020, 32). Num contexto de isolamento social imposto pela pandemia COVID-19 colocado à escala internacional urge questionar o lugar do patrimônio na sociedade. De acordo com o mesmo autor, “quando falamos de patrimônio cultural, há a tentação de pensar que falamos de coisas do passado, irremediavelmente perdidas num canto recôndito da memória coletiva” (Martins 2020, 33). Daí que anteveja que “a necessidade de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, (…) bem como, salientar o papel do patrimônio nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação pós-conflito ou a recuperação do patrimônio destruído” (Martins 2020, 33-34). Foi motivado por esta nova realidade que nasceu a ideia deste Dossiê. Provavelmente, as relações internacionais nunca mais serão as mesmas após essa pandemia e, por extensão, o patrimônio e sua gestão também não serão como antes.

A título de exemplo, recorde-se que os maiores museus do mundo disponibilizaram recursos digitais sobre as suas coleções que até então tinham o seu acesso condicionado. Nunca como antes a visita virtual teve tanto impacto, perante a impossibilidade colocada pela ausência de acesso físico causado pelo isolamento social. Diante de um cenário interconectado pela veiculação de informação (não raras vezes, na chave da inverdade), essa temática se apresenta como um dos domínios a ser debatido, pois tem atuado na compreensão de elementos variados, funcionando como embaixadores de novas demandas mundiais. O tema é não só atual, como de discussão urgente.

O imediatismo dos media e das redes sociais tem trazido novo olhar sobre o patrimônio em escala internacional. O registro e a notícia de catástrofes, recentemente reportadas como a dos incêndios do Museu Nacional do Rio de Janeiro ou da Catedral de Notre-Dame de Paris, ou das enchentes de Veneza, bem como as ações iconoclastas desenvolvidas em Bamiyan ou Mossul, só para referir alguns exemplos, tinham dado um novo lugar ao Patrimônio à escala das relações internacionais. Dois fatores se somam às assertivas elencadas acima. O primeiro diz respeito à incorporação crescente do patrimônio cultural em outras áreas do discurso internacional. O patrimônio cultural passou a ter maior visibilidade e participação relevante, muito por força da ação das redes sociais e dos media, havendo como consequência um avanço na presença de organismos de valorização nas mesas de negociação das políticas internacionais como jamais visto antes. O segundo se refere ao crescente poder econômico e político que países detentores de agendas preservacionistas desfrutam no cenário internacional.

À medida que o novo século se desnuda, a radiografia dessas relações de poder revela novos atores, espaços e representações. O patrimônio cultural tem se tornado um ator cada vez mais importante dos diálogos multilaterais e, como tal, faz parte do alargamento das ações no âmbito das relações internacionais. Daí derivam outros objetos de estudo, ainda pouco incorporados pela temática: as marcas de um soft power cada vez mais multilateralizado; as dinâmicas de hierarquização dos temas e critérios consagrados pelos órgãos de assessoria da UNESCO; a presença cada vez maior de temas que abordem as “africanidades”, “asianidades”, “latinidades” e os “orientalismos” (tão pouco explorados por nossos pesquisadores, dada a hegemonia da visão europeísta / estadunidense); dentre outros. Em consonância, sítios arqueológicos, museus, espaços culturais, organismos internacionais de preservação, Estados nacionais, atores da paradiplomacia, expressões de tradição, vivência e modos de se fazer, a dicotomia entre inflação e destruição de patrimônios, dentre outros elementos tornaram-se protagonistas dessas representações mentais sobre o patrimônio que tem se transformado constantemente. Apreender os mecanismos de compreensão dessa expansão temática favoreceria a montagem de novas valorações do patrimônio, nacional e internacionalmente. Acrescentamos a este cenário o mundo digital que, superando os constrangimentos de um isolamento social forçado à escala global se assume como o único veículo de visita e transmissão de conhecimento dos recursos patrimoniais.

Como se percebe, todas as temáticas elencadas faziam sentido em um mundo sem restrição social, isolamento compulsório e combate a um vírus letal. Os temas elencados neste dossiê, seguiram uma realidade anterior à pandemia. As preocupações, necessidades e objetos respondiam a um mundo complexo, mas conhecido. As regras do jogo eram todas acordadas. Agora, diante desse novo alinhamento, tudo muda, inclusive as relações internacionais e suas preocupações. Por este motivo, acreditamos que este Dossiê poderá colaborar para unirmos os dois mundos: o das preocupações pregressas e das novas necessidades. Não fazemos futurologia quanto ao universo da preservação dos patrimônios no mundo, mas sinaliza-se uma considerável modificação nas políticas públicas, no financiamento e na projeção de novas regras para um jogo que ainda não se saber jogar. Por este motivo, os textos selecionados para este Dossiê discutem realidades que provavelmente deverão também ser impactadas por esta mudança brusca nos caminhos recentes do mundo globalizado.

O texto de Amélia Polónia e Cátia Miriam Costa, Preservar patrimônios e partilhar memórias em cidades-porto latino-americanas. Um projeto em ação: CoopMar – Cooperação Transoceânica, Políticas Públicas e Comunidade Sociocultural Ibero-Americana analisa o projeto de uma rede de investigação e desenvolvimento financiada pelo CYTED (Programa Ibero-americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento) que promove formas ativas de diplomacia científica, visando potenciar sinergias existentes entre vários parceiros em torno de uma agenda de “mar e sociedade para o desenvolvimento”. CoopMar dá prioridade à circulação de conhecimento entre diferentes atores (universidades, museus, fundações, empresas, instituições públicas e sociedade em geral) e visa contribuir para uma sociedade do conhecimento, transnacional e transdisciplinar. Assume a troca cooperativa de valores e visões como um valor intangível que funciona como capital social capaz de beneficiar cidades portuárias da região Ibero-latino-americana.

Frédéric Lerich discute em Regional Assets, Industrial Growth, Global Reach: The Case Study of the Film Industry in the San Francisco Bay Area, uma dimensão pouco conhecida do público. De acordo com Lerich, dentro da indústria cinematográfica dos EUA, Hollywood é uma (grande) árvore que esconde a floresta. De fato, além desse cluster poderoso e dominante, existem outras formas – embora menores – de indústria cinematográfica, particularmente em Nova York e São Francisco. O artigo enfoca o último e argumenta que o desenvolvimento da indústria cinematográfica na área da baía de São Francisco depende de ativos regionais específicos: (1) uma cultura alternativa, (2) uma cultura tecnológica e (3) uma experiência urbana única. O artigo se baseia na ideia de que São Francisco é um local acolhedor para filmar e produzir filmes e que, como corolário, hoje em dia acolhe um cluster industrial dinâmico e com vários locais. Destaca diferentes estratégias que visam promover o desenvolvimento de ativos regionais relacionados à indústria cinematográfica e questiona suas capacidades de recuperação destacando seus impactos na influência global de São Francisco.

Jaime Nuño González constrói uma narrativa envolvente ao analisar em Patrimonio Cultural y globalización: Trayectoria, proyectos y estrategias de la Fundación Santa María la Real (Aguilar de Campoo, Castilla y León. España), as dinâmicas de preservação em torno das ruínas de um mosteiro medieval situado na pequena localidade de Aguilar de Campoo (Palencia, Castilla y León. Espanha). Em 1977 uma associação foi formada com o objetivo de recuperar o monumento e transformá-lo no centro da dinamização cultural de uma região em crescente processo de despovoamento. A Fundação Santa María la Real, herdeira dessa associação, diversificou os setores em que atua, ampliando suas intervenções em toda a Espanha. Neste texto, González apresenta os projetos de gestão, comunicação e preservação da fundação, apontando os caminhos pelos quais essas ruínas se tornaram um dos mais proeminentes exemplos de preservação patrimonial ibérico.

Gilberto Marcos Antônio Rodrigues discute os impactos do Patrimônio cultural como inserção internacional de cidades. Em Política Externa de Cidades: Estratégia Internacional Modelada e Patrimônio Cultural aborda uma questão central: no caso de patrimônios culturais, sejam eles materiais ou imateriais, que não dispõem de valorização ou proteção nacional, como pode a cidade aproveitá-lo como vetor de uma ação internacional? No âmbito da dimensão cultural das relações internacionais de cidades, o patrimônio cultural é um vetor pouco explorado em sua potencialidade e capacidade de promover a inserção internacional local no Brasil. O objetivo do artigo é analisar como o patrimônio cultural pode ser transformado em recurso ativo para uma Estratégia Internacional Modelada (EIM) visando alavancar e apoiar a política externa de cidades médias ou pequenas no Brasil.

Em diálogo com o texto de Rodrigues, Gustavo de Jesus Nóbrega, perscruta o universo da paradiplomacia e apresenta os resultados parciais de pesquisa ligada ao projeto interdisciplinar “Os diversos usos dos espaços institucionais na preservação do Patrimônio Cultural”, na qual analisa o uso e a apropriação da Universidade de Coimbra (UC) e da própria cidade em questão por diversos agentes, a partir da apresentação da instituição de ensino como um Patrimônio Cultural da Humanidade e seus bens edificados como verdadeiros acervos de um museu a céu aberto. A hipótese levantada por Nóbrega em A Universidade de Coimbra e as diversas apropriações da chancela internacional de Patrimônio da Humanidade atribuída pela UNESCO, é que a nomeação pela UNESCO, em 2013, alavancou a iniciativa de utilizar a marca “Coimbra”, como um soft power que objetiva reestabelecer a notoriedade da cidade e da Universidade como espaços de ponta em nível mundial.

O artigo de Bruno Miranda Zétola, Troféus de guerra e relações diplomáticas examina as singularidades do troféu de guerra como patrimônio cultural e sua relevância para as relações diplomáticas. A partir de três estudos de caso, aponta-se para possíveis paradigmas do uso desse tipo de patrimônio como recurso de política externa. Troféus de guerra são uma categoria muito especifica de patrimônio, visto tratar-se de artefatos militares obtidos no campo de batalha e cujo valor cultural é aferido após sua apreensão. Prática recorrente desde a Antiguidade clássica, a obtenção e exibição de troféus de guerra nunca foi considerada ilícito internacional. Suas implicações para as relações internacionais, entretanto, podem ser significativas, consoante a valorização do artefato tornado troféu pelas narrativas historiográficas das sociedades que o perdem ou que o conquistam.

O Louvre, renomado museu e patrimônio francês, agora responde a um pedido do governo para aperfeiçoar sua interação e influência internacionais. A internacionalização do Louvre é, portanto, entendida não como a reputação do Louvre em nível internacional, mas como o uso dessa herança em estratégias políticas internacionais. O texto de Marie-Alix-Mólinier-Andlauer, Political Issues of the Louvre’s Internationalisation enfoca a internacionalização do Louvre desde os anos 2000. O Estado francês, através de sucessivos governos, vem mobilizando o Louvre, como intermediário em acordos internacionais. Este museu e instituição cultural tornou-se participante direto das relações internacionais francesas, o que motivou Andlauer a analisar as questões e controvérsias que cercam a estreita relação entre o Louvre e o Estado francês. Concluí este trabalho, uma análise do discurso da mídia francesa sobre a mobilização do Louvre pelo Estado o que revela tensões e controvérsias em torno da internacionalização de um dos museus mais famosos do mundo.

Se por um lado museus guardam estátuas (independentemente da discussão se devem ou não manter sob sua tutela peças controvertidas de origens, muitas vezes, duvidosas), por outro, em certas ocasiões, são palco de destruição e vandalismo. A onda de destruição de museus e estátuas locais realizados pelo DAESH (Estado Islâmico) na Síria e no Iraque não deve ser considerada simples ato de vandalismo ou ação iconoclasta com base em sua interpretação radical e distorcida do Islã. Tais atos ocultam um discurso complexo que deve ser compreendido no debate atual sobre a redefinição do patrimônio, particularmente de estátuas, questionada por representar um passado colonial ou autocrático que não é mais considerado digno de ser preservado e lembrado. Em Las estatuas también mueren. Patrimonio, museos y memorias en el punto de mira de DAESH, Jorge Elices Ocón apresenta o estado da arte deste debate focalizando a diferença notável entre as ações iconoclastas mencionadas no texto e as do DAESH. Para os terroristas, não há possibilidade de ressignificação das estátuas. Como vaticina Ocón, “não é um discurso de justiça, mas de ódio, e não busca apenas a morte de estátuas, mas a de pessoas e culturas”.

Para além da destruição, do tráfico ilícito de bens culturais e da revisão histórica de símbolos outrora extorquidos, um dos temas de maior visibilidade dentro das relações internacionais é o das solicitações de restituição de patrimônios espoliados. Colabora nesta temática o texto de Karine Lima da Costa que analisa a questão da restituição ou repatriação dos bens culturais, especialmente os artefatos da África subsaariana, a partir da publicação do Relatório Savoy-Sarr, concluído em 2018. Em, A restituição do patrimônio cultural através das relações entre a África e a Europa Costa aborda o caso dos bronzes do Benin, retirados da África no século XIX, e atualmente distribuídos em diferentes instituições museológicas, sobretudo na França e na Inglaterra. A repatriação e / ou restituição também diz respeito à uma mudança de atitude em relação ao tratamento e entendimento dos bens culturais, que deve considerar algo que, às vezes, parece ser esquecido nesse processo: o seu sentido coletivo. Por este motivo, são as novas formas de se relacionar com o patrimônio cultural que a problemática da repatriação convoca, pois ao falarmos de restituição estamos falando, também, de diplomacia. Essas formas não devem se limitar apenas ao retorno permanente, mas ao empréstimo, ao intercâmbio cultural, à circulação das obras – algo que já faz parte do cotidiano de muitas instituições museológicas, mas que são limitados por falta de acordos e cooperação entre os agentes envolvidos.

Em diálogo aberto com o texto de Costa, Manuel Burón Díaz, apresenta o caminho percorrido pelo patrimônio da Nova Zelândia, analisando o estudo da construção, intercâmbio, exibição, reclamação e restituição do patrimônio, por meio de uma leitura crítica do próprio estatuto de devolução. Para o autor, o patrimônio, os materiais que o compõem, assim como os significados que lhes damos, não são estáticos; variam com o tempo e, na sua mudança, desenham no mapa interessantes trajetórias. Neste texto, Díaz aborda como as recentes demandas da restituição patrimonial supõem um desdobramento mais atuante na alargada série de significados que atribuímos a certos materiais culturais, sublinhando como, na atualidade, a repatriação de certos objetos tem se convertido em uma importante ferramenta de relações internacionais. Cabezas y pájaros: La construcción y restitución del patrimonio en Nueva Zelanda é, portanto, uma busca por clarificar a ideia de que o patrimônio tem sido um instrumento fundamental para as relações diplomáticas, pois ao simbolizar diferentes desejos e atender a diferentes necessidades, regula os contatos entre culturas ou nações. Mas isso, adverte o autor, não deve fazer o observador cair no mais estéril relativismo nem no mais imóvel essencialismo cultural.

Em, Soft Power Mineiro: O edital Circula Minas (2015-2018) como medida de preservação e difusão nacional e internacional da cultura e do patrimônio de Minas Gerais, Vanessa Gomes de Castro e Thiago Rodrigues Tavares discutem o programa de internacionalização da cultura do estado de Minas Gerais, por meio do Programa Circula Minas. Os autores analisam os resultados e implicações do intercâmbio cultural patrocinado pela Secretaria de estado da Cultura de Minas Gerais, sobretudo, em relação ao patrimônio cultural, apresentando seus argumentos a partir de uma leitura crítica do conceito de soft power. Para os autores o Edital Circula Minas, ao receber e apoiar financeiramente projetos na área da cultura, possibilitou a participação da sociedade civil na salvaguarda dos bens culturais, mas, políticas culturais não podem ser apenas prerrogativa exclusiva do Estado e seus representantes, devendo envolver a participação da sociedade civil nas diversas etapas do processo de preservação, fato legitimado pelos dispositivos jurídicos internacionais.

O texto As timbila de Moçambique no concerto das nações, de Sara S. Morais discute aspectos do processo de patrimonialização das “timbila chopes” de Moçambique que culminou com seu reconhecimento como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 2005, pelo Programa das Obras-Primas da UNESCO. Inspirada em análises sobre processos de objetificação e redução semântica implicados no reconhecimento oficial de expressões como patrimônio cultural, a autora abordo elementos da trajetória histórica e social das timbila para compreender seu lugar no imaginário nacional e sua escolha como o primeiro bem cultural imaterial em Moçambique consagrado em arenas internacionais. Enfatiza diversos elementos que localizam esse país africano no âmbito das suas relações internacionais; discutindo algumas das dinâmicas perpetuadas pelo colonialismo, traçando reflexões sobre a relação de Moçambique com a UNESCO, à luz da história política do país e de sua recepção em relação a certos critérios e entendimentos desse organismo internacional no que tange ao patrimônio imaterial. Destaca, por fim as interpretações dadas pelo Estado moçambicano aos ideais de participação social da UNESCO e mostra como o dossiê produzido pelo governo moçambicano utilizou o critério de autenticidade para justificar a escolha das timbila.

Encerra o Dossiê, o texto provocativo de Marcos Olender que aborda nova leitura sobre um dos documentos mais conhecidos da preservação do patrimônio. Para responder às indagações do presente e compreender as dinâmicas na construção do imaginário dos patrimônios mundiais, Olender retroage à icônica Carta de Atenas de 1931, produzindo uma leitura verticalizada dos bastidores do primeiro documento internacional referente à proteção do patrimônio histórico e artístico em âmbito institucional internacional. O texto “O abismo da história é grande o suficiente para todos”. Os primórdios da Carta de Atenas de 1931 e a afirmação da noção de patrimônio da humanidade aborda o processo histórico que constrói a conjuntura da elaboração do citado documento, iniciado no contexto da Primeira Grande Guerra e pela implantação de instituições que começaram a estruturação de uma política internacional de proteção ao patrimônio, na qual é destacada a preocupação pela conceituação de um patrimônio da humanidade.

As inquietações apresentadas pelos autores ajudaram na elaboração da entrevista transcrita neste volume. A premissa básica foi discutir: como a leitura de um observador do presente dá conta de compreender as mudanças que se aceleram no universo da preservação dos patrimônios em um mundo oscilante entre a perpetuação e efemeridade? Este foi o mote da entrevista com o historiador britânico, Peter Burke, interlocutor que buscou consolidar respostas concisas, “diante do tempo das indefinições”. Frente a um cenário interconectado e em função do caráter de “novidade temática”, como enxergar a crescente preocupação sobre a preservação do patrimônio em tempos que pendulam entre o esquecimento generalizado e a super produção de memórias? O patrimônio (sobretudo, o chancelado como mundial) tem força para ser combustível de mudança social e política? E diante da pandemia de COVID-19 e as sequentes restrições ao nível da acessibilidade, como fugir da “despatrimonialização” desses lugares? Estaremos já a caminhar para um tempo do “pós-patrimônio”? Responder a esses questionamentos não foi tarefa fácil, mas as respostas elencadas por Burke, podem nos auxiliar a compreender um pouco mais o cenário em que vivemos, independentemente da concordância ou discordância de seus posicionamentos.

Mesmo diante do imponderável, continuaremos trabalhando para que a temática ganhe cada vez mais destaque e que as mudanças que se projetam sejam assimiladas pelos temas correlatos à preservação do patrimônio cultural e seus aspectos internacionais. Conseguir responder ao questionamento central desse dossiê, se as relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia? nos parece precipitado. No entanto, a cada dia que passa projeta-se um cenário no qual o planeta e, por tabela, o próprio patrimônio mundial refletirão as mudanças ocorridas nas agendas dos governos, na preferência dos estudiosos e na dinâmica global de um mundo afetado em grande escala.

As palavras de Oliveira Martins, para quem: “o valor do patrimônio cultural, material e imaterial exige a aceitação da verdade dos acontecimentos, positivos e negativos, para que possamos ganhar em experiência, pelo ‘trabalho de memória’” (2020, 28), nos motiva a continuar preservando. Neste mundo, marcado por uma pandemia sem igual, cabe questionar os acontecimentos, buscar compreendê-los, criar deles memória patrimonial e, por meio da experiência obtida, abrir novos caminhos para a compreensão sobre nós mesmos. Certos estamos que tais caminhos jamais serão como antes, mas que o novo aprendizado venha carregado de significados para que saibamos dosar a preservação entre o novo e o ancestral. Que o patrimônio (elemento que transita entre a memória e a história) encontre nas agendas internacionais espaço de protagonismo, mediando as demandas existentes entre o local e o global, sem sobreposições ou prejuízos de nenhuma natureza. E não podemos deixar de lembrar, as palavras visionárias de Carlos Alberto Ferreira de Almeida (1998), publicadas em tempos tão diferentes daqueles em que vivemos, que “Patrimônio é tudo o que tem qualidade para a vida cultural e física do homem e tem notório significado na existência e na afirmação das diferentes comunidades” às mais diversas escalas. Se assim o é, também concordamos com este autor quando tão antecipadamente escreveu que

o Patrimônio não pode ser olhado apenas como uma reserva e, menos ainda, como uma recordação ou nostalgia do passado mas, antes, como algo que tem de fazer parte do nosso presente. O Patrimônio, para o ser, tem de estar presente e vivo, de algum modo (Almeida 1998).

O Dossiê que agora se dá ao prelo bem o reflete e demonstra. O patrimônio tem hoje um novo lugar: é um ator efetivo nas relações internacionais às mais diversas escalas. Alcançou este status porque não é mais uma reserva do passado. Está no presente e tem valores prospectivos.

Referências

ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Patrimônio. O seu entendimento e a sua gestão. Porto: Edições Etnos, 1998.

MARTINS, Guilherme d’Oliveira. Patrimônio cultural: realidade viva. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020.

OTTONE, Ernesto. 2020. “Em momentos de crise, as pessoas precisam de cultura”. https: / / pt.unesco.org / news / em-momentos-crise-pessoas-precisam-cultura

Rodrigo Christofoletti – Professor de Patrimônio Cultural no curso de graduação e Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do grupo de pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais (CNPq). Conselheiro do COMPPAC – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora. Colaborador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC). Atua na interface entre História e Relações Internacionais com foco no patrimônio cultural. E-mail: r.christofoletti@uol.com.br https: / / orcid.org / 0000-0002-6346-6890

Maria Leonor Botelho – Professora Auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Diretora do Curso de Mestrado em História da Arte, Patrimônio e Cultura Visual. É investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM / FLUP). Com a Prof. Lúcia Rosas e o Prof. Mário Barroca, coordena a Enciclopédia do Românico em Portugal (2018-2021), no âmbito do protocolo de colaboração celebrado entre a FLUP e a Fundación Santa María la Real del Patrimônio Histórico, un Proyecto desde Castilla y Leon. Os seus interesses de investigação são a gestão do patrimônio, o patrimônio mundial, o digital heritage, a história urbana e a historiografia da arquitetura da época românica. E-mail: mlbotelho@letras.up.pt http: / / orcid.org / 0000-0002-2981-0694


CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; BOTELHO, Maria Leonor. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sociedades Asiáticas na Antiguidade / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2020

O estudo das sociedades asiáticas tem se mostrado um campo fértil e multifacetado. Foi o sinólogo Marcel Granet que apontou, em 1929, a impossibilidade de nos considerarmos especialistas em ciências humanas se nossos currículos continuassem a ignorar dois terços do mundo – ou seja, as civilizações de Ásia, África, Oceania e a América pré-colonial. De certa forma, essa ausência persiste na academia, com exceções pontuais. As iniciativas para estudar esse amplo e vasto “Oriente” tem surgido, com relativo constância, mas sem continuidade garantida. Arnold Toynbee (1986), André Gunder Frank (1998) e Jack Goody (2008) alertaram tacitamente a necessidade de reescrever a história mundial em novos parâmetros, redimensionando a perspectiva eurocentrada; Boaventura de Sousa Santos (2009) propôs, inclusive, que uma nova perspectiva epistemológica precisa desenvolver-se para dar conta de incluir e compreender as culturas americanas, asiáticas e africanas. Nesse sentido, as tentativas de explicar as civilizações orientais, a partir de um instrumental teórico tradicional, tem se mostrado pouco adequadas; e cumpre salientar que o desconhecimento sobre a antiguidade e durabilidade dessas tradições aumenta ainda mais essa lacuna, promovendo uma formação incompleta e restrita.

A iniciativa de formar um dossiê sobre as Sociedades Asiáticas na Antiguidade vem em resposta a essa premente necessidade, apontando caminhos para a pesquisa e para uma verdadeira e autêntica liberdade de pensar e conhecer. Nesse número, pretendemos promover um ponto de encontro entre os mais diferentes especialistas, abrangendo um amplo espaço geográfico e histórico que vai de Israel ao Japão. Nossa intenção é escapar ao Orientalismo, bem denunciado por Edward Said (1998), que homogeniza e estereotipa as culturas asiáticas. Buscamos apresentá-las em sua diversidade, originalidade e antiguidade, revelando aspectos culturais enriquecedores para nossa formação.

A necessidade de reescrever a história

A reescrita de uma história global depende, invariavelmente, do reconhecimento e inclusão das narrativas asiáticas na construção de uma nova cronologia histórica. Um currículo eurocentrado não mais se adéqua, nem se sustenta, diante das necessárias releituras que se impõe a partir de uma nova visão pluridiversa das fases históricas – na qual se destaca a disputa pela questão das origens e das hegemonias. Nesse sentido, a construção das histórias asiáticas (ou orientais), pela academia europeia, nasceu de um processo de exclusão e submissão. Como espaço de disputa genésica, no qual se impunha as visões coloniais e imperialistas do século 19, as civilizações de Ásia e África foram alocadas em segundo plano, servindo a uma hierarquização cultural imaginada, que punha o Ocidente Europeu no centro da estrutura histórica e na estruturação de sua periodização temporal e geográfica. As deformações históricas dessas culturas culminaram no fenômeno do Orientalismo, na já indicada acepção Saidiana. Foi nesse processo que Mesopotâmia, Israel e Egito foram construídos como antecessores préracionalizados da ascensão clássica e filosófica de Grécia e Roma, submetidos a um papel secundário. Em outra direção, Índia e China foram interpretadas como derivações migratórias e estagnadas de longa duração das antigas culturas mesopotâmicas, que persistiam em sobreviver na aurora no mundo contemporâneo (Lacouperie, 1880).

Uma visão diversa, multifacetada e integrada desse mundo antigo tem sido revelada gradualmente em duas frentes: o avanço paulatino das descobertas arqueológicas, que redimensionam nosso entendimento sobre as relações e sistemas materiais na antiguidade, e a construção de novas epistemologias, que agregam as contribuições dos sistemas de saberes não-ocidentais (Santos, 2009). No campo da cultura material, trabalhos basilares como de Amihai Mazar (2001), Finkelstein e Silberman em Israel (2003), Mortimer Wheeler (1968) na Índia ou Kwang Chang na China (1983), apenas para citarmos alguns poucos exemplos, revolucionaram a compreensão do passado dessas civilizações, revelando profundas assimetrias em relação à literatura. Por outro lado, os processos de independência afro-asiáticos, ao longo do século 20, renovaram os discursos de identidade e consciência histórica dos países descolonizados, e estabelecendo um ponto de partida para o resgate das culturas tradicionais (Chesneaux, 1977). Com base nesse renascença cultural, anunciada por Raymond Schwab (1950) e levada a cabo por vários intelectuais, as culturas afro-asiáticas buscaram retomar a posse de suas narrativas, redimensionado-as frente à história mundial. Martin Bernal (1987) mostrou a importância da cultura Egípcia para a formação do mundo grego, assim como Cheikh Anta Diop (1923-1986) reconectou a história dessa civilização com suas raízes africanas; Kavalam Panikkar (1977) e Romila Thapar (1978) ajudaram a renovar a escrita da história indiana e Bai Shouyi (1998) reescreveu a antiguidade chinesa a partir de uma interpretação original e diferenciada das teorias marxistas. Mais recentemente, Liu Xinru (2010), Raoul McLaughlin (2012), Peter Francopan (2019) Jared Diamond (2017) e Yuval Harari (2018) conseguiram incorporar algumas dessas novas leituras em uma narrativa histórica global bastante diferenciada daquela herdada do século 19.

Na dimensão curricular da História Antiga, começa-se gradualmente a contemplar outros espaços, tempos e civilizações, ampliando o escopo das relações culturais e materiais das civilizações ancestrais (Gebara, 2019). Necessário relembrar o esforço ingente de pesquisadores como Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) na área de Egito, Emanuel Bouzon (1933-2006) sobre Mesopotâmia e Ricardo Joppert (1979) na de China antiga, em trazer para o Brasil uma tradição de estudos orientais, produzindo materiais e formando quadros que pudessem superar nossa ausência notável na academia. O resgate das culturais orientais vem a reboque dessa mudança, que se estende há anos, e relevar a necessidade de estudá-las – tanto teoricamente quanto metodologicamente – representa um dos novos desafios epistêmicos para a área (Bueno, 2018). Cumpre salientar, pois, que a construção de um dossiê que expresse a diversidade das culturas não-europeias é saudada como uma iniciativa inovadora, que a revista Nearco abraçou nesse volume.

Apresentando as produções

Na definição das linhas gerais que norteariam a produção desse Dossiê, optou-se por delimitar, como critério fundamental, a avaliação e publicação de estudos que contemplassem culturas fora de um eixo eurocentrado. Por outro lado, a condição temporal de ‘antiguidade’, sincrônica (ou mesmo, anterior) aquela aplicada às culturas ocidentais, serviu de parâmetro para o estabelecimento de abordagens multitemporais e / ou paralelismos. Isso representa abarcar uma grande diversidade de civilizações, num espectro geográfico que vai do Oriente Próximo ao Extremo Oriente; contudo, nos permite apresentar uma série de ensaios especializados já em andamento, que desvelam as possibilidades de pesquisa para esse imenso campo.

Partindo de uma aproximação com os espaços geo-culturais, começamos a apresentação de nossos artigos voltados para o Próximo Oriente. A “antiguidade oriental”, classificação que abarca uma visão integrada da região do Levante e o do norte da África, foi adotada aqui para nortear os critérios de inclusão das pesquisas apresentadas. Em Formas de representação das candaces na cultura material em Kush (I AEC E I EC), de Fernanda Chamarelli, conheceremos mais sobre a presença do poder feminino na região de Kush, exercido pelas Candaces, senhoras ligadas às famílias dominantes locais, que redimensionam para nós as antigas relações de gênero e política. No domínio da história egípcia, Jorge Henrique Almeida nos traz, igualmente, uma contribuição fundamental sobre a obra de Cheikh Anta Diop, pensador africano crucial para uma nova compreensão da história do Egito enraizada nas tradições africanas, renovando tanto as narrativas sobre a egiptologia quanto da epistemologia da história, razão pela qual o ensaio se intitula O que aconteceu na história da ciência: a contribuição de Cheikh Anta Diop. Uma visão multifacetada do Egito resulta das diversas interpretações possíveis acerca dessa civilização, que vivenciou a colonização europeia de sua história.

Dentro do mesmo cenário, as civilizações da Mesopotâmia são examinadas por Priscilla Scoville e Simone Dupla. Essas duas destacadas pesquisadoras proporcionam leituras diferentes da ampla gama de temas que envolvem a história da região. Em Os Cassitas, Scoville apresenta e analisa a pouquíssimo estudada civilização dos cassitas, trazendo uma contribuição inovadora para nossa historiografia de antiguidade; já Simone Dupla, pesquisadora de larga experiência com questões de gênero e sexualidade na Mesopotâmia, nos traz um instigante texto sobre o papel do Sacerdócio feminino na Mesopotâmia, perscrutando as tradições religiosas da região.

Essa visão integrada do ‘antigo Oriente próximo’ nos leva igualmente a Israel, área de intensas disputas narrativas em razão de suas heranças religiosas, epicentro de revoluções no campo das crenças vivenciadas tanto por Ocidente com por Oriente. Janaína Zdebskyi, em seu texto As estrangeiras: registros sobre deusas e mulheres subversivas em excertos bíblicos nos traz uma reveladora pesquisa sobre o papel feminino nas tradições bíblicas, proporcionando uma leitura distinta e alternativa a uma epistemologia histórica androcentrada. Esse artigo dá continuidade a uma série de estudos empreendidos pela autora nesse sentido, consistindo em uma contribuição fundamental para um outro olhar sobre astradições da sociedade vetero-testamentária. Outro texto de escol é proporcionado por um dos maiores conhecedores da História de Israel antigo no Brasil, Josué Berlesi, que investiga a construção da ideia da divindade de Deus em “Javé é um”: apontamentos sobre o processo de construção do monoteísmo no antigo Israel.

No passo de um deslocamento geográfico gradual que agora realizamos, cumpre ainda assinalar a contribuição de Rodrigo Nascimento, Profetismo e Apocalíptica no Zand Ī Wahman Yasn, como uma das raras oportunidades que temos de entrar em contato com o mundo persa antigo, provida por um autor do seleto grupo de estudiosos de Pérsia em nosso país. A análise dessa importante peça da literatura Sassânida envolve conceitos religiosos que consideramos próprios do mundo Judaico-Cristão, mas que se revelam presentes em uma tradição religiosa distinta, com raízes igualmente ancestrais.

A Pérsia esteve intimamente conectada a Índia em função de um fundo cultural comum, derivado das migrações “indo-europeias” – termo de ampla abrangência para designar uma multidão de povos e movimentos migratórios que envolveria a Europa, as planícies do Irã e o norte da Índia. A construção da história indiana, porém, seria permeada por conflitos e hibridismos entre essas vagas de nômades e as populações autóctones que habitavam o subcontinente indiano, gerando sistemas religiosos e filosóficos próprios, que culminariam na formulação do Sanatana Dharma (ou, ‘Hinduísmo’) e de seus derivados, como o Jainismo e o Budismo. Esses sistemas constituiriam o alicerce formativo da civilização indiana, em que as concepções historiográficas tal como conhecemos foram substituídas por uma noção de manutenção das tradições, construindo uma experiência singular de história antropo-religiosa.

Dois textos se apresentam, aqui, promovendo uma releitura dessas tradições antigas da Índia nos dias de hoje. A renomada indóloga argentina Lia de La Vega, diretora da Associação Latino-americana de estudos afro-asiáticos (ALADAA) nos proporciona um instigante artigo, El budismo desde India hacia Sri Lanka: la donación (dana) y sus potencialidades comunitarias para el desarrollo, em que mostra as profundas conexões entre a espiritualidade budista e a construção de uma iniciativa para doação de olhos no Ceilão contemporâneo. Essa experiência revela como o projeto, de cunho médico e social, está permeado por uma discussão importante dos conceitos budistas fundamentais sobre a relação com o corpo. Em caminho similar, João Braatz, em “O Mahabharata”, de Peter Brook: reflexões sobre intermidialidade e “Orientalismo” em uma perspectiva pós-colonial, realiza uma análise da clássica epopeia indiana do Mahabharata e suas versões modernas no teatro e cinema, que trazem a luz um clássico da literatura mundial pouco conhecido no Brasil fora dos meios religiosos. Ambas as exposições de Vega e Braatz nos proporcionam um panorama fascinante da durabilidade das tradições indianas, suas mundivivências recentes e a compreensão de seus valores e ideias.

Em direção ao leste, chegamos agora na China, civilização cuja cultura desenvolveu-se relativamente afastada do eixo que conectava o Médio Oriente e a Índia. Temos a oportunidade, nesse Dossiê, de assinalar a presença de alguns destacados sinólogos de renome internacional, cujas pesquisas enriquecem ainda mais esse trabalho. O primeiro que gostaríamos de apresentar é Bony Schachter, pesquisador brasileiro que atualmente leciona sobre Daoísmo na China, integrando um seleto grupo de docentes estrangeiros habilitados e ensinar nesse país. Seu artigo, Esporte dos deuses: o ritual daoista visto sob uma perspectiva comparativa, nos revela como a antiga filosofia do Daoísmo, surgida em torno do século 6 AEC, transformou-se em um rico sistema religioso, cujas expressões contemporâneas encontram ramificações até mesmo no Brasil. sua preocupação é entender as transformações, os sentidos, significados e metodologias dessa religiosidade em franca expansão no mundo moderno.

O pensamento filosófico chinês antigo é contemplado em outro importante artigo, escrito pela sinóloga eslovena Jana Rosker. Ela é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores especialistas deste campo na atualidade, sendo inclusive presidente da Associação Europeia de Filosofia Chinesa, e possuindo dezenas de artigos e livros sobre os mais diversos temas. Para o nosso Dossiê, ela preparou Classical Chinese Philosophy and the Concept of Qi, um texto específico sobre o polissêmico conceito de Qi (energia, vapor, sopro vital, entre outros), imprescindível para o entendimento das teorias filosóficas e médicas chinesas.

No mesmo campo, A “Total War”? Rethinking Military Ideology in the Book of Lord Shang, do eminente pesquisador israelense Yuri Pines nos proporciona uma importante apresentação sobre a questão do pensamento militar na China antiga, presente no livro Shang Yang (ou, O livro do Lorde Shang), clássico da filosofia chinesa muito pouco conhecido no Brasil. Pines tem uma vasta e internacionalmente referenciada produção sobre a história chinesa, voltada principalmente para o período da reunificação chinesa, entre os séculos 4 e 3 AEC.

Como havíamos indicado no início desse texto, uma nova visão do mundo antigo prescinde uma investigação de caráter mais integrador e global. Krisztina Hoppál é uma das mais importantes arqueólogas e historiadoras húngaras em atividade, cujas pesquisas estão voltadas para a comprovação material das relações entre Ocidente e Oriente desde a antiguidade. No ensaio preparado para esse Dossiê, Materials of Eastern origin discovered in the former territory of the Roman Empire, with India and China in focus: examples of direct and indirect interactions from an archaeological perspective, ela examina um conjunto de evidências materiais de origem asiática encontradas nas fronteiras romanas, analisando suas rotas de trânsito e funções simbólicas.

Junto a esse seleto grupo de autores, apresento igualmente um contribuição, China: uma arte para dois mundos, no qual busca-se examinar e compreender o papel da escrita e da pintura e suas relações com as práticas religiosas de evocação durante o período Zhou (notadamente no período dos século 4-3 AEC). A escrita chinesa possui uma estrutura distinta dos sistemas alfabéticos, possuindo implicações especiais para a construção do pensamento simbólico e da racionalização das ideias.

Fechando essa apresentação, Cultura material do Japão no período Kofun: um panorama introdutório, de Larissa Reddit, investiga um tema praticamente inédito no Brasil, relacionado à cultura japonesa: as tumbas do período Kofun, cujo formato e sentido são objeto de ricas discussões acadêmicas. O trabalho de Reddit, Cultura material do Japão no período Kofun: um panorama introdutório é absolutamente inovador, não tendo paralelo em nosso país, e representa uma contribuição significativa para os estudos japoneses desenvolvidos aqui.

A riqueza desse Dossiê resulta da mundiviviência de abordagens possíveis, que mostram os inúmeros pontos de abertura para acessar as civilizações asiáticas. Como podemos notar, os presentes textos resgatam as narrativas dessas culturas, desapropriadas de sua voz, e colocadas em segundo plano, como Jack Goody apontou. Se no Brasil persiste uma atitude arrivista quanto às novas dimensões da escrita histórica, Dossiês como este tornam-se uma ponte indispensável para começar a caminhada em direção aos estudos orientais.

Referências

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GOODY, Jack. O roubo da História: Como europeus se apropriaram das ideias e invenções do oriente. São Paulo: Contexto, 2008.

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WHEELER, Mortimer. Índia e Paquistão. Lisboa: Verbo, 1970.

André Bueno – Professor Adjunto de História Oriental da UERJ, organizador do presente Dossiê. Aproveitamos o ensejo para agradecer a direção e a comissão editorial do periódico Nearco por oportunizar a realização desse volume, que julgamos necessário e urgente no atual contexto de renovação historiográfica.


BUENO, André. Apresentação. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade. Rio de Janeiro, v.12, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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História Antiga e Medieval no Brasil: pesquisa e prática de ensino / Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino / 2020

As pesquisas em História Antiga e Medieval ganham o Brasil de uma ponta a outra. Partindo de centros de excelência, como a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal Fluminense, espalharam-se por todo o país, graças ao trabalho incansável e audacioso de muitos pesquisadores / professores que acreditaram que é possível fazer uma História Antiga e Medieval de excelência no Brasil. Teçamos loas a essas pessoas admiráveis, que passaram por nossas vidas, que nos inspiraram e continuam a fazê-lo.

O trabalho pujante da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, a SBEC, a formação dos Grupos de Trabalho (GTs) da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH), os inúmeros laboratórios reunindo pesquisadores de diferentes estados e os muitos congressos e revistas científicas especializadas na área têm proporcionado uma rica troca de experiências, que impulsiona a pesquisa brasileira.

As atuais pesquisas em História Antiga e Medieval propõem modelos interpretativos diversos, o alargamento das fontes documentais, o uso da tecnologia em benefício da pesquisa e do Ensino e o diálogo com outras ciências, especialmente com a Arqueologia. Novas questões estão na ordem do dia a nos desafiar, intimando-nos a pensar, a tecer novas proposições para a construção de uma História Antiga, viva, em movimento.

Toda sorte de problemas que afetam direta e indiretamente a todos nós, conduzem-nos a reflexões importantes para o repensar do mundo antigo e do nosso próprio mundo. Entre tais problemas está a inquietação com as questões do tempo presente de um mundo globalizado, com problemas igualmente globais, como a pandemia do novo coronavírus a nos fragilizar; enfraquece-nos também a intolerância, a grassar em suas diversas faces, principalmente, no que se refere à discriminação contra as minorias.

Diante de tal quadro, os artigos desse dossiê devem contribuir para a valorização da diferença, da diversidade, da heterogeneidade, da tolerância e combate à discriminação, rejeitando qualquer tipo de preconceito, seja de qual natureza for, por seu potencial de abordagem multiculturalista e de diversidade presente em seus conteúdos. Dialogando com pesquisadores de vários centros de pesquisa, o dossiê apresenta trabalhos de novos e experientes pesquisadores demonstrando, que os estudos de História Antiga e Medieval estão bem dinamizados na Bahia e em outros estados da Federação.

Estes artigos são exemplos de que as pesquisas brasileiras em História Antiga e Medieval estão conectadas com as discussões levadas a termo no cenário internacional, mas evidenciando as especificidades de um “olhar” local que contribuem nos debates em ambientes hegemônicos. Os artigos também espelham a proximidade das pesquisas com a nossa realidade, propiciando-nos uma fecunda possibilidade de compreender melhor o presente, com uma visão menos limitada, linear e por vezes distorcida. No âmbito do ensino, tal perspectiva deve ajudar os discentes a enxergarem a nossa realidade de forma transitória, contrastando-a com os seus modos de vida, observando as persistências e mudanças ao longo do tempo, dissipando a distância entre o saber científico, produzido nas Universidades, e o saber escolar, produzido em salas de aula do Ensino Fundamental e Médio. Aos docentes, os artigos apresentam instigantes possibilidades de refletir sobre a História Antiga, de repensá-la em sua prática de sala de aula, de fazer novas experimentações, tornando essa História mais próxima, mais viva e prenhe de sentido. Muitos artigos visam instrumentalizar o professor, oferecendo-lhe ferramentas úteis para diminuir o descompasso entre aquilo que é produzido no meio acadêmico e o que é ensinado nas escolas.

Compõem o dossiê um total de dez artigos. Alexandre Galvão Carvalho, em seu texto Diálogos entre a História Antiga e o ensino de História, tece reflexões em torno da alteridade, multiculturalismo, eurocentrismo e da relação entre Ocidente e Oriente nos debates acerca do ensino da História Antiga. Procura repensar as formas e modelos da História Antiga e o ensino de História com o objetivo de aproximar a disciplina História Antiga de nossa realidade e superar preconceitos, articulando artigos atuais sobre as formas e modelos teóricos da área com as propostas curriculares para o ensino de História, acentuando os caminhos para a inserção da disciplina História Antiga na construção e fortalecimento da cidadania.

No artigo Saberes arqueológicos na escola pública: ações educativas do Labeca aplicadas ao “Projeto Minimus Intersdiciplinar”, Maria Cristina Nicolau Kormikiari, Felipe Perissato e Felipe Leonardo Ferreira destacam a contribuição do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (LABECA) para o avanço das pesquisas sobre a cidade antiga grega no Brasil. Apresentam, a partir de um rico e instigante projeto, um relato de experiência dos desdobramentos dos estudos desenvolvidos no LABECA em escola pública da Educação Básica de São Paulo. O objetivo do projeto é aproximar o conhecimento produzido no espaço da universidade da escola secundária, preocupação constante do Laboratório.

No terceiro artigo, O livro didático e o Ensino de História Antiga – desafios no presente e problemas do passado, Luis Filipe Bantim de Assumpção e Carlos Eduardo da Costa Campos partiram da experiência como docentes no Ensino Médio, em colégios particulares do Rio de Janeiro, para demonstrar como os materiais didáticos ali utilizados detêm uma visão conservadora sobre a História Antiga. Os autores aproveitam a oportunidade para apresentar, com muito esmero, uma metodologia de análise do livro / material didático utilizado, com a qual se objetiva desenvolver uma análise crítica do conteúdo de Antiguidade.

Na sequência, o artigo História dos cristianismos nos livros didáticos: considerações sobre a narrativa histórica escolar, de autoria de José Petrúcio de Farias Júnior e Ramonn Gonçalves de Moura, apresenta uma discussão necessária e importante sobre a História dos Cristianismos a partir de preocupações atuais, como o fundamentalismo religioso e a intolerância religiosa, tão presentes em nosso cotidiano. Os autores analisam a apresentação da história dos cristianismos nos livros didáticos e chegam à conclusão do quanto ainda é profundo o fosso entre aquilo que é ensinado nas escolas e as discussões recentes sobre a temática.

No quinto artigo “Mitologia, História e Cinema”: um projeto de extensão sobre recepção do mundo-greco romano em curso, Igor Barbosa Cardoso e Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho brindam-nos com a apresentação de um projeto amplo e audacioso (como todos devem ser) envolvendo Mitologia, História e Cinema, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Muito mais do que a apresentação do projeto, os autores oferecem um magnífico quadro teórico de análise da produção cinematográfica e de importantes questões atinentes ao estudo da recepção da cultura clássica. Trata-se de um convite desafiador (e tentador) àqueles que desejam repensar a História sobre novos e promissores alicerces, inserindo, sob bases acertadas, o cinema em sala de aula.

Em O Mediterrâneo Antigo: uma proposta didática Manuel Rolph Cabeceiras apresenta, em seus aspectos teórico-metodológicos e práticos, os resultados da construção de uma proposta de aprendizagem compartilhada nas turmas de “História Antiga” no 1º Período do Curso de Graduação em História da UFF de 2013 a 2019, centrada no Mediterrâneo como categoria de análise histórica nas áreas por ele abrangidas dos séculos XXIV a.C. a III d.C. O artigo além de apresentar análise inovadora sobre o Mediterrâneo Antigo, abre a possibilidade para um novo modo de se pensar e trabalhar em sala de aula o mundo antigo.

No artigo seguinte O II Concílio de Braga e Da Correção dos Rústicos contra o paganismo: entre a cultura escrita e a oralidade, de autoria de Vitor Moraes Guimarães e Márcia Santos Lemos, os autores apresentam uma análise muito rica sobre as formas utilizadas pela Igreja no processo de evangelização e difusão do cristianismo no Reino Suevo do VI século. A partir de múltiplas estratégias de conversão ao cristianismo, a Igreja alcançava tanto as baixas camadas do clero quanto as populações humildes e afastadas, na busca da consolidação do cristianismo e eliminação do paganismo.

O oitavo artigo, A pesquisa sobre Império Romano no Brasil: a Numismática e a Coleção do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro (RJ), de Cláudio Umpierre Carlan, apresenta uma das mais instigantes e frutíferas fontes de pesquisa: a moeda. A partir da Coleção do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, o estudioso presenteia-nos com uma análise do Império Romano. Passeando pela história da Numismática, apontando suas possibilidades de pesquisa, ofertando-nos exemplos de como é possível extrair da fonte imagética um conhecimento profundo e sob diferentes aspectos da história dos romanos.

O artigo seguinte: Os sepultamentos secundários dos judeus e os ossuários judaicos: um breve debate sobre continuidades e rupturas dos padrões funerários na região da Judeia, dos autores Carolina Mattoso e Vagner Carvalheiro Porto, apresenta uma história que vem da província romana da Judeia, pouca conhecida entre nós. Tem o mérito de discorrer com profundidade sobre o sepultamento secundário de judeus e o uso de ossuário como modo para esse tipo de sepultamento. Sob tais bases os autores tentam ampliar o conhecimento das interações entre a província e os romanos e entender o próprio passado judaico.

Fechando o dossiê, no artigo O espaço como um contributo para a compreensão da tragédia e para a interpretação da História, Márcia Cristina Lacerda Ribeiro propõe a utilização do ‘espaço’ como categoria de análise útil para ampliar o entendimento sobre a tragédia grega e sobre a História. A partir de uma leitura antropológica do espaço, tomada de empréstimo de Amos Rapoport, o texto discute a interação entre espaço e comportamento, exemplificado a partir da análise do espaço da gruta, presente na tragédia Íon de Eurípides.

Com esse dossiê, reforçamos nossa perspectiva de que o estudo da História Antiga e Medieval deve ser encarado como um laboratório, com uma enorme diversidade de formas socioculturais das experiências dos homens e mulheres ao longo da história. O afresco de Luca Giordano, “O barco de Caronte, o Sono da noite e Morfeu”, do século XVII, capa da nossa revista, é uma leitura da Antiguidade formulada em outro contexto histórico, por meio de uma linguagem própria, uma forma de apropriação e usos do passado que coloca em tela o interesse que o antigo e o medievo têm despertado ao longo do tempo. Que assim continue….

Nossos agradecimentos a todos os autores que nos presentearam com seus belíssimos trabalhos.

Boa leitura!

Alexandre Galvão Carvalho – Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor Pleno do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Brasil. E-mail: alexandre.galvao@uesb.edu.br

Fábio de Souza Lessa – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Laboratório de História Antiga e ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) do Instituto de História da UFRJ e ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (PPGLC) da Faculdade de Letras da UFRJ. Brasil. E-mail: fslessa@uol.com.br

Márcia Cristina Lacerda Ribeiro – Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo; Pós- doutora em Arqueologia Clássica pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade do Estado da Bahia (na Graduação em História e no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Linguagem e Sociedade). Pesquisadora do LABECA / MAE / USP e do NHIPE / CNPq. Brasil. E-mail: mclribeiro@uneb.br


CARVALHO, Alexandre Galvão; LESSA, Fábio de Souza; RIBEIRO, Márcia Cristina Lacerda. [História Antiga e Medieval no Brasil: pesquisa e prática de ensino]. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.2, n.6, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

CARTÕES POSTAIS DE ESTÁDIOS DE FUTEBOL COMO FONTE DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO | Aristides Leo Pardo |

Através destas linhas iremos discorrer acerca da importância dos cartões postais como fontes históricas e guardiões das transformações sociais e urbanas através dos anos, com foco nos postais de estádios de futebol do Estado do Rio de Janeiro, pois é perceptível as mudanças que as praças esportivas sofreram com o passar dos anos, assim como seu entorno, isto sem falar naqueles que deixaram de existir por força da expansão das cidades. Utilizaremos neste trabalho, uma revisão bibliográfica e os próprios cartões postais, como fontes iconográficas para mostrar espaços em constante mutação, poderia ter usado fotografias, mas a opção pelos postais foi a escolhida por dois motivos: serem melhores para referenciar, e ne maioria dos casos, datar, e também por ter acesso mais fácil, já que esta é uma das paixões do autor, que pode mais uma vez rever sua coleção de cerca de 3.000 peças, que retratam praças esportivas dos quatro cantos do nosso Brasil. – PALAVRAS-CHAVE: Cartões Postais. Fontes Históricas. Estádios de Futebol.

“SÍNDROME DA CHINA” E A DENÚNCIA A INSEGURANÇA MUNDIAL NA “ERA NUCLEAR” | Arthur Alexandre Caetano Silva de Souza | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O presente artigo procura analisar as relações entre produções cinematográficas e suas potencialidades perante a construção do conhecimento histórico. Sob o contexto da Guerra Fria que marcou o início da “era atômica”, buscaremos explicitar as relações entre representações cinematográficas e suas apropriações de fatos históricos enquanto elementos contribuintes para o enriquecimento do conhecimento histórico. Para isso, utilizaremos como “estudo de caso” o filme “Síndrome da China” (The China Syndrome) dirigido por James Bridges em 1979, e estrelado por atores consagrados do cinema como Jane Fonda, Jack Lemmon, Michael Douglas, dentre outros. O enredo de tal produção cinematográfica é relevante ao conhecimento histórico na medida em que proporciona a reflexão crítica a cerca da era nuclear e seus efeitos para a sociedade. Palavras Chave: Ensino de História; Guerra Fria; Cinema e História; Era Nuclear.

ENTRE “DEBATES E COMBATES”: NOTAS ACERCA DE ALGUNS DESAFIOS DA HISTÓRIA | Bruno César Pereira | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O presente artigo propõe realizar uma breve reflexão de alguns desafios enfrentados pela História ao longo do século XX. Em especial, em um primeiro momento, buscaremos nos concentrar nos debates travados entre História e a Sociologia durkheimiana refletida através das críticas feitas pelo sociólogo François Simiand as produções historiográficas da Escola Metódica. Em um segundo momento, nos dedicaremos em analisar os embates entre História e Antropologia, que, se concentrou entre os pesquisadores: Claude Levi-Strauss e Fernand Braudel. A proposta deste artigo, além de analisar os desafios enfrentados pela História em um dado contexto específico, busca destacar que a História, enquanto disciplina acadêmica possui grande importância para o pensamento humano, da mesma forma suas contribuições se equiparam as demais áreas do conhecimento social e humano. – PALAVRAS-CHAVE: Desafios; Teoria da História; Século XX. | INDÍCIOS E INDICADORES DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS NAS PÁGINAS DE “O ESTADO”: ACELERAÇÃO DO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO E A INCORPORAÇÃO DO CONSUMO DE MASSAS (1970-1980) | Daniel Henrique França Lunardelli | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

A partir do início da década de 1970, a Capital catarinense ganhou uma nova dimensão em sua composição econômica e social. O processo acelerado de transformações urbanas que ocorreram na cidade impactaram a vida dos moradores e produziram uma série de expectativas acerca do presente e outras tantas em relação ao futuro. O crescimento vertiginoso da construção civil e o incremento do setor de serviços, somados às grandes obras públicas que impactaram a paisagem urbana de Florianópolis, contribuíram significativamente para construir no imaginário da população a narrativa de que se estava de fato vivendo um novo tempo. – PALAVRAS-CHAVE: Florianópolis. Cidade. Urbanização

ESTUDANTES PELA LIBERDADE: FORMAS DE ORGANIZAÇÃO, RACHA E OUTROS ASPECTOS (2012-2016) | João Elter Borges Miranda | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O Estudantes Pela Liberdade (EPL) surgiu no Brasil como uma franquia do aparelho estadunidense Students For Liberty. Ao ser fundado no Brasil em 2012, o EPL estabeleceu como missão desenvolver estudantes ao seu potencial máximo de liderança, oferecendo treinamento de aperfeiçoamento profissional, desenvolvendo técnicas como as de oratória e comunicação profissional, na defesa dos preceitos ultraliberais. O período de 2012 a 2016 será o período áureo do EPL. Amparado, financiado e instrumentalizado por organizações nacionais e transnacionais, conseguirá se expandir por todas as regiões do país, através de uma série de atuações, formando dezenas de jovens para defenderem nos meios universitários os preceitos ultraliberais. Em 2016, contudo, sofrerá um racha interno, a partir do qual irá se dividir: será criado no país a Students For Liberty Brasil, uma vertente direta da versão americana, e o EPL perderá o direito de realizar parcela considerável dos seus projetos desenvolvidos anteriormente, assumindo a partir desse momento o caráter de uma “Academia da Liberdade”, oferecendo cursos online de formação. No presente trabalho objetivamos abordar aspectos das origens do EPL, as suas formas de organização, financiamento e atuação dentro do recorte de 2012 a 2016, e o porquê do racha interno. – PALAVRAS-CHAVE: Estudantes Pela Liberdade; Aparelho Privado de Hegemonia; Racha.

MALINCHE E POCAHONTAS: AS REPRESENTAÇÕES DAS MULHERES INDÍGENAS NO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DAS AMÉRICAS | Luciane Zanin Ferreira e Mariana de Sá Gaspar | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

Nas colonizações das Américas espanhola e inglesa, ocorridas no século XVI, duas mulheres nativas se destacaram: Malinche e Pocahontas. Embora em contextos diferentes, suas trajetórias possuem aspectos em comum e características marcantes, recebendo, inclusive, representações póstumas ao período das conquistas, que lhes atribuíram no âmbito simbólico heroicização, culpabilidade e até mesmo um caráter lendário. Analisando essas indígenas a partir da formação das Américas colonizadas, buscamos compreender como essas mulheres se inseriram nesse processo, bem como problematizar suas representações. – PALAVRAS-CHAVE: História da América; Mulheres; Representações.

AS CEBS COMO MEIO DE COMPREENSÃO DAS LUTAS DOS POBRES NO BRASIL: 1964-1985 | Marcos Guerreiro de Farias | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

o presente texto busca analisar por meio uma revisão bibliográfica como se constituía as Comunidades Eclesiais de Base – CEB se os espaços de voz concedidos aos sujeitos que permeavam estas comunidades. Analisaremos especialmente os anos que compreenderam a Ditadura Militar no Brasil, momento este de extremo enrijecimento político, perseguições, torturas e mortes. Foi durante este momento que a Igreja se solidarizou com a luta dos pobres, solidificando-se como espaço para a fala quando a norma era calar. Mais próxima da população empobrecida, de seu cotidiano, convivendo diariamente com o sofrimento de muitos, a Igreja Católica por meio da Teologia da Libertação proporcionou um espaço de amplo debate político que posteriormente tornar-se-ia o núcleo dos movimentos mais críticos e a esquerda no Brasil. – PALAVRAS-CHAVE: Igreja Católica; Teologia da Libertação; Autolibertação.

AS MULHERES DE MACHADO: A MULHER NO SÉCULO XIX – REPRESENTAÇÕES DE MULHER NOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS | Milena Calikoski | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

Neste texto fazemos a análise de alguns contos de Machado de Assis com a intenção de entender como as mulheres eram representadas, para isso utilizamos contos onde as mulheres têm um papel de protagonismo. Através das obras escolhidas podemos explorar como era o modelo de mulher exemplar, buscando nas obras mulheres que não se encaixavam nesses modelos, analisando a maneira como elas são representadas nas obras selecionadas, para então entendermos em qual contexto esses discursos foram produzidos. Buscamos entender como estes discursos contribuíam para a concepção da existência de um mundo feminino, onde o casamento era requisito principal e até carreira para a maioria das mulheres da elite burguesa. Palavras chave: mulheres; Machado de Assis; casamento.

O LÚDICO NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM: O PIBID NAS TRINCHEIRAS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL | Milliann Carla Strona e Cibeli Grochoski | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O presente trabalho objetiva apresentar o relato de uma experiência dos integrantes do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da área de História da Unicentro, Campus Irati – Paraná. Para abordar a temática da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi utilizada uma metodologia diferente do que se faz no ensino tradicional, o intuito foi promover por meio de uma abordagem lúdica e da análise de fontes históricas uma reflexão crítica dos conteúdos com os alunos. O trabalho foi realizado na Escola Nossa Senhora das Graças com os 9ºs anos do Ensino Fundamental, sob a supervisão da professora regente Juliana Bastos. Palavras chave: Ensino; PIBID; Metodologia.

Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade / Revista Trilhas da História / 2020

Em 2019, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, sediou o evento intitulado Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade. O evento fora construído por várias mãos, na tessitura de práticas e diálogos entre cursos de licenciatura do campus, especialmente os cursos de História, Geografia e Pedagogia, representados por docentes e discentes comprometidos / as com a educação para as relações étnico-raciais. Além dos temas candentes para o debate das relações étnico-raciais, o encontro foi bem sucedido por conseguir reunir vozes negras e indígenas protagonizando os diálogos estabelecidos nas mesas redondas, simpósios temáticos, lançamentos de livros e atividades culturais. Eventos desta natureza têm como justificativa a urgência da produção de um novo estradar da universidade, desenhando bifurcações necessárias entre a educação e a luta antirracista.

Uma busca no Google de eventos acadêmicos ocorridos em novembro de 2019 possivelmente aponte para muitos outros lugares e entidades que realizaram atividades voltadas à semana da Consciência Negra naquela conjuntura. Provavelmente também o crescimento do número de pesquisas, ações e projetos a extrapolar a efeméride, seja uma realidade e uma conquista de que nos sentimos parte e que devem ser comemoradas. No entanto, passado um ano, perscrutando um olhar retrospectivo, concluímos que estamos longe de empreender uma alteração efetiva no estado de coisas e no cenário de violência que o racismo estrutural engendra. Ao adentrarmos o ano de 2020, pudemos constatar, não sem tristeza e indignação, que os passos são ainda muito curtos, apesar de tão necessários.

Marcado pelo advento da pandemia do novo Coronavírus, o ano de 2020 escancarou o racismo estrutural e aprofundou a chaga do negacionismo. Logo nos primeiros meses da conjuntura pandêmica, o mundo assistiu ao levante estadunidense em reação ao assassinato de George Floyd, um homem negro morto por um policial branco, em 25 de maio, na cidade de Minneapolis, em mais uma das abordagens violentas das instituições policiais sobre as populações negras, mas que, naquela ocasião, fora filmada e exposta nas mídias globais. Homens e mulheres de todo o planeta assistiram ao terrível assassinato daquele cujas últimas palavras foram: “eu não consigo respirar”. O fato foi corretamente lido pela sociedade como violência racista e a repercussão se politizou, fazendo emergir dali o movimento mundial intitulado “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam). Demonstrar que a abordagem policial difere a partir de marcadores de cor, evidenciando que a sociedade é amplamente racializada, foi um objetivo trilhado pelo movimento, apesar de persistirem visões negacionistas teimando em retrucar pelas redes que “todas as vidas importam”, numa tentativa de apagamento do racismo como causa estrutural da morte de Floyd. Não é exagero dizer que a sensibilização estadunidense frente a este fato pode ter abalado o destino das eleições presidenciais dos Estados Unidos, uma vez que a resposta do líder máximo do executivo naquele momento não destoava da onda negacionista e mesmo não se distanciava de grupos de supremacia branca naquele país.

Aqui no Brasil, os primeiros sinais de que a epidemia também seria uma tragédia racializada vieram antes e foram, respectivamente, a notificação da primeira morte por Covid-19, no país, de uma empregada doméstica, e a evidente negligência do Estado contra os povos indígenas no combate à disseminação do vírus entre as comunidades. O Instituto Socioambiental apontou para essa omissão argumentando que o Estado inclusive ajudou a espalhar a doença entre os povos originários, por meio de profissionais da saúde que levaram o vírus para aldeias, como também pelo silêncio sobre garimpeiros e grileiros que aumentaram as invasões na Amazônia durante a pandemia e, ainda, pelo fato de indígenas terem de buscar o auxílio emergencial nas cidades.[1]

Em maio de 2020, uma operação policial resultou na morte de uma criança de 14 anos, dentro de sua casa, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. João Pedro era mais um garoto negro, morador do complexo de favelas do Salgueiro, e sua morte expôs a terrível tradição da abordagem policial onde se concentram os pobres e negros das periferias que, como afirmava Carolina Maria de Jesus, constituem o “quarto de despejo” da sociedade.

Pouco tempo depois, em 02 de junho, fomos surpreendidos com o desfecho de uma tragédia a ser evitada se nosso povo pudesse se libertar da sua própria história, superando as dores e desigualdades infligidas, sobretudo, nas intersecções de raça, gênero e classe. Naquele dia, na cidade de Recife, morreu o menino Miguel ao cair da altura do nono andar de um prédio. Sua morte foi definida pela ONU como decorrente do racismo sistêmico, pois Miguel era uma criança negra e estava sozinho naquele andar por conta da negligência da patroa de sua mãe. A mãe de Miguel, Mirtes Souza, mulher negra, havia saído para passear com o cachorro da patroa. Assim como a sua própria mãe, era empregada doméstica e não pode contar com o direito ao isolamento social preconizado pela Organização Mundial da Saúde – OMS.

Djamila Ribeiro, ao refletir sobre o fato, expôs sua relação inegável com um passado colonial que teima em se reproduzir. Em texto publicado em 09 de julho no Jornal A Folha de São Paulo, a filósofa afirmou que era preciso atentar para algo insistentemente invisível, “o serviço doméstico em meio à pandemia, a hierarquização de vidas. A patroa que faz as unhas, enquanto Mirtes Souza, empregada doméstica, passeia com o cachorro”. Para esta autora, Miguel “provou uma experiência comum para pessoas negras no país: ser uma presença indesejada, uma chateação preta no momento de vaidade da família branca”. Mas, como compreender que a queda e morte de uma criança é resultado de racismo? O que é preciso reconhecer por detrás do elenco de fatos imediatos daquele 02 de junho como fios invisíveis e históricos que colocam o menino Miguel, de apenas cinco anos, naquele elevador, cujos botões foram apertados pela patroa branca, primeira-dama de um município que tampouco ela residia?

Na época dos fatos foram ventiladas as noções de racismo estrutural e sistêmico em algumas reportagens e programas de repercussão que visavam explicar os acontecimentos a partir de leitura sociológica apontando que o racismo não se resume a práticas individuais, conscientes e isoladas, de aviltamento direto contra homens, mulheres e crianças lido a partir de marcadores raciais erigidos em processos de colonização eurocentrados. Um dos autores que se fez presente no debate público foi Silvio de Almeida, para quem o racismo é estrutural e também institucional, pois nossas ações e comportamentos “são inseridos em um conjunto de significados previamente estabelecidos pela estrutura social. Assim, as instituições moldam o comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como dos sentimentos e preferências”.

Apesar da repercussão destes e de outros casos, que incluiu até um movimento pela derrubada de estátuas e monumentos colonialistas ao redor do mundo, as dores da família de Floyd, de João Pedro e de Miguel, bem como os debates trazidos às superfícies das mídias e redes sociais não foram suficientes para produzir uma fissura sistêmica ou estrutural que interrompesse o ciclo histórico de violência infligida aos povos subalternizados e marcados pela negritude dos seus corpos.

Ao completarmos um ano de nosso evento, às vésperas do Dia da Consciência Negra de 2020, João Alberto Freitas, de 40 anos, foi tratado como criminoso, espancado e morto por seguranças no estacionamento de uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre. Seu crime: ser negro no Brasil. Mas, igualmente, como ocorreu com os tristes exemplos que elencamos acima, não foi dito a Beto que ele pagava com a vida por sua negritude, pois o racismo que impele as instituições a detratarem e destruírem pessoas negras só pode ser percebido pelo escancaramento do absurdo que se pensaria caso o evento ocorresse inversamente, com pessoas brancas. Só parece possível produzir alguma consciência e educação das relações étnico-raciais que superem as estruturas racistas quando o conjunto da sociedade assumir essa tarefa e, sobretudo, as pessoas brancas admitirem sua importância na luta antirracista, quando forem capazes de presumir seus privilégios invisíveis como serem tratados / as como pessoas sem previamente serem suspeitas. Grada Kilomba, em entrevista à já citada Djamila Ribeiro, alertou que “as pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas. E é exatamente essa equação, ‘sou branca e por isso sou uma pessoa’ e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo”.

Os casos de violências tão terríveis como estes ocorridos após o nosso evento tensionam nossa própria esperança. Além das mortes decorrentes do racismo estrutural, que foram em número maior do que podemos supor aqui, também os casos de preconceitos e prejuízos produzidos pela omissão no combate ao racismo, e mesmo por sua reprodução, projetam cotidianamente os brancos / as ao centro e os negros / as e indígenas às margens. Basta lembrarmos do caso da entrevista da cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, ao programa Roda Viva (TV Cultura) do último 19 de outubro, em que afirmou, sobre contratar pessoas negras a partir de políticas afirmativas, que o banco não poderia fazê-lo pois não dá para “nivelar por baixo”.

Estas dinâmicas se beneficiam do silenciamento e da normatização e mantêm engrenagens muito antigas que, a despeito da centenária resistência, dos aquilombamentos e retomadas, das emancipações individuais e das pequenas conquistas legais, asseveram o fosso social que persiste e se desnudou ainda mais com a pandemia. A doença foi pior e, de fato, mais letal para aqueles e aquelas que já são atravessados pela chaga do racismo. A publicação do GT de Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), fundamentada na perspectiva de que a OMS, “concebe o racismo como um dos determinantes sociais do processo de adoecimento e morte”. Os autores / as consideram que “os desdobramentos da pandemia da Covid-19 numa sociedade estruturada pelo racismo penaliza grupos vulneráveis, especialmente entre pessoas negras, está diretamente relacionado à policrise sanitária, social, política, econômica, moral, crise na globalização e os fluxos migratórios etc”.

Produzir mudança que salve vidas implica uma tarefa de arco revolucionário e, na educação, uma radicalidade emancipadora. Com efeito, a denúncia e o anúncio, sejam eles viralizados pelas câmeras e redes que hoje podem contribuir com a desnaturalização da violência racial, seja na reunião de pessoas dispostas a dar um passo em outra direção, isto é, na direção da luta antirracista, é o trabalho de formiguinha a que temos de nos comprometer nas nossas rotinas de trabalho, estudos, nos almoços de família, nas rodas de conversas, no chão das escolas, de forma coletiva, perene e intransigente. É neste compromisso que trazemos e apresentamos o Dossiê Relações étnicas – Racismo, Educação e Sociedade.

Como já salientamos, sua proposta nasce do Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas, mas ganha novo fôlego ao revisitarmos as experiências do ano que decorreu de lá pra cá, com a pandemia da Covid-19 e do racismo. Se alcançamos, na época, o bonito objetivo de construir um espaço pluralmente atravessado por olhares decoloniais, narrativas indígenas, vozes negras de homens e mulheres, estéticas diversas, em ações potentes e resistentes na denúncia das várias formas de opressão que marcam a nossa sociedade, como também de (re)existências a demarcar a educação como instrumento de luta e vivida / produzida pela ação humana no tempo, agora, compreendemos que o dossiê alimenta o anseio de manter vivo este espaço como marco de luta e esperança. Os textos, assim como o simpósio, também se constituem numa treliça interdisciplinar e trazem esta dimensão de enfrentamento aos muitos racismos, como os vividos nos espaços escolares, mas ainda em outros lugares da sociedade e a envolver sujeitos diversos, como negros e negras, indígenas e ciganos.

O texto Cabelo crespo, corpo negro na luta cultural por representação afirmativa da identidade negra, da historiadora e militante negra, Celia Regina Reis da Silva, apresenta densidade teórica e trabalho com as fontes na abordagem de uma temática de suma importância para o Dossiê ao estudar o corpo negro e o cabelo crespo, em vista da discriminação vivida por crianças, adolescentes e jovens, tanto no espaço escolar quanto em outros lugares da sociedade. Mas apresenta também o seu reverso, ou seja, as múltiplas manifestações culturais da juventude negra de São Paulo, especialmente das periferias, na denúncia desta situação e na apresentação, vivência e (re)existência de outras práticas que implicam a valoração das vidas negras, na sua mais ampla acepção. Ao discutir essas questões no ambiente escolar, a autora denuncia como a escola acaba por ser este lugar de segregação e racismo se não problematiza-los em suas raízes e efetivar práticas antirracistas em seu cotidiano. Desse modo, o texto é um alento para pensarmos questões fundamentais na apreensão das múltiplas formas de luta, especialmente na abordagem do corpo e do cabelo negros e na criatividade das periferias na reinvenção de outras práticas que vão de encontro à violência contra pretos e pretas.

O texto A lei 10.639 / 2003 e o Programa Nacional da Biblioteca na Escola do ano de 2013: Como a temática étnico-racial tem sido tratada pelo programa dez anos após a sua implementação, de Felipe Lima e Jaqueline Santa Bárbara, traz uma temática muito relevante para a Educação e a História, ao abordar a forma como os negros e negras vem sendo retratados na literatura infantil, especialmente como se constitui (ou se nega) a identidade negra, a partir da análise de livros disponibilizados pelo PNBE / 2013, dez anos após a Lei 10.639 / 03. Desse modo, ao entrevistar duas professoras que trabalham com o ciclo fundamental e analisar 60 livros enviados para as escolas brasileiras, os / as autores / as abordam uma discussão fundamental acerca das questões étnico-raciais e do trabalho desenvolvido em sala de aula.

O texto ‘E se fosse o contrário?’ Djonga e Fanon: um diálogo sobre racismo e alienação, de Fábio Silva Sousa e Rogério Leão Ferreira, ao trabalhar duas linguagens diferenciadas (um autor e um videoclipe), traz uma contribuição necessária para a análise do racismo e das formas de opressão que marcam a sociedade no Brasil e em outras partes do globo. Ao discutir Frantz Fanon e sua obra “Pele negra, máscaras brancas”, e o Rapper Djonga, numa linguagem explícita e até direta, por vezes, ao confrontar-se com a alienação do negro, o texto problematiza a quem favorece a identificação com o branco e nos aponta caminho para superarmos o racismo impregnado em nosso tecido social.

O texto Entre o sul e o norte de Mato Grosso: doenças, conflitos e a exclusão da liberdade (séculos XVIII e XIX), de uma das autoras desta apresentação e de Rafaely Zambianco Soares Sousa, discute temas como doenças, conflitos e a exclusão da liberdade na história dos negros e negras escravizados entre o norte e sul de Mato Grosso. Ainda que não se refira diretamente à temática das relações étnico-raciais, possibilita a compreensão de um cenário em que imperavam doenças e insalubridades no Brasil Oitocentista, em particular incidindo sobre a vida dos negros e negras, escravizados e libertos. Contrapondo-se às mazelas que marcaram mais de 350 anos de escravidão temos também, nesta história, o desejo e a busca pela liberdade, como expõe uma das fontes de 1872, em que liberdade, vida, doença e morte se entrelaçaram pelos caminhos e arredores do Cuyabá. Ao conhecermos o passado suas lições nos ensinam a necessidade do combate ao racismo no presente, em todos os lugares em que ele se estrutura, pois, comumente, a sua história é a de permanência da injustiça, da Colônia ao século XXI, mas também de muitas lutas ao longo do tempo.

O texto O ‘Nobre educador’ da Bahia: trabalho, cidadania e sociabilidades, de Sivaldo dos Reis Santos, ao discorrer sobre a trajetória do professor negro Elias de Figueiredo Nazareth, que fora docente e diretor da Escola Normal da Bahia, contribui com novas análises podendo dar visibilidade historiográfica aos trabalhadores negros que vivenciaram momentos sociais de tensão e mudanças entre o fim do século XIX e começo do XX. Apresentando fontes da Hemeroteca Digital Brasileira como jornais, revistas e relatórios de autoridades públicas na área da educação, da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, o texto propõe uma ruptura sobre aquilo que Chimamanda Adichie chamou de “uma história única”, que comumente naturaliza um lugar específico para determinados sujeitos nas narrativas da história e que pode ser tensionada com pesquisas que desvelem a agência de homens e mulheres a se desviarem desses lugares atribuídos arbitrariamente, e não sem resistências coletivas e individuais, evidentes nestas obras.

A interpretação acerca dos Suruí / Aikewara e a Guerrilha do Araguaia: memórias de uma história em movimento, dos autores Andrey Minin Martin e Iolanda de Araújo Mendes, evidencia pesquisa empírica, especialmente na produção das fontes orais. Ao narrar as memórias da guerrilha do Araguaia, os autores dão conta de explicitar os marcos de memória impressos pela ditadura militar, assim como a reconstrução do direito moral à terra e, inclusive, à reivindicação à expansão de seus limites. Ao contribuir para a história indígena, o texto explicita a proximidade com a temática do racismo, porque também esses grupos, os povos originários, vivem na pele, no corpo, na carne, a violência que marca a nossa história, do passado ao tempo presente. Reconstituir uma história de lutas e uma reivindicação de memórias é fundamental para não deixar que estas histórias sejam silenciadas, especialmente no contexto da ditadura civil-militar.

Marcio Edovilson Arcas e Ademilson Batista Paes, em A invisibilidade / camuflagem cigana: uma análise sobre a representação dos ciganos no olhar do Gadje (não-cigano) apresentam uma reflexão basilar para a análise da representação dos ciganos na Literatura e em outras fontes trabalhadas em sala de aula. Os autores problematizam como o mito construído em torno dos ciganos desvela a inexistência da alteridade face a esses povos, prevalecendo interpretações centradas na discriminação, intolerância, racismo e violência. Diante disso, a invisibilidade dos ciganos é apontada e denunciada pelos autores, fazendo-nos entender o quanto o racismo também se estrutura na negação da diferença e no desconhecimento de outros grupos sociais.

Este Dossiê, ao sistematizar reflexões de diferentes grupos, com autorias de diferentes áreas, apontando para o quanto nos constituem enquanto um mosaico carregado de belezas, ambiguidades, contradições, pode contribuir para a humanização desses temas, mas mais que isto para a percepção de que nos constituímos das diferenças que devem ser valorizadas positivamente na acepção mais ampla da palavra, fazendo com que o antirracismo seja a tônica de nossas ações, dos nossos compromissos com a vida, com as histórias e memórias de George Floyd, João Pedro, Miguel e Beto, de Marielle Franco e de tantas outras…, na relação dialógica da teoria e práticas imbricadas e constituídas de gente em sua diversidade.

Nota

1. Sobre tais argumentos e para acompanhar o programa de observatório do instituto frente à pandemia nos povos indígenas, acesse https: / / covid19.socioambiental.org /

Maria Celma Borges

Mariana Esteves de Oliveira


BORGES, Maria Celma; OLIVEIRA, Mariana Esteves de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.10, n.19, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Makers of Democracy. A Transnational History of the Middle Classes in Colombia | Abel R. Lopez Pedreros

LÓPEZ PEDREROS Ricardo www youtube com
Retrato de Abel Ricardo / www.youtube.com

LÓPEZ PEDREROS Ricardo A Makers of democracyEl libro de Abel Ricardo Lopez Pedreros, egresado de la carrera de Historia de la Universidad Nacional de Colombia, sede Bogota, y ahora profesor de la Western Washington University en Estados Unidos, busca reflexionar criticamente sobre la comun asociacion entre clases medias y democracia, pensando en los sectores medios de Bogota en las decadas de 1970 y 1980. Dicha asociacion es algo que hace tanto el pensamiento de derecha como el de izquierda, ambos exigiendole el deber ser de ponerse al servicio de la democracia, bien sea la liberal o la revolucionaria. Por clase media, Lopez Pedreros entiende no necesariamente un hecho social, mas bien, es el cruce entre condiciones existentes, racionalidades de poder —en terminos de clase y genero—, y la formacion subjetiva, a traves de las practicas y discursos. Desde esta propuesta, el autor construye en dos partes y 8 capitulos su reflexion critica. En la primera parte se centra en los discursos que delimitan y crean —hasta cierto punto— a las clases medias bogotanas de mitad del siglo pasado. En la segunda seccion mira las decisiones de actores concretos para conformar la identidad de esas clases.

Asi, el autor va mostrandonos las particularidades de nuestra democracia y por ende de nuestras capas medias, para verlas distintas, cuando no “bastardas”, de las europeas y norteamericanas. Esas capas, supuestamente, son simbolo de la lucha contra las oligarquias criollas y exigen una lectura de la sociedad no en terminos binarios de dos clases opuestas, pues hay una mas en la mitad. Las clases medias alimentan y son alimentadas por las pequenas y medianas industrias que reciben credito del Estado y de las agencias norteamericanas vinculadas a la Alianza para el Progreso, el famoso programa anticomunista lanzado en la presidencia de John F. Kennedy (1961-1963). Finalmente, en esa primera parte, las capas medias tambien estan vinculadas al sector de servicios o terciario, en el que se dan procesos de seleccion, segun estereotipos comunes de clase y genero. Leia Mais

Cuando la copa se rebosa. Luchas sociales en Colombia, 1975-2015 | Archila Mauricio Neira

En la introduccion de esta obra, Martha Cecilia Garcia da cuenta de la biografia intelectual que hizo y hace posible la existencia de la base de datos del cinep. Inicialmente, situa, con nombres propios, a sus directores e investigadores, a su personal y al equipo de movimientos sociales como lugar academico y moral abierto a la investigacion accion participativa. Los pone en el filo de la navaja de los conflictos sociales, escuchando y acompanando a los protagonistas de las luchas que se estudian. El correlato etico viene a ser un compromiso con los derechos humanos y la busqueda de la paz.

Martha Cecilia enfatiza la labor reflexiva del seminario permanente del equipo, donde analizan teorias y balances para lograr articular herramientas conceptuales y operativas en permanente desarrollo y construir los lenguajes adecuados para sus propositos comunes. En esta biografia intelectual, su autora hace memoria de las lineas de evolucion de la base de datos, condicionada por los afanes de dar cuenta de protagonistas sin reconocimiento necesario —como los movimientos civicos, barriales y urbanos que llamaron la atencion de Javier Giraldo (1987)— y, en simultaneo, de movimientos campesinos, especialmente de la Asociacion Nacional de Usuarios Campesinos (anuc), y la lucha por desalambrar en los anos setenta que dio como resultado la importante investigacion de Leon Zamocs, Los usuarios Campesinos y la lucha por la tierra en los años 70 (1982). Luego se viviria una ampliacion de la cobertura hasta acunar // once actores: asalariados, campesinos, pobladores urbanos, estudiantes, grupos etnicos —indigenas, negros o afrocolombianos y raizales— victimas del conflicto interno, mujeres, poblacion lgbti, trabajadores independientes, gremios —entre los que se destacan comerciantes y transportadores— que, sin constituir movimientos sociales, en ocasiones recurren a la protesta, y reclusos (p. 45). Leia Mais

Travessias: Cantos, recantos e modas da nossa gente / Cadernos de História / 2020

Em 2020, Minas completou 300 anos de uma história dinâmica, resiliente e em constante transformação. Olhar para a produção acadêmica com a temática regional e refletir sobre a riqueza de temas e seus produtos nos faz respirar Minas e se inspirar. É assim, com alegria, que apresentamos o Dossiê Travessias: Cantos, recantos e modas da nossa gente com intuito de divulgar e promover ainda mais a pesquisa que se faz sobre Minas Gerais.

Escolhemos abrir esse Dossiê trazendo a discussão sobre os intelectuais e o poder. O artigo Poder e política nas Minas Gerais, de Ana Tereza Landolfi Toledo, discute as relações de poder em Minas no contexto da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, a partir da análise de D. Manoel de Portugal e Castro, que assumiu o governo da capitania de Minas a partir do ano de 1814. Toledo analisa a atuação política de Portugal e Castro na tentativa de mitigar as tensões das elites locais com a Coroa Portuguesa. Com um texto instigante, somos levados a conhecer esse importante ator político e administrador e suas ideias ilustradas, e como essas ideias impactam na construção de uma relação de poder na capitania que acabou impulsionando a abertura de fábricas, a exploração da extração de ferro e a abertura de novos caminhos e estradas para escoar a produção mineira.

Continuando o debate dos intelectuais na capitania, Márcio Pereira vai apresentar o naturalista Joaquim Veloso de Miranda, que, entre 1780 e 1805, também a serviço do Estado português, pesquisou a botânica, a mineralogia e os metais da capitania de Minas Gerais, buscando a identificação de potencialidades de exploração e atendimento das demandas da Coroa portuguesa. Miranda e seus auxiliares, além do conhecimento inestimável sobre a flora, promoveram as ciências na capitania a ponto de influenciarem na decisão régia de implantação de um horto botânico em Vila. Ao longo do artigo conhecemos o trabalho de Veloso de Miranda e seus auxiliares, destacando as ideias, mas também o ofício do naturalista numa contribuição importante ao lançar luz sobre o trabalho e seus saberes no final do século XVIII.

Em Sob o sol das estradas, Mariana Brescia Cruz, Fernanda Mendes Santos e Silvia Maria Amâncio Rachi Vartuli, nos levam para uma temática que é relativamente popular ao se remeter à tradição mineira, mas que paradoxalmente ainda é pouco trabalhada nas produções acadêmicas: O tropeirismo. O interesse metropolitano pela capitania estava nas riquezas, como o ouro, e também no seu potencial econômico, que exigia o escoamento da produção para os portos litorâneos. Os tropeiros eram agentes necessários para a configuração de uma rede de transportes que envolvia a mineração, principal produto até o século XVIII, e também eram responsáveis pela circulação de mercadorias tão necessárias à manutenção da capitania, como a manutenção da Corte no Rio de Janeiro. As autoras desvelam, a partir dos registros, esse ofício, seu desenvolvimento, seus desafios, as relações que se estabeleceram nessas idas e vindas dos tropeiros e sua permanência ao longo de gerações.

Avançando e caminhando pela História do imaginário, Rudney Avelino Castro Silva discute o segredo como persistência frente às perseguições inquisitoriais de judeus em Imaginário religioso e persistência: estudo dos ritos mortuários judeus à luz da Inquisição portuguesa nas minas setecentistas. O autor retoma a documentação de réus do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa e analisa os ritos mortuários identificados para discutir o papel do segredo como instrumento de perpetuação de uma tradição religiosa e identitária, que conscientes ou não, guardaram sentidos e rituais judaicos entre os moradores de Sabará-MG. Tanto o segredo como sua expressão opositora, a traição, na perspectiva simmeliana, vão sustentar as análises do Tribunal da Inquisição na promoção de silenciamentos essenciais para a própria sobrevivência dos judeus nas Minas setecentistas.

Abrindo espaço para discutir um pouco os arranjos familiares, a infância e as mulheres, apresenta-se o texto Aspectos da história da infância nas Minas Gerais (Séculos XVIII-XIX). Nesse artigo, Denise Aparecida Sousa Duarte e Weslley Fernandes Rodrigues, com base em fontes documentais diversas (registros de óbitos de inocentes, devassas, relatos de viajantes, testamentos), desvelam a criança na capitania como um ator social. A criança foi geralmente analisada na perspectiva dos adultos, sem muito foco e sem definição clara na sociedade. No Brasil isso se refletiu em descaso e em silenciamentos. O desafio apontado pelos autores é interpretar as pouquíssimas referências da criança na documentação, e destaco nesse caminho a importante contribuição no apontamento das relações afetivas que são ressaltadas nessas interpretações, com a análise dos testamentos dos filhos bastardos e órfãos e os ex-votos (pintados em tabuletas como cumprimento de uma promessa já realizada) que se fizeram presentes nas Minas entre os séculos XVIII e XIX.

Dando sequência às relações familiares e de afeto nas Minas, o artigo O concubinato na América portuguesa: resistência feminina, afetividades, famílias e mestiçagens na comarca de Sabará no século XVIII, de Igor Bruno Cavalcante dos Santos, analisa o concubinato na comarca de Sabará no século XVIII. O trabalho mergulha nas análises sobre a mestiçagem com destaque às mulheres (tanto as negras como as mestiças), por vezes pouco visíveis na historiografia. O autor vai apontar as ambivalências do sistema colonial na revelação das relações afetivas mistas (legítimas ou ilegítimas sob a ótica religiosa), que envolveram escravas concubinas e os filhos frutos desses relacionamentos presentes e identificados na documentação. Dá voz para a complexidade das relações no Brasil colonial e indica vislumbres de um Brasil silenciado que carrega uma diversidade de estratégias e arranjos familiares, envolvendo afetos e disputas na sucessão e abre uma janela importante para novas pesquisas sobre gênero e família no Brasil.

Com foco na questão do gênero no século XIX, Séfora Semíramis Sutil se debruça sobre os modelos de feminilidade e seus paradoxos entre as classes menos abastadas a partir da análise da documentação em Das virtudes ou infortúnios femininos: os ideais de conduta no Brasil oitocentista. O modelo de mulher construído no Brasil do XIX deveria ser honrada, virtuosa, submissa, assim, os manuais de civilidade que circularam no Brasil, os periódicos e também os modelos femininos construídos nas obras literárias carregavam essa representação e educavam as mulheres determinando condutas social, religiosa, sexual e familiar que eram adequadas à feminilidade. Entretanto, a autora vai nos apresentar à Luiza Maria da Conceição, moradora da vila da Formiga em Minas Gerais, acusada do assassinato de seu esposo, indicando as distâncias possíveis entre a conduta ideal e desejável para as mulheres e as práticas cotidianas que variavam de acordo com o lugar social.

Chegando aos dias atuais, o trabalho Mulher comparsa: o testemunho midiático como delito de gênero, de Leticia Silva Azevedo e Lúcia Lamounier Sena, analisa os recursos discursivos nas páginas policiais a partir dos Cadernos Cidades dos jornais OTEMPO e o Super Notícia, no período entre 2006 / 2016. Ao analisar as notícias sobre mulheres que atuam no tráfico de drogas, as autoras identificaram que há silenciamento do relatado que é operado pelo mediador (o jornal, o jornalista) e da construção do papel e da História dessa mulher, associada como comparsa do crime. Apreende-se uma importante construção midiática sobre gênero e seus desdobramentos que não só vale a leitura, como nos leva a refletir sobre as permanências das representações da mulher na sociedade e de sua moral colocada sempre em julgamento por meio do discurso, que varia, no caso de crime de tráfico, no tratamento de homens e de mulheres. Prevalece, como afirmam as autoras, um sujeito “gendrado” carregado de simbologias sobre o feminino e suas categorias (maternidade, espaço doméstico, amor / paixão, cumplicidade feminina e vitimização).

A SOLIDÃO DOS MINEIROS: mineiridade, patrimônio cultural e os processos de hierarquização de pessoas e lugares em Minas Gerais ao longo do século XX vai nos levar para as questões acerca da memória e o conjunto de representações identitárias e patrimoniais sobre Minas Gerais. Dialogando com sua experiência de pesquisa Patrimonial, Carolina Paulino Alcantara destaca os olhares distintos e os silenciamentos promovidos a partir de critérios de seleção e exclusão de grupos e elementos culturais. O título remete à solidão, evocando as ausências e invisibilidades de pessoas e grupos em diferentes momentos da História de nosso estado. Registros dos costumes, das tradições e outros princípios norteadores das representações de Minas tenderam a privilegiar a região centro sul e, nessa toada, a autora discute e desvela as disputas pela memória na formação da identidade mineira a partir dos projetos, ações e concepções dos dirigentes e gestores públicos do estado mineiro.

A extensão territorial e a diversidade do Estado mineiro vai nos levar ao O poder e suas representações no interior das comunidades agregas do Vale do Mucuri, Minas Gerais (1850-1950), num trabalho interessante, Marcio Achtschin Santos, nos revela a relação do trabalho na atividade agro pastoril, na região do Vale do Mucuri a partir da agregação, que corresponde à forma de ocupação da terra por meio de cessão a homens livres. Implantada desde o período colonial, a agregação vai aumentando no nordeste mineiro com o enfraquecimento da escravidão ao longo do século XIX. A proposta do autor é, a partir das entrevistas, identificar a relação territorial e de poder que se estabelece. O autor pergunta de que modo é construído o imaginário para o reconhecimento e permanência das relações de poder e, dando ênfase à cultura e aos ritos da tradição das comunidades agregas, vai identificando os sentidos e estratégias na relação marginal com os grupos dominantes. Na escuta dos entrevistados, vai dando foco às estratégias comunitárias, às especificidades regionais e às transformações ao longo do tempo.

Por fim, mas nunca menos importante, Rogéria Alves e Karla Cerqueira vão apresentar e discutir a organização e as ações implementadas entre 2015 e 2018 na Educação Escolar Quilombola pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. A Educação Escolar Quilombola em Minas Gerais: Identidade e Resistência trata da importante compreensão da Resolução Nº4 / 2010 das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para Educação Básica e seu artigo 41, que institui a Educação Escolar Quilombola como uma modalidade especial e determina sua existência em áreas quilombolas com pedagogia própria que respeite a cultura dos seus moradores. As autoras discutem os avanços dessa discussão no país em direção à uma proposta de educação inclusiva e plural (de todos, indo além da própria visão de que quilombola são herdeiros dos negros escravizados) e fornecem um panorama da aplicação da Educação Escolar Quilombola nas políticas públicas de educação e particularmente nas ações implementadas pela SEEMG, apontando seus avanços e seus desafios.

Excelente leitura!

Júlia Calvo – Editora da Revista Cadernos de História.

CALVO, Júlia. Apresentação. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.21, n.34, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Battista Venturello. Las huellas de un largo peregrinaje por territorios indígenas | Augusto Javier Gómez López

Este libro revela una cautivadora coleccion fotografica que se encontraba hasta hace poco resguardada en un pesado y viejo baul de la familia Venturello.

El libro, coeditado por la Universidad Nacional de Colombia y la Universidad de los Andes, hace parte de la coleccion especial Sublimis, la cual, tal y como su nombre lo indica, tiene como objetivo la publicacion de obras eminentemente extraordinarias. Al abrir y pasar sus paginas, el lector atraviesa una galeria etnografica y al internarse en la lectura de los textos, poco a poco encuentra y comprende el trasfondo historico en el que Battista Venturello obtuvo estos registros. Venturello nacio en el canton de Piamonte italiano en 1900 y a sus 22 anos salio de Turin en busqueda de las selvas africanas, pero un cambio de rumbo lo llevo a America. Alli, recorrio varias regiones colombianas durante la primera mitad del siglo xx y, finalmente, se radico en la ciudad de Cali. En la decada de 1960 fue el fundador, de la mano de sus hijos, de la primera industria de antenas de television en el pais. Leia Mais