Historia de la Educación Latinoamericana | UPTC | 1998

Revista Historia de la Educacion Latinoamericana

The Journal History of Latin American Education  (Tunja, 1998-) is a diamond open access publication, (no costs for authors), peer-reviewed with two monographic issues (January and July) in each of its volumes.Rhela accepts research articles resulting from theoretical and empirical methodologies, as well as reviews on the history of education with an emphasis on Latin America, written in Spanish, Portuguese and English. Rhela’s scientific target community: researchers, graduate students, professionals in history, heritage and cultural affairs, mainly.

Rhela also welcomes comparative or research works from other regions and continents dealing with history of education, in contexts with problems similar to those of Latin America.

  1. The Latin American and Caribbean university
  2. Latin American educators, their formation and leadership
  3. Education in rural, indigenous and Afro-descendant communities
  4. Normal schools
  5. Pedagogies, peace and resilient populations
  6. Education based on new technologies
  7. University and university movements
  8. History of comparative education

Since its creation in 1998, Rhela has been funded by the Faculty of Educational Sciences of the Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia (Uptc) and the Society for the History of Latin American Education (SHELA).

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN 0122-7238.

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Sertão História | URCA | 2022

Sertao Historia

Sertão História – Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente tem como missão contribuir para o debate teórico e a difusão das pesquisas em História e áreas afins, bem como democratizar o acesso ao conhecimento científico. Podem publicar graduados, estudantes de pós-graduação lato e stricto sensu (mestrado e doutorado), mestres e doutores.

Sertão História é um períodico semestral, eletrônico, do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente – NEHSA, da Universidade Regional do Cariri.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN  2764-3956

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Crítica Historiográfica | UFRN/UFS | 2021

Critica Historiografica

Crítica Historiográfica (Natal/Aracaju, 2021-) Publica resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas especializadas, resultantes da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História.

A revista cumpre o objetivo de fomentar a cultura da avaliação da escrita da História, com foco no diálogo entre autores(as) de resenhas e autores(as) e leitores(as) de obras de História. Assim, abre espaço não apenas para a resenha, mas aceita também as réplicas dos autores e eventuais comentários dos leitores da obra resenhada e da resenha.

A revista também se engaja na valorização do gênero textual resenha como instrumento de comunicação científica, reivindicando, inclusive, a sua inclusão como produto intelectual na Plataforma Lattes e no Sistema de Coletas Capes.

Crítica Historiográfica aceita e publica em média sete trabalhos por volume bimestral, produzidos por pesquisadores(as) de todos os níveis de formação, com espaço distribuído na seguinte proporção: doutores (a partir de 50%), doutorando(a)s, mestre(a)s, mestrando(a)s/especialistas/graduado(a)s graduandos (até 50%).

Trata-se de empreendimento criado e mantida por um consórcio de grupos de pesquisa radicados em instituições públicas de ensino superior: a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Periodicidade bimensal

ISSN SSN 2764-2666

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Rural e Urbano | UFPE | 2016

RURAL E URBANO1

A Revista Rural-Urbano (2016-) é um periódico semestral vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e gerida pelos grupos de pesquisas “Produção do Espaço, Metropolização e Relação Rural-Urbano” da Universidade Federal Rural de Pernambuco (GPRU/UFRPE) e “Sociedade & Natureza” da Universidade Federal de Pernambuco (Nexus/UFPE). Seu objetivo é constituir-se enquanto canal de veiculação científica da rede de pesquisadores sobre as relações rural-urbano, bem como congregar artigos, ensaios e resenhas científicas a partir da História e da Geografia, que versem sobre processos passados e atualmente existentes no espaço rural e no urbano. A revista também objetiva congregar trabalhos das áreas de História, Geografia, Sociologia, Economia, Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Serviço Social e Educação.

Periodicidade Semestral

Acesso livre

ISSN 2525-6092

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La ciencia de la erradicación. Modernidad urbana neoliberalismo en Santiago de Chile, 1973-1990 | César Leyton Robinson

ROBINSON Cesar Leyton
César Leyton Robinson | Foto: Werken TV |

ROBINSON C La ciencia de la erradicacionEl interés historiográfico por las dictaduras del siglo XX es relativamente reciente. Era preciso que pasara un tiempo para que el horror y el dolor producido por las mismas fuera soportado por la generación de historiadores que, solo en las últimas décadas, han sido capaces de acometer una tarea en la que historia y memoria histórica se atraviesan de manera constante e inevitable. Así ha ocurrido en Europa, con la historia de la Alemania nazi, del fascismo italiano o de la España del franquismo, o en América Latina, con las dictaduras surgidas al amparo de la siniestra Doctrina de la Seguridad Nacional. El libro que comentamos es un reciente producto de esta línea de trabajo desde la perspectiva de la historia de la ciencia y en el contexto de la dictadura de Pinochet. Su autor, César Leyton Robinson, es un historiador solvente y comprometido que pertenece a una generación de investigadores chilenos, entre los que citaré a Claudia Araya y Marcelo Sánchez entre otros, empeñados en situar el conocimiento y la práctica científica en unas coordenadas históricas, políticas, sociales y culturales.

La obra que nos ocupa constituye una aportación original y rigurosa por su factura, pero arriesgada en sus contenidos y conclusiones, pues supone una muestra de historia y pensamiento crítico, que tal vez no todos estén dispuestos a aceptar, pues la advertencia machadiana de las dos Españas se hace extensiva a otros muchos lugares y contextos, y Chile no es una excepción. Con todo, el rigor metodológico y la calidad de sus contenidos hizo que la tesis doctoral que está en el origen de este libro mereciera la máxima calificación y el reconocimiento académico de la Universidad de Chile. Leia Mais

Canguilhem e a gênese do possível. Estudo sobre a historização das ciências | Tiago Santos Almeida

ALMEIDA Tiago S
ALMEIDA T Canguilhem 2Marlon Salomão e Tiago Santos Almeida. “VI Colóquio de História e Filosofia da Ciência: As ciências humanas”. Goiânia, 2019 | Foto: PPGH/UFG

Este libro es la reelaboración de la tesis doctoral defendida en la Universidad de Sao Paulo por Tiago Santos Almeida, profesor en la Facultad de Historia de la Universidad Federal de Goiâs, y sin duda una de los mejores conocedores actuales de la obra del filósofo, médico e historiador de las ciencias Georges Canguilhem. La monografía ha sido prologada Carvalho Mesquita Ayres, profesor de Medicina Preventiva en la Universidad de Sao Paulo, y esto no es una casualidad. A diferencia de lo acontecido en España, los estudios sobre Salud Colectiva y Medicina Preventiva fueron marcados decisivamente en Brasil, desde su despegue en la década de 1970, por algunos de los trabajos más representativos de la tradición francesa en historia de las ciencias, en particular textos como Lo normal y lo patológico de Canguilhem y El nacimiento de la clínica, de Michel Foucault.

El desafío del libro consiste en dilucidar, a través de distintas calas en la obra de Canguilhem, hasta qué punto existe un “estilo francés” a la hora de pensar la historicidad de las disciplinas científicas. En su indagación, el autor no recurre sólo a los volúmenes publicados por Canguilhem. Avalado por una prolongada estancia de investigación en el CAPHÈS (Centre d’Archives de Philosophie, Histoire et Èdition des Siences), donde frecuentó a algunos de los principales especialistas y discípulos del pesador francés (Limoges, Debru, Braunstein), utiliza entrevistas y artículos poco conocidos del filósofo de Castelnadaury, y lo más importante, un importante acopio de los manuscritos inéditos procedentes del Fond Canguilhem, sito en el mencionado centro. Leia Mais

Palavras ABEHrtas | ABEH | 2021

PALAVRAS ABERTAS2 2

A proposta de Palavras ABEHrtas (Ponta Grossa, 2021) é que ele se configure como território amplo e aberto para divulgação, informação e debates no que se refere e afeta o ensino de História, conforme os atuais valores e missões da ABEH de estabelecer interlocuções cada vez mais abrangentes e de valorizar o trabalho de professores e professoras de História em todos os níveis e âmbitos de ensino, gestão, pesquisa e divulgação. A intenção é reunir depoimentos e relatos de experiências, produções de estudantes da Educação Básica e do Ensino Superior, debates conceituais no campo do Ensino de História, bem como discutir temáticas de demandas contemporâneas e divulgar projetos e iniciativas pelo Brasil e pelo mundo.

A revista será composta por sete colunas, cada uma contando com uma dupla de curadores/as e coordenada por uma editoria renovada anualmente. Os textos serão publicados quinzenalmente (com ahead of print), a partir de convites da curadoria e também por livre demanda. Os textos deverão estar conformes ao escopo de cada coluna e adequados às normas de formatação, além de respeitar os princípios éticos da Revista. Serão aceitos também diversos formatos de expressão, tais como: textos escritos, vídeos, podcasts, canções, entre outros meios de interação, sempre acompanhados de uma apresentação que contextualize o conteúdo.

Os materiais enviados serão submetidos a uma comissão editorial e a um conselho de consultores que avaliarão criticamente as propostas. Textos bilíngues também serão aceitos, privilegiando a publicação de versões em inglês e em espanhol.

Pretendemos constituir um espaço de divulgação científica em um formato ágil, que atue como um portal de atividades comentadas da área, de troca de experiências de sala de aula, de debate político geral e das políticas públicas para a área em particular. Vislumbra-se a perspectiva de integrar o periódico com as diversas iniciativas de produção de conteúdo no Ensino de História, como os projetos Chão da História, Bate Papo sobre ensino de História, atividades do GT Nacional e dos GTs regionais de ensino de História da Anpuh, laboratórios, grupos de pesquisa, ações de extensão, etc.

Por fim, é importante que os textos e outros materiais sejam provocadores de debates e de ampliação das trocas. Assim, as curadorias podem convidar pessoas para comentar os materiais publicados. Esses comentários poderão aparecer sob a forma de novos textos linkados aos iniciais, de modo a ir criando uma rede de materiais e de discussões. Adicionalmente, os conteúdos também serão divulgados e debatidos nas redes sociais da Abeh.

Propomos sete colunas com escopo definido, que publicarão tanto conteúdos encomendados quanto avaliarão o que for recebido em livre demanda, de modo a garantir a periodicidade semanal, mas que se adaptem às necessidades de discussão e comunicação da nossa comunidade. Cada coluna contará com uma dupla de curadores/as composta por sócias/os da ABEH.

Essa iniciativa da ABEH visa possibilitar, em seu site, a divulgação de trabalhos desenvolvidos no Brasil e no exterior sobre o ensino de história, no formato de divulgação científica. Além disso, o objetivo é amplificar discussões que vão dar sequência aos textos publicados, ou seja, buscamos criar oportunidade de encontros entre todas-os-es que pensam, refletem, pesquisam e mobilizam práticas sensíveis nos mais diversos espaços que envolvem o ensino de história: escolas, espaços culturais e de memória, redes sociais, arquivos, universidades, movimentos sociais, entre outros.

As publicações serão feitas semanalmente com textos, imagens, registros, descrições, lançamentos e informações sobre diversos temas do ensino de história, conforme o escopo de cada coluna. Serão aceitos materiais de docentes e discentes da educação básica assim como do ensino superior e das pós-graduações.

Periodicidade semanal.

Acesso livre.

ISSN 2764-0922

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Cadernos Pagu | Campinas, n.61, 2021.

 


Edição n. 61 (2021)

Artigos

Resenhas

ERRATA ERRATA

 

Revista do IHGPA | Belém, v.8, n.1, 2021.

EDITORIAL

ARTIGOS

DOSSIÊ

Canoa do Tempo | Manaus, v. 13, 2021. (S)

Editorial

Dossiê-Fronteiras étnicas e conflitos sociais no Rio Madeira

Artigos Livres

Resenha

Entrevista

Publicado: 2021-05-28

Ars Historica | Rio de Janeiro, v. 21, jan./jun., 2021. (S)

v. 21 (2021)

Publicado em: 26 maio 2021.

Editorial | Luis Henrique Souza dos Santos, Eric Fagundes de Carvalho | PDF

Artigos

O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul 1917-1920 | Carlos Fernando de Quadros (R)

Bilros 10
O discurso de Lenin na fábrica Putilov em maio de 1917. Izaak Brodsky, 1929 | óleo sobre tela, Museu Histórico do Estado, Moscou. Reprodução: Hora do Povo |

SCOTT The common wind 25Com “O horizonte vermelho. O impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul, 1917-1920” o historiador Frederico Bartz realiza importante contribuição a diferentes campos de investigação: a história do movimento operário, a história das ideias políticas, bem como a própria seara da história do Rio Grande do Sul. Não obstante, como o próprio autor atenta, o recorte regional deva ser matizado, pois, como o seu objeto impõe, há íntimas conexões entre a história gaúcha e a de outras regiões brasileiras e mesmo de paragens internacionais. Essa é uma distinção de cariz didático, pois um dos méritos do livro é justamente entender tais determinações em um todo articulado. Um momento histórico propício para isso é justamente a conjuntura estudada por Bartz, a do final dos anos 1910.

O momento era de intensas lutas sociais, com o protagonismo da classe operária nos centros urbanos, e de redefinições organizativas e ideológicas. Em tal processo, teve papel fundamental o impacto da Revolução Russa, vitoriosa em 1917. Esse impacto foi objeto de variadas expressões historiográficas, recenseadas por Bartz. É partindo de tal procedimento que seu estudo se distingue de uma divisão interpretativa dominante sobre o período, a qual ultrapassa o campo da produção historiográfica, remontando às próprias divisões políticas gestadas pouco após o processo em tela. Trata-se de duas leituras dicotômicas da adesão anarquista no Brasil ao exemplo russo: em suma, há quem creia que isso se deu por um “engano” dos militantes libertários de então, que desconheciam particularidades das medidas dos bolcheviques, cada vez mais opostas ao ideário ácrata; de outro lado, defende-se que a origem anarquista de parte relevante dos primeiros entusiastas da Revolução Russa se devia a debilidades organizativas do movimento operário de então. A adesão ao comunismo – que se gestou como ideologia no bojo da vitória de outubro –, especialmente com a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, foi uma modernização política do proletariado brasileiro, que teria alcançado “a verdadeira consciência de classe”. Frederico Bartz critica os limites que ambas as perspectivas acarretam: ao contrário de uma tendência atenta a fatos ocorridos “em outro lugar”, de outra que valoriza ocorridos futuros, “em outro tempo”, ele propõe explicar os impactos da Revolução Russa “[…] a partir das tradições que estes militantes tinham e das lutas que travavam no momento” (p. 30).

Contribui para essa mudança na compreensão do processo o esforço do autor em estudá-lo no espaço do Rio Grande do Sul. Para tanto, atentou especialmente a um corpo documental que compreende jornais e revistas (não apenas gaúchos), panfletos, processos-crime e correspondências. Referências bibliográficas as mais variadas, reforçando o argumento referente à articulação de diferentes espaços. Para além da destacada produção gaúcha referente ao movimento operário, o autor também se apropria de clássicos da historiografia nacional e estrangeira, evidenciando a complexidade do fenômeno.

“O horizonte vermelho” é dividido em seis capítulos, todos intitulados a partir de frases extraídas da documentação consultada. O primeiro, “O círculo que se expande indefinidamente”, trata-se de uma contextualização da Revolução Russa de referência aos processos por ventura aludidos pelos militantes gaúchos estudados. Uma leitura dispensável, portanto, aos leitores familiarizados com o tema.

Em “Hosanna, Hosanna, filha da justiça que vem para nós em nome da liberdade”, o autor estabelece as bases de sua intepretação em torno de uma tradição de militância como terreno no qual as imagens dos ocorridos no Leste podiam vicejar de diferentes formas. Para tanto, foi condição sine qua non apresentar a configuração do movimento operário gaúcho a partir de suas organizações e órgãos de imprensa estabelecidos em 1917, remontando ao período de Proclamação da República. A rivalidade entre socialistas e anarquistas tem destaque aqui, especialmente no que toca às disputas em torno da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), sem deixar de discutir centros gaúchos importantes para além da capital. São levantadas as primeiras referências à Revolução Russa no espaço gaúcho e interpretadas a partir das diferenças entre mencioná-las em um comício ou em um texto de intervenção em um jornal, por exemplo. Bartz não omite o caráter indiciário das fontes em discussão, que explora seja na forma de sua circulação, seja no que há de revelador na linguagem e terminologias utilizadas. Expõe, assim, as divergências e similitudes nas primeiras apropriações da Revolução Russa pela militância gaúcha no ardente momento da greve de 1917.

No terceiro capítulo, “A humanidade é um turbilhão e o mundo um crepitar de chamas”, partindo de um maior manancial de documentos, o historiador atenta a um processo de efervescência de lutas operárias no Sul, o que conforma novas leituras do referencial russo. Fundamentalmente, o que ocorria na Rússia era tomado pelos militantes estudados enquanto uma manifestação da revolução mundial da qual os ocorridos gaúchos também eram parte. No exemplo russo, portanto, mais do que uma expectativa, havia uma marcha concreta em expansão, o que é demonstrado pelas publicações de notícias de outros episódios estrangeiros na imprensa estudada (Hungria e Alemanha). Ainda na toada de enfocar as manifestações jornalísticas, o autor relaciona as respostas da militância à apreciação da imprensa burguesa em torno da Revolução Russa. Denunciavam os interesses de classes de veículos como o Correio do Povo. Era uma denúncia que implicava na continuada defesa da experiência russa a partir de argumentos que visavam também legitimar o seu próprio projeto de revolução. Não era apenas o referido cariz burguês que era acusado, mas também as bases do noticiário, como “boatos infundados” e “fontes duvidosas” (p. 121). Por fim, Bartz se dedica à análise dos textos que expressam a “necessidade de analisar a nova situação” (p. 125), escritos que identifica como de opinião editorial, distintos pelo seu caráter “mais doutrinário e teórico do que propriamente informativo” (p. 126). É meritória a explicitação sutil e direta dos critérios de escolha do corpus inquirido. Identifica-se aí uma variedade de impressões, com predomínio das “[…] que ligaram a revolução às lutas políticas e econômicas dos trabalhadores organizados” (p. 136). Resulta-se da análise exposta uma demonstração da fraqueza de uma das hipóteses correntes sobre o fenômeno estudado (o apoio dos anarquistas brasileiros à Revolução Russa como fruto de equívoco).

Um momento destacável em “O horizonte vermelho” encontra-se no quarto capítulo, “Parecerá absurdo que um libertário que tem por lema a paz exclame: Salve a Revolução!”. A exposição aqui adquire caráter distinto, iluminando elementos já abordados, com a aproximação biográfica de militantes com diferentes inserções no processo. A variedade de apropriações que trazem da Revolução Russa é um elemento relevante à compreensão da pluralidade própria à experiência operária no período analisado e no Rio Grande do Sul: “[…] a aproximação com os ideais da revolução foi um processo diferente para diferentes sujeitos, que tinham histórias e tradições diversas” (p. 175). É assim que Bartz se volta para as figuras de Friedrich Kniestedt, Zenon de Almeida, Abílio de Nequete e Carlos Cavaco, sendo eles dois anarquistas, um livre-pensador e um socialista, respectivamente. Foram variadas as suas experiências militantes, para além de questões próprias às trajetórias de vida em geral, fato notório na importante apropriação étnica de Almeida e Nequete. Também foram diversificadas as formas com que travaram contato com as notícias da Revolução Russa e como as ressignificaram de acordo com a sua atuação e inserção política, configurando distintos caminhos no complexo processo que se desenrolava.

Em “A vossa fraqueza é filha da vossa divisão – uni-vos pois! E não haverá força alguma que possa vos enfrentar”, é observada a peculiaridade dos primeiros grupos comunistas gaúchos, a sua inserção no movimento operário local, bem como a sua relação com as organizações assemelhadas do centro do país – o que, por si só, implicou em se concentrar na rede de difusão de informações entre diferentes regiões, objeto histórico importante. Também se avalia como esses grupos participam em um novo tipo de ação política, indício das transformações de vulto em processo. No que toca às particularidades sul-riograndenses, o autor lembra que as associações operárias de cariz comunista surgem mais rapidamente em relação a outras regiões do Brasil, sendo este “o aspecto mais visível do impacto da Revolução Russa”. Bartz retoma experiências efêmeras citadas antes em seu livro, tendo em vista a devida fidelidade factual. Sua atenção às organizações de tipo novo reside no quanto elas expressam alterações em objetivos programáticos, bem em sua inserção nas lutas concretas do período. A variedade regional dos grupos comunistas originais demandou à pesquisa uma atenção dividida entre diferentes centros gaúchos. A relação dos primeiros comunistas do Rio Grande do Sul com seus congêneres de São Paulo e Rio de Janeiro é exposta a partir da narrativa de um episódio pouco lembrado pela historiografia brasileira como um todo: a insurreição de 1919. A experiência, de caráter revolucionário, é abordada especialmente no que toca os novos elementos nela atuantes, como o novo tipo de laços políticos que se estabeleciam e as novas leituras com que militantes como Abílio de Nequete travavam contato.

O último capítulo da obra tem por título “Não se pode descrever o que se passou na cabeça de boa parte de nossos velhos amigos – num piscar de olhos tornaram-se nossos inimigos”. Ele versa sobre um aspecto fundamental do objeto: o refluxo do movimento operário após o agitado triênio inaugurado em 1917 e a crise interna no bojo desse refluxo, manifesta pela radical cisão entre anarquistas e bolchevistas. A recepção do processo russo e de suas notícias estava no centro do conflito. No caso gaúcho, demonstra Bartz, é precoce o imbróglio, sendo “[…] provavelmente um dos primeiros estremecimentos do movimento operário brasileiro causados por este motivo” (pp. 226-227). Um processo mais complexo, contudo, do que as aparências podem sugerir. O autor contempla as experiências e tradições de classe locais, escapando de armadilhas próprias às memórias dos envolvidos, as quais discute com o devido cuidado analítico (pp. 238-239). Outro aspecto fundamental do momento de refluxo das atividades do movimento operário é identificado pelo historiador no esforço repressivo em curso especialmente a partir de 1919. Isso é comprovado por documentos policiais e noticiário da grande imprensa, nos quais localiza o empenho em não apenas desmerecer a experiência russa, mas especialmente criminalizar as associações operárias, que se manifestavam em um crescendo, tanto no vulto de suas atividades quanto na radicalização de sua linguagem. Por fim, apresenta-se o estudo das disputas internas do movimento operário gaúcho a partir das lutas desenvolvidas no seio das organizações locais, processo que o autor interpreta a partir da hipótese das sequelas da repressão há pouco citada, bem como das discordâncias em torno da atuação nas instâncias internas a esses trabalhadores. Essa explicação – não resta dúvida – reforça a constante matização de outras que atribuem as cizânias entre anarquistas e os recém constituídos comunistas apenas aos debates internacionais.

É relevante a leitura de “O horizonte vermelho” para todas e todos que se interessem não só pela história do movimento operário, mas também pela história política e das ideias no período abordado. O autor soube reutilizar em diferentes momentos de seu estudo as mesmas fontes, o que em nada tornou maçante a sua narrativa, pois interrogava-as de acordo com diferentes aspectos do complexo processo investigado, conseguindo, portanto, extrair distintas informações de um mesmo documento ao sabor da determinação à qual atenta. Elabora-se, assim, uma relevante explicação em torno de um momento decisivo na conformação de um importante ator da cena histórica brasileira que se desenvolvia.

Carlos Quadros – Doutorando em História Econômica e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Substituto do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Campus Itaquaquecetuba. E-mail: [email protected].


BARTZ, Frederico. O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul, 1917-1920. Porto Alegre: Sulina, 2017. 319 p. Resenha de: QUADROS Carlos Fernando de. Um capítulo na história da esquerda brasileira: o impacto da Revolução Russa no Movimento Operário Gaúcho. Projeto História. São Paulo, v.70, p.340-345, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS | Júlia Rocha (R)

Bilros 4
Júlia Rocha | Imagem: Canal Júlia Rocha |

Critica Historiografica capas 9Está expresso na constituição brasileira, conhecida como constituição cidadã, promulgada em 1988, que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” [2]. Entretanto, para que a saúde se tornasse direito de todos e dever do Estado houve um longo processo de reformas e lutas políticas e sociais. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o coroamento desse processo, já que a saúde como um direito da população pode ser acessada por meio dele um sistema que se pretende “público, universal e descentralizado” (PAIVA & TEIXEIRA, 2014). Fortalecê-lo, portanto, é assegurar que brasileiros e brasileiras possam exercer plenamente a sua cidadania.

O livro “Pacientes que Curam: O cotidiano de uma médica do SUS”, não narra uma experiência ou um ambiente exclusivamente de assistência hospitalar – como o título pode sugerir. Em vez disso, nos apresenta as vivências de Júlia Rocha – mulher, negra que trabalha como médica de família e comunidade no SUS [3] – com pouco mais de 10 anos de carreira. Graduada em medicina no ano de 2010 e com residência médica concluída em 2015, a autora destaca a partir de sua formação e experiência profissional que o “cuidado em saúde é algo impossível de se fazer só” (ROCHA, 2020, p: 301). Assim, embora o livro não faça referência à história institucional do SUS, ele nos apresenta questões fundamentais para a reflexão sobre a importância desse sistema e sua atuação diante das mais profundas contradições brasileiras. Leia Mais

A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica | Mariana Muaze e Ricardo H Salles (R)

MUAZE e SALLES
Mariana Muaze e Ricardo Salles | Foto: Divulgação

MUAZE e SALLES A segunda escravidaoO desembarque do conceito de segunda escravidão na historiografia brasileira encontra importante expressão com a publicação do estudo crítico que, além da apresentação do historiador norte-americano Dale Tomich, reuniu quinze historiadores para o exame da relação entre capitalismo e escravidão no século XIX.

Denominada A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica, a coletânea é resultado dos trabalhos de pesquisas e discussões do grupo interinstitucional “O Império do Brasil e a segunda escravidão”, formado por pesquisadores da Unirio, Mast, UFF, USP, Unifesp, UFJF e UFSC e pelos integrantes do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Lab-Mundi/USP).

Se o propósito era pensar a porosidade do conceito de segunda escravidão, ele se configura na breve apresentação de Dale Tomich, que nos indica que “segunda escravidão é um conceito aberto que tem o objetivo de repensar a relação entre capitalismo e escravidão e as causas desta última no Oitocentos” (Tomich, 2020, p. 13). Pretendendo sublinhar que a abordagem da segunda escravidão trata “as relações escravistas históricas reais [que] são constituídas […] pela forma das relações senhor-escravo […] por processos de produção materiais específicos (açúcar, café, algodão) […] por sua posição relativa na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial […]” (p. 14), realça que a origem do conceito é fruto da “insatisfação com histórias lineares da escravidão que a veem como incompatível com o capitalismo industrial e as ideias liberais de propriedade e liberdade” (p. 13).

É nesse quadro de “escravidão em interação com a construção dos Estados nacionais e com a expansão internacional do mercado escravista” (Muaze, Salles, 2020, p. 19) que se deve colocar o livro organizado por Mariana Muaze e Ricardo Salles. O que primeiro chama a atenção é que a coletânea tem como pilar central “o problema histórico de como a escravidão moldou o capitalismo brasileiro no século XIX e na atualidade” (p. 20). De fato, esse eixo central, colocando problemas, proporciona análises, revisões e novidades que enriquecem o conhecimento que se tem da escravidão.

A obra é dividida em quatro partes. Na primeira, aborda-se a constituição da “Segunda escravidão e o capitalismo histórico em perspectiva atlântica”. Seu mérito reside na estimulante e bem arejada exposição de Leonardo Marques sobre o percurso historiográfico das ideias que compõem o espectro analítico do conceito de segunda escravidão e sobre os desafios de integrar o mundo político e cultural nas narrativas de emergência e destruição da segunda escravidão. Além de contar com o “ensaio de historiografia” de Ricardo Salles, no qual direciona especial atenção para o debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão, partindo da consideração de que nos Estados Unidos “o problema dessas relações se apresentou de forma mais aguda” (Salles, 2020, p. 27). Já no último capítulo da primeira seção, Rafael Marquese tece comentários críticos.

A segunda parte, “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”, reúne quatro trabalhos. No primeiro, Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico, com o intuito de investigarem a associação entre escravidão e a modernização da economia brasileira no século XIX, identificam as relações entre as economias mercantis escravistas regionais e a segunda escravidão. Em seguida, Walter Pereira direciona especial atenção para o dinamismo econômico do município de Campos dos Goytacases, ao longo da segunda metade do século XIX. As reflexões críticas desses artigos condensam os comentários de Renato Leite Marcondes e Gabriel Aladrén.

Já a terceira parte confere centralidade à relação entre segunda escravidão e o período Colonial Tardio. Valendo-se dos artigos de Carlos Gabriel Guimarães e Carlos Leonardo Kelmer Martins e comentários de Rodrigo Goyena Soares, essa seção combina reflexões epistemológicas e resultados preliminares de pesquisa.

A última seção do livro apresenta discussões metodológicas. O debate gira em torno das possíveis articulações entre o micro e o macro. Em outras palavras, do entrelaçar das propostas advindas da segunda escravidão e da micro-história. Três historiadores, Mariana Muaze, Thiago Campos Pessoa e Waldomiro Silva Junior, se dedicam a esse esforço. No último capítulo, a historiadora Mônica Ribeiro de Oliveira elabora os comentários críticos sobre as proposições metodológicas.

Ricardo Salles, no primeiro capítulo, faz uma longa travessia historiográfica desde Graham, Genovese, Fogel e Engerman aos recentes estudos de Sven Beckert e Seth Rock­man. Retoma tradições de pensamento sobre escravidão e capitalismo: os esforços comparativos entre o “Velho Sul” e o Brasil; o problema das mentalidades ditas “mais racionais” diante dos comportamentos patriarcais de status e poder; a lucratividade, racionalidade e caráter capitalista da escravidão propostas pela New Economic History; os riscos dos excessos de empirismo ou de abstração teórico-metodológica no ofício do historiador; o capitalismo da escravidão de Rockman e Beckert; a centralidade da economia sulista norte-americana no desenvolvimento capitalista; a escravidão nos Estados Unidos face ao pacto político da estrutura de poder federativa; e, no caso brasileiro, o Império do Brasil e sua estrutura de poder unitária, assentada na difusão da escravidão por todo território, alicerçada na hegemonia política e social da fração da classe senhorial da bacia do Paraíba do Sul. E, por fim, a validade instrumental do conceito de segunda escravidão como uma estrutura histórica específica.

Salles aponta que o conceito de segunda escravidão “hibernou” entre 1988 e até fins da década de 1990. Em 1999, de maneira “pioneira e isoladamente” Christhopher Schmidt-Nowara valeu-se do conceito para analisar a escravidão cubana e porto-riquenha no Novo Império Colonial Espanhol do século XIX. Em 2004, o conceito desembarcou no Brasil. Rafael Marquese o empregou em Feitores do corpo, missionários da mente.

No plano da historiografia brasileira, subjacente a essa escolha conceitual, Salles indica que a apropriação do conceito de segunda escravidão relaciona-se diretamente ao “abandono do conceito de capitalismo” pelas correntes historiográficas do “sentido arcaico da escravidão brasileira e a historiografia com ênfase na agência escrava” (Salles, 2020, p. 36). O novo aporte não apenas conduz a análise para o dimensionamento do processo de longa duração e os quadros globais do capitalismo histórico como também para “a discussão da relação entre escravidão e desenvolvimento do capitalismo dependente, periférico e excludente no país” (p. 36).

No capítulo seguinte, cujo objetivo é aprofundar o debate historiográfico sobre escravidão e capitalismo, Leonardo Marques aponta limites e potencialidades do conceito de segunda escravidão. Valendo-se de amplo espectro historiográfico, perpassa o marxismo, a noção de sistema-mundo, Global History e a New History of Capitalism. A exposição reconhece como mérito da segunda escravidão, além de recolocar em cena o tema escravidão e capitalismo, o questionamento que ela oferece contra “o nacionalismo metodológico que ainda informa uma parcela importante da produção historiográfica mundial […]”. (Marques, 2020, p. 55). Para Marques, a contribuição historiográfica essencial é a visão integrada dos mútuos condicionamentos das três principais sociedades escravistas das Américas (Cuba, Brasil e Estados Unidos), pois permite reconstituir o lugar dessas sociedades no capitalismo global do século XIX. Tomando por base essa perspectiva, indica que, diante desse enquadramento analítico, ultrapassa-se o conceito de segunda escravidão, pois, nesse caso, “o procedimento sugerido por Tomich é mais importante do que o próprio conceito […]” (Marques, 2020, p. 68).

Como resultado dos dois capítulos iniciais, Rafael de Bivar Marquese propõe reflexões historiográficas sobre a escravidão histórica e o capitalismo histórico. Nesse debate, ganham contornos as divergências entre as interpretações de Ricardo Salles e Leonardo Marques. O dissenso centra-se na tensão entre o lugar dos Estados nacionais na especificidade das trajetórias dos espaços escravistas das Américas e a perspectiva de que o capitalismo como sistema transpõe fronteiras políticas e combina múltiplas formas de trabalho compulsório. Marquese sublinha, de um lado, a importância da profunda descontinuidade das trajetórias dos espaços escravistas na virada do século XVIII para o XIX, a “segunda escravidão” e, de outro, a integração da economia-mundo, novos espaços escravistas e as relações de produção, distribuição e consumo. Essa afirmativa desloca o olhar para as totalidades como interdependências mútuas, tais como as relações entre mercado mundial, divisão internacional do trabalho e o fenômeno do “ciclo britânico de acumulação”.

É nesse quadro do pensamento econômico que a coletânea avança para a segunda parte “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”. Os capítulos representam não apenas esforços analíticos que visam examinar de maneira integrada economias mercantis escravistas regionais, inovações tecnológicas, indústrias e segunda escravidão mas também nos revelam uma agenda de pesquisa, como nota Renato Marcondes. O texto “Raízes escravas da indústria brasileira” procura mapear a persistência da escravidão, diversidade regional e modernização da economia brasileira nos séculos XIX e XX. Com enfoque regional, o capítulo seguinte, de autoria de Walter Pereira, analisa a dinâmica econômica e da escravidão na bacia do rio Paraíba do Sul, suas atividades agrícolas e bancárias, inovações tecnológicas, ferrovias, embarcações a vapor e bondes.

Ao longo da terceira parte, no primeiro artigo de Carlos Gabriel Guimarães, o que se verifica é uma grande riqueza de análise que, apesar da advertência do autor que “as pesquisas nos arquivos ainda estejam no início”, revela a especificidade da inserção dos negociantes ingleses Joseph e Ralph Gulston e suas conexões globais financeiras e comerciais, em especial, com a comunidade mercantil lisboeta, carioca e africana.

Numa outra proposta, intitulada “O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob a égide mercantilista”, o historiador Carlos Kelmer Martins enfatiza, do ponto de vista teórico e metodológico, as interseções e diálogos entre as premissas do conceito de segunda escravidão, do mercantilismo e da complexidade política, social, cultural e econômica do sistema mundial setecentista. Rodrigo Soares, responsável pelos comentários críticos, considera que o mérito de Kelmer Martins “está na percepção da desigualdade entre as sociedades ou no seio de cada uma, como decorrência de uma forma combinada integrada” (Soares, 2020, p. 226).

Na quarta e última parte, intitulada “Segunda escravidão, micro-história e agência”, o que está em jogo no par macro e micro é um redimensionamento dos objetos e questões. Em todos os capítulos a abordagem é convergente. Reafirma-se o ofício do historiador como possibilidade de articulação da dimensão macroestrutural aos elementos da micro-história, assim como se procura sofisticar as pesquisas a partir do conceito de segunda escravidão. Mariana Muaze aponta caminhos para superar a incompatibilidade fundante entre a micro-história e a segunda escravidão. Em outra chave, Thiago Pessoa conjuga análise empírica, decorrente dos resultados de pesquisa no Arquivo Nacional, a abordagem metodológica da micro-história e as contribuições do conceito de segunda escravidão. Nesse movimento, valoriza as contribuições da redução de escala e as potencialidades da perspectiva global a fim de examinar a classe senhorial do Império do Brasil, as redes de negócios e sociabilidade, o complexo cafeeiro, o tráfico e a escravidão.

Por essas razões, Waldomiro Lourenço da Silva Júnior afirma que a segunda escravidão, como conceito analítico que abrange zonas de plantação mais dinâmicas e capitalizadas da economia global, em especial, no Brasil, o complexo cafeeiro, não estaria invalidada por não contemplar a escravidão urbana e portuária, a produção com pequenas escravarias voltadas para o abastecimento em Minas Gerais ou a indústria baleeira catarinense. Para o autor, a validade da noção de segunda escravidão configura uma “questão elementar de epistemologia” em que “a validade cognitiva de uma categoria de análise não se limita necessariamente às constatações empíricas que respaldaram a sua formulação” (Silva Júnior, 2020, p. 282). Portanto, as evidências da escravidão em economias como Minas Gerais, Santa Catarina ou de regiões portuárias ou urbanas seriam decorrência direta da dinâmica da segunda escravidão: “as outras formatações da escravidão só persistiram a longo prazo no Brasil porque existiu uma base material nuclear suficientemente sólida (a base da segunda escravidão), que garantiu, no campo político, as condições para sua perpetuação” (p. 282).

Como bem lembra Monica Ribeiro de Oliveira, apesar das contribuições de Muaze, Silva Júnior e Pessoa, os desafios postos pela articulação da micro-história à perspectiva macro permanecem em aberto.

De modo geral, o conceito de segunda escravidão, subjacente a todos os trabalhos do livro, nem sempre alcança o objetivo de dotar a obra de relativa unidade e também da porosidade conceitual desejada por Dale Tomich na apresentação. No entanto, certamente, alguns trabalhos ganharão espaço na historiografia, mais pelo valor do debate apresentado do que pelas conclusões.

É importante compreender que a obra reflete, ao mesmo tempo, o esvanecimento da história econômica, hegemônica por décadas na academia brasileira e em seus cursos de graduação e pós-graduação em história, e também sintetiza uma retomada.

Apesar dos novos horizontes metodológicos, a formulação do conceito de segunda escravidão (1988) é oriunda, em parte, no caso da interpretação sobre a economia brasileira, das ideias encontradas em Formação econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado, um dos autores citados por Tomich no capítulo fundador do conceito de segunda escravidão. É no mínimo curioso que nenhum dos capítulos de A segunda escravidão e o império do Brasil em perspectiva histórica mencione o livro de Celso Furtado em suas referências bibliográficas, nem o possível impacto da interpretação de Furtado na gestação conceitual de segunda escravidão, ou associe o fato de que concepções furtadianas ganharam nova roupagem historiográfica.

Referências

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil [1959]. 15a ed. São Paulo: Editora Nacional, 1977.

MARQUES, Leonardo. Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 53-74.

MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SALLES, Ricardo H . A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão: ensaio de historiografia. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 27-52.

SILVA J JÚNIOR, Waldomiro Lourenço da. A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl? In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 279-285.

SOARES, Rodrigo Goyena. Comentário: benefícios e limites da segunda escravidão como método para uma razão dialética. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria , 2020, p. 223-238.

TOMICH, Dale. The “second slavery”. In: TOMICH, Dale. Through the prism of slavery Lanham: Rowman & Littlefield, 2004, p. 56-71.

Télio Cravo – Pós-doutorando em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). São Paulo(SP), Brasil. [email protected].


MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H. . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica.São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. 298p. Resenha de: CRAVO, Télio. Desembarque da segunda escravidão na historiografia brasileira. Tempo. Niterói, v.27, n.1, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil | Yuko Miki

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Yuko Miki | Foto: Fordham News |

MIKI Y Frontiers of citizenshipA especialização no campo das pesquisas históricas trouxe inegáveis avanços para o nosso conhecimento a respeito das indagações que fazemos sobre o passado. Ao lado desses avanços há armadilhas, quase que inevitáveis, especialmente para os historiadores em formação. É na definição dos recortes – seja ele espacial, cronológico, bibliográfico ou de grupos sociais – que se antevê o tamanho do cabresto que cerceia a visão do autor e retroalimenta interpretações de escolas clássicas. São recortes que não nascem livremente de perguntas – o único meio de dar unidade coerente à pesquisa, como ensinava Marc Bloch – e, sim, estão naturalizados pelos campos ou pelas instituições. No Brasil, uma das especializações mais curiosas é a que separa de forma extremamente rígida a história dos povos indígenas e dos escravizados afro-brasileiros. De modo geral, persiste a crença de que o avanço territorial da escravização afro-brasileira tinha como sua consequência o desaparecimento ou perda de importância dos povos indígenas. Os estudos sobre o século XIX vem sistematicamente negando essa perspectiva, mas muitas vezes também criando uma história dos povos indígenas no Império do Brasil quase autônoma à da escravização dos afro-brasileiros. [3]

Frontiers of Citizenship, de Yuko Miki, já mereceria ser saudado por explorar essa primeira “fronteira”: a que separa a história de afro-brasileiros e de indígenas no Império do Brasil. Mais uma vez, o olhar estrangeiro nos ajuda a questionar os cânones da história nacional. Miki nascida em Tóquio, mas há muitos anos radicada nos Estados Unidos, onde é professora da Fordham University (NY), conta ao longo do livro o seu estranhamento em ver a história desses dois grupos tão apartada. Por outro lado, o livro – e especialmente seus comentários de contracapa – lhe atribuem muitas vezes uma originalidade que não é verdadeira. Muitos pontos – sobretudo em relação à história dos povos indígenas – podem ser pouco conhecidos do público estrangeiro, mas são absolutamente sabidos entre os historiadores brasileiros. A despeito disso, o esforço em buscar uma única interpretação, ou mesmo pontos de encontros, para a história de indígenas e afro-brasileiros escravizados é um ganho real.

Desde o início o livro chama a atenção por essa fusão que não está apenas na capa – uma bela arte de sobreposição de imagens de indígenas e afro-brasileiros – mas por se tratar de um volume da “Afro-Latin America” da Cambridge que tem como recorte espacial o vasto território conhecido na historiografia por ser aquele que foi alvo de D. João, em 1808, para se fazer guerra aos indígenas botocudos. Poucos territórios têm tão marcadamente um tema e uma cronologia: a guerra justa contra os botocudos e o período de 1808 a 1831, quando esta prática é extinta pelo Parlamento. Quase que exclusivamente tratado pela historiografia sobre os povos indígenas, é centro de discussão para as políticas indigenistas e as modalidades de trabalho imposta a estes povos. [4]

Miki implode esses parâmetros. Em primeiro lugar, avança a análise até o final do Império, permitindo revelar um quadro de mudanças muito mais complexo do que aquilo que se vê apenas até 1831, passando inclusive pelo Regulamento das Missões (1845) [5], o movimento abolicionista e a própria abolição. Ainda mais importante, Miki tenta enxergar essa região – que ela chama de “Fronteira Atlântica”, algo que problematizaremos adiante – como uma espécie de síntese, de um laboratório do Império. Afinal, foi ali que se abriu no começo do século XIX uma política generalizada de extermínio indígena. É verdade que isto jamais foi suprimido no Império português, mas especialmente depois de Pombal as políticas que tentavam transformar os indígenas em portugueses tornaram-se centro da estratégia do Império na disputa por territórios com Madri.

Ao mesmo tempo, o espaço colonial é o símbolo de uma mudança política com a vinda da Corte, Corte que não valorizava mais “zonas tampão” – papel que o território e os botocudos tinham ocupado até 1808 para impedir o desvio de pedras preciosas. Ao invés disso, o que se precisava era expandir-se “para dentro”, feliz expressão de Ilmar Mattos que fará ainda mais sentido já no Império do Brasil. [6] A expansão agrícola na “Fronteira Atlântica” é acompanhada de tentativas de implementação de novas alternativas de propriedade e trabalho. A mais famosa dessas iniciativas é a Colônia Leopoldina, incentivada pela própria Coroa através da vinda imigrantes e a distribuição de pequenas propriedades. A rápida transformação dessa experiência em apenas mais uma grande monocultura tocada com braços de escravizados afro-brasileiros, somada ao fato de ter se tornado um dos símbolos da resistência escravista, é extremamente destacado pela autora. Em alguma medida, o tom pessimista de toda a obra é sintetizado no “fracasso” da Colônia Leopoldina em manter-se com o trabalho livre.

Ainda que não dito explicitamente, Miki parece descrever um processo de mudança que nunca ocorre totalmente, como se o peso do passado fosse intransponível. A polissemia da palavra fronteira é habilmente explorada pela autora. A “Fronteira Atlântica” é a região que estuda. Os indígenas e afro-brasileiros estão fisicamente nesta fronteira, mas a sua cidadania também está em uma fronteira mais intangível, em uma área difícil de saber com clareza quem está dentro e quem está fora. Ainda que se valendo de análises já bastante conhecidas – sobretudo, de Sposito e Slemian [7] – Miki faz uma problematização dessa questão, lembrando que a constituição brasileira não era racializada. Ou seja, não era a cor da pele que determinava os direitos políticos. Por outro lado, condições jurídicas intrinsicamente ligadas à condição de homens e mulheres não brancos – como ser escravo ou considerado “selvagem” no caso dos indígenas – excluíam essas pessoas do “pacto político”. É apenas no final do livro – já discutindo o abolicionismo e o final do Império – que Miki deixa explícito que a negativa de direitos políticos para indígenas e negros era um projeto e não uma deficiência do sistema. Nesse ponto, há uma perfeita sintonia entre os projetos que analisa para indígenas e para os escravos após a abolição: em todos esses casos jamais se pensa em entregar terras e autonomia a esses povos. Ao contrário, a condição de subordinados, tutelados por fazendeiros ou religiosos é vendida como a única forma para impedir que ex-escravizados ou indígenas se entregassem ao ócio. Um discurso que se sustentou por décadas – e no caso dos indígenas, por séculos – e que ela registrou ecoar até mesmo entre os mais radicais abolicionistas da “Fronteira Atlântica”.

Se ao discutir a extensão da condição de cidadãos para indígenas e afro-brasileiros, Miki consegue uma análise mais integrada, o mesmo não acontece a respeito de outros aspectos. O exemplo mais evidente nesse sentido é o uso desses homens como mão de obra. Há, evidentemente, a demonstração de que em todo esse território havia o emprego significativo de indígenas e afro-brasileiros. No entanto, este são universos que estavam no mesmo território, mas que a narrativa organiza em sistemas produtivos bastante distintos. Ou seja, o enfoque para os indígenas está, de modo geral, nas missões e os escravizados afro-brasileiros nas fazendas. A pureza dessas separações tão estanques é difícil de acreditar em um território como esse. Bezerra Neto já mostrou que as fazendas monocultoras do Pará, por exemplo, sempre foram tidas como tocadas por mão de obra exclusivamente escravizada afro-brasileira, mas na verdade dividia os campos com indígenas. [8]

Antes que se diga que se trata das “excentricidades” do Cabo Norte, Marco Morel, em belíssimo e recente trabalho sobre os botocudos, justamente mostra como a sua mão de obra era frequentemente requisitada para os mais diferentes tipos de trabalho, ocupando frentes inclusive no entorno da Corte. Além do trabalho em obras públicas, Morel dá vários exemplos de como eram recorrentes as denúncias do emprego de indígenas em fazendas em toda essa região, muitas vezes desviados de instituições públicas sob a alegação de que era um método de civilização mais barato. [9] Para além disso, Miki passa ao largo da discussão mais interessante da historiografia recente: aquela que implode a visão dicotômica que separava todo o trabalho no Brasil do século XIX nas categorias de trabalho livre ou trabalho escravo. Em vez disso, há uma gigantesca zona cinzenta – não só no Brasil, mas em todo o mundo – em que homens livres são obrigados a trabalhar sob as mais diferentes formas de coerção, inclusive físicas. [10] Indígenas e afro-brasileiros eram especialmente alvo dessas ações que Miki totalmente ignora no livro.

Por fim, há ainda uma última consideração geral: a ideia de classificar esta região de ataque aos botocudos como “Fronteira Atlântica”. Miki insiste muito na ideia da fronteira, certamente influenciada pela tradição americana e critica o pouco uso desse termo na historiografia brasileira. No entanto, esta designação parece ter muitas fragilidades: no Império do Brasil, no processo de “expansão para dentro”, a fronteira é o recorrente e não a exceção. Nesse sentido, a região estudada por Miki parece estar longe de ser algo particularmente singular.

Mais especificamente sobre a distribuição dos capítulos é importante salientar que as suas divisões são temáticas, ainda que de modo geral a evolução dos capítulos também siga em alguma medida um avanço cronológico. Assim, o primeiro capítulo explora as “fronteiras da cidadania”, enquanto o segundo busca dar uma interpretação ao que ela chama de “política popular” (em tradução livre). Nos capítulos seguintes, outros temas giram em torno de tópicos como a mestiçagem, a violência, os “campos negros” e o abolicionismo. Os capítulos podem ser lidos separadamente, quase sem prejuízo do seu entendimento, o que por sua vez revela um problema de coesão da obra no seu conjunto. Também é peculiar a mistura de abordagens mais “estruturais” – como as discussões da cidadania a partir de documentos do centro político do Império – com narrativas totalmente focadas na “agência”. Especialmente nesse último ponto a obra encontra mais dificuldades. Há alguns insights maravilhosos, mas custa enxergar que alguns eventos possam ser usados para generalizações reiteradamente feitas.

Apesar das críticas, Frontiers of Citizenship é um livro que provoca muitas reflexões e incomoda ao buscar análises de ângulos inusuais. Isso por si só já basta para merecer a sua leitura.

Notas

3. Entre outras novas evidências, percebe-se o uso da mão de obra indígena mesmo em regiões irrigadas com escravizados afro-brasileiros, como São Paulo ou mesmo a região do Vale do Paraíba, pelo menos até um determinado período. Entre outros, veja LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de Café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016; DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial: reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 38, nº 79, 2018.

4. Para uma síntese, SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português. Análise da política indigenista de D. João VI. Revista de História (USP), v. 161, p. 85-112, 2010.

5. Trata-se da primeira lei para os povos indígenas como validade em todo o território do Império.

6. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense, n. 01, maio de 2005.

7. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-45). São Paulo: Alameda, 2012; SLEMIAN, Andrea. “Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823 – 1824)”. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: História e historiografia. São Paulo: Editora HUCITEC; FAPESP, 2005.

8. BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão Negra no Grão Pará (séculos XVIII-XIX). Belém: Paka-tatu, 2012.

9. MOREL, Marco. A Saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistência indígena. São Paulo: Hucitec, 2018.

10. Entre outros, MACHADO, André Roberto de A. O trabalho indígena no Brasil durante a primeira metade do século XIX: um labirinto para os historiadores. In: Henrique Antonio Ré, Laurent Azevedo Marques de Saes e Gustavo Velloso. (Org.). História e Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: novas perspectivas. 1ed.São Paulo: Publicações BBM / Alameda, 2020; Mamigonian, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017; LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: UNICAMP, 2013; STEINFELD, Robert J. The invention of free labor: the employment relation in English & American Law and Culture, 1350-1870. EUA, The University of North Carolina Press, 1991.

Referências

BEZERRA NETO, Jose Maia. Escravidao Negra no Grao Para (seculos XVIII-XIX). Belem: Paka-tatu, 2012.

DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsorio e escravidao indigena no Brasil imperial: reflexoes a partir da provincia paulista. Revista Brasileira de Historia. Sao Paulo, v. 38, nº 79, 2018.

LEMOS, Marcelo Sant’ana. O indio virou po de Cafe? Resistencia indigena frente a expansao cafeeira no Vale do Paraiba. Jundiai: Paco Editorial, 2016.

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma historia global do trabalho. Campinas: UNICAMP, 2013.

MACHADO, Andre Roberto de A. O trabalho indigena no Brasil durante a primeira metade do seculo XIX: um labirinto para os historiadores. In: Henrique Antonio Re, Laurent Azevedo Marques de Saes e Gustavo Velloso. (Org.). Historia e Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: novas perspectivas. 1ed.Sao Paulo: Publicacoes BBM / Alameda, 2020.

MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construcao da unidade politica. Almanack Braziliense, n. 01, maio de 2005.

MOREL, Marco. A Saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistencia indigena. Sao Paulo: Hucitec, 2018.

Resenha de MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018.

SLEMIAN, Andrea. “Seriam todos cidadaos? Os impasses na construcao da cidadania nos primordios do constitucionalismo no Brasil (1823 – 1824)”. In: JANCSO, Istvan (org.). Independencia: Historia e historiografia. Sao Paulo: Editora HUCITEC; FAPESP, 2005.

SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime portugues. Analise da politica indigenista de D. Joao VI. Revista de Historia (USP), v. 161, p. 85-112, 2010.

SPOSITO, Fernanda. Nem cidadaos, nem brasileiros. Indigenas na formacao do Estado nacional brasileiro e conflitos na provincia de Sao Paulo (1822-45). Sao Paulo: Alameda, 2012.

STEINFELD, Robert J. The invention of free labor: the employment relation in English & American Law and Culture, 1350-1870. EUA, The University of North Carolina Press, 1991

André Roberto de A. Machado – Universidade Federal de São Paulo, Departamento de História. Guarulhos – São Paulo – Brasil. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. É graduado e doutor em História pela Universidade de São Paulo e realizou pós-doutorados no CEBRAP e nas universidades de Brown e Harvard. E-mail: andre. [email protected]


MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018. Resenha de: MACHADO, André Roberto de A. Construindo fronteiras dentro das fronteiras do Império do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021.

Acessar publicação original [DR]

The Sacred Cause: The Abolitionist Movement – Afro-Brazilian Mobilization and Imperial Politics in Rio de Janeiro | Jeffrey Needell

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Jeffrey Needell | Foto: University of Florida |

NEEDELL J The saacred cause1Devido às contradições que os formam, problemas históricos como a abolição da escravatura no Brasil são forçosamente de difícil resolução. Largo e plástico, o cativeiro moldou nossas relações econômicas, nossas tramas políticas e nossas regras de convivência. O escravo tornou-se ao longo do tempo, mas finalmente a um só tempo, mão de obra, mercadoria, insumo e derivativo financeiro. No campo político, fez das classes latifundiárias uma barreira intransponível para as dirigentes, quando não as forjou em simbiose. Delimitou por extensão o padrão de inserção internacional do país e regeu a vida social a ponto de definir quem era quem, aliviando apenas superficialmente os menos prósperos das misérias hierárquicas próprias a uma sociedade, igualmente por causa do cativeiro, formada a partir de desigualdades.

Jeffrey D. Needell , professor na Universidade da Flórida e também autor de A Tropical Belle Epoque (1987) e The Party of Order (2006), reorientou em The Sacred Cause sua já costumeira análise a partir das elites políticas, de modo a avaliar o Treze de Maio na perspectiva das inter-relações entre o movimento abolicionista, pelo baixo, e a vida parlamentar, pelo alto. Na complexidade multidimensional da escravidão, Needell autonomizou três variáveis e as aplicou a um espaço apenas, a Corte, porque julgada berço e cova do abolicionismo. O recorte temático e espacial atravessa o texto por inteiro e dá o tom dos porquês do Treze de Maio. À pergunta como foi possível a abolição quando o Estado era dominado por escravocratas? Needell responde: por obra de duas forças congraçadas – a saber, a solidariedade afro-brasileira e o movimento abolicionista – contra um reduto parlamentar, pelo resto, também pressionado pela Coroa.

Com o estilo ríspido que por vezes lhe é característico, Needell põe em xeque boa parte da historiografia que tratou do movimento abolicionista. Emília Viotti da Costa (1966), Robert Conrad (1972) e Robert Toplin (1972) não teriam logrado integrar o abolicionismo às urdiduras da alta política. Com os olhos voltados para os oprimidos e respaldados por interpretações materialistas, o que nem sempre foi o caso, não teriam compreendido, o que talvez não seja de todo justo, como o regime verdadeiramente funcionava. Seria esse o mesmo – e suposto – defeito de Angela Alonso (2015), malgrado o mérito de procurar entender o movimento abolicionista em escala nacional. A historiografia mais recente que se albergou na ideia de agência escrava, quer Needell, tampouco teria feito melhor, porque, calcada nos indivíduos, não teria assimilado o movimento em seu conjunto – mas foi essa a vocação dos agenciais?

Desejoso do inédito, Needell dividiu seu texto em sete capítulos, que, à exceção do quadro de socialização afro-brasileira composto no primeiro, seguem a ordem cronológica dos acontecimentos. O segundo traça o advento do movimento abolicionista, logo após a edição da Lei do Ventre Livre em 1871, até sua primeira derrota em 1881. Vislumbrando fases rápidas e movediças, Needell propõe no terceiro capítulo o soerguimento do movimento entre 1882 e 1883, particularmente em suas feições populares e suas solidariedades racialmente amplas. No quarto, discute o governo de Sousa Dantas, a posição agora mais contida, porque atenta à radicalização, de um monarca de claras tendências emancipacionistas e a saída paliativa da Lei dos Sexagenários, editada em 1885, com o retorno dos conservadores ao poder.

Daí em diante Needell presta-se à análise da resposta abolicionista à lei de 1885, procurando seu objeto – como nos outros capítulos – na imprensa, nos diários, nas memórias, nos relatórios oficiais e na troca de correspondências. Conclui o quinto capítulo com a implosão do bloco conservador e a decorrente intervenção abolicionista do Imperador, articulada de maneira a preservar o país de uma desestabilização final. Diferentemente dos Estados Unidos, onde a abolição ocorreu após severa guerra civil, Needell sugere uma saída relativamente pacífica para o trabalho livre no Brasil- implicitamente também por obra de um poder pessoal do monarca. Discutida a abolição propriamente dita no sexto capítulo, Needell argumenta no sétimo o resultante colapso da monarquia e, sobremaneira, o fracasso do movimento em lidar com a inserção do negro na sociedade de classes, malgrado ter sido transversalmente afro-brasileiro.

Porque permanentes no relato, são as três variáveis de Needell que interessam a esta resenha, e começaremos pela que talvez seja a mais polêmica: a solidariedade afro-brasileira na formação, na radicalização e nos estertores do movimento abolicionista.

Desde cedo, propõe Needell, escravos de diferentes nações encontraram meios para fazer suas próprias comunidades. Angolas, benguelas, cabindas, congos ou moçambiques importaram divisões étnicas que somente se desfizeram com o tempo, mas especialmente após o término do tráfico transatlântico em 1850. Socializados em irmandades religiosas e em confrarias políticas, os cativos moldaram progressivamente uma identidade afro-brasileira, em primeira instância, por oposição a outrem e, em segunda, pela partilha de experiências comuns – conceito que Needell, sem levá-lo até suas últimas consequências, parece tomar emprestado de E. P. Thompson. Transitando por uma Corte que não formou guetos, pelo menos para o autor, os escravos relacionavam-se com o operariado em constituição, também de origem negra. A troca teria amadurecido após a Lei Eusébio de Queirós (1850), não apenas em razão da diversificação da malha societária, mas sobretudo em consequência do aumento no preço do escravo. Sem recursos para diferenciar-se pela posse cativa, a classe popular encontrou-se tão desamparada quanto a igualmente afrodescendente classe média em suas expectativas de ascensão social, o que, sugere Needell, teria apenas redobrado a solidariedade racial.

Nesse enredo e à contracorrente do usualmente acreditado, o movimento abolicionista teria surgido afro-brasileiro desde o começo. A historiografia não teria suficientemente percebido – sequer Rebecca Bergstresser, cuja tese sobre a participação da classe média no movimento Needell apadrinha – um protocolo relacional do Império moldado para acobertar origens raciais, quando necessário. As plateias abolicionistas eram afro-brasileiras, argumenta o brasilianista norte-americano, e a inclemência das fontes quanto a isso apenas ratifica uma etiqueta que impunha mudez sobre a descendência negra de homens e mulheres de maior envergadura social – ou de potenciais lideranças abolicionistas, ainda que populares. É desses silêncios que emergem na análise de Needell novas figuras abolicionistas, pouco ou nada conhecidas do público especializado. Para além dos famigerados André Rebouças, Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, tratados com rigor e à exaustão no texto, Vicente Ferreira de Souza e Miguel Antônio Dias teriam sido lideranças de proa, porque orgânicas – para retomar um conceito de Antonio Gramsci, ao qual Needell não recorre. Entre a novidade historiográfica e o embasamento material, o equilíbrio é por momentos imperfeito, visto que, especialmente no caso de Miguel Antônio Dias, as fontes parecem não ser satisfatórias o bastante para lhe dar o mérito que parece ter. O problema, no entanto, é pó de traque perto da imaginação que o bom historiador conduz entre as frestas dos documentos.

Mais quebradiço é o imediato pós-abolição de um autor que viu tanta solidariedade racial entre afro-brasileiros. Em parte, o movimento abolicionista teria fracassado em promover uma sociedade menos segregada após o Treze de Maio, porque, contrariamente à percepção corrente, o racismo não era vislumbrado pelos abolicionistas como barreira à mobilidade social ou como tema relevante em seu tempo. Se consentirmos com a interpretação, como pôde então a raça, na avaliação do próprio Needell, ser tão matricial na formação do movimento abolicionista? A incoerência, nos parece, poderia eventualmente ser melhor resolvida pela perspectiva de classes, que o autor realça e embaça, a depender do instante argumentativo. Por todas as evidências dadas no próprio texto, numa sociedade em que a imbricação das relações sociais nas econômicas, para recuperar um conceito de Karl Polanyi, expressava os pródromos da formação capitalista brasileira, raça e classe, assim como geração e gênero, combinaram-se nas hierarquias coletivas daquele tempo – muito largamente constituídas pela renda. Sintomaticamente, o negro que enriquecia embranquecia, o jovem que fazia fortuna amadurecia e a mulher que trabalhava empobrecia. Se afro-brasileiros como Rebouças, Vicente de Sousa e Patrocínio, na recomendação de Needell, agitaram-se contra a pobreza e a opressão, urbana e rural, no lugar de se apegarem ao racismo, foi porque os silêncios sobre a raça estavam encastelados na renda – que, antes de ser um critério, é um reflexo de um determinado lugar nas relações sociais que mercadorias produzidas e consumidas materialmente expõem.

Disso sucederia a necessidade de reposicionar as classes imperiais, melhor revisitando suas respectivas instâncias de integração e interação social. Caberia também avaliar seus espaços organizativos, como as entidades mutualistas que fundaram e as sociedades políticas que compuseram. Assim a identidade racial expressaria sobremodo uma condição material que serviu de fundamento para uma coligação abolicionista socialmente larga. Parece-nos, pois, que a solidariedade do movimento não foi racial, mas antes socioeconômica e, efêmera como se mostrou, autorizada apenas pela associação popularmente ressentida entre os que possuíam escravos e os que dirigiam a economia política do Império. Nesses termos, a proposta conceitual de identidade afro-brasileira, para o Oitocentos, guarda menos relevância do que a equivalente norte-americana, mais rigorosa para uma sociedade amplamente menos miscigenada e juridicamente, naquele então, mais obstrutiva.

Se o fracasso do movimento, após o Treze de Maio, não se deveu ao suposto não-tema racial, consideramos mais oportuna a hipótese de Needell que enxerga os tolhimentos ao reformismo do pós-abolição no advento de um regime de ambição política e composição social, malgrado os ajustes, semelhantes às do derrocado. Ocorre que, e assim passamos às variáveis parlamentar e real, Needell tendeu a omitir as forças que – também abolicionistas, não obstante agendas e intensidades diferentes – remodelaram o país. Atento à atividade parlamentar e aos impactos determinantes de movimento no desfecho da abolição, traçando paulatina e seguramente as pressões abolicionistas sobre o gabinete de Paranaguá, as alianças com o de Sousa Dantas e a radicalização posterior à Lei dos Sexagenários, Needell inclinou-se a ver nos debates legislativos a vida de todo o Império. Emascaradas em fontes oficiais que não as delatam por inteiro, as movimentações dos cafeicultores paulistas, o calor da caserna e as apostas financeiras dos principais bancos do Império empalideceram frente a um decisivo movimento abolicionista. Quiçá excesso historiográfico de nosso tempo, a análise das estruturas produtivas e financeiras, assim como as alianças esporádicas e arrivistas do grande capital com a tropa, costumam cheirar a naftalina. Ganham toda a atenção em consequência os movimentos subalternos, quando em última instância não são variáveis relativamente autônomas, mas exteriorizações das contradições políticas, sociais e econômicas que os constituem.

Um pouco pelas mesmas razões, a Coroa como variável emerge com suas volições independentes na obra de Needell. Já havia sido o caso em The Party of Order, quando o autor se amparou na retórica dos conservadores, nomeadamente dos ortodoxos, para sugerir que eles teriam hostilizado o Ventre Livre devido a sua suposta inconstitucionalidade. Seria a lei, nessa leitura, obra da ingerência imperial. Needell estendeu a proposta de um poder pessoal do Imperador à década de 1880, matizando-o com as agitações abolicionistas, porém ao fim sem tirar-lhe o brilho. Na raiz da fórmula estão talvez as principais inspirações do autor: em linhas superpostas de influência, Roderick J. Barman (1999), Sérgio Buarque de Holanda (1972)Heitor Lyra (1938) e Joaquim Nabuco (1897), cuja história do pai, não à toa uma biografia, se presta em boa medida à ideia da força pessoal do monarca. Teria tido tanta influência emancipacionista o Imperador, sem as contradições que caracterizam o mundo escravista posterior à Guerra de Secessão (1861-1865) ou, ainda, sem àquelas que remodelaram os eixos econômicos nacionais, produtivo e financeiro, subsequentes à Guerra do Paraguai (1864-1870)? Quais os termos do poder imperial, se Needell viu o monarca avançar e recuar, tanto em função do movimento abolicionista quanto em razão, num exame provavelmente mais próximo de Ilmar Rohloff de Mattos (1987), da constante representação latifundiária na Assembleia Geral do Império?

Seja como for, o caso é que certamente, para o endosso ou a crítica, será custoso de agora em diante produzir relato qualquer sobre a abolição sem recorrer ao último livro de Jeffrey D. Needell – e a todos os outros que lhe serviram de fundamento ou ponto de partida. É uma obra de méritos, que, também voltada para o público norte-americano ou simplesmente estrangeiro, deverá encontrar no Brasil boa tradução.

Referências

ALONSO, Angela. Flores, votos, balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). Sao Paulo: Companhia das Letras, 2015.

BARMAN, Roderick J. Imperador cidadao. Sao Paulo: Editora UNESP, 2012.

CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2016.

CONRAD, Robert. The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1972.

COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala a colonia. Sao Paulo: Editora UNESP, 2012.

GOYENA SOARES, Rodrigo. “Estratificacao profissional, desigualdade economica e classes sociais na crise do Imperio. Notas preliminares sobre as classes imperiais”. Topoi, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 41, pp. 446-489, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2237-101×02004108

GOYENA SOARES, Rodrigo. Racionalidade economica, transicao para o trabalho livre e economia politica da abolicao. A estrategia campineira (1870-1889). Historia (Sao Paulo), Sao Paulo, vol. 39, 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1980-4369e2020032

HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). Historia Geral da Civilizacao Brasileira. Tomo II: O Brasil monarquico. Vol. 5: Do Imperio a Republica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

LYRA, Heitor. Dom Pedro II. Belo Horizonte: Editora Garnier – Itatiaia, 2020.

MARQUESE, Rafael e SALLES, Ricardo(orgs.). Escravidao e capitalismo historico no seculo XIX. Cuba, Brasil, Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2016.

NABUCO, Joaquim. Um estadista do Imperio. Nabuco de Araujo: sua vida, suas opinioes, sua epoca. Paris, Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1898.

TOPLIN, Robert. The Abolition of Slavery in Brazil. New York: Atheneum, 1972.

YOUSSEF, Alain El. O Imperio do Brasil na segunda era da abolicao, 1861-1880. Tese (Doutorado em Historia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas, Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 2019

Rodrigo Goyena Soares – Universidade de São Paulo (USP). São Paulo – São Paulo – Brasil. Professor colaborador no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), onde também realiza estágio pós-doutoral com apoio da FAPESP (processo n. 2017/12748-0), instituição à qual o autor agradece. Doutor e mestre em História pela UNIRIO, formou-se em Ciências Políticas na Sciences Po Paris, onde igualmente obteve mestrado em Relações Internacionais. Pesquisa atualmente a Proclamação da República no âmbito do pós-doutorado na USP.


NEEDELL, Jeffrey D. The Sacred Cause: The Abolitionist Movement, Afro-Brazilian Mobilization, and Imperial Politics in Rio de Janeiro. Stanford: Stanford University Press, 2020. Resenha de: SOARES, Rodrigo Goyena. Um solidário treze de maio os afro-brasileiros e o término da escravidão. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil | Cristiane A. C. dos Santos

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Cristiane Alves Camacho dos Santos | Foto: LabMundi-USP |

O livro de Cristiane Camacho dos Santos, adaptação de sua dissertação de mestrado (SANTOS, 2010), se propõe a identificar e analisar a utilização política de leituras sobre o passado da colonização portuguesa da América mobilizadas nos debates travados na imprensa luso-americana, entre 1821 e 1822. A autora argumenta que dentre os diversos sentidos atribuídos à colonização portuguesa da América, seu entendimento como empresa “exploradora” e “opressiva” balizou algumas das alternativas disponíveis aos agentes políticos durante o esfacelamento da unidade da monarquia portuguesa. E, em sendo assim, delineou os limites daquilo que era percebido como possível para alguns dos projetos políticos voltados ao futuro da América portuguesa, dentre os quais a ruptura política com Portugal e a independência do Brasil. Essa experiência do tempo, prossegue a autora, ocorreu concomitantemente à politização da identidade coletiva daqueles entendidos, gradualmente, como “brasileiros”. Em suma, trata-se da conversão do passado da colonização portuguesa da América em instrumento político de sustentação de projetos que inseriram a independência do Brasil no horizonte do possível, dando os contornos para a politização de uma nova identidade coletiva.

O livro é estruturado em três capítulos balizados por uma introdução e um epílogo. O primeiro capítulo versa sobre a experiência do tempo durante a crise do Antigo Regime em Portugal vivenciada por diferentes identidades políticas da América portuguesa. Nesse capítulo, ressalta a constituição da história luso-americana como uma parte específica e complementar da monarquia lusa, entre os séculos XVI e XVIII, a nova dignidade adquirida pelo território português da América com a transferência da Coroa em 1808 e sua correspondente inauguração de novas expectativas. No bojo dos acontecimentos ensejados pelo início da dissolução dos impérios ibéricos, constitui-se uma oposição semântica entre “colônia” e “nação” que encontrava respaldo concreto nas experiências engendradas a partir de 1808 e que delineavam a percepção de um “novo tempo” (SANTOS, 2017, 151-152). O capítulo dois debruça-se sobre as disputas semânticas acerca da presença portuguesa na América, cuja lógica de complementariedade, vigente no reformismo ilustrado, perde sua estabilidade na percepção contemporânea da valorização dos territórios americanos no início do século XIX. Neste capítulo analisa, a partir de cotejamento historiográfico, a importância da imprensa periódica na delimitação dos espaços públicos em 1821, seu potencial para investigações sobre identidades políticas em período de profunda transformação e, por fim, como a colonização portuguesa da América subsidiou a representação de certa unidade desses territórios, embora fosse cenário para disputas semânticas ambíguas. O terceiro e último capítulo, baseado em sólida análise documental, fornece respaldo à hipótese do uso político do passado durante o esfacelamento das condições de reciprocidade e compatibilidade entre Portugal e a América portuguesa, sobretudo a partir da conjuntura ensejada pelos decretos das Cortes de Lisboa de setembro de 1821. Aponta que o mês de dezembro daquele ano demarcou, nos periódicos analisados, a conversão do topos dos “trezentos anos de opressão” em leitura difundida do passado da colonização portuguesa da América como denúncia das arbitrariedades associadas à condição colonial (SANTOS, 2017, 199). Essa significação da experiência, exprimida nos jornais, tensionava identidades coletivas divididas entre “metropolitanos” e “colonos”, desdobradas, posteriormente, na oposição entre “portugueses” e “brasileiros”. Essa forma discursiva, portanto, sintetizava trezentos anos de história – sinal de encurtamento da experiência – sobre o denominador comum da “opressão” vinculada à condição colonial, cuja manutenção era, paulatinamente, associada aos interesses de portugueses peninsulares.

Em termos de método, Santos procede a uma análise de evocações do passado mobilizadas por diferentes impressos das províncias do Rio de Janeiro, Pará, Bahia e Pernambuco – com ênfase na primeira – que deram os contornos a diferentes características e aspectos dos usos políticos do passado pelos periodistas. A intenção da autora é inferir uma experiência do tempo a partir de elaborações e interpretações do passado que, exprimidas em jornais, integraram o debate político de múltiplos grupos e indivíduos da América portuguesa. Do ponto de vista teórico, Santos qualifica essas formulações sobre o passado como fontes capazes de indicar a tensão entre a experiência e a expectativa dos atores políticos, ou seja, permitem diagnosticar um certo passado e futuro presentes que desempenharam a função de guias parciais das atuações políticas. Além disso, concebe que a organização da tensão entre um conjunto de sentidos atribuídos a um passado e às perspectivas abertas de um futuro parcialmente novo contribuíram para a definição e politização de uma nova identidade coletiva, a “brasileira”, e a recomposição de outras preexistentes.

Por essas razões, Santos articula-se a diferentes campos historiográficos reunidos, principalmente, sob o escopo de uma teoria do tempo histórico e das identidades políticas coletivas. A principal teoria a subsidiar atualmente pesquisas sobre a experiência do tempo histórico é, direta ou indiretamente, tributária dos escritos do historiador alemão Reinhart Koselleck. De acordo com Koselleck, o tempo histórico é o produto da tensão, estabelecida na modernidade, entre experiência e expectativa, tensão que permite interpretar o entrelaçamento interno entre o passado e o futuro cuja dinâmica baliza as histórias vislumbradas pelos agentes sociais como sendo possíveis (KOSELLECK, 2006, 305-327). Em segundo lugar, outra tradição historiográfica à qual a autora se vincula refere-se à consolidada utilização de periódicos, ou jornais, como fontes históricas capazes de traduzir e produzir fenômenos políticos no passado (MOREL; BARROS, 2003, 11-50). Em terceiro lugar, Santos parte de premissas acerca da criação e transformação de diferentes identidades políticas elaboradas por autores como Tulio Halperín Donghi (DONGHI, 2015), José Carlos Chiaramonte (CHIARAMONTE, 1997), István Jancsó (JANCSÓ; PIMENTA, 2000) e João Paulo G. Pimenta (PIMENTA, 2015). Por fim, no relativo ao debate sobre as diferenças entre o Estado e a nação, adere às perspectivas adotadas por Anthony Smith (SMITH, 1997), em oposição à Eric J. Hobsbawm (HOBSBAWM, 1990), ao definir que o Estado não teria sido um demiurgo da nação, esta última seria o resultado da recombinação de elementos preexistentes – recordações históricas partilhadas, mitos de origem comuns, elementos culturais diversos, associação a um determinado território e etc. – que, em determinado momento histórico, teriam sido “outorgados” como sinais diferenciadores de uma nacionalidade (SANTOS, 2017, 210-213).

Essa arquitetura teórica e metodológica, informada por ampla historiografia, permitiu que os periódicos fossem considerados como vetores simbólicos das disputas políticas, portadores de discursos sobre o passado que, ao organizar seus significados, delimitaram o futuro possível da ação política, então conduzida por agentes cuja identidade coletiva era simultaneamente reposicionada mediante a sua experiência temporal. Esse complexo processo correspondia às dialéticas conflituosas da formação do Estado e da nação concomitantes à modificação do estatuto e da qualidade da História, doravante entendida como capaz de legitimar projetos políticos. Observando-se a sua trajetória de pesquisa, Santos associa-se diretamente ao ambiente intelectual ensejado pelo projeto coletivo denominado Formação do Estado e da nação, organizado no início dos anos 2000 e coordenado pelo Prof. Dr. István Jancsó, no Departamento de História da Universidade de São Paulo.

Embora o resultado atingido pela autora seja louvável, sobretudo em função de seu rigor teórico e analítico, algumas questões permaneceram irresolutas. A primeira delas refere-se a um aspecto cronológico relativo à dialética entre Estado e nação. De acordo com Santos, a independência do Brasil inaugurou o período de construção do Estado nacional, o qual, segundo afirma, prolongou-se de modo conflituoso até a década de 1850 (SANTOS, 2017, 208). Qual teria sido, então, o marco histórico a delimitar o fim do caráter “conflituoso” da relação entre o Estado e a nação? A importante demonstração de que a história colonial não foi o desenvolvimento natural da nação – ou de que a independência não foi seu resultado obrigatório -, mas sim parcialmente produto do manejo político do tempo, uma construção simbólica durante o acirramento das incompatibilidades de grupos da monarquia portuguesa, deixa em aberto a questão do corpo social. Noutros termos, os contornos iniciais da identidade política coletiva nacional “brasileira”, delineada nas trepidações políticas dos anos de 1821 e 1822, não buscou integrar a totalidade da população e, desse modo, aponta para uma das condições de compatibilidade entre a formação dos “brasileiros” e a manutenção reinventada da escravidão após a independência. Seria pertinente especificar os conjuntos sociais abarcados por esse uso político do tempo para, assim, diagnosticar os excluídos de uma identidade seletiva emergente que provavelmente condicionaria diversos conflitos entre o Estado e a nação. Por fim, observo que a ausência da incorporação da dissertação de mestrado de Rafael Fanni (FANNI, 2015), elaborada após a dissertação de Santos e antes de sua readaptação em livro – e que é abertamente tributária da interpretação de Cristiane Camacho dos Santos -, prejudicou a possibilidade de aprofundar o rigor e expandir a envergadura das constatações da autora.

Teórica e metodologicamente bem estruturado, o livro de Cristiane Camacho dos Santos representa uma contribuição historiográfica importante aos estudiosos da história social do tempo e da formação do Estado e da nação do Brasil. Um estudo acadêmico que, embora concentrado em cronologia curta, é capaz de demonstrar a espessura temporal subjacente aos discursos políticos veiculados em jornais durante o processo de independência do Brasil. Em suma, e utilizando o vocabulário de Koselleck, trata-se de uma boa demonstração acadêmica da interrelação entre a temporalização da política e politização do tempo devidamente mediadas por identidades políticas coletivas, cuja investigação é plenamente realizável através de periódicos contemporâneos.[1]

Nota

1. Esta resenha foi concebida durante os debates do núcleo de pesquisa “História do Tempo: teoria e metodologia”. <http://labmundi.fflch.usp.br/historia-do-tempo> Agradeço a Edú T. Levati pela correspondência das citações.

Referências

CHIARAMONTE, Jose Carlos. “La formacion de los Estados nacionales en Iberoamerica”. InBoletin del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani, 3ª serie, 1º semestre de 1997.

DONGHI, Tulio Halperin. Revolucao e guerra: formacao de uma elite dirigente na Argentina criolla. Sao Paulo: Hucitec, 2015.

FANNI, Rafael. Temporalizacao dos discursos politicos no processo de Independencia do Brasil (1820-1822). 164 p. 2015. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.

HOBSBAWM, Eric J. Nacoes e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1990.

JANCSO, Istvan; PIMENTA, Joao Paulo G. “Pecas de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da emergencia da identidade nacional brasileira”. InRevista de Historia da Ideias. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, v. 21, 2000, p.389-440.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuicao a semântica dos tempos historicos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Contraponto, 2006.

MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. “O raiar da imprensa no horizonte do Brasil”. InPalavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do seculo XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.11-50.

PIMENTA, Joao Paulo G. A independencia do Brasil e a experiencia hispano-americana (1808-1822). Sao Paulo: Hucitec , 2015.

SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. Sao Paulo: Alameda, 2017.

SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. 186 p. 2010. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.

SMITH, Anthony. A identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997.

Thomáz Fortunato – Departamento de História da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil. Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial e do grupo Temporalidad (Iberconceptos). Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]


SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil. São Paulo: Alameda, 2017. Resenha de: FORTUNATO, Thomáz. A politização do tempo histórico na Independência do Brasil1. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

 

Becoming Free – Becoming Black: Race Freedom and Law in Cuba – Virginia and Louisiana | Alejandro de la Fuente e Ariela J. Gross

GROSS e LA FUENTE1
Ariela J. Gross e Alejandro de la Fuente | Foto: Medium |

LA FUENTE e GROSS Beconing free1Em tempos que reascendem os debates sobre o racismo institucional nas Américas, a publicação de Becoming Free, Becoming Black responde tanto às demandas do presente quanto aos dilemas que moveram as ciências humanas ao longo do século XX. Após décadas de pesquisas que revelaram as desventuras de sujeitos escravizados, pelo cotidiano do cativeiro e pelos labirintos jurídicos, Ariela Gross e Alejandro de la Fuente dão um passo à frente, assim como uma mirada atrás. Reivindicando teórica e metodologicamente uma história “de baixo para cima”, os autores revisitam os debates clássicos sobre a relação entre a escravidão, o direito e a constituição de diferentes regimes raciais no continente, ao empreender um ambicioso estudo comparativo sobre Cuba, Virgínia e Louisiana entre os séculos XVI e XIX. [3]

De partida, Gross e de la Fuente fazem de Frank Tannenbaum seu antagonista e, também, em menor grau, uma inspiração. Assim como em artigos publicados anteriormente, eles reforçam as críticas a Slave and Citizen, em especial às premissas teóricas, que atribuíram às normas escritas nas metrópoles um papel determinante dos rumos das sociedades coloniais. Igualmente contestada foi a projeção das diferenças raciais entre os Estados Unidos e a América Latina ao passado, como se decorressem de um devir inevitável, fundado pelos regimes jurídicos anglo-saxão e ibéricos. Por outro lado, tanto a historiografia revisionista (que preteriu o direito e a religião pela economia e a demografia) quanto os estudos recentes no campo da cultura legal, se limitaram a demolir o modelo de Tannenbaum, sem oferecer uma interpretação definitiva sobre as origens das diferenças raciais nas Américas. Assumindo o desafio, Gross e de la Fuente resumiram ainda na introdução seu postulado: não foi o direito da escravidão, mas o direito da liberdade o elemento crucial para a constituição dos regimes raciais no continente.[4]

Embora a maioria dos homens e mulheres escravizados jamais tenha rompido as correntes do cativeiro, a minoria que conquistou a alforria, constituindo comunidades negras livres, teria sido a chave para a construção da raça nas Américas. Gross e de la Fuente convidam o leitor a embarcar em uma longa jornada, que se inicia na travessia atlântica e na colonização de Cuba, Louisiana e Virgínia, perpassa as águas turbulentas da Era das revoluções, para enfim desembarcar nos regimes raciais do século XIX, cujos legados se estendem até hoje. Antecipando suas conclusões, os autores sustentam que as diferenças entre as três regiões não decorreram do reconhecimento da humanidade dos escravizados e tampouco da fluidez racial. O fator determinante teria sido o grau de sucesso das elites escravistas na imposição da relação entre branquitude e liberdade, e entre negritude e escravidão. O enunciado contém um dos principais manifestos políticos do livro, mas deixa uma questão em aberto-que será retomada adiante.

Os dois capítulos iniciais transitam pelas sociedades coloniais de Cuba, Virgínia e Louisiana, partindo do regime jurídico e da experiência espanhola das Américas. Embora as Siete Partidas reconhecessem a humanidade das pessoas escravizadas, o efeito prático do precedente social e legal dos ibéricos foi a definição prévia das distinções raciais por lei. A inversão do pressuposto de Tannenbaum é radical. A escravidão em Portugal e o princípio da limpeza de sangre na Espanha ofereceram aos ibéricos as pré-condições para o pioneirismo na criação de regimes legais racializados na América. Nesse ponto, os autores cederam em parte a Tannenbaum, identificando, na raiz romanista do direito ibérico, a alforria como instituição sólida. Mas incorporando as contribuições da historiografia recente, eles avançaram ao demonstrar como, em solo americano, foram os escravizados-no caso, os da ilha de Cuba-que fizeram da norma uma tradição e, por conseguinte, um direito.

Em paralelo, o colonialismo francês constituiu seu próprio regime no Caribe por meio das diferentes versões do Code Noir, que progressivamente restringiram tanto a alforria e os direitos das comunidades negras livres. À época da ocupação da Louisiana, a experiência e os precedentes normativos serviram à constituição do regime mais excludente do Império francês, mas que ainda assim não cerceou em absoluto a liberdade e o direito de negros livres, especialmente em Nova Orleans. A Virgínia, por sua vez não contou com precedentes legais ou experiências coloniais prévias. Sem incorporar os precedentes de Barbados e da Carolina do Sul, a colônia inglesa se converteu em uma espécie de laboratório, onde as diferenças raciais não estavam pré-determinadas jurídica ou socialmente. Invertendo mais uma vez as premissas de Tannenbaum, Gross e de la Fuente desvelam uma Virgínia relativamente aberta à prática da alforria e à formação de comunidades de negros livres no início do século XVII.

Privilegiando as fontes jurídicas, com destaque para as ações de liberdade, os autores esbanjam rigor metodológico sem comprometer a fluidez da narrativa de pessoas escravizadas que recorriam à justiça. Embora esse procedimento fosse comum nas três regiões no século XVII, ela se manteve constante em Cuba, enquanto rareou na Virgínia e na Louisiana no século XVIII, onde também aumentaram as restrições aos casamentos inter-raciais. De acordo com Gross e de la Fuente, essa progressiva distinção na trajetória das sociedades escravistas em questão não foi o resultado da pretensa benevolência ibérica, mas de razões econômicas, demográficas e de gênero. Eram principalmente as mulheres que conquistavam a alforria, predominantemente de forma onerosa, e consequentemente serviam à reprodução das comunidades negras livres. Os franceses precocemente haviam fechado o cerco às manumissões, embora incapazes de pôr fim à presença de negros livres em Nova Orleans. Enquanto isso, a Virgínia transitou gradualmente de uma sociedade desregulada para a mais restritiva das três, especialmente após a Rebelião de Bacon, em 1676.

Recuperando a interpretação de Edmund Morgan, segundo o qual as restrições visavam à solidariedade branca contra a aliança entre servos brancos, indígenas e negros, os autores acrescentam argumentos econômicos e políticos. A conversão da Virgínia em uma sociedade escravista começara antes mesmo da revolta, por conta do barateamento do preço de africanos em relação ao custo da servidão. Fortalecida, a elite virginiana conseguiu a um só tempo restringir as alforrias e solidificar a solidariedade branca na colônia, diferentemente de seus pares de Louisiana e de Cuba, que foram incapazes de abolir um precedente jurídico estabelecido. A consequência foi a formação de comunidades negras livres e miscigenadas de diferentes tamanhos nas três regiões, e não favorecidas pelas elites, mas maiores ou menores de acordo com sua capacidade de resistir aos esforços para evitá-las. No final do segundo capítulo, Gross e de la Fuente retomam sua hipótese, insistindo que as elites de Cuba, Virgínia e Louisiana tentaram igualar a raça negra à escravidão, pois enxergavam nos negros livres uma ameaça à ordem. As diferenças, contudo, não decorreram do precedente legal, mas das diferentes realidades sociais e demográficas que permitiram o maior sucesso na Virgínia e na Louisiana, e o menor em Cuba.[5]

Tema do terceiro capítulo, a Era das Revoluções consistiu no período de maior aproximação entre as três regiões, onde tanto as alforrias quanto as comunidades negras livres cresceram. Ao mesmo tempo, a escravidão avançou nos territórios, respondendo aos estímulos do mercado mundial. Em Cuba e na Louisiana, o paradoxo era apenas aparente, pois a alforria era uma tradição jurídica e socialmente vinculada ao cativeiro. Já na Virgínia a libertação de escravizados se associou ao ideário da independência. Enquanto as comunidades negras livres de Havana e de Nova Orleans eram fruto do Antigo Regime, a de Richmond respirava os ares da revolução. Consequentemente, as elites virginianas reagiram ao horizonte que se abria, seguidos por seus pares do Vale do Mississippi, recentemente integrados aos Estados Unidos e movidos pelos interesses açucareiros e algodoeiros. Entre 1806 e 1807, a promulgação do Black Code da Louisiana e de uma série de leis na Virgínia restringiram a alforria e os direitos dos negros livres, dando o tom de um regime racial que chegaria à maturidade em meados do século XIX, apartando em definitivo o modelo estadunidense do cubano.

O movimento esboçado nos Estados Unidos se agravou entre as décadas de 1830 e de 1860, das quais tratam os capítulos finais do livro. Neles, Gross e de la Fuente esboçam uma guinada metodológica, organizando-os a partir de eixos temáticos, em vez de compararem pormenorizadamente as ações de liberdade em cada um dos espaços. Nas páginas que seguem, os autores descrevem o recrudescimento das forças e discursos escravistas nos Estados Unidos, como reação ao avanço do abolicionismo e de revoltas como a de Nat Turner. A elite cubana enfrentou seus próprios inimigos, pressionada pela campanha da Inglaterra contra o tráfico de africanos e ameaçada frontalmente por um ciclo de resistência dos escravizados, que se estendeu da revolta de Aponte, em 1812, à de la Escalera, em 1844. As três elites compartilharam do temor de que se formassem alianças entre negros livres e escravizados, como ensaiado mais propriamente em Cuba. Por meio de leis restritivas à alforria, além de políticas de remoção das populações negras livres, para fora dos estados ou do país, as elites da Virgínia e da Louisiana deram passos largos no sentido da construção de um regime racial pleno, em que a negritude fosse sinônimo não apenas de degradação, mas do cativeiro. De acordo com os autores, houve esforços similares em Cuba, assim como ataques às comunidades negras livres, mas estes não foram sistêmicos ou capazes de cindir as mesmas linhas raciais dos Estados Unidos.

Na década de 1850, Cuba, Virgínia e Louisiana eram sociedades escravistas maduras, nas quais os negros eram tidos como social e legalmente inferiores. No entanto, o processo de destituição de direitos foi muito além nos Estados Unidos, dando forma a um regime racial particular, que destoava daqueles desenvolvidos na América Latina. Retomando o debate com Tannenbaum na conclusão do livro, Gross e de la Fuente, arrolaram as variáveis que incidiram sobre a diferenciação dos regimes nos três territórios. As tradições legais teriam tido o seu peso, embora não nos termos propostos em Slave and Citizen. Os ibéricos teriam sido pioneiros na criação de legislações raciais, mas o reconhecimento jurídico da alforria cindiu a brecha por onde mulheres e homens escravizados encontraram seus tortuosos caminhos para a liberdade. A agência dessas pessoas e a mobilização do direito “de baixo para cima”, portanto, teria cumprido um papel central, tão ou mais importante que o precedente normativo. Consequentemente, os negros livres de Cuba fizeram da tradição um direito e de suas comunidades uma realidade incontornável para a elite da ilha.

Nesse sentido, o fator determinante na formação dos diferentes regimes raciais, segundo os autores, foi o tamanho das comunidades negras livres, que pressionavam pelo reconhecimento de direitos e dificultavam o cerceamento das alforrias. Um segundo ponto levantado pelos autores foram os diferentes regimes políticos. A constituição de uma democracia liberal nos Estados Unidos entrelaçou os princípios da liberdade, da igualdade e da cidadania, tendo por contrapartida os esforços reacionários que negaram seu acesso à população negra. Enquanto a democracia branca se consolidava ao Norte, Cuba preservou sua condição colonial, assim como as hierarquias políticas locais. A liberdade de uma parcela minoritária de negros respondia antes a uma tradição do Antigo Regime do que à extensão da cidadania. Não havia necessidade de uma ideologia supremacista racial onde sequer vigia o pressuposto da igualdade.

Na conclusão, Gross e de la Fuente reforçam o postulado de abertura, segundo o qual as elites de Cuba, da Virgínia, da Louisiana buscaram constituir a dicotomia perfeita entre raça e escravidão. Frente à resistência das comunidades negras livres, nenhuma delas obteve o êxito pleno, mas as estadunidenses foram mais bem sucedidas. Não há dúvidas de que na Virgínia, na Louisiana e em grande parte do sul dos Estados Unidos, prevaleceram esforços nesse sentido. Mas a despeito de discursos e medidas legais apresentados pelos autores, não se depreende da narrativa e das fontes que a elite cubana tenha se dedicado à questão com o mesmo afinco. Em mais de uma passagem, Gross de la Fuente relativizam seu próprio enunciado, reconhecendo que as autoridades de Cuba preferiram não se contrapor à tradição legal e aos direitos de comunidades estabelecidas. Seguindo os passos dos próprios autores, é possível levar a questão além.

Se como dizem Gross e de la Fuente, os ibéricos foram pioneiros da constituição de regimes raciais legalizados, eles também foram os primeiros a conhecer os efeitos da alforria na escravidão negra nas Américas. A formação de comunidades negras livres não foi resultado de um projeto, mas das condições demográficas e da ação dos próprios escravizados. Por conseguinte, os ibéricos foram também os primeiros a usufruir desse arranjo social e racial que, na maior parte do tempo, contribuiu para a preservação do cativeiro. A proximidade entre negros livres e escravizados era um risco real, mas a experiência histórica revela que na maior parte das vezes, a aliança entre os livres de diferentes cores prevaleceu sobre a solidariedade racial, ainda mais em sociedades marcadas por um alto grau de miscigenação. O sucesso das elites estadunidenses em cindir as raças também conteve em si a chave de seu fracasso, reforçando a identidade e a solidariedade negra, que se voltaram contra a supremacia branca durante a Guerra Civil e tantas vezes após a abolição. Em contrapartida, o suposto fracasso da elite cubana, nos termos dos autores, conteve o segredo de seu sucesso. Afinal, o escravismo experimentado pelos ibéricos não foi apenas pioneiro nas Américas, mas o mais longevo, tendo perdurado em Cuba e no Brasil até o último quartel do século XIX. Não à toa, as elites desses países tantas vezes se valeram dos Estados Unidos como contraponto, para preservar suas próprias hierarquias sob o mito das “democracias raciais”.[6]

São os próprios autores que fornecem os dados e argumentos para esse breve contraponto. Em mais de uma passagem, eles descrevem a alforria como instituição escravista em Cuba, assim como reconhecem a hesitação das elites em cerceá-la. Ao enunciarem na introdução e na conclusão que as três elites escravistas compartilharam de um mesmo horizonte racial, Gross e de la Fuente miraram dois alvos. A crítica se voltou tanto às elites do passado, quanto aos discursos mais recentes que, na política e na historiografia, ainda se valem da escravidão e do racismo explícito nos Estados Unidos como um contraexemplo, a fim de sustentar a suposta benevolência do cativeiro e a pretensa harmonia das relações raciais na América Latina. A posição dos autores no debate público é mais do que bem-vinda, e contribui para a desmistificação do tema. De todo modo, o próprio livro revela como Cuba antecedeu e sucedeu o cativeiro na América do Norte, e como sua elite constituiu o seu próprio regime racial. Sem cindir a ilha entre o branco e o negro, ela preservou por mais tempo a escravidão valendo-se de um racismo velado, tão eficaz e talvez mais perverso que o estadunidense.

Nas derradeiras páginas do livro, Gross e de la Fuente alçam voo sobre os anos que se seguiram à abolição, contrastando os Black Codes e as Leis Jim Crow no Sul dos Estados Unidos com o relativo reconhecimento dos direitos dos negros em Cuba. Em seus termos, a transição da escravidão à cidadania resultou das lutas políticas dos negros de cada região. Nas entrelinhas, os historiadores convidam seus pares a desbravar o campo das relações raciais nas sociedades do pós-abolição, à luz de suas importantes contribuições. Trazendo mais uma vez Tannenbaum ao debate, Gross e de la Fuente concluem que o tecido de conexão entre o negro escravizado e o cidadão negro, no pós-abolição, não decorreu da relação entre “slave and citizen” mas de “black to black”. Como enunciado no título e na introdução, não teria sido o direito da escravidão, mas a mobilização do direito à liberdade pelos próprios sujeitos escravizados que selou o caminho para a construção, não só dos regimes, mas das identidades raciais. É possível questionar se o direito à liberdade existiria senão como contradição interna do direito da escravidão, em uma relação dialética. No entanto, foi por meio dessa inversão do prisma que Gross e de la Fuente miraram um velho debate sob um ângulo novo, trazendo à luz outros sujeitos e respostas.

Becoming Free, Becoming Black coroa os resultados de uma tradição historiográfica que trouxe à luz a complexidade da escravidão e das disputas sobre os sentidos da liberdade e da justiça nas Américas. Reivindicando os ganhos metodológicos e políticos da história “de baixo para cima”, e preservando no centro da narrativa os sujeitos escravizados e sua agência, Gross e de la Fuente deram um passo além. Instigados pelos debates postos no presente, ousaram revisitar os clássicos para oferecer respostas e questionamentos originais. Em tempos de crise das representações e de revisionismos históricos, Becoming Free, Becoming Black nos reabre uma janela ao passado, exibindo as raízes pérfidas de mazelas que ainda nos assolam. No entrepasso do caminhar de tantos homens e mulheres, os autores nos lembram das lutas pretéritas, e quiçá nos apontam possíveis caminhos para os embates que se anunciam no horizonte.

Notas

1. Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.

2. Marcelo Ferraro é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e estuda a relação entre direito, violência e escravidão no Vale do Paraíba e no Vale do Mississippi no longo século XIX.

3. Apenas para citar a principal referência dos autores, ver Rebecca J. Scott, Degrees of Freedom: Louisiana and Cuba After Slavery. Cambridge, MA, 2005; e mais recentemente Scott, R., & Hébrard, J. Freedom Papers: An Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012.

4. Frank Tannenbaum, Slave and Citizen. Boston, 1992). Sobre as publicações anteriores de Gross e de la Fuente, ver De la Fuente, Alejandro, & Gross, Ariela. (2010). Comparative Studies of Law, Slavery, and Race in the Americas. Annual Review of Law and Social Science, 6(1), 469-485. Gross, Ariela, & De la Fuente, Alejandro. (2013). Slaves, free blacks, and race in the legal regimes of Cuba, Louisiana, and Virginia: A comparison. North Carolina Law Review, 91(5), 1699. De la Fuente, A. (2010). From Slaves to Citizens? Tannenbaum and the Debates on Slavery, Emancipation, and Race Relations in Latin America. International Labor and Working Class History, 77(1), 154-173. De la Fuente, A. (2004). Slave Law and Claims-Making in Cuba: The Tannenbaum Debate Revisited. Law and History Review, 22(2), 339-369.

5. Morgan, Edmund. American slavery, American freedom: The ordeal of colonial Virginia. New York: W.W. Norton &, 2003.

6. A título de exemplo, ver os discursos de representantes de Cuba e do Brasil sobre a questão dos negros livres, assim como suas divergências, em Berbel, Marcia., Marquese, Rafael, & Parron, Tamis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Editora Hucitec: FAPESP, 2010. Sobre o racismo em Cuba no século XX, é o próprio Alejandro de la Fuente que sustenta a interpretação aqui esboçada. Ver Fuente, Alejandro de la. A Nation for All: Envisioning Cuba. The University of North Carolina Press, 2011.

Referências

DE LA FUENTE, A. (2010). From Slaves to Citizens? Tannenbaum and the Debates on Slavery, Emancipation, and Race Relations in Latin America. International Labor and Working Class History, 77(1), 154-173.

DE LA FUENTE, A. (2004). Slave Law and Claims-Making in Cuba: The Tannenbaum Debate Revisited. Law and History Review, 22(2), 339-369

DE LA FUENTE, Alejandro, & GROSS, Ariela. (2010). Comparative Studies of Law, Slavery, and Race in the Americas. Annual Review of Law and Social Science, 6(1), 469-485.

GROSS, Ariela, & DE LA FUENTE, Alejandro. (2013). Slaves, free blacks, and race in the legal regimes of Cuba, Louisiana, and Virginia: A comparison. North Carolina Law Review, 91(5), 1699.

SCOTT, Rebecca. Degrees of Freedom: Louisiana and Cuba After Slavery. Cambridge, MA, 2005;

SCOTT, R., & HÉBRARD, J. Freedom Papers: An Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012.

TANNENBAUM, Frank. Slave and Citizen. Boston, 1992).

Marcelo Rosanova Ferraro – Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil. Marcelo Ferraro é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e estuda a relação entre direito, violência e escravidão no Vale do Paraíba e no Vale do Mississippi no longo século XIX.


DE LA FUENTE, Alejandro; GROSS, Ariela J. Becoming Free, Becoming Black: Race, Freedom, and Law in Cuba, Virginia and Louisiana. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. Resenha de: FERRARO, Marcelo Rosanova. O direito à liberdade e a dialética das raças nas Américas. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

Migrações: identidades, culturas e trajetórias / Aedos / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 26
Migrações | Imagem: Fundação FHC |

Há pouco mais de um ano, nossos editores finalizavam o volume onze, número vinte e cinco, da Revista Aedos, já sob as recomendações sanitárias de isolamento social, fundamentais para o enfrentamento da pandemia de Covid-19. Este é o volume doze, vigésimo sétimo número desse periódico, e a terceira publicação finalizada, integralmente, sob tais circunstâncias. A crise sanitária persiste, acompanhada por uma dolorosa paisagem de mortes e destruição econômica e social. No Brasil, passado um ano dos primeiros alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a disseminação em massa do novo coronavírus, ainda há uma assombrosa carência de políticas efetivas e coordenadas pelo governo federal para mitigar esses efeitos – o que nos lançou tragicamente ao epicentro da crise mundial nas últimas semanas. Enquanto estas palavras são escritas, o país beira as três mil mortes diárias, sem contar subnotificações, de um total de mais de trezentas mil vidas perdidas. Os profissionais da saúde encontram-se exaustos; por toda parte, faltam leitos e medicamentos essenciais para o tratamento dos pacientes.

Embora o vírus não descrimine ninguém, demonstrando como a comunidade humana é igualmente frágil, a desigualdade, segundo Judith Butler (2020, p. 60-62), que inclui “o nacionalismo, a supremacia branca, a violência contra as mulheres, as pessoas queer e trans, e a exploração capitalista”, atribui-lhe esse componente de modo cada vez mais “radical”. Ora, pois não seria ao menos emblemático que a primeira vítima notificada no Brasil tenha sido uma empregada doméstica de 63 anos? E, já que falamos disso, como não recordar, conforme Achille Mbembe (2020, p. 4), de “todas as epidemias imagináveis e inimagináveis que, durante séculos, devastaram povos sem nome em terras remotas”? Como esquecer das guerras e ocupações predatórias que mutilam e lançam milhares de pessoas a uma vida errante?1 Ou ainda, que tem a saúde e a expectativa de vida comprometidas pela “ação de empresas poluidoras e destruidoras da biodiversidade.” A propósito, na medida em que o vírus quebrava as barreiras do espaço e dos alvéolos pulmonares, as florestas brasileiras (os pulmões da Terra), juntamente com a sua fauna, arderam em chamas, tal qual qualquer imagem arquetípica do juízo final. A fumaça liberada daquele “inferno” transformou dia em noite.

Ainda que muitas vezes queiramos nos livrar do fato, é no mínimo lamentável tamanha destruição para “olharmos para a história humana como parte da história da vida nesse planeta”, como tanto insistiu Dipesh Chakrabarty (2013, p. 15). Nessa perspectiva, nos voltamos ao “corpo”, com seus medos, desejos e sensibilidades – e, agora, isolado; nos voltamos à experiência do “frágil e minúsculo corpo humano”, a que Walter Benjamin (1987, p. 114) tanto se esforçou para evidenciar no século passado. Diante de tamanha catástrofe, esperamos que os trabalhos reunidos em mais uma edição “pandêmica”, com um dossiê temático dedicado às migrações, identidades, culturas e trajetórias, possa talvez servir como um “sopro”. Não como aquele que vem da “tempestade do paraíso”, impedindo o “anjo da história” de Benjamin (1987, p. 226) de “acordar os mortos e juntar os fragmentos”; mas como o “(co)movedor”, no “jogo de palavras” de Alistair Thomson (2002, p. 359), toque da cítara dos aedos

Notas

1. Com a pandemia, segundo o último relatório de Tendências Globais (2020) do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), “o número de pedidos de asilo registrados na União Europeia em março de 2020 caiu 43% em comparação com fevereiro, à medida que os sistemas de asilo diminuíram ou pararam com países fechando fronteiras”.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1.

BUTLER, Judith. El capitalismo tiene sus limites. In: AGAMBEN, Giorgio et. al. Sopa de Wuhan. Pensamiento contemporáneo en tiempos de Pandemias. [S.l.]: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da História: quatro teses. Sopro, São Paulo, n. 91, jul. 2013.

MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. N-1 Edições, São Paulo, 2020.

THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: História Oral e estudos de migração. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 341-364, 2002.

UNCHR. Global Trends. Forced Displacement in 2019. The UN Refugee Agency, Genebra, 18 jun. 2020

Lúcio Geller Junior – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). E-mail: [email protected]


GELLER JUNIOR, Lúcio. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março, 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Os arquivos na Cadeia de Produção do Conhecimento – Formação Profissional | Revista do Arquivo | 2021 (D)

Bilros 2

Como acontece a produção do conhecimento humano? Eis aí um dos enigmas que perpassa quase toda a história. A cada resposta esboçada, novos questionamentos se impõem. Afinal, a sociedade humana, sob todos os aspectos, está em permanente mutação, especialmente no cultural. Portanto, esse será sempre tema oportuno, sobre o qual haverá muito o que se refletir e se escrever.

Esperemos que esta nossa edição nº 12 se apresente como mais um grão no debate sobre os saberes humanos.

INTRODUÇÃO AO DOSSIÊ

“…se a Arquivologia é muito antiga como prática, é recente como saber”. Esta afirmação é do texto introdutório de Mariana Lousada, que nos oferece uma apresentação sumular do desenvolvimento dos conceitos e conhecimentos da arquivologia. Trata-se de um bom aperitivo para esta edição que nos propõe reflexão sobre a produção do conhecimento na arquivologia.

A professora doutora Marcia Pazin Vitoriano foi a nossa entrevistada para tratar do tema do dossiê. Feliz escolha da nossa editoria, Pazin tem o perfil perfeito como atuante docente do curso de arquivologia, com larga experiência em organização de arquivos e produção intelectual sobre o tema do dossiê. Não bastasse tudo isso, a nossa entrevistada é colaboradora de longas datas do Arquivo Público do Estado de São Paulo e colaboradora e membro do Conselho Editorial da Revista do Arquivo. De forma objetiva e substancial, essa querida professora aborda temas candentes e polêmicos sobre o assunto.

ARTIGOS DO DOSSIÊ TEMÁTICO

Quatro são os artigos que apresentam bem distintas abordagens sobre o tema do dossiê temático, e se somam a outros dois que tratam de temas que não dialogam diretamente com o dossiê proposto, mas abrilhantam esta edição, colaborando com excelentes reflexões que expandem o nosso conhecimento sobre os arquivos e suas fontes de informação.

Atentem os leitores desta edição para a dimensão das questões levantadas pelo artigo assinado por Beatriz Carvalho Betancourt, Eliezer Pires da Silva e Priscila Ribeiro Gomes: “a formação em arquivologia contempla as atribuições profissionais? O que a regulamentação profissional e o mundo do trabalho demandam da formação? Como a análise entre currículo, legislação e concursos públicos contribui para a harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro?”. Na busca de respostas a questões desse quilate os autores do artigo intitulado Recomendações para harmonização entre formação, profissão e trabalho no campo arquivístico brasileiro atingem o âmago do proposto pela chamada de artigos, apresentando excelente reflexão teórica fundamentada em “pesquisa documental e bibliográfica em arquivologia, educação, sociologia e história”.

A classificação é atividade essencial e central dos arquivos e, portanto, um dos conceitos articuladores da área da arquivologia, cujos “desdobramentos teóricos e metodológicos foram responsáveis por alçar a Arquivologia ao posto de disciplina científica”, conforme justificam as autoras do artigo intitulado A Função Classificação na Formação do Arquivista: Uma Análise Histórica dos Modelos de Ensino dos Cursos de Arquivologia do Sudeste do Brasil, assinado por Juliana de Mesquita Pazos e Clarissa Moreira dos Santos Schmidt. Fruto de investigação empírica, Pazos & Schimidt tecem ótima reflexão teórica sobre tema crucial da área, com a originalidade de pensá-lo sob ótica do ensino no nível superior, buscando “identificar os modelos de ensino dos conteúdos fundamentais relativos à função classificação”.

A Revista do Arquivo tem o prazer de anunciar a publicação de artigo que tem originalidade como ponto forte e oferecer ao público a primeira reflexão descritiva sobre aspectos da elaboração daquele que é o “primeiro curso técnico em arquivos do Brasil”, fruto de “uma parceria entre Arquivo Público do Estado de São Paulo e Centro Paula Souza”, conforme consta no título do artigo de autoria de Antonio Gouveia de Sousa, Fernanda Mello Demai, Noemi Andreza da Penha, Aline Santos Barbosa e Flávio Ricci Arantes. Eis aí um bom motivo para se multiplicar a reflexão sobre esse importante tema, que também aparece na citada entrevista de Márcia Pazin.

Outra abordagem inusitada é publicada por Ismaelly Batista dos Santos Silva, que nos oferece a oportunidade de reflexão sobre um assunto ausente como objeto de pesquisa, que aparece explicitado no título Consultoria arquivística: da contextualização ao planejamento do consultor. Ismaelly Silva ousa afirmar que seu objetivo é “estruturar ideias passíveis de serem convertidas em conhecimento explícito”, almejando, assim, “compor referência literária para aprendizagem de potenciais consultores na área de Arquivologia”. Confiram e avaliem os leitores.

AUTORES CONVIDADOS

Desta vez, publicamos três artigos na subseção autores convidados, com temas bem distintos, mas idênticos em qualidade e relevância.

A edição nº 12 da Revista do Arquivo tem a honra de publicar o artigo cujo título já divulga o trabalho de mais de uma década sobre O processo de atualização do Plano de Classificação e da Tabela de Temporalidade de Documentos da Universidade de São Paulo (USP): desafios e soluções heterodoxas, subscrito por Ana Silvia Pires, Johanna Wilhelmina Smit, Lílian Miranda Bezerra e Marli Marques de Souza de Vargas.

Utilizando-se de narrativa descritiva de um caso, o artigo disserta sobre um processo de trabalho específico e não expõe grandes reflexões teóricas. No entanto, trata-se de um texto original, de extrema relevância, capaz de gerar pulsantes debates no meio arquivístico e, acima de tudo, que demonstra o processo de aprendizagem, de acúmulo e de produção do conhecimento exemplares a partir do “chão” de arquivos, tendo como objeto instrumentos de gestão, que são uma das pedras de toque da arquivologia: o plano de classificação e tabela de temporalidade de documentos.

Pesquisadora do teatro brasileiro, pela segunda vez publicamos artigo de Elizabeth R. Azevedo1, agora sob o título A inserção do patrimônio artístico na estrutura universitária: o caso do centro de documentação teatral (USP). O artigo trata da criação e da trajetória do Centro de Documentação Teatral na ECA/USP, reflete sobre as escolhas teórico-metodológicas para sua constituição, sua relevância para a comunidade artística, sua importância para a preservação do patrimônio histórico e cultural, bem como sua inserção na estrutura da universidade.

Não são raros os exemplos de cooperação entre instâncias universitárias e instituições executivas do poder público com finalidade de compartilhamento de benefícios mútuos para usufruto do manancial informativo cultural dos arquivos. Mirem-se no Acordo de Cooperação firmado entre a Universidade de São Paulo, por meio da área de Filologia e Língua Portuguesa, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e a Justiça Federal de Primeiro Grau de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. O artigo sob o título Da arquivística à produção linguística: estudo interdisciplinar de um Summario de Culpa de 1892 é um exercício multidisciplinar de exploração conjunta de uma instigante peça de processo judicial do final do século XIX, assinado por Phablo Roberto M. Fachin, Vanessa M. do Monte, Sílvio de Almeida Toledo Neto, Ana Carolina E. P. do Amaral, Ana Laura M. Cinto, Carla A. di Lorenzo Midões de Mello, Heloisa Ribeiro Bastos e Luisa Biella Caetano. Mais uma boa oportunidade para rememorarmos as profícuas interfaces entre a linguística, história e arquivos, conforme já publicamos nas edições nº 1 e nº 4 deste periódico. Vale conferir.

RESENHA

A Revisa do Arquivo realizou esforço suplementar em decorrência do falecimento de Vicenta Cortés Alonso em 4 de janeiro passado e propôs a elaboração de resenha que abordasse a obra, parte da obra ou a vida intelectual dessa arquivista que nos lega produção vasta e fecunda. Tivemos a felicidade de receber a contribuição de Rafaela Basso, Diretora de Gestão e Preservação de Documentos e Informação no Arquivo Central da Unicamp, que engrandece esta edição com sua resenha intitulada Vicenta Cortés Alonso, uma vida dedicada à luta pelos arquivos. Com ela, fica aqui registrada a nossa singela homenagem.

INTÉRPRETES DE ACERVO

Essa seção traz relatos fascinantes sobre pesquisas em arquivos, com ótimos depoimentos de pesquisadoras com suas distintas experiências, apresentando objetos de estudos muito interessantes e dicas para quem se propõe a buscar informações nos labirínticos arquivos. Façam companhia às brilhantes historiadoras Marisa Midori, Marília Cánovas e Yaracê Morena.

PRATA DA CASA

Monitoria e fiscalização: funções inusitadas em instituição arquivística. É o título da matéria do Prata. O que faz um Núcleo com essas aparentes competências expressas na sua nomenclatura? Como assim, “monitoria”? Como assim “fiscalização”? Como atua esse setor? Ele pratica, de fato, o que propõe sua nomenclatura. O que se fiscaliza? Têm os arquivos públicos essa competência?

Leia a entrevista com o diretor da área, Benedito Vanelli, e tire suas dúvidas.

VITRINE

Nesta edição, um belo depoimento de uma pesquisadora que revela com paixão as suas experiências e descobertas nos arquivos sobre A indústria oleira da Vila de Piratininga. Ao final do texto de Edileine Carvalho Vieira fica aquela sensação de “quero mais”.

O segundo texto é de Isaura Bonavita que nos toca com sua refinada crônica memorialística sob o título Lembranças miúdas.

Conteúdo de qualidade.

Atentem. Comentem. Critiquem!


Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 12, abr. de 2021. Acessar publicação original [DR]

O protagonismo da Mulher Negra na Escrita da História das Áfricas e Améfricas Ladinas / Revista Transversos / 2021

“Nwanyi buaku” (a mulher é riqueza)

A mulher é riqueza, diz o provérbio Igbo. A maior riqueza, pois é a mulher que dá a vida, que planta os alimentos, que nutre a sociedade. A “unidade matricêntrica” é um traço que une todas as sociedades africanas, um legado civilizatório deste continente, concluiu Amadiume ao examinar os papéis sociais desempenhados pelas mulheres Nnobi, subgrupo Igbo. No dia-a-dia das comunidades, são as mulheres que garantem a existência da população e isso é amplamente reconhecido e venerado, como indica o ditado acima.

A grande importância que as mulheres africanas tiveram desde a Antiguidade é alvo de estudos há décadas. Desde a década de 1970, Cheikh Anta Diop apontou evidências de que as sociedades africanas pré-coloniais foram governadas por mulheres, o que ele enxergou ser o traço que unia toda a África Negra. Diop nomeou “matriarcado africano” o modelo caracterizado pela preponderância da agricultura, em que a mulher ocupa o centro enquanto detentora dos segredos da natureza e dos ritos de fertilização da terra. Mas o polímata senegalês chamou atenção que o matriarcado não pode ser entendido como o oposto do patriarcado branco Ocidental, o qual estabelece uma dicotomia entre feminino e masculino, oprimindo as mulheres e todos os valores/comportamentos relacionados ao feminino em benefício de um padrão masculinista-opressor da diversidade da existência, da vida. Não há essa matriz de poder dicotômica no matriarcado africano e sim uma complementariedade cosmogônica entre masculino e feminino, com efeitos diretos nas organizações sócio-hitóricas.

A História da África é repleta de exemplos de mulheres que assumiram a liderança política, militar, espiritual de suas sociedades. São elas as mais aptas a se comunicarem com as forças da natureza, a mandarem as chuvas descerem dos céus, a transmitirem conselhos dos antepassados. A espiritualidade africana, de forma geral, ancora-se em divindades femininas que trazem a fertilidade, a prosperidade, o equilíbrio: Auset, Mut, Maat (em Kemet, Egito Antigo), Oxum (Yorubá), Idemili (Igbo). Estas concepções cosmogônicas dão grande peso ao feminino, diferente das religiões monoteístas que exaltam UM Deus único, pai criador, associado ao masculino.

Assim, nas sociedades africanas pré-coloniais, as mulheres exerciam papéis sociais relevantes, não apenas nas altas esferas do poder político e espiritual, mas também na base, na estrutura de cada família, clã ou linhagem, eram as mulheres as responsáveis por transmitir os valores, as regras morais, princípios estéticos, técnicas de artesanatos como cerâmica, tecelagem, pinturas corporais, tranças etc.

Essa complementariedade entre masculino e feminino possibilitou diferentes atuações, organizações e expressões de poder relacionadas às mulheres. Na verdade, esse conceito de “mulher” enquanto determinismo biológico não pertence às sociedades africanas, como vem argumentando Oyèwùmí. O que quer dizer que a compreensão física do corpo pela modernidade Ocidental, seu dimorfismo sexual e seu padrão cis-heteronormativo, que formam “o que se entende por sexo biológico é socialmente construído” (LUGONES, 2008: 84). Inclusive a “ideologia de gênero” para as sociedades africanas tradicionais é bem mais fluída do que nas concepções ocidentais.

Na sociedade indígena, o princípio do sexo duplo subjacente à organização social foi arbitrado por um sistema flexível de gênero na cultura tradicional. O fato de o sexo biológico nem sempre corresponder ao gênero ideológico significava que as mulheres podiam desempenhar papéis geralmente monopolizados pelos homens ou serem classificados como homens em termos de poder e autoridade sobre os outros. Elas não eram rigidamente masculinizadas ou feminizadas, o colapso das regras de gênero não era estigmatizado. (AMADIUME: 1987, p. 8)

Contudo, séculos de escravidão, colonialismos, imperialismos transformaram os lugares sociais ocupados pelas mulheres africanas e suas descendentes em diáspora. Vamos observar na contemporaneidade: quais espaços e funções as mulheres negras ocupam nas sociedades atuais? Uma breve análise de dados sobre escolaridade, remuneração e violência doméstica, nos indica que, atualmente, as mulheres africanas e afro-diaspóricas estão nas bases das pirâmides sociais. Ou seja, com a imposição da civilização moderna-Ocidental como única possibilidade de organização social legítima, sua matriz de opressão (COLLINS, 2019) colonial, patriarcal, racista e cis-heterosexista, deixaram como legado a interseccionalidade de opressões que posicionou e continua posicionando as mulheres negras na base da subalternidade moderna-colonial.

A imagem da capa traz as mulheres Sam-sam, grupo de mulheres do vilarejo de Kabadio, Casamance, Senegal. Sam-sam reúne mulheres que já perderam pelo menos um filho – por aborto natural, no parto ou por doença- que performam ritos para garantir a fertilidade do grupo, a cura uterina e a cura de forma coletiva; configurando força, vitalidade e capacidade reprodutiva. Ao centro da imagem está Khadi Diabang, liderança que conduzia o banho de ervas Tiossane – que restitui o poder criador dos úteros.[1] Ela fez sua passagem em 2014. Ao lado esquerdo da imagem há uma criança, uma alusão à perda dos filhos. Esta fotografia é de autoria de Daniel Leite, que gentilmente nos cedeu para este dossiê, e integra o projeto humanitário em PermaKabadio. Daniel Leite reverte todos os lucros resultantes da venda de fotografias para a realização de projetos de permacultura no vilarejo, visando gerar renda para a comunidade e evitar a migração dos jovens.[2]

Este dossiê é mais uma contribuição ao movimento de de(s)colonização do saber ao visibilizar e legitimar, academicamente, as mulheres negras na História. Assim, assumimos o compromisso ético-político e acadêmico-científico de transgredir a tradicional monocultura do saber moderno-ocidental (SANTOS, 2002), apresentando diferentes protagonismos de mulheres negras da História da África e da Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988).

Tathiana Cassiano, em História das áfricas e literatura: as mulheres igbos na escrita literária de Flora Nwapa, problematiza os papéis sociais das mulheres Igbo, um dos três grupos mais expressivos numericamente na Nigéria, por meio da escrita literária de Flora Nwapa. Desconhecida no Brasil devido ao epistemicídio cristalizado em nossa produção de conhecimento, Flora Nwapa é reconhecida internacionalmente como uma das pioneiras no reconhecimento literário das mulheres africanas. Neste artigo, Tathiana Cassiano analisa personagens de seu livro: Eufuru, nos apresentando a Nigéria em meados do século XX não pela tradicional escrita da história, mas por outras relações de espaço-tempo-ser provenientes da cosmogonia Igbo, nas quais os colonialismos, as ancestralidades, os laços de linhagem, a educação e as relações sociais são analisados a partir do pensamento pós-colonial e decolonial, com destaque para o protagonismo das mulheres igbos.

A senegalesa Fatim Samb em: A experiência ilusória e a existência difícil das mulheres, analisa o impacto da migração de homens e jovens para as mulheres do Senegal a partir do romance “Celles qui attendent”, de Fatou Diome. A autora utiliza fontes etnográficas, históricas e literárias para tecer reflexões sobre o problema da emigração na África Ocidental, trazendo as vozes das mulheres que sofrem com a angústia de ver seu marido ou filho, ou ambos, não retornarem para casa.

Thuila Ferreira em: Sujeitas da própria história: influência, organização e movimentos de mulheres africanas, analisa a inserção política das mulheres em algumas sociedades africanas subsaarianas entre 1940 e 1990, a partir de fontes produzidas pelas próprias mulheres africanas. Nudez, magia, e rebeliões mostram as formas de agir e resistir encontradas por essas protagonistas, as quais potencializaram verdadeiras transformações em suas sociedades.

Marilda de Santana Silva nos brinda com reflexões e análises acerca da cantora Elisete Cardoso, a qual completaria cem anos em julho de 2020, por meio de cinco de suas canções. A autora do artigo, que também é cantora, apresenta trajetórias de mulheres negras e suas escrevivências (EVARISTO, 2006) por meio da música, possibilitando o reconhecimento e conhecimento profissional, intelectual e artístico dessas mulheres.

Ao apresentar a história da Dr.ª Carolina Maria de Azevedo, Jonê Carla Baião mobiliza histórias familiares como centrais na ressignificação da mulher negra e pobre no Brasil. Sua tia, tia Calu, somente conhecida nos hospitais e universidades, posto ter recebido o título de Doutora Honoras Causis pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, construiu um legado ao afirmar que “Se eles fazem mil, temos que fazer mil e um”. Assim, a autora apresenta densa reflexão acerca da mulher intelectual preta no Brasil.

Solange Pereira Rocha, Valéria Gomes Costa, Joceneide Cunha Santos e Iraneide Soares Silva discutem a trajetória histórica de grandes mulheres do século XIX: Catharina Mina (Maranhão), Thereza de Jesus de Souza (Pernambuco), Luiza (Paraíba) e Rozarida Maria do Sacramento (Bahia) são apresentadas como exemplos de mulheres negras que foram muito bem-sucedidas, ainda que pese o contexto da escravidão. As autoras analisam estas experiências, refletindo sobre suas capacidades de elaborar estratégias de sobrevivência, suas redes de solidariedade horizontais e verticais no período oitocentista.

Em “O farol que ilumina caminhos da Revolução moçambicana”: a imagem de Josina Muthemba Machel como instrumento Político (1975-1986), Júlia Tainá Monticeli Rocha apresenta por meio de diferentes documentos a presença feminina no imaginário popular de Moçambique durante o governo de Samora Moisés Machel, primeiro presidente de Moçambique e dos significativos militantes que aturaram na Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) do período da luta anticolonial. Por meio de uma “política de memória” nos apresenta a presença feminina e de seu posicionamento político.

Ricardo Alexandre da Cruz traz a biografia de Eunice Prudente, a primeira professora da Faculdade de Direito da USP. Essa mulher de origem humilde enfrentou e resistiu a uma série de violências do entrecruzamento de opressões racistas e patriarcais da moderna-colonizada sociedade brasileira, conseguindo alcançar altas posições através de uma série de estratégias, analisadas pelo autor a partir dos conceitos proposto por Pierre Bourdieu.

Isadora Durgante Konzen, Karine de Souza Silva refletem sobre a participação das mulheres sul-africanas na luta contra o apartheid. As autoras apresentam uma análise de gênero das estruturas racistas e discutem o surgimento dos coletivos de mulheres e suas táticas de ativismo no processo de libertação nacional. Apresentam as características do “feminismo maternista” sul-africano e “maternidade combativa” como estratégia de luta.

Miléia Santos Almeida em “Mulheres negras sertanejas e suas relações afetivas sob a pena da lei” analisa processos criminais de defloramento, homicídio e lesões corporais protagonizados por mulheres pretas e pardas em Caetité, região do alto sertão da Bahia, nas primeiras décadas da República para refletir como essas experiências atravessam a existência feminina destoando-se dos padrões das classes dominantes.

Na seção “Experimentações”, Myriam Moise, em: Para uma nova genealogia da negritude, apresenta a participação das mulheres caribenhas na constituição do movimento: Negritude. Várias intelectuais da Martinica produziram escritos significativos, contudo seus nomes permanecem desconhecidos enquanto associamos automaticamente o movimento à Aimé Cessáire e Leopol Senghor. O texto traz o pensamento de Suzanne Roussi-Césaire e Paulette Nardal que refletiram sobre as questões da negritude na perspectiva de gênero, uma grande contribuição para se refletir sobre a invizibilização das mulheres nos diversos fóruns.

Na seção “Notas de Pesquisa” temos o texto Ocupando o terreno: revisitando “além dos significados de miranda: des/silenciando o ‘terreno demoníaco’ da mulher de calibã, Carole Boyce-Davies revisita o posfácio desta obra, publicada pela primeira vez em 1990, cujo texto em questão foi escrito por Sylvia Wynter. O livro figura como a primeira coletânea de textos voltados especificamente à pesquisas sobre escritoras afro-caribenhas. No artigo, a autora analisa o conceito de “terreno demoníaco” (demonic ground) do posfácio de Wynter, entendendo-o como uma ferramenta para pensar a presença/ausência da mulher negra e sua relação com a ontologia e episteme da modernidade-colonial; bem como as possibilidades de reconstrução de si por meio das outras formas de conhecer e ser abertas pelas práxis das mulheres que foram circunscritas no “terreno demoníaco”.

Agradecemos às p rofessoras Raissa Brescia dos Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Taciana Almeida Garrido de Resende (Instituto Federal de Minas Gerais) pela tradução destes dois últimos textos e professora Vanicléia Silva Santos pela mediação com as autoras, permitindo a melhor democratização do acesso ao pensamento destas duas intelectuais afro-caribenhas que são importantes referências internacionais.

Uma vez no centro deste dossiê esperamos que a mulher negra no mundo, de modo geral, e, particularmente no Brasil, ocupe os lugares ainda negados econômica, social e politicamente. Na relação entre passado e presente podemos perceber a força da mulher negra no desafio cotidiano de sobreviver, viver… Saberes antepassados, ainda presentes, contribuem no processo de laços de solidariedade percebidos em pequenos gestos, nas comunidades, nas favelas, onde elas são a maioria a chefiar famílias.

Sendo riqueza, como afirma o provérbio Igbo que inicia essa apresentação, a mulher negra se ressignificou e se ressignifica na construção de identidades e na manutenção de memórias e histórias. E, nesse processo, contribuiu e contribui na construção de diferentes sociedades, entrelaçando suas ancestralidades africanas, apropriadas e reinventadas nas diásporas do continente americano. Mulheres, mães, filhas, esposas, trabalhadoras suportaram e suportam ainda muitas violências contra seus corpos e subjetividades.

Herdaram ofícios múltiplos, mas não entre os que detêm status social ou econômico. E ainda assim, subverteram a ordem construída e imposta desde o período colonial, no caso brasileiro. Mulheres como Lélia Gonzalez, filha de indígena doméstica e ferroviário negro, se tornou professora e intelectual de referência na luta contra o racismo. Assim como ela, muitas outras mulheres… Refletir a relação entre as antepassadas africanas e afro-brasileiras ou afro-americanas, nos permite conhecer a origem de tal riqueza que compõe as potencialidades sócio-históricas das mulheres negras. Potencialidades de lutas, de re-existências, de movimento, de reinvenção da história das Áfricas e das Améfricas Ladinas!

Notas

1. O banho Tiossane é uma tradição das mulheres Mandinga com poderes de cura para os úteros, restituindo a capacidade reprodutiva feminina.
2. Conheça mais sobre o projeto no Instagram @permakabadio. Para contribuir, visitem a @galeria_danielleite. Todo o valor arrecadado com a venda de fotografias é enviado integralmente ao vilarejo Kabadio, Casamance, Senegal.

Referências

AMADIUME, Ifi. Reinventing Africa: matriachy, religion and culture. London: Zed Book, 1997

AMADIUME, Ifi. Male daughters, female husbands. London: Palgrave Macmillan, 1987.

BELLO, Thomson Temitope. The Image of God and Image of Women in Africa: African Feminist Liberation Theology. In: FALOLA, Toyin; FWATSHAK, S.U. Beyond Tradition: African Women and Cultural Spaces. Trenton: Africa World Press, 2011. Pp.70-72.

BEY, Aziza Braithwaite. The Role of Women in Kemet, Dogon, Mayan and Tsalagi Societies. Journal of Pedagogy, Pluralism, and Practice: Vol. 3: Iss. 3, Article 2. https://digitalcommons.lesley.edu/jppp/vol3/iss3/2

COLLINS, Patricia Hill. O pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.

COQUERY-VIDROVITCH, Catherine. African Women: a modern History. WestView Press, 1997.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, RJ, n. 92/93, 1988.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá, nº09, p. 73-101 2008.

MONGES, Miriam Ma’At-Ka-Re. “Reflections on the Role of Female Deities and Queens in Ancient Kemet.” Journal of Black Studies, vol. 23, no. 4, 1993, pp. 561–570. JSTOR, www.jstor.org/stable/2784386..

OYEWÙMÍ, Oyèrónké. The invention of Women: making an African Sense of Western Gender Discourses. London/ Minneapolis: university of Minnesota Press, 1997.

VAN SERTIMA, Ivan. Black Women in Antiquity. (Revised Edition) Boston: Transaction Press, 1984

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 63, 2002.

Editoras

Profª Drª Marina Vieira de Carvalho: Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduíche em Université Paris VII (Paris- Diderot), fomentado pela CAPES. Possui mestrado em História pelo PPGH / UERJ; Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil pela UFF; Licenciatura e Bacharelado em História pela UGF. É professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH/UFAC), coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/UFAC), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos das Diferenças Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ) e ao Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus. Atualmente desenvolve pesquisas sobre de(s)colonialidades, com destaque para os femininos de(s)coloniais.

Profª Drª Iamara da Silva Viana: Professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de História da PUC-Rio. Doutora em História Política UERJ com estágio na EHESS/Paris (2016); Mestre em História Social UERJ/FFP (2009); Bacharel e Licenciada em História UFRJ (2004). Professora Colaboradora do PPGHC/IH/UFRJ; Coordenadora da Pós em África e Cultura afrodescente PUC-Rio, Pólo Duque de Caxias; Coordenadora do Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC/PUC-Rio); Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA/PUC-Rio); Pesquisadora do Laboratório de Estudos de História Atlântica das Sociedades coloniais e pós-coloniais (LEAH/IH/UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre Escravidão no Brasil no século XIX e suas conexões Atlânticas, Caribe Francês, Corpos escravizados e pensamento médico, Ensino de História, Cultura Material, Patrimônio Cultural e Relações étnico raciais.


VIANA, Iamara da Silva; BRACKS, Mariana; CARVALHO, Marina Vieira de. O protagonismo da mulher negra na escrita da história das Áfricas e Améfricas Ladinas. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 21, p. 6-13, abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution | Julius S. Scott (R)

Copia de SCOTT The common wind
Julius Sherrard Scott / Foto: Scholars and Publics /

SCOTT The common windProfessor emérito do Departamento de Estudos Afro-Americanos e Africanos da University of Michigan, nos Estados Unidos, Julius Sherrard Scott III doutorou- -se em 1986 na Duke University, em Ann Arbor, com a tese intitulada The Common Wind: Currents of Afro-American Communication in the Era of the Haitian Revolution. Com uma ligeira mudança no subtítulo, a tese ganhou o formato de livro em 2018: The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Os mesmos cinco capítulos da tese compõem o livro, acrescido de um prefácio escrito por Marcus Rediker, [1] professor da University of Pittsburgh, já bem conhecido do leitor brasileiro, com quem o diálogo e a perspectiva teórica da história vista de baixo são evidentes.

É difícil entender o intervalo de mais de trinta anos entre a defesa da tese e a impressão do livro, sobretudo porque o conteúdo manteve-se praticamente inalterado, porque o assunto é relevante e a narrativa é bem construída. Desinteresse editorial, desejo do autor em rever sua obra ou espera por um momento oportuno para reavivar a lembrança coletiva de que o Haiti ainda existe, como o terremoto de 2010, talvez possam ser elencados como hipóteses possíveis para essa longa espera. A bibliografia sobre o Haiti e, de forma mais ampla, o Grande Caribe, como Scott aborda no livro, não é extensa em inglês e é praticamente inexistente em português. [2] Por isso, talvez o primeiro ponto a ser destacado nesta resenha seja a necessária iniciativa de traduzir esse livro no Brasil, sem esperar a passagem de outras três décadas para que os leitores possam acessar uma experiência tão próxima à história colonial e imperial do país e tão inspiradora para os estudos históricos sobre a formação cultural brasileira e a história marítima ainda pouco praticada por aqui.

Chama a atenção a profusão e diversidade de materiais de que Scott se valeu para a escrita de sua história da circulação de ideias revolucionárias no Caribe setecentista: manuscritos oficiais de agentes da Coroa em arquivos espanhóis e cubanos, o mesmo tipo de fontes para a administração britânica em Londres e nas Índias Ocidentais, documentos de fundos privados em coleções estadunidenses, baladas cantadas por marinheiros negros e brancos em circulação por aquelas águas, narrativas de viajantes, propaganda abolicionista e jornais editados na América do Norte, nas Antilhas, no Reino Unido e na França. Exceto por periódicos que circularam em Portau-Prince e Cap Français, as fontes haitianas são praticamente ausentes do estudo, sinal de seu desaparecimento ou inacessibilidade ao longo da conturbada história humana e natural do país desde o século XVIII. “Pandora’s Box: The Masterless Caribbean at The End of the 18th Century”, o capítulo inicial, anuncia o contexto da ação revolucionária no Caribe. A perspectiva não é exatamente comparativa, mas leva em conta a diversidade de experiências coloniais e a grande expansão econômica baseada no boom da produção de açúcar na região. Aqui são consideradas também as formas de dominação oriundas de diferentes autoridades europeias a partir da vitória contra os piratas, bucaneiros e renegados que ocupavam aquelas ilhas e se organizavam por meio de regras próprias. Foi ao longo do século XVIII que a presença de escravizados africanos passou a se dar no Caribe de forma massiva – o que, se veio a transformar substantivamente a região, ao mesmo tempo manteve a imagem daquelas ilhas como lugares atrativos para desertores, escravos fugidos e toda a multidão de gente espoliada que pretendia viver sem obedecer às ordens de senhores.

O capítulo 2, “Negroes in Foreign Bottoms’: Sailors, Slaves, and Communication”, remete à visão de mundo de escravizados e seus senhores. Ambos reconheciam o potencial transformador do conhecimento das técnicas e formas de navegação. Tratava-se de algo perigoso e que criava homens insolentes, na visão senhorial, e que tendia para a construção de uma igualdade, no entendimento dos escravos. Olaudah Equiano, escravo marinheiro em meados do século XVIII e autor de uma celebrada autobiografia que parece guiar o capítulo, percebeu claramente que a mobilidade advinda dessa ocupação permitia certa igualdade com seus senhores, e não hesitou em “dizê-lo para sua mente”. Desgraçadamente para os senhores, muitos escravos com dificuldades de aceitar a disciplina que se lhes queria impor se engajaram no mundo do trabalho marítimo, inclusive porque seus senhores queriam se ver livres deles justamente por serem indisciplinados.

O terceiro capítulo, “The Suspense Is Dangerous in a Thousand Shapes’: News, Rumor, and Politics on the Eve of the Haitian Revolution”, pretende dar um aporte maior ao entendimento da revolucionária década de 1790 considerando seus antecedentes. O foco está dirigido à mobilidade de escravos, homens livres de cor e desertores militares e da marinha mercante que circulavam entre uma propriedade e outra, entre o campo e as cidades e entre as diversas ilhas, colocando em questão o controle social e a autoridade imperial. Ao fazer isso, alimentaram uma tradição de “resistência móvel” construída ao longo do Setecentos e que se radicalizaria nas décadas finais daquele século e no início do Oitocentos. As reações e tentativas de controle social mais severo por parte de autoridades metropolitanas e coloniais inglesas, espanholas e francesas são apresentadas nesse capítulo.

O capítulo 4, “Ideas of Liberty Have Sunk So Deep’: Communication and Revolution, 1789-93”, lança novas luzes sobre a repercussão da Revolução no Haiti nas demais ilhas. Ideias revolucionárias circularam não apenas em busca de adeptos, mas também como estratégia das autoridades imperiais em interação repressiva. Além de informações, oficiais baseados em uma ilha trocavam, com seus homólogos de outras Coroas, ajuda de todo tipo, militar inclusive. Os da Martinica pediram tropas ao governador de Cuba em 1790, diante das desordens que enfrentavam naquela colônia e da confusão revolucionária em que a própria metrópole francesa mergulhara em 1789, inviabilizando o envio de qualquer apoio. A causa da manutenção do controle social ultrapassava fronteiras linguísticas, imperiais e senhoriais. Mas os acontecimentos de 1789 e 1790 no Caribe, como afirma Scott, também ativaram as redes de comunicação afro-americanas. Se autoridades e proprietários ingleses, espanhóis e franceses construíram diálogos e articularam ações para se autopreservarem no Caribe ao longo do tempo, os escravos e homens livres de cor fizeram o mesmo.

O quinto capítulo, “Knows Your Interests’: Saint-Domingue and the Americas, 1793-1800”, concentra-se no impacto pós- -revolucionário nos impérios coloniais remanescentes e nos Estados Unidos. Porém, a amplitude geográfica do capítulo é menor do que o título promete. Houve mobilização militar nas colônias, num esforço para manter a ordem. Os escravos, por sua vez, mobilizaram- se e articularam ações que não foram apenas respostas ao aumento da severidade e da vigilância, mas que diziam respeito às suas próprias tradições organizativas. Esse processo foi intenso em Cuba [3], na porção oriental de Hispaniola, na Venezuela, em Curaçao e na Luisiana, apenas para mencionar algumas colônias em que a escravidão era a base da exploração dos trabalhadores. Desafortunadamente, a América portuguesa, maior colônia escravista do continente, ficou fora do quadro comparativo, decerto pela falta de domínio da língua portuguesa por parte do autor e pela reduzida bibliografia sobre a repercussão da Revolução Haitiana produzida no Brasil e em Portugal.

A circulação ou mobilidade espacial é o grande tema do livro. Negros africanos ou nascidos no Caribe e mestiços iam de uma colônia às outras, navegando distâncias que, embora relativamente curtas, lhes davam acesso a comunidades estrangeiras, com diferentes línguas e experiências de escravização e resistência. As oportunidades de disseminar conhecimentos e ideias e trocar informações objetivas não foram perdidas por aqueles escravos que se ganharam o mar e o mundo além do horizonte. O movimento dos navios e dos marinheiros oferecia não só oportunidades de desenvolver habilidades ou viabilizar fugas, mas criava formas de comunicação de longa distância e permitia que os afro-americanos transportassem, física e simbolicamente, seus modos de enfrentar as adversidades do cativeiro a outras partes, construindo resistências e concepções de liberdade globais.

A cultura marítima no Caribe era multirracial e multinacional. Escravos africanos ou nascidos nas colônias americanas eram partes importantes do contingente de trabalhadores do mar, mas o “submundo dos marinheiros” na região ao fim do século XVIII era formado também por milhares de britânicos e franceses. Tratava-se de uma população instável e que, por vezes, em razão de questões de mercado de trabalho ou de saúde, se estabelecia em alguma ilha à espera de melhores condições, enraizando- -se na cultura local de transitoriedade e de exposição às informações que circulavam rapidamente para os padrões daqueles tempos. No Caribe sabia-se dos acontecimentos das ilhas vizinhas, da Europa e da América do Norte: ali era a encruzilhada do mundo Ocidental, mais especificamente do hemisfério Norte, graças às correntes de comunicação estimuladas pela relativa proximidade, pelas facilidades da navegação e pelo aumento da atividade agroexportadora caribenha ao longo do século XVIII.

O axioma segundo o qual marinheiros eram desordeiros em terra encontrava plena comprovação no Caribe. Milhares de homens em trânsito representavam um problema para as autoridades locais responsáveis pela manutenção da ordem. Inúmeras leis foram postas em vigor para discipliná-los, do mesmo modo como se fazia para tentar regular a conduta dos escravos. Em tempos mais explicitamente conflituosos, como na Guerra dos Dez Anos (1780-1790), chegou-se a proibir que marujos britânicos nas Índias Ocidentais servissem a príncipes ou Estados estrangeiros. A proibição mostrou-se ineficaz.

A comparação entre escravos e marinheiros não é aleatória no trabalho de Scott. Ele nos deixa ver como ambos tiveram experiências em comum e causas pelas quais militavam juntos: o engajamento compulsório independentemente da condição, a submissão a punições arbitrárias, a pressão para embarcarem em navios mercantes contra sua vontade e a visão sobre ambos como perturbadores da ordem pública. Bom exemplo foi um ato policial de 1789, em Granada, prevendo penalizar escravos, mestiços livres e marinheiros que atentassem contra a própria saúde e a moral, porque seus comportamentos, vistos como dissolutos, eventualmente seduziam pessoas de outras condições.

Escravos e marinheiros conviviam a bordo, como tripulantes dos mesmos navios, mas a experiência também replicava em terra. Marinheiros eram os consumidores naturais das roças escravas caribenhas e, apesar do empenho policial, era difícil impedir que escravos lavradores ou em fuga fizessem comércio com marinheiros famintos e fragilizados depois de uma longa viagem, ávidos sobretudo por frutas e outros alimentos frescos. O contato e o convívio entre marinheiros e negros naquelas ilhas não tiveram apenas consequências econômicas, mas também forjaram elementos da cultura: muitas canções de trabalho populares no mar, disseminadas por marujos britânicos pelo mundo afora no século XIX, têm extraordinária semelhança com as canções escravas do Caribe. Scott afirma haver evidências consideráveis de que muitas canções podem ter se originado da interação de marinheiros e negros nas docas das Índias Ocidentais e que a teoria da origem e desenvolvimento das línguas crioulas no Caribe enfatiza o contato entre marinheiros europeus e escravos africanos e africano-americanos.

O ponto de intersecção de toda essa gente trabalhando em trânsito era Saint-Domingue, lugar de extraordinária diversidade de grupos de marinheiros europeus, a julgar pelos relatos do próprio ministério da Marinha francês na década de 1790. Mesmo com os monopólios coloniais e suas diferentes nomenclaturas (a flota espanhola, o exclusif francês, o British Navigation Act inglês), o contrabando grassava por ali, pondo em contato colonos europeus, marinheiros de diferentes metrópoles e escravos caribenhos e de variadas origens africanas. A razão dessa diversidade também entre os escravos, para além do tráfico direto com a África, era a sede por mão de obra em Saint-Domingue, o que fazia daquela colônia francesa um repositório de escravos fugidos a partir de 1770, vindos de Jamaica, Curaçao e, a julgar pela língua de alguns deles, também do Brasil. Muitos desses escravos em fuga se engajaram ativamente em rebeliões antes mesmo de 1789 e desempenharam papéis relevantes nos anos revolucionários – por exemplo Henry Christophe, segundo presidente do Haiti independente, nascido em St. Kitts, nas Índias Ocidentais britânicas.

O comércio e a circulação de marinheiros por aquelas bandas não só traziam notícias de fora como transmitiam ao resto do mundo o que se passava em Saint-Domingue. Scott reconhece que as revoltas de negros no Caribe em fins do século XVIII inspiraram os escravos nos Estados Unidos e em muitas das Antilhas. Em termos materiais, a afirmação encontra base no volume comercial entre Estados Unidos e Saint-Domingue em 1790: o montante das trocas, nessa altura, excedia aquelas feitas com todo o restante do continente americano, e era superado apenas pelo comércio com a Grã-Bretanha.

Scott foi um dos primeiros historiadores a identificar na mobilidade espacial advinda da navegação um importante indicador de autonomia e, eventualmente, liberdade para os cativos que conseguissem trilhar esse caminho. Os navios carregados de açúcar e rum circulando pelo Caribe possibilitavam escapar do rigoroso controle social existente nas sociedades escravistas e principalmente os navios menores eram vistos como instrumentos de fuga. Problemas diplomáticos e policiais decorriam dessa mobilidade não autorizada, mas o foco do autor se firma nos marinheiros e escravos desertores que elegeram as ilhas caribenhas como seus locais preferidos.

No Atlântico, mais do que em outros oceanos, e no Caribe, de forma concentrada, o comércio marítimo de longa distância e de cabotagem envolvia homens escravos e livres de cor. No caso dos escravos, envolvia também perspectivas de autonomia e liberdade dadas não só pela mobilidade como também pelas chances de se diluir em meio à multidão reunida nos portos, formada por indivíduos que, ao serem observados, não podiam ser definidos como livres ou cativos apenas pela cor de suas peles. Os mesmos jornais jamaicanos que publicavam anúncios de senhores vendendo negros especializados em trabalhos marítimos também publicavam anúncios de fuga de gente que certamente usara o mar como rota para desaparecer das vistas de seus senhores. Scott interpreta a “mística do mar” nas sociedades escravistas insulares do Caribe, ao salientar a vida a bordo de um pequeno navio de cabotagem ou do comércio intercolonial como uma alternativa atrativa à vida marcada pela hierarquia severa nas lavouras açucareiras. Mesmo escravos sem experiência marítima podiam conhecer alguns termos náuticos graças aos versos das canções populares e fingirem serem marinheiros livres. Ávidos por força de trabalho, os capitães dos navios quase nunca inquiriam cuidadosamente cada marinheiro engajado. Durante a década de 1790, antes e depois da Revolução de Saint-Domingue, sujeitos envolvidos no mundo do trabalho marítimo – marinheiros da navegação de longa distância, de pequenos navios de cabotagem no comércio intercolonial, escravos fugidos, marujos desertores brancos e negros – assumiram o centro do palco. No mar ou em terra, homens e mulheres sem senhores desempenharam um papel vital, espalhando rumores, reportando notícias e atuando como correia de transmissão de movimentos antiescravistas e, finalmente, da revolução republicana em curso na Europa.

A Revolução do Haiti tornou-se lendária não só porque foi a primeira experiência de liberdade coletiva e de construção de uma nação por ex-escravizados que retiraram à força seus senhores de cena, mas também pelo que representou como possibilidade na imaginação de escravos e senhores espalhados pelo mundo ocidental onde a escravidão era a base da acumulação de riquezas. A crença na determinação histórica, fruto da autocondescendência pela suposta descoberta de modelos explicativos eficazes, encontra nesta encruzilhada do Ocidente um incômodo para os historiadores mais seguros de suas opções teóricas. O passado torna-se sempre mais complexo quando é considerado da perspectiva de seus agentes.

Referências

ANDRADE, Everaldo de Oliveira. Haiti, dois séculos de história. São Paulo: Alameda, 2019.

FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, n. 3, p.37-53, jun. 2012.

FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana na época da Revolução Haitiana. In: CUNHA, Olívia Maria Gomes da.

Outras ilhas: espaços, temporalidades e transformações em Cuba. Rio de Janeiro: Aeropolano/FAPERJ, 2010. p. 37-64.

GRONDIN, Marcelo. Haiti. Col. Tudo é História. São Paulo: Brasiliense, 1985.

JAMES, Cyril Lionel Robert [1938]. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.

REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

REDIKER, Marcus; LINEBAUGH, Peter. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SCOTT, Julius S. The Common Wind: Afro- American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Londres; Nova York: Verso, 2018.

Notas

  1. Autor de A hidra de muitas cabeças: marinheiros, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário (em parceria com Peter Linebaugh) (2008) e O navio negreiro: uma história humana (2011).
  2. Exceções são os livros de Grondin (1985); de Andrade (2019) e, é claro, a tradução muito tardia de James (2000), editada pela primeira vez em 1938.
  3. O impacto da Revolução do Haiti em Cuba pode ser conhecido pelo leitor brasileiro com mais detalhes pelos trabalhos já traduzidos de Ada Ferrer (2010 e 2012).

Jaime Rodrigues – Professor da Universidade Federal de São Paulo / Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas / Departamento de História, Guarulhos/SP – Brasil. E-mail: [email protected].


SCOTT, Julius S. The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Londres; Nova York: Verso, 2018. 246p. Resenha de: RODRIGUES, Jaime. Uma encruzilhada do Ocidente: o Caribe setecentista como espaço histórico Topoi. Rio de Janeiro, v.22, n.46, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

 

A intergeracionalidade nas graphic novels autobiográficas “Persépolis” e “bordados” de Marjane Satrapi | Caroline A. M. Nunes

A INTERGERACIONALIDADE NAS GRAPHIC NOVELS AUTOBIOGRÁFICAS “PERSÉPOLIS” E “BORDADOS” DE MARJANE SATRAPI. | Caroline Atencio Medeiros Nunes | PDF | 614-640 | Aedos. Porto Alegre, v.12, n.27, 2021.

Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico 1450-1850 | Marcello Carmagnani

As conexões mundiais e o Atlântico: título sugestivo para um livro que se propõe a tratar de tema tão amplo. Como fazê-lo, contudo, é questão proeminente. O percurso escolhido nos é explicitado na introdução:

Será necessária uma profunda revisão dos instrumentos analíticos, elaborando os dados históricos até então utilizados apenas descritivamente, para traçar os modelos, os esquemas e as constantes do processo histórico. Fernand Braudel dizia que a história é a representante de todas as ciências sociais no passado: a ampliação da visão de história atlântica aqui proposta depende também da capacidade de elaborar conceitos analíticos que considerem os processos históricos em âmbito econômico, sociológico, político e cultural, sem os quais a história não pode ser nada além de uma mera coleção de conhecimentos [3].

Portanto, como ambicionado, a abordagem das esferas de existência histórica do mundo atlântico depende de uma elaboração conceitual e de uma revisão dos instrumentos analíticos que dê conta das constantes de seu processo formativo. O que, dentro da produção italiana sobre o tema, é de grande significado. Como em países europeus e americanos, os estudos atlânticos ganharam relevo nos últimos anos dentro dos cursos de graduação e pós-graduação. A publicação deste livro, por exemplo, vem cinco anos depois do ótimo Il Mondo Atlantico: una storia senza confini (secoli XV-XIX), de Federica Morelli. Porém, em muitos casos, o Atlântico acaba sendo fortemente concebido como um prolongamento temporal da ordem geopolítica norte-atlântica pós-1945, sendo representado pelos países membros da OTAN (deixando pouco ou nenhum espaço para o Leste Europeu e a Península Ibérica), e excluindo em grande medida o Atlântico Sul, concebendo o ocidente a partir de um interesse que projeta uma interpretação de escopo reduzido.

Portanto, a tarefa assumida requer não apenas amplo conhecimento bibliográfico e documental, como também uma perspectiva metodológica que seja totalizante, por adição ou por relação. Neste campo historiográfico, Bernard Bailyn afirmara que fazer uma história atlântica implica a agregação do conhecimento de histórias locais e suas extensões ultramarinas, bem como as relações desse agregado, operando no campo da descrição de suas dinâmicas e elementos fundamentais e processuais [4]. Apresentando estes aspectos, o presente livro, além de vir em boa hora, é também fruto de uma carreira construída a partir de pesquisas de fôlego sobre a Europa e as Américas. Nos últimos anos, os estudos de Marcello Carmagnani vão da relação intrínseca entre o consumo de produtos extra-europeus e as transformações materiais e imateriais em suas sociedades [5] à formação e plena inserção da América Latina nas sendas do mundo ocidental [6]. E neste livro, como bem descrito, o enquadramento atlântico dos processos históricos e suas relações são delineados plenamente.

Dividindo a obra em cinco capítulos, Carmagnani inicia explorando seus pontos de partida. Pontos que não necessariamente levaram desde o princípio à sua formação, mas que foram determinantes para a estruturação de suas dinâmicas. Neste quesito, as técnicas de navegação e o delineamento das primeiras ocupações atlânticas merecem destaque. Encontramo-nos diante de um processo definido pela experiência e apresentado do seguinte modo: a adoção de técnicas originárias de contatos anteriores, em especial com a Ásia, são, junto com as técnicas locais, adaptadas para a uma realidade que posteriormente se transforma a partir da experiência prática adquirida. No que se refere à busca e ocupação de pontos intermédios no oceano Atlântico, verdadeiras pontes oceânicas, seus papéis são salientados pelas potencialidades como locais de troca e abastecimento/restauração de embarcações, e como primeira experiência de povoamento no além-mar. Com a instalação de estruturas produtivas baseadas no uso do trabalho escravo africano que engendrariam posteriormente o comércio e produção das colônias europeias na América, é ressaltado o desenvolvimento de uma rede mercantil europeia em torno do comércio açucareiro. Juntando estes dois fatores ressaltados, o desafio representado pelo Atlântico vê um número reduzido de agentes envolvidos e possui como seus mecanismos de propulsão a busca de ouro africano e o início do tráfico negreiro em direção às ilhas produtoras de açúcar, que acenavam à conexão entre comércio, técnica e experiência que simbolizam um círculo vicioso.

No segundo capítulo, os efeitos da conquista e o processo de territorialização de espaços americanos são centrais. A catástrofe demográfica americana, o consequente repovoamento e a transposição integral do tráfico negreiro ao mundo atlântico são ressaltadas por duas razões. A primeira diz respeito ao nascimento da articulação entre a costa, o interior e a fronteira aberta, ligando o comércio, as estruturas produtivas e político-jurídicas instaladas na América, tendo a prata e o açúcar como eixos indissociáveis. A segunda é a formação de sociedades específicas, que apesar das divergências locais, eram marcadas por conflitos e violências que visavam a dominação e subordinação da mão de obra. Deste modo, o repovoamento e a instalação produtiva nas Américas representa o nascimento de conflitualidades que levam os poderes coloniais a criarem mecanismos de limitação de contestações e perda de controle sobre o tecido social e produtivos cujas estruturas ainda reverberam.

O terceiro e quarto capítulos devem ser abordados em conjunto, pois enquanto dedica o primeiro à consolidação deste mundo, no outro descreve minuciosamente as plantações, a “originalidade atlântica”. Taxativamente, Carmagnani nos diz que o período entre 1650-1850 é o da afirmação atlântica como principal ator das conexões mundiais. O que era delineado anteriormente passa à concretude: não mais momentos fundamentais e de processos socioeconômicos formativos, mas de ação e projeção dos agentes históricos dentro e a partir deste mundo. Assim ocorre a mudança nos padrões de consumo dentro da Europa, com a oferta maciça de produtos extra-europeus, como café, tabaco, cacau e açúcar. Igualmente, a renda e acumulação de capital dos países europeus norte-atlânticos neste período atingiu índices de crescimento inimagináveis, levando-o, em referência à Eric Williams, a afirmar que o fluxo de capitais ingleses derivantes do comércio mundial, gerado no mundo atlântico e posteriormente na Ásia, permitiu em boa medida os investimentos à Revolução Industrial. Na África, o vínculo entre os mercadores locais e a ampla rede atlântica impulsiona a monetização das regiões costeiras. No Daomé, o equilíbrio entre sociedade, mercados locais e a administração monárquica nos ajuda a compreender por que o comércio atlântico em determinadas localidades africanas podia coexistir com as vicissitudes locais sem criar um mercado único, mas sim uma forte vinculação. No caso da Senegâmbia, o poder local foi ainda mais fortalecido por meio do comércio negreiro.

Tema que merece maior atenção, pois Carmagnani afirma que a expansão do trato transatlântico de escravos é conectada com as mudanças ocorridas não apenas na Europa, mas também na África, e com as estruturas produtivas americanas. Com isso, em um período de queda na oferta europeia de mão de obra, concomitante com a expansão produtiva nas Américas, o comércio de escravos, responsável por uma catástrofe demográfica na África, adquire amplas proporções e desencadeia um fenômeno de grandes dimensões. Diversas redes de comércio se aderiam aos portos de trato que leva ao incremento na demanda africana de tecidos, tabaco, e cachaça, ligando as economias ao ponto de, em determinados períodos do século XVIII, 40% dos produtos ingleses desembarcados na África serem usado para este comércio, enquanto no mundo português foi a sua quase totalidade, inclusive mudando profundamente seu circuito atlântico responsável por 41,8% do escravos desembarcados na América, quando o controle passa de mercadores não mais estabelecidos na Europa, mas sim no Rio de Janeiro e Bahia. Concomitante a essas redes de comércio, o incremento da produção de açúcar após a entrada em cena dos impérios do noroeste europeu aumenta a concorrência produtiva, levando áreas até então açucareiras a diversificarem suas produções.

Por fim, no que se refere ao trabalho e à produção, à parte as importantes considerações sobre as técnicas que favorecem o incremento produtivo, como o sistema de irrigação adotado em meados do século XVIII em Saint-Domingue e investimentos em vias de comunicação e meios de produção que permitiram o aumento da produtividade na Baía de Chesapeake, há um aspecto contraditório originado por uma questão semântica. Em uma passagem, o autor nos diz que escravos africanos, uma vez nas plantações, tinham um duro período de adaptação ao trabalho e de ambientação, aliado às parcas condições materiais, em sociedades que se formavam a partir de pressupostos raciais, dando vida a um sistema produtivo dividido entre um horizonte hierárquico e outro orientado ao lucro. Essa organização do trabalho apresentava tensões latentes, devido ao ritmo e ao controle produtivo. A formação de quilombos e comunidades maroons são exemplos de que esta adaptação não ocorria de fato. A busca de regulamentações e de controle por parte das sociedades coloniais nos leva a pontuar um fator que, em um leitor desatento, pode induzir a um erro de compreensão.

No último capítulo, dedicado às revoluções, a abordagem se baseia principalmente na recente produção historiográfica, dividindo-a em fases ascendente e descendente: a primeira compreende o período entre 1763 e 1815, e a segunda, até 1848. Analisemos as linhas gerais. Sobre a Revolução Americana, Carmagnani reitera que, diferentemente do que afirmam outros autores no cotejo dos eventos revolucionários nos Estados Unidos e na França, sugerindo certo disciplinamento e moderação na história norte-americana, ocorreram sim conflitos civis de monta e também se intensificou o massacre indígena. Ao mesmo tempo, parte significativa dos escravos participou diretamente no conflito, fato que influenciou aspirações de liberdade alhures, formando parte do processo que desembocou na grande rebelião escrava de 1791 na colônia francesa de Saint-Domingue (atual Haiti).

Na Revolução Francesa, se ressaltam suas idas e vindas bem como a leitura da situação política norte-americana. As relações com Saint-Domingue e o papel dos representantes caribenhos na abolição da escravidão em 1794 são cruciais pois sua inserção dentro da política revolucionária demonstra que, diferentemente da Jamaica, a contestação alcançou outra dimensão: não houve apenas uma influência advinda do processo francês, mas esta foi uma experiência que contribuiu ativamente na liberdade dos escravos e na superação, com a declaração de independência de 1804, do restabelecimento escravista decidido pelo governo imperial.

O êxito haitiano, contudo, é em parte responsável pelo caráter mais contido de diversas revoluções liberais posteriores. A moderação se deveu aos temores da classe proprietária e às revoltas eclodidas nas áreas escravistas atlânticas, sem abrir mão, contudo, dos ideais de cidadania e de governo representativo, como se vê na América ibérica, onde as classes dirigentes eram favoráveis à ampliação das reformas que ampliassem a participação política da elite colonial. Como exemplo, a independência brasileira deu luz à uma constituição liberal que centrou mais na organização do Estado que nos direitos dos cidadãos, reiterando o máximo possível a dinâmica da organização social advinda da ordem colonial. Portanto, Carmagnani é cético em afirmar que dessas revoluções nasce a democracia moderna: a representação não dependia da vontade direta da maioria dos cidadãos, e o peso dos interesses das elites foi preservado.

À guisa de conclusão, a obra faz um apanhado bibliográfico geral suficiente e amplo, apresentando os leitores a produção dos últimos 40 anos e instigando um campo de pesquisa promissor em âmbito italiano – os minúsculos erros de digitação na bibliografia não impedem a compreensão da citação, como A Costruçao do Orden. Em Connessioni Mondiali, Marcello Carmagnani, estudioso de projeção internacional, dá um passo importante em direção à “atlantização” da historiografia europeia em geral e italiana em particular.

Notas

1. Università degli studi di Torino. Turim – Itália.

2. Mestrando em Scienze Storiche na Università degli studi di Torino, Torino (TO), Italia. E-mail para contato: [email protected].

3. CARMAGNANI, Marcello. Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico, 1450-1850. Torino: Einaudi, 2018, p.5.

4. BAILYN, Bernard. Atlantic History: concepts and contours. Cambridge: Harvard University Press, 2005, pp.60-61.

5. CARMAGNANI, Marcello. Le Isole del Lusso: prodotti esotici, nuovi consumi e cultura economica europea, 1650-1800. Torino: Utet, 2010.

6. CARMAGNANI, Marcello. L’Altro Occidente: l’America Latina dall’invasione europea al nuovo millennio. Torino: Einaudi, 2003.

Referências

BAILYN, Bernard. Atlantic History: concepts and contours. Cambridge: Harvard University Press, 2005.

CARMAGNANI, Marcello. L’Altro Occidente: l’America Latina dall’invasione europea al nuovo millennio. Torino: Einaudi, 2003.

_____. Le Isole del Lusso: prodotti esotici, nuovi consumi e cultura economica europea, 1650-1800. Torino: Utet, 2010.

_____. Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico, 1450-1850. Torino: Einaudi, 2018.

MORELLI, Federica. Il Mondo Atlantico: una storia senza confini (secoli XV- -XIX). Roma: Carocci, 2013.

João Gabriel Covolan Silva1;2 – Università degli studi di Torino. Turim – Itália. Mestrando em Scienze Storiche na Università degli studi di Torino, Torino (TO), Italia. E-mail para contato: [email protected]


CARMAGNANI, Marcello. Le Connessioni Mondiali e l’Atlantico, 1450-1850. Torino: Einaudi, 2018. Resenha de: SILVA, João Gabriel Covolan. A afirmação do Atlântico na historiografia italiana. Almanack, Guarulhos, n.26, 2020. Acessar publicação original [DR]

O triunfo da persuasão: Brasil/ Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial / Alexandre B. Valim

Bandeiras Brasil x EUA
Bandeiras – Brasil x EUA

VALIMNa obra “O triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa- Vizinhança durante a II Guerra Mundial”, o autor Alexandre Busko Valim nos apresenta uma discussão sobre o uso do cinema na política de aproximação entre Brasil e Estados Unidos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Buscando estabelecer influência tanto no Brasil quanto em outras repúblicas da América Latina, os Estados Unidos desenvolveram a Política da Boa- Vizinhança, que foi aprofundada e inovou nos métodos de controle e dominação durante a Segunda Guerra Mundial. Nesse novo quadro essa política era relevante pois visava garantir aos Estados Unidos: o potencial mercado latino-americano, o apoio do Brasil que possuía posição estratégica no cone sul durante o conflito bélico e por último – e importante – garantir o acesso a matérias primas essenciais para o esforço bélico dos Aliados.

O objetivo de Valim, possuindo como base teórico-metodológica a História Social do Cinema, é analisar os usos do cinema que objetivava o estreitamento das relações entre Brasil e Estados Unidos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Uma das originalidades do livro é a abordagem escolhida pelo autor para tratar do tema; ele não busca fazer uma análise dos filmes produzidos, ou seja, reconhecer seus significados e representações, que é o comum dentro da bibliografia que trata do cinema na Política de Boa-Vizinhança. Indo além, busca se explicitar como se deu a estruturação da OCIAA (Office of the Coordinator of Interamerican Affairs) e a implantação das regionais no Brasil, e mais a frente à fundação da Brazilian Division (a sessão brasileira do Office). Abrangendo a parte burocrática da ação, analisando também o papel do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) no período. Focando sua discussão em apresentar como se deu a criação e o planejamento das atividades do Office no Brasil, analisando como os grupos dirigentes se decidiam, quais eram seus objetivos e suas ações, mais que isso, quais foram os entraves burocráticos encontrados no Brasil e quais foram as soluções realizadas. Chama atenção para a necessidade de se conhecer os processos de concretização do Office para dessa forma não colocarmos o período como uma mera consequência do imperialismo onipotente norte-americano.

Outro ponto original da obra se remete as fontes utilizadas pelo autor, sendo elas documentos depositados na National Archives em College Park, nos Estados Unidos (NARA II).

Essas fontes são um conjunto de memorandos, relatórios, cartas que circulavam entre as instituições (regionais, Brazilian Division, Office). O conteúdo delas variavam, desde aviso sobre decisões tomadas, relatórios qualitativos e quantitativos, preocupações compartilhadas pelos grupos, demandas, interesses, impasses e etc. Sendo assim, essas fontes são cruciais para se entender como se deu a idealização, organização e ação das atividades do Office no Brasil.

Utilizando o conceito de “zona de contato”, Valim também contribui originalmente ao propor uma análise onde observa os conflitos culturais existentes nos espaços sociais conjuntos construídos durante o contexto estudado. Dirigindo atenção a atores sociais que não possuíam destaque dentro das instituições oficiais, atores esses que foram peças chaves dentro da estruturação do Office e realização de suas atividades. Dessa forma, ele coloca sob o holofote estes que por muito foram ignorados pela historiografia do tema, mas que tiveram papel essencial no período.

Partindo para a estruturação da obra, tirando a introdução e as considerações finais, o livro apresenta seis capítulos no total, e em cada um deles os argumentos são articulados para com sua ideia principal. Na introdução são apresentados os objetivos gerais do livro, como também é explicitada qual metodologia será utilizada e qual documentação foi acessada para construção da obra. Em linhas gerais é abordado o contexto da Política da Boa-Vizinhança, suas bases e seus ideais, e também é apresentado um breve debate historiográfico sobre as produções que abordam esse período. Um breve histórico da criação do Office e da Motion Picture Division é exposto, além de apontar o porquê do interesse dos Estados Unidos na América Latina, em específico o Brasil. O autor segue e explicita os conceitos de persuasão e propaganda, e argumenta do porquê da escolha do cinema como instrumento de aproximação entre os países. Outro ponto importante abordado é sobre os entraves causados pelo governo brasileiro, no âmbito do DIP, que serão mais bem analisados nos capítulos seguintes.

No primeiro capítulo, intitulado “The Brazilian Division: a chegada do Office no Brasil”, o autor foca em apresentar como se deu a estruturação do Office no Brasil e a criação da Brazilian Division. Aponta as limitações legais encontradas no país e as ações tomadas para burlar o governo varguista que era lido possuindo um teor “muito nacionalista”, que não agradava o Office. Seguindo, é apresentado dados sobre quem seriam os responsáveis do Office, da Brazilian Division e das regionais instaladas. O capitulo é uma extensa explicação sobre a estrutura política do Office, suas divisões, cargos e tarefas; é a apresentação da parte técnica e burocrática do mesmo. O segundo capítulo, “Aliados precisam ter atitudes amigáveis: propaganda, oportunidade e lucro”, é desenvolvido a parte do embate entre a legislação brasileira e os desejos do Office, nesse caso, em relação à taxação dos filmes estrangeiros. São elencados quais eram as obrigatoriedades da Brazilian Division em relação à produção e divulgação dos filmes. Discorre-se sobre os esforços de se extinguir os filmes do Eixo. Por fim, ele pincela um pouco sobre a tentativa de se conseguir ajuda da Motion Picture Division para produzir filmes nacionais, e também sobre os esforços da Brazilian Division em treinar com eficácia os técnicos para produção e divulgação dos filmes.

Já o terceiro capítulo, intitulado “O show precisa continuar: o cinema da boa-vizinhança adentra o país” é focado em discutir sobre as dificuldades de expansão das exibições para o interior do Brasil. É explicada as dificuldades técnicas que envolviam disponibilidade de material, equipe treinada e transporte, por exemplo. Para, além disso, o capítulo aborda a recepção dos filmes no interior a partir de relatórios das equipes envolvidas. Aponta algumas situações onde ocorreram impasses com as autoridades locais no que tange permissão para as exibições, e debate sobre como esses embates eram retirados dos relatórios que eram enviados ao Offiice, numa tentativa de não manchar a atuação do mesmo no país o que poderia pôr em risco a continuação das suas atividades.

A argumentação sobre a recepção dos filmes pelo interior segue no quarto capítulo, “Acenando as cabeças para filmes extraordinários: os maiores hits do cinema da boavizinhança”.

É abordada a preocupação no quesito mensagem do filme vs. receptor, ou seja, a atenção dispendida em relação aos efeitos que as histórias dos filmes causavam no público, onde houve casos que não eram agradáveis porque não se identificavam com a realidade apresentada nas obras. Ainda nesse capitulo, é discutido sobre alguns requisitos relacionados a filmagens realizadas no Brasil, como por exemplo, o ponto de evitar pobres e negros nas cenas gravadas. Um pouco mais a frente, é abordado um pouco sobre a relação de Disney e a política da boa-vizinhança, abordando alguns filmes que o mesmo realizou no período diretamente relacionado a política de aproximação. Por fim, discute também a censura realizada pelo DIP aos filmes que seriam exibidos no país, as diretrizes para o cinema no Brasil, e elenca filmes proibidos que eram considerados simpáticos aos alemães e a URSS.

O quinto capítulo, “Caçando com os melhores cães: os projetos de cinema do Office”, a partir de três projetos chamados: William Murray Project, John Ford Project e o Production of 16mm in Brazil, o autor aborda as ideias do Office no que tange exibição e produção cinematográfica em âmbito nacional. Analisa toda a parte burocrática, que seria o orçamento, equipe técnica, parcerias privadas e públicas que permeavam essa empreitada de se investir na produção cinematográfica brasileira. Aponta também os argumentos daqueles que foram a favor e contra ao investimento estadunidense na indústria cinematográfica local e quais foram os desfechos. O sexto e último capítulo, chamado “Mais dramático que qualquer ficção as múltiplas fronteiras exploradas pelo cinema da boa-vizinhança”, analisa as ações para incentivar a produção da borracha para os esforços de guerra a partir da relação entre cinema e a “batalha da borracha”, além disso, também discute os estereótipos que associavam o Brasil a um local exótico e selvagem, e por último aborda novamente a discussão sobre a construção de uma indústria cinematográfica nacional a partir de investimentos norte-americanos.

Como é possível ver a partir das sínteses dos capítulos, o autor desenvolveu sua ideia principal de acordo com a evolução da obra. Utilizando as fontes da NARA II, Valim destrincha uma parte que até então não recebia muita atenção da bibliografia, que é a idealização e estabelecimento do Office no Brasil. As questões burocráticas que se desenrolaram, os impasses entre governo estadunidense e brasileiro. Salienta o embate entre ideais do governo varguista e os ideais propagados do ‘american way of life’, de liberdade e democracia pelos estadunidenses.

Para, além disso, destrincha a imagem estereotipada e até mesmo idealizada produzida sobre o Brasil, ressaltando inclusive o interesse do governo nacional nessa retratação que ignorava as desigualdades e mazelas sociais. Um fator interessante levantado na obra é sobre como em alguns casos funcionários estadunidenses se compadeceram mais pela causa brasileira e passaram então defendê-las, como por exemplo, dentro do projeto John Ford, onde os funcionários possuíam interesse de produzir filmes sobre a cultura do Brasil, sobre as músicas, o samba, mas foram inibidos porque isso ia de encontro com os interesses do Office.

A obra de Valim, lançada em 2017, se posiciona em um momento onde se faz muito necessário reconhecer a força e influência que os canais de comunicação possuem sobre a formulação da opinião pública. Como dito anteriormente, a obra não foca em analisar os signos representados nos filmes da época, mas se propõe a um estudo mais aprofundado sobre a natureza das atividades do Office e da sua relação com os grupos dirigentes do país. A partir de sua argumentação, é possível perceber como a Política da Boa-Vizinhança aprimorou os métodos de controle e dominação. “O Triunfo da Persuasão” não se mostra original apenas nos documentos que utiliza como fontes primárias, mas na abordagem que busca observar a relação entre dois países com poderes assimétricos, conseguindo, dessa forma, demonstrar as limitações da suposta onipotência norte-americana no contexto. Este livro se coloca enquanto leitura essencial para aqueles interessados em História Social do Cinema, sobre uso do cinema no contexto da aproximação do Brasil e dos Estados Unidos durante a Política da Boa- Vizinhança, além de abrir inúmeras possibilidades de pesquisas dentro da temática que aborda.

Carolina Machado dos Santos – Graduanda pela Universidade Federal Fluminense no curso de História (Licenciatura).


VALIM, Alexandre Busko. “O triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial”. 1. Ed. São Paulo: Alameda, 2017.Resenha de: SANTOS, Carolina Machado dos. Cinema e política da boa-vizinhança. Cantareira. [Niterói], v.34, p.675-678, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

História das mulheres, das relações de gênero e das sexualidades dissidentes / Estudos Ibero-Americanos / 2021

A pesquisa sobre História das Mulheres, relações de gênero e sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade vem rendendo muitos textos publicados na forma de livros, capítulos e artigos. Essa trajetória de pesquisa que, em 1989, rendeu o primeiro dossiê intitulado “A mulher no espaço público”, publicado na Revista Brasileira de História e organizado por Maria Stella Martins Bresciani,[3] tem crescido significativamente, ampliando seus debates, incorporando novas discussões e enfrentando novos desafios.

Quando fomos convidadas a propor uma chamada de artigos para o dossiê, sabíamos que havia no campo uma grande quantidade de resultados merecendo ser divulgados. Foi com agradável surpresa que recebemos 43 artigos. Desses, 12 estavam fora das normas e foram devolvidos; e 31 foram enviados para avaliação. Da lista dos que tiveram pareceres ad hoc favoráveis, escolhemos apenas 12, como constava das regras da revista.

Essa experiência foi gratificante, mas nos causou preocupação. Muitos artigos com grande qualidade e bons pareceres não puderam ser publicados aqui, nesse dossiê. No entanto, demonstram a potencialidade do campo, resultado de recursos investidos na pesquisa, especialmente entre 2005 e 2016, da criação de grupos de estudos nas universidades e da vitalidade de movimentos sociais. Mostra, também, que a chamada “onda conservadora” antifeminista e homofóbica na América Latina, apesar dos seus ganhos eleitorais, não tem conseguido implantar seu “pânico moral”[4] na academia. Ao contrário, observa-se resistência, crescimento e diversificação.

Os artigos escolhidos para publicação neste dossiê se concentram, principalmente, na discussão sobre História das Mulheres. Apenas um dos artigos focalizou as sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade. Pelo menos três artigos fizeram balanços historiográficos. O debate com a mídia, tendo como fontes livros, novelas e jornais, foi o principal suporte para a discussão sobre as subjetividades e a prescrição de normas para mulheres em diferentes momentos.

Abrindo o dossiê, o artigo “Relações de gênero, capitalismos afetivos, literatura ‘Chick-lit/Soft Porn’ e a ‘nova’ escrita contemporânea de/para mulheres”, escrito por Ana Carolina Eiras Coelho Soares, focaliza a literatura recente, sucesso de vendas, voltada para mulheres. A autora mostra como, apesar de essa literatura partir do pressuposto de que o prazer no sexo é um direito das mulheres, muitas imagens antigas são revisitadas. Nos pares que se formam, nessa literatura, os homens são sempre brancos, bem-sucedidos profissionalmente e muito mais ricos que as mulheres. Essas, possuem empregos insignificantes e nunca têm carreiras de sucesso. Elas se submetem “livremente” aos desejos do homem, por mais violentos que esses sejam. Uma cinderela contemporânea?

Raquel de Barros Pinto Miguel, no artigo “Fotonovelas: prescrevendo normas, modos e modas”, analisou as fotonovelas publicadas na revista Capricho nas décadas de 1950 e 1960. Nelas, as mocinhas, em geral pobres e órfãs, sofriam até encontrar a felicidade, casando-se com homem rico e lindo. A autora analisa essa “literatura de escape” e mostra o sucesso que obteve, observando a constituição das subjetividades engendradas.

O artigo “Modernidad, cultura y vanguardia feminista: Concha Méndez, una adelantada a su tiempo. De la voluntad emancipadora al exilio trasatlántico”, de Esmeralda Broullón, trata de analisar a trajetória pessoal e cultural da poetisa da geração de 1927, Concha Méndez, destacando o seu papel como escritora, editora e promotora cultural na Espanha nos anos 1920 e 1930, juntamente com o conhecido poeta Manuel Altolaguirre. Enfoca o período caracterizado pela grande efervescência política, pelo avanço do feminismo no país ibérico e por instituições de estudos como o Lyceum Club, um influente círculo cultural do qual Concha Méndez fez parte e onde se conheceram destacadas feministas que, pouco depois, em 1931, defenderam a conquista do voto feminino. A trajetória da autora no exílio mexicano, após a derrota da república espanhola em 1939, é, também, rapidamente delineada no artigo.

As discussões que articulam gênero e decolonialidade ou, como dizem as autoras, as “perspectivas contra coloniais” estão presentes no texto de Cintia Lima Crescêncio e Gleidiane de Sousa Ferreira, intitulado “Da História das Mulheres às perspectivas Contra-Coloniais? Reflexões sobre a historiografia do gênero no Brasil (2001-2019)”. Buscando, em eventos promovidos pela Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) e pelo Fazendo Gênero a presença da discussão contra-colonial entre pesquisadoras/es que discutem História das Mulheres e gênero, as autoras constatam que esse é um tema iniciante e com pouca presença, o que demonstra um pouco de resistência do campo da historiografia para essa questão.

Utilizando com principal fonte o periódico argentino Brujas, Júlia Glaciela da Silva Oliveira, no artigo “’Sin senderos prefijados’: a defesa da autonomia feminista nas páginas de Brujas (1981-1996)”, discute a autonomia do movimento feminista. Além de apresentar a historicidade desse debate nos anos 1970, a autora articula o tema com o avanço neoliberal na América Latina.

Também usando periódicos como a principal fonte, o artigo “As mulheres e suas tramas impressas: um repensar historiográfico das produções sobre a sociedade carioca e portenha dos anos iniciais da segunda metade do século XIX”, escrito por Bárbara Figueiredo Souto, mostra como a historiografia da imprensa e a que focaliza intelectuais ainda não deu a devida visibilidade às mulheres que escreveram e dirigiram periódicos em Buenos Aires e no Rio de Janeiro no século XIX. No artigo, Joanna Paula Manso de Noronha, por sua trajetória como editora e escritora, tanto na Argentina como no Brasil, é classificada como uma intelectual-mediadora-feminista-transnacional.

Patrícia Lessa e Claudia Maia, no artigo “Feminismo, vegetarianismo e antivivisseccionismo em Maria Lacerda de Moura”, trazem do início do século XX uma discussão que tem ganhado força neste início do século XXI: o antiespecismo. No caso de Maria Lacerda de Moura, tratava-se de um feminismo que se articulava com a questão da classe, com a luta pelo vegetarianismo e contra a vivissecção. Importante destacar como questões que hoje ganham destaque eram alvo de discussões e de publicações por Maria Lacerda de Moura e, no entanto, ficaram esquecidas.

O artigo “Algunas reflexiones sobre género y memoria en las narrativas sobre los años setenta en Argentina”, de Ana Laura Noguera, levanta questões importantes sobre a memória e a História do Tempo Presente na Argentina. A autora aponta as discussões teórico metodológicas que articulam gênero e memória na história recente. Mostra a importância da história oral para a pesquisa em História das Mulheres e do Gênero. Destaca, também, a forma como homens e mulheres narram suas histórias de vida e o impacto historiográfico das diferentes histórias para a noção de agência.

Caroline Pereira Leal, no artigo “’Mais bela do que o sol, mais bela do que o céu’: representação feminina no discurso carnavalesco da Porto Alegre do início do século XX (1906-1914)”, nos leva de volta ao início do século passado para mostrar as tentativas de definir, nas elites e com repercussões duvidosas, como deveriam se comportar as mulheres nas festas de carnaval.

O artigo “Memória em disputa: Inah Costa e os desafios da história das mulheres artistas”, escrito por Rebecca Corrêa e Silva, discute a invisibilidade, as dificuldades e o impacto do gênero na vida das mulheres que atuam no campo da arte. Ela traz a história de uma artista que passou da pintura figurativa para a moderna e abstrata.

O único artigo que discute sexualidades dissidentes é o de Marina Leitão Mesquita, intitulado “Gênero, dissidência e tradição na (re)invenção da feminilidade em concursos de beleza gay”. Trata- -se de uma etnografia sobre concursos de beleza gay em Fortaleza, Ceará. A discussão sobre as hierarquias, formas de feminilidades aceitas, assim como a memória de momentos em que a polícia interferia, marcam a narrativa. A discussão sobre a “feminilidade espetacular”, como padrão de beleza, ajuda a questionar as configurações de gênero.

O artigo de María Laura Osta Vázquez, intitulado “Manos que mecen la cuna: las nodrizas uruguayas bajo el control del discurso médico en el siglo XIX”, mostra o fim de uma profissão assumida por muitas mulheres pobres, negras, mestiças e estrangeiras: as amas de leite. Na segunda metade do século XIX, o discurso médico passou a questionar as mulheres que entregavam seus filhos para amas de leite e a discutir a saúde e a moral dessas profissionais. Toda essa campanha foi feita pela imprensa e pelo discurso médico higienista que – em nome da redução da mortalidade infantil – passou a cobrar das mulheres o “amor materno”.

Temos a honra que encerrar este dossiê com a entrevista de Maria Odila Leite da Silva Dias, professora emérita da Universidade de São Paulo (USP). Autora, entre outros, do livro Quotidiano e Poder, que abriu caminhos para a história das mulheres no Brasil, focalizando mulheres pobres, escravizadas e forras nas suas lidas para prover a existência no início do século XIX, ela é responsável pela formação de pesquisadoras que trouxeram inúmeras contribuições para o campo da História das Mulheres, do gênero e das sexualidades dissidentes.

Boa leitura.

Notas

3. BRESCIANI, Maria Stella Martins (org.). A Mulher no Espaço Público. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 18, p. 7-8, ago./ set. 1989.

4. MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, Brasília, v. 32, n. 3, p. 725-744, set./dez. 2017

Joana Maria Pedro –  Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil; pós- doutora na França, na Université d’Avignon e, também, nos Estados Unidos, na Brown University; professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, SC Brasil. Coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), Florianópolis/SC, Brasil. Atuou como Presidenta da Associação Nacional de História (ANPUH), na gestão 2017-2019. orcid.org/0000-0001-5690-4859 E-mail: [email protected]

Pilar Domínguez Prats –  Doctora en Historia por la Universidad Complutense de Madrid (UCM), en Madrid, España. Profesora honorífica del área de Historia del Pensamiento Político y Movimientos Sociales de la Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, España. En la actualidad es investigadora del proyecto: Redes de Cooperación Interuniversitaria Canarias-Africa en Políticas de Igualdad desde metodologías colaborativas” y del Centro de Estudios y Difusión del Atlántico, CEDA. Socia fundadora del Seminario de Fuentes Orales de la Universidad Complutense de Madrid y del Instituto de Investigaciones Feministas de la UCM; presidenta de la Asociación Internacional de Historia Oral, IOHA (2008-2010) y miembro del Consejo de IOHA (2004 a 2012). orcid.org/0000-0002-8829-2508 E-mail: [email protected]


PEDRO, Joana Maria; PRATS, Pilar Domínguez. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 47, n. 1, jan./ abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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Mundos do Trabalho / Cantareira / 2021

Cantareira Mundos do Trabalho 1

A tradição da temática do trabalho na historiografia não impediu que apenas após 18 anos da sua primeira edição, a Revista Cantareira trouxesse entre suas publicações o seu primeiro dossiê inteiramente dedicado ao tema da História do Trabalho. Esta ausência se torna ainda mais surpreendente quando nos deparamos com a grande procura de pesquisadoras e pesquisadores não só de todo o Brasil, como também de outras partes do globo. De fato, as pesquisas de História do Trabalho e dos Trabalhadores e Trabalhadoras nas últimas décadas vem cada vez mais ampliando seu escopo e seus debates, mostrando que a experiência do homem branco, adulto e operário, que por muito tempo figurou na historiografia como o trabalhador ideal, não é a experiência universal dos mundos do trabalho.

Com um número recorde de artigos submetidos e aprovados, os trabalhos deste Dossiê mostram uma História do Trabalho dinâmica, plural, e que extrapola os grandes centros urbanos e as fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo que os temas clássicos da História do Trabalho são revistos com novos olhares, abordagem e fontes, demonstrando a riqueza das pesquisas produzidas e a sua diversidade.

Refletindo os objetos discutidos pela sociedade atual, pesquisas abordando a convergência de classe, raça, gênero, identidade, orientação sexual aparecerem em diversos artigos do Dossiê. A ruptura dos paradigmas que segmentavam as investigações historiográficas entre trabalho e trabalhadores livres e não livres ajuda na formação de um complexo mosaico do Mundos do Trabalho. Dentro dessa seara, destacamos os artigos de Thompson Alves e Antônio Bispo, Ferreiros, “escravos operários” e metalúrgicos: trabalhadores negros e a metalurgia na cidade do Rio de Janeiro e na microrregião Sul Fluminense (Século XIX e XX) e de Karina Santos, Composição de trabalhadores na Fábrica de Ferro de Ipanema (1822-1842).

Para operacionalizar o rompimento da separação entre as análises sobre o trabalho livre e cativo, a ferramenta metodológica da interseccionalidade se mostra fundamental para pensar as complexidades do processamento da dominação e opressão de diversos grupos sociais dentro da classe trabalhadora. É o que podemos ver no artigo de Caroline Souza, Giovana Tardivo e Marina Haack, Localizando a mulher escravizada nos Mundos do Trabalho, bem como no de Caroline Mariano e Lígya de Souza, Mulheres úteis à sociedade: gênero e raça no mercado de trabalho na cidade de São Paulo (fim do século XIX e início do século XX), que mostram como a análise sobre o lugar social de mulheres escravizadas e os mundos do trabalho pode refinar a análise historiográfica. Ainda sobre a importância da interseccionalidade com o objetivo de pensar os trabalhadores, o artigo de João Gomes Junior, A “indústria bagaxa”: prostituição masculina e trabalho no Rio de Janeiro e na constituição da ordem burguesa aborda questões sobre a experiência de homens, trabalhadores sexuais que desviam do padrão heteronormativo, como parte formadora da classe trabalhadora carioca do início da República.

A utilização dos processos da Justiça do Trabalho emergiu como importantes fontes documentais há alguns anos e continuam rendendo pesquisas inovadoras: Tatiane Bartmann em Eles querem menos, elas querem mais: as reivindicações por trabalho na 1ª JCJ de Porto Alegre (1941-1945) e Vitória Abunahman, Trabalhadoras ou esposas? Um estudo sobre reclamações na Justiça do Trabalho de mulheres que trabalhavam para seus companheiros na década de 1950, trazem a luz as reivindicações das trabalhadoras, e Paulo Henrique Damião, A Justiça do Trabalho enquanto palco de disputas: entre estratégias e discursos, e Arthur Barros, Márcio Vilela, Fernanda Nunes, Marmelada de tomate: as relações de trabalho a partir do “sistema de parceria” na Fábrica Peixe (Pesqueira / PE), discutem as diversas estratégias e relações de trabalho a partir da instância judicial.

A cidade e a geografia nos mundos do trabalho se cruzam com diferentes fontes, temas e análises teórico-metodológicas, apresentando uma nova visão sobre o espaço urbano. Sob essa lente, podem ser lidos os trabalhos de Gabriel Marques Fernandes em A vida urbana em Tudo Bem (Arnaldo Jabor, 1978): a figuração dos “operários” durante a decomposição do “milagre” econômico brasileiro, de Amanda Guimarães da Silva em Lavadeiras na cidade: trabalho, cotidiano e doenças em Fortaleza (1900-1930), e de Aline Crunivel e Claudio Ribeiro em Memória, trabalho e cidade: contribuições para o debate contemporâneo sobre o lugar da classe trabalhadora.

Fora dos centros urbanos, a relação dos trabalhadores rurais, indígenas e migrantes com suas lideranças, com os empregadores e o Estado, suas lutas e representações, são temas dos artigos de Leandro Almeida, Os comunistas e os trabalhadores rurais no processo de radicalização da luta pela terra no pré-1964, de Idalina Freitas e Tatiana Santana, Entre campos e máquinas: histórias e memórias de trabalhadores da Usina Cinco Rios – Maracangalha, Bahia (1912-1950), e de Pedro Jardel Pereira, “A legião dos rejeitados”: trabalhadores migrantes retidos e marginalizados pela política de mão-de-obra em Montes Claros / MG, na década de 1930, e de Eduardo Henrique Gorobets Martins, As denúncias de trabalhadores indígenas do cuatequitl no códice Osuna durante a visita de Jerónimo de Valderrama na Nova Espanha.

Temas cânones dos estudos sobre o trabalho, como suas entidades representativas e seus discursos, o contato com o mundo da política, suas estratégias de luta e a organização burocrática, são discutidos sob novas perspectivas teóricas, metodológicas e bibliográficas nos artigos de Bruno Benevides, “Eu não tenho mais pátria!”: a primeira guerra mundial à luz da propaganda libertária de Angelo Bandoni, de Igor Pomini, As Jornadas de Maio de 1937, o antifascismo e o refluxo da Revolução Espanhola, de Eduard Esteban Moreno, Manifiestos políticos para la acción del movimiento obrero: Brasil y Colombia durante las primeras décadas del siglo XX, de Frederico Bartz, Os espaços da luta antifascista em Porto Alegre (1926-1937), de Pedro Cardoso, A atuação militar contra a greve do Porto de Santos em 1980, e de Guilherme Chagas, O corporativismo na construção do discurso da Revista Light (1928-1940).

Extrapolando os limites da História e da historiografia e nas suas interseções, o Dossiê também conta com contribuições de distintas áreas das Ciências Humanas e Sociais, o que mostra a importância do diálogo constante e como o tema do trabalho continua provocando discussões interdisciplinares sobre o sistema capitalista e os novos regimes de trabalho e explicação, de acordo com os artigos de Leonardo Kussler e Leonardo Van Leeuven, Da alienação em Marx à sociedade do cansaço em Han: fantasia e realidade dos trabalhadores precarizados, de Evandro Ribeiro Lomba, As estruturas históricas da formação para o trabalho no sistema capitalista e de Gustavo Portella Machado, Entre desemprego e freelance: a atual configuração do mundo do trabalho na cultura a partir da ocupação de produtores culturais como microempreendedores individuais. Ainda dentro dessa temática, este número também conta com a resenha de Regina Lucia Fernandes Albuquerque sobre o livro de Tom Slee, Uberização: a nova onda do trabalho precarizado.

Finalizando o Dossiê Mundos do Trabalho, apresentamos a entrevista concedida pelos professores Paulo Fontes (PPGH / UFRJ) e Victoria Basualdo (COCINET / FLACSO) para as organizadoras, Clarisse Pereira e Heliene Nagasava. Na conversa, os professores discutem suas formações acadêmicas, trajetórias de pesquisa, transformações no campo da história do trabalho e a importância do pensamento e da atuação dos historiadores, em especial os historiadores do trabalho e trabalhadores, fora dos muros da Universidade.

Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!

Clarisse Pereira – Mestra e licenciada em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolve pesquisa na área de História do Brasil Republicano, atuando principalmente no tema sobre trabalhadores rurais na ditadura civil-militar. Atualmente é doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense, com bolsa CAPES, e desde 2019 faz parte da Comissão Editorial da Revista Cantareira. E-mail: [email protected]

Heliene Nagasava – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV), pesquisadora do Laboratório de Estudos de História do Trabalho (LEHMT / UFRJ) e funcionária do Arquivo Nacional. E-mail: [email protected]


PEREIRA, Clarisse; NAGASAVA, Heliene. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.34, jan / jun, 2021. Acessar publicação original [DR]

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História da saúde e das doenças: instituições, discursos e relações de poder / História – Debates e Tendências / 2021

BARRIERE Professores da Faculdade de Medicina

A saúde e as doenças não podem ser pensadas como conceitos estanques, a complexidade que envolve o estar são ou doente tem uma relação direta sobre como as sociedades interpretam e assimilam esses dois estados. Assim, a conceituação também está envolvida nas relações de poder, nas disputas discursivas que dizem respeito aos diversos comportamentos referentes à multiplicidade de doenças existentes.

O saber médico precisa ser problematizado nos diversos contextos, possibilitando ver como os discursos se articulam e garantem a sua condição de existência. Neste sentido, as representações sociais sobre as doenças estarão diretamente relacionadas com os mecanismos de controle, definição e exclusão dos indivíduos em diferentes conjunturas históricas. Leia Mais

Paz en la República. Colombia, siglo xix | Carlos A. Camacho, Margarita O. Garrido e Daniel A. Guriérrez

Filosofia e Historia da Biologia 12
Margarita Garrido | Foto: LaVozDeMacondo |

SCOTT The common wind 16Este libro compilado es un esfuerzo muy pertinente por hacer la historia relevante para el presente. En medio de las controversias que han suscitado recientemente las negociaciones de paz con las farc y el eln, este grupo de historiadores se propone “enriquecer estos debates con el estudio de los periodos de paz decimononicos, con el fin de darle profundidad a la inmediatista mirada habitual” (p. 16). Ojala con mas frecuencia los historiadores nos animaramos a enriquecer el debate publico con una perspectiva de mas larga duracion, tan fundamental para la comprension de la coyuntura. Ademas de aportar profundidad historica, nos invitan a romper con la creencia generalizada de que la guerra ha sido una constante en la historia de Colombia. Para hacerlo, abordan el siglo xix, que repetidamente hemos llamado “el siglo de las guerras civiles”, y nos demuestran que no lo fue: afirman que, despues de 1839, cuando empieza la primera guerra civil propiamente dicha, hubo catorce anos de guerra y cien de paz. Los capitulos estudian las paces hechas tras cada una de las ocho guerras civiles del siglo xix y su conexion con el retorno posterior a la guerra. De esta manera, dirigen nuestra atencion a lo que ha sido mayoritariamente espacio negativo ante nuestros ojos, mas acostumbrados a ver la guerra.

A pesar de que el libro es sobre la paz, tambien nos ensena sobre las guerras civiles, pues la fluidez entre paz y guerra hace necesario estudiarlas atendiendo a las dos caras de la moneda. Cada capitulo explica las causas de una guerra (excepto el de Malcolm Deas, que aborda dos, correspondientes a 1885 y 1895), la forma como se negocio y alcanzo la paz, asi como las limitaciones de esta ultima que generaron la detonacion de una nueva guerra posteriormente. Los autores y autoras hacen enfasis en la heterogeneidad de las guerras, explicando en detalle las situaciones particulares que conllevaron a cada una de ellas y sus variaciones de region en region. La de los Supremos (1839-1842), estudiada por Luis Ervin Prado, no fue una: fueron una serie de levantamientos provinciales que tuvieron en comun un llamado a la federalizacion. La de 1851, abordada por Margarita Garrido, fue motivada por la abolicion de la esclavitud, pero tambien por la intervencion del Estado en asuntos de la Iglesia y de las provincias, asuntos que amenazaban la nocion del mundo y del orden social de los rebeldes. Leia Mais

Ciencia, lengua y cultura nacional. La transferencia de la ciencia del lenguaje em Colombia, 1867-1911 | Andrés Jimenez Ángel

Filosofia e Historia da Biologia 13
Andrés Jimenez Ángel | Foto: UR |

SCOTT The common wind 17Este libro se ocupa de la configuracion de la ciencia del lenguaje en Colombia desde 1867 —ano atado a las reformas educativas de los gobiernos del Olimpo radical y en el que se publico la primera edicion de la Gramática de la lengua latina de Miguel Antonio Caro y Rufino Jose Cuervo— hasta 1911 —fecha del deceso de Cuervo; Caro habia muerto en 1909—. Al insistir en el proceso productivo de la forma vernacula de un conocimiento tecnico con pretensiones universales, evita hacer enfasis en lo que se haya recibido de tradiciones intelectuales foraneas o valorar esa recepcion en los terminos del centro y la periferia. Asi, el principal valor del libro es que se concentra en la circulacion de un saber y los efectos de ese movimiento sobre el modo de ser de ese saber circulante.

Adicionalmente, el punto de vista de la circulacion asumido por Jimenez Angel nos permite desmitificar la unidad de los saberes para verlos en sus formas multiples, relativas a marcos espaciotemporales diversos. Gracias a ello, podemos enfatizar los aspectos locales del proceso y tambien dar a Europa un lugar mas adecuado en la vida intelectual de otros centros de produccion de conocimiento. Leia Mais

Soberanías fronterizas. Estados y capital en la colonización de Patagonia (Argentina y Chile, 1830-1922) | Albert Harambour

Filosofia e Historia da Biologia 14
Soberanías fronterizas | Detalhe de capa |

SCOTT The common wind 18Uno de los rasgos comunes en la historiografia sobre los procesos poscoloniales de formacion nacional en America Latina ha sido la nocion de la soberania como una fuerza civilizatoria encarnada en el estado,1 el cual se ha asumido a su vez como un aparato que se expande siguiendo una trayectoria centrifuga, absorbiendo gradualmente territorios y poblaciones por fuera de su control o resistentes al mismo. En esta lectura, el fracaso o exito de los estados se ha concebido frecuentemente como un efecto de su capacidad —o incapacidad— de extender su poder a la totalidad del territorio bajo su jurisdiccion, y de construir y sostener en el tiempo una identidad politica homogenea.

En contravia de esta nocion, Soberanías fronterizas. Estados y capital en la colonización de Patagonia (Argentina y Chile, 1830-1922) desplaza la atencion hacia los margenes del estado como epicentro que permite desentranar sus mitos fundacionales, logicas y efectos espaciotemporales. En un trabajo solido, sustentando en una variedad amplia de fuentes primarias, Alberto Harambour examina criticamente las dinamicas de expansion capitalista y construccion estatal en la Patagonia argentina y chilena durante el siglo xix y comienzos del xx. Leia Mais

Hacer la revolución. Guerrillas latino-americanas, de los años sesenta a la caída del Muro | Aldo Marchesi

Filosofia e Historia da Biologia 15
Aldo Marchesi | Foto: Brecha |

SCOTT The common wind 20Uno de los temas recurrentes en los estudios sobre la historia reciente de America Latina es la violencia politica de la segunda mitad del siglo xx. En particular, para el caso de los paises del Cono Sur, las reflexiones academicas en torno a las luchas sociales y politicas protagonizadas por distintos sectores y organizaciones armadas o civiles; la respuesta autoritaria de las dictaduras militares; sus respectivas consecuencias humanitarias; y los procesos de transicion politica hacia la democracia, han sido temas relevantes para el conjunto de las ciencias sociales de la region y del mundo. Pues bien, el libro del historiador uruguayo Aldo Marchesi, ganador del premio a “Mejor libro en Historia reciente y Memoria” de la Latin American Studies Association en 2020, nos presenta una version novedosa e integral sobre estas tematicas como resultado de su investigacion doctoral.

En el texto, el autor dibuja una geografia politica de la izquierda radical de los paises del Cono Sur a partir del trabajo riguroso con fuentes documentales y testimoniales que son utilizadas para presentar los distintos flujos estrategicos, biograficos e ideologicos de una cultura politica transnacional que fue construida y compartida por cuatro organizaciones armadas en el arco temporal comprendido por el estudio. Estas organizaciones fueron el Movimiento de Liberacion Nacional-Tupamaros (mlnt) uruguayo; el Ejercito de Liberacion Nacional (eln) boliviano; el Partido Revolucionario de los Trabajadores (prt) argentino y su estructura militar, el Ejercito Revolucionario del Pueblo (prterp); y el Movimiento de Izquierda Revolucionaria (mir) chileno. Leia Mais

Y a la vida por fin daremos todo… Memorias de las y los trabajadores y extrabajadores de la agroindustria de la palma de aceite en el Cesar, 1959-2018 | Centro Nacional de Memoria Histórica

Filosofia e Historia da Biologia 16
SMNH. Y a la vida por fin daremos todo… | Detalhe |

SCOTT The common wind 19Este libro es una reconstruccion colectiva de la memoria de las y los trabajadores y extrabajadores de la palma en el departamento del Cesar (Colombia) entre 1950 y 2018, donde hubo al menos 249 victimas que tuvieron relacion directa con la organizacion sindical. Las organizaciones que participan del informe son la Fundacion de Apoyo y Consolidacion Social para los desplazados por la Violencia en Colombia —fundesvic—, el Sindicato Nacional de Trabajadores de la Industria del Cultivo y Procesamiento de Aceites y Vegetales —sintraproaceites— y el Sindicato Nacional de Trabajadores de la Industria Agropecuaria —sintrainagro—.

Este ejercicio de memoria se llevo a cabo entre el 2017 y el 2018 y abarca seis decadas. Tuvo como trasfondo un conjunto de informacion proveniente de distintas tecnicas y fuentes: entrevistas, documentos personales de los afiliados a los sindicatos, talleres de memoria, prensa escrita, archivos institucionales, material secundario. Aunque es el primero que, desde el Centro Nacional de Memoria Historica (cnmh), tiene como eje central al sector palmero, la violencia antisindical ha sido abordada, a nivel de registro e investigacion, tanto por organizaciones no gubernamentales, como por entidades sindicales y academicos, desde hace ya al menos tres decadas en el pais.[1] Si bien el informe fue publicado por el cnmh en 2018, su lanzamiento publico no estuvo exento de polemica con la actual direccion del cnmh, en cabeza del historiador Ruben Dario Acevedo Carmona, teniendo lugar finalmente en la Universidad de los Andes, el 29 de mayo de 2019. En su momento, el portal La Silla Academica titulo el episodio como “la lucha de poder detras de la memoria”.[2] El capitulo introductorio del informe lleva por nombre “Siembra y ampliacion del cultivo de palma, conflictos laborales e inicios de la organizacion sindical”. Alli se describen los antecedentes de la llegada de la palma y el proceso social y politico de formacion de la organizacion sindical. El capitulo narra que antes de la llegada de la palma, en el Copey (norte del Cesar), habia cultivos de algodon, arroz, tabaco y sorgo, donde empresas como El Labrador s.a. y empresarios que vinieron de menos a mas en la region —tal es el caso de Alfonso Lozano Pinzon o Misael Carreno— jugaban un papel importante. A partir de relatos de exfuncionarios de una de las empresas formada en 1971, Palmeras de la Costa s.a., y de extrabajadores de Indupalma, se reconoce que el cultivo de palma comienza a entrar en San Alberto (sur del Cesar) entre 1958 y 1961 a traves de Agraria La Palma o Indupalma, y que su llegada, ademas de traer consigo “gentes de todas las regiones, facilita las primeras formas de organizacion de los trabajadores […] y la creacion del primer sindicato de Indupalma en 1963” (p. 39). Estos relatos dan cuenta del rol de los sindicatos en las huelgas de 1971 y 1977 y las distintas “acciones de presion” a Indupalma. Ademas, describen la institucionalidad comunitaria local impulsada por el activismo sindical, especialmente en San Alberto, a traves de la creacion de juntas comunales, comites de mujeres, comite de presos politicos, fondo de solidaridad, comite deportivo y creacion de barrios obreros como El Primero de Mayo (pp. 80-84). Leia Mais

Cultura y violencia: hacia una ética social del reconocimiento | Myriam Jimeno

Filosofia e Historia da Biologia 17
Myriam Jimeno (terceira, da esquerda à direita) | Foto: Agência de Notícias UNAL |

SCOTT The common wind 21Una reseña tradicional suele parecerse a un resumen analítico de la obra  en cuestión. Para el caso, aquí se referiría a la compilación de catorce artículos  sobre la violencia escritos por Myriam Jimeno entre 1996 y 2015. Los artículos  están organizados en cuatro partes que incluyen, cada una, aspectos sobre la  relación entre violencia, cultura, política y emociones. Si bien en el prólogo  Joanne Rappaport recomienda leer los artículos en orden cronológico y tomar el  concepto “configuración emotiva” para evidenciar cómo la autora fue evolucionando en su investigación, esta recomendación de la prologuista también tiene  intención pedagógica: mostrarles a los estudiantes que “la investigación es algo  que se desarrolla a través del tiempo y que nunca es algo aislado y puntual” (p. 8).

En lo metodológico, se destacan dos consideraciones, una inductiva y otra  deductiva. Sobre la primera, Jimeno subraya que la compilación de artículos  retoma la tradición antropológica de entender los fenómenos sociales a partir  de la comprensión que sobre ellos tienen los propios actores sociales. Luego de  tamizar estos relatos un investigador haría evidentes las regularidades detectadas. En la deductiva, se identifican algunos trabajos que han procurado relacionar el análisis sobre subjetividad y violencia con los macroprocesos políticos  o históricos. En este mismo enfoque se ubican los artículos de la tercera parte,  destacando entre ellos uno sobre el partido radical del siglo xix . Leia Mais

El mundo en movimiento. El concepto de revolución en Iberoamérica y el Atlántico norte (siglos xvii-xx) | Fabio Wasserman

Filosofia e Historia da Biologia 18
Fabio Wasserman | Foto: Ana López |

SCOTT The common wind 22En las ultimas dos decadas el examen de los conceptos politicos fundamentales ha sido un campo de estudio que sigue produciendo interesantes resultados.

A partir de la red Iberconceptos y la elaboracion del Diccionario político y social del mundo iberoamericano —que ya posee dos tomos—,1 se ha logrado examinar la importancia de una veintena de conceptos claves para comprender el devenir de los procesos sociopoliticos de diversos paises entre 1750 y 1870. Precisamente este libro, bajo la compilacion de Fabio Wasserman, amplia y enriquece esta linea investigativa centrando su mirada especificamente en el concepto “revolucion”.

Ademas, incorpora otros procesos de transformacion politica y social que antecedieron o sucedieron paralelamente a los desarrollados en Iberoamerica, tales como los ocurridos en Inglaterra, Francia, America del Norte y las Antillas Francesas. Leia Mais

História Social dos Sertões / Outros Tempos / 2021

SPIVAK Gayatri 1
Gayatri Spivak / Foto: Tweetar /

Outros Tempos v 18 n 31 1Pode o subalterno falar? Essa foi a questão formulada por Gayatri Spivak em artigo publicado em 19881 . A pergunta da professora e crítica literária indiana vem há décadas inspirando esforços na direção da descolonização da produção do conhecimento. Eivada pelo olhar certeiro da autora, a incômoda indagação conectou-se a inúmeros debates intelectuais das ciências humanas nas últimas décadas, atribuindo amplitude e autoridade ao ponto de vista feminino de uma intelectual egressa de uma ex-colônia inglesa, que colocou na berlinda o pensamento social e a teoria crítica ocidental. Podemos questionar, seguindo a reflexão de Spivak, se é válido auscultar personagens e territorialidades subalternizadas utilizando somente o arcabouço teórico-analítico oriundo de pensadores europeus entronados em instituições historicamente identificadas com diversas formas de colonialismo.

A provocação levantada pela autora ajudou a fortalecer a tendência do deslocamento do olhar acadêmico do centro para as periferias, do Norte para o Sul global, das nações centrais do capitalismo para suas margens. Essa tem sido a contribuição dos estudos pós-coloniais e decoloniais, que vem validando a instrumentalização de uma utensilagem analítica calibrada para entender os silêncios e os silenciamentos dos subalternizados, de olhos fitos nas especificidades de seus espaços de criação e reprodução sociocultural. Tal debate vem igualmente influenciando pesquisas no Brasil, especialmente no campo das humanidades. Mais que inserir os “vencidos” nos estudos acadêmicos, é preciso investigar e produzir outras epistemologias, pensadas a partir das margens. A História Social dos Sertões se insere nesses esforços, posicionando o foco em processos históricos de um Brasil distante dos grandes centros urbanos, jungidos à mesma lógica global que produz riquezas e multiplica desigualdades. Cumpre notar que a temática “sertaneja” vem sendo discutida grandemente em universidades situadas em cidades pequenas e médias, que foram contempladas no processo de interiorização de instituições de ensino superior em tempos de governos democráticos populares.

O sertão, antigo e polissêmico, historicamente observado na arte, na literatura, na música e na imagética nacional como o avesso da modernidade, tem retrucado o olhar na direção de seus intérpretes. A dita réplica pode ser observada, por exemplo, na obra de Sérvulo Roberto, artista plástico amazonense residente em Codó – MA há 30 anos, que forjou uma rica galeria temática, na qual podem ser encontradas as quebradeiras de coco babaçu, cenas de festejos locais, imagens da religiosidade popular, tudo criado em seu ateliê no Bairro São Pedro, em Codó. Destacam-se em seu repertório quadros com narrativas visuais dos mundos do trabalho, como no caso da tela “Bem perto”, produzida em 2019, que serve de capa para o presente dossiê. A obra apresenta um belo panorama em três planos, com uma quebradeira de coco debaixo das folhagens de um babaçual, ladeada por diversos homens, mulheres e crianças negras com cestos de palha na cabeça, que miram conjuntamente uma grande cidade, recoberta por um imenso sol ao fundo. Na cena, o sertão dos cocais observa a urbe, dando a impressão de que as palmeiras e as fileiras de trabalhadores empurram a metrópole, que se resguarda como uma fortaleza de prédios esguios e enfileirados. Os olhares dos personagens, segundo o artista, carregam esperanças de melhoria “bem perto” da cidade, mas a metrópole não se mostra receptiva, disposta em terceiro plano encurralada pelos olhares dos camponeses.

A urbe apresenta-se sitiada pelos camponeses. As possibilidades interpretativas da arte reposicionam o cotidiano da migração sazonal de trabalhadores pobres oriundos da região dos cocais, alvos de grave espoliação, que buscam em centros urbanos e também em grandes propriedades rurais melhores possibilidades de sobrevivência. Sob os olhos de Sérvulo Roberto, o sertão espreita a cidade.

É por esse olhar investigativo dos sertanejos, atentos ao mundo circundante do sertão, que o presente dossiê traz artigos que vão ao encontro da inquietação do artista. Textos produzidos por autores e autoras que manifestam diversas nuances da polissemia dos estudos sobre os sertões, contemplados em suas composições históricas e discursivas. Abre a edição da Revista Outros Tempos a pesquisa de José Reinaldo Miranda de Sousa, intitulada Codó: uma África sertaneja, que reflete acerca das dimensões e contribuições dos africanos na cidade de Codó, experiência que desenha no cenário dessa cidade aspectos identitários de uma África em terras maranhenses.

Logo em seguida, temos a possibilidade de encontrar o sertão dos homens no texto de Jakson dos Santos Ribeiro, intitulado, Performances masculinas em cena: o homem público da Princesa do Sertão à luz da imprensa caxiense, em que o autor problematiza as formas de ser e estar, dando possiblidades para compreender as masculinidades que se encontram e desencontram em discursos que circularam na imprensa da cidade de Caxias – MA durante a Primeira República.

Entre os textos desse dossiê também podem ser observados os sertões do período colonial, em artigo de autoria de Samir Lola Roland, denominado Sesmarias, ocupação e conflitos de terra nos sertões do Maranhão e Piauí colonial (1700-1759), em que o autor reflete acerca das disputas num interior atravessado pelos interesses de fazendeiros que esbulhavam terras indígenas seguindo os caminhos dos rios. A dita espacialidade servia de palco para constituição das experiências dos interesses do Estado e do cotidiano de exploradores adventícios, que buscavam ampliar seus domínios nos sertões do Maranhão e do Piauí.

Ainda na rota dos conflitos, encontramos outras páginas de história retratadas no texto de Anderson Coelho da Rocha, com o título: Nos sertões dos Oitocentos: escravidão, liberdade e criminalidade nos sertões da Província do Ceará (1830-1888). O autor posiciona as tensões no âmbito da sobrevivência e das relações interpessoais entre populações sertanejas, classificadas à época como “gente da pior espécie”, atravessadas pelo viés racista e pelas políticas de combate à vadiagem, que acometiam grandemente populações pobres e não-brancas, livres ou escravizadas.

Populações pobres interioranas também aparecem nas reflexões de Janille Campos Maia, que devassa em sua pesquisa um sertão de muitos conflitos e dificuldades de sobrevivência, piorados pela ocorrência da grande seca de 1877-1879. A autora trata da migração de trabalhadores do interior do Ceará em demanda da capital da província. Em Exilados do sertão: migração cearense na seca de 1877, Janille revisita tema já bastante discutido na historiografia dos sertões, adensando informações sobre o cotidiano de personagens desvalidos durante os horrores da estiagem, com foco nas ações e políticas de socorros públicos na cidade de Fortaleza.

A ambiência de pobreza e rarefeitas políticas de assistência historicamente contribuíram para maximizar a ocorrência de surtos epidêmicos, presentes nas narrativas sertanejas e em suas memórias da morte. Algumas das interpretações desses sertões adoecidos aparecem nos apontamentos realizados por Maria de Fátima Morais Pinho e Jucieldo Ferreira Alexandre, autores do texto Em toda parte só se ouvia falar em morte: a gripe espanhola no Cariri (1918-1919), cujas reflexões discorrem sobre os enfrentamentos do período da grave epidemia de gripe em terras caririenses.

Na sequência do dossiê, esse sertão de muitos sentidos também nos mostra o lugar do futebol, através das reflexões realizadas pelos autores Francisco Demétrius Luciano Caldas, Álvaro Rego Millen Neto e Bruno Otávio de Lacerda Abrahão, com o texto intitulado O futebol no sertão nordestino brasileiro: o torneio BAPE em Juazeiro e Petrolina na década de 1990, em que é possível encontrar um time de futebol protagonizando momentos relevantes para as sociabilidades locais.

Momentos de encontro e descontração apontam possibilidades de investigação para além das narrativas da pobreza que marcam as paisagens sertanejas. Nesse direcionamento, também há espaço para pensar um sertão conectado com tendências globais, que projetava um cenário de crescimento econômico através da indústria. Este é o tema central no texto de Naudiney de Castro Gonçalves, que aborda as facetas de Antonio Linard: um industrial no sertão do Cariri cearense, personagem que introduziu mudanças perceptíveis na economia local a partir da inserção de novas tecnologias, capazes de criar um movimento significativo de transformações socioeconômicas.

No campo das artes, o dossiê é contemplado por um interessante estudo de caso de Jonas Rodrigues de Moraes, intitulado História, memórias, oralidades, cultura e artes na Baixada Maranhense, importante levantamento das manifestações culturais de mestres e grupos populares nas cidades de Pinheiro, São Bento, Santa Helena e Presidente Sarney. A pesquisa fez uso de técnicas etnográficas e da história oral, cujos resultados estimularam gestores públicos locais a pensarem as possibilidades de um mapeamento cultural de seus respectivos municípios.

Por fim, mas não menos importante, este dossiê segue com a entrevista de José Carlos Aragão Silva, cujas experiências docentes servem de bússola para pensarmos as problemáticas enfrentadas por profissionais de História nos sertões maranhenses. Professor do Colegiado de Ciências Humanas / História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Codó, o entrevistado vem trabalhando na formação de profissionais da educação básica atuantes em áreas rurais e em municípios do interior. Aragão nos convida a refletir sobre as agências desses docentes, que podem servir de farol para pensarmos a formação e a importantíssima atuação de professores fora dos grandes centros.

Como se vê, as páginas deste número da Revista Outros Tempos são compostas por diversas interpretações dos sertões, pluridimensionais e complexas. Por isso, esperamos que a audiência do dossiê possa apreciar e encontrar nos estudos que seguem inspirações e instrumentos para refletir sobre a temática, repleta de narrativas, experiências e sentidos. Boa leitura!

Antonio Alexandre Isidio Cardoso – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP Professor da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Campus Codó Codó, Maranhão, Brasil. E-mail: [email protected]

JaKson dos Santos Ribeiro – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará – UFPA Professor da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, Campus Caxias Caxias, Maranhão, Brasil. E-mail: [email protected]

Jonas Rodrigues de Moraes – Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP Professor da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Campus Codó Codó, Maranhão, Brasil. E-mail: [email protected]

Os organizadores


CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio; RIBEIRO, Jakson dos Santos; MORAES, Jonas Rodrigues de. O Sertão à espreita (Apresentação). Outros Tempos, Maranhão, v. 18, n. 31, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Caliandra | ANPUH-GO | 2021

Caliandra

Caliandra – Revista de História da ANPUH GO (Goiânia, 2021-) foi criada para fortalecer um processo de construção coletiva de conhecimento que já vem se realizando com reconhecida qualidade no estado. O periódico tem a intenção de participar desse esforço e ampliar possibilidades de divulgação científica, numa perspectiva plural e democrática.

Para isso, a revista foi pensada a partir de inúmeras sugestões, através de reuniões com membros da diretoria, coordenações de Grupos de Trabalho (GTs) e consulta aos filiados e filiadas, utilizando-se de formulários virtuais. Neste percurso, fizemos uma primeira consulta para coletar sugestões de nomes para o periódico. Numa segunda etapa, disponibilizamos as sugestões apresentadas e o nome mais votado foi esse que agora intitula a revista.

CALIANDRA, conforme o autor da sugestão, é o nome de uma flor típica do cerrado que representa práticas e vivências plurais. Essa é a intenção desse espaço, para o qual contaremos com um conselho editorial composto por pessoas de diferentes instituições do estado e do país. A equipe editorial estará assim composta: Kênia Érica Gusmão Medeiros e Cristiano Nicolini, como editores chefes; Álvaro Ribeiro Regiani, Ana Carolina Eiras Coelho Soares, Eliane Martins de Freitas, Ricardo Lenard Alves e Thais Alves Marinho, como editores científicos.

A Caliandra – Revista de História da ANPUH GO pretende ser um espaço amplo de discussão acadêmica de temas históricos. Tem como objetivo a publicação de produções originais resultantes de pesquisa científica.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre.

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Fronteiras Étnicas e Conflitos Sociais no Rio Madeira / Canoa do Tempo / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 29
Rio Madeira | Foto: Santo Antônio Energia |

Os artigos que compõem o presente dossiê articulam-se a partir de duas dimensões: o eixo dos encontros e confrontos entre grupos étnicos distintos em um contexto de avanço do extrativismo da borracha no sentido dos altos rios; a dimensão conflitiva, marcada por estratégias de resistências e formas de agenciamento que permeavam a vida dos múltiplos agentes envolvidos.

São investigações sobre a história social na região do rio Madeira, área situada ao Sul do Estado do Amazonas, que abarcam um período que vai de meados do século XIX a meados do século XX. Todos os textos vinculam-se a ideia de construção de uma fronteira étnica1 reveladora das complexas teias de alianças e das múltiplas relações de conflito que atravessaram as histórias dos grupos sociais envolvidos. Destaca-se ainda o fato de que as mais recentes pesquisas no campo da história e das ciências sociais na Amazônia têm adotado como eixo articulador de temas e problemas de investigação os rios2 que compõem a bacia hidrográfica da região. Aparentemente, não há distinção entre as novas pesquisas e o clássico trabalho de Leandro Tocantins. Entretanto, hoje os rios emergem como uma unidade política de reflexão e mobilização, marcada por situações sociais que redefinem as modalidades de percepção, pois estão relacionadas a uma tomada de consciência ambiental.3

Embora esteja ligado a um dado natural, o que está em jogo na atualidade é a compreensão sócio-histórica das transformações pelas quais os povos que vivem nesses rios vêm passando, certamente como resultado de suas próprias ações, bem como a busca do entendimento das estratégias de dominação desenvolvidas pelos aparelhos burocráticos de poder ligados a contextos mais amplos. Trata-se de se estabelecer relações entre contextos locais e as dinâmicas mais ampliadas do capitalismo global, evitando-se, portanto, abordagens de caráter regional, desvinculadas dos elementos transnacionais que ligam a história da Amazônia ao sistema mundo.

Essa é abordagem proposta por Antônio Alexandre Isídio Cardoso ao problematizar as relações que se estabelecem na fronteira étnica formada por povos indígenas, operários e engenheiros de diversas origens étnicas e sociais no contexto de construção da rodovia Madeira-Mamoré. Recuperando os relatos de Ernesto Matoso Maia Forte, secretário da Comissão Morsing, Cardoso situa os diversos momentos em que os encontros de alteridade entre Mundurucu, Mura, Acanga-Piranga e os adventícios exploradores do rio, se deram. Tensões, conflitos e também múltiplas possibilidades de agência permeavam as relações sociais entre esses múltiplos agentes.

Essa vertente analítica também foi explorada pelo texto de Jorge Oliveira Campos ao investigar o avanço da frente de expansão de comerciantes e seringalistas sobre os territórios étnicos dos índios Parintintin desde meados do século XIX. A sanha capitalista de acesso aos recursos naturais que estão dentro dos caminhos da guerra dos Kawaiba, transforma esses povos indígenas e alvos privilegiados de ataques e correrias. A estratégia Parintintin de fazer a guerra mantem-se intacta por toda segunda metade do Oitocentos e adentra os anos iniciais do século XX.

Conforme demonstrado por Jordeanes Araújo, os Parintintin passaram a adotar uma nova estratégia etnopolítica a partir dos movimentos de aproximação e “pacificação” entabuladas pelo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais” (SPILTN), tendo como principal mediador o mais conhecido e respeitado indigenista atuando no Brasil à época, Curt Nimuendajú. A parir de 1921, pequenos grupos foram se aproximando dos barracões de Manoel de Souza Lobo, um dos mais destacados seringalistas da região do médio e alto Madeira, e estabelecendo relações de trabalho e sociabilidades com os moradores do seringal Três Casas.

Vanice Siqueira, Alik Nascimento e Letícia Pereira abordam as dinâmicas históricas e territoriais dos índios Mura na região do médio e baixo Madeira. Remontando aos conflitos do século XVIII, as autoras(es) recuperam a forma como para os índios Mura a fronteira étnica foi sendo redefinida. Das guerras contra a dominação europeia na região do interflúvio, passando pela debatida redução dos Mura e o processo de “pacificação” até o retorno dos conflitos já contra as forças imperiais no período da cabanagem, os Mura foram historicamente definindo espaços de resistências e formas de apropriação das relações étnicas.

O processo de esbulho e intrusão dos territórios étnicos no rio Madeira segue no século XX, gerando tensões e conflitos nas áreas de coleta de castanha. Dário Duarte e Davi Leal recuperam essa dimensão para o rio Anitinga, município de Manicoré, a partir da reveladora trajetória de Carolina Rosalina de Oliveira, índia Mundurucu, que liderou uma revolta contra Hélio Rego e Raimundo Avelino, dois comerciantes locais que intentaram intrusar as terras da comunidade. A disputar ganhou as páginas dos grandes jornais do Estado, gerou uma interessante documentação no SPI e chegou ao conhecimento do presidente Juscelino Kubitscheck quando da sua passagem por Manaus em 1956.

Os textos confluem, portanto, para desvelar aspectos muitas vezes insuspeitos do processo de construção política das relações de alteridade, em um contexto histórico fortemente impactado por forças econômicas exógenas que haviam se vinculados às correntes mercantis e que passaram a adentrar a região do rio Madeira em meados do Oitocentos.

Referências

ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. Seringueiros, Caçadores e Agricultores: trabalhadores do rio Muru (1970-1990). São Paulo: PUC-Dissertação de Mestrado, 1995.

BARAÚNA, Gláucia Maria Quintino. As políticas governamentais que afetam as “comunidades ribeirinhas” no municipio de Humaitá- Am, rio Madeira. In: ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Conflitos Sociais no Complexo Madeira. Manaus: UEA edições, 2009.

BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2000.

DAVIDSON, David M. “Rivers and Empires: The Madeira Route and the Incorporation of the Brazilian Far West, 1737-1808, Ph.D. diss, Yale Univ. 1979;

MENEZES, Elieyd. Conflitos socioambientais e transformações sociais em Novo Airão. In: ALMEIDA, Alfredo W. B. de. (Org). Mobilizações Étnicas e Transformações Sociais no Rio Negro. Manaus, UEA edições, 2010.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1973.

Davi Avelino Leal


LEAL, Davi Avelino Apresentação. Canoa do Tempo. Manaus, v.13, n.1, p.3-6, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF]. Acessar publicação original [IF].

Fascismos (?): análises do integralismo lusitano e da ação integralista brasileira (1914-1937) | Felipe Cazetta

Filosofia e Historia da Biologia 24
Fascismos… | Detalhe de capa |

SCOTT The common wind 24En la amplíssima literatura dedicada al anàlisis del fascismo, no faltan los trabajos comparativos. A título de ejemplo pueden citarse a Linz, Poulantzas, Nolte. Payne, Levy, Felice y se puede recordar que uno de los primeros congresos, después de la revolución de los claveles, que reunieron a los historiadores portugueses en 1986 [2], recibió las contribuciones de sus colegas (Woolf, Payne, Tusell, Paxton, Gentile, Fischer.Galati. Kühnl….) de otros países que precisamente se habían dedicado a esta labor comparativa. Pero, salvo alguna excepción [3] no abundan las investigaciones que contrastan la evolución del ideario fascista entre Europa y América Latina, y aún menos, estrictamente entre Brasil y Portugal. Por lo tanto, esta ausencia que ahora queda cubierta, sería una primera razón para poner de relieve el valor de la obra de Felipe Acevedo Cazetta

Una segunda razón para resaltar este trabajo es que el realizar esta comparación, permite iluminar con mayor intensidad determinados aspectos, que si solo se hiciera un examen nacional no saldrían a la luz. Una tercera razón es la coherencia y el rigor de este libro que es el resultado adaptado de una tesis presentada en el año 2016

El autor de este libro acierta con su título “Fascismos”, por cuanto como más se profundiza en el análisis del fascismo más se descubre que, sobre un fondo comùn, aparece su carácter heteróclito. Así cada vez está más claro que hubo variadas expresiones fascistas influenciadas por las evoluciones económicas, sociales, políticas y culturales de cada estado, que aun dentro de un mismo país, estas expresiones tenían connotaciones diversas y que fueron adaptando su discurso en las diferentes fases que vivieron. Este es el caso del integralismo lusitano y de su correspondiente brasileño. No solo hubo organizaciones diversas sino dentro de ellas, discursos relativamente heterogéneos, que de todos modos alimentaban un tronco común. Descubrir este tronco común y al mismo tiempo ser sensible a las diferencias no es tarea fácil. Esto es lo que hace esta publicación

Esta característica se pone de manifiesto en este libro por cuanto su principal óptica es la de hacer un análisis teórico doctrinario de los fascismos brasileño y portugués y ver cuales son sus principales similitudes y diferencias y sus mutuas influencias. Para concretar este objetivo, el autor recorre a explicar sintéticamente las biografías de los principales líderes, a estudiar detalladamente sus discursos y publicaciones y a rastrear las referencias que se hacían mutuamente, en sus periódicos y revistas, donde destacan Naçao Portuguesa y América Brasileira

Viajes, contactos, noticias, artículos compartidos y alabanzas mutuas prueban que el Integralismo Lusitano y el Nacional Sindicalismo de este país no estaban tan lejos de la Acçao Integralista Brasileira y aun de la Acçao Imperial Patrianovista Brasileira. Durante un cierto tiempo bebían unos de otros y encontraban una común inspiración en Maurras y el corporativismo que la Iglesia católica preconizaba desde la encíclica Rerum Novarum y que la Qudragesimo Anno de Pio XII reafirmó en 1931. También admiraban los avances de Mussolini en Italia. En cambio, no deja de ser sorprendente que casi no se encuentren referencias a los autores y líderes fascistas españoles o al rumano Manoilescu que fue uno de los divulgadores del corporativismo más conocido en Europa en los años treinta. Parece evidente que la lusofonia y un pasado comùn entre Brasil y Portugal debió jugar un positivo y contradictorio papel entre aquellos movimientos

Contradictorio, porque la afirmación nacionalista y su fijación por reconstruir la historia, propias de estas posiciones, les llevaban a ensalzar la época imperial de Portugal y su dominio sobre Brasil. De ahí que como Cazetta ilustra, algunos líderes brasileiros oscilasen entre la lusofilia y la lusofobia. Pudo más la primera y por lo que parece las relaciones fueron estrechas y positivas. Queda por ahora sin responder la pregunta de hasta que punto estas relaciones fueron favorecidas por los emigrantes portugueses en Brasil y por la propaganda que el Estado Novo hacía en este país [4]. De todos modos, ¿que tenían en común los integralismos brasileño y portugués y sus líderes? En primer lugar, según Cazetta, comparten un pasado literario y hasta cierto punto elitista. Hubiera sido interesante profundizar en el primero ya que el modernismo [5] artístico y literario fue predominante en aquella época y hubiera podido dar algunas claves para entender mejor los origenes culturales de aquellos líderes y de sus expresiones fascistas. No deja de ser curioso que algunos de ellos compartan estudios jurìdicos en las facultades de derecho de Coïmbra y de Recife y Sao Paulo y que allí se forme una identidad de grupo. En el caso portuguès no deja de ser sorprendente que autores tan diferentes como Herculano, Garrett y Antero de Quental sean los referentes anteriores del naciente integralismo

En segundo lugar, ambos movimientos comparten su crítica al liberalismo y a los regímenes parlamentarios a los que adjudican todos los males históricos y reaccionan contra el comunismo. Dios. Patria y Familia podría ser el lema que les une en una concepción tradicionalista que tratan de justificar con una visión histórica peculiar que ellos reconstruyen a su manera. Esta visión les lleva hasta la época medieval en la que florecían organicismo y corporativismo, que constituyen sus fundamentos organizativos para la sociedad que se proponen construir. Un estado fuerte, con ansias expansionistas y centralizado políticamente, pero que otorga poderes administrativos a los municipios les parece ser la mejor fórmula de gobierno. Monárquicos convencidos en su origen, algunos aceptan un cierto republicanismo que no caiga en los defectos de las denunciadas constituciones de 1891 en Brasil y del régimen republicano portugués de 1910

La descripción de estas características es una parte muy substantiva de este libro, que a veces se hace repetitiva como cuando se alarga la presentación del ideario Maurrasiano. Era casi inevitable, ya que, a pesar de pequeñas matizaciones ligadas a itinerarios personales, las expresiones doctrinarias de estas dos corrientes fascistas se parecen y no brillan por su originalidad. Quizás, hubiera sido útil dedicar más espacio a explicar su articulación con el contexto cronológico y politico de cada país. Esto hubiera facilitado la tarea de los potenciales lectores de los dos países. Los brasileños no conocen muy bien la evolución política de Portugal de después de la primera guerra mundial y al revés, no muchos portugueses saben las vicisitudes de la vida política brasileña

Igualmente, si se hubiesen caracterizado mejor a las organizaciones (fuerza, afiliados, modos de organización interna, actividades externas, …) se habría podido pasar a otros niveles de interpretación [6]. Pero esto se escapa a los objetivos del trabajo. El cual hace avanzar en el conocimiento de dos movimientos protofacistas en sus inicios y más declaradamente fascistas en sus respectivas maduraciones, en dos países, tan lejanos y cercanos, como Brasil Y Portugal

Igualmente contribuye a comprender mejor sus relaciones y mutuas influencias, Abre así un estimulante campo, relativamente inexplorado, que hay que esperar sea cultivado por otros investigadores. En cualquier caso, permite sugerir que las expresiones fascistas en Brasil, como en el caso de Mejico [7], no fueron meras copias o mimetismos de lo que sucedía en Europa

Tuvieron sus rasgos específicos. En este sentido, con esta publicación, se da un paso adelante con respecto a las consideraciones que formulaba Helgio Trindade [8] hace casi cuarenta años atrás

Por fin, para finalizar esta nota de lectura hay que constatar como lo hace Felipe Cazetta que en los últimos tiempos los movimientos y las posiciones de extrema derecha han aumentado no solo en su presencia en gobiernos y administraciones en todo el mundo sino también en las practicas cotidianas de muchos ciudadanos y compartir con el, su preocupación por este crecimiento. Conocer mejor sus origenes y despliegues ideológicos se convierte así en una manera de empezar a combatirlo. Es lo que hace este libro que ahora se recomienda

Notas

2. AA.VV. (1987) O estado Novo. Das origens ao fim da dictadura. 1926-1959. Lisboa Ed. Fragmentos. II Vol

3. Larsen, S.U. (Ed.) (2001). Fascism outside europe. N.Y. Columbia University Press7

4. Paulo.E. (2000 ) Aquí tambem é Portugal: a colónia portuguesa no Brasil e o Salazarismo. Coimbra, Quarteto

5. Griffin,R. (2003) Modernism anf fascism. The sense of a beguining under Mussolini and Hitler. N.Y. Palgrave Mac-Millan.

6. Para una interpretación comparativa de las politicas sociales de los fascismos en Portugal, Itàlia, España y Alemania ver Estivill. J. (2020) Europa nas trevas. As politicas sociais nos fascismos. Lisboa Universidad Nova de Lisboa

7. Meyer, J. (1977) Le sinarquisme: Un mouvement fasciste Mexicain. Paris. Ed. Hachette

8. Trindade, H.(1982) El tema del fascismo en America Latina, Revista de Estudios Politicos n. 50

Jordi Estivill – Universidade de Barcelona – Espanha. E-mail: [email protected]


CAZETTA, Felipe. Fascismos (?): análises do integralismo lusitano e da ação integralista brasileira (1914-1937). Jundiaí: Paco editorial, 2019. Resenha de: ESTEVILL, Jordi. Caminhos da História. Montes Claros, v.26, n.1, p.241-244, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF]

Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica / Almanack / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 32
Fronteira do Brasil com a Venezuela | Foto: Poder 360 |

As fronteiras e as relações transfronteiriças nas sociedades ibero-americanas, tema deste dossiê da revista Almanack, coloca em evidência algumas dificuldades no campo dos estudos históricos que sobre elese debruçam. Primeiro, o caráter polissêmico do próprio conceito de fronteira, principalmente quanto se tem em conta seu uso para diferentes objetos, situações e temporalidades, e sua relação com outros conceitos igualmente importantes para o estudo do espaço, como paisagem e território. Segundo, o recorte interdisciplinar em sua abordagem, tendo em vista as substanciais contribuições da outras ciências sociais, como a geografia e a antropologia, para seu estudo. Por fim, a ampla produção propriamente historiográfica que trata sobre os espaços concebidos como “fronteiras”, seja em relação ao período colonial ou ao nacional, entendidas como confins, limites territoriais, espaços lindeiros ou como zonas de expansão, de mobilidades, circulações, encontros e confrontos socioculturais.

O estudo das fronteiras, seja para os impérios modernos, seja para os Estados Nacionais a partir do XIX, ocupou uma parcela importante da produção historiográfica sobre a América ibérica. A própria montagem das sociedades coloniais no continente põe em relevo a vigência de operações de inclusão e exclusão responsáveis pela delimitação de fronteiras espaciais, culturais, políticas e econômicas. As revoluções de independência e os processos de construção dos Estados Nacionais, oriundos da dissolução dos impérios ibéricos, marcam novos projetos políticos de conhecimento e de controle dos espaços; desse modo, o discurso sobre os limites da nação assume papel de relevo nas projeções de futuro para os novos países e na formulação de ações concretas visando a “territorialização do Estado” [3].

Como dito anteriormente, esse dossiê não compreende somente as abordagens sobre fronteira, mas também propõe a discussão sobre relações transfronteiriças, entendidas como aquelas que vinculavam, de diferentes formas, populações, redes econômicas, discussões políticas e circulações de informação entre espaços imperiais ou nacionais confinantes. De modo geral, os estudos sobre as fronteiras internacionais foram produzidos nos marcos das histórias diplomáticas, valorizando-se as narrativas de constituição das territorialidades e as relações entre as esferas centrais dos poderes monárquicos e nacionais nas negociações sobre as demarcações de limites no espaço americano. De outro lado, as histórias de corte militar, destacando guerras e enfrentamentos nas zonas de litígio, também trouxeram importantes contribuições para as escritas historiográficas sobre as fronteiras. No entanto, pode-se perceber um deslocamento da discussão nesse campo, de um “paradigma estatal” no estudo das fronteiras para uma história mais atenta para as dinâmicas locais – os fluxos, as conexões, os arranjos e as disputas entre populações que habitam espaços fronteiriços – ou para a interação entre local e global noslimites territoriais [4]. É possível, além do mais, constatar uma produção crescente sobre fronteiras ibero-americanas a partir de recortes da história social e cultural, colocando em evidência a análise de fenômenos de mestiçagens e de intermediações em zonas de fronteira, entendidas muito mais como espaços de encontros e confrontos envolvendo múltiplos atores, e não apenas como limites territoriais de soberanias políticas [5].

Esse reposicionamento dos estudos sobre fronteiras não significa desconsiderar as tensões e condicionantes das relações internacionais que marcaram esses espaços, mas colocar em evidência conflitos e colaborações que também envolviam as populações fronteiriças, os sentidos de fronteira construídos por elas, e o impacto dessa dinâmica local na gestão das fronteiras a partir dos centros políticos [6].As interações entre habitantes nos espaços fronteiriços não devem ser compreendidas somente a partir das relações mantidas pelos Impérios modernos e pelos Estados Nacionais, mas também a partir do que Renaud Morieux definiu como uma “diplomacia vista de baixo”, focada na compreensão dos acordos construídos pelas comunidades fronteiriças [7]. Por outro lado, deve-se ter em contaos vínculos entre fronteiras internas e externas, no qual se tecem conexões entre esses espaços limítrofes e os centros administrativos internos, relações essas viabilizadas por diferentes mecanismos e agentes que concretizam as mediações entre poderes locais e centrais [8].

Os textos selecionados para este dossiê cobrem o recorte cronológico do final do século XVII à segunda metade do XIX, tratando sob diferentes enfoques as fronteiras internas e externas da América de colonização ibérica e posteriormente das nações latino-americanas. De modo geral, os trabalhos valorizam as relações, conflituosas ou colaborativas, de aproximações ou atritos, mantidas pelas populações que habitavam os espaços de fronteira. Outra questão levantada pelos trabalhos deste dossiê é a mediação política e econômica entre autoridades locais e poderes centrais, bem como a importância dos sujeitos que atuavam como intermediários entre os diferentes grupos presentes nas fronteiras.

No primeiro artigo, a historiadora francesa Soizic Croguennec aborda a multiplicidade de relações e identidades acionadas por sujeitos que habitavam as fronteiras da Lousiana e da Flórida, durante a fase de incorporação dessas colônias no Império espanhol, do final da Guerra dos Sete Anos até o começo do século XIX. Esse espaço constituía uma zona particularmente importante nas disputas imperiais entre espanhóis, britânicos e franceses na América do Norte e no Golfo do México. A partir da documentação judicial espanhola, principalmente sobre soldados e indígenas, a autora analisa como os sujeitos fronteiriços tinham de lidar não somente com as pressões geopolíticas mais amplas, mas igualmente construir suas próprias estratégias individuais e coletivas de sobrevivência e integração nesse espaço, tomando parte de um jogo fluido de alianças e conflitos, com demarcações imprecisas entre o legal e o ilegal, que também influenciou na conformação dos limites imperiais na América do Norte.

Em seguida, Jonas Moreira Vargas toma o caso do brigadeiro David Canabarro para desenvolver, a partir de uma perspectiva microanalítica, um estudo sobre sua trajetória e a formação de redes econômicas, sociais e políticas por ele articuladas na fronteira da Província do Rio Grande com o Estado Oriental do Uruguai entre as décadas de 1830 e 1860. Canabarro estabeleceu-se como grande liderança político-militar local a partir de suas atuações nas guerras que marcaram o sul do Império e a região platina na primeira metade do XIX, consolidando seu poder por meio de formas de negociação com o poder central e com outros segmentos da sociedade na fronteira. Trata-se, desse modo, de uma liderança que, antes de exercer seu poder de forma absoluta, precisavam manejar alianças com os atores do espaço fronteiriço e com o Estado Nacional em formação, destacando-se como mediador entre a burocracia imperial e as elites nos limites meridionais do país.

Jaime Rosenblitt, por sua vez, trata da atuação de quatro comerciantes britânicos na região Tacna-Arica entre as décadas de 1830 e 1860, abordando os fluxos mercantis que operavam nos limites entre Peru, Bolívia e Chile e que articulavam a costa do Pacífico e o altiplano. Muito embora se tratasse de um espaço politicamente secionado pela formação dos Estados Nacionais citados e de um período marcado por disputas político-militares, Rosenblitt destaca o espaço sul-andino como um mesmo território, o que relativizava as divisões indicadas pelas fronteiras políticas. O estabelecimento desse espaço integrado valeu-se, entre outros pontos, da existência de um mercado articulado principalmente pela entrada de manufaturas importadas e pela saída de produtos minerais. A pesquisa da documentação notarial de Arica e Tacna possibilitou ao autor analisar as estratégias e trajetórias desses comerciantes britânicos, os quais se projetaram regionalmente a partir da diversificação de atividades, da associação com grupos mercantis locais e de alianças familiares e políticas. Tomando como foco os quatro comerciantes, Rosenblitt atenta para o papel desses sujeitos na construção de redes mercantis que coordenavamessas fronteiras.

O quarto artigo deste dossiê, de autoria de Rafael Chambouleyron, Pablo Ibáñez Bonillo e Vanice Siqueira de Melo, trata dos projetos de comunicação para a difusa fronteira entre oestado do Maranhão e o estado do Brasil nas décadas finais do século XVII, almejando fortalecer o comércio interno, a comunicação intracolonial e as cooperações administrativas na América lusitana. Além de abordar as projeções enunciadas pelas autoridades coloniais do Maranhão, os autores analisam as estratégias de controle territorial postas em prática nessa fronteira, e como afetaram diretamente as populações indígenas ao promover descimentos de comunidades nativas ou ao decretar a guerra justa. As conexões projetadas para os limites entre as duas possessões portuguesasna América estavam inseridas em um contexto de expansionismo da sociedade e da economia coloniais, objetivando-se realizar a abertura de novas frentes de penetração, de incorporação de terras e de controle sobre a mão de obra indígena.

O historiador equatoriano Santiago Cabrera Hanna investiga os debates e ajustes que marcaram a montagem espacial da estrutura administrativa republicana colombiana no Distrito do Sul (equivalente aproximadamente ao território do Equador), tomando como marcos a aplicação do regime de intendências e a Lei de Divisão Territorial na primeira metade da década de 1820.As reformas aplicadas versavam sobre questões sensíveis ao exercício local do poder e as relações com a administração central, como fiscalidade, aplicação da justiça e organização das eleições. Esse processo foi caracterizado pelas disputas de poder entre cidades e municípios do Distrito do Sul, principalmente entre Quito, Cuenca e Guayaquil, cidades que irradiavam suas zonas de influência no território correspondente à antiga Audiência de Quito. As relações desses poderes locais com o central foram marcadas por ajustes e negociações com lideranças políticas e militares, o que era importante para garantir a administração e a defesa de uma área fronteiriça no sul da República da Colômbia em um contexto de guerras.

Retornando para o Império do Brasil, o texto de Mariana Thompson Flores investiga questões centrais para o entendimento da formação do Estado imperial a partir dorecorte local da fronteira, mais especificamente o oeste da Província do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX, ao tratar de duas instâncias importantes para o exercício do poder: a justiça e a fiscalidade. Nesse espaço, a administração da justiça configura um desafio não apenas pelas dificuldades de provimento do cargo de juiz nas cidades de Alegrete e Uruguaiana, mas também pelas formas de criminalidade que grassavam na fronteira, com intensa movimentação de fugitivos entre países limítrofes. O fisco, por sua vez, era constantemente tensionado pela recorrência do contrabando entre o Rio Grande e o espaço platino, com alianças duradouras entre negociantes-contrabandistas e funcionários da alfândega. Tanto as aplicações da justiça quanto dafiscalidade dependeram, em boa medida, de ajustes e mediações entre poder central e grupos hegemônicos locais, o que tornava possível a capilaridadedessas instâncias de poder e o processo de construção do Estado Nacional “para dentro” quanto também na sua relação com outros Estados confinantes.

Adriano Comissoli, por fim, investiga a política de informação e as práticas de espionagem portuguesas a partir da Capitania de São Pedro do Rio Grande e direcionadas à região do Prata, entre as décadas de 1770-1810. Os extremos meridionais da América portuguesa foram marcados pelo estado de guerra ou pela recorrente tensão nas relações luso-espanholas, de modo que a espionagem desempenhava um papel importante para a comunicação política transfronteiriça e para os planejamentos bélicos das duas coroas ibéricas. Tomando como base a documentação produzida por comandantes militares das tropas de 1ª linha dos distritos do Rio Pardo e Rio Grande, Comissoli analisa as redes de comunicação política operadas por esses oficiais e a presença de espiões lusos na região do Prata.

Como em qualquer dossiê, a seleção aqui apresentada de artigos é extremamente parcial, não logrando abarcar o amplo quadro de objetos, fontes, debates e possibilidades dos estudos históricos sobre as fronteiras na América ibérica. A despeito das limitações próprias dessa empreitada, não se pode perder de vista os avanços que os trabalhos aqui reunidos apontam. Os diferentes espaços em foco, dentro do amplo recorte cronológico dos textos selecionados, são analisados com a devida atenção sobre a interrelação de escalas, vinculado espaços locais e dinâmicas globais. A agência dos atores das fronteiras, suas formas cotidianamente construídas de apropriação do espaço e as mediações culturais, sociais e políticas, são igualmente colocadas em destaque. O olhar atento para os espaços fronteiriços pode trazer à tona outros ângulos de análise ou novos questionamentos que elucidem processos mais abrangentes -como sugere Karl Schögel, as fronteiras oportunizam o estudo de “processos de mescla, transferências e amálgamas que trazem algo novo” [9].A partir dos textos que compõem esse dossiê, o leitor tem em mãos uma amostra qualificada desse potencial.

Notas

3. GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: América Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

4. MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introducción. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y prácticas de integración y conflictos entre Europa y América (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017, p. 17. ZÁRATE BOTÍA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Letícia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazónico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

5. LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnationalreframing of Brazil’sInlandColonization. History Compass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

6. HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge,MA: Harvard University Press, 2015. ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

7. MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford, v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

8. LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras, Op. Cit.,p. 365-385.

9. SCHÖGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilización y geopolítica. Madrid: Siruela, 2007. p. 146, tradução nossa.

Referências

ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: America Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015.

LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnational reframing of Brazil’s Inland Colonization. HistoryCompass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integración y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017. p. 365-385.

MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introduccion. In: FAVARO, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integracion y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017.

MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford,v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

SCHOGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilizacion y geopolitica. Madrid: Siruela, 2007.

ZARATE BOTIA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Leticia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazonico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

Carlos Augusto Bastos – Universidade Federal do Pará. Ananindeua- Pará- Brasil. Doutor em História pela USP, Professor da Faculdade de História do Campus Universitário de Ananindeua/UFPA. Professor do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História/Prof Historia. Autor de No Limiar do Impérios. A frontera entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas projetos, circulações e experiências (c.1780-c.1820). (Hucitec, 2017), além de artigos e capítulos de livros. E-mail: [email protected].


BASTOS, Carlos Augusto. [Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica]. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Histórias das diversões: algumas possibilidades investigativas / Caminhos da História / 2021

Caminhos da Historia CH 1

Como dizer das histórias do que aqui chamamos de diversões? Para conhecer o fenômeno é necessário primeiro considerar a palavra. De acordo com a etimologia do termo, diversão se origina do verbo latim dīvertēre4, o qual, na língua portuguesa, trata-se de um substantivo feminino que pode ser traduzido como aquilo que dá prazer; por isso, afasta o espírito dos assuntos que apoquentam e é empregado como sinônimo de passatempo, recreio, entretenimento, recreação, desvio, distração, divertimento e esporte.

No entanto, compreender a ideia de diversão exige um exercício mais ampliado de percepção do que os sinônimos de um simples olhar etimológico sugerem, já que o uso do termo está necessariamente interligado a experiências concretas e a contextos históricos e culturais específicos. Nesse sentido, para compreender uma dada manifestação considerada como diversão, é preciso situá-la no tempo histórico em que existiu, percebê-la como produto de uma sociedade que a legitimou como costume e interpretá-la por meio das experiências dos indivíduos que a vivenciaram em seu cotidiano.

Sendo assim, as práticas que chamamos de diversão são muitas e atemporais: equitação, tiro, leitura, pintura, bordado, encontros amorosos; sentar no passeio, caminhar na praça, ir ao bar, conversar na esquina após a missa; assistir ao filme, ao futebol, praticar esportes de maneira recreativa, viajar, integrar um grupo musical ou simplesmente fazer cantoria nas ruas, vielas e avenidas; organizar e integrar uma festa; passar na sorveteria depois do trabalho, desviar o caminho de casa para penetrar no desfile de um bloco carnavalesco ou beber um paliativo no cabaré; laçar a vaca, o boi, o touro; aproveitar o escuro da sala do cineteatro antes e depois do espetáculo; desbravar-se em atividades de aventura; fazer da rua um lazer; subir em árvore; coordenar uma apresentação dançante ou simplesmente dançar em um, dois, três, sem limites.

O dossiê aqui apresentado é fruto de uma coletânea de artigos sobre manifestações de diversão em diferentes regiões do país, tais como Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Ainda que representem localidades particulares e estejam situadas em tempos históricos díspares, as investigações se conectam em muitos aspectos, compartilhando práticas, eventos e produções culturais.

O artigo de autoria de Renata Oliveira e Ronaldo de Souza Júnior, intitulado “Itinerantes e Citadinos: a Companhia de Teatro Coimbra e suas interações com a população de Diamantina / MG”, destaca a presença da Companhia Coimbra no Teatro de Santa Izabel, em Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1899. Para os autores, o estabelecimento foi, ao longo da segunda metade do século XIX, um dos principais espaços de divertimento da cidade, chamando a atenção o tempo em que a Companhia esteve na cidade, e os constantes noticiários carregados de elogios por sua atuação. Os autores concluem que, durante os nove meses de apresentação na cidade, os espetáculos contribuíram para a divulgação de atividades públicas de diversão, com aspectos instrutivos no que tange ao ensino da atuação teatral para a população de Diamantina.

O texto assinado por Marcela Ariete dos Santos, intitulado “O teatro em Mato Grosso (1877-1928)” analisa a forma de organização desta prática naquele período, abordando-a como um forte elemento da diversão no estado. Algumas das conclusões da autora residem na constatação de que os espaços físicos do teatro em Mato Grosso eram todos particulares e apresentavam estruturas ainda incipientes, com tempo curto de sobrevivência, principalmente por falta de recursos financeiros. A autora ainda destaca que, na óptica da imprensa, além de um entretenimento, o teatro tivera também grande importância entre os ideais civilizadores e educativos.

Já o artigo de Fábio Santana Nunes, intitulado “ ‘A Los Toros!’: As touradas em Feira de Santana (1893-1905)”, almeja identificar e analisar os espetáculos tauromáquicos promovidos em Feira de Santana, Bahia, na transição entre os séculos XIX e XX. Nos espetáculos de Feira de Santana, de acordo com o autor, foram identificados toureiros profissionais espanhóis e a possível presença de portugueses, inexistindo evidências de toureadoras. Relata ainda que, para atender as touradas na cidade, existiram arenas armadas provisoriamente em espaço já projetado, o hipódromo, ou em área aberta contígua ao traçado urbano orgânico, o Campo do Gado. O autor conclui que a festa de touros se expressou na cidade como uma diversão mercantilizada exibida de forma esporádica por companhias tauromáquicas itinerantes, já que as práticas experimentadas não foram capazes de transformála em um divertimento tradicional na cidade.

O texto de autoria de Rogério Othon Teixeira Alves e Georgino Jorge de Souza Neto, intitulado “Volley-ball e Basket-ball no sertão mineiro: o advento dos esportes americanos em Montes Claros-MG na primeira metade do século XX”, tenciona investigar a veiculação e o desenvolvimento dessas modalidades e sua profunda relação com um evidente processo de incremento de uma cultura esportiva local. Os autores destacam que, ao passo em que entidades como escolas e associações vão surgindo, algumas práticas esportivas destacam-se no projeto modernizador / civilizatório em curso, para além do decantado e popular futebol. Relatam, ainda, a ocorrência dos festivais esportivos no período, com destaque às partidas de voleibol e basquetebol, que acentuavam a busca da distinção de uma coletividade atenta às novidades modernas, especialmente pelo viés do esporte.

“Bloco afro Ilê-Aiyê: uma história de luta antirracista” é o artigo apresentado por Juliana Araújo de Paula e tem como objetivo apresentar reflexões sobre a constituição do Bloco Afro “Ilê Ayiê”, fundado em 1974. Para a autora, trata-se de um bloco de carnaval que transborda suas realizações para além dessa festa e que tem forte papel social na luta pela igualdade racial. Ressalta ainda que a revisão de literatura da produção sobre esse contexto indica que suas práticas cotidianas de produção, divulgação, compartilhamento e fortalecimento da cultura afro-brasileira e, especialmente, de empoderamento da mulher negra, apresentam-se como tempos / espaços de ações de re-existência.

Outra importante contribuição ao dossiê é o artigo de Jordania de Oliveira Eugenio, intitulado “Os traçados históricos das ruas de lazer presentes na “abertura” da avenida paulista”, que busca refletir de que forma os traçados históricos das Ruas de Lazer, existentes em São Paulo desde 1976, compuseram o encadeamento da abertura para pessoas e fechamento para o tráfego de veículos da Avenida Paulista a partir de 2015. A autora destaca que a implantação do Programa Rua Aberta na Paulista foi cercada por embates e disputas políticas, sendo o seu uso para o lazer um dos principais argumentos dos grupos favoráveis à abertura. Além disso, identificou similaridades e contrariedades entre as Ruas de Lazer que se difundiram em São Paulo a partir de 1976 e o uso da Avenida Paulista após sua “abertura” em 2015. Por conseguinte, conclui que o exercício da cidadania, por meio da apropriação das ruas pelos próprios cidadãos, parece ocupar centralidade – ainda que indiretamente – no processo de ressignificação da Avenida Paulista.

Já o texto de Marília Martins Bandeira e Sarah Teixeira Soutto Mayor, intitulado “A construção da ‘capital brasileira da aventura’: a transformação da cidade de Brotas em destino turístico-esportivo nas décadas de 1980 e 1990”, aborda parte do percurso histórico que culminou na transformação da referida cidade, localizada no interior do estado de São Paulo, em importante destino turístico-esportivo e possibilitou uma construção discursiva que autodenominou a localidade como “capital brasileira da aventura”. O apelo recorrente à especificidade da formação geológica da região alia-se a narrativas fundadoras fragmentadas, provenientes de documentos do início do século XX, reproduzidos no website da prefeitura, folhetos turísticos e matérias jornalísticas, confererindo à cidade uma vocação natural e espontânea para a prática do turismo de aventura. As autoras sinalizam o enaltecimento de certo prestígio, relacionado a uma origem remota, por meio da valorização de um passado selecionado, para legitimar interesses e ações construídos no presente, tais como o ecoturismo esportivo como alternativa econômica menos predatória, ainda que também produtora de certos impactos mal geridos.

Por fim, o artigo de Igor Maciel da Silva, intitulado “O maior cinema na história de Barbacena: panorama dos primeiros anos do Cine-Theatro Apollo (1923 a 1925)” objetiva apresentar um panorama dos primeiros anos de funcionamento do referido estabelecimento, o cinema de rua da cidade de Barbacena, Minas Gerais, que esteve em atividade por maior número de anos, respectivamente de 1923 a 1998, a fim de entender como se deu o funcionamento, qual a equipe de trabalho, público, filmes e programações. O autor conclui que a casa abrigou diferentes tipos de programações adulto, infantil, artística e beneficente; contemplou a presença de diferentes estratos sociais, incluindo pessoas brancas e negras; inovou na compra de filmes e, por fim, incluiu mulheres de modo público em sua equipe de trabalho.

Ao final dessas apresentações dos textos que compõem esse dossiê, ressaltamos a nobre proposta da Revista Caminhos da História, visto que as produções acadêmicas sobre a história das diversões são muitas e multidisciplinares, narradas por diferentes áreas e campos dos saberes, porém, ainda são poucas as propostas que reúnem compilados heterogêneos sobre esse fenômeno.

Nesse sentido, essa reunião de artigos, tomada em conjunto, abarca parte dos desafios mais gerais para a articulação de um campo de pesquisas especializado na história do lazer ou das diversões. Primeiro, o desafio de apreender, simultaneamente, um conjunto amplo e heterogêneo de práticas, desde o teatro ao carnaval, passando pelos esportes, cinema ou outros gêneros de espetáculos, para não mencionar outros mais. Segundo, a necessidade de considerar variações regionais, o que parece especialmente relevante em um país com as dimensões e com os níveis de desigualdades do Brasil. Sudeste ou Nordeste, capitais ou cidades do interior, áreas urbanas ou rurais, são todas clivagens que atravessaram e atravessam o modo de constituição histórica das diversões no país. Quarto, há ainda desafios advindos da necessária contextualização desses fenômenos dentro de um arco temporal maior e mais longo, capaz de oferecer uma compreensão histórica mais profunda. Assim, diferenças e semelhanças entre práticas diversas no fim do século XIX ou nos princípios do século XXI constituem parte do esforço analítico e interpretativo de uma agenda de pesquisas sobre a história do lazer ou das diversões. Finalmente, tudo isso é ainda transpassado pelas relações, ora tensas, ora convergentes, entre forças da economia de mercado e intervenções políticas de diferentes ordens, da mobilização associativa de parcelas da sociedade civil à atuação do aparelho burocrático do Estado.

Um mosaico de problemas dessa ordem não é para um grupo reduzido de autores, mas para uma comunidade acadêmica inteira. Nossa expectativa é que este fascículo ofereça um tijolinho adicional para esta construção, que há de ser bonita e grandiosa. Desejamos excelentes e divertidas leituras!

Notas

4. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon Editora Digital, 2007, p. 272-273.

Igor Maciel da Silva – Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0002-6560-0475 E-mail: [email protected]

Sarah Teixeira Soutto Mayor – Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0003-1643-6223 E-mail: [email protected]

Cleber Dias – Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0001-9126-5992 E-mail: [email protected]


SILVA, Igor Maciel da; MAYOR, Sarah Teixeira Soutto; DIAS, Cleber. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 26, n.1, jan / jun, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Antígona | UFT | 2021

Antigona

A revista Antígona (Porto Nacional, 2021-) destina-se a publicações no campo de História, Educação e Áreas afins, prezando pela produção, pelo ineditismo e pela inovação. Visando difundir as pesquisas dos professores e dos alunos e, assim, ampliando a visibilidade do Curso de História e do PPGHispam.

Antígona, de Sófocles, coloca-se no espaço público como expoente e defensora dos direitos individuais e coletivos, heroína do direito natural, da ética, do desejo, da resistência e da subversão. Por seu nome e sua inspiração, a Revista Antígona deve vivificar propostas que questionam doutrinas pré-estabelecidas, levantando novas problematizações, novas abordagens, novos temas e novas metodologias.

Seus dossiês, artigos, resenhas e traduções devem contribuir para o aprofundamento e consistência da História e da Historiografia, da Licenciatura em História, das Ciências Humanas e Áreas afins, bem como para o debate sobre o Direito dos Povos, desenvolvidos nesse campus. Seu candelabro simboliza a inspiração da chama do conhecimento, da solidão do trabalho intelectual e da luz regeneradora que atravessa caminhos na escuridão.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

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Uberização: a nova onda do trabalho precarizado / Tom Slee

SLEE T Uberizacao 2
Tom Slee / Foto: Sally Montana – Divulgação /

Sobre a obra

O fenômeno da economia do compartilhamento − que se populariza pela propaganda de um negócio em escala local, que conecta proprietários de dados recursos com pessoas em necessidade desses bens − é retratado na obra de SLEE (2017). Através de intensa pesquisa em fontes jornalísticas e utilização de bancos de dados públicos, o autor analisa a atuação de empresas no setor de economia do compartilhamento e desmistifica a propaganda que levou essas corporações a assumirem proporções gigantescas. Ocupando uma significativa proporção no mercado de Wall Street, corporações, como Rappi, Ifood, Lyft, TaskRabbit, WeWork e Airbnb, promoveram lobby nos setores financeiro, jurídico e imobiliário visando à garantia da flexibilização do vínculo trabalhista adotado por essas empresas.

O estudo minucioso de Slee (2017) pode ser tomado como referência para além dos casos descritos pelo autor. Assim, seria possível o extravasamento dessa análise fazendo paralelos com iniciativas atuais de flexibilização dos vínculos trabalhistas em setores nos quais esse impacto ainda é mais tímido, como, por exemplo, no setor educacional. Além do exemplo da massificação de cursos online no Ensino Superior (SLEE, 2017, p 52), nos últimos anos, a categoria do magistério assistiu à implementação de flexibilização do trabalho docente no setor público através da criação do vínculo empregatício de professor eventual. Esse tipo de vínculo não oferece ao trabalhador uma renda fixa, sua remuneração é calculada mediante à demanda por seu trabalho. Dessa forma, o professor eventual trabalha substituindo faltas ou licenças de professores efetivos, recebendo por aulas lecionadas (VENCO, 2018, p 9). Um vínculo empregatício com características que se enquadram no fenômeno de economia do compartilhamento (SLEE, 2017, p14-16) ou uberização do trabalho (FONTES, 2017, p 54). Ainda no campo educacional, as projeções para os próximos anos se relacionam com o desafio da garantia de direitos trabalhistas do magistério a longo prazo. Após a pandemia provocada pela Covid-19, expandiu-se a compra do uso de plataformas para veiculação de atividades pedagógicas por acesso remoto. Essa conjuntura fomenta incertezas sobre a continuidade dos programas de oferecimento de atividades pedagógicas não presenciais fora do período da pandemia. Aponta-se que em uma eventual decisão de continuidade dessas políticas de acesso remoto, estas seriam beneficiadas pela estrutura utilizada no período da Covid-19. Além disso, há receio sobre o investimento no vínculo de trabalho docente por tutoria remota em detrimento da promoção de editais de concurso público para sanar o déficit de professores nas redes públicas de ensino. Dessa maneira, o estudo de caso das corporações da economia do compartilhamento de Slee (2017) permite a extrapolação dessa análise a outras iniciativas que adotam esse mesmo modelo de flexibilização dos vínculos trabalhistas. Nesse sentido, a obra apresenta relevância para o campo das humanidades por sua análise de um fenômeno atual e em corrente expansão. O livro divide-se em nove capítulos que serão descritos a seguir.

Nas notas de edição, por Tadeu Breda e João Peres, e no prefácio à edição brasileira, de Ricardo Abramovay, fica explícito, que no original, Tom Slee (2017) não se utiliza do termo “uberização”. Esse emprego poderia restringir o fenômeno da economia do compartilhamento a apenas essa corporação. O autor utiliza os termos economia do compartilhamento (sharing economy), economia dos bicos (gig economy), consumo colaborativo (collaborative consumption), economia em rede (mesh economy), economia sob demanda (on-demand economy) e plataformas igual para igual (peer-to-peer plataforms) para definir a atuação dessa modalidade de negócios. Dessa maneira, o título original em inglês, What’s yours is mine: against the sharing economy (O que é seu é meu: contra a economia do compartilhamento), não foi traduzido de maneira literal para o português. Essa foi uma opção assumida pelos tradutores por compreenderem que a discussão sobre economia do compartilhamento no Brasil se intensifica a partir da popularização da Uber nas principais capitais nacionais.

O primeiro capítulo da obra de Slee (2017), intitulado “A economia do compartilhamento”, introduz a temática e apresenta o discurso sedutor de propaganda desse setor. A economia do compartilhamento se autodefine como plataformas de conexão de pequenos grupos de compartilhamento com foco comunitário. Contudo, as pequenas empresas que se enquadrariam nesse perfil ou foram compradas ou serviram de transferência de clientes para grandes empresas. Já as grandes corporações desoneram-se de sua responsabilidade com os trabalhadores que empregam, conclamando-se como intermediadores entre aqueles que prestam o serviço e aqueles que o demandam. Ainda no primeiro capítulo, são apresentadas a sequência e a segmentação da obra, a justificativa para sua elaboração e a defesa sobre o perigo da desregulação trabalhista trajada sob o discurso da sustentabilidade e empreendedorismo individual.

O segundo capítulo, intitulado “O cenário da economia do compartilhamento”, apresenta alguns mecanismos que as corporações utilizaram para manterem seus interesses. A organização Peers teve protagonismo na representação das corporações da economia do compartilhamento. Em específico, sobre a promoção de lobby nos setores legislativos e no movimento pela desregulação. A Peers atuou nas disputas judiciais entre a Airbnb contra ações mobilizadas pelo ramo da hotelaria de distintas cidades, assim como atuou na flexibilização de regras para o setor de transporte no estado da Califórnia, o que beneficiou a Uber. Tom Slee afirma que os três setores mais expressivos na economia do compartilhamento seriam o setor de hospedagem (43%), transporte (28%) e educação (17%) (SLEE, 2017, p 55). Em relação ao setor educacional, mostra-se plausível a hipótese de que seu percentual pode ser maximizado a partir da oferta de atividades pedagógicas não presenciais em virtude da pandemia pela Covid- 19. Período no qual houve grande expansão da venda de plataformas para vinculação de aulas online.

O terceiro capítulo, intitulado “Airbnb, um lugar para ficar”, dedica-se à descrição da origem do Airbnb até seu crescimento exponencial, alterando a mobilidade nos centros urbanos de cidades turísticas como Paris. Entre 2013 e 2015, o Airbnb em Nova York contava com 40% de seus anunciadores sendo proprietários de mais de um imóvel. Os anúncios desses proprietários representavam 43% das reservas efetivadas pela plataforma. Fato que invalida o discurso da empresa de representar pessoas comuns, compartilhando acomodações em seus apartamentos com turistas que buscam reservas temporárias. Da mesma maneira, a narrativa Airbnb contra o monopólio de grandes hotéis torna-se retórica vazia diante do investimento de grandes empresas hoteleiras no setor da economia do compartilhamento (SLEE, 2017, p 83). Se há algum prejuízo no setor de hospedagens, este tem sido acumulado por pequenos hotéis independentes com o maior gasto com taxas e regulações. O que torna desigual a competição entre essas acomodações com aquelas que não arcam com os custos da regulação (SLEE, 2017, p 84).

O capítulo 4, intitulado “De rolê com a Uber”, é dedicado à atuação do setor de transporte na economia do compartilhamento. O autor aponta que o manual de redação da agência de notícias Associated Press afirma que o termo economia do compartilhamento não deveria ser usado para descrever as ações da Uber, designando o serviço prestado pela empresa como “serviço de viagem chamada” (SLEE, 2017, p 102). Como a Uber se beneficiou da atuação da Peers e como a relação que a empresa estabelece com seus motoristas enquadra-se nos moldes da desregulação, Slee localiza a empresa no setor da economia do compartilhamento, ao lado da Zip car e Lift. A Uber, ainda que não tenha se associado diretamente aos lobistas da Peers, beneficiou-se de uma campanha promovida por essa associação na Califórnia. Este estado criou, em 2013, uma regulação específica para o setor de Empresas de Rede de Transporte. Esse segmento conta com motoristas sem registro na prefeitura, que não precisam submeter seus veículos ao mesmo tipo de inspeção pelo qual passam as empresas de táxi, por exemplo. Para além da atuação da Uber lucrando mediante a não garantia de direitos trabalhistas e da dispensa de gastos com regulação, a empresa também se mostrou falha na seleção de seus motoristas a partir de critérios de idoneidade que garantam a segurança dos passageiros (SLEE, 2017, p 132).

No capítulo 5, intitulado “Vizinhos ajudando vizinhos”, o autor se dedica a analisar as plataformas que oferecem serviços domésticos de limpeza, trabalhos de manutenção e entregas de supermercado, como a Taskrabbit, Instacart, homejoy e handy. Apesar de serem menos conhecidas no Brasil, são empresas comumente acessadas nos Estados Unidos. A receita é bem parecida com a dos outros setores da economia do compartilhamento: uma plataforma se populariza com o slogan de conectar pessoas que precisam de um serviço e aquelas dispostas a oferecê-lo. Contanto que aqueles que oferecem o serviço aceitem que o deslocamento, que as ferramentas e que os recursos para realização do trabalho sejam custeadas pelo próprio trabalhador. Enquanto, por exemplo, a plataforma homejoy que oferece o serviço, recebeu 40 milhões de fundos de investimento da google (SLEE, 2017, p 166-167).

O capítulo 6, intitulado “Estranhos confiando em estranhos, dedica-se ao trato dos sistemas de avaliação das plataformas como um mecanismo que aferiria confiabilidade. Slee (2017) aponta que o sistema de avaliação pode refletir como o usuário avalia a eficiência do serviço prestado, como o conforto ou presença de lençóis limpos em uma diária de hospedagem.

Contudo, a maioria dos hóspedes não conseguiria avaliar se a acomodação respeita as prescrições de prevenção e combate a incêndio ou se os alimentos a serem consumidos foram manipulados com higiene (SLEE, 2017, p 181-182). Ou seja, o sistema de avaliação dos aplicativos não consegue cobrir questões referentes à regulação do serviço prestado. O sentido de avaliação das plataformas baseia-se em um sistema de reputação sem critérios prévios que orientem a avaliação. Portanto, de maneira subjetiva e informal, em uma sociedade fortemente estruturada pela estratificação social, misoginia e racismo. Como não considerar que esses elementos incidam sobre essas avaliações? Para além disso, Slee aponta para uma tendência no sistema de avaliações, evidenciando a relação frágil entre qualidade do serviço e as notas recebidas (SLEE, 2017, p 189-190).

O capítulo 7, intitulado “Uma breve história da abertura, assim como o capítulo 8, traça um panorama do ambiente digital do qual emergiu a economia do compartilhamento. Slee afirma que a política de dados abertos em vez de produzir mais equidade, substituiu um conjunto de instituições poderosas por outro (SLEE, 2017, p 207). A abertura não poderia ser considerada uma alternativa ao mercado comercial ao passo que convive com este. Por exemplo, o Youtube, ao mesmo tempo que compartilha conteúdo gratuito, também, gera lucro a uma grande empresa (SLEE, 2017, p 210). Assim, o autor aponta que a abertura apresenta uma tendência a criar “mercados menos competitivos e negócios mais poderosos” (SLEE, 2017, p 211).

O capítulo 8, intitulado “Escancarado, analisa a combinação entre lucro e a evocação de um caráter mais pessoal advindo da noção de compartilhamento, manifesto através da internet. O livro encerra-se com a conclusão de Slee (2017), já anunciada no título do capítulo 9 “O que é seu é meu. O autor afirma que os valores não comerciais na economia do compartilhamento foram deixados de lado em prol da expansão do livre mercado. A evocação de um modelo mais humano para o universo corporativo resultou em uma forma mais agressiva do capitalismo, com desregulação das garantias trabalhistas e uma nova onda de trabalho precarizado (SLEE, 2017, p 297).

Síntese

A obra de Slee (2017) brinda a literatura do campo das humanidades ao apresentar um texto que sumariza a gênese e a atuação das corporações da economia do compartilhamento, fenômeno recente e em crescente expansão. O estudo de caso das corporações retratadas permite a extrapolação dessa análise a outras iniciativas que adotam flexibilização dos vínculos trabalhistas em setores em que esse impacto ainda é mais tímido. Como, por exemplo, no setor educacional. Aqui, infere-se que esse setor pode apresentar significativa expansão dentro da economia do compartilhamento a partir da compra em larga escala de pacotes de vinculação de aulas remotas em plataformas online, em virtude da suspensão de atividades pedagógicas presenciais como uma das medidas de contenção do espalhamento da Covid-19, durante o ano letivo de 2020.

Referências

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SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

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Regina Lucia Fernandes Albuquerque – Doutoranda no Programa de Pós graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre pelo Programa de Pós graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro na modalidade técnica de Formação de Professores. Atua com pesquisa em Sociologia da Educação.


SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017. Tradução de João Peres. Resenha de: ALBUQUERQUE, Regina Lucia Fernandes. Cantareira, [Niterói], v.34, p.678-683, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

 

Masculinos & Masculinidades: performances, invenções e práticas / Crítica Histórica / 2020

Inicialmente, gostaríamos de registrar que este dossiê é publicado em um momento crítico da nossa história recente: a pandemia da covid-19, que alterou hábitos e práticas cotidianas, deslocou nossa maneira de ser e estar no mundo, inclusive no âmbito acadêmico, acelerando e forçando uma urgente adaptação a outros modos de vida – mais recluso e individualizado – e rotinas de escrita, de interação social e de trabalho mediadas pelas tecnologias digitais. Ao longo desse processo, no qual ainda estamos imersos, destacamos também que a chamada para este dossiê foi aprovada antes desse cenário de crise sanitária, mas em um momento em que já experimentávamos uma profunda crise política e social, acentuada pela desigualdade de gênero e as violências contra as populações mais vulneráveis.

Nossa proposta inicial foi acolher reflexões e análises diversas acerca das narrativas, das práticas, dos ritos e das produções discursivas contemporâneas sobre os modos de produção e subjetivação masculina, bem como os itinerários sobre ou em torno das experiências das masculinidades. Assim, reconhecemos a relevância e destaque que assume a intersecção dos estudos feministas, das relações de gênero e das sexualidades, como condição de possibilidades para a emergência dessas análises que ora serão apresentadas no dossiê.

Logo, não poderíamos deixar de agradecer a cada autor e autora que se empenhou em escrever e submeter seus manuscritos sob condições atípicas de existência, assim como o trabalho dos pareceristas e dos editores da Revista Crítica Histórica, persistindo e resistindo em tempos de insidiosos ataques ao conhecimento e à universidade pública brasileira.

No Brasil, desde os anos 1990 (MATOS, 2002; SOUZA, 2009; SILVA, 2015, 2018; OLIVEIRA, 2015), os estudos sobre as masculinidades têm se constituído num amplo e complexo campo de análise e investigação sobre os modos de construção dos homens, dos masculinos e das masculinidades. Desta forma, antropólogos / as, sociólogos / as e historiadores / as têm matizado o debate em torno de temas como: violências (CECCHETTO, 2004), sexualidades (SEFFNER, 2003), saúde masculina (GOMES, 2008), corporalidades e indumentária (SIMILI; BONADIO, 2017), “crise” das masculinidades (SIQUEIRA, 2006), transmasculinidades (ÁVILA, 2014), relações de amizade (NASCIMENTO, 2011; SANTOS, 2016), masculinidades e relações raciais (MISKOLCI, 2012; VIGOYA, 2007, 2018; RESTIER; SOUZA, 2019), entre tantos outros. A maioria desses estudos é produzida a partir de uma perspectiva relacional do gênero (MATOS, 2002; GROSSI, 2004; GIFFIN, 2005; PEDRO, 2011), mostrando que, se as mulheres não foram sempre as mesmas ao longo da história, os homens (AMBRA, 2015), muito menos.

De acordo com o historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, fazer uma história dos homens é pensá-los “não mais como indivíduos ou partícipes de feitos coletivos, mas como gênero, não a história de homens como agentes do processo histórico, mas como produtos deste mesmo processo” isto é, “a história de homens construindo-se como tal, a história da produção de subjetividades masculinas, em suas várias formas, a história da multiplicidade de ser homem” (2013, p. 23).

A partir dessa premissa, atenderam ao nosso convite mais de 20 pesquisadores e pesquisadoras que, individual ou coletivamente, colaboraram na reflexão, análise e compreensão das múltiplas maneiras de ser e de se fazer homem no Brasil e fora dele (KIMMEL, 1998, 2005, 2016; WELZER-LANG, 2001, 2004; CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013). Nos campos historiográfico, sociológico e antropológico, mas também na educação, na psicologia, entre outros, são muitas as contribuições que permitem mapearmos a produção das subjetividades masculinas e assim aguçar a reflexão que, ao tensionar esses campos disciplinares, evidenciam o potencial do gênero enquanto categoria de análise histórica (SCOTT, 1994).

Todavia, antes de situarmos cada texto, gostaríamos de destacar também a imagem que integra a capa deste Dossiê na Revista Crítica Histórica. Sob o olhar e foco atento das lentes do fotógrafo brasileiro Leonardo Barros Medeiros, temos a fotografia Guardarropa, protagonizada por um modelo espanhol e que faz parte da série ACasa|OCorpo. A partir de uma articulação entre as imagens, as palavras e as coisas, conforme sugere Didi-Huberman (2012), entendemos que a imagem produz um corte na realidade, mobiliza sentidos, expressa momentos e nos permite observá-la como um sintoma de possíveis mudanças e transformações no espectro das masculinidades. Além disso, a articulação / interposição entre imagem e a palavra, nos possibilita vislumbrar a dimensão poética imanente das narrativas históricas (HUSSAK, 2020). Sendo assim, apresentamos, a seguir, uma breve síntese dos treze textos selecionados para compor este Dossiê, Masculinos & Masculinidades: performances, invenções e práticas.

No artigo que abre o dossiê, Fernando Botton promove um encontro teórico refinado entre Raewyn Connell e Judith Butler. Em Considerações críticas acerca das teorias de Raewyn Connell e Judith Butler para o estudo das masculinidades, Botton apresenta um balanço crítico entre a sociologia connelliana das masculinidades e a teoria butleriana das relações de gênero, focalizando as tensões entre distintas teorizações e concepções de gênero a partir de uma relação assimétrica entre as epistemologias do Sul e do Norte Global. Mediador crítico desse encontro entre a socióloga australiana e a filósofa estadunidense, Botton destaca e evidencia apropriações, aproximações políticas entre a perspectiva queer, tal qual forjada por Judith Butler, e as masculinidades hegemônicas, signatárias dos escritos de Connell.

Kathleen Kate Dominguez Aguirre elabora uma profícua articulação das proposições de autores como María Lugones, Ochy Curiel e Raewyn Connell, em Masculinidades colonizadas e feminicídio na América Latina. Considerando essa abordagem interseccional das categorias gênero, masculinidades e raça, a autora engendra uma teorização sobre a permanência de um “continnum de violência patriarcal moderno-colonial”, denunciando a persistente e histórica violência contra as mulheres (cis e trans) na América Latina.

A partir das críticas feministas, em Intervenções com homens para a equidade de gênero: crítica às abordagens individualizantes, Vanessa do Nascimento Fonseca analisa o predomínio de práticas individualizantes nas políticas de intervenção entre homens, no Brasil, desde os anos 1970, em torno da equidade de gênero. Argumenta-se que os homens são importantes aliados no enfrentamento dos efeitos danosos das relações de gênero, todavia, a autora defende ser necessário que os homens se engajem no enfrentamento e na luta interseccional contra um sistema que articula múltiplos pontos de opressão, indo além de mudanças focalizadas apenas no aspecto da conduta dos indivíduos mas recorrendo ao âmbito coletivo.

Tendo como fonte de análise um artefato audiovisual, em “Não é uma fantasia, este sou eu”: Discussões sobre a representação e performance da masculinidade negra na série Sex Education (2019), Andrey da Cruz e João Paulo Baliscei apresentam Eric Effiong, um jovem negro gay que é o melhor amigo do protagonista da série britânica Sex Education (2019). A partir da desconstrução da personagem, os autores conseguem mapear a intersecção entre gênero e raça na constituição de uma masculinidade afeminada juvenil. Com destaque em três cenas da série, eles pontuam a desestabilização causada por Eric Effiong no sistema hegemônica da masculinidade, bem como a cobrança que o sistema faz sobre ele, com a concreta homofobia. A masculinidade negra e afeminada performada na série não é uma fantasia, há muitos Erics na sociedade britânica e também na brasileira.

Neste provocativo e instigante ensaio, O negro-lugar do homem preto brasileiro – episódios de racismo cotidiano em AmarElo (2019), Milton Ribeiro posiciona-se do lugar de homem negro paraense e dedica sua análise à obra de Emicida, AmarElo. O corpo é lido e percebido a partir do “negro-lugar” que ocupa na sociedade brasileira, enfrentando o racismo multifacetado. Em uma análise cuidadosa e problematizadora das letras das músicas que compõem o álbum, Ribeiro destaca as resistências e o ritmo da música também embala a leitura do texto. Ao final, ou mesmo antes disso, será impossível não buscar o álbum para ouvir cada música e atentar às palavras problematizadas no texto.

Salientando as dinâmicas específicas das relações de gênero no espaço escolar, no artigo Espaços de meninos: reflexões sobre a construção das masculinidades por adolescente de uma escola pública do município do Rio de Janeiro, Aline Carvalho apresenta uma importante iniciativa desenvolvida em uma escola pública no Rio de Janeiro, em que os meninos foram convidados a refletir e falar sobre si mesmos. Amparada na literatura sobre as masculinidades hegemônicas, Carvalho oferece aos leitores e leitoras uma instigante reflexão sobre como a educação escolar formal pode contribuir para a promoção da igualdade de gênero a partir da intervenção dialógica com meninos na fase da adolescência.

Ainda no campo educacional, mas agora focalizando outra personagem de destaque, em Professores homens nos anos iniciais: relações de gênero e formação docente, Thomaz Fonseca e Anderson Ferrari problematizam a, por vezes incômoda, presença de professores homens nos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede pública municipal de Juiz de Fora, MG. A pesquisa demonstra o que comumente é percebido sem muita dificuldade: a rara presença de homens cisgêneros na docência dos anos iniciais; mas vai além disso, ao acompanhar os percursos trilhados por esses docentes, destacando suas estratégias e desafios enfrentados, particularmente ao terem que responder às interpelações de gênero que lhes foram colocadas ao longo de suas carreiras.

Tomando como ponto de partidas as mudanças históricas nas relações de trabalho e familiares, após os anos 1990, que possibilitaram o aumento de mulheres na condição de provedora do lar, em O declínio do homem provedor chefe de família: entre privilégios e ressentimentos, Caíque Diogo de Oliveira argumenta como as mudanças gestadas no capitalismo em sua dimensão neoliberal, tem feito com que muitos homens assumam uma posição ressentida diante das novas dinâmicas das relações de gênero e, por isso, acabam buscando num passado idílico um lugar de segurança e de mando masculino.

O que querem os homens pais? Qual o sentido da paternidade? Pode um filho ou filha fazer um homem gozar da paternidade? Há uma paternidade gestante? Essas são algumas das perguntas suscitadas pelo cuidadoso artigo de Camila Rebouças Fernandes Masculinidades e paternidades: novos olhares. Com um trabalho de campo realizado em um serviço de pré-natal na cidade do Rio de Janeiro, Fernandes aborda as expectativas de mudanças experienciadas por 10 homens-pais que acompanhavam as mulheres-gestantes e oferece algumas pistas valiosas para pensarmos sobre as paternidades na contemporaneidade.

Em “Contra as investidas leoninas de uma indomável fera humana”: masculinidades e família, Lucas Kosinski problematiza como determinada concepção de masculinidade hegemônica foi produzida e volatizada pelo discurso jurídico de Iraty, região interiorana do sudeste do Paraná, entre os anos de 1912 e 1920. Na ocasião, o autor argumenta como um ideal de branquitude da população brasileira também foi agenciado nos discursos e práticas jurídicas e políticas no intuito de normatizar as relações de gênero através de uma judicialização das condutas, dos corpos e dos desejos.

Atenta ao carnaval em Porto Alegre / RS no final do século 19, em Masculinidades e carnaval na Porto Alegre do último quartel do século XIX, Caroline Leal dedica sua análise à emergência de duas importantes sociedades carnavalescas: Esmeralda e Os venezianos. Para realizar esse estudo histórico, Leal recorre à imprensa do período e percebe como masculinos e masculinidades foram gestados na reconfiguração da festa de rua e nos bailes fechados. Nesse exercício analítico, a autora também percebe a constituição de hierarquias produzidas a partir da classe social e destaca como esse “novo carnaval” fez parte de um jogo político mais amplo, que pretendia refletir e representar a modernização do país.

Daniel Welzer-Lang (2001) escreve sobre alguns espaços esportivos que são historicamente constituídos como masculinos, como os estádios de futebol. Sendo assim, no artigo Reflexões sobre os abalos da masculinidade hegemônica no futebol: das torcidas gays na década de 1970 aos campeonatos homossexuais da atualidade, Leonardo Martinelli reconhece essa realidade, mas é desafiado por torcedores de futebol da década de 1970 que criam as primeiras “torcidas gays”. Martinelli percorre as publicações que noticiaram essa emergência no Sul e Sudeste do Brasil, problematiza os preconceitos sofridos por esses torcedores autodeclarados como homossexuais e chega até os dias atuais com a criação de campeonatos nacionais que congregam jogadores homossexuais. Da arquibancada ao campo de futebol, Martinelli encontra sujeitos que nessas últimas décadas provocaram a masculinidade hegemônica no futebol. Atento às estratégias mobilizadas por esses sujeitos, o autor também evidencia que a homofobia é como um zagueiro de marcação cerrada, mas que não impede os bons dribles e a invenção criativa de modos de ser homem no futebol.

A alimentação tem gênero? Ou melhor, os nossos hábitos de alimentação também podem ser generificados? A pergunta que mobiliza dois campos aparentemente distantes está presente na análise atenta produzida por Marina Pedersen no artigo Heteronormatividade e homofobia na propaganda de uma hamburgueria. No texto, a autora parte de uma propaganda de hambúrguer publicada no Facebook e desconstrói os símbolos e sentidos das masculinidades que são agenciados na tentativa de incentivar o consumo do hambúrguer; para tanto, demonstra como a carne é colocada como um alimento que além de masculino, serve para confirmar a heterossexualidade compulsória a ser assumida pelo “homem de verdade”. Assim, o prato perfeito da heteronormatividade é composto pelo o consumo de carne, a homofobia e a heterossexualidade masculina.

Por fim, e a partir dos textos citados, enfatizamos a potência que o olhar amplo e multifacetado sobre as masculinidades pode nos proporcionar, complexificando e interrogando as narrativas hegemônicas, e denunciando criticamente as hierarquias sociais pautadas na naturalização da condição do homem, dos masculinos e das masculinidades, apontando outros e novos (des)caminhos na produção histórica, social, política e subjetiva das masculinidades, inclusive nesse tempo pandêmico.

Referências

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Rafael França Gonçalves dos Santos – Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Membro do LabQueer – Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros / UFRRJ. E-mail: [email protected]


Natanael de Freitas Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPHR / UFRRJ / CAPES). Membro do LabQueer – Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros / UFRRJ e do Laboratório de Educação em Direitos Humanos, da UFABC. E-mail: [email protected]


SANTOS, Rafael França Gonçalves dos; SILVA, Natanael de Freitas. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 11, n. 22, dezembro, 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Direitos humanos, sensibilidades e resistências / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2020

A história como ciência, desde há muito tempo, é alvo de disputas políticas e intelectuais que colocam em xeque um discurso amplamente difundido, que sustentava a existência de uma suposta imparcialidade no ofício do historiador e da historiadora. No entanto, ao se aproximar de diversas áreas que compõem as Ciências Humanas e Sociais, com intuito de pluralizar seus sujeitos e objetos, a história, e, portanto, a própria historiografia, viram-se envoltas em problemáticas que as questionavam como campo discursivo neutro, impelindo-as à produção de um tipo de conhecimento marcado pelas posições políticas e ideológicas, que por sua vez, possuem uma forte ancoragem em processos socioculturais do presente que transbordam em subjetividades.

Desta intersecção entre história, novos sujeitos, objetos multifacetados e pluralização dos discursos sobre o passado, a temática dos direitos humanos, surge como um campo que convoca historiadores e historiadoras a pensar a produção de sujeitos, os processos de violação e as diversas formas de existência, em seu atravessamento por questões da interculturalidade, identidades, igualdade, equidade, justiça social e representatividade, entre outras, que constroem as concepções atuais de dignidade humana e respeito a diversidade.

Este Dossiê, n. 36, intitulado Direitos humanos, sensibilidades e resistências, que se apresenta com caráter multi, trans e interdisciplinar, é constituído por dez artigos, uma entrevista, um texto composto por relatos e duas resenhas. Os trabalhos aqui apresentados, versaram sobre as relações da história com os direitos humanos, as sensibilidades e os processos de resistência.

O historiador Reinaldo Lindolfo Lohn no artigo intitulado A utopia dos direitos humanos na cidade: o direito à cidade, reformas urbanas e projeções sociais em Florianópolis (SC) – entre a ditadura e a democracia (1964-2004) discutiu os conflitos gerados pela imposição de reformas urbanas em Florianópolis (SC), ao longo da ditadura militar, com desdobramentos no período democrático. Tomando o acesso à cidade como uma das dimensões dos direitos humanos, o autor discute a constituição do espaço urbano como um elemento de disputa entre as camadas médias e os grupos populares urbanos.

Ernani Soares Rocha e Sueli Siqueira no artigo, Percepção dos jovens sobre o novo território 10 anos depois da desterritorialização: o caso de Itueta, abordaram, por meio de entrevistas, a percepção dos jovens do município Itueta que vivenciaram, entre os anos de 2000 e 2006, o processo de realocação de sua sede em função da instalação da Usina Hidrelétrica Eliezer Batista. Ao centrar suas análises em entrevistas, as autoras buscaram compreender os efeitos dessa Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização, nas trajetórias de vida de jovens e adolescentes que habitavam até então a sede do referido munícipio

O artigo A educação no município de Xaxim: dimensões históricas e políticas da universalização da educação básica (1910-2020), de Paulo Roberto Da Silva e Joviles Vitório Trevisol, analisou a trajetória da educação no município de Xaxim (SC) no período entre 1920 e 2020. Enfatiza que o direito à educação para todas as crianças em idade escolar do Ensino Fundamental tornou-se realidade apenas no final do século XX, demonstrando a existência das desigualdades regionais que estruturam o Brasil no campo das políticas públicas.

Natalia Ferreira, com o artigo Os desafios do tempo presente e a colonialidade da natureza: intersecções para pensar novas sociabilidades, intenciona discutir sobre a colonialidade a partir de seus aspectos, demonstrando as sobreposições das opressões da Matriz Colonial do Poder a partir da análise de linguagens e hábitos recorrentes que são naturalizados por nossa sociedade.

No artigo Ilha da Magia seletiva: religiões de matrizes africanas e a intolerância religiosa em Florianópolis, Hilton Fernando da Silva Pinheiro evidencia os desafios que as comunidades religiosas de matrizes africanas enfrentam, no que se refere aos direitos de fruição ao espaço público. As reflexões partiram da análise de um ato de intolerância religiosa ocorrido em setembro de 2019, na cidade de Florianópolis – SC, que visibilizou os conflitos existentes em torno de símbolos, monumentos, sujeitos e manifestações religiosas de matriz africana.

Com o artigo intitulado Dignidade humana: o desaparecimento do preto velho Jeronymo – Palmas / PR, meados do século XX, os historiadores Renilda Vicenzi e Carlos Eduardo Cardoso, por meio de um inquérito e de um processo crime, do início do século XX, na Comarca de Palmas / PR, buscam compreender as estruturas de racialização e exclusão social, conferidos a população negra, que marcaram de forma profunda a organização sociojurídica do Estado brasileiro.

Susana Cesco, no artigo O que, como e por que censurar: o trabalho de censura da Polícia Federal na década de 1970, analisou o trabalho de censores, autoridades policiais e a própria reestruturação e atuação da Polícia Federal nas décadas de 1960 e 1970 que passou a atuar como órgão responsável pela censura no país. A autora descreve os caminhos percorridos pela política de controle estatal, especialmente no que diz respeito às normas e critérios adotados para proibir e cercear a livre circulação de ideias.

A historiadora Marlene de Fáveri no artigo Violência política em tempo de guerra: a Exposição de Material Nazista: a Exposição de Material Nazista tratou da Exposição de Material Nazista organizada pelo Departamento de Ordem Política e Social de Santa Catarina nos anos de 1942 e 1943, quando o Brasil declarava guerra aos países do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao se debruçar sobre tal processo histórico, a autora visa analisar o papel da Polícia Política na repressão e perseguição de populações originárias da Itália e Alemanha, destacando a atuação de tal instituição na construção de discursos políticos que fomentavam o medo e a repulsa pelo outro entre a população catarinense.

O artigo Marcelino Chiarello: um defensor dos direitos humanos, de Cesar Capitanio e de José Carlos Radin, evidenciou a formação e a militância do vereador Marcelino Chiarello, de Chapecó-SC, sobretudo, o seu envolvimento na defesa dos direitos humanos, relacionandoa com uma formação sociopolítica alicerçada na vertente religiosa da Teologia da Libertação e da influência do Bispo Dom José Gomes. Os autores destacam sua atuação junto aos movimentos sociais e sindicatos, em um projeto que visava radicalizar o campo da política formal.

Com o artigo Rezar, lutar, lavrar: missionários, militares e indígenas na composição das fronteiras da Província do Amazonas (1851 – 1852), Paulo de Oliveira Nascimento abordou o projeto de construção das fronteiras da / na Província do Amazonas, num momento em que as autoridades imperiais (1851 – 1852) buscavam nortear a ação política e administrativa para modernizar a região. Através da expansão da fronteira, pretendiam implementar o projeto geopolítico de “civilização” dos indígenas e modernização da economia naqueles rincões do Império do Brasil, na tentativa de integrá-los a um projeto modernizador da sociedade brasileira

A atual edição de Fronteiras conta ainda com uma entrevista realizada por Kelly Caroline Noll da Silva que dialogou com a professora Solange Ramos Andrade sobre a temática da religião e da religiosidade católica no Brasil Contemporâneo.

Este número da revista traz uma proposta inovadora, com publicação de um texto composto a partir dos relatos das professoras Andréa Vicente, Adriana Fraga Vieira, Adriana Signori, Elandia S. Thiago e Karla Andrezza Vieira. Os textos foram agrupados e denominado Vozes docentes: lugar de escuta em tempos de pandemia. As professoras participaram da mesa redonda “Lugares de escuta: ensinar História em tempos de pandemia” que compunha a programação do XVIII Encontro de História da ANPUH / SC. Além dos tocantes relatos, o texto é introduzido pelo historiador Rogério Rosa Rodrigues, idealizador da mesa e diretor da ANPUH-SC (2018-2020). Os relatos voltam as luzes às professoras da rede básica de ensino e são traduzidos por Rogério Rosa como narrativas contundentes, sensíveis e engajadas.

Finalizando o número, duas obras compõem a seção resenha. A primeira, realizada por José Antônio Fernandes, analisa as discussões presentes no livro Peronismo: como explicar lo inexplicable, obra organizada por Santiago Farrell, que apresenta uma pluralidade de interpretações sobre o Peronismo, observando que tal temática é ainda bastante controversa e pouco homogênea. A segunda, de Kauê Pisetta Garcia, trata-se do livro intitulado Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade, de Caroline Silveira Bauer. A obra se constitui a partir do resultado de uma pesquisa realizada pela autora sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade.

Neste ano conturbado, em meio a uma pandemia – que nos marcou por muitas perdas, a Fronteiras: Revista Catarinense de História reúne textos sensíveis a diversas causas. São artigos, entrevista e relatos envoltos de sensibilidades e que narraram processos de resistências.

Desejamos uma boa leitura!

Ismael Gonçalves Alves (UNESC)

João Henrique Zanelatto (UNESC)

Michele Gonçalves Cardoso (UNESC)

Organizadores do Dossiê Direitos Humanos, Sensibilidades e Resistências

Samira Peruchi Moretto (UFFS)

Editora da Fronteiras: Revista Catarinense de História


ALVES, Ismael Gonçalves; Cardoso, Michele Gonçalves; MORETTO, Samira Peruchi; ZANELATTO, João Henrique. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.36, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Filosofia e História da Biologia | USP | 2006

Filosofia e Historia da Biologia 39

Filosofia e História da Biologia (São Paulo, 2006-) é uma revista da USP com a parceria da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB). Ela integra as publicações do Centro Interunidades de História da Ciência (CHC) da Universidade de São Paulo. Criada em 2006, passou a ter periodicidade semestral a partir de 2010.

Publica artigos resultantes de pesquisas originais referentes a filosofia e/ou história da biologia e suas interfaces epistêmicas, como história e filosofia da biologia e educação científica.

[Periodização semestral].

Acesso livre.

ISSN 1983-053X (Impressa)

ISSN 2178-6224 (Online)

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Perda de informação e de bens em arquivos e instituições responsáveis por guarda do patrimônio / Revista do Arquivo / 2020

Sinistro, palavra comum no jargão arquivístico e também no vocabulário de seguradoras e órgãos de prevenção a desastres, em quaisquer dos sentidos indicados por sua sinonímia transmite ideia de negatividade.

Segundo o dicionário [1], no adjetivo, sinistro é tudo o que é de “mau agouro, que pressagia desgraças”, ou ainda que “infunde temor, ameaçador, assustador, temível”, ou “o que provoca o mal, perigoso, pernicioso… o que é trágico, calamitoso”. No caso específico do significado substantivo da palavra, sinistro é “qualquer acontecimento que acarreta dano, perda ou morte; acidente, desastre, soçobro”, ou “grande prejuízo material, dano …. sobre o qual se faz seguro”, e finalmente, “risco”.

Entretanto, o sinistro aqui é tratado como uma dimensão da preservação. Dito de outro modo, sob o astuto viés da dialética, o sinistro é a preservação em sua negatividade.

Nesta décima primeira edição da Revista do Arquivo, esse ‘mau agouro’, ou ‘acontecimento’ que incide na realidade dos arquivos, é o foco central de nossas preocupações.

Não é para gostar, é para ficar atento!

Introdução ao Dossiê

Desta vez, um pequeno e substancial mosaico de olhares sobre o tema. Cinco assinaturas em quatro textos a refletirem sobre o tema da preservação nas suas variadas dimensões.

Marcelo Chaves e Marcio Amêndola abrem o espectro da Revista com contundente grito de alerta sobre a cotidianidade e a invisibilidade dos sinistros nos arquivos brasileiros. Faltam números e estatísticas, mas sobram condições e motivações para o “mau agouro que pressagia desgraças” nos arquivos brasileiros. Buscam-se números nos silenciosos relatórios administrativos e também na barulhenta e nem sempre consequente imprensa. Leiam e reflitam com A perda de patrimônio cultural como negatividade da preservação.

Uma das maiores autoridades em conservação e preservação de patrimônio cultural e “alto funcionário” do ICCROM [2], Luiz Pedersoli nos deu a honra de sua entrevista que destila muito conhecimento, equilíbrio e assertividade: O gerenciamento de riscos é um processo contínuo e tem que constar entre as prioridades institucionais.

Tratando da Perda de informações e de bens em arquivos e segurança da informação e o viés digital, Vanderlei dos Santos reitera estudo realizado pelo Ministério da Justiça canadense, que conclui serem quatro os grupos que ameaçam a segurança da informação nos arquivos digitais: a) de natureza tecnológica; b) falha da instituição na adoção de medidas de segurança adequadas; c) ação de usuários autorizados; e d) ação de usuários não autorizados. Confiram!

“Então, é fundamental a visão da preservação digital sempre levando em consideração o que eu chamo do tripé do documento digital, que é o hardware, o software e o suporte, ou seja, onde a informação está registrada”. Com esse trecho da ótima entrevista que conclui o brilhante bloco introdutório, convidamos o leitor a ‘escutar’ com atenção as orientações de Humberto Innarelli em texto intitulado Sinistros em ambientes digitais de arquivos.

Artigos

Recomendações para acervos de arquivo após perdas causadas por incêndio é o título de artigo em que “apresenta-se parte dos resultados da pesquisa que teve como objetivo servir de orientação para o desenvolvimento de um plano de recuperação do acervo pós-desastre. Tudo isso baseado no caso da Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR), sinistrado em setembro de 2018”. Os seus autores são Jorge Dias da Silva e Eliezer Pires da Silva.

Denise Aparecida Soares de Moura, no seu Montando as peças de um quebra-cabeças: dispersão de informações e bens em arquivos, trata de um dos fenômenos mais comuns e dos menos difundidos no rol de sinistros que causa perda de informações e fere pilares da ciência arquivística, como os princípios da proveniência e da organicidade dos documentos de arquivo: trata-se do pouco conhecido fenômeno da dissociação.

“Cada vez mais, obras de arte, artefatos arqueopaleontológicos, antiguidades, fauna/flora e obras bibliográficas são subtraídas, furtadas ou roubadas de seus lugares de salvaguarda para que sejam empregadas no mercado internacional…”. Este tema abordado por Rodrigo Christofoletti e Nathan Agostinho é de suma importância e remete-nos à reflexão sobre os sistemas de segurança das instituições de guarda de bens culturais. Leiam Tráfico ilícito de bens culturais: uma reflexão sobre a incidência do furto de patrimônio bibliográfico raro no Brasil.

Pablo Antonio Salvador Vasquez e Maria Luiza Emi Nagai são autores que nos apresentam a Contribuição da tecnologia de ionização gama na recuperação de acervos do patrimônio cultural, a partir de revisão bibliográfica e de exposição de práticas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Um alento em meio às sombras.

Isis Baldini escreve ensaio em que arrola dados comparativos de diferentes fontes, de vários sinistros ocorridos no mundo, e no Brasil, em particular, chamando a atenção para o aumento significativo desses eventos nas instituições de patrimônio cultural. Suas análises são também baseadas em ocorrências experimentadas em sua vida profissional, com as quais ela se deparou “com inúmeras situações de emergências, sendo que algumas vieram a público, pela sua própria magnanimidade do evento, e outras não”.

Ainda dentro do tema do dossiê, esta edição nº 11 oferece aos seus leitores a oportunidade de acesso inédito em nossa língua pátria, ao excelente artigo do canadense Jean Tétreault, gentilmente cedido e autorizado pelo periódico Jornal da Associação Canadense para a Conservação e Restauro (J.CAC). Trata-se de verdadeira obra de referência sobre o assunto.

A subseção Autor(a) convidado(a) traz excelente texto coletivo que nos oferece a oportunidade de conhecermos Waldisa Rússio, sob a perspectiva apontada pelos complexos trabalhos de organização do arquivo pessoal dessa importantíssima museóloga brasileira. A assinatura é coletiva e multidisciplinar: Viviane Panelli Sarraf, Paula Talib Assad, Karoliny Aparecida de Lima Borges, Sophia Oliveira Novaes, Guilherme Lassabia Godoy, Carlos Augusto de Oliveira e Lia Cazumi Yokoyama Emi. O título do artigo é Museus, Arquivos Pessoais e Memórias Coletivas – uma análise baseada na experiência de sistematização do Fundo Waldisa Rússio no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Tanto conteúdo de primeira qualidade é para encher de alegria e de orgulho a instituição e os editores da Revista do Arquivo.

Intérpretes do Acervo

Karoline Santana Moreira, assistente social e pedagoga, Katherine Cosby, historiadora e Joyce A. Martirani, comunicadora social. Pesquisadoras, cujos interesses abrangem distintas áreas do conhecimento e a busca por dados e contextos que agregam veracidade às suas respectivas linhas de pesquisa, tendo em comum a singularidade da presença no (do) Arquivo do Estado de São Paulo.

Prata da Casa

Desta vez, não é um setor em destaque, mas uma atividade coadjuvante e silenciosa para resguardar o trabalho dos diversos setores e fazeres técnicos de uma instituição arquivística. Convidamos o leitor a conhecer um pouco das estratégias utilizadas por profissionais responsáveis pela coordenação dos trabalhos de gerenciamento de riscos no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Vitrine

Os dramas para quem quer pesquisar arquivos da televisão brasileira; a riqueza dos documentos cartoriais para a escrita da História; a falta de visão patrimonial para manutenção de arquivos escolares e crônica de memórias de uma garagem. Esses são grandes assuntos tratados no formato ligeiro desta seção, assinados, respectivamente, por Eduardo Amando de Barros Filho, Mara Danusa Bezerra, Priscila Kaufmann Corrêa e Isaura Bonavita.

Arquivo em Imagens

O inverso (perverso) da preservação. O título já nos incita a um mergulho em imagens do “lado B” da preservação. Para quem tem sensibilidade e apreço pelo patrimônio cultural, são imagens chocantes, como uma arte em estado degenerado.

Memórias na Pandemia

Oferecemos duas distintas expressões do impacto da “pandemia” em nós. Camila Brandi, que condensou suas sensações relacionadas ao cotidiano do(s) arquivo(s), no exato dia 19 de junho; e Isaura Bonavita, em sua crônica lírica desaguada na poesia de Cora Coralina.

Atentem. Comentem. Critiquem!

Notas

1. Ver: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=kLNdM

2. Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (a sigla ICCROM é a original do Inglês)

Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 11, out., 2020. Acessar publicação original [DR]

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The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith – Workers and Race before Liberation Theology | Ricardo Cubas Ramacciotti

O livro “The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884-1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology”, deRicardo D. Cubas Ramacciotti, publicado em 2018, chegou em boa hora. Abrange uma temática importante para o campo dos estudos sobre a história do catolicismo na América Latina na virada do século XIX para o XX.

Destacamos, ainda, a alta relevância que os temas relacionados à relação entre religião e política têm tido nas últimas décadas. Não se trata mais tão somente de conflitos localizados, na Irlanda, na Palestina, nos Balcãs, como o noticiário internacional tornara rotineiros no último quartel do século XX. Para compreender e analisar a conjuntura política internacional, nacional ou regional tornou-se indispensável nos despirmos das fantasias iluministas. As interpretações iluministas consideraram os espectros da irracionalidade produzidos por séculos de predominância da dominação religiosa e da sacralização do poder como superados, dado o avanço do desencantamento do mundo.

À relevância da obra que apresentamos aos leitores de Almanack, junte-se a qualidade de sua edição, publicado na coleção Religion in the Americas Series da prestigiada editora Brill, criada em 1683 em Lieden, nos Países Baixos, e que tem sede também em Boston, nos EUA [3]. Em português tem por título: “A política da religião e a ascensão do catolicismo social no Peru (1884-1935): Fé, Operários e Raça antes da Teologia da Libertação”. Tendo realizado estudos de mestrado e doutorado na Universidade de Cambridge na Inglaterra, o historiador havia feito sua graduação em História na Universidade Católica do Peru. Atualmente, é professor associado na Universidad de los Andes, em Santiago do Chile.

Ricardo Cubas optou pela metodologia e pelas técnicas de pesquisa da história das ideias (selecionando e organizando conteúdos temáticos). Estamos diante de um livro potente, que cobre uma lacuna para os estudos da história do pensamento católico na América Latina. E, diga-se de passagem, “Latina”, porque constituía a América que rezava em latim, na percepção dos maçons das lojas de Londres e da Filadélfia, tão atuantes que foram nos processos de independência dos países ao Sul do rio Grande (do México até a Patagônia). A nosso ver, mais importante do que destacar as disputas entre Inglaterra e França pelo espólio dos impérios ibéricos no século XIX, convém atentar para o olhar colonial dos agentes dos novos impérios, que levou os franceses a proclamarem suas afinidades com a latinidade para justificar suas ambições imperialistas. Entretanto, as associações entre a catolicidade da América Latina e o “atraso” e outras desqualificações intelectuais e morais se apresentaram no palco destas disputas e estão a produzir efeitos políticos e ideológicos que ecoam até o tempo presente. [4]

O livro aborda a problemática da relação entre religião e política no contexto mais amplo do conflito entre o catolicismo e os movimentos de secularização da sociedade peruana. Analisa o processo de renovação do mundo católico, face às transformações socioeconômicas da expansão global do capitalismo industrial a partir da década de 1860. A temporalidade enfocada vai de o fim da Guerra do Pacífico (1879-1884) até os anos imediatamente posteriores a crise mundial de 1929 e a queda do regime de Augusto B. Leguía em 1930. Neste período, a formação histórica peruana iniciou um processo de reconstrução nacional caracterizada pela aplicação de novos modelos de crescimento econômico e desenvolvimento urbano.

Entretanto, os processos históricos transnacionais não implicaram tão somente questões referidas à expansão econômica e modernização urbano-industrial. Em toda esta temporalidade abrangida pelo livro em tela, ocorreram disputas entre a reação conservadora (do fundamentalismo católico ultramontano) e o processo de modernização e reforma do catolicismo. Durante o papado de Pio IX (entre 1846-1878) ocorreu uma forte reação conservadora que promoveu a devoção ao Sagrado Coração e estimulou a revivificação [5] da teologia tomista, atualizando o neotomismo das reformas religiosas do século XVI (também conhecido como segunda escolástica). No papado seguinte, Leão XIII promulgou a encíclica Aeterni Patris que, mais do que qualquer outro documento, forneceu uma carta para a atualização histórica do tomismo – o sistema teológico medieval baseado no pensamento de Tomás de Aquino (século XIII) que fora atualizado no século XVI; e que se tornou oficial e tido como sistema filosófico e teológico da Igreja Católica na virada para o século XX. Deveria ser normativo não apenas no treinamento de padres nos seminários da igreja, mas também na educação dos leigos nas universidades. Por outro lado, introduziu na igreja de Roma, através da encíclica Rerum Novarum (de 1891), a reflexão sobre a “questão social”, que convocou os católicos a pensarem e agirem diante do avanço do movimento operário organizado internacionalmente (Associação Internacional dos Trabalhadores, de 1864, e II Internacional Socialista, de 1889, marcada pela reorganização após a forte repressão política aos movimentos operários depois da Comuna de Paris, de 1871). Estavam dadas as condições históricas de avanço e consolidação das duas posições políticas que dividem o campo político do catolicismo romano desde o último quartel do século XIX: o integrismo e o solidarismo.

Temos no livro de Ricardo Cubas um enquadramento da circulação de ideias entre Europa e América Latina, que foi tratada em sua complexidade e abrangência, envolvendo tanto um processo de expansão da internacionalização do capitalismo, quanto uma retomada vigorosa do catolicismo e do tomismo [6], que constitui também um processo inscrito no plano internacional. Afinal, “católico” é sinônimo de “universal”.

O livro de Cubas Ramacciotti analisa como ocorreram mudanças no catolicismo em termos globais e como manifestaram-se no caso peruano, onde a secularização do poder implicou um processo de transição de um governo confessional que proibia a culto público de credos não católicos ao reconhecimento legal de diferentes religiões, especialmente a partir de 1915, e, posterior à separação entre igreja e Estado. Também implicou uma influência eclesiástica decrescente sobre a legislação peruana, especialmente sobre temas relacionados à educação pública e à concepção católica de direito natural, família e casamento. O capítulo dedicado a estas questões está muito bem construído.[7] Ocorreram, ainda, a eliminação de tribunais corporativos especiais para o clero e o deslocamento gradual da Igreja de funções que passaram para o controle estatal, como o registro civil, o bem-estar social e a saúde pública. Outra característica, que não é o foco principal de estudo neste livro, mas está bem colocado no livro, foi a transformação das relações econômicas entre igreja e Estado, incluindo uma expropriação antecipada de algumas propriedades eclesiásticas e uma redução gradual – embora não a eliminação – de certos privilégios fiscais e subsídios públicos à Igreja.

Do ponto de vista sociopolítico, a secularização foi caracterizada pela influência de novos atores: liberais, maçons e positivistas, que, por razões muito diferentes, desafiaram a hegemonia cultural e social do catolicismo no Peru. Por outro lado, os protestantes visavam alcançar maior tolerância religiosa para expandir seus projetos pastorais e educacionais. Marxistas e apristas questionaram as estruturas econômicas e sociais do país como um todo e defendiam uma revolução radical. O livro aborda, portanto, um universo de três tópicos interconectados: a resposta eclesiástica à secularização da política, a revitalização interna da Igreja no Peru e a ascensão do catolicismo social. Paradoxalmente, essa situação permitiu à Igreja promover várias iniciativas pastorais, sociais, educacionais e políticas que, por sua vez, foram fundamentais para preservar e expandir a presença católica na sociedade peruana.

A interpretação de Ricardo Cubas é de que a aplicação do pensamento social católico no Peru teve que ser adaptada à realidade específica do país e apresentou respostas distintas daquelas implementadas na Europa. O livro analisa, assim, uma tendência dentro do catolicismo peruano algumas décadas antes do surgimento da Teologia da Libertação, que foi moldada por diferentes paradigmas teológicos e políticos. Tal situação avançou com uma agenda reformista, mas anti-revolucionária, que abordava a nova política social, incluindo os trabalhadores urbanos e as populações indígenas. Essa agenda englobava uma defesa dos direitos individuais e corporativos de trabalhadores e dos índios contra seus detratores e exploradores. Demandava também mudanças legais e institucionais para proteger esses direitos; iniciativas de bem-estar; uma reavaliação de culturas e línguas nativas; e esforços para integrar as populações indígenas.

Na organização dos capítulos, o livro inicia com informações históricas sobre o regalismo no mundo hispano-americano, de fins do século XVIII, que deu suporte à monarquia católica. Situou o Absolutismo Ilustrado e suas reformas até a independência política, provocando uma crise eclesial que ficou sujeita às pressões da Santa Aliança e tudo que implicou de afirmação da reação conservadora, na América Latina, tanto quanto na Europa.

As Parte II e III do livro são as melhores que o autor nos apresenta, seja pela pesquisa que aparece em sua plenitude na narrativa histórica empreendia pelo autor, seja pelas novidades que aporta. Nelas o livro se desprende da formatação de pesquisa de tese de doutorado que deixava transparecer até então. Os subtítulos são sugestivos: A revivificação católica (The Catholic Revival) [8] e Catolicismo Social (Social Catholicism) [9]. Nesta parte III, não podemos deixar de ressaltar o tratamento dado à criação dos círculos operários [10], uma estratégia global da igreja romana. Paralelamente à formação intelectual do laicato através de uma política educacional, o catolicismo social voltou-se para o operariado dos centros urbanos latino-americanos (no Peru, e no Brasil). [11]

Entre os pontos altos do livro está a forma como Ricardo Cubas pontua numa cadência bem distribuídas as forças políticas divergentes no interior do catolicismo romano. Analisa, por exemplo, o renascimento da educação católica, e aqui estamos traduzindo literalmente a expressão utilizada no original do texto de tese: “The rebirth of Catholic Education”.[12] No Brasil, a historiografia tem usado outra terminologia para referir-se à reforma católica do final do século XIX: recristianização pelo novo esforço de evangelização e repovoamento das diferentes regiões que compõem o país. A nosso ver, esta outra conceituação é mais adequada, pois, de fato, os episódios analisados envolvem a evangelização promovida durante o período colonial e a estratégia de conversão abrangente através dos colégios dos jesuítas. Com a expulsão dos jesuítas da Europa (que atingiu também as áreas colonizadas nas Américas), no século XVIII, e com o avanço do processo de secularização produzido pela radicalidade da revolução burguesa na França, mas não só, seria demasiado e historicamente impróprio denominar a reforma religiosa de modernização do catolicismo em fins do século XIX de “renascimento da Educação católica”. No Peru, como também no Brasil, ocorreu, desde então, uma pregação religiosa de que o Estado não é capaz de manter escolas públicas de qualidade [13]. De fato, a estratégia tão bem descrita por Ricardo Cubas, para o caso do Peru, mas que também ocorre em outras formações históricas da América Latina, foi o “repovoamento da Igreja”, com a vinda de educadores missionários para criação de colégios confessionais católicos, com motivações claras na direção de formação do laicato urbano, letrado e moderno.[14]

Para o caso do Peru, Ricardo Cubas destaca a força política da Educação católica, tendo em vista uma atuação política diante da separação entre igreja e Estado. Muitos colégios foram criados (tal como no Brasil), e ressalta a importância da Congregação dos Sagrados Corações (de Jesus e de Maria), que chegou no Peru em 188815, sendo muito prestigiada pela elite católica peruana. A Congregação havia sido criada em Paris, na Rue Picpus, em 1800.

Não por acaso, a efervescência política e excelência da produção intelectual peruana neste período é notável, pelas possibilidades de elaboração de uma reflexão marxista original e de peso teórico na pena de José Carlos Mariátegui (em seu livro, “Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana”, de 1924); tanto quanto a criação de condições históricas para a elaboração mais acabada da Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez, monge dominicano de ascendência quéchua. Tanto o revolucionário, quanto o teólogo estudaram na mais antiga universidade das Américas, a Universidad Nacional de San Marcos. O livro mais conhecido de Gutiérrez, “A Teologia da Libertação: História, Política e Salvação”, de 1971, responde ao movimento mais amplo emergido no Segundo Pós-Guerra (décadas de 1950-60) que resultou na convocação das conferências episcopais latino-americanas16, cujos primeiros resultados influíram diretamente na inclusão da pauta de justiça social e opção preferencial pelos pobres.

Notas

3. CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology, Lieden/ Boston: Brill, 2018, 311 p.

4. NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Sobre o Conceito de América Latina: Uma Proposta para Repercutir nos Festejos do Bicentenário. Revista Pilquen. Sección Ciencias Sociales, v. XII, p. 1-7, 2010.

5. Empregamos aqui a expressão “revivificação” retirada do livro de Carl Schorske: SHCORSKE, Carl. A revivificação medieval e seu conteúdo moderno: Coleridge, Pugin e Disraeli, In Pensando com a História. Indagações na Passagens para o Modernismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 88-107.

6. Temos referido a este movimento de revigoramento do tomismo que avança pelo século XX, como “terceira escolástica”. Nem tanto pela “revivificação” neotomista do medievalismo da reação conservadora e do conservadorismo romântico, mas, sobretudo, pela reforma religiosa de modernização e inclusão da “questão social” no pensamento católico, em sua incidência sobre o campo jurídico. NEDER, Gizlene. Duas Margens. Ideias Jurídicas e Sentimentos Políticos na Passagem à Modernidade no Brasil e em Portugal, Rio de Janeiro: Revan, 2011.

7. Parte I, capítulo 2: The Secularisation Process during the Aristocratic Republic (1884–1919), p. 49-68. O tema é importantíssimo. O debate sobre o casamento civil no Brasil arrastou-se por longos anos onde a confrontação entre o catolicismo ultramontano (que concebia o casamento como um sacramento, indissolúvel) e o catolicismo ilustrado (defensor da modernização do direito de família) criou impasse que resultou no uso dos dispositivos legais das Ordenações do Reino (livro IV, Ordenações Filipinas de 1603) por quase um século depois da independência do país de Portugal (1822) e 27 anos depois da república proclamada. NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Ideias Jurídicas e Autoridade na Família, Rio de Janeiro: Revan, 2007.

8. CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology, Parte II, p. 99-168.

9. Ibidem, Parte III, p. 169-200.

10. Ibidem, p. 184.

11. Os círculos operários no Brasil foram pesquisados e interpretados no trabalho pioneiro de Jessie Jane de Sousa Vieira. SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários- a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2002.

12. Ibidem, p. 144-145.

13. Ibidem, p. 145.

14. GOMES, Francisco José. Le projet de néo-chrétienté dans le diocèse de Rio de Janeiro de 1869 à 1915. Tese de Doutorado. Toulouse: UTM, 1991. GOMES, Francisco José Silva. De súdito a cidadão: os católicos no Império e na República,.In: MARTINS, Ismênia de Lima; IOKOI, Zilda Márcia Grícoli e SÁ, Rodrigo Patto de. (Orgs.). História e Cidadania. São Paulo: Humanitas Publicações/FFLCH-USP, ANPUH, 1998. pp. 315-326.

15. No Brasil, a Congregação dos Sagrados Corações chegou em 1911.

16. Rio de Janeiro (1955), seguida da de Medellín, Colômbia (1968) e Puebla, no México (1979), as mais importantes.

Referências

CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884-1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology, Lieden/ Boston: Brill, 2018, 311 p.

GOMES, Francisco Jose Silva. De sudito a cidadao: os catolicos no Imperio e na Republica, In: MARTINS, Ismenia de Lima; IOKOI, Zilda Marcia Gricoli e SA, Rodrigo Patto de. (Orgs.). Historia e Cidadania. Sao Paulo: Humanitas Publicacoes/FFLCH-USP, ANPUH, 1998. pp. 315-326.

GOMES, Francisco Jose. Le projet de neo-chretiente dans le diocese de Rio de Janeiro de 1869 a 1915. Tese de Doutorado. Toulouse: UTM, 1991.

NEDER, Gizlene. Duas Margens. Ideias Juridicas e Sentimentos Politicos na Passagem a Modernidade no Brasil e em Portugal, Rio de Janeiro: Revan, 2011.

NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO FILHO, Gisalio. Ideias Juridicas e Autoridade na Familia, Rio de Janeiro: Revan, 2007.

NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisalio. Sobre o Conceito de America Latina: Uma Proposta para Repercutir nos Festejos do Bicentenário. Revista Pilquen. Seccion Ciencias Sociales, v. XII, p. 1-7, 2010.

SHCORSKE, Carl. A revivificacao medieval e seu conteudo moderno: Coleridge, Pugin e Disraeli, In Pensando com a Historia. Indagacoes na Passagens para o Modernismo, Sao Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 88-107.

SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Circulos Operarios- a Igreja Catolica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2002

Gizlene Neder1;2 – Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Professora Titular de História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail: [email protected]


CUBAS RAMACCIOTTI, Ricardo D. The Politics of Religion and the Rise of Social Catholicism in Peru (1884–1935): Faith, Workers, and Race before Liberation Theology. Lieden/ Boston: Brill, 2018. Resenha de: NEDER, Gizlene. Secularização e reforma católica no Peru na virada para o século XX. Almanack, Guarulhos, n.26, 2020. Acessar publicação original [DR]

El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823)

O bicentenário do triênio liberal (1820-1823-2020-2023) espanhol ensejou comemorações e lançamentos menores do que o impacto dos eventos de duzentos anos atrás. Se ninguém mais afirma, como Menéndez Pelayo, que foi um tempo “patológico” na história espanhola [3], a atenção concedida ainda é pequena, principalmente se comparada aos conflitos atlânticos da década anterior.

A “Espanha de Fernando VII” voltou a ser estudada com afinco ao menos desde a célebre obra de Artola, [4] mas o triênio liberal ainda tinha como seu livro mais conhecido um opúsculo do começo da década de 80, a síntese de Alberto Gil Novales [5]. Desde então, houve uma renovação historiográfica gigantesca, principalmente na história política. Ganharam maior fôlego os estudos sobre territórios específicos, sobre a imprensa, novas sociabilidades e, principalmente, aqueles que “desnacionalizavam” os episódios [6].

Dentro dessa perspectiva “internacionalista”, o triênio liberal tem dois atrativos únicos. O primeiro é seu inegável impacto europeu, pois o levantamiento de Riego foi feito numa Europa que, no começo de 1820, era dominada pela Santa Aliança e pelas monarquias restauradas. Ao impulso espanhol, houve também revoluções importantes em Portugal e nos territórios italianos. O segundo é sua faceta atlântica. Se no começo da década de 20 se concretizaram as independências na América, também foi naqueles anos que mais uma vez se colocou em jogo a possibilidade de uma nação atlântica, experiência fundamental tanto para o mundo hispânico quanto para oportuguês [7]:

La revolución española de 1820 tuvo desde el inicio una repercusión que trascendía al espacio peninsular. En primer lugar, porque habiendo estallado en el seno de las tropas reunidas en Andalucía para combatir la insurrección de los territorios de ultramar, su triunfo supuso la paralización de la política de expediciones militares que pretendía devolver los territorios de América a la obediencia de la monarquía española. (…) Y, en segundo lugar, porque el triunfo del movimiento en España colocó en el primer plano de la actualidad el valor de la Constitución de 1812 como instrumento para transformar las monarquías en regímenes liberales. (p. 155)

É justamente no esforço de desnacionalizar o período que a nova obra de Pedro Rújula e Manuel Chust faz sua maior contribuição ao condensar em poucas páginas um apanhado das últimas contribuições historiográficas dos dois lados do Atlântico. A envergadura espacial da obra também resulta, em parte, das trajetórias individuais dos dois autores. Ao passo que Chust tem enveredado pelo tema americano, Rújula é especialista nas questões aragonesas entre o triênio liberal e as guerras carlistas [8].

O resultado é um livro único que atualiza o objetivo de Gil Novales nos anos 80, o de fazer uma obra de referência para os estudos do triênio liberal, agora juntando a questão americana, antes ausente. De fato, não apenas adiciona o tema das independências, mas o toma como um dos mais importantes para definir os rumos do Triênio.

Há um esforço de distanciamento dos antigos preconceitos acerca do Triênio, de ter sido um intervalo liberal de pouca profundidade, com baixa popularidade entre as classes populares e tomado pelo caos das facções. Para isso, enfatiza principalmente a experiência política que significou, extrapolando o caráter parlamentar e difundindo novas culturas políticas tanto entre os liberais – exaltados e moderados [9] – como entre os absolutistas:

el marco constitucional establecido por la revolución de 1820 permitió la aparición de una esfera pública donde los ciudadanos comenzaron a participar según sus posibilidades y sus intereses. El Gobierno moderado hubiera deseado que la política se hiciera en el seno de las instituciones, pero existían otros actores que habían experimentado la posibilidad de actuar en el terreno político y que no estaban dispuestos a renunciar a potenciales parcelas de poder. El debate fue muy intenso. (p. 46)

Como é negada a tese reacionária de que a Constituição de 12 e o primeiro liberalismo eram ideias importadas, exógenas à Espanha, resta aos autores pincelar respostas a questões inevitáveis para o triênio. Por que fracassou? Qual a relação entre os liberais e as independências na América?

A resposta que os autores oferecem para explicar o “fracasso liberal” passa pela atuação do rei Fernando VII e pela reação estrangeira. A tentativa liberal de reformar a monarquia, desde as propostas moderadas de instituir uma segunda câmara, tendo os exemplos ingleses e franceses como mote, até as mais revolucionárias, com as Sociedades Patrióticas e a diminuição do poder da nobreza e da Igreja, criava uma ameaça institucional permanente às monarquias mais absolutistas. Daí que foi justamente a Rússia a dar maior apoio a Fernando VII para abolir qualquer tipo de Constituição. Ao mesmo tempo, a invasão francesa de 1823 servia para reposicionar a monarquia bourbônica na balança internacional de poder, enfraquecida como estava após as derrotas napoleônicas.

É perceptível que a resposta de Chust e Rújula nega a própria ideia de “fracasso liberal”. O triênio acabou não por seus erros internos, mas por um verdadeiro golpe reacionário europeu. A inversão procedida pelos autores também é uma negação da historiografia que visava mais as questões socioeconômicas da época, muitas vezes crítica à ineficiência prática das medidas liberais. [10]

Quanto à questão americana, os autores também se alinham com a nova história política, principalmente na negação das nacionalidades pré-existentes [11]. Logo, não se poderia explicar as independências como luta da nação mexicana para se libertar da Espanha. Com a tomada do poder pelos liberais, os autores também negam que houvesse uma arbitrariedade por parte da Espanha em relação aos americanos, visto que a igualdade estava concedida pela Constituição, que transformava o Império num gigantesco Estado-Nação. Essa tese igualitária tem mais oponentes historiográficos, como Portillo Váldes.[12]

Recusando as explicações tradicionais, os autores mais uma vez se voltam às questões políticas, pensando principalmente o caso novohispano, o de maior repercussão ao longo do Triênio e também aquele sobre o qual Manuel Chust tem mais familiaridade.[13] Com base na análise do Plano de Iguala [14], a conclusão do livro é que um dos principais motivos para a independência foi o caráter revolucionário da Constituição de Cádis, que tirava poder da elite Criolla para distribuir a outros setores sociais, com destaque para o voto indígena. Sendo assim, a independência ganhava contornos moderados e até reacionários, em perspectiva já ensaiada também para o caso brasileiro:

Para la insurgencia fue mucho más difícil enfrentarse políticamente al liberalismo doceañista que al monarquismo absolutista, dado que ahora podían participar de los mismos presupuestos ideológicos, pero no políticos ni nacionales. Y además estaban los intereses particulares de las diversas fracciones del criollismo, cada vez más proclives a la independencia. No porque esta solo estaba ganando por las armas, sino porque su creciente moderantismo le podía asegurar un control social y político que el liberalismo doceañista podía poner en duda al ser más progresista en bastantes medidas políticas y sociales como, por ejemplo, dar voto a los indígenas universalmente (p. 112).

Livro de entrada nos estudos do período e de síntese de uma nova perspectiva política, El Trienio Liberal é uma defesa do período do liberalismo espanhol do início do século XIX. É notável a simpatia dos autores com os protagonistas estudados, como se escrever a história deles fosse também escrever a defesa de sua luta. Poucas épocas hispânicas foram vividas tão passionalmente quanto aqueles anos, daí que esse resgate histórico não deixa de ser um tributo àqueles sonhos e ilusões.

Notas

3MENÉNDEZ PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003, p. 1362. Vide DURÁN LÓPEZ, Fernando. “Menéndez Pelayo contra Blanco White, o la heterodoxia como patología.” TEJA, Ramón; ACERBI, Silvia. (org.). Historia de los heterodoxos Españoles”. Estudios. Santander: PubliCan, Ediciones de la Universidad de Cantabria, 2012.

4. ARTOLA, Miguel. La España de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999 [1968].

5. GIL NOVALES, AlbertoEl trienio liberal. Madri: Siglo XXI, 1980.

6. ROCA VERNET, JordiPolítica, liberalisme i revolució. Barcelona, 1820-1823. 840 f. Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea). Universitat autònoma de Barcelona, Barcelona, 2007; El argonauta español, nº 17, 2020. Exemplar dedicado a “El trienio liberal en la prensa contemporánea (1820-1823); RUIZ JIMÉNEZ, MartaEl liberalismo exaltado. La confederación de comuneros españoles durante el trienio liberal. Madri: Fundamentos, 2007. LA PARRA, Emílio. RAMÍREZ ALEDÓN, Germán (coord.) El primer liberalismo: España y Europa, una perspectiva comparada. Valencia: Colección literaria, 2003.

7. BERBEL, Márcia Regina. “A constituição espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.

8. HUST, Manuel. La cuestión nacional americana en las Cortes de Cádiz. Valencia: Centro Francisco Tomás y Valiente UNED Alzira-Valencia. Fundación Instituto Historia Social/ Instituto de Investigaciones Históricas de la Universidad Nacional Autónoma de México, 1999; Pedro Victor Rújula. Constitución o muerte: el Trienio Liberal y los levantamientos realistas en Aragón (1820-1823). Zaragoza: Edizións de l’Astral, 2000.

9. pesar dos nomes já consagrados, os estudos específicos sobre cada um desses “liberalismos”, inclusive para apontar seus muitos pontos de fricção internos, são bastante recentes. Vide MORANGE, ClaudeEn los Orígenes del moderantismo decimonónico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e índice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019; e BUSTOS, SophieLa nación no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinión Pública. Tese (Doutorado em História). Universidad Autónoma de Madrid, Madri, 2017.

10. A crítica vinha desde os próprios liberais exilados, passando depois por Marx e sua famosa análise: “en la época de las Cortes, España se encontró dividida en dos partes. En la Isla de León, ideas sin acción; en el resto de España, acción sin ideas”. New York Daily Tribune, 27/10/1854. Disponível em MARX, Karl; ENGELES, Friederich. La Revolución española. Artículos y crónicas, 1854-1873. Madri: AKAL, 2017. A crítica foi atualizada para os termos mais técnicos da historiografia na influente visão de FONTANA, JosepLa crisis del Antiguo Régimen, 1808-1823. Barcelona: Crítica, 1979.

11. As referências para o assunto, por vezes em vieses muito diferentes, são GUERRA, François-XavierModernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica e Fundación MAPFRE, 1992; e RODRÍGUEZ, JaimeThe independence of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

12. PORTILLO VÁLDES, José MaríaCrisis Atlántica – Autonomía e independencia en la crisis de la monarquía. Madri: Marcial Pons Historia, 2006.

13. Embora Chust tenha organizado livros sobre a independência em toda a América, nos artigos costuma trabalhar mais com a do México, como emCHUST, Manuel; SERRANO, José Antonio. “El ocaso de la monarquía: conflictos, guerra y liberalismo en Nueva España. Veracruz, 1750-1820”. Ayer, nº 74, 2009.

14. Sobre o Plan de Iguala, em abordagem também bi-hemisférica, vide FRASQUET, Ivan. Las caras del águila. Del liberalismo gaditano a la república federal mexicana. Castellón: Universitat Jaume I – Instituto Mora – Universidad Autónoma de México – Universidad Veracruzana, 2008.

Referências

ARTOLA, Miguel. La Espana de Fernando VII. Madri: Espasa, 1999.

BERBEL, Marcia Regina. “A constituicao espanhola no mundo luso-americano (1820-1823). Revista de Indias, vol. LXVIII, nº 242, 2008.

BUSTOS, Sophie. La nacion no es patrimonio de nadie. El liberalismo exaltado en el Madrid del trienio liberal (1820-1823): Cortes, Gobierno y Opinion Publica. Tese (Doutorado em Historia). Universidad Autonoma de Madrid, Madri, 2017.

FONTANA, Josep. La crisis del Antiguo Regimen, 1808-1823. Barcelona: Critica, 1979.

GIL NOVALES, Alberto. El trienio liberal. Madri: Siglo XXI, 1980.

GUERRA, Francois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispanicas. Cidade do Mexico: Fondo de Cultura Economica e Fundacion MAPFRE, 1992;

LA PARRA, Emílio RAMIREZ, ALEDON, German(coord.) El primer liberalismo: Espana y Europa, una perspectiva comparada. Valencia: Coleccion literaria, 2003.

MORANGE, Claude. En los Origenes del moderantismo decimononico. El Censor (1820-1822): promotores, doctrina e indice. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2019.

PORTILLO VALDES, Jose Maria. Crisis Atlantica – Autonomia e independencia en la crisis de la monarquía. Madri: Marcial Pons Historia, 2006.

ROCA VERNET, Jordi. Política, liberalisme i revolucio. Barcelona, 1820-1823. 840 f. Tese (Doutorado em Historia Moderna e Contemporanea). Universitat autonoma de Barcelona, Barcelona, 2007.

RODRIGUEZ, Jaime. The independence of Spanish America. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

RUIZ JIMENEZ, Marta. El liberalismo exaltado. La confederacion de comuneros espanoles durante el trienio liberal. Madri: Fundamentos, 2007.

Lucas Soares Chnaiderman1;2 – Possui graduação em História – Universidade de São Paulo, mestrado em história pela mesma universidade (2015) e atualmente cursa o doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


RÚJULA, Pedro; CHUST, Manuel. El Trienio Liberal. Revolución e independencia (1820-1823). Madri: Catarata, 2020. Resenha de: CHNAIDERMAN, Lucas Soares. Em defesa da experiência liberal. Almanack, Guarulhos, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

Regalismo no Brasil colonial: a Coroa portuguesa e a Ordem do Carmo – Rio de Janeiro 1750-1808 | Leandro F. L. Silva

Superando a tradicional concentração de estudos nas atividades da Companhia de Jesus, as historiografias portuguesa e brasileira produziram nas últimas décadas uma quantidade significativa de trabalhos sobre a atuação de outras ordens religiosas na Época Moderna.[3] Apesar disso, no que tange ao impacto das medidas adotadas na segunda metade do século XVIII para reforçar a autoridade da Coroa face às corporações regulares, o caso paradigmático da expulsão dos jesuítas dos territórios lusitanos em 1759 continua a ser visto como evento quase exclusivo da prática regalista naquela esfera. Nesse quadro, o trabalho de Leandro Ferreira Lima da Silva oferece novas luzes para a compreensão mais ampla das medidas de controle da Coroa portuguesa sobre as ordens religiosas daquele período. Defendida originalmente em 2013 como Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo, a obra foi contemplada em 2016 com o prêmio História Social do referido Programa.

Duas características se destacam na investigação do autor: a abrangência da análise e o caráter minucioso da reconstituição de diferentes contextos que atravessam o período em exame. A consequência é o ambicioso plano da obra, desdobrando-se em quinze capítulos divididos em cinco partes, num total de 556 páginas. A matéria-prima para a análise proveio de diferentes acervos documentais. Devido à perda de grande parte da documentação da antiga Província Carmelitana Fluminense, o autor montou um repertório documental procurando recompor um quebra-cabeça cujas fontes estavam dispersas em arquivos tão distintos e distantes como o Arquivo Central da Província Carmelitana de Santo Elias, em Belo Horizonte; o Arquivo Nacional, o Arquivo Geral da Cidade e o Arquivo da Cúria Metropolitana, no Rio de Janeiro; e diferentes fundos documentais digitalizados do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. A impressão que fica é que o autor praticamente esgotou as fontes disponíveis no Brasil, restando por analisar apenas os arquivos europeus.

A historiografia também recebeu cobertura extensiva no livro. Dialogando com as obras de Evergton Sales Souza e José Pedro Paiva, para mencionar apenas alguns, Leandro Silva se mostra atualizado com relação à produção luso-brasileira sobre as questões da Igreja católica, da Ilustração, da Coroa e da colonização portuguesas no século XVIII. Com base na historiografia, Leandro Silva define o regalismo praticado nos domínios portugueses na segunda metade do século XVIII segundo uma dupla dimensão: a subordinação da Igreja e do clero aos poderes temporais da Coroa, “erradicando privilégios e imunidades”; e a manutenção do catolicismo como religião oficial do Estado, livrando-se, não obstante, das pressões da Santa Sé (p. 27). O tema da reforma regalista na Província do Carmo do Rio de Janeiro não é novo na historiografia. Inaugurado por Francisco Benedetti Filho, foi continuado por Sandra Rita Molina, cuja leitura o rigoroso escrutínio do autor deixou escapar.[4] As questões da administração dos bens da Província, da limitação do quantitativo de religiosos e do relaxamento moral dos carmelitas atravessam as três investigações sobre o tema. Mais recentemente, outro trabalho de Sandra Molina estendeu a análise dos referidos pontos até o final do período imperial, mostrando a continuidade da política regalista do Império do Brasil em relação às medidas adotadas anteriormente pela Coroa portuguesa.[5]

O diálogo com a historiografia internacional é relativamente pequeno na obra de Leandro Silva. Em que pese a lembrança do importante livro coletivo organizado por Ulrich Lehner e Michael Print, como também do já clássico estudo de Samuel Miller, o trabalho carece de referências mais amplas sobre o impacto de medidas de teor regalista que, adotadas por diferentes monarquias europeias na segunda metade do Setecentos, tiveram consequências diretas sobre as atividades das ordens religiosas em seus territórios.[6] Por fim, não existe a tentativa de efetuar um balanço historiográfico das mudanças estimuladas pelas reformas bourbônicas no campo da administração eclesiástica dos domínios hispano-americanos, cujo exame comparativo poderia constituir uma frutífera via de análise para o autor.Mesmo assim, o trabalho possui abrangência e profundidade incomuns para um projeto desenvolvido no âmbito do Mestrado. É o momento de se retomar essa dupla característica, aproximando-se agora do objeto. Trata-se de uma pesquisa que tem como objetivo assinalar os efeitos de diferentes medidas regalistas tomadas pela Coroa portuguesa com relação à Província do Carmo do Rio de Janeiro. Fundada em 1720, a Província do Carmo do Rio de Janeiro constituía desde 1595 uma vice-província que se encontrava até então dependente da Província de Portugal. A fundação fluminense abrangia os conventos do Rio de Janeiro, do Espírito Santo, de Angra dos Reis, de Santos, de São Paulo e de Mogi das Cruzes, bem como o hospício de Itu. Em informação remetida à Corte em 1763, o bispo do Rio de Janeiro denunciava que a própria fundação da Província ocorrera “com o dinheiro angariado através de negociações nas Minas e em outras regiões do Brasil”, com cujos recursos fr. Francisco da Purificação, o primeiro provincial, “soube merecer o agrado dos religiosos de Roma, onde tudo se compra” (p. 146, grifos do autor).

O recorte necessariamente monográfico da pesquisa não impede comparações com outros contextos. O autor traz à análise a recepção de medidas de teor análogo ocorridas nas províncias do Carmo da Bahia e na reformada de Pernambuco. Paralelamente, no que tange à capitania do Rio de Janeiro, o autor discute seu tema à luz de outros quadros, como as medidas de reforma empreendidas pela Coroa junto aos frades capuchos da Província Franciscana da Imaculada Conceição e o papel de carmelitas e franciscanos no mencionado território após o afastamento dos missionários jesuítas. A primeira parte da obra, abrangendo um único capítulo intitulado “A mentalidade regalista setecentista e o clero regular no Império Português”, anuncia o caráter amplo da abordagem do autor. Nessa parte, busca em textos basilares da Ilustração portuguesa, como o Testamento político de D. Luís da Cunha, um conjunto de argumentos que depois seriam postos em prática, ao longo dos reinados de D. José I e de D. Maria I, para o controle das corporações regulares. No discurso dos estrangeirados, a ênfase recai sobre o acúmulo de bens efetuado pelas ordens religiosas, quase sempre pela via de legados testamentários; o ingresso muito numeroso de noviços nas fundações conventuais; a ociosidade dos religiosos; as isenções relativas aos poderes seculares; e a falta de observância das regras. No processo da reforma dos frades carmelitas do Rio de Janeiro, tais pontos reapareceram com força nas ações das autoridades da Província.

A fina reconstituição dos contextos representa o que há de mais valioso no trabalho de Leandro Silva. A segunda parte, a maior da obra e que abrange seis capítulos, intitula-se “A Província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro e o ‘tímido’ regalismo pombalino (1750-1778)”. Na verdade, o material tratado no capítulo é mais amplo do que o indicado no recorte cronológico. O autor examina inicialmente a sublevação ocorrida no Convento do Carmo do Rio de Janeiro em 1743, quando lutas de facções davam o tom da administração da Província, dividindo ocupantes dos cargos em dois grupos opostos: os “filhos do Rio”, que abrangiam os religiosos naturais da referida capitania, e os “filhos de fora”, que, em sua maior parte, agrupavam os religiosos nascidos em Portugal e nas demais capitanias da Colônia (p. 106). Ao longo da segunda parte, o autor desenvolve um argumento muito convincente. Apesar da existência de sérios conflitos na Ordem, e da edição de numerosas medidas que, idealizadas por Sebastião José de Carvalho e Melo na década de 1760, destinavam-se a limitar a entrada de noviços e a diminuir o volume dos bens que ingressavam nas corporações regulares, ao longo do reinado de D. José I as diferentes autoridades coloniais não tomaram medidas rígidas de controle sobre os frades carmelitas do Rio de Janeiro. No contexto em pauta, os poderes coloniais sediados na capitania encontravam-se inteiramente envolvidos nas disputas de limites com a Espanha na região sul da Colônia, que foram apenas solucionados com o Tratado de Santo Ildefonso, em 1777.

A terceira parte da obra abrange dois capítulos. Conforme o seu argumento principal, “se o consulado pombalino deu embasamento teórico às políticas regalistas e aos poderes dos bispos na Igreja nacional e frente à Santa Sé, no reinado mariano a Coroa aprofundou essas posições”. (p. 378). Seguindo, assim, as tendências da historiografia mais recente, o autor não identificou mudanças significativas na política regalista após a saída do Marquês de Pombal, em 1777. Além disso, as autoridades coloniais encontravam-se na ocasião já desembaraçadas dos problemas nas fronteiras do sul. Após a suspensão das eleições da Província em 1783, o vice-rei do Estado do Brasil apresentou à rainha D. Maria I um dossiê, “para fazer conceito do miserável estado em que se acha uma Corporação Religiosa que só serve de descrédito à Religião e de peso e mau exemplo ao Estado” (p. 259). No documento, que pautou os rumos da reforma que seria iniciada dois anos depois, acusa-se uma sucessiva quebra das regras religiosas e dos fundamentos da economia da Província: religiosos adquiriam em Roma ou em Lisboa privilégios honoríficos, afastando-se dos atos litúrgicos e do trabalho em comum; possuíam grande número de escravos pessoais para lhes servir, em contrariedade aos votos de pobreza; e tinham até concubinas, por vezes estabelecidas publicamente em residências próximas às sedes dos conventos, contrariando os votos de castidade. O vasto patrimônio imobiliário da Província, constituído por dezenas de moradias urbanas e fazendas, era mal administrado, chegando ao ponto de não produzir alimento suficiente para os próprios religiosos.

A quarta parte da obra estende-se por cinco capítulos. Após o envio da denúncia do vice-rei à Corte, D. José Joaquim Mascarenhas Castelo Branco, o bispo do Rio de Janeiro, foi nomedo como visitador e reformador da Província do Carmo. A atuação reformadora deste se direcionou principalmente a combater as irregularidades já apontadas pelo vice-rei. Suas ações visaram aprimorar o rendimento econômico das fazendas dos conventos, combater a concessão de distinções pessoais de caráter honorífico e regulamentar as atividades da comunidade, obrigando os frades à celebração dos atos litúrgicos e à assistência no refeitório coletivo. Além da intervenção direta de poderes externos à Ordem, a reforma na Província do Carmo do Rio de Janeiro se distinguiu por sua longa duração se comparada a iniciativas semelhantes introduzidas em outras ordens regulares. Após a resistência dos religiosos, e em aliança com poderes locais, como a Câmara do Rio de Janeiro, a reforma foi encerrada em 1800. A atuação do bispo promoveu um verdadeiro expurgo nos quadros da Província. Seu quadro de religiosos passou de 180 para 47 entre 1780 e 1799.Da perspectiva metodológica, a obra leva em conta que as inúmeras cartas produzidas pelos agentes administrativos envolvidos na reforma da Província Carmelita Fluminense – tais como o bispo do Rio de Janeiro, o vice-rei, os frades representantes da Província, o Senado da Câmara e o Conselho Ultramarino – podem ser vistas simultaneamente como instrumento de dominação da Coroa e como veículo “de negociação de súditos instalados nos mais longínquos pontos do ultramar” (p. 47). Recentemente, essa linha de estudos se revelou importante para um expressivo conjunto de historiadores, que sistematizou o funcionamento dos canais de comunicação política que uniam os diferentes poderes em funcionamento na monarquia portuguesa, nos dois lados do Atlântico.[7]

Introduzida na América Portuguesa em 1580 para cuidar da catequização do gentio e atender demandas espirituais dos colonos moradores na capitania de Pernambuco8, a Ordem do Carmo estabelecida no Rio de Janeiro não foi mais considerada capaz de realizar aquelas tarefas na segunda metade do século XVIII. Analisando os avanços e recuos das iniciativas de reforma, as relações estabelecidas entre os agentes seculares e eclesiásticos, bem como as bases teológicas e canônicas que fundamentaram a iniciativa da Coroa, a obra de Leandro Silva merece figurar ao lado de outras que constituem pontos de partida obrigatórios para o tema, como o clássico trabalho de Caio César Boschi, ou a recente coletânea organizada por Francisco Falcon e Cláudia Rodrigues.9

Notas

3. Com relação à América Portuguesa, a título ilustrativo: AMORIM, Maria Adelina. Os franciscanos no Grão-Pará e no Maranhão: missão e cultura na primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa: Universidade Católica Portuguesa, 2005; SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Para além do claustro: uma história social da inserção beneditina na América portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Niterói: Eduff, 2014.

4. BENEDETTI FILHO, Francisco. A reforma da Província Carmelitana Fluminense (1785-1800). 1990. 190f. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990. MOLINA, Sandra Rita. (Des)obediência, barganha e confronto: a luta da Província Carmelita Fluminense pela sobrevivência (1780-1836). 1998. 338f. Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

5. MOLINA, Sandra Rita. A morte da tradição: a Ordem do Carmo e os escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889). Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Esta obra foi resenhada por BARBI, Rafael José. Catolicismo, escravidão e a resistência ao Império: Um outro olhar. Almanack, n. 15, 2017, pp. 366-370.

6. LEHNER, Ulrich L.; PRINT, Michael (Dir.). A Companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010; MILLER, Samuel J. Portugal and Rome (c. 1748-1830). An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Universitá Gregoriana Editrice, 1978; BEALES, Derek. Prosperity and Plun der. European Catholic Monasteries in the Age of Revolution, 1650-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

7. FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Um Reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

8. HONOR, André Cabral. Envio dos carmelitas à América portuguesa em 1580: a carta de Frei João Cayado como diretriz de atuação. Tempo, v. 20, 2014, p. 1-19.

9. BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; FALCON, Francisco; RODRIGUES, Cláudia (Orgs.). A “época pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV: Faperj, 2015.

Referências

AMORIM, Maria Adelina. Os franciscanos no Grao-Para e no Maranhao: missao e cultura na primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de Estudos de Historia Religiosa: Universidade Catolica Portuguesa, 2005.

BARBI, Rafael Jose. Catolicismo, escravidao e a resistência ao Imperio: Um outro olhar. Almanack, n. 15, 2017, pp. 366-370.

BEALES, Derek. Prosperity and Plunder. European Catholic Monasteries in the Age of Revolution, 1650-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

BENEDETTI FILHO, Francisco. A reforma da Provincia Carmelitana Fluminense (1785-1800). 1990. 190f. Dissertacao (Mestrado em Historia), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 1990.

BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder: irmandades leigas e politica colonizadora em Minas Gerais. Sao Paulo: Atica, 1986.

FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia (Orgs.). A “epoca pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV: Faperj, 2015.

FRAGOSO, Joao; MONTEIRO, Nuno Goncalo. Um Reino e suas republicas no Atlântico: comunicacoes politicas entre Portugal, Brasil e Angola nos seculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2017.

HONOR, Andre Cabral. Envio dos carmelitas a America portuguesa em 1580: a carta de Frei Joao Cayado como diretriz de atuacao. Tempo, v. 20, 2014, p. 1-19.

LEHNER, Ulrich L.; PRINT, Michael (Dir.). A Companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010.

MILLER, Samuel J. Portugal and Rome (c. 1748-1830). An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Universita Gregoriana Editrice, 1978.

MOLINA, Sandra Rita. A morte da tradicao: a Ordem do Carmo e os escravos da Santa contra o Imperio do Brasil (1850-1889). Jundiai: Paco Editorial, 2016.

MOLINA, Sandra Rita. (Des)obediência, barganha e confronto: a luta da Provincia Carmelita Fluminense pela sobrevivência (1780-1836). 1998. 338f. Dissertacao (Mestrado em Historia), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

SOUZA, Jorge Victor de Araujo. Para alem do claustro: uma historia social da insercao beneditina na America portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Niteroi: Eduff, 2014.

William de Souza Martins – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Professor Associado da Área de História Moderna do Instituto de História da UFRJ, onde atualmente ocupa a função de vice-diretor. Membro permanente do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, atuando como editor associado da Topoi: Revista de História. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (2001) com a tese Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700 – 1822), que foi publicada em 2009 pela Edusp. Participa dos grupos de pesquisa Ecclesia (UNIRIO), ART (Antigo Regime nos Trópícos – UFRJ) e Sacralidades (UFRJ).


SILVA, Leandro Ferreira Lima da. Regalismo no Brasil colonial: a Coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808. São Paulo: Intermeios/USP; Brasília: CAPES, 2018. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Monarquia portuguesa e política regalista: ordens religiosas no final do setecentos. Almanack, Guarulhos, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

História, Sujeitos Marginalizados e Alteridades / História Revista / 2020

O dossiê História, Sujeitos Marginalizados e Alteridades que apresentamos na História Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade Federal de Goiás traz para a reflexão, no campo das ciências humanas e sociais, a partir da relação dialógica entre a exclusão e a indiferença, a problemática da alteridade e da marginalização na história e na historiografia. Partindo da crítica às epistemologias das narrativas hegemônicas que privilegiaram a manutenção do status quo e a interpretação factual e determinista do contexto sócio‐histórico, os autores apoiam‐se nas contribuições críticas que remontam às contribuições dos Annales, dos estudos culturais e da decolonialidade.

A teoria da enunciação de Bakhtin nos ensinou que é a partir do dialogismo e da alteridade que nos relacionamos com o outro, nos constituindo e transformando, constantemente, nessa interação. Portanto, somente através das relações dialógicas com outros sujeitos, discursos, saberes, que podemos nos constituir. Existimos a partir do diálogo com o outro, como afirma o autor: “Eu só pode se realizar no discurso, apoiando‐se em nós” (BAKHTIN, 1926, p.192). Partindo dessas reflexões, reunimos nesse dossiê produções narrativas das ciências humanas que rompem com as perspectivas hegemônicas acadêmicas que obliteram as vozes e / ou narrativas dos interlocutores, quase sempre marginalizados, e os reconhecem como coautores da pesquisa numa relação dialógica entre os sujeitos pesquisador / interlocutor, possibilitando assim a produção de vozes polifônicas em suas escritas. Os textos trazem para o centro as visibilidades dos sujeitos e seus saberes em relação a suas regiões, espaços, lugares e não‐lugares, e trânsitos imersos nas práticas socioculturais das diferenças. Refletindo sobre os processos de marginalização dos sujeitos, dos marcadores da diferença que operam exclusões, das resistências, da produção / diluição de identidades, aspectos necessários para compreensão da sociedade local‐global contemporânea.

Esses estudos são de suma importância pois fraturam a fronteira entre cultura de elite e cultura de massas e favorecem a visibilidade de outros sujeitos nas narrativas histórico‐ sociais. Permitem‐nos pensar como a construção do “outro”, que ocupou e ocupa a outra margem das imaginárias linhas abissais, pôde em um espaço ambivalente e intersticial construir estratégias de (re) existência e sobrevivência. Nesse espaço da produção da diferença e da diferenciação como sinalizou Homi Bhabha, nos é possível refletir nestes textos: o agenciamento de sujeitos e movimentos sociais que se articulam a partir do gênero e da sexualidade; uma história a contrapelo dos sujeitos indígenas; as relações de alteridade entre colonizadores e nativos que resistem em terras africanas e ou palestinas. Ainda, no local da cultura e da resistência, podemos refletir sobre como a lógica colonizadora se imiscuiu nas sociedades contemporâneas que, a partir de processos de racialização dos corpos que habitam a preferia do Maranhão, dos homens e mulheres encarcerados na Guiana francesa, vítimas da necropolítica estatal, ou dos trabalhares candangos que foram e são sistematicamente apagados da memória pública do Distrito Federal, cobram da história uma luta pela humanização num sentido freiriano.

É possível pensar ainda como a diferença se manifesta nas representações culturais seja para analisar a exclusão dos negros e latinos nas políticas educacionais dos EUA ou as experiências de reconstrução da democracia no Chile pós‐ditadura por meio do cinema. Em perspectiva semelhante, as contribuições de Raymond Williams para uma revisão da leitura marxista sobre a cultura atestam a possibilidade de pensar culturas alternativas ou de oposição no interior da cultura dominante, como no caso dos sujeitos marginais das “subculturas” jovens das grandes cidades, a exemplo da cena heavy metal do ABC paulista. Pelo viés decolonial os estudos se voltam, ainda, para necessidade de pensar os corpos da juventude negra brasileira e das mulheres negras e trabalhadores na sociedade brasileira.

Assim, Aguinaldo Rodrigues Gomes, Robson Pereira da Silva e Antônio Ricardo Calori de Lion em Educação & emancipação pela agência dos movimentos sociais de sexualidade e de gênero refletem sobre uma pedagogia da diferença que desafia a “machocracia” e indica a capacidade de agenciamento dos movimentos sociais pautados pelo gênero e pela sexualidade. Tiago Duque apresenta um percurso semelhante em uma sensível leitura sobre um regime de (in)visibilidade (reconhecimento) que envolve pessoas trans e não trans, utilizando a categoria analítica da “passabilidade” no texto Epistemologia da passabilidade: dez notas analíticas sobre experiências de (in)visibilidade trans”. Bruno Rodrigues, no texto O contrapelo da história: os negros e indígenas nos caminhos fluviais até o Mato Grosso nas narrativas elaboradas pelos viajantes (séculos XVIII e XIX), valendo‐se das contribuições benjaminianas, analisa a menção e abordagens dos negros e povos indígenas em obras produzidas por viajantes que transitaram pelo Mato Grosso entre os séculos XVIII e XIX, especialmente através das rotas fluviais. Refletindo sobre a colonialidade das relações e seus impactos na construção da alteridade em Moçambique, o texto A missão civilizadora como factor de construção da alteridade colonial em Moçambique, de Denisse Omar, demonstra como os portugueses conseguiram o direito de civilizar os povos considerados atrasados ignorando / silenciando suas histórias. Fabio Bacila Sahd, em Edward Said e os paralelos entre a ocupação da Palestina e o apartheid na África do Sul, analisa as obras saidianas pela chave do colonialismo, estabelecendo comparações recorrentes entre a ocupação israelense e o apartheid sul‐africano. Ainda pensando as apropriações contemporâneas da colonialidade do poder os textos de Vinícius Pereira Bezerra e Luiz Eduardo Lopes: O “Comando Organizado do Maranhão” (C.O.M) e a guerra de facções na periferia maranhense; de Dinaldo Silva Junior: Enseigner en prision: Un devoir d’histoire; de Karolline Santos: Entre a cidade imaginária e a cidade sensível: breve análise da imaginação museal no Distrito Federal; de Pedro Barbosa: A violência social e o genocídio da juventude negra do Brasil, focalizam de maneira competente e acurada como essa lógica produz a violência, o encarceramento, o apagamento das memórias e o genocídio da população negra e pobre no Brasil contemporâneo.

No espectro de uma pedagogia cultural que capta sentidos produzidos na educação histórica ou aprendida nas representações culturais cinematográficas ou musicais, os autores e títulos que apresentamos a seguir se propuseram a refletir sobre as relações entre o pensamento intelectual, as linguagens e o campo histórico / político / cultural. Assim, Rodrigo de Oliveira Soares, em O papel do aprendizado histórico na construção do sujeito na obra de Paulo Freire: desenvolvimento da consciência histórica, dedica‐se às contribuições de Paulo Freire para o processo de aprendizagem pela via da historicidade enquanto ferramenta de conhecimento que permite pensar a história dos excluídos. Leandro Candido de Souza, em seu texto Cartografias da cultura underground: o surgimento da subcultura heavy metal no ABC paulista e os deslocamentos da identidade suburbana, inspirado pelos Estudos Culturais, pensa a cena heavy metal como uma “subcultura” e sua relação com a consolidação da indústria cultural no Grande ABC. Ao lado disso Flávio Trovão e Roberto Moll Neto, no artigo Conservadorismo e política nos Estados Unidos no filme “Curtindo a vida adoidado”, discutem, principalmente no campo da educação, como as políticas conservadoras da década de 1980 atingiram as comunidades negra e latina no país. Também refletindo sobre a relação cinema e história, Thais Vieira e João Pedro Rosa Ferreira, em Política cool, humor fun: o código humorístico e a perda da dimensão coletiva no filme No, de Pablo Larraín, discorrem sobre o papel do humor nas relações da sociedade do espetáculo e do consumo na política latino‐ americana, a partir do filme “No”, de Pablo Larraín, no qual se apresenta uma leitura sobre o plesbicito de 1988, quando os chilenos decidiram não perpetuar a ditadura de Pinochet. Cleonice Elias da Silva, em Mulheres negras em cena, analisa os documentários “Mulheres Negras: Projeto de Mundo” (Day Rodrigues; Lucas Ogasawara, 2016) e “Sementes: Mulheres Pretas no Poder” (Éthel Oliveira; Júlia Mariano, 2020), refletindo sobre o feminismo negro e as experiências cinematográficas de construção de outras narrativas por mulheres negras brasileiras.

Em A Hidra nos trópicos: trabalhadores britânicos nas margens da ordem, Rute Andrade Castro desconstrói a imagem idealizada dos trabalhadores europeus e da imigração, evidenciando, a partir da documentação de época, um processo de resistência ao trabalho por parte desses trabalhadores que “estavam nas ruas das cidades, nas áreas rurais do país, nas praias, nos bares ou em qualquer lugar onde desejassem estar”. Finalmente, também na esteira das contribuições de feministas negras, no texto Ela era doméstica: trabalhadoras domésticas e donas de casa no Triângulo Mineiro‐MG, Jorgetânia Ferreira da Silva nos traz reflexões sobre experiências de trabalhadoras domésticas e donas de casa da região do Triângulo Mineiro, indicando a importância de compreender as trajetórias dessas sujeitas.

Transpondo a linha artificial, pós‐abissal, já aludida por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes, que invisibiliza os corpos das mulheres negras, seja na vida ou nas representações cinematográficas – ou simplesmente apaga e elimina os corpos da juventude negra brasileira e subalterniza os corpos das mulheres trabalhadoras domésticas – buscamos apresentar uma história revista pelo viés da alteridade. Esperamos que os leitores apreciem, desfrutem e divulguem!

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul / Aquidauana. E-mail: [email protected]

Magdalena López – Universidade de Buenos Aires / CONICET. E-mail: [email protected]

Murilo Borges Silva – Universidade Federal de Jataí. E-mail: [email protected]


GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LÓPEZ, Magdalena; SILVA, Murilo Borges. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 25, n. 3, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História da África: possibilidades e estratégias | Abatirá | 2021

O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa,

o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar.

Chimamanda Adichie (2015)

A década de 1990 constituiu um marco importante no que concerne o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas brasileiras da rede pública. Embora de forma relativamente não sistematizada, a contribuição dos africanistas brasileiros tem-se demonstrado, ao longo das últimas duas décadas, relevante no que concerne o ensino da história e cultura africanas nas escolas da rede pública (LIMA, 2017, p. 117-140). Paralelamente, a promulgação da Lei Federal 10639/2003 definiu novos caminhos, favorecendo reflexões mais articuladas e propostas pedagógicas e didáticas mais eficazes no âmbito do ensino da História da África. De acordo com Anderson R. Oliva (2007, p. 143-173), a aprovação da Lei incentivou, embora de forma desigual e fragmentada, iniciativas importantes em termos de ensino, pesquisa e extensão, tendo sido implementados, a partir dos primeiros anos do novo milênio, cursos de especialização e levadas a cabo ações de formação de professores, congressos e seminários, bem como publicações científicas. A Lei constituiu um ponto de viragem fundamental no ensino, embora de um modo geral se tenham privilegiado temáticas relacionadas com a história e cultura afro-brasileira, em detrimento do ensino da história africana. É nesta linha de reflexão que o autor sublinha o fato de intelectuais africanos terem apontado para a necessidade de uma “inversão de foco histórico de matriz eurocêntrica para um foco conduzido por uma matriz afrocêntrica” (OLIVA, 2009, p. 155). No entanto, cabe interrogar em que medida tais reflexões e produções têm correspondido aos objetivos fixados pela lei federal referenciada e como esse percurso tem sido traçado e quais os principais desafios? Leia Mais

Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola | Carlota Boto

Com análise acurada e aprofundada pesquisa, Carlota Boto ofereceu ao público leitor um estudo atento acerca de temas fundamentais para a História da Educação, como as concepções de ciência, infância e escola. O livro Instrução pública e projeto civilizador é resultado da tese de livre-docência da autora, defendida em 2011, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e publicada em 2017, pela Editora Unesp.

A pesquisadora é reconhecida pelas discussões e trabalhos que desenvolve no campo da História da Educação no Brasil. Pedagoga e historiadora, mestre em Educação e doutora em História Social, Carlota Boto é atualmente Professora Titular da Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Entre seus diversos livros, capítulos e artigos publicados em periódicos, merece destaque A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa, publicado pela Editora Unesp, em 1996.

Em Instrução pública e projeto civilizador, a autora desenvolveu uma análise sobre alguns dos pensadores do século XVIII que se preocupavam com questões muito proeminentes à sua época, relativas, sobretudo, às ideias de aprimoramento da vida em sociedade e de construção de um novo modelo sociopolítico. O objetivo principal do estudo foi identificar esses sujeitos como intelectuais e homens de saber que atuaram na esfera pública propondo ideias e discutindo questões complexas, no interesse último de lançar as bases para a nova sociedade que se forjava naquele período (BOTO, 2017). Uma das discussões que atraíram a atenção desses intelectuais com mais vigor, como demonstrado no livro, dizia respeito à instrução pública e seu papel civilizador na sociedade moderna.

Do objetivo traçado na pesquisa que deu origem ao livro emergiu uma categoria conceitual que teve importância fundamental no desenvolvimento de toda a análise: a noção de intelectual. Em vista da relevância do conceito, Carlota Boto dedicou um preâmbulo especialmente para discuti-lo. A partir de um esforço teórico, a autora buscou arregimentar diversas conceituações acerca da figura do intelectual na história, mobilizando autores que se ocuparam desse tema, desde o século XVIII até os dias atuais. Assim, as concepções construídas a partir das reflexões de Julian Benda, Max Weber, Norberto Bobbio, Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre e Edward Said, com seus encontros e desencontros, foram articuladas visando definir o que a historiadora chamou de “modo de ser iluminista” (BOTO, 2017, p. 23). Este modo de ser, no que se diz respeito aos homens de letras cujas obras foram analisadas no livro, se caracterizava por uma atitude ativa perante a esfera pública. Os escritores no Iluminismo se constituíam, para a autora, como intérpretes e analistas de seu próprio tempo (BOTO, 2017).

A partir dessa base teórica, a pesquisadora transcorreu pelos vários textos e autores ilustrados que formaram a matéria prima do seu estudo. Todos os letrados analisados foram compreendidos como representantes do “modo de ser iluminista”, empenhados na construção de alternativas para os problemas políticos e sociais.

Instrução pública e projeto civilizador é composto por três grandes capítulos, subdivididos em vários tópicos, nos quais a autora, com escrita fluída e narrativa coesa, analisou a produção de pensadores iluministas, articulando-a ao contexto político e cultural do século XVIII. De forma sutil e indireta, cada um dos capítulos revela, num nível mais profundo, um estudo sobre as três categorias que formam o subtítulo do livro: ciência, infância e escola.

Na primeira parte, intitulada Iluminismo em territórios pombalinos: a formação de funcionários como alicerce da nação, Carlota Boto tomou como objeto de pesquisa a produção de três autores portugueses que, segundo ela, construíram suas reflexões tendo como base as experiências filosóficas iluministas: D. Luís da Cunha (1662-1749), António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782) e Luís António Verney (1713-1792). O objetivo principal da autora foi apontar para a intrínseca relação entre as ideias pedagógicas e científicas desses intelectuais e o projeto de reforma do Estado português, empreendido por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, Secretário de Estado dos Negócios do Reino de Portugal, a partir de 1759.

O argumento central do capítulo é a afirmação de que ação estatal dirigida pelo Marquês de Pombal, especialmente no que tange à educação e à ciência, foi referenciada nas reflexões teóricas dos autores iluministas em foco no estudo. Assim, para a autora, analisar a obra desse grupo de letrados corresponde a investigar parte das diretrizes e orientações centrais da pedagogia encampada e difundida pelo Estado português sob a direção de Pombal.

Para a realização da análise, foram mobilizados dois grupos de fontes. O primeiro é composto por livros e tratados dos três homens de letras estudados pela pesquisadora. Já o segundo conjunto abarca documentos relativos às reformas pombalinas na Universidade de Coimbra, como o Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771) e os Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). O último, conforme a autora, pode ser considerado “o principal arcabouço da modernidade portuguesa do século XVIII em matéria de educação” (BOTO, 2017, p. 150).

A primeira parte do estudo apresenta, assim, uma discussão ampla a respeito de temas variados. A análise se deteve sobre o pensamento de cada um dos autores em foco, de maneira atenta e específica. Além disso, a historiadora se debruçou sobre a organização da escola pública traçada pelo Marquês de Pombal, bem como sobre a reformulação dos cursos e da estrutura da Universidade de Coimbra. Contudo, merece destaque o fato de que toda a narrativa esteve marcada por uma assertiva comum e sempre presente. Tratase da afirmação de que o pensamento dos iluministas portugueses e as reformas pombalinas favoreceram a elevação do alicerce central que conduziu o movimento de modernização em Portugal durante o século XVIII, qual seja, a ciência moderna pautada pela secularização, pela racionalização e pela ampliação do papel do Estado nos campos acadêmicos.

Na segunda parte do livro, a pesquisadora dedicou-se ao estudo da obra de outro importante personagem do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau. Intitulado Política e pedagogia na arquitetura ilustrada de Rousseau, o segundo capítulo teve por objetivo analisar os escritos do filósofo buscando identificar a correlação entre seu pensamento político e suas ideias pedagógicas. Segundo o argumento central, Rousseau representa a síntese da sensibilidade social que marcou o período da Ilustração na Europa. Para a autora, sua doutrina política e pedagógica passou a representar um marco fundamental na organização do mundo político e social engendrado pelo Iluminismo, tendo grande influência nas práticas educativas. Nesse sentido, o intelectual francês seria um “autor primordial para se compreender a moderna acepção de criança” (BOTO, 2017, p. 182).

Para a efetivação dessa análise, Carlota Boto se propôs a realizar uma revisão bibliográfica dos escritos do teórico, dando ênfase a sua literatura pedagógica. Paralelamente, a pesquisadora buscou refletir sobre aspectos biográficos do autor do Emílio, apontando para um entrelaçamento entre sua vida e obra. Assim, foram colocados em foco, diversos textos publicados por Rousseau, em diferentes momentos de sua vida, dentre os quais o Discurso sobre as ciências e as artes (1749), o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), as Considerações sobre o governo da Polônia e sua projetada reforma (1772) e – a principal delas – o Emílio (1762).

Na investigação, foram retomados alguns dos temas principais do pensamento rousseauniano, já amplamente discutidos pela historiografia, como o do “estado de natureza” e o da crítica ao processo civilizador. Entretanto, a análise empreendida foi além das discussões consideradas clássicas e se baseou em um mote principal: a ideia de infância. O grande acerto do argumento que orienta a narrativa reside na identificação da ligação estreita entre a compreensão política e as ideias pedagógicas de Rousseau. A partir dessa perspectiva, a autora alcançou uma discussão mais profunda sobre a importância da educação para o modelo de sociedade proposto na literatura iluminista.

Uma das assertivas principais, nesse sentido, aponta para a existência de uma crítica ao modelo pedagógico vigente no século XVIII, isto é, o modelo jesuítico. Segundo a autora, no julgamento que Rousseau empreende a respeito do processo civilizador, a afetação dos costumes é compreendida como a responsável pelo afastamento do ser humano da perfectibilidade do estado de natureza. A crítica se dirige, conforme esse argumento, também à educação praticada nos colégios da época, marcados pelo ensino da polidez. O modelo pedagógico dos colégios era apontado pelo intelectual francês como voltado para o cultivo de falsos valores e, assim, responsável pela corrupção do ser humano e da sociedade civil (BOTO, 2017).

Ao analisar a escrita do Emílio, Carlota Boto defendeu que, mais do que um tratado de pedagogia, o livro é voltado para a compreensão da infância como uma das fases principais da vida humana. Segundo a historiadora, naquela obra, a reflexão sobre a idade pueril estava relacionada à possibilidade de entendimento do homem no estado de natureza, uma vez que a criança guardaria os resquícios do que foi o homem natural. Em seu tratado, Rousseau construiu uma análise que põe em destaque a infância como um estágio específico da vida, cuja marca principal é a possibilidade do aprendizado. Esse período da existência humana foi assim alçado à categoria de objeto de investigação para a compreensão da sociedade. A partir dessa operação, o autor do Emílio alcançou novidades importantes para o seu tempo e que seriam definidoras das práticas educativas posteriores, entre as quais se sublinha a definição mais precisa das diferentes fases da vida. Nas palavras da autora, “Rousseau, esticou a infância; ao nomeá-la, ele a prolongou” (BOTO, 2017, p. 261). E essa foi sua contribuição mais original.

O terceiro capítulo de Instrução pública e projeto civilizador, complementando os dois anteriores, é dedicado ao último item que compõe o subtítulo do livro: a escola. Para discutir o tema, a autora se ocupou em investigar a obra de um protagonista da Revolução Francesa, o Marquês de Condorcet. Nessa parte, foi desenvolvida uma análise em conjunto das concepções pedagógicas e da filosofia da história concebida pelo personagem. Novamente, as fontes utilizadas foram as obras do próprio autor, sendo as principais o Esboço para um quadro histórico dos progressos do espírito humano (1795) e as Cinco memórias sobre instrução pública (1791).

De antemão, a historiadora empreendeu uma reflexão acerca das concepções de história e de modernidade presentes no pensamento de Condorcet. O interesse principal foi analisar a doutrina e evidenciar a filosofia da história construída no Esboço, destacando a característica etapista e teleológica do desenvolvimento histórico que marcam a obra. Como herdeiro direto do Iluminismo, o intelectual construiu uma narrativa sobre a caminhada dos homens na história em direção ao aperfeiçoamento e ao progresso. Baseando-se na noção de perfectibilidade humana, tradição do pensamento ilustrado, Condorcet apontou para a capacidade do ser humano de aperfeiçoar a si e ao seu meio através de etapas sucessivas (BOTO, 2017).

Posteriormente, a autora analisou também as ideias pedagógicas do teórico, buscando enfatizar suas reflexões acerca da instrução pública enquanto política de Estado. Segundo o argumento central, a instrução apareceu no pensamento do intelectual francês como materialização de sua filosofia da história. O modelo de escola formulado por Condorcet se organizava por etapas sucessivas, marcadas por um caráter progressivo, e se baseava na crença no aperfeiçoamento humano. Isto é, a escola concebida por Condorcet se orientava pela marcha da humanidade na direção do progresso e do auto aperfeiçoamento. A cada série superada na escolarização, tal qual concebia o autor, o aluno subiria um degrau a mais na escala de aperfeiçoamento pessoal em direção a razão. Desse modo, como aponta a historiadora, havia uma vinculação inseparável entre a filosofia da história do Marquês de Condorcet e seu projeto de fundação da escola moderna. Esta última deveria estar voltada principalmente para o processo de aperfeiçoamento humano que, por sua vez, levaria à construção de uma sociedade melhor pela difusão da razão.

Assim, perpassando temas fundamentais do período da ilustração, Carlota Boto construiu, em Instrução Pública e Projeto Civilizador, uma análise ampla sobre o pensamento pedagógico de letrados iluministas. Além disso, a autora conseguiu inscrever as reflexões destes sujeitos no contexto político e social de fins do século XVIII, no qual a formulação de um novo modelo de sociedade figurava como a principal demanda intelectual.

É necessário ressaltar que, ao longo de todo o estudo, é possível acompanhar o desenvolvimento de um argumento central que demonstra a importância que a educação passou a ter no movimento intelectual iluminista. Esta importância, pelo que se apreende do livro, é ressaltada sobretudo como recurso político. Se o Iluminismo, na Europa, forjou as bases para o rompimento de uma ordem política arcaica e impulsionou a criação de um novo modelo social, Carlota Boto conseguiu demonstrar que a educação representou uma categoria basilar na construção desse projeto.

Ciência, infância e escola, portanto, se articulam no argumento da historiadora como concepções fundamentais para a compreensão não só do pensamento pedagógico engendrado na filosofia iluminista, mas também do projeto político encampado pelos homens de letras naqueles tempos. Tratava-se de um projeto civilizador cuja ferramenta principal a ser utilizada seria a educação.

Referência

BOTO, Carlota. Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2017.

Danilo Araújo Moreira – Mestrando em História – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES.

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Ensino e Pesquisa em História Antiga e História Medieval no Brasil | Politeia: História e Sociedade | 2020

Um mergulho na história antiga e na história medieval

A História Antiga e a História Medieval vieram para ficar. No Brasil, esses campos expandiram-se significativamente nas últimas três décadas, marcando presença em revistas especializadas, dossiês, livros autorais, coletâneas de artigos e em eventos acadêmicos de toda sorte. A História Antiga, legatária ou não das perspectivas marxistas, weberianas ou da Escola de Cambridge, conquistou espaços na universidade brasileiras e, como apontaram Margarida Maria de Carvalho e Pedro Paulo A. Funari, “os investigadores antiquistas escolherão seus métodos, técnicas e teorias de abordagem, associando tais interpretações à análise iconográfica e à cultura material” (CARVALHO; FUNARI, 2007, p. 15). A História Medieval, vinculou-se às três gerações da Escola dos Annales, estruturalistas ou não, assumindo escolhas semelhantes à História Antiga, e constituiu-se igualmente como uma espécie de manancial inesgotável de temas, métodos e abordagens teóricas, cuja capacidade é testar as identidades e alteridades com o passado, que ultrapassam a crença nas perspectivas temporais continuístas e baseadas em noções problemáticas tais como origem, sobrevivência, reminiscências ou herança (BASTOS, RUST, 2008, p. 187-188; SILVA, 2004, p. 87-107). Leia Mais

Fascismos e novas direitas | Cantareira | 2020

Observamos, nos últimos anos, vitórias como a de Boris Johnson, no Reino Unido; a ascensão de Jean-Marie Le Pen, como grande figura na França; Viktor Orbán, porta-voz da anti-imigração na Hungria; a reeleição de Sebastián Piñera no Chile; o retorno de partidos neofascistas na Alemanha; Rodrigo Duterte, o fascista das Filipinas; e, entre muitos outros, as expressivas vitórias de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Essa guinada nos alerta para uma tendência na configuração da política mundial.

Em um contexto de crescimento de movimentos de extrema-direita pelo globo, as temáticas dos fascismos e das novas direitas vêm ganhando cada vez mais destaque e relevância nos debates acadêmicos. Seria o fascismo uma atitude desviante? Uma doença? Uma anomalia do sistema? Um retorno nostálgico a um passado “glorioso”? Além disso, seriam todas as direitas mais radicais, fascistas? Esta discussão foi objeto de grandes nomes dentro da historiografia e das ciências humanas e sociais, como Leandro Konder, Daniel Guerin, Ian Kershaw, William Reich, Antônio Gramsci, Umberto Eco, Hannah Arendt, Robert Paxtone e até mesmo, José Carlos Mariátegui. Cada um, a partir de diferentes abordagens –aproximadas ou discordantes –, elaboraram as suas perspectivas muitas vezes ancorados nas questões anteriormente apontadas.

A despeito das diferentes abordagens, bem como das análises de conjunturas, há um ponto em comum entre os autores: essas correntes, em geral, encontram terreno e se ampliam em cenários de crise, momento em que a classe dominada se sente atacada em todas as suas frações. Acreditamos que, diante da falta de horizonte, perda de status e déficit econômico, é comum que ideias salvacionistas sejam tentadoras. A percepção das causas de tantas perdas é deixada de lado em prol de uma luta contra seus efeitos.

Discursos que ressaltam problemas como: as crises econômicas e moral, a perda de status social e incompetência, a traição e fragilidade do governo etc., tornam-se demasiadamente atraentes para setores da sociedade que não se identificam com as transformações recentes. Assim, todos os medos sentidos são estereotipados na figura do “outro”, o qual, por muitas vezes, será compreendido como inimigo a ser combatido.

Ao analisar a ascensão tanto política, quanto eleitoral, de movimentos de extrema-direita, racistas, xenófobas ou, até mesmo, inteiramente fascistas na atualidade, Michael Löwy ressalta que a crescente emergência desses movimentos tem se dado principalmente em países inseridos no processo de internacionalização da economia e da tecnologia. No ápice do neoliberalismo e, portanto, da transnacionalização do grande capital, as tecnologias e os meios de comunicação também se desenvolveram de modo que abarcasse as novas dimensões das demandas impostas pelos interessados nesta transnacionalização e em suas novas dinâmicas funcionais. Antes, se por um lado, os meios de comunicação operavam de maneira verticalizada, partindo de um para muitos, e sendo unidirecional – como os grandes jornais impressos e os canais de radiodifusão. A internet, por outro, se conforma como uma enorme rede digital de troca de informação maciça, sendo menos centralizada, horizontal e multidirecional. É o que Manuel Castells denomina como “Mass Self-Communication”. Devido ao interesse dos movimentos de direita e extrema-direita contemporâneos em trazer a política para o cotidiano, esses grupos aplicam seus investimentos em canais populares de difusão da informação. Assim, expandem sua ação para a mídia digital, por ser moderna, de fácil acesso, de custo relativamente baixo de produção e ilimitada capacidade de difusão.

Ao considerar o papel das historiadoras e dos historiadores na análise destes fenômenos, o objetivo do dossiê é refletir, conceituar e problematizar a questão do fascismo e das novas direitas, reunindo pesquisas que os discutam e identifiquem suas particularidades, rupturas, continuidades etc. Agrupamos, desta maneira, uma coletânea de seis artigos – que perpassam desde as experiências do século XX até o tempo presente, em distintas partes do Globo –, diretamente associados aos temas centrais. Devido a sua pluralidade, estas produções estão ancoradas em distintas visões e tradições teóricas, com vista a ampliar um rico e diverso debate.

Contamos, no primeiro bloco de artigos, com fascículos acerca da experiência alemã, de essencial importância para a temática. Os autores, habilmente, levantaram questões de extrema relevância para qualquer discussão acerca do nazismo alemão e seus estudos, feito de maneira criteriosa. Karina Fonseca em Como a democracia em Weimar morreu: antirrepublicaníssimo e corrosão da democracia na Alemanha e a ascensão do Nazismo, relaciona a derrocada da República de Weimar aos discursos e práticas políticas antirrepublicanas e antidemocráticas que circulavam durante o período. Luiz P. Araújo Magalhães, em Intelectuais de extrema direita e a negação do Holocausto nos EUA dos anos 1960, analisa a formação de uma rede de intelectuais de extrema-direita estadunidense em torno da prática de negação do Holocausto. O texto defende a hipótese de que essa negação incorpora, informa e é informada por valores, visões do passado, esquemas de percepção e hábitos de pensamento desse campo político. Dessa forma, essa falsificação do passado nazista aparece como criadora ou reprodutora de comunidades de sentido e unidades potenciais de ação.

Breno César de Oliveira Góes oferece uma rica aproximação interdisciplinar entre história e a literatura no que concerne à experiência do Salazarismo em Portugal, fortalecendo o tema deste dossiê com o artigo Os fascistas que liam Eça de Queirós: estratégias da propaganda salazarista em torno de uma celebração literária. O texto analisa o plano original das celebrações oficiais do primeiro centenário de Eça de Queirós em 1945 e os motivos que causaram os descontentamentos da base de apoio do regime em relação a esse projeto. Dessa forma, o autor traz à luz o estudo de ditaduras fascistas na Península Ibérica, muitas vezes posposto pelas produções do nazismo alemão e do fascismo italiano de Mussolini.

O segundo e último bloco de texto se articula a partir da temática do avanço conservador e a articulação da direita no Brasil. Com o delicado e necessário debate sobre a educação em tempos de conservadorismo brasileiro, Eduardo Cristiano Hass da Silva e Gabbiana Clamer Fonseca Falavigna dos Reis, analisam em Avanço conservador na educação brasileira: uma proposta de governo pautada em polêmicas (2018) a superficialidade e apresentação polêmica das propostas educativas presentes no plano do atual governo brasileiro e retomam a importância do papel do intelectual no Brasil.

Na esteira das análises sobre a ascensão do conservadorismo brasileiro, os autores Giovane Matheus Camargo, Pedro Rodolfo Bodê de Moraes e Pablo Ornelas Rosa trazem à tona a importância que a Internet e o ciberespaço tomaram no campo político na contemporaneidade. A (des)construção da memória sobre a ditadura pós-1964 pelo governo de Jair Bolsonaro analisa as estratégias no meio digital para a difusão de uma determinada memória, ancorada no revisionismo histórico que as novas direitas brasileiras têm defendido para sustentar seus projetos de sociedade.

Finalmente, apresentamos duas entrevistas de conteúdo mais estritamente teórico. A primeira, apresenta o diálogo entre o entrevistador Sergio Schargel e o pesquisador multidisciplinar neerlandês e filósofo cultural Rob Riemen. As perguntas, levantadas por Schargel, esclarecem a abordagem do diretor do Nexus Institute, que através de uma tradição teórica consistente e calcada no liberalismo, recuperar a importância do conceito de fascismo e sua utilização na atualidade. A segunda, realizada pelas organizadoras do presente dossiê, foi realizada com docentes de países, vivências e perspectivas teóricas diferentes. A professora italiana Fulvia Zega (Università Ca’Foscari Venezia), e a professora brasileira Tatiana Poggi (IH / UFF), relataram suas posições sobre a ascensão conservadora no mundo, as possíveis particularidades no contexto da América Latina, a utilização do conceito fascismo e neofascismo, bem como de outros aprofundamentos.

O dossiê Fascismos e Novas direitas, nesta edição da Revista Cantareira, nasceu em meio à pandemia do coronavírus (COVID-19), uma crise sanitária internacional que, no contexto brasileiro, ganha o reforço de um Estado suicidário, para fazer menção às palavras de Vladimir Safatle. Como em outros governos – que vêm demonstrando uma preocupação desproporcional com a Economia –, o Brasil pretere a vida humana em nome de uma pretensa preocupação com os números. O intuito, portanto, é contribuir com a análise de acontecimentos recentes, discussões teóricas pertinentes e recuperação histórica das ciências humanas em geral, essenciais para a compreensão crítica do mundo em que vivemos. Através das ilações dos nossos autores, percebemos que não somente há um avanço fascista na política mundial, mas um intento de consolidar uma narrativa conservadora sobre a sociedade civil e a política, bem como das organizações alternativas mais conservadoras. Estes aspectos não são uma novidade do século XXI; tampouco, algo exclusivo ao século passado.

Boa Leitura!

Bárbara Aragon – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Milene Moraes de Figueiredo – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.


ARAGON, Bárbara; FIGUEIREDO, Milene Moraes de. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.33, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Epistemologia e Escrita da História | Historiae | 2020

O presente dossiê da Revista Historiæ, possui como objetivo apresentar estudos que estão sendo realizados atualmente por pesquisadores e pesquisadoras que abordam, a partir de variados ângulos, questões relacionadas com a Epistemologia e a Escrita da História. Logo, os estudos em Epistemologia e Escrita da História solidificaram-se, a partir segunda metade do século XX, como um dos principais campos de pesquisa da historiografia. Desse modo, em diálogo com a Teoria Literária, a Filosofia Analítica e Hermenêutica, a Antropologia e as Ciências Sociais a indagação epistemológica e, também, sobre a escrita da História atravessou distintas transformações que suscitaram complexos caminhos e perguntas, em uma ampla variação de propostas metodológicas aprofundaram a investigação histórica.

Carlos Prado, no texto Braudel e a pluralidade do tempo: a história entre o estrutural e o factual, aborda como Fernand Braudel responde ao avanço do estruturalismo lévi-straussiano na década de 1950 a partir do tema da longa duração e de uma abordagem plural do tempo, buscando superar a oposição entre o estrutural e o factual. Primeiramente, apresenta o estruturalismo antropológico, ressaltando suas características e considerações diante do pensamento histórico. Num segundo momento, evidencia-se como Braudel se apropria do estruturalismo de Lévi-Strauss ao mesmo tempo em que o nega e apresenta a História como a ciência capaz de permanecer hegemônica entre as Ciências humanas, além de tratar do conceito de longa duração e da pluralidade temporal. Por fim, são traçadas algumas considerações sobre a ampliação da história estrutural, destacando sua diversidade e seus riscos, especialmente, o de produzir uma história imóvel. Leia Mais

Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia (I) / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2020

A Revista Clio abre este número com a primeira parte do Dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia, que traz artigos voltados às interfaces entre o poder, as culturas políticas e a sociedade, a partir de perspectivas teórico-metodológicas que focalizem as rupturas, as permanências, os antagonismos e as ambivalências historicamente tecidas nas múltiplas formas de relações sociais entre as elites e as camadas populares no Brasil durante o século XIX, nas mais diversas dimensões de envolvimentos do poder e seus reflexos na sociedade e na economia. A inserção da esfera micro na dimensão macro, as atualizações e ressignificações do local e do regional diante das injunções produzidas pela dinâmica do global, como também apreender os processos e as tramas que singularizam as histórias do local e regional, e o espaço de negociação estabelecido pelos seus atores sociais instituídos nacionalmente. As práticas políticas, a cultura do clientelismo, a organização social e econômica, bem como a inserção e participação das famílias livres e pobres em meio ao universo escravista. As relações e articulações políticas, e econômicas, bem como o perfil dos movimentos sociais, entre os diversos atores, são fundamentais para entender a participação e o protagonismo político de diversos grupos de elite e das camadas populares no “longo século XIX”.

Os cinco primeiros artigos tratam do mundo rural no XIX, a partir do debate sobre o trabalho e as políticas de colonização. Abre esse bloco o artigo de Júlia Leite Gregory, Esquecidos, desclassificados e sem razão de ser? Revisitando a historiografia para localizar o pobre no mundo rural, que traz uma importante análise historiográfica sobre o universo das famílias de trabalhadores livres no meio rural nos séculos XVIII e XIX. Gregory focou sua investigação nos trabalhos que discutem as trajetórias e experiências dos lavradores na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, e mostra os avanços da historiografia em torno deste vasto grupo, que numericamente era maior do que o universo de trabalhadores escravos, mas que ainda apresenta várias lacunas em torno de temas importantes para a compreensão de um grupo complexo e heterogêneo, e que ainda constituem um campo “em aberto” às investigações dos historiadores.

Ainda sobre o universo das famílias livres e pobres do mundo rural no oitocentos, temo o segundo artigo de autoria de Leandro Neves Diniz, intitulado A política de mão de obra no Império brasileiro: da conturbada unificação à precarização do trabalho livre, que discute a precarização do trabalho livre na Paraíba após o fim do tráfico internacional de escravos na década de 1850. Diniz parte da análise do impacto das revoltas regenciais sobre o universo do trabalho livre, especialmente nas relações estabelecidas entre os pequenos lavradores e os grandes proprietários. A desarticulação do tráfico internacional tem destaque na análise de Leandro Diniz, que mostra que o fim da alternativa de renovação das senzalas, mesmo que pela obtenção ilegal de escravizados, criou uma série de ameaças aos libertos, além do direcionamento das políticas de estado para a solução da “crise de braços” para a contratação de imigrantes europeus, relegando-se a um segundo plano os lavradores livres e pobres nacionais. Um cenário que contribuiu para a precarização do trabalho livre no Brasil da segunda metade do século XIX.

As dinâmicas do mundo do trabalho e a superexploração de trabalhadores rurais são o tema do terceiro artigo do dossiê, de autoria de Christine Paulette Yves Rufino Dabat, intitulado Ópio e açúcar: o capitalismo e suas drogas na superexploração dos trabalhadores rurais (Índia e Brasil, séculos XVIII-XIX). Dabat realiza uma investigação comparativa entre o Brasil e Índia no “longo século XIX”, permitindo ao leitor uma boa experiência metodológica da história conectada, tão em voga em Portugal na atualidade. Nesse artigo são analisadas as cadeias produtivas do açúcar e do ópio e o impacto desses produtos no universo do trabalho. Esses dois produtos distintos em suas propriedades e efeitos foram utilizados na expansão na expansão industrial e colonial da Grã-Bretanha: o ópio para enfraquecer os trabalhadores chineses frente às imposições coloniais inglesas, o açúcar como fonte de energia para os trabalhadores na indústria.

Ainda em torno do debate sobre a questão da mão de obra e a colonização no Brasil oitocentista, temos em seguida o artigo de Marcos Antônio Witt, intitulado Projetos de desenvolvimento para o Brasil: imigração, colonização e políticas públicas, que analisa os projetos de imigração no Império do Brasil articulados com as mesmas políticas em curso nos países vizinhos, especialmente a Argentina, o Chile e o Uruguai. Witt discute esses projetos de colonização mostrando as suas várias faces: da questão da mão de obra às teses do “branqueamento”. Além disso, Witt inova o debate ao analisar os limites desses projetos no Brasil oitocentista, especialmente no caso da imigração alemã no sul do Brasil. As políticas imperiais em torno da imigração encontraram barreiras de origens diversas, que frearam os projetos do Império em torno da colonização europeia.

No processo de colonização o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas teve, a partir de 1860, um papel central. No quinto artigo dessa coletânea, Pedro Parga em seu trabalho intitulado O funcionamento da Diretoria de Agricultura e as solicitações de adiamento de prazo para medição entre 1873 e 1889, discute as políticas e o papel do órgão na promoção da colonização. Parga discute a atuação desta repartição nas solicitações de adiamento do prazo de medição e demarcação de terras e também na aplicação das leis agrárias oitocentistas. A investigação desses mecanismos permitiu uma análise dos interesses de grupos específicos articulados em tonos do Estado Imperial.

Em seguida temos um bloco de trabalhos voltados à História Política do Brasil Império. No sexto capítulo temos o artigo de Kelly Eleutério Machado Oliveira intitulado O tempo da província”: revisão bibliográfica crítica da política imperial no Brasil oitocentista, no qual analisa a abordagem historiográfica das províncias e das assembleias provinciais no debate sobre a construção do Estado nacional. Oliveira parte da discussão da obra de Francisco Iglésias sobre a Província de Minas Gerais que, para a autora, criou um divisor de águas na historiografia ao privilegiar a esfera da província na investigação. A partir da obra “Política econômica do governo provincial mineiro (1835-1889)” Kelly Oliveira percorre as obras herdeiras do legado de Francisco Iglésias, debatendo as correntes historiográficas formadas a partir das pesquisas em torno das administrações provinciais.

Em seguida temos o sétimo artigo, intitulado Rupturas e Continuidades na Assembleia Constituinte de 1823: a autoridade do monarca e o lugar do poder local, de autoria de Glauber Miranda Florindo, no qual analisa a estruturação do Estado brasileiro a partir da primeira constituinte do Brasil. Florindo parte da discussão da Constituinte de 1823 no que diz respeito ao debate em torno das administrações dos municípios e províncias. O autor mostra os caminhos percorridos em torno das reformulações das esferas municipais e provinciais, e como elas se apresentavam no debate em torno do pretendido equilíbrio dos poderes no arranjo monárquico-constitucional brasileiro. Glauber Miranda Florindo destaca em seu trabalho uma continuidade discursiva e prática, de alguns elementos oriundos do estado português antes da Constituição de 1822, a base da formação do Estado brasileiro. Florindo mostra as continuidades dos elementos basilares da velha ordem colonial na Constituinte do Brasil de 1823.

Sérgio Armando Diniz Guerra Filho, é o autor do nosso oitavo artigo, intitulado As Câmaras e o Povo: a crise antilusitana de 1831 no interior da província da Bahia, no qual analisa os acontecimentos políticos ocorridos no interior da província da Bahia que tiveram como pano de fundo a crise antilusitana de 1831. Guerra Filho centrou a sua análise na atuação das câmaras municipais, especialmente àquelas do recôncavo baiano, região de grande importância econômica e política para a Bahia. O autor trata das tensões e conflitos políticos ocorridos nestas localidades, demonstrando o impacto dos acontecimentos protagonizados pelos de setores populares nas deliberações das câmaras. Ainda discute a atuação política do povo em geral nesse processo, além dos posicionamentos das autoridades frente aos movimentos rebeldes de 1831 na Bahia.

Seguindo no debate sobre a política no Estado Imperial, o nono artigo cognominado O Visconde da Parnaíba e a construção da ordem imperial na Província do Piauí de autoria de Pedro Vilarinho Castelo Branco, no qual analisa a trajetória de Manuel de Sousa Martins, o Visconde da Parnaíba, um dos personagens centrais da História do Piauí Oitocentista. Castelo Branco investigou a trajetória de vida do visconde, da sua construção a partir dos seus horizontes de expectativas no final do século XVIII, no Piauí. O autor mostra que, apesar das adversidades e das barreiras iniciais impostas pelos limites das suas redes de relações sociais, Manuel de Sousa Martins teve a oportunidade de utilizar as ferramentas de ascensão social presentes nas sociedades colonial e imperial, para si e sua parentela: poder, honra, prestígio social e patrimônio. Pedro Vilarinho Castelo Branco discute ainda a longevidade do visconde frente ao Governo Provincial do Piauí (1823-1843), mostrando várias faces da história política do Império na trajetória do Visconde da Parnaíba.

Amanda Barlavento Gomes é a autora do décimo artigo do dossiê, cognominado Negócios de família: políticos, traficantes de escravizados e empresários pernambucanos no século XIX. Gomes analisa a trajetória do comerciante pernambucano de grosso trato Francisco Antonio de Oliveira e seu filho Augusto Frederico de Oliveira, negociantes que aturam em diversos ramos do comércio e também no tráfico atlântico de escravizados. A autora mostra que em função da proximidade da Lei Antitráfico de 1831, eles diversificaram as suas atividades a partir de investimentos modernos de capitais e na fundação de empresas, contando com articulações políticas importantes dentro e fora do Império do Brasil. Amanda Barlavento Gomes analisou a atuação política desses personagens, que ocuparam os cargos de vereador e deputado geral, mostrando os mecanismos através dos quais eles defenderam os seus interesses familiares, especialmente a partir de suas redes de relações sociais com políticos e comerciantes, o elemento central para o sucesso financeiro da família.

Encerra esse bloco de trabalhos voltados à História Política o artigo de André Átila Fertig e Guilherme Gründling, intitulado Dos campos de batalha à Corte imperial: a relação entre os militares Visconde de Pelotas e Marquês do Herval através de suas correspondências (1869-1879). Fertig e Gründling abordam a trajetória política dos militares sul-rio-grandenses José Antônio Correa da Câmara (Visconde de Pelotas) e Manoel Luís Osório (Marquês do Herval) na segunda metade do século XIX, especialmente as suas articulações após a Guerra do Paraguai. Os autores investigaram as correspondências trocadas entre eles, tecendo uma interessante análise do fenômeno histórico do ingresso de militares no sistema político nas últimas décadas do Império do Brasil.

O décimo segundo artigo do dossiê é de autoria de Carlos Alberto Cunha Miranda, intitulado Médicos e engenheiros no Recife oitocentista: higienismo, implantação de projetos arquitetônicos e de serviços urbanos. Carlos Miranda analisa alguns aspectos dos saberes médicos na cidade do Recife, na perspectiva de implantação de um urbanismo higiênico no século XIX. Neste trabalho foi mostrado que o alto índice de epidemias e de insalubridade dos lugares públicos passou a preocupar os médicos, engenheiros e autoridades governamentais que, a partir daí, procuraram intervir no espaço urbano, nos novos prédios públicos, nos serviços de abastecimento de água e no saneamento, com o objetivo de modernizar a cidade e diminuir o perigo das epidemias que assolavam a Província de Pernambuco, especialmente a cidade do Recife no século XIX. Miranda discute a influência dos médicos e engenheiros nas construções de novas edificações e na implementação de serviços urbanos.

Encerra o Dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia o artigo de Vandelir Camilo, intitulado Homem de cor: as performatividades de um “mulato” frente ao racismo Doutor José Mauricio Nunes Garcia Junior (1808-1884). Camilo analisa a trajetória de vida de José Mauricio Nunes Gracia Junior, um homem de cor que, apesar das adversidades do racismo no XIX e ciente das suas estratégias de sobrevivência naquele meio, logrou a formação na Academia Médico Cirúrgica em 1831, e ainda alcançou a docência Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e na Academia de Belas Artes. Vandelir Camilo traz uma perspicaz análise de temas como a liberdade e cidadania no Brasil Império a partir deste estudo de caso.

Cristiano Luís Christilino – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professor adjunto na Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-9683-2885

Suzana Cavani Rosas – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora associada na Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0001-5528-0909

Maria Sarita Cristina Mota – Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Atualmente é Investigadora Integrada do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-1705-3999


CHRISTILINO, Cristiano Luís; ROSAS, Suzana Cavani; MOTA, Maria Sarita Cristina. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.38, n.2, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio e Relações Internacionais / Locus – Revista de História / 2020

As relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia?

Como é de costume em épocas de crise, a COVID-19 evidenciou a

necessidade da existência da cultura para o aliviar o estresse de pessoas e

comunidades. Em um momento no qual bilhões de pessoas estão

fisicamente separadas umas das outras, a cultura nos une.

(Ottone 2020)

Em momentos de crise, pessoas precisam de cultura. É com esse chamamento que Ernesto Ottone, Diretor Assistente Geral para a Cultura da UNESCO ilustra o cenário em que vivemos no primeiro semestre de 2020. É esta a dimensão que os atores vinculados ao patrimônio mundial começam a tomar conhecimento. Atualmente, estamos enfrentando uma crise global diferente de qualquer outra que vimos neste século. Milhares de pessoas perderam a vida para o COVID-19 e muitas outras foram infectadas. Bilhões de pessoas agora tem estado confinadas em suas casas em todo o mundo. O impacto do COVID-19 provavelmente será sentido muito tempo após o término desta crise sanitária.

A UNESCO está incentivando os locais do Patrimônio Mundial e plataformas da UNESCO, como as Jornadas Europeias do Patrimônio Mundial, a oferecerem meios para as pessoas explorarem o Patrimônio Mundial em suas casas. Numa época em que bilhões de pessoas estão fisicamente separadas uma da outra, a cultura nos une, mantendo-nos conectados e diminuindo a distância entre nós. Então, diante dessa mudança na visão global, como ficarão os agora já “antigos” temas do patrimônio? Como não sair impactado dessa nova ordem mundial?

Em publicação recente, Guilherme d’Oliveira Martins convoca a atualidade do tema do patrimônio cultural e de seu valor econômico, afirmando a urgência em desenvolver a ligação entre o patrimônio comum, os valores humanos universais e o equilíbrio entre as diferenças (2020, 32). Num contexto de isolamento social imposto pela pandemia COVID-19 colocado à escala internacional urge questionar o lugar do patrimônio na sociedade. De acordo com o mesmo autor, “quando falamos de patrimônio cultural, há a tentação de pensar que falamos de coisas do passado, irremediavelmente perdidas num canto recôndito da memória coletiva” (Martins 2020, 33). Daí que anteveja que “a necessidade de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, (…) bem como, salientar o papel do patrimônio nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação pós-conflito ou a recuperação do patrimônio destruído” (Martins 2020, 33-34). Foi motivado por esta nova realidade que nasceu a ideia deste Dossiê. Provavelmente, as relações internacionais nunca mais serão as mesmas após essa pandemia e, por extensão, o patrimônio e sua gestão também não serão como antes.

A título de exemplo, recorde-se que os maiores museus do mundo disponibilizaram recursos digitais sobre as suas coleções que até então tinham o seu acesso condicionado. Nunca como antes a visita virtual teve tanto impacto, perante a impossibilidade colocada pela ausência de acesso físico causado pelo isolamento social. Diante de um cenário interconectado pela veiculação de informação (não raras vezes, na chave da inverdade), essa temática se apresenta como um dos domínios a ser debatido, pois tem atuado na compreensão de elementos variados, funcionando como embaixadores de novas demandas mundiais. O tema é não só atual, como de discussão urgente.

O imediatismo dos media e das redes sociais tem trazido novo olhar sobre o patrimônio em escala internacional. O registro e a notícia de catástrofes, recentemente reportadas como a dos incêndios do Museu Nacional do Rio de Janeiro ou da Catedral de Notre-Dame de Paris, ou das enchentes de Veneza, bem como as ações iconoclastas desenvolvidas em Bamiyan ou Mossul, só para referir alguns exemplos, tinham dado um novo lugar ao Patrimônio à escala das relações internacionais. Dois fatores se somam às assertivas elencadas acima. O primeiro diz respeito à incorporação crescente do patrimônio cultural em outras áreas do discurso internacional. O patrimônio cultural passou a ter maior visibilidade e participação relevante, muito por força da ação das redes sociais e dos media, havendo como consequência um avanço na presença de organismos de valorização nas mesas de negociação das políticas internacionais como jamais visto antes. O segundo se refere ao crescente poder econômico e político que países detentores de agendas preservacionistas desfrutam no cenário internacional.

À medida que o novo século se desnuda, a radiografia dessas relações de poder revela novos atores, espaços e representações. O patrimônio cultural tem se tornado um ator cada vez mais importante dos diálogos multilaterais e, como tal, faz parte do alargamento das ações no âmbito das relações internacionais. Daí derivam outros objetos de estudo, ainda pouco incorporados pela temática: as marcas de um soft power cada vez mais multilateralizado; as dinâmicas de hierarquização dos temas e critérios consagrados pelos órgãos de assessoria da UNESCO; a presença cada vez maior de temas que abordem as “africanidades”, “asianidades”, “latinidades” e os “orientalismos” (tão pouco explorados por nossos pesquisadores, dada a hegemonia da visão europeísta / estadunidense); dentre outros. Em consonância, sítios arqueológicos, museus, espaços culturais, organismos internacionais de preservação, Estados nacionais, atores da paradiplomacia, expressões de tradição, vivência e modos de se fazer, a dicotomia entre inflação e destruição de patrimônios, dentre outros elementos tornaram-se protagonistas dessas representações mentais sobre o patrimônio que tem se transformado constantemente. Apreender os mecanismos de compreensão dessa expansão temática favoreceria a montagem de novas valorações do patrimônio, nacional e internacionalmente. Acrescentamos a este cenário o mundo digital que, superando os constrangimentos de um isolamento social forçado à escala global se assume como o único veículo de visita e transmissão de conhecimento dos recursos patrimoniais.

Como se percebe, todas as temáticas elencadas faziam sentido em um mundo sem restrição social, isolamento compulsório e combate a um vírus letal. Os temas elencados neste dossiê, seguiram uma realidade anterior à pandemia. As preocupações, necessidades e objetos respondiam a um mundo complexo, mas conhecido. As regras do jogo eram todas acordadas. Agora, diante desse novo alinhamento, tudo muda, inclusive as relações internacionais e suas preocupações. Por este motivo, acreditamos que este Dossiê poderá colaborar para unirmos os dois mundos: o das preocupações pregressas e das novas necessidades. Não fazemos futurologia quanto ao universo da preservação dos patrimônios no mundo, mas sinaliza-se uma considerável modificação nas políticas públicas, no financiamento e na projeção de novas regras para um jogo que ainda não se saber jogar. Por este motivo, os textos selecionados para este Dossiê discutem realidades que provavelmente deverão também ser impactadas por esta mudança brusca nos caminhos recentes do mundo globalizado.

O texto de Amélia Polónia e Cátia Miriam Costa, Preservar patrimônios e partilhar memórias em cidades-porto latino-americanas. Um projeto em ação: CoopMar – Cooperação Transoceânica, Políticas Públicas e Comunidade Sociocultural Ibero-Americana analisa o projeto de uma rede de investigação e desenvolvimento financiada pelo CYTED (Programa Ibero-americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento) que promove formas ativas de diplomacia científica, visando potenciar sinergias existentes entre vários parceiros em torno de uma agenda de “mar e sociedade para o desenvolvimento”. CoopMar dá prioridade à circulação de conhecimento entre diferentes atores (universidades, museus, fundações, empresas, instituições públicas e sociedade em geral) e visa contribuir para uma sociedade do conhecimento, transnacional e transdisciplinar. Assume a troca cooperativa de valores e visões como um valor intangível que funciona como capital social capaz de beneficiar cidades portuárias da região Ibero-latino-americana.

Frédéric Lerich discute em Regional Assets, Industrial Growth, Global Reach: The Case Study of the Film Industry in the San Francisco Bay Area, uma dimensão pouco conhecida do público. De acordo com Lerich, dentro da indústria cinematográfica dos EUA, Hollywood é uma (grande) árvore que esconde a floresta. De fato, além desse cluster poderoso e dominante, existem outras formas – embora menores – de indústria cinematográfica, particularmente em Nova York e São Francisco. O artigo enfoca o último e argumenta que o desenvolvimento da indústria cinematográfica na área da baía de São Francisco depende de ativos regionais específicos: (1) uma cultura alternativa, (2) uma cultura tecnológica e (3) uma experiência urbana única. O artigo se baseia na ideia de que São Francisco é um local acolhedor para filmar e produzir filmes e que, como corolário, hoje em dia acolhe um cluster industrial dinâmico e com vários locais. Destaca diferentes estratégias que visam promover o desenvolvimento de ativos regionais relacionados à indústria cinematográfica e questiona suas capacidades de recuperação destacando seus impactos na influência global de São Francisco.

Jaime Nuño González constrói uma narrativa envolvente ao analisar em Patrimonio Cultural y globalización: Trayectoria, proyectos y estrategias de la Fundación Santa María la Real (Aguilar de Campoo, Castilla y León. España), as dinâmicas de preservação em torno das ruínas de um mosteiro medieval situado na pequena localidade de Aguilar de Campoo (Palencia, Castilla y León. Espanha). Em 1977 uma associação foi formada com o objetivo de recuperar o monumento e transformá-lo no centro da dinamização cultural de uma região em crescente processo de despovoamento. A Fundação Santa María la Real, herdeira dessa associação, diversificou os setores em que atua, ampliando suas intervenções em toda a Espanha. Neste texto, González apresenta os projetos de gestão, comunicação e preservação da fundação, apontando os caminhos pelos quais essas ruínas se tornaram um dos mais proeminentes exemplos de preservação patrimonial ibérico.

Gilberto Marcos Antônio Rodrigues discute os impactos do Patrimônio cultural como inserção internacional de cidades. Em Política Externa de Cidades: Estratégia Internacional Modelada e Patrimônio Cultural aborda uma questão central: no caso de patrimônios culturais, sejam eles materiais ou imateriais, que não dispõem de valorização ou proteção nacional, como pode a cidade aproveitá-lo como vetor de uma ação internacional? No âmbito da dimensão cultural das relações internacionais de cidades, o patrimônio cultural é um vetor pouco explorado em sua potencialidade e capacidade de promover a inserção internacional local no Brasil. O objetivo do artigo é analisar como o patrimônio cultural pode ser transformado em recurso ativo para uma Estratégia Internacional Modelada (EIM) visando alavancar e apoiar a política externa de cidades médias ou pequenas no Brasil.

Em diálogo com o texto de Rodrigues, Gustavo de Jesus Nóbrega, perscruta o universo da paradiplomacia e apresenta os resultados parciais de pesquisa ligada ao projeto interdisciplinar “Os diversos usos dos espaços institucionais na preservação do Patrimônio Cultural”, na qual analisa o uso e a apropriação da Universidade de Coimbra (UC) e da própria cidade em questão por diversos agentes, a partir da apresentação da instituição de ensino como um Patrimônio Cultural da Humanidade e seus bens edificados como verdadeiros acervos de um museu a céu aberto. A hipótese levantada por Nóbrega em A Universidade de Coimbra e as diversas apropriações da chancela internacional de Patrimônio da Humanidade atribuída pela UNESCO, é que a nomeação pela UNESCO, em 2013, alavancou a iniciativa de utilizar a marca “Coimbra”, como um soft power que objetiva reestabelecer a notoriedade da cidade e da Universidade como espaços de ponta em nível mundial.

O artigo de Bruno Miranda Zétola, Troféus de guerra e relações diplomáticas examina as singularidades do troféu de guerra como patrimônio cultural e sua relevância para as relações diplomáticas. A partir de três estudos de caso, aponta-se para possíveis paradigmas do uso desse tipo de patrimônio como recurso de política externa. Troféus de guerra são uma categoria muito especifica de patrimônio, visto tratar-se de artefatos militares obtidos no campo de batalha e cujo valor cultural é aferido após sua apreensão. Prática recorrente desde a Antiguidade clássica, a obtenção e exibição de troféus de guerra nunca foi considerada ilícito internacional. Suas implicações para as relações internacionais, entretanto, podem ser significativas, consoante a valorização do artefato tornado troféu pelas narrativas historiográficas das sociedades que o perdem ou que o conquistam.

O Louvre, renomado museu e patrimônio francês, agora responde a um pedido do governo para aperfeiçoar sua interação e influência internacionais. A internacionalização do Louvre é, portanto, entendida não como a reputação do Louvre em nível internacional, mas como o uso dessa herança em estratégias políticas internacionais. O texto de Marie-Alix-Mólinier-Andlauer, Political Issues of the Louvre’s Internationalisation enfoca a internacionalização do Louvre desde os anos 2000. O Estado francês, através de sucessivos governos, vem mobilizando o Louvre, como intermediário em acordos internacionais. Este museu e instituição cultural tornou-se participante direto das relações internacionais francesas, o que motivou Andlauer a analisar as questões e controvérsias que cercam a estreita relação entre o Louvre e o Estado francês. Concluí este trabalho, uma análise do discurso da mídia francesa sobre a mobilização do Louvre pelo Estado o que revela tensões e controvérsias em torno da internacionalização de um dos museus mais famosos do mundo.

Se por um lado museus guardam estátuas (independentemente da discussão se devem ou não manter sob sua tutela peças controvertidas de origens, muitas vezes, duvidosas), por outro, em certas ocasiões, são palco de destruição e vandalismo. A onda de destruição de museus e estátuas locais realizados pelo DAESH (Estado Islâmico) na Síria e no Iraque não deve ser considerada simples ato de vandalismo ou ação iconoclasta com base em sua interpretação radical e distorcida do Islã. Tais atos ocultam um discurso complexo que deve ser compreendido no debate atual sobre a redefinição do patrimônio, particularmente de estátuas, questionada por representar um passado colonial ou autocrático que não é mais considerado digno de ser preservado e lembrado. Em Las estatuas también mueren. Patrimonio, museos y memorias en el punto de mira de DAESH, Jorge Elices Ocón apresenta o estado da arte deste debate focalizando a diferença notável entre as ações iconoclastas mencionadas no texto e as do DAESH. Para os terroristas, não há possibilidade de ressignificação das estátuas. Como vaticina Ocón, “não é um discurso de justiça, mas de ódio, e não busca apenas a morte de estátuas, mas a de pessoas e culturas”.

Para além da destruição, do tráfico ilícito de bens culturais e da revisão histórica de símbolos outrora extorquidos, um dos temas de maior visibilidade dentro das relações internacionais é o das solicitações de restituição de patrimônios espoliados. Colabora nesta temática o texto de Karine Lima da Costa que analisa a questão da restituição ou repatriação dos bens culturais, especialmente os artefatos da África subsaariana, a partir da publicação do Relatório Savoy-Sarr, concluído em 2018. Em, A restituição do patrimônio cultural através das relações entre a África e a Europa Costa aborda o caso dos bronzes do Benin, retirados da África no século XIX, e atualmente distribuídos em diferentes instituições museológicas, sobretudo na França e na Inglaterra. A repatriação e / ou restituição também diz respeito à uma mudança de atitude em relação ao tratamento e entendimento dos bens culturais, que deve considerar algo que, às vezes, parece ser esquecido nesse processo: o seu sentido coletivo. Por este motivo, são as novas formas de se relacionar com o patrimônio cultural que a problemática da repatriação convoca, pois ao falarmos de restituição estamos falando, também, de diplomacia. Essas formas não devem se limitar apenas ao retorno permanente, mas ao empréstimo, ao intercâmbio cultural, à circulação das obras – algo que já faz parte do cotidiano de muitas instituições museológicas, mas que são limitados por falta de acordos e cooperação entre os agentes envolvidos.

Em diálogo aberto com o texto de Costa, Manuel Burón Díaz, apresenta o caminho percorrido pelo patrimônio da Nova Zelândia, analisando o estudo da construção, intercâmbio, exibição, reclamação e restituição do patrimônio, por meio de uma leitura crítica do próprio estatuto de devolução. Para o autor, o patrimônio, os materiais que o compõem, assim como os significados que lhes damos, não são estáticos; variam com o tempo e, na sua mudança, desenham no mapa interessantes trajetórias. Neste texto, Díaz aborda como as recentes demandas da restituição patrimonial supõem um desdobramento mais atuante na alargada série de significados que atribuímos a certos materiais culturais, sublinhando como, na atualidade, a repatriação de certos objetos tem se convertido em uma importante ferramenta de relações internacionais. Cabezas y pájaros: La construcción y restitución del patrimonio en Nueva Zelanda é, portanto, uma busca por clarificar a ideia de que o patrimônio tem sido um instrumento fundamental para as relações diplomáticas, pois ao simbolizar diferentes desejos e atender a diferentes necessidades, regula os contatos entre culturas ou nações. Mas isso, adverte o autor, não deve fazer o observador cair no mais estéril relativismo nem no mais imóvel essencialismo cultural.

Em, Soft Power Mineiro: O edital Circula Minas (2015-2018) como medida de preservação e difusão nacional e internacional da cultura e do patrimônio de Minas Gerais, Vanessa Gomes de Castro e Thiago Rodrigues Tavares discutem o programa de internacionalização da cultura do estado de Minas Gerais, por meio do Programa Circula Minas. Os autores analisam os resultados e implicações do intercâmbio cultural patrocinado pela Secretaria de estado da Cultura de Minas Gerais, sobretudo, em relação ao patrimônio cultural, apresentando seus argumentos a partir de uma leitura crítica do conceito de soft power. Para os autores o Edital Circula Minas, ao receber e apoiar financeiramente projetos na área da cultura, possibilitou a participação da sociedade civil na salvaguarda dos bens culturais, mas, políticas culturais não podem ser apenas prerrogativa exclusiva do Estado e seus representantes, devendo envolver a participação da sociedade civil nas diversas etapas do processo de preservação, fato legitimado pelos dispositivos jurídicos internacionais.

O texto As timbila de Moçambique no concerto das nações, de Sara S. Morais discute aspectos do processo de patrimonialização das “timbila chopes” de Moçambique que culminou com seu reconhecimento como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 2005, pelo Programa das Obras-Primas da UNESCO. Inspirada em análises sobre processos de objetificação e redução semântica implicados no reconhecimento oficial de expressões como patrimônio cultural, a autora abordo elementos da trajetória histórica e social das timbila para compreender seu lugar no imaginário nacional e sua escolha como o primeiro bem cultural imaterial em Moçambique consagrado em arenas internacionais. Enfatiza diversos elementos que localizam esse país africano no âmbito das suas relações internacionais; discutindo algumas das dinâmicas perpetuadas pelo colonialismo, traçando reflexões sobre a relação de Moçambique com a UNESCO, à luz da história política do país e de sua recepção em relação a certos critérios e entendimentos desse organismo internacional no que tange ao patrimônio imaterial. Destaca, por fim as interpretações dadas pelo Estado moçambicano aos ideais de participação social da UNESCO e mostra como o dossiê produzido pelo governo moçambicano utilizou o critério de autenticidade para justificar a escolha das timbila.

Encerra o Dossiê, o texto provocativo de Marcos Olender que aborda nova leitura sobre um dos documentos mais conhecidos da preservação do patrimônio. Para responder às indagações do presente e compreender as dinâmicas na construção do imaginário dos patrimônios mundiais, Olender retroage à icônica Carta de Atenas de 1931, produzindo uma leitura verticalizada dos bastidores do primeiro documento internacional referente à proteção do patrimônio histórico e artístico em âmbito institucional internacional. O texto “O abismo da história é grande o suficiente para todos”. Os primórdios da Carta de Atenas de 1931 e a afirmação da noção de patrimônio da humanidade aborda o processo histórico que constrói a conjuntura da elaboração do citado documento, iniciado no contexto da Primeira Grande Guerra e pela implantação de instituições que começaram a estruturação de uma política internacional de proteção ao patrimônio, na qual é destacada a preocupação pela conceituação de um patrimônio da humanidade.

As inquietações apresentadas pelos autores ajudaram na elaboração da entrevista transcrita neste volume. A premissa básica foi discutir: como a leitura de um observador do presente dá conta de compreender as mudanças que se aceleram no universo da preservação dos patrimônios em um mundo oscilante entre a perpetuação e efemeridade? Este foi o mote da entrevista com o historiador britânico, Peter Burke, interlocutor que buscou consolidar respostas concisas, “diante do tempo das indefinições”. Frente a um cenário interconectado e em função do caráter de “novidade temática”, como enxergar a crescente preocupação sobre a preservação do patrimônio em tempos que pendulam entre o esquecimento generalizado e a super produção de memórias? O patrimônio (sobretudo, o chancelado como mundial) tem força para ser combustível de mudança social e política? E diante da pandemia de COVID-19 e as sequentes restrições ao nível da acessibilidade, como fugir da “despatrimonialização” desses lugares? Estaremos já a caminhar para um tempo do “pós-patrimônio”? Responder a esses questionamentos não foi tarefa fácil, mas as respostas elencadas por Burke, podem nos auxiliar a compreender um pouco mais o cenário em que vivemos, independentemente da concordância ou discordância de seus posicionamentos.

Mesmo diante do imponderável, continuaremos trabalhando para que a temática ganhe cada vez mais destaque e que as mudanças que se projetam sejam assimiladas pelos temas correlatos à preservação do patrimônio cultural e seus aspectos internacionais. Conseguir responder ao questionamento central desse dossiê, se as relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia? nos parece precipitado. No entanto, a cada dia que passa projeta-se um cenário no qual o planeta e, por tabela, o próprio patrimônio mundial refletirão as mudanças ocorridas nas agendas dos governos, na preferência dos estudiosos e na dinâmica global de um mundo afetado em grande escala.

As palavras de Oliveira Martins, para quem: “o valor do patrimônio cultural, material e imaterial exige a aceitação da verdade dos acontecimentos, positivos e negativos, para que possamos ganhar em experiência, pelo ‘trabalho de memória’” (2020, 28), nos motiva a continuar preservando. Neste mundo, marcado por uma pandemia sem igual, cabe questionar os acontecimentos, buscar compreendê-los, criar deles memória patrimonial e, por meio da experiência obtida, abrir novos caminhos para a compreensão sobre nós mesmos. Certos estamos que tais caminhos jamais serão como antes, mas que o novo aprendizado venha carregado de significados para que saibamos dosar a preservação entre o novo e o ancestral. Que o patrimônio (elemento que transita entre a memória e a história) encontre nas agendas internacionais espaço de protagonismo, mediando as demandas existentes entre o local e o global, sem sobreposições ou prejuízos de nenhuma natureza. E não podemos deixar de lembrar, as palavras visionárias de Carlos Alberto Ferreira de Almeida (1998), publicadas em tempos tão diferentes daqueles em que vivemos, que “Patrimônio é tudo o que tem qualidade para a vida cultural e física do homem e tem notório significado na existência e na afirmação das diferentes comunidades” às mais diversas escalas. Se assim o é, também concordamos com este autor quando tão antecipadamente escreveu que

o Patrimônio não pode ser olhado apenas como uma reserva e, menos ainda, como uma recordação ou nostalgia do passado mas, antes, como algo que tem de fazer parte do nosso presente. O Patrimônio, para o ser, tem de estar presente e vivo, de algum modo (Almeida 1998).

O Dossiê que agora se dá ao prelo bem o reflete e demonstra. O patrimônio tem hoje um novo lugar: é um ator efetivo nas relações internacionais às mais diversas escalas. Alcançou este status porque não é mais uma reserva do passado. Está no presente e tem valores prospectivos.

Referências

ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Patrimônio. O seu entendimento e a sua gestão. Porto: Edições Etnos, 1998.

MARTINS, Guilherme d’Oliveira. Patrimônio cultural: realidade viva. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020.

OTTONE, Ernesto. 2020. “Em momentos de crise, as pessoas precisam de cultura”. https: / / pt.unesco.org / news / em-momentos-crise-pessoas-precisam-cultura

Rodrigo Christofoletti – Professor de Patrimônio Cultural no curso de graduação e Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do grupo de pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais (CNPq). Conselheiro do COMPPAC – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora. Colaborador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC). Atua na interface entre História e Relações Internacionais com foco no patrimônio cultural. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0002-6346-6890

Maria Leonor Botelho – Professora Auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Diretora do Curso de Mestrado em História da Arte, Patrimônio e Cultura Visual. É investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM / FLUP). Com a Prof. Lúcia Rosas e o Prof. Mário Barroca, coordena a Enciclopédia do Românico em Portugal (2018-2021), no âmbito do protocolo de colaboração celebrado entre a FLUP e a Fundación Santa María la Real del Patrimônio Histórico, un Proyecto desde Castilla y Leon. Os seus interesses de investigação são a gestão do patrimônio, o patrimônio mundial, o digital heritage, a história urbana e a historiografia da arquitetura da época românica. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-2981-0694


CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; BOTELHO, Maria Leonor. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sociedades Asiáticas na Antiguidade / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2020

O estudo das sociedades asiáticas tem se mostrado um campo fértil e multifacetado. Foi o sinólogo Marcel Granet que apontou, em 1929, a impossibilidade de nos considerarmos especialistas em ciências humanas se nossos currículos continuassem a ignorar dois terços do mundo – ou seja, as civilizações de Ásia, África, Oceania e a América pré-colonial. De certa forma, essa ausência persiste na academia, com exceções pontuais. As iniciativas para estudar esse amplo e vasto “Oriente” tem surgido, com relativo constância, mas sem continuidade garantida. Arnold Toynbee (1986), André Gunder Frank (1998) e Jack Goody (2008) alertaram tacitamente a necessidade de reescrever a história mundial em novos parâmetros, redimensionando a perspectiva eurocentrada; Boaventura de Sousa Santos (2009) propôs, inclusive, que uma nova perspectiva epistemológica precisa desenvolver-se para dar conta de incluir e compreender as culturas americanas, asiáticas e africanas. Nesse sentido, as tentativas de explicar as civilizações orientais, a partir de um instrumental teórico tradicional, tem se mostrado pouco adequadas; e cumpre salientar que o desconhecimento sobre a antiguidade e durabilidade dessas tradições aumenta ainda mais essa lacuna, promovendo uma formação incompleta e restrita.

A iniciativa de formar um dossiê sobre as Sociedades Asiáticas na Antiguidade vem em resposta a essa premente necessidade, apontando caminhos para a pesquisa e para uma verdadeira e autêntica liberdade de pensar e conhecer. Nesse número, pretendemos promover um ponto de encontro entre os mais diferentes especialistas, abrangendo um amplo espaço geográfico e histórico que vai de Israel ao Japão. Nossa intenção é escapar ao Orientalismo, bem denunciado por Edward Said (1998), que homogeniza e estereotipa as culturas asiáticas. Buscamos apresentá-las em sua diversidade, originalidade e antiguidade, revelando aspectos culturais enriquecedores para nossa formação.

A necessidade de reescrever a história

A reescrita de uma história global depende, invariavelmente, do reconhecimento e inclusão das narrativas asiáticas na construção de uma nova cronologia histórica. Um currículo eurocentrado não mais se adéqua, nem se sustenta, diante das necessárias releituras que se impõe a partir de uma nova visão pluridiversa das fases históricas – na qual se destaca a disputa pela questão das origens e das hegemonias. Nesse sentido, a construção das histórias asiáticas (ou orientais), pela academia europeia, nasceu de um processo de exclusão e submissão. Como espaço de disputa genésica, no qual se impunha as visões coloniais e imperialistas do século 19, as civilizações de Ásia e África foram alocadas em segundo plano, servindo a uma hierarquização cultural imaginada, que punha o Ocidente Europeu no centro da estrutura histórica e na estruturação de sua periodização temporal e geográfica. As deformações históricas dessas culturas culminaram no fenômeno do Orientalismo, na já indicada acepção Saidiana. Foi nesse processo que Mesopotâmia, Israel e Egito foram construídos como antecessores préracionalizados da ascensão clássica e filosófica de Grécia e Roma, submetidos a um papel secundário. Em outra direção, Índia e China foram interpretadas como derivações migratórias e estagnadas de longa duração das antigas culturas mesopotâmicas, que persistiam em sobreviver na aurora no mundo contemporâneo (Lacouperie, 1880).

Uma visão diversa, multifacetada e integrada desse mundo antigo tem sido revelada gradualmente em duas frentes: o avanço paulatino das descobertas arqueológicas, que redimensionam nosso entendimento sobre as relações e sistemas materiais na antiguidade, e a construção de novas epistemologias, que agregam as contribuições dos sistemas de saberes não-ocidentais (Santos, 2009). No campo da cultura material, trabalhos basilares como de Amihai Mazar (2001), Finkelstein e Silberman em Israel (2003), Mortimer Wheeler (1968) na Índia ou Kwang Chang na China (1983), apenas para citarmos alguns poucos exemplos, revolucionaram a compreensão do passado dessas civilizações, revelando profundas assimetrias em relação à literatura. Por outro lado, os processos de independência afro-asiáticos, ao longo do século 20, renovaram os discursos de identidade e consciência histórica dos países descolonizados, e estabelecendo um ponto de partida para o resgate das culturas tradicionais (Chesneaux, 1977). Com base nesse renascença cultural, anunciada por Raymond Schwab (1950) e levada a cabo por vários intelectuais, as culturas afro-asiáticas buscaram retomar a posse de suas narrativas, redimensionado-as frente à história mundial. Martin Bernal (1987) mostrou a importância da cultura Egípcia para a formação do mundo grego, assim como Cheikh Anta Diop (1923-1986) reconectou a história dessa civilização com suas raízes africanas; Kavalam Panikkar (1977) e Romila Thapar (1978) ajudaram a renovar a escrita da história indiana e Bai Shouyi (1998) reescreveu a antiguidade chinesa a partir de uma interpretação original e diferenciada das teorias marxistas. Mais recentemente, Liu Xinru (2010), Raoul McLaughlin (2012), Peter Francopan (2019) Jared Diamond (2017) e Yuval Harari (2018) conseguiram incorporar algumas dessas novas leituras em uma narrativa histórica global bastante diferenciada daquela herdada do século 19.

Na dimensão curricular da História Antiga, começa-se gradualmente a contemplar outros espaços, tempos e civilizações, ampliando o escopo das relações culturais e materiais das civilizações ancestrais (Gebara, 2019). Necessário relembrar o esforço ingente de pesquisadores como Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) na área de Egito, Emanuel Bouzon (1933-2006) sobre Mesopotâmia e Ricardo Joppert (1979) na de China antiga, em trazer para o Brasil uma tradição de estudos orientais, produzindo materiais e formando quadros que pudessem superar nossa ausência notável na academia. O resgate das culturais orientais vem a reboque dessa mudança, que se estende há anos, e relevar a necessidade de estudá-las – tanto teoricamente quanto metodologicamente – representa um dos novos desafios epistêmicos para a área (Bueno, 2018). Cumpre salientar, pois, que a construção de um dossiê que expresse a diversidade das culturas não-europeias é saudada como uma iniciativa inovadora, que a revista Nearco abraçou nesse volume.

Apresentando as produções

Na definição das linhas gerais que norteariam a produção desse Dossiê, optou-se por delimitar, como critério fundamental, a avaliação e publicação de estudos que contemplassem culturas fora de um eixo eurocentrado. Por outro lado, a condição temporal de ‘antiguidade’, sincrônica (ou mesmo, anterior) aquela aplicada às culturas ocidentais, serviu de parâmetro para o estabelecimento de abordagens multitemporais e / ou paralelismos. Isso representa abarcar uma grande diversidade de civilizações, num espectro geográfico que vai do Oriente Próximo ao Extremo Oriente; contudo, nos permite apresentar uma série de ensaios especializados já em andamento, que desvelam as possibilidades de pesquisa para esse imenso campo.

Partindo de uma aproximação com os espaços geo-culturais, começamos a apresentação de nossos artigos voltados para o Próximo Oriente. A “antiguidade oriental”, classificação que abarca uma visão integrada da região do Levante e o do norte da África, foi adotada aqui para nortear os critérios de inclusão das pesquisas apresentadas. Em Formas de representação das candaces na cultura material em Kush (I AEC E I EC), de Fernanda Chamarelli, conheceremos mais sobre a presença do poder feminino na região de Kush, exercido pelas Candaces, senhoras ligadas às famílias dominantes locais, que redimensionam para nós as antigas relações de gênero e política. No domínio da história egípcia, Jorge Henrique Almeida nos traz, igualmente, uma contribuição fundamental sobre a obra de Cheikh Anta Diop, pensador africano crucial para uma nova compreensão da história do Egito enraizada nas tradições africanas, renovando tanto as narrativas sobre a egiptologia quanto da epistemologia da história, razão pela qual o ensaio se intitula O que aconteceu na história da ciência: a contribuição de Cheikh Anta Diop. Uma visão multifacetada do Egito resulta das diversas interpretações possíveis acerca dessa civilização, que vivenciou a colonização europeia de sua história.

Dentro do mesmo cenário, as civilizações da Mesopotâmia são examinadas por Priscilla Scoville e Simone Dupla. Essas duas destacadas pesquisadoras proporcionam leituras diferentes da ampla gama de temas que envolvem a história da região. Em Os Cassitas, Scoville apresenta e analisa a pouquíssimo estudada civilização dos cassitas, trazendo uma contribuição inovadora para nossa historiografia de antiguidade; já Simone Dupla, pesquisadora de larga experiência com questões de gênero e sexualidade na Mesopotâmia, nos traz um instigante texto sobre o papel do Sacerdócio feminino na Mesopotâmia, perscrutando as tradições religiosas da região.

Essa visão integrada do ‘antigo Oriente próximo’ nos leva igualmente a Israel, área de intensas disputas narrativas em razão de suas heranças religiosas, epicentro de revoluções no campo das crenças vivenciadas tanto por Ocidente com por Oriente. Janaína Zdebskyi, em seu texto As estrangeiras: registros sobre deusas e mulheres subversivas em excertos bíblicos nos traz uma reveladora pesquisa sobre o papel feminino nas tradições bíblicas, proporcionando uma leitura distinta e alternativa a uma epistemologia histórica androcentrada. Esse artigo dá continuidade a uma série de estudos empreendidos pela autora nesse sentido, consistindo em uma contribuição fundamental para um outro olhar sobre astradições da sociedade vetero-testamentária. Outro texto de escol é proporcionado por um dos maiores conhecedores da História de Israel antigo no Brasil, Josué Berlesi, que investiga a construção da ideia da divindade de Deus em “Javé é um”: apontamentos sobre o processo de construção do monoteísmo no antigo Israel.

No passo de um deslocamento geográfico gradual que agora realizamos, cumpre ainda assinalar a contribuição de Rodrigo Nascimento, Profetismo e Apocalíptica no Zand Ī Wahman Yasn, como uma das raras oportunidades que temos de entrar em contato com o mundo persa antigo, provida por um autor do seleto grupo de estudiosos de Pérsia em nosso país. A análise dessa importante peça da literatura Sassânida envolve conceitos religiosos que consideramos próprios do mundo Judaico-Cristão, mas que se revelam presentes em uma tradição religiosa distinta, com raízes igualmente ancestrais.

A Pérsia esteve intimamente conectada a Índia em função de um fundo cultural comum, derivado das migrações “indo-europeias” – termo de ampla abrangência para designar uma multidão de povos e movimentos migratórios que envolveria a Europa, as planícies do Irã e o norte da Índia. A construção da história indiana, porém, seria permeada por conflitos e hibridismos entre essas vagas de nômades e as populações autóctones que habitavam o subcontinente indiano, gerando sistemas religiosos e filosóficos próprios, que culminariam na formulação do Sanatana Dharma (ou, ‘Hinduísmo’) e de seus derivados, como o Jainismo e o Budismo. Esses sistemas constituiriam o alicerce formativo da civilização indiana, em que as concepções historiográficas tal como conhecemos foram substituídas por uma noção de manutenção das tradições, construindo uma experiência singular de história antropo-religiosa.

Dois textos se apresentam, aqui, promovendo uma releitura dessas tradições antigas da Índia nos dias de hoje. A renomada indóloga argentina Lia de La Vega, diretora da Associação Latino-americana de estudos afro-asiáticos (ALADAA) nos proporciona um instigante artigo, El budismo desde India hacia Sri Lanka: la donación (dana) y sus potencialidades comunitarias para el desarrollo, em que mostra as profundas conexões entre a espiritualidade budista e a construção de uma iniciativa para doação de olhos no Ceilão contemporâneo. Essa experiência revela como o projeto, de cunho médico e social, está permeado por uma discussão importante dos conceitos budistas fundamentais sobre a relação com o corpo. Em caminho similar, João Braatz, em “O Mahabharata”, de Peter Brook: reflexões sobre intermidialidade e “Orientalismo” em uma perspectiva pós-colonial, realiza uma análise da clássica epopeia indiana do Mahabharata e suas versões modernas no teatro e cinema, que trazem a luz um clássico da literatura mundial pouco conhecido no Brasil fora dos meios religiosos. Ambas as exposições de Vega e Braatz nos proporcionam um panorama fascinante da durabilidade das tradições indianas, suas mundivivências recentes e a compreensão de seus valores e ideias.

Em direção ao leste, chegamos agora na China, civilização cuja cultura desenvolveu-se relativamente afastada do eixo que conectava o Médio Oriente e a Índia. Temos a oportunidade, nesse Dossiê, de assinalar a presença de alguns destacados sinólogos de renome internacional, cujas pesquisas enriquecem ainda mais esse trabalho. O primeiro que gostaríamos de apresentar é Bony Schachter, pesquisador brasileiro que atualmente leciona sobre Daoísmo na China, integrando um seleto grupo de docentes estrangeiros habilitados e ensinar nesse país. Seu artigo, Esporte dos deuses: o ritual daoista visto sob uma perspectiva comparativa, nos revela como a antiga filosofia do Daoísmo, surgida em torno do século 6 AEC, transformou-se em um rico sistema religioso, cujas expressões contemporâneas encontram ramificações até mesmo no Brasil. sua preocupação é entender as transformações, os sentidos, significados e metodologias dessa religiosidade em franca expansão no mundo moderno.

O pensamento filosófico chinês antigo é contemplado em outro importante artigo, escrito pela sinóloga eslovena Jana Rosker. Ela é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores especialistas deste campo na atualidade, sendo inclusive presidente da Associação Europeia de Filosofia Chinesa, e possuindo dezenas de artigos e livros sobre os mais diversos temas. Para o nosso Dossiê, ela preparou Classical Chinese Philosophy and the Concept of Qi, um texto específico sobre o polissêmico conceito de Qi (energia, vapor, sopro vital, entre outros), imprescindível para o entendimento das teorias filosóficas e médicas chinesas.

No mesmo campo, A “Total War”? Rethinking Military Ideology in the Book of Lord Shang, do eminente pesquisador israelense Yuri Pines nos proporciona uma importante apresentação sobre a questão do pensamento militar na China antiga, presente no livro Shang Yang (ou, O livro do Lorde Shang), clássico da filosofia chinesa muito pouco conhecido no Brasil. Pines tem uma vasta e internacionalmente referenciada produção sobre a história chinesa, voltada principalmente para o período da reunificação chinesa, entre os séculos 4 e 3 AEC.

Como havíamos indicado no início desse texto, uma nova visão do mundo antigo prescinde uma investigação de caráter mais integrador e global. Krisztina Hoppál é uma das mais importantes arqueólogas e historiadoras húngaras em atividade, cujas pesquisas estão voltadas para a comprovação material das relações entre Ocidente e Oriente desde a antiguidade. No ensaio preparado para esse Dossiê, Materials of Eastern origin discovered in the former territory of the Roman Empire, with India and China in focus: examples of direct and indirect interactions from an archaeological perspective, ela examina um conjunto de evidências materiais de origem asiática encontradas nas fronteiras romanas, analisando suas rotas de trânsito e funções simbólicas.

Junto a esse seleto grupo de autores, apresento igualmente um contribuição, China: uma arte para dois mundos, no qual busca-se examinar e compreender o papel da escrita e da pintura e suas relações com as práticas religiosas de evocação durante o período Zhou (notadamente no período dos século 4-3 AEC). A escrita chinesa possui uma estrutura distinta dos sistemas alfabéticos, possuindo implicações especiais para a construção do pensamento simbólico e da racionalização das ideias.

Fechando essa apresentação, Cultura material do Japão no período Kofun: um panorama introdutório, de Larissa Reddit, investiga um tema praticamente inédito no Brasil, relacionado à cultura japonesa: as tumbas do período Kofun, cujo formato e sentido são objeto de ricas discussões acadêmicas. O trabalho de Reddit, Cultura material do Japão no período Kofun: um panorama introdutório é absolutamente inovador, não tendo paralelo em nosso país, e representa uma contribuição significativa para os estudos japoneses desenvolvidos aqui.

A riqueza desse Dossiê resulta da mundiviviência de abordagens possíveis, que mostram os inúmeros pontos de abertura para acessar as civilizações asiáticas. Como podemos notar, os presentes textos resgatam as narrativas dessas culturas, desapropriadas de sua voz, e colocadas em segundo plano, como Jack Goody apontou. Se no Brasil persiste uma atitude arrivista quanto às novas dimensões da escrita histórica, Dossiês como este tornam-se uma ponte indispensável para começar a caminhada em direção aos estudos orientais.

Referências

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GOODY, Jack. O roubo da História: Como europeus se apropriaram das ideias e invenções do oriente. São Paulo: Contexto, 2008.

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WHEELER, Mortimer. Índia e Paquistão. Lisboa: Verbo, 1970.

André Bueno – Professor Adjunto de História Oriental da UERJ, organizador do presente Dossiê. Aproveitamos o ensejo para agradecer a direção e a comissão editorial do periódico Nearco por oportunizar a realização desse volume, que julgamos necessário e urgente no atual contexto de renovação historiográfica.


BUENO, André. Apresentação. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade. Rio de Janeiro, v.12, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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História Antiga e Medieval no Brasil: pesquisa e prática de ensino / Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino / 2020

As pesquisas em História Antiga e Medieval ganham o Brasil de uma ponta a outra. Partindo de centros de excelência, como a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal Fluminense, espalharam-se por todo o país, graças ao trabalho incansável e audacioso de muitos pesquisadores / professores que acreditaram que é possível fazer uma História Antiga e Medieval de excelência no Brasil. Teçamos loas a essas pessoas admiráveis, que passaram por nossas vidas, que nos inspiraram e continuam a fazê-lo.

O trabalho pujante da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, a SBEC, a formação dos Grupos de Trabalho (GTs) da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH), os inúmeros laboratórios reunindo pesquisadores de diferentes estados e os muitos congressos e revistas científicas especializadas na área têm proporcionado uma rica troca de experiências, que impulsiona a pesquisa brasileira.

As atuais pesquisas em História Antiga e Medieval propõem modelos interpretativos diversos, o alargamento das fontes documentais, o uso da tecnologia em benefício da pesquisa e do Ensino e o diálogo com outras ciências, especialmente com a Arqueologia. Novas questões estão na ordem do dia a nos desafiar, intimando-nos a pensar, a tecer novas proposições para a construção de uma História Antiga, viva, em movimento.

Toda sorte de problemas que afetam direta e indiretamente a todos nós, conduzem-nos a reflexões importantes para o repensar do mundo antigo e do nosso próprio mundo. Entre tais problemas está a inquietação com as questões do tempo presente de um mundo globalizado, com problemas igualmente globais, como a pandemia do novo coronavírus a nos fragilizar; enfraquece-nos também a intolerância, a grassar em suas diversas faces, principalmente, no que se refere à discriminação contra as minorias.

Diante de tal quadro, os artigos desse dossiê devem contribuir para a valorização da diferença, da diversidade, da heterogeneidade, da tolerância e combate à discriminação, rejeitando qualquer tipo de preconceito, seja de qual natureza for, por seu potencial de abordagem multiculturalista e de diversidade presente em seus conteúdos. Dialogando com pesquisadores de vários centros de pesquisa, o dossiê apresenta trabalhos de novos e experientes pesquisadores demonstrando, que os estudos de História Antiga e Medieval estão bem dinamizados na Bahia e em outros estados da Federação.

Estes artigos são exemplos de que as pesquisas brasileiras em História Antiga e Medieval estão conectadas com as discussões levadas a termo no cenário internacional, mas evidenciando as especificidades de um “olhar” local que contribuem nos debates em ambientes hegemônicos. Os artigos também espelham a proximidade das pesquisas com a nossa realidade, propiciando-nos uma fecunda possibilidade de compreender melhor o presente, com uma visão menos limitada, linear e por vezes distorcida. No âmbito do ensino, tal perspectiva deve ajudar os discentes a enxergarem a nossa realidade de forma transitória, contrastando-a com os seus modos de vida, observando as persistências e mudanças ao longo do tempo, dissipando a distância entre o saber científico, produzido nas Universidades, e o saber escolar, produzido em salas de aula do Ensino Fundamental e Médio. Aos docentes, os artigos apresentam instigantes possibilidades de refletir sobre a História Antiga, de repensá-la em sua prática de sala de aula, de fazer novas experimentações, tornando essa História mais próxima, mais viva e prenhe de sentido. Muitos artigos visam instrumentalizar o professor, oferecendo-lhe ferramentas úteis para diminuir o descompasso entre aquilo que é produzido no meio acadêmico e o que é ensinado nas escolas.

Compõem o dossiê um total de dez artigos. Alexandre Galvão Carvalho, em seu texto Diálogos entre a História Antiga e o ensino de História, tece reflexões em torno da alteridade, multiculturalismo, eurocentrismo e da relação entre Ocidente e Oriente nos debates acerca do ensino da História Antiga. Procura repensar as formas e modelos da História Antiga e o ensino de História com o objetivo de aproximar a disciplina História Antiga de nossa realidade e superar preconceitos, articulando artigos atuais sobre as formas e modelos teóricos da área com as propostas curriculares para o ensino de História, acentuando os caminhos para a inserção da disciplina História Antiga na construção e fortalecimento da cidadania.

No artigo Saberes arqueológicos na escola pública: ações educativas do Labeca aplicadas ao “Projeto Minimus Intersdiciplinar”, Maria Cristina Nicolau Kormikiari, Felipe Perissato e Felipe Leonardo Ferreira destacam a contribuição do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (LABECA) para o avanço das pesquisas sobre a cidade antiga grega no Brasil. Apresentam, a partir de um rico e instigante projeto, um relato de experiência dos desdobramentos dos estudos desenvolvidos no LABECA em escola pública da Educação Básica de São Paulo. O objetivo do projeto é aproximar o conhecimento produzido no espaço da universidade da escola secundária, preocupação constante do Laboratório.

No terceiro artigo, O livro didático e o Ensino de História Antiga – desafios no presente e problemas do passado, Luis Filipe Bantim de Assumpção e Carlos Eduardo da Costa Campos partiram da experiência como docentes no Ensino Médio, em colégios particulares do Rio de Janeiro, para demonstrar como os materiais didáticos ali utilizados detêm uma visão conservadora sobre a História Antiga. Os autores aproveitam a oportunidade para apresentar, com muito esmero, uma metodologia de análise do livro / material didático utilizado, com a qual se objetiva desenvolver uma análise crítica do conteúdo de Antiguidade.

Na sequência, o artigo História dos cristianismos nos livros didáticos: considerações sobre a narrativa histórica escolar, de autoria de José Petrúcio de Farias Júnior e Ramonn Gonçalves de Moura, apresenta uma discussão necessária e importante sobre a História dos Cristianismos a partir de preocupações atuais, como o fundamentalismo religioso e a intolerância religiosa, tão presentes em nosso cotidiano. Os autores analisam a apresentação da história dos cristianismos nos livros didáticos e chegam à conclusão do quanto ainda é profundo o fosso entre aquilo que é ensinado nas escolas e as discussões recentes sobre a temática.

No quinto artigo “Mitologia, História e Cinema”: um projeto de extensão sobre recepção do mundo-greco romano em curso, Igor Barbosa Cardoso e Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho brindam-nos com a apresentação de um projeto amplo e audacioso (como todos devem ser) envolvendo Mitologia, História e Cinema, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Muito mais do que a apresentação do projeto, os autores oferecem um magnífico quadro teórico de análise da produção cinematográfica e de importantes questões atinentes ao estudo da recepção da cultura clássica. Trata-se de um convite desafiador (e tentador) àqueles que desejam repensar a História sobre novos e promissores alicerces, inserindo, sob bases acertadas, o cinema em sala de aula.

Em O Mediterrâneo Antigo: uma proposta didática Manuel Rolph Cabeceiras apresenta, em seus aspectos teórico-metodológicos e práticos, os resultados da construção de uma proposta de aprendizagem compartilhada nas turmas de “História Antiga” no 1º Período do Curso de Graduação em História da UFF de 2013 a 2019, centrada no Mediterrâneo como categoria de análise histórica nas áreas por ele abrangidas dos séculos XXIV a.C. a III d.C. O artigo além de apresentar análise inovadora sobre o Mediterrâneo Antigo, abre a possibilidade para um novo modo de se pensar e trabalhar em sala de aula o mundo antigo.

No artigo seguinte O II Concílio de Braga e Da Correção dos Rústicos contra o paganismo: entre a cultura escrita e a oralidade, de autoria de Vitor Moraes Guimarães e Márcia Santos Lemos, os autores apresentam uma análise muito rica sobre as formas utilizadas pela Igreja no processo de evangelização e difusão do cristianismo no Reino Suevo do VI século. A partir de múltiplas estratégias de conversão ao cristianismo, a Igreja alcançava tanto as baixas camadas do clero quanto as populações humildes e afastadas, na busca da consolidação do cristianismo e eliminação do paganismo.

O oitavo artigo, A pesquisa sobre Império Romano no Brasil: a Numismática e a Coleção do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro (RJ), de Cláudio Umpierre Carlan, apresenta uma das mais instigantes e frutíferas fontes de pesquisa: a moeda. A partir da Coleção do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, o estudioso presenteia-nos com uma análise do Império Romano. Passeando pela história da Numismática, apontando suas possibilidades de pesquisa, ofertando-nos exemplos de como é possível extrair da fonte imagética um conhecimento profundo e sob diferentes aspectos da história dos romanos.

O artigo seguinte: Os sepultamentos secundários dos judeus e os ossuários judaicos: um breve debate sobre continuidades e rupturas dos padrões funerários na região da Judeia, dos autores Carolina Mattoso e Vagner Carvalheiro Porto, apresenta uma história que vem da província romana da Judeia, pouca conhecida entre nós. Tem o mérito de discorrer com profundidade sobre o sepultamento secundário de judeus e o uso de ossuário como modo para esse tipo de sepultamento. Sob tais bases os autores tentam ampliar o conhecimento das interações entre a província e os romanos e entender o próprio passado judaico.

Fechando o dossiê, no artigo O espaço como um contributo para a compreensão da tragédia e para a interpretação da História, Márcia Cristina Lacerda Ribeiro propõe a utilização do ‘espaço’ como categoria de análise útil para ampliar o entendimento sobre a tragédia grega e sobre a História. A partir de uma leitura antropológica do espaço, tomada de empréstimo de Amos Rapoport, o texto discute a interação entre espaço e comportamento, exemplificado a partir da análise do espaço da gruta, presente na tragédia Íon de Eurípides.

Com esse dossiê, reforçamos nossa perspectiva de que o estudo da História Antiga e Medieval deve ser encarado como um laboratório, com uma enorme diversidade de formas socioculturais das experiências dos homens e mulheres ao longo da história. O afresco de Luca Giordano, “O barco de Caronte, o Sono da noite e Morfeu”, do século XVII, capa da nossa revista, é uma leitura da Antiguidade formulada em outro contexto histórico, por meio de uma linguagem própria, uma forma de apropriação e usos do passado que coloca em tela o interesse que o antigo e o medievo têm despertado ao longo do tempo. Que assim continue….

Nossos agradecimentos a todos os autores que nos presentearam com seus belíssimos trabalhos.

Boa leitura!

Alexandre Galvão Carvalho – Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor Pleno do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Brasil. E-mail: [email protected]

Fábio de Souza Lessa – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Laboratório de História Antiga e ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) do Instituto de História da UFRJ e ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (PPGLC) da Faculdade de Letras da UFRJ. Brasil. E-mail: [email protected]

Márcia Cristina Lacerda Ribeiro – Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo; Pós- doutora em Arqueologia Clássica pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade do Estado da Bahia (na Graduação em História e no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Linguagem e Sociedade). Pesquisadora do LABECA / MAE / USP e do NHIPE / CNPq. Brasil. E-mail: [email protected]


CARVALHO, Alexandre Galvão; LESSA, Fábio de Souza; RIBEIRO, Márcia Cristina Lacerda. [História Antiga e Medieval no Brasil: pesquisa e prática de ensino]. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.2, n.6, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

CARTÕES POSTAIS DE ESTÁDIOS DE FUTEBOL COMO FONTE DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO | Aristides Leo Pardo |

Através destas linhas iremos discorrer acerca da importância dos cartões postais como fontes históricas e guardiões das transformações sociais e urbanas através dos anos, com foco nos postais de estádios de futebol do Estado do Rio de Janeiro, pois é perceptível as mudanças que as praças esportivas sofreram com o passar dos anos, assim como seu entorno, isto sem falar naqueles que deixaram de existir por força da expansão das cidades. Utilizaremos neste trabalho, uma revisão bibliográfica e os próprios cartões postais, como fontes iconográficas para mostrar espaços em constante mutação, poderia ter usado fotografias, mas a opção pelos postais foi a escolhida por dois motivos: serem melhores para referenciar, e ne maioria dos casos, datar, e também por ter acesso mais fácil, já que esta é uma das paixões do autor, que pode mais uma vez rever sua coleção de cerca de 3.000 peças, que retratam praças esportivas dos quatro cantos do nosso Brasil. – PALAVRAS-CHAVE: Cartões Postais. Fontes Históricas. Estádios de Futebol.

“SÍNDROME DA CHINA” E A DENÚNCIA A INSEGURANÇA MUNDIAL NA “ERA NUCLEAR” | Arthur Alexandre Caetano Silva de Souza | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O presente artigo procura analisar as relações entre produções cinematográficas e suas potencialidades perante a construção do conhecimento histórico. Sob o contexto da Guerra Fria que marcou o início da “era atômica”, buscaremos explicitar as relações entre representações cinematográficas e suas apropriações de fatos históricos enquanto elementos contribuintes para o enriquecimento do conhecimento histórico. Para isso, utilizaremos como “estudo de caso” o filme “Síndrome da China” (The China Syndrome) dirigido por James Bridges em 1979, e estrelado por atores consagrados do cinema como Jane Fonda, Jack Lemmon, Michael Douglas, dentre outros. O enredo de tal produção cinematográfica é relevante ao conhecimento histórico na medida em que proporciona a reflexão crítica a cerca da era nuclear e seus efeitos para a sociedade. Palavras Chave: Ensino de História; Guerra Fria; Cinema e História; Era Nuclear.

ENTRE “DEBATES E COMBATES”: NOTAS ACERCA DE ALGUNS DESAFIOS DA HISTÓRIA | Bruno César Pereira | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O presente artigo propõe realizar uma breve reflexão de alguns desafios enfrentados pela História ao longo do século XX. Em especial, em um primeiro momento, buscaremos nos concentrar nos debates travados entre História e a Sociologia durkheimiana refletida através das críticas feitas pelo sociólogo François Simiand as produções historiográficas da Escola Metódica. Em um segundo momento, nos dedicaremos em analisar os embates entre História e Antropologia, que, se concentrou entre os pesquisadores: Claude Levi-Strauss e Fernand Braudel. A proposta deste artigo, além de analisar os desafios enfrentados pela História em um dado contexto específico, busca destacar que a História, enquanto disciplina acadêmica possui grande importância para o pensamento humano, da mesma forma suas contribuições se equiparam as demais áreas do conhecimento social e humano. – PALAVRAS-CHAVE: Desafios; Teoria da História; Século XX. | INDÍCIOS E INDICADORES DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS NAS PÁGINAS DE “O ESTADO”: ACELERAÇÃO DO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO E A INCORPORAÇÃO DO CONSUMO DE MASSAS (1970-1980) | Daniel Henrique França Lunardelli | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

A partir do início da década de 1970, a Capital catarinense ganhou uma nova dimensão em sua composição econômica e social. O processo acelerado de transformações urbanas que ocorreram na cidade impactaram a vida dos moradores e produziram uma série de expectativas acerca do presente e outras tantas em relação ao futuro. O crescimento vertiginoso da construção civil e o incremento do setor de serviços, somados às grandes obras públicas que impactaram a paisagem urbana de Florianópolis, contribuíram significativamente para construir no imaginário da população a narrativa de que se estava de fato vivendo um novo tempo. – PALAVRAS-CHAVE: Florianópolis. Cidade. Urbanização

ESTUDANTES PELA LIBERDADE: FORMAS DE ORGANIZAÇÃO, RACHA E OUTROS ASPECTOS (2012-2016) | João Elter Borges Miranda | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O Estudantes Pela Liberdade (EPL) surgiu no Brasil como uma franquia do aparelho estadunidense Students For Liberty. Ao ser fundado no Brasil em 2012, o EPL estabeleceu como missão desenvolver estudantes ao seu potencial máximo de liderança, oferecendo treinamento de aperfeiçoamento profissional, desenvolvendo técnicas como as de oratória e comunicação profissional, na defesa dos preceitos ultraliberais. O período de 2012 a 2016 será o período áureo do EPL. Amparado, financiado e instrumentalizado por organizações nacionais e transnacionais, conseguirá se expandir por todas as regiões do país, através de uma série de atuações, formando dezenas de jovens para defenderem nos meios universitários os preceitos ultraliberais. Em 2016, contudo, sofrerá um racha interno, a partir do qual irá se dividir: será criado no país a Students For Liberty Brasil, uma vertente direta da versão americana, e o EPL perderá o direito de realizar parcela considerável dos seus projetos desenvolvidos anteriormente, assumindo a partir desse momento o caráter de uma “Academia da Liberdade”, oferecendo cursos online de formação. No presente trabalho objetivamos abordar aspectos das origens do EPL, as suas formas de organização, financiamento e atuação dentro do recorte de 2012 a 2016, e o porquê do racha interno. – PALAVRAS-CHAVE: Estudantes Pela Liberdade; Aparelho Privado de Hegemonia; Racha.

MALINCHE E POCAHONTAS: AS REPRESENTAÇÕES DAS MULHERES INDÍGENAS NO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DAS AMÉRICAS | Luciane Zanin Ferreira e Mariana de Sá Gaspar | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

Nas colonizações das Américas espanhola e inglesa, ocorridas no século XVI, duas mulheres nativas se destacaram: Malinche e Pocahontas. Embora em contextos diferentes, suas trajetórias possuem aspectos em comum e características marcantes, recebendo, inclusive, representações póstumas ao período das conquistas, que lhes atribuíram no âmbito simbólico heroicização, culpabilidade e até mesmo um caráter lendário. Analisando essas indígenas a partir da formação das Américas colonizadas, buscamos compreender como essas mulheres se inseriram nesse processo, bem como problematizar suas representações. – PALAVRAS-CHAVE: História da América; Mulheres; Representações.

AS CEBS COMO MEIO DE COMPREENSÃO DAS LUTAS DOS POBRES NO BRASIL: 1964-1985 | Marcos Guerreiro de Farias | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

o presente texto busca analisar por meio uma revisão bibliográfica como se constituía as Comunidades Eclesiais de Base – CEB se os espaços de voz concedidos aos sujeitos que permeavam estas comunidades. Analisaremos especialmente os anos que compreenderam a Ditadura Militar no Brasil, momento este de extremo enrijecimento político, perseguições, torturas e mortes. Foi durante este momento que a Igreja se solidarizou com a luta dos pobres, solidificando-se como espaço para a fala quando a norma era calar. Mais próxima da população empobrecida, de seu cotidiano, convivendo diariamente com o sofrimento de muitos, a Igreja Católica por meio da Teologia da Libertação proporcionou um espaço de amplo debate político que posteriormente tornar-se-ia o núcleo dos movimentos mais críticos e a esquerda no Brasil. – PALAVRAS-CHAVE: Igreja Católica; Teologia da Libertação; Autolibertação.

AS MULHERES DE MACHADO: A MULHER NO SÉCULO XIX – REPRESENTAÇÕES DE MULHER NOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS | Milena Calikoski | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

Neste texto fazemos a análise de alguns contos de Machado de Assis com a intenção de entender como as mulheres eram representadas, para isso utilizamos contos onde as mulheres têm um papel de protagonismo. Através das obras escolhidas podemos explorar como era o modelo de mulher exemplar, buscando nas obras mulheres que não se encaixavam nesses modelos, analisando a maneira como elas são representadas nas obras selecionadas, para então entendermos em qual contexto esses discursos foram produzidos. Buscamos entender como estes discursos contribuíam para a concepção da existência de um mundo feminino, onde o casamento era requisito principal e até carreira para a maioria das mulheres da elite burguesa. Palavras chave: mulheres; Machado de Assis; casamento.

O LÚDICO NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM: O PIBID NAS TRINCHEIRAS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL | Milliann Carla Strona e Cibeli Grochoski | Sobre Ontens. Paranavaí-Rio de Janeiro, v.3, jul./set. 2020.

O presente trabalho objetiva apresentar o relato de uma experiência dos integrantes do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da área de História da Unicentro, Campus Irati – Paraná. Para abordar a temática da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi utilizada uma metodologia diferente do que se faz no ensino tradicional, o intuito foi promover por meio de uma abordagem lúdica e da análise de fontes históricas uma reflexão crítica dos conteúdos com os alunos. O trabalho foi realizado na Escola Nossa Senhora das Graças com os 9ºs anos do Ensino Fundamental, sob a supervisão da professora regente Juliana Bastos. Palavras chave: Ensino; PIBID; Metodologia.

Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade / Revista Trilhas da História / 2020

Em 2019, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, sediou o evento intitulado Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade. O evento fora construído por várias mãos, na tessitura de práticas e diálogos entre cursos de licenciatura do campus, especialmente os cursos de História, Geografia e Pedagogia, representados por docentes e discentes comprometidos / as com a educação para as relações étnico-raciais. Além dos temas candentes para o debate das relações étnico-raciais, o encontro foi bem sucedido por conseguir reunir vozes negras e indígenas protagonizando os diálogos estabelecidos nas mesas redondas, simpósios temáticos, lançamentos de livros e atividades culturais. Eventos desta natureza têm como justificativa a urgência da produção de um novo estradar da universidade, desenhando bifurcações necessárias entre a educação e a luta antirracista.

Uma busca no Google de eventos acadêmicos ocorridos em novembro de 2019 possivelmente aponte para muitos outros lugares e entidades que realizaram atividades voltadas à semana da Consciência Negra naquela conjuntura. Provavelmente também o crescimento do número de pesquisas, ações e projetos a extrapolar a efeméride, seja uma realidade e uma conquista de que nos sentimos parte e que devem ser comemoradas. No entanto, passado um ano, perscrutando um olhar retrospectivo, concluímos que estamos longe de empreender uma alteração efetiva no estado de coisas e no cenário de violência que o racismo estrutural engendra. Ao adentrarmos o ano de 2020, pudemos constatar, não sem tristeza e indignação, que os passos são ainda muito curtos, apesar de tão necessários.

Marcado pelo advento da pandemia do novo Coronavírus, o ano de 2020 escancarou o racismo estrutural e aprofundou a chaga do negacionismo. Logo nos primeiros meses da conjuntura pandêmica, o mundo assistiu ao levante estadunidense em reação ao assassinato de George Floyd, um homem negro morto por um policial branco, em 25 de maio, na cidade de Minneapolis, em mais uma das abordagens violentas das instituições policiais sobre as populações negras, mas que, naquela ocasião, fora filmada e exposta nas mídias globais. Homens e mulheres de todo o planeta assistiram ao terrível assassinato daquele cujas últimas palavras foram: “eu não consigo respirar”. O fato foi corretamente lido pela sociedade como violência racista e a repercussão se politizou, fazendo emergir dali o movimento mundial intitulado “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam). Demonstrar que a abordagem policial difere a partir de marcadores de cor, evidenciando que a sociedade é amplamente racializada, foi um objetivo trilhado pelo movimento, apesar de persistirem visões negacionistas teimando em retrucar pelas redes que “todas as vidas importam”, numa tentativa de apagamento do racismo como causa estrutural da morte de Floyd. Não é exagero dizer que a sensibilização estadunidense frente a este fato pode ter abalado o destino das eleições presidenciais dos Estados Unidos, uma vez que a resposta do líder máximo do executivo naquele momento não destoava da onda negacionista e mesmo não se distanciava de grupos de supremacia branca naquele país.

Aqui no Brasil, os primeiros sinais de que a epidemia também seria uma tragédia racializada vieram antes e foram, respectivamente, a notificação da primeira morte por Covid-19, no país, de uma empregada doméstica, e a evidente negligência do Estado contra os povos indígenas no combate à disseminação do vírus entre as comunidades. O Instituto Socioambiental apontou para essa omissão argumentando que o Estado inclusive ajudou a espalhar a doença entre os povos originários, por meio de profissionais da saúde que levaram o vírus para aldeias, como também pelo silêncio sobre garimpeiros e grileiros que aumentaram as invasões na Amazônia durante a pandemia e, ainda, pelo fato de indígenas terem de buscar o auxílio emergencial nas cidades.[1]

Em maio de 2020, uma operação policial resultou na morte de uma criança de 14 anos, dentro de sua casa, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. João Pedro era mais um garoto negro, morador do complexo de favelas do Salgueiro, e sua morte expôs a terrível tradição da abordagem policial onde se concentram os pobres e negros das periferias que, como afirmava Carolina Maria de Jesus, constituem o “quarto de despejo” da sociedade.

Pouco tempo depois, em 02 de junho, fomos surpreendidos com o desfecho de uma tragédia a ser evitada se nosso povo pudesse se libertar da sua própria história, superando as dores e desigualdades infligidas, sobretudo, nas intersecções de raça, gênero e classe. Naquele dia, na cidade de Recife, morreu o menino Miguel ao cair da altura do nono andar de um prédio. Sua morte foi definida pela ONU como decorrente do racismo sistêmico, pois Miguel era uma criança negra e estava sozinho naquele andar por conta da negligência da patroa de sua mãe. A mãe de Miguel, Mirtes Souza, mulher negra, havia saído para passear com o cachorro da patroa. Assim como a sua própria mãe, era empregada doméstica e não pode contar com o direito ao isolamento social preconizado pela Organização Mundial da Saúde – OMS.

Djamila Ribeiro, ao refletir sobre o fato, expôs sua relação inegável com um passado colonial que teima em se reproduzir. Em texto publicado em 09 de julho no Jornal A Folha de São Paulo, a filósofa afirmou que era preciso atentar para algo insistentemente invisível, “o serviço doméstico em meio à pandemia, a hierarquização de vidas. A patroa que faz as unhas, enquanto Mirtes Souza, empregada doméstica, passeia com o cachorro”. Para esta autora, Miguel “provou uma experiência comum para pessoas negras no país: ser uma presença indesejada, uma chateação preta no momento de vaidade da família branca”. Mas, como compreender que a queda e morte de uma criança é resultado de racismo? O que é preciso reconhecer por detrás do elenco de fatos imediatos daquele 02 de junho como fios invisíveis e históricos que colocam o menino Miguel, de apenas cinco anos, naquele elevador, cujos botões foram apertados pela patroa branca, primeira-dama de um município que tampouco ela residia?

Na época dos fatos foram ventiladas as noções de racismo estrutural e sistêmico em algumas reportagens e programas de repercussão que visavam explicar os acontecimentos a partir de leitura sociológica apontando que o racismo não se resume a práticas individuais, conscientes e isoladas, de aviltamento direto contra homens, mulheres e crianças lido a partir de marcadores raciais erigidos em processos de colonização eurocentrados. Um dos autores que se fez presente no debate público foi Silvio de Almeida, para quem o racismo é estrutural e também institucional, pois nossas ações e comportamentos “são inseridos em um conjunto de significados previamente estabelecidos pela estrutura social. Assim, as instituições moldam o comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como dos sentimentos e preferências”.

Apesar da repercussão destes e de outros casos, que incluiu até um movimento pela derrubada de estátuas e monumentos colonialistas ao redor do mundo, as dores da família de Floyd, de João Pedro e de Miguel, bem como os debates trazidos às superfícies das mídias e redes sociais não foram suficientes para produzir uma fissura sistêmica ou estrutural que interrompesse o ciclo histórico de violência infligida aos povos subalternizados e marcados pela negritude dos seus corpos.

Ao completarmos um ano de nosso evento, às vésperas do Dia da Consciência Negra de 2020, João Alberto Freitas, de 40 anos, foi tratado como criminoso, espancado e morto por seguranças no estacionamento de uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre. Seu crime: ser negro no Brasil. Mas, igualmente, como ocorreu com os tristes exemplos que elencamos acima, não foi dito a Beto que ele pagava com a vida por sua negritude, pois o racismo que impele as instituições a detratarem e destruírem pessoas negras só pode ser percebido pelo escancaramento do absurdo que se pensaria caso o evento ocorresse inversamente, com pessoas brancas. Só parece possível produzir alguma consciência e educação das relações étnico-raciais que superem as estruturas racistas quando o conjunto da sociedade assumir essa tarefa e, sobretudo, as pessoas brancas admitirem sua importância na luta antirracista, quando forem capazes de presumir seus privilégios invisíveis como serem tratados / as como pessoas sem previamente serem suspeitas. Grada Kilomba, em entrevista à já citada Djamila Ribeiro, alertou que “as pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas. E é exatamente essa equação, ‘sou branca e por isso sou uma pessoa’ e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo”.

Os casos de violências tão terríveis como estes ocorridos após o nosso evento tensionam nossa própria esperança. Além das mortes decorrentes do racismo estrutural, que foram em número maior do que podemos supor aqui, também os casos de preconceitos e prejuízos produzidos pela omissão no combate ao racismo, e mesmo por sua reprodução, projetam cotidianamente os brancos / as ao centro e os negros / as e indígenas às margens. Basta lembrarmos do caso da entrevista da cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, ao programa Roda Viva (TV Cultura) do último 19 de outubro, em que afirmou, sobre contratar pessoas negras a partir de políticas afirmativas, que o banco não poderia fazê-lo pois não dá para “nivelar por baixo”.

Estas dinâmicas se beneficiam do silenciamento e da normatização e mantêm engrenagens muito antigas que, a despeito da centenária resistência, dos aquilombamentos e retomadas, das emancipações individuais e das pequenas conquistas legais, asseveram o fosso social que persiste e se desnudou ainda mais com a pandemia. A doença foi pior e, de fato, mais letal para aqueles e aquelas que já são atravessados pela chaga do racismo. A publicação do GT de Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), fundamentada na perspectiva de que a OMS, “concebe o racismo como um dos determinantes sociais do processo de adoecimento e morte”. Os autores / as consideram que “os desdobramentos da pandemia da Covid-19 numa sociedade estruturada pelo racismo penaliza grupos vulneráveis, especialmente entre pessoas negras, está diretamente relacionado à policrise sanitária, social, política, econômica, moral, crise na globalização e os fluxos migratórios etc”.

Produzir mudança que salve vidas implica uma tarefa de arco revolucionário e, na educação, uma radicalidade emancipadora. Com efeito, a denúncia e o anúncio, sejam eles viralizados pelas câmeras e redes que hoje podem contribuir com a desnaturalização da violência racial, seja na reunião de pessoas dispostas a dar um passo em outra direção, isto é, na direção da luta antirracista, é o trabalho de formiguinha a que temos de nos comprometer nas nossas rotinas de trabalho, estudos, nos almoços de família, nas rodas de conversas, no chão das escolas, de forma coletiva, perene e intransigente. É neste compromisso que trazemos e apresentamos o Dossiê Relações étnicas – Racismo, Educação e Sociedade.

Como já salientamos, sua proposta nasce do Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas, mas ganha novo fôlego ao revisitarmos as experiências do ano que decorreu de lá pra cá, com a pandemia da Covid-19 e do racismo. Se alcançamos, na época, o bonito objetivo de construir um espaço pluralmente atravessado por olhares decoloniais, narrativas indígenas, vozes negras de homens e mulheres, estéticas diversas, em ações potentes e resistentes na denúncia das várias formas de opressão que marcam a nossa sociedade, como também de (re)existências a demarcar a educação como instrumento de luta e vivida / produzida pela ação humana no tempo, agora, compreendemos que o dossiê alimenta o anseio de manter vivo este espaço como marco de luta e esperança. Os textos, assim como o simpósio, também se constituem numa treliça interdisciplinar e trazem esta dimensão de enfrentamento aos muitos racismos, como os vividos nos espaços escolares, mas ainda em outros lugares da sociedade e a envolver sujeitos diversos, como negros e negras, indígenas e ciganos.

O texto Cabelo crespo, corpo negro na luta cultural por representação afirmativa da identidade negra, da historiadora e militante negra, Celia Regina Reis da Silva, apresenta densidade teórica e trabalho com as fontes na abordagem de uma temática de suma importância para o Dossiê ao estudar o corpo negro e o cabelo crespo, em vista da discriminação vivida por crianças, adolescentes e jovens, tanto no espaço escolar quanto em outros lugares da sociedade. Mas apresenta também o seu reverso, ou seja, as múltiplas manifestações culturais da juventude negra de São Paulo, especialmente das periferias, na denúncia desta situação e na apresentação, vivência e (re)existência de outras práticas que implicam a valoração das vidas negras, na sua mais ampla acepção. Ao discutir essas questões no ambiente escolar, a autora denuncia como a escola acaba por ser este lugar de segregação e racismo se não problematiza-los em suas raízes e efetivar práticas antirracistas em seu cotidiano. Desse modo, o texto é um alento para pensarmos questões fundamentais na apreensão das múltiplas formas de luta, especialmente na abordagem do corpo e do cabelo negros e na criatividade das periferias na reinvenção de outras práticas que vão de encontro à violência contra pretos e pretas.

O texto A lei 10.639 / 2003 e o Programa Nacional da Biblioteca na Escola do ano de 2013: Como a temática étnico-racial tem sido tratada pelo programa dez anos após a sua implementação, de Felipe Lima e Jaqueline Santa Bárbara, traz uma temática muito relevante para a Educação e a História, ao abordar a forma como os negros e negras vem sendo retratados na literatura infantil, especialmente como se constitui (ou se nega) a identidade negra, a partir da análise de livros disponibilizados pelo PNBE / 2013, dez anos após a Lei 10.639 / 03. Desse modo, ao entrevistar duas professoras que trabalham com o ciclo fundamental e analisar 60 livros enviados para as escolas brasileiras, os / as autores / as abordam uma discussão fundamental acerca das questões étnico-raciais e do trabalho desenvolvido em sala de aula.

O texto ‘E se fosse o contrário?’ Djonga e Fanon: um diálogo sobre racismo e alienação, de Fábio Silva Sousa e Rogério Leão Ferreira, ao trabalhar duas linguagens diferenciadas (um autor e um videoclipe), traz uma contribuição necessária para a análise do racismo e das formas de opressão que marcam a sociedade no Brasil e em outras partes do globo. Ao discutir Frantz Fanon e sua obra “Pele negra, máscaras brancas”, e o Rapper Djonga, numa linguagem explícita e até direta, por vezes, ao confrontar-se com a alienação do negro, o texto problematiza a quem favorece a identificação com o branco e nos aponta caminho para superarmos o racismo impregnado em nosso tecido social.

O texto Entre o sul e o norte de Mato Grosso: doenças, conflitos e a exclusão da liberdade (séculos XVIII e XIX), de uma das autoras desta apresentação e de Rafaely Zambianco Soares Sousa, discute temas como doenças, conflitos e a exclusão da liberdade na história dos negros e negras escravizados entre o norte e sul de Mato Grosso. Ainda que não se refira diretamente à temática das relações étnico-raciais, possibilita a compreensão de um cenário em que imperavam doenças e insalubridades no Brasil Oitocentista, em particular incidindo sobre a vida dos negros e negras, escravizados e libertos. Contrapondo-se às mazelas que marcaram mais de 350 anos de escravidão temos também, nesta história, o desejo e a busca pela liberdade, como expõe uma das fontes de 1872, em que liberdade, vida, doença e morte se entrelaçaram pelos caminhos e arredores do Cuyabá. Ao conhecermos o passado suas lições nos ensinam a necessidade do combate ao racismo no presente, em todos os lugares em que ele se estrutura, pois, comumente, a sua história é a de permanência da injustiça, da Colônia ao século XXI, mas também de muitas lutas ao longo do tempo.

O texto O ‘Nobre educador’ da Bahia: trabalho, cidadania e sociabilidades, de Sivaldo dos Reis Santos, ao discorrer sobre a trajetória do professor negro Elias de Figueiredo Nazareth, que fora docente e diretor da Escola Normal da Bahia, contribui com novas análises podendo dar visibilidade historiográfica aos trabalhadores negros que vivenciaram momentos sociais de tensão e mudanças entre o fim do século XIX e começo do XX. Apresentando fontes da Hemeroteca Digital Brasileira como jornais, revistas e relatórios de autoridades públicas na área da educação, da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, o texto propõe uma ruptura sobre aquilo que Chimamanda Adichie chamou de “uma história única”, que comumente naturaliza um lugar específico para determinados sujeitos nas narrativas da história e que pode ser tensionada com pesquisas que desvelem a agência de homens e mulheres a se desviarem desses lugares atribuídos arbitrariamente, e não sem resistências coletivas e individuais, evidentes nestas obras.

A interpretação acerca dos Suruí / Aikewara e a Guerrilha do Araguaia: memórias de uma história em movimento, dos autores Andrey Minin Martin e Iolanda de Araújo Mendes, evidencia pesquisa empírica, especialmente na produção das fontes orais. Ao narrar as memórias da guerrilha do Araguaia, os autores dão conta de explicitar os marcos de memória impressos pela ditadura militar, assim como a reconstrução do direito moral à terra e, inclusive, à reivindicação à expansão de seus limites. Ao contribuir para a história indígena, o texto explicita a proximidade com a temática do racismo, porque também esses grupos, os povos originários, vivem na pele, no corpo, na carne, a violência que marca a nossa história, do passado ao tempo presente. Reconstituir uma história de lutas e uma reivindicação de memórias é fundamental para não deixar que estas histórias sejam silenciadas, especialmente no contexto da ditadura civil-militar.

Marcio Edovilson Arcas e Ademilson Batista Paes, em A invisibilidade / camuflagem cigana: uma análise sobre a representação dos ciganos no olhar do Gadje (não-cigano) apresentam uma reflexão basilar para a análise da representação dos ciganos na Literatura e em outras fontes trabalhadas em sala de aula. Os autores problematizam como o mito construído em torno dos ciganos desvela a inexistência da alteridade face a esses povos, prevalecendo interpretações centradas na discriminação, intolerância, racismo e violência. Diante disso, a invisibilidade dos ciganos é apontada e denunciada pelos autores, fazendo-nos entender o quanto o racismo também se estrutura na negação da diferença e no desconhecimento de outros grupos sociais.

Este Dossiê, ao sistematizar reflexões de diferentes grupos, com autorias de diferentes áreas, apontando para o quanto nos constituem enquanto um mosaico carregado de belezas, ambiguidades, contradições, pode contribuir para a humanização desses temas, mas mais que isto para a percepção de que nos constituímos das diferenças que devem ser valorizadas positivamente na acepção mais ampla da palavra, fazendo com que o antirracismo seja a tônica de nossas ações, dos nossos compromissos com a vida, com as histórias e memórias de George Floyd, João Pedro, Miguel e Beto, de Marielle Franco e de tantas outras…, na relação dialógica da teoria e práticas imbricadas e constituídas de gente em sua diversidade.

Nota

1. Sobre tais argumentos e para acompanhar o programa de observatório do instituto frente à pandemia nos povos indígenas, acesse https: / / covid19.socioambiental.org /

Maria Celma Borges

Mariana Esteves de Oliveira


BORGES, Maria Celma; OLIVEIRA, Mariana Esteves de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.10, n.19, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Makers of Democracy. A Transnational History of the Middle Classes in Colombia | Abel R. Lopez Pedreros

LÓPEZ PEDREROS Ricardo www youtube com
Retrato de Abel Ricardo / www.youtube.com

LÓPEZ PEDREROS Ricardo A Makers of democracyEl libro de Abel Ricardo Lopez Pedreros, egresado de la carrera de Historia de la Universidad Nacional de Colombia, sede Bogota, y ahora profesor de la Western Washington University en Estados Unidos, busca reflexionar criticamente sobre la comun asociacion entre clases medias y democracia, pensando en los sectores medios de Bogota en las decadas de 1970 y 1980. Dicha asociacion es algo que hace tanto el pensamiento de derecha como el de izquierda, ambos exigiendole el deber ser de ponerse al servicio de la democracia, bien sea la liberal o la revolucionaria. Por clase media, Lopez Pedreros entiende no necesariamente un hecho social, mas bien, es el cruce entre condiciones existentes, racionalidades de poder —en terminos de clase y genero—, y la formacion subjetiva, a traves de las practicas y discursos. Desde esta propuesta, el autor construye en dos partes y 8 capitulos su reflexion critica. En la primera parte se centra en los discursos que delimitan y crean —hasta cierto punto— a las clases medias bogotanas de mitad del siglo pasado. En la segunda seccion mira las decisiones de actores concretos para conformar la identidad de esas clases.

Asi, el autor va mostrandonos las particularidades de nuestra democracia y por ende de nuestras capas medias, para verlas distintas, cuando no “bastardas”, de las europeas y norteamericanas. Esas capas, supuestamente, son simbolo de la lucha contra las oligarquias criollas y exigen una lectura de la sociedad no en terminos binarios de dos clases opuestas, pues hay una mas en la mitad. Las clases medias alimentan y son alimentadas por las pequenas y medianas industrias que reciben credito del Estado y de las agencias norteamericanas vinculadas a la Alianza para el Progreso, el famoso programa anticomunista lanzado en la presidencia de John F. Kennedy (1961-1963). Finalmente, en esa primera parte, las capas medias tambien estan vinculadas al sector de servicios o terciario, en el que se dan procesos de seleccion, segun estereotipos comunes de clase y genero. Leia Mais

Cuando la copa se rebosa. Luchas sociales en Colombia, 1975-2015 | Archila Mauricio Neira

En la introduccion de esta obra, Martha Cecilia Garcia da cuenta de la biografia intelectual que hizo y hace posible la existencia de la base de datos del cinep. Inicialmente, situa, con nombres propios, a sus directores e investigadores, a su personal y al equipo de movimientos sociales como lugar academico y moral abierto a la investigacion accion participativa. Los pone en el filo de la navaja de los conflictos sociales, escuchando y acompanando a los protagonistas de las luchas que se estudian. El correlato etico viene a ser un compromiso con los derechos humanos y la busqueda de la paz.

Martha Cecilia enfatiza la labor reflexiva del seminario permanente del equipo, donde analizan teorias y balances para lograr articular herramientas conceptuales y operativas en permanente desarrollo y construir los lenguajes adecuados para sus propositos comunes. En esta biografia intelectual, su autora hace memoria de las lineas de evolucion de la base de datos, condicionada por los afanes de dar cuenta de protagonistas sin reconocimiento necesario —como los movimientos civicos, barriales y urbanos que llamaron la atencion de Javier Giraldo (1987)— y, en simultaneo, de movimientos campesinos, especialmente de la Asociacion Nacional de Usuarios Campesinos (anuc), y la lucha por desalambrar en los anos setenta que dio como resultado la importante investigacion de Leon Zamocs, Los usuarios Campesinos y la lucha por la tierra en los años 70 (1982). Luego se viviria una ampliacion de la cobertura hasta acunar // once actores: asalariados, campesinos, pobladores urbanos, estudiantes, grupos etnicos —indigenas, negros o afrocolombianos y raizales— victimas del conflicto interno, mujeres, poblacion lgbti, trabajadores independientes, gremios —entre los que se destacan comerciantes y transportadores— que, sin constituir movimientos sociales, en ocasiones recurren a la protesta, y reclusos (p. 45). Leia Mais

Travessias: Cantos, recantos e modas da nossa gente / Cadernos de História / 2020

Em 2020, Minas completou 300 anos de uma história dinâmica, resiliente e em constante transformação. Olhar para a produção acadêmica com a temática regional e refletir sobre a riqueza de temas e seus produtos nos faz respirar Minas e se inspirar. É assim, com alegria, que apresentamos o Dossiê Travessias: Cantos, recantos e modas da nossa gente com intuito de divulgar e promover ainda mais a pesquisa que se faz sobre Minas Gerais.

Escolhemos abrir esse Dossiê trazendo a discussão sobre os intelectuais e o poder. O artigo Poder e política nas Minas Gerais, de Ana Tereza Landolfi Toledo, discute as relações de poder em Minas no contexto da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, a partir da análise de D. Manoel de Portugal e Castro, que assumiu o governo da capitania de Minas a partir do ano de 1814. Toledo analisa a atuação política de Portugal e Castro na tentativa de mitigar as tensões das elites locais com a Coroa Portuguesa. Com um texto instigante, somos levados a conhecer esse importante ator político e administrador e suas ideias ilustradas, e como essas ideias impactam na construção de uma relação de poder na capitania que acabou impulsionando a abertura de fábricas, a exploração da extração de ferro e a abertura de novos caminhos e estradas para escoar a produção mineira.

Continuando o debate dos intelectuais na capitania, Márcio Pereira vai apresentar o naturalista Joaquim Veloso de Miranda, que, entre 1780 e 1805, também a serviço do Estado português, pesquisou a botânica, a mineralogia e os metais da capitania de Minas Gerais, buscando a identificação de potencialidades de exploração e atendimento das demandas da Coroa portuguesa. Miranda e seus auxiliares, além do conhecimento inestimável sobre a flora, promoveram as ciências na capitania a ponto de influenciarem na decisão régia de implantação de um horto botânico em Vila. Ao longo do artigo conhecemos o trabalho de Veloso de Miranda e seus auxiliares, destacando as ideias, mas também o ofício do naturalista numa contribuição importante ao lançar luz sobre o trabalho e seus saberes no final do século XVIII.

Em Sob o sol das estradas, Mariana Brescia Cruz, Fernanda Mendes Santos e Silvia Maria Amâncio Rachi Vartuli, nos levam para uma temática que é relativamente popular ao se remeter à tradição mineira, mas que paradoxalmente ainda é pouco trabalhada nas produções acadêmicas: O tropeirismo. O interesse metropolitano pela capitania estava nas riquezas, como o ouro, e também no seu potencial econômico, que exigia o escoamento da produção para os portos litorâneos. Os tropeiros eram agentes necessários para a configuração de uma rede de transportes que envolvia a mineração, principal produto até o século XVIII, e também eram responsáveis pela circulação de mercadorias tão necessárias à manutenção da capitania, como a manutenção da Corte no Rio de Janeiro. As autoras desvelam, a partir dos registros, esse ofício, seu desenvolvimento, seus desafios, as relações que se estabeleceram nessas idas e vindas dos tropeiros e sua permanência ao longo de gerações.

Avançando e caminhando pela História do imaginário, Rudney Avelino Castro Silva discute o segredo como persistência frente às perseguições inquisitoriais de judeus em Imaginário religioso e persistência: estudo dos ritos mortuários judeus à luz da Inquisição portuguesa nas minas setecentistas. O autor retoma a documentação de réus do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa e analisa os ritos mortuários identificados para discutir o papel do segredo como instrumento de perpetuação de uma tradição religiosa e identitária, que conscientes ou não, guardaram sentidos e rituais judaicos entre os moradores de Sabará-MG. Tanto o segredo como sua expressão opositora, a traição, na perspectiva simmeliana, vão sustentar as análises do Tribunal da Inquisição na promoção de silenciamentos essenciais para a própria sobrevivência dos judeus nas Minas setecentistas.

Abrindo espaço para discutir um pouco os arranjos familiares, a infância e as mulheres, apresenta-se o texto Aspectos da história da infância nas Minas Gerais (Séculos XVIII-XIX). Nesse artigo, Denise Aparecida Sousa Duarte e Weslley Fernandes Rodrigues, com base em fontes documentais diversas (registros de óbitos de inocentes, devassas, relatos de viajantes, testamentos), desvelam a criança na capitania como um ator social. A criança foi geralmente analisada na perspectiva dos adultos, sem muito foco e sem definição clara na sociedade. No Brasil isso se refletiu em descaso e em silenciamentos. O desafio apontado pelos autores é interpretar as pouquíssimas referências da criança na documentação, e destaco nesse caminho a importante contribuição no apontamento das relações afetivas que são ressaltadas nessas interpretações, com a análise dos testamentos dos filhos bastardos e órfãos e os ex-votos (pintados em tabuletas como cumprimento de uma promessa já realizada) que se fizeram presentes nas Minas entre os séculos XVIII e XIX.

Dando sequência às relações familiares e de afeto nas Minas, o artigo O concubinato na América portuguesa: resistência feminina, afetividades, famílias e mestiçagens na comarca de Sabará no século XVIII, de Igor Bruno Cavalcante dos Santos, analisa o concubinato na comarca de Sabará no século XVIII. O trabalho mergulha nas análises sobre a mestiçagem com destaque às mulheres (tanto as negras como as mestiças), por vezes pouco visíveis na historiografia. O autor vai apontar as ambivalências do sistema colonial na revelação das relações afetivas mistas (legítimas ou ilegítimas sob a ótica religiosa), que envolveram escravas concubinas e os filhos frutos desses relacionamentos presentes e identificados na documentação. Dá voz para a complexidade das relações no Brasil colonial e indica vislumbres de um Brasil silenciado que carrega uma diversidade de estratégias e arranjos familiares, envolvendo afetos e disputas na sucessão e abre uma janela importante para novas pesquisas sobre gênero e família no Brasil.

Com foco na questão do gênero no século XIX, Séfora Semíramis Sutil se debruça sobre os modelos de feminilidade e seus paradoxos entre as classes menos abastadas a partir da análise da documentação em Das virtudes ou infortúnios femininos: os ideais de conduta no Brasil oitocentista. O modelo de mulher construído no Brasil do XIX deveria ser honrada, virtuosa, submissa, assim, os manuais de civilidade que circularam no Brasil, os periódicos e também os modelos femininos construídos nas obras literárias carregavam essa representação e educavam as mulheres determinando condutas social, religiosa, sexual e familiar que eram adequadas à feminilidade. Entretanto, a autora vai nos apresentar à Luiza Maria da Conceição, moradora da vila da Formiga em Minas Gerais, acusada do assassinato de seu esposo, indicando as distâncias possíveis entre a conduta ideal e desejável para as mulheres e as práticas cotidianas que variavam de acordo com o lugar social.

Chegando aos dias atuais, o trabalho Mulher comparsa: o testemunho midiático como delito de gênero, de Leticia Silva Azevedo e Lúcia Lamounier Sena, analisa os recursos discursivos nas páginas policiais a partir dos Cadernos Cidades dos jornais OTEMPO e o Super Notícia, no período entre 2006 / 2016. Ao analisar as notícias sobre mulheres que atuam no tráfico de drogas, as autoras identificaram que há silenciamento do relatado que é operado pelo mediador (o jornal, o jornalista) e da construção do papel e da História dessa mulher, associada como comparsa do crime. Apreende-se uma importante construção midiática sobre gênero e seus desdobramentos que não só vale a leitura, como nos leva a refletir sobre as permanências das representações da mulher na sociedade e de sua moral colocada sempre em julgamento por meio do discurso, que varia, no caso de crime de tráfico, no tratamento de homens e de mulheres. Prevalece, como afirmam as autoras, um sujeito “gendrado” carregado de simbologias sobre o feminino e suas categorias (maternidade, espaço doméstico, amor / paixão, cumplicidade feminina e vitimização).

A SOLIDÃO DOS MINEIROS: mineiridade, patrimônio cultural e os processos de hierarquização de pessoas e lugares em Minas Gerais ao longo do século XX vai nos levar para as questões acerca da memória e o conjunto de representações identitárias e patrimoniais sobre Minas Gerais. Dialogando com sua experiência de pesquisa Patrimonial, Carolina Paulino Alcantara destaca os olhares distintos e os silenciamentos promovidos a partir de critérios de seleção e exclusão de grupos e elementos culturais. O título remete à solidão, evocando as ausências e invisibilidades de pessoas e grupos em diferentes momentos da História de nosso estado. Registros dos costumes, das tradições e outros princípios norteadores das representações de Minas tenderam a privilegiar a região centro sul e, nessa toada, a autora discute e desvela as disputas pela memória na formação da identidade mineira a partir dos projetos, ações e concepções dos dirigentes e gestores públicos do estado mineiro.

A extensão territorial e a diversidade do Estado mineiro vai nos levar ao O poder e suas representações no interior das comunidades agregas do Vale do Mucuri, Minas Gerais (1850-1950), num trabalho interessante, Marcio Achtschin Santos, nos revela a relação do trabalho na atividade agro pastoril, na região do Vale do Mucuri a partir da agregação, que corresponde à forma de ocupação da terra por meio de cessão a homens livres. Implantada desde o período colonial, a agregação vai aumentando no nordeste mineiro com o enfraquecimento da escravidão ao longo do século XIX. A proposta do autor é, a partir das entrevistas, identificar a relação territorial e de poder que se estabelece. O autor pergunta de que modo é construído o imaginário para o reconhecimento e permanência das relações de poder e, dando ênfase à cultura e aos ritos da tradição das comunidades agregas, vai identificando os sentidos e estratégias na relação marginal com os grupos dominantes. Na escuta dos entrevistados, vai dando foco às estratégias comunitárias, às especificidades regionais e às transformações ao longo do tempo.

Por fim, mas nunca menos importante, Rogéria Alves e Karla Cerqueira vão apresentar e discutir a organização e as ações implementadas entre 2015 e 2018 na Educação Escolar Quilombola pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. A Educação Escolar Quilombola em Minas Gerais: Identidade e Resistência trata da importante compreensão da Resolução Nº4 / 2010 das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para Educação Básica e seu artigo 41, que institui a Educação Escolar Quilombola como uma modalidade especial e determina sua existência em áreas quilombolas com pedagogia própria que respeite a cultura dos seus moradores. As autoras discutem os avanços dessa discussão no país em direção à uma proposta de educação inclusiva e plural (de todos, indo além da própria visão de que quilombola são herdeiros dos negros escravizados) e fornecem um panorama da aplicação da Educação Escolar Quilombola nas políticas públicas de educação e particularmente nas ações implementadas pela SEEMG, apontando seus avanços e seus desafios.

Excelente leitura!

Júlia Calvo – Editora da Revista Cadernos de História.

CALVO, Júlia. Apresentação. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.21, n.34, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Battista Venturello. Las huellas de un largo peregrinaje por territorios indígenas | Augusto Javier Gómez López

Este libro revela una cautivadora coleccion fotografica que se encontraba hasta hace poco resguardada en un pesado y viejo baul de la familia Venturello.

El libro, coeditado por la Universidad Nacional de Colombia y la Universidad de los Andes, hace parte de la coleccion especial Sublimis, la cual, tal y como su nombre lo indica, tiene como objetivo la publicacion de obras eminentemente extraordinarias. Al abrir y pasar sus paginas, el lector atraviesa una galeria etnografica y al internarse en la lectura de los textos, poco a poco encuentra y comprende el trasfondo historico en el que Battista Venturello obtuvo estos registros. Venturello nacio en el canton de Piamonte italiano en 1900 y a sus 22 anos salio de Turin en busqueda de las selvas africanas, pero un cambio de rumbo lo llevo a America. Alli, recorrio varias regiones colombianas durante la primera mitad del siglo xx y, finalmente, se radico en la ciudad de Cali. En la decada de 1960 fue el fundador, de la mano de sus hijos, de la primera industria de antenas de television en el pais. Leia Mais

La justicia criminal ordinaria en tiempos de transición. La construcción de unnuevo orden judicial (Ciudad de México, 1824-1871) – FORES (ACHSC)

FORES, Graciela. La justicia criminal ordinaria en tiempos de transición. La construcción de unnuevo orden judicial (Ciudad de México, 1824-1871). México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2019. 413 p. Resenha de MUÑOZ C. Andrés David. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura [Bogotá], v. 47 n. 2, jul. – dic. 2020.

La base de los problemas historiograficos que constituyen el nodulo del presente libro es la tesis doctoral de Graciela Flores Flores, defendida en la Universidad Nacional Autonoma de Mexico bajo la direccion de Elisa Speckman.

A la historiografia de las instituciones judiciales en la Hispanoamerica republicana —mas alla de ciertas contribuciones importantes enmarcadas en la apertura disciplinar de las ultimas decadas—, le urgen estudios de esta indole que permitan analizar las continuidades y rupturas en ese complejo transito entre un orden jurisdiccional y uno propio del Estado de Derecho, tal como actualmente es concebido. La obra que nos ocupa es rica en matices y detalles, asi que procurare esbozar las lineas argumentativas mas sobresalientes a mi modo ver.

La complejidad del abigarrado orden juridico novohispano, caracterizado por su pluralismo y por la preminencia del arbitrio judicial, nos dice la autora, necesariamente habria de convivir durante un par de decadas con las fragiles intentonas de instaurar una justicia entendida por Jaime del Arenal Fenochio como “absolutismo legalista” o “absolutismo juridico”. Ello es clara muestra de que la “continuidad juridica”, en palabras de Carlos Garriga, era un hecho connatural al diseno del Estado surgido de la independencia, cuyo sistema judicial habria de exhibir algunas remoras propias de la tradicion hispanica que la Republica no podia barrer de un plumazo.

El libro esta dividido en tres partes, acordes con la periodizacion de la autora, quien se ha cenido a ciertos hitos propios de la historia juridica y judicial mexicana y no estrictamente a acontecimientos de orden puramente politico.

Esto es asi porque la Constitucion de 1824, fundadora del Estado mexicano y de sus instituciones, se nos muestra no solo como un hito politico sino sobre todo juridico; mas aun el decreto de 1841, que pretendia la fundamentacion de las sentencias judiciales (y con ello un quiebre definitivo con la vieja justicia arbitrista); el articulo 14 de la Constitucion de 1857, que buscaba la exacta aplicacion de la ley; y por ultimo, la promulgacion del primer Codigo Penal para el Distrito Federal en 1871, culmen de lo que Flores denomina “el triunfo codificador”. Esta denominacion que da la autora al periodo iniciado en la segunda mitad del siglo xix no debe ser interpretada necesariamente como el triunfo de la civilizacion y el imperio absoluto de la ley, pero al menos si como la definitiva preponderancia del nuevo orden juridico legalista sobre el viejo, el cual tardaria algunos anos mas en extinguirse de manera definitiva.

Con aparente dejo de ironia, Graciela Flores dice que el estudio de la practica judicial tal vez no sea la parte mas entretenida de su trabajo, pero a mi modo de ver, el confrontar la norma con las realidades efectivas de la administracion de justicia y de sus actores es lo que marca una diferencia, muchas veces notable, con la historiografia de viejo cuno, cuyo interes central era mas el Derecho que la Historia, tal como en su momento afirmaron Maria del Refugio Gonzalez y otros investigadores que abrieron el campo disciplinar en el que se inscribe este libro. Lo que constituye el nervio de modernas investigaciones como esta es la apelacion a fuentes primarias que revelan los entramados de la actuacion de agentes sociales como los fiscales, jueces, defensores y acusados.

Superar las limitaciones de las fuentes puramente normativas, como los cuerpos de leyes y la obra de los juristas, ambas muy validas, implica entonces explorar fondos documentales que han sido muy poco trabajados, y que incluso se hallan sin catalogar o sin ser descritos sus contenidos. Es el caso del Fondo del Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal – siglo xix, ampliamente trabajado por la autora para examinar las sentencias proferidas en las distintas salas de la Corte contra los condenados por robos, rinas y/o heridas, portacion de arma, homicidios y otros delitos. De este modo logra, mas alla de ver el funcionamiento de las instituciones judiciales —objetivo prioritario de la investigacion—, dar presencia y nombre a individuos secularmente marginados por la historia politica y economica mas tradicional.

El analisis de la praxis penal, por otra parte, se ve enriquecido por la evaluacion de las asi llamadas sentencias de tipo ascendente y descendente, pues Flores nos muestra que las condenas en segunda instancia podian variar de acuerdo a las reconsideraciones de los jueces, surgidas tras los pedimentos de los fiscales, funcionarios que en la vida republicana fueron cobrando un protagonismo creciente en el entramado judicial mexicano.

La narracion de Graciela Flores va llevando al lector de la mano para mostrarle el ritmo del cambio juridico en las primeras decadas republicanas, no exento de multiples dificultades para la implementacion de la correcta administracion de justicia basada en leyes claras y precisas. Ello fue asi pese a que, como afirma la autora, su objeto de estudio, la Ciudad de Mexico, era un lugar privilegiado para poner en marcha un nuevo sistema judicial que reemplazara el propio del Antiguo Regimen. Si cotejamos el caso de la ciudad capital con el de otras capitales estatales, en el Distrito Federal se pudo solventar con mayor suficiencia la carencia de jueces letrados, aunque hubo algunos importantes proyectos que tuvieron que esperar hasta la Primera Republica Centralista para verse concretados, tal es el caso de la instauracion y puesta en funcionamiento del Tribunal Superior. Y aunque Ciudad de Mexico tambien fue privilegiada en tanto matriz de la legislacion republicana local y federal, asi como de una nueva jurisprudencia, tambien es cierto que la relegacion de las leyes novohispanas fue bastante lenta y pausada: una mirada sobre las causas judiciales asi lo pone en evidencia. Ni que decir de la tardia implementacion del Codigo Penal del Distrito Federal, muy posterior al de estados como Oaxaca, Jalisco y Zacatecas o al de republicas centralistas como Colombia, conformado en 1837.

Mas alla de tales avatares, en el libro se ponen de relieve avances como los de los centralistas en materia judicial, al haber comenzado a exigir la fundamentacion de las sentencias, lo que segun la autora fue el primer golpe de gracia dado a una justicia apoyada en el buen criterio del juez, a quien se le empezo a exigir una praxis juridica garantista, solo basada en las leyes vigentes. La autora recoge otras disposiciones que sirvieron como preambulo a la epoca codificadora, como la Ley Juarez de 1855, que buscaba la exacta aplicacion de la ley, o la del 5 de enero de 1857, que consagro a la prision como una pena mas. Por otra parte, aunque la instauracion del Segundo Imperio Mexicano, presidido por Maximiliano de Habsburgo, fue un fenomeno claramente disruptivo en terminos politicos, en materia judicial y legislativa dio continuidad tanto a la administracion de justicia cimentada durante los anos previos, asi como al uso de su legislacion.

Resulta interesante observar como regimenes politicos de corte “conservador”, y asumidos regularmente como retrogrados, en materia de justicia criminal fueron tanto o mas vanguardistas que los federales, homologados de forma erronea como liberales strictu sensu Para terminar, quiero resaltar un aporte sugerente para quienes estudian esta epoca transicional. Y es que durante la epoca virreinal y buena parte del siglo xix, no solo existio un pluralismo normativo, sino tambien un pluralismo punitivo, donde los trabajos penados en sus multiples modalidades —como el trabajo en obras publicas, el presidio en cualquiera de sus variantes o los servicios de carcel— eran los mas frecuentemente recetados a los condenados por una muy amplia gama de delitos. Graciela Flores afirma con agudeza que el paso del pluralismo al monismo no se dio solo en el terreno de las leyes, sino tambien en el de las penas, puesto que la prision paso a ocupar el lugar privilegiado dentro de estas ultimas. Tal fenomeno estuvo ligado a la puesta en practica de una justicia garantista que, si bien no resulta sencillo calificarla como plenamente moderna, al menos constituyo el puntal de un nuevo orden en materia judicial.

Andrés David Muñoz C. – Universidad Autónoma Metropolitana – Unidad Iztapalapa. E-mail: [email protected].

La circulación de las ideas. Bibliotecas particulares en una época revolucionaria. Nueva España, 1750-1819 – ÁLVAREZ (ACHSC)

ÁLVAREZ, Cristina Gómez. La circulación de las ideas. Bibliotecas particulares en una época revolucionaria. Nueva España, 1750-1819. Madrid: Trama Editorial / Universidad Nacional Autónoma de México, 2019. 192 p. Resenha de ARDILA, Javier Ricardo. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura [Bogotá], v. 47 n. 2, jul. – dic. 2020.

La importancia del libro —como fermento en las mentalidades que produjeron grandes revoluciones— ha sido sostenida por historiadores de la talla de Lucien Febvre, Henri Jean Martin, Roger Chartier, Michel de Certeau, Robert Darnton, Peter Burke, entre otros. Una larga lista de nombres que se ha convertido en un lugar comun entre los estudiosos contemporaneos del tema. En el ambito latinoamericano, hoy en dia los trabajos clasicos de Teodoro Hampe y Bernardo Subercaseaux entran en dialogo con las investigaciones de Javier Planas, Idalia Garcia o Alfonso Rubio. Sin embargo, son pocos los estudios sistematicos que, por medio de las herramientas de la historia cuantitativa y serial, pueden dar cuenta de tendencias generales en periodos de mediana duracion y del impacto real de los libros como una fuerza de consideracion en la historia.

Entre estos ultimos se puede situar el que ha sido adelantado por la profesora Cristina Gomez Alvarez, de la Universidad Nacional Autonoma de Mexico.

En La circulación de las ideas, la profesora Gomez Alvarez demuestra que el aumento de la circulacion de libros fue sintoma y factor del crecimiento y consolidacion de una comunidad lectora en el area del virreinato de la Nueva Espana durante las decadas inmediatamente anteriores a la revolucion de independencia (1750-1819). En simultaneo a este proceso de arraigo letrado, el libro seglar gano preminencia sobre el libro religioso. Para corroborar su aserto, divide el libro en dos grandes partes, ademas de los respectivos apartados introductorios y conclusivos.

En la primera parte, titulada “Bibliotecas golondrinas, Cadiz – Veracruz, 1750-1778”, se remite a los registros de navios y equipajes que partieron del puerto de Cadiz con rumbo a Veracruz —conservados en el Archivo General de Indias, Sevilla— para rastrear el libro y las bibliotecas personales en las relaciones de equipaje declaradas por los provistos nombrados para el gobierno novohispano.

A partir de esta fuente, la autora categoriza las bibliotecas de los funcionarios entre eclesiasticos, civiles y militares. Cada una de estas bibliotecas se analiza en funcion de la distribucion geografica en el area virreinal, el tamano de las colecciones y la composicion de las lecturas a partir de la division tematica. El estudio permite concluir que la circulacion de obras modernas de reciente impresion en Europa, especialmente de factura espanola, fue comun entre los representantes del gobierno de Carlos III. Este poder bibliografico les permitio trabajar en favor de la administracion colonial y fortalecer el poder absoluto de la monarquia en los territorios de ultramar.

En la segunda parte, titulada “Bibliotecas en la Audiencia de Mexico, 1750- 1819”, la autora centra su atencion en los inventarios por fallecimiento —conservados en el Archivo General de la Nacion de Mexico—. Por medio de esta fuente caracteriza la distribucion geografica, el tamano de las colecciones y la composicion tematica de las bibliotecas personales. En virtud de la variedad y riqueza de los inventarios por fallecimiento, Gomez Alvarez decide clasificar las bibliotecas en relacion con la extraccion socio-profesional de los propietarios, los cuales divide entre eclesiasticos, comerciantes, funcionarios, profesionistas, dependientes, militares, artesanos y labradores. Vale la pena senalar el lugar diferenciado que da a las bibliotecas femeninas: su estudio permite afirmar que las mujeres fueron miembros activos en la comunidad de lectores. Lo anterior aplica tanto para mujeres que procedian de la elite comerciante, como antiguas esclavizadas, confirmando el profundo arraigo del libro en la sociedad mexicana durante el periodo de estudio. Asi mismo, la busqueda atenta a la presencia del libro frances demuestra que su extension y recurrencia pueden considerarse sintomaticas de un alto grado de familiaridad de la comunidad de lectores novohispanos con las ideas ilustradas. Finalmente, por medio de informacion obtenida de remates de libros en los registros de almoneda publica, la autora demuestra que la circulacion de los libros favorecio la conquista de nuevos lectores a partir de libros viejos.

La configuracion formal de los capitulos merece una alusion especial. Cada uno de ellos inicia con la presentacion pormenorizada de las fuentes: al hacer explicito su corpus documental, la autora expone tanto la pertinencia como los limites de su seleccion para responder las preguntas planteadas. En este sentido, cada capitulo devela un entramado metodologico complejo, en el que la fuente primaria adquiere protagonismo por encima de la interpretacion derivada de la lectura historiografica, sin carecer de ella. Una vez realizada la critica profunda de las fuentes, la profesora Gomez Alvarez articula la argumentacion inductiva desde el nivel macroanalitico —donde presenta el contexto historico en relacion con el problema, menciona los puntos fundamentales de la administracion virreinal y expone las tendencias generales derivadas del analisis de las series— hasta lo microanalitico —donde expone casos particulares, a escala biografica, que permiten ver matices cualitativos en relacion con las tendencias generales de orden cuantitativo—. Entre ambos polos se halla un punto intermedio donde analiza casos excepcionales que, por su anormalidad, pueden considerarse rarezas en medio de tendencias generales.

Vale la pena mencionar que el volumen de La circulación de las ideas esta acompanado de un cd-rom que pone a disposicion del lector algunas de las fuentes primarias utilizadas por la investigadora. En esta ocasion, la profesora Gomez Alvarez presenta 68 catalogos de bibliotecas —tomados de archivos mexicanos y espanoles— transcritos, reconstruidos y modernizados. Junto a estos se encuentran diez registros transcritos de venta de libros en almoneda publica, datados entre 1750 y 1819. En la ultima parte del libro aparecen nueve apendices documentales que presentan informacion construida a partir de la reorganizacion de las fuentes utilizadas.

Aunado a su valor intrinseco, La circulación de las ideas concluye una trilogia iniciada por la autora diez anos atras y que comprende los titulos Censura y Revolución. Libros prohibidos por la Inquisición de México. 1790-1819, (2009); y Navegar con libros. El comercio de libros entre España y la Nueva España, 1750- 1820, (2011). Esta serie, editada y publicada por la editorial matritense Trama, cuestiona el lugar del libro como mercancia y artefacto cultural —siguiendo el elocuente llamado hecho por Febvre y Martin en 1958, en el clasico L’Apparition du livre (Paris: Gallimard, 1958)— durante la segunda mitad del siglo xviii y las primeras decadas del siglo xix. Navegar con libros mostro la tendencia a la secularizacion de las lecturas por medio del analisis de la circulacion de titulos en el comercio transatlantico, durante el periodo colonial tardio. Censura y revolución presento el entramado legal de la adquisicion y posesion de los libros que desembarcaron en los puertos novohispanos, enfrentando la diseminacion y proliferacion de las lecturas condenadas. Frente a estos antecedentes, La circulación de las ideas se sumerge en la comunidad de lectores a traves de las bibliotecas personales.

Al extender una mirada a mediano plazo sobre la obra de la profesora Gomez Alvarez, La circulación de las ideas se inscribe en un periodo de reflexion intelectual sobre el libro que supera las dos ultimas decadas. Se puede marcar el inicio de este derrotero investigativo a finales del siglo pasado, cuando en 1997 la autora publico el estudio pionero de las bibliotecas de Antonio Bergosa y Jordan (1748-1819) y de Manuel Ignacio Gonzales del Campillo (1740-1813), prominentes obispos novohispanos. Con mas de veinte anos de trayectoria, La circulación de las ideas es una obra que adquiere la importancia de una obra intelectual madura.

Es evidente que La circulación de las ideas se circunscribe al lugar del libro y de las bibliotecas personales en el escenario mexicano durante la colonia tardia. Sin embargo, tanto por su acercamiento metodologico, como por la construccion y analisis de series cualitativas que revelan tendencias a escala atlantica, el estudio de la profesora Gomez Alvarez es una obra referencial. Las consideraciones para el caso novohispano deben incitar a investigadores en otras latitudes a acometer empresas similares; a fundamentar los analisis cualitativos de la circulacion y apropiacion del libro en evidencia empirica de orden cuantitativo. Por este motivo, La circulación de las ideas es una obra que sobrepasa los limites de la Nueva Espana en las ultimas decadas de la dominacion colonial y debe tener eco entre los interesados por la historia del libro, las bibliotecas y la lectura en America Latina.

Javier Ricardo Ardila – Universidad Nacional de Colombia. E-mail: [email protected].

Erased. The Untold Story of the Panama Canal – LASSO (ACHSC)

LASSO, Marixa. Erased. The Untold Story of the Panama Canal. Cambridge-Londres: Harvard University Press, 2019. 344 p. Resenha de: MAURI, Mônica Martinez. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura [Bogotá], v. 47 N. 2, jul. – dic. 2020.

Erased, la ultima obra de Marixa Lasso —historiadora panamena y profesora en la Universidad Nacional de Colombia—, nos invita a repensar la historia del canal de Panama. Con un relato minuciosamente construido a partir de fuentes documentales y orales, este volumen nos permite entender como los antiguos y prosperos pueblos que existieron en la zona central de Panama antes de la construccion del canal fueron borrados del mapa, tanto material como simbolicamente.

El principal argumento es que, al borrar de la memoria nacional una de las zonas urbanas mas potentes de la economia istmena del siglo xix, no solo se aseguro el domino estadounidense sobre el canal, sino que se busco olvidar la modernidad que habian construido republicas latinoamericanas como Panama en el siglo xix. Una modernidad que, en las jovenes republicas latinoamericanas, se concreto en una apuesta por la innovacion tecnologica y las formas de gobierno inspiradas por la revolucion francesa y la Constitucion norteamericana. Esta vision de la politica permitio dar poder local a sectores marginados en otras naciones del norte, como los indigenas o los afrodescendientes.

entre 1913 y 1916— de pueblos que concentraron una poblacion de 62.810 personas (el 14 % del total del pais). A diferencia de lo que muchas personas todavia creen, se trato de un desplazamiento que tuvo motivos politicos y no razones tecnicas. Los pueblos no desaparecieron bajo las aguas del canal o del lago Gatun, sino que fueron desmantelados para no dejar poblacion panamena dentro del espacio limitrofe al canal. Con ello, los norteamericanos ampliaron su area de influencia en el istmo y convirtieron una zona urbana en selvatica.

Lasso nos ofrece una nueva perspectiva sobre un hecho historico: la construccion del canal de Panama —estudiado de forma bastante exhaustiva por los historiadores—.

Y es que hasta el momento se habia prestado poca atencion a los primeros tres anos de construccion del canal norteamericano, un momento crucial para entender como los pueblos de la zona pasan de una jurisdiccion panamena a una norteamericana. Fue en este proceso cuando la poblacion panamena de la zona fue conceptualizada como native y la zona fue percibida como un lugar salvaje y tropical.

El primer capitulo muestra el proceso mediante el cual los Estados Unidos, tras la firma del tratado Hay-Bunau-Varilla (1903), fue ampliando su control sobre las zonas adyacentes al canal. Este tratado especificaba que Panama habia cedido a perpetuidad una zona de cinco millas a cada lado del canal, con la excepcion de las ciudades y puertos de Panama y Colon. Sin embargo, los Estados Unidos, utilizando el pensamiento higienista, se apropiaron de los puertos y las tierras aledanas al canal. En pocos anos, el servicio postal, las aduanas y la sanidad —controlados por la administracion estadounidense— convirtieron el puerto de Ancon y Panama en un solo puerto. Panama solo conservo el control sobre un pequeno embarcadero al que arrimaban pescadores y pequenos comerciantes.

En el segundo capitulo, a partir de los relatos de viajeros, se presenta una detallada descripcion de la vida en Chagres, Gorgona, Emperador y Cruces antes de 1904. Segun los testimonios, la zona contaba con muchos pueblos en los que la poblacion afrodescendiente era muy significativa. Era un lugar bien comunicado por tren, bien adaptado al trafico global, que se servia de las tecnologias modernas para hacer posible el transito de personas y mercaderias a traves del istmo.

Tambien era una zona dinamica en el plano industrial y agricola. Pero a pesar de todo esto, fueron pueblos concebidos como un obstaculo al progreso que los Estados Unidos queria traer al istmo.

El tercer capitulo aborda las consecuencias, para los antiguos pueblos de la zona, del nuevo regimen instaurado por los norteamericanos entre 1904 y 1912. El analisis de Lasso contempla tres etapas: de 1904 a 1907 las autoridades de la zona conservaron las estructuras municipales en uso; los pueblos pasaron a tener dos alcaldes, uno panameno y otro americano, al mismo tiempo que se empezaron a aplicar politicas de segregacion racial que dividieron los pueblos en nativos y americanos. De 1907 a 1912 la Isthman Canal Comission (icc) elimino los municipios de la zona y los convirtio en distritos administrativos, pero la mayoria continuo en el mismo lugar. Entre 1912 y 1915 la icc despoblo la zona, sustituyendo los antiguos pueblos por una geografia urbana.

El siguiente capitulo se centra en analizar el momento en el que se creo el debate sobre que hacer con los pueblos panamenos de la zona: .conservarlos en la zona, pero siendo gobernados y civilizados por los norteamericanos o desmantelarlos y enviar sus pobladores a otros lugares? Este dilema se resolvio en 1912, cuando las autoridades de la zona determinaron que la selva era la mejor proteccion militar para el canal y dictaron la orden de despoblamiento.

El quinto capitulo arranca con la creacion del lago Gatun, el lago artificial mas grande del mundo, y los primeros movimientos forzados de poblacion. Gorgona, en julio de 1913 fue el primer pueblo que conocio el confuso y caotico proceso de relocalizacion hacia Nueva Gorgona y Ciudad de Panama. Lasso analiza los multiples sistemas de tenencia de tierras que existian en la zona y las dificultades de la Joint Land Comission, un organismo panameno-americano, para crear politicas de compensacion que respondieran a las necesidades de los desplazados. Muchos de los habitantes, al no ser propietarios y al no contar con un contrato de alquiler anterior a 1907, no recibieron ninguna compensacion, solo tuvieron derecho a transporte gratuito para llevar los materiales que conformaban sus viviendas a otro lugar. Con todo, el despoblamiento de la zona creo un gran desconcierto entre sus antiguos pobladores y provoco un cambio de percepcion hacia los americanos.

Hasta entonces, los panamenos de la zona creian que, aunque el canal pertenecia a los americanos, la zona era una tierra en la que podian continuar viviendo. Con el traslado entendieron que la gente que habia dado vida a los pueblos del territorio durante siglos ya no tenia derechos sobre este.

“Pueblos perdidos” es el titulo del siguiente capitulo. En el se continua explicando el despoblamiento a partir del ejemplo de Nuevo Gatun —un pueblo de 8.000 personas que desaparecio entre 1914 y 1916—. Las ultimas paginas estan dedicadas al abandono que creo mas conmocion en la opinion publica panamena: el del Chagres. Este pueblo, situado al lado del fuerte San Lorenzo, fue un enclave historico del atlantico panameno comparable a Portobelo. Estos y otros despoblamientos fueron posibles gracias a un decreto, aprobado en 1912, y un acuerdo entre Estados Unidos y Panama de 1914 que ampliaba las fronteras de la zona bajo jurisdiccion norteamericana, otorgandole control sobre las tierras de los margenes del lago Gatun hasta una altura de 100 pies sobre el nivel del mar.

Tras la publicacion, en 1962, de la novela Pueblos perdidos de Gil Blas Tejeira, se instalo en el imaginario nacional panameno la idea de que los antiguos pueblos de la zona habian desaparecido bajo las aguas del lago Gatun. Una de las principales aportaciones de Lasso es poner fin a esta ilusion. Como muestra en el capitulo siete, los centros urbanos mas grandes (Emperador y Nuevo Gatun) no fueron inundados, sino despoblados, e incluso Gorgona, la supuesta ciudad que yace bajo el lago, solo fue parcialmente inundada. Este mito de la inundacion sirvio para naturalizar la desaparicion de los pueblos, pero tambien para justificar el cambio de trazado de la linea del ferrocarril hacia el Este del canal, donde fueron construidos los centros urbanos americanos. Este ultimo cambio tambien estuvo muy relacionado con el despoblamiento de los pueblos panamenos, con la necesidad de convertir una zona urbana en una zona selvatica, transformando el centro en periferia. Con todo, los americanos construyeron una nueva zona del canal con pequenos pueblos racialmente segregados, en la que no existia la propiedad privada, la agricultura ni el vicio (alcohol, juego y cabares).

En el epilogo, Lasso nos explica su recorrido por los actuales Nuevo Chagres y Nuevo Emperador, los pueblos fundados tras la despoblacion que absorbieron parte de los desplazados. A partir de los relatos de los mas ancianos, muestra como, a pesar de las politicas de olvido, los descendientes de los antiguos pueblos de la zona recuerdan su lugar de origen, se sienten parte de la historia del canal y todavia hoy sufren las consecuencias de haber sido expulsados hacia la periferia.

En el plano disciplinar, la obra de Lasso podria ser reivindicada desde la antropologia historica. Las razones son varias. La primera, porque aborda la construccion politica de la memoria y lo hace partiendo de la documentacion historica, la version etic; pero tambien teniendo en cuenta las narrativas de los descendientes de aquellos que fueron desplazados, la version emic. La segunda, porque cuestiona la naturalizacion de las explicaciones que sirvieron para despoblar de panamenos y poblar con norteamericanos la zona del canal, deconstruyendo los argumentos que utilizaron las autoridades de la epoca. Y lo hace teniendo en cuenta que las categorias —tropical, salvaje, nativo— son fruto de voluntades diferenciadoras, no de diferencias objetivas que buscan imponer un orden concreto. La tercera, porque centra su analisis en aquellos que fueron excluidos de la historia. Tal como hizo Nathan Wachtel en los Andes,1 Lasso narra el devenir de los vencidos, de aquellos que no importaron a nadie, que fueron borrados. Y por ultimo, porque incorpora una perspectiva personal que podriamos situar proxima a la autoetnografia.

Antes de la publicacion de Erased, en Panama otros trabajos ya habian mostrado las consecuencias sociopoliticas de la construccion de nuevas geografias.

La antropologa Julia Velasquez2 mostro hasta que punto a lo largo del siglo xx imaginar el Darien como un lugar salvaje fomento la especulacion sobre la tierra, a partir de iniciativas forestales, turisticas, agroindustriales y provoco el auge del narcotrafico. En este contexto, pensar el Darien como un lugar peligroso legitimo su domesticacion por parte de agentes forasteros y justifico el uso de la violencia en el proceso.

Tambien en Panama se habian escrito algunas lineas para denunciar los efectos del articulo II del tratado Hay-Bunau Varilla, en relacion con la desembocadura y areas aledanas al rio Chagres. Bonifacio Pereira (1964), miembro de la Academia Panamena de la Historia, relato el proceso de despoblacion del Chagres con bastante detalle. Explico como sus habitantes fueron despojados de sus tierras y casas sin recibir ningun tipo de indemnizacion. Incluso afirmo que se trato de un expolio que se hizo con la complicidad de las clases dominantes panamenas. Como el mismo manifesto: fueron hechos que permanecieron ocultos “tal vez para que sigamos siendo mansos, dociles, entreguistas”.3 Erased se suma a los trabajos de Velasquez y Pereira, convirtiendose en un libro que es y sera fundamental para entender la historia del istmo de Panama.

Lo es porque esta escrito por una mujer panamena desde Harvard —un centro intelectual del norte—, por lo que no pasara desapercibido. Tambien lo sera porque nos permite entender que hay muchas maneras de hacer historia, que hay episodios y personas que los poderosos quieren borrar de la historia nacional, pero que por mucho que lo intenten, la gente no olvida. Ahora solo falta encontrar un titulo que en espanol tenga la misma fuerza que Erased, y esperar que la publicacion de su traduccion abra el foco, poniendo atencion en otros episodios de la historia de Panama que tambien han sido borrados. Pienso en la invasion de Panama del 20 de diciembre de 1989, un momento que, a pesar de estar en el recuerdo de todos los panamenos, ni siquiera es mencionado en el recien inaugurado Museo de los Derechos Humanos de la Ciudad de Panama.

1. Nathan Wachtel, La Vision des vaincus. Les Indiens du Pérou devant la Conquête espagnole1530-1570 (Paris: Gallimard, 1971).

2. Julie Velasquez Runk, “Creating Wild Darien: Centuries of Darien’s Imaginative Geographyand its Lasting Effects”, Journal of Latin American Geography 14.3 (2015): 127-156.

3. Bonifacio Pereira Jimenez, Biografía del río Chagres (Panama: Imprenta Nacional, 1964) 124.

Mònica Martínez Mauri – Universitat de Barcelona. E-mail: [email protected].

Revista do Arquivo Público do Espírito Santo. Vitória, v.4 n.8, 2020.

Editorial

Apresentação

Entrevista

Dossiê: Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo

Artigos

Colaborações especiais

Resenhas

Los nombres de lo indecible. Populismo y Violencia(s) como objetos en disputa – MAGRINI (ACHSC)

MAGRINI, Ana Lucia. Los nombres de lo indecible. Populismo y Violencia(s) como objetos en disputa. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2018. 346 p. Resenha de: FRANCO, Adriana Rodríguez. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura [Bogotá], v. 47 n. 2, jul. – dic. 2020.

En la historiografia de America Latina es comun observar trabajos que dicen desarrollar una perspectiva “comparada”. No obstante, la mayoria de esas publicaciones articulan su contenido alrededor de un tema o periodo historico, pero su analisis se mantiene en la orbita de las historias nacionales. Los fenomenos que se consideran comunes a la experiencia historica del subcontinente son estudiados a partir de casos: por ejemplo, el populismo en Argentina, en Brasil o en Mexico; la violencia en Colombia, Chile o Bolivia. Algunos de estos casos se erigen al estatus de tipos ideales, a partir de los que se comparan las demas experiencias —como ocurre con el peronismo—, mientras que otros adquieren la condicion de “casos excepcionales”, como la perenne violencia colombiana.

El estudio de Magrini no sigue esta linea tradicional para abordar la tan necesaria —pero al mismo tiempo tan elusiva— comparacion; de hecho, su proposito no es plantear un contraste entre los eventos asociados al desarrollo del populismo en Colombia y Argentina, o establecer, en terminos de verdad historica, cuales serian las razones que explican el “triunfo” o el “fracaso” de la experiencia populista en los dos paises. La obra no se constituye entonces como un estudio que trate de explicar por que el populismo si tuvo arraigo en la Argentina del auge industrial de la decada de 1940, a diferencia de Colombia, pais que vio fracasados sus precarios ensayos populistas y se embarco en un conflicto politico que aun no ha encontrado solucion.

En sintesis, el planteamiento del problema de investigacion de Los nombres de lo indecible surge de comparar sistematicamente como fueron construidos dos de los significantes mas importantes de la historiografia argentina y colombiana durante casi toda la mitad del siglo xx —el peronismo y el gaitanismo, respectivamente—, y cuales fueron los conceptos que se utilizaron para llenarlos de contenido: el populismo, para el caso argentino, y la(s) Violencia(s) para el colombiano. La construccion de esas categorias es observada en sus dimensiones sincronicas y diacronicas, para lo que se propone una periodizacion de ese proceso, el cual esta determinado por la relacion entre los autores responsables de la formulacion de dichos significantes —reiterativos y a la vez disputados en el escenario intelectual y politico de los dos paises— y las condiciones sociopoliticas e intelectuales en las cuales ellos se desenvolvian. Replantear la conexion texto/contexto le permitio a la autora detectar como se gesto la resignificacion de los objetos en las narrativas sobre el peronismo y el gaitanismo durante cada periodo y su transformacion con el paso de los anos. Es en el presente, en el momento en que se conciben las narrativas, cuando “se configura, el pasado, el presente y el futuro” (p. 16).

Magrini aclara que fueron varios los conceptos que en algun momento se esgrimieron para configurar como objetos historicos, tanto al peronismo como al gaitanismo; para el primero se pueden citar “fascismo”, “autoritarismo”, “dictadura”, “bonapartismo”, entre otros, y para el segundo “terrorismo”, “revolucion”, “bandolerismo”, “conflicto interno”; entre otros mas con los que se intento no solo caracterizarlo sino tambien investirlo de significado. No obstante, fueron “populismo” y “la(s) Violencia(s)” los que demostraron tener mas arraigo en las narrativas del peronismo y del gaitanismo, y a los que se les pudo realizar tanto un seguimiento como una comparacion sistematica, toda vez que su implantacion como significantes fue resultado de multiples debates y confrontaciones, debido especialmente a su estrecha conexion con las problematicas del contexto en que eran formulados. Los dos conceptos no solo fueron consolidandose, transformandose y asimilandose; la cuestion que detecta la autora es que ambos fueron excedidos en cuanto a su significado, adquiriendo sentidos diversos y multiples representaciones, en tanto servian como instrumentos para “decir lo indecible” en el presente.

El Dia de la Lealtad (17 de octubre de 1945) en Argentina y el Bogotazo (9 de abril de 1948) en Colombia fueron fechas revestidas con un caracter simbolico en la historia politica de los dos paises, no solo por la magnitud de las movilizaciones sociales que se produjeron —con un acento dramaticamente violento en el caso colombiano— alrededor de las figuras de Juan Domingo Peron y Jorge Eliecer Gaitan, respectivamente, sino porque fueron acontecimientos continuamente revisitados, releidos y resignificados, incluso antes de que los significantes “peronismo” y “gaitanismo” fueran esgrimidos en el proceso de construccion de sus narrativas. En relacion con estos eventos, Magrini devela como las formas en que fue interpretada la irrupcion de lo popular en la movilizacion politica y social del peronismo y del gaitanismo —especialmente visible en esas dos fechas— cumplieron un papel fundamental en el desarrollo de los debates politicos contemporaneos. En este punto, la autora puede sentar otro elemento de comparacion: entretanto, en la Argentina, las controversias se desarrollaban con el peronismo como una “presencia ausente”, un legado que mantenia con vigencia su impronta pese a la ausencia fisica de Peron; en Colombia el gaitanismo tenia la condicion de “ausencia presente”, en el que la violenta desaparicion de su lider represento tambien la eliminacion de su proyecto politico, aunque sin perder totalmente su actualidad al ser anorado por algunos o evocado con preocupacion por otros. Por esta razon, se habla en la obra de ambos como “objetos parciales”, nunca concluidos, ya que su contenido en las narrativas ha estado sujeto (y podemos inferir que lo seguira estando) a los “limites de decibilidad en determinados contextos” (p. 25) o a las condiciones de posibilidad de representacion de otros objetos con los que guardan cierta continuidad o relacion.

La estructura de la obra responde al planteamiento de un marco teorico diverso y nutrido de diferentes fuentes —que se halla detalladamente expuesto en la introduccion—, y cuya formulacion se orienta a demostrar que el pasado debe ser considerado fundamentalmente como una “reconstruccion discursiva” (p. 39). Asi, la autora reconoce que sus principales referentes se encuentran en el marco de la teoria politica del discurso, la historia politica e intelectual, y la historia y la politica como significacion, convocando a autores como Elias Palti, Ernesto Laclau, Slavoj Žižek, entre otros, y a partir de los cuales espera poder estudiar las disputas por la produccion de significados sobre lo politico y sus contextos de debate, asi como explicar por que unas narrativas lograron posicionarse como hegemonicas mientras que otras pasaron a ser marginales.

Tambien se destacan las categorias de “condensacion” —vinculada al analisis sincronico en la construccion del objeto historico—, de “desplazamiento” —que en una perspectiva diacronica revela la “flotacion” de los significados y las interpretaciones— y la de “la paralaje” —que, tomada desde la astronomia y enriquecida por Žižek, remite a como la posicion de un objeto cambia de acuerdo a la posicion del observador, sin que necesariamente se este ante la tradicional relacion sujeto/objeto, en la que el segundo es exterior al primero, quien simplemente lo observa—.

Desde esta propuesta teorica, Magrini comprueba la existencia de tres tipos de narrativas sobre el peronismo y el gaitanismo, y partiendo de ellas organiza los tres capitulos sincronicos del libro; en tanto, los dos restantes tienen una perspectiva diacronica. El primer capitulo analiza dos narrativas subjetivistas, producidas por dos cercanos participes de la movilizacion peronista (Cipriano Reyes) y gaitanista (Jose Antonio Osorio Lizarazo); ambos comparten lugares de enunciacion, al haber acompanado de cerca a los dos lideres en los primeros momentos de su actividad politica, para distanciarse posteriormente al denunciar la existencia de contradicciones en el movimiento o la usurpacion de liderazgos legitimos por actores oportunistas. El capitulo analiza la contribucion de los autores a la construccion del peronismo y gaitanismo como objetos historicos, el primero falseado y el segundo no reconocido, pero en ambos casos con base en una concepcion heroica del pueblo.

En el segundo capitulo emergen las narrativas polifonicas: durante la decada de 1960, Carlos Fayt contribuyo a consolidar la ruptura entre peronismo y antiperonismo, en la que lo popular aparece vinculado a la violencia y el pueblo (masa) maleable ante la influencia de lideres negativos como Peron; en cambio, en la narrativa de multiples perspectivas propuesta por Arturo Alape sobre el gaitanismo, el pueblo (multitud), tras la ausencia de Gaitan, quedara desprovisto de orientacion populista y sera susceptible de caer en la violencia en forma de venganza.

En este punto ya se hace evidente como se vincula la estructura de las narraciones subjetivas y polifonicas con la configuracion de las relaciones conceptuales del populismo y la(s) Violencia(s).

El tercer capitulo muestra como “hacia los anos ochenta el subjetivismo y la polifonia se fundieron con las narrativas objetivistas mas relativizadas” (p.

142), siendo muestra de ello las investigaciones doctorales de Juan Carlos Torre y Herbert Braun. Los argumentos de ambos autores, aunque matizados, no superaron las visiones ya construidas desde las opticas subjetivistas y polifonicas: el peronismo como obstaculo para el desarrollo de una democracia real en Argentina y el gaitanismo como proyecto truncado de inclusion politica de las mayorias.

del gaitanismo como objetos historicos vinculados al desarrollo del populismo y la(s) Violencia(s) como conceptos polisemicos en las ciencias sociales; y tambien de los cambios en el escenario politico de los dos paises. En dicho apartado se amplia considerablemente la cantidad de autores estudiados —no es claro porque el limite temporal para la muestra bibliografica es la mitad de la decada de 1980— y se explicita la articulacion y superposicion entre los momentos en que se produjeron las tipologias narrativas desarrolladas en los tres capitulos iniciales. Aqui se hacen mas evidentes las referencias cruzadas entre las interpretaciones argentinas y colombianas del populismo y la violencia, y que, en circulos academicos y en la opinion publica, giraron alrededor de planteamientos contrafactuales sobre “que hubiera pasado si”, por ejemplo, el peronismo no hubiera sido como fue o si Gaitan hubiera efectivamente gobernado.

Para concluir, es pertinente subrayar que Magrini no busco modelar otra definicion sociologica del populismo en Argentina, ni replantear los alcances de la violencia como categoria en la historiografia colombiana. Su obra se concentro en identificar como se llego a la formulacion de esos conceptos, que significado se les otorgo y como la interaccion entre los autores y su contexto politico e intelectual las hizo vacuas, flotantes y polisemicas; pero, lo mas importante, como contribuyeron a la significacion y resignificacion de los dos fenomenos sociopoliticos mas importantes de la historia del siglo xx en los dos paises. El peronismo y el gaitanismo han convocado el interes de una inmensa cantidad de autores, con diferentes trayectorias e intereses, pero son practicamente inexistentes para el caso latinoamericano las reflexiones que conduzcan a abrir nuevas perspectivas sobre la importante relacion entre la forma en que son revestidos de historicidad los eventos del pasado y las circunstancias en que ese proceso tiene lugar.

1. Nicholas Mirzoeff, Una introducción a la cultura visual (Barcelona: Paidós, 2003) 34.

Adriana Rodríguez Franco – Universidad del Tolima. E-mail: [email protected].

Pan-Amazônia | Revista do IHGPA | 2021

Ilha do Combu Belem Para

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará publica sua nova atual, com temas da realidade brasileira e amazônica, mantendo a continuidade de canal de expressão científica e cultural com a sociedade paraense. Na presente edição, além de textos com diferentes temas da realidade brasileira, um conjunto de artigos organizados em formato de dossiê sobre a Pan-Amazônia compõem este número.

A edição inicia com o artigo de Luís Pedro Dragão Jerônimo “Símbolos de riqueza e modernidade: teatros no Pará, Rio de Janeiro e São Paulo”, no qual reflete sobre o edifício teatral não apenas enquanto local de entretenimento, mas como símbolo econômico e de prestígio. Analisando aspectos materiais e simbólicos em cidades que viveram momentos de expansão econômica nos períodos de construção de seus palcos, o autor estabelece o contato entre as construções e os ideais cosmopolitas nas paisagens urbanas. Leia Mais

Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2020

Justiça, Cidadania e Direito são temas de longa tradição no campo da História que contemplam fenômenos jurídicos e políticos numa perspectiva ampla e interdisciplinar. Recentes estudos e abordagens têm evidenciado o papel relevante das culturas jurídicas e políticas para a compreensão das ideias, instituições, comportamentos e relações de poder nos mais variados contextos históricos. Em consonância com as tendências historiográficas dos últimos decênios, que indagam as interpretações generalizantes e, por vezes, reducionistas, o dossiê objetivou congregar estudos que se dedicam ao exame das práticas e do pensamento no âmbito político-jurídico e suas transformações ao longo da História. Abre-se, assim, uma série de problemas ligados às práticas judiciárias e políticas, construção da cidadania, garantia de direitos, acesso à justiça e à informação. Para essa edição da Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, o dossiê procurou incorporar pesquisas que tratam a temática no âmbito do Espírito Santo, perpassando os diversos regimes políticos e jurídicos, desde o processo de independência do Brasil até a República e suas diversas temporalidades. Leia Mais

Difusão em arquivos. Para que serve? / Revista do Arquivo / 2020

Difusão no e do arquivo: comunicação, mediação e ações educativas e culturais

O dossiê temático desta edição da Revista do Arquivo aborda temáticas pouco contempladas pela Arquivologia, especialmente no Brasil: “Comunicação”, “Ação cultural”, “Disseminação” “Marketing” e “Mediação cultural”: enfim, “para que serve a difusão nos arquivos?”

Em termos teóricos, Jean-Yves Rousseau e Carol Couture alertam para a importância de historiar as funções arquivísticas e a própria disciplina, pois “a disciplina arquivística desenvolveu-se em função das necessidades de cada época” (1998, p. 48). Nesse percurso, quatro áreas foram objeto de trabalho mais aprofundados pelos arquivistas: tratamento, conservação, criação e difusão. Aos poucos, essas atribuições se refinaram em: produção, aquisição, avaliação, classificação, descrição, preservação e difusão (1998, p. 265). Nesse rol, a difusão, reconhecida como basilar no trabalho dos profissionais e instituições, tem sido menos discutida e implementada no cotidiano dos arquivos, relegada a uma função secundária ou subsidiária, embora seja considerada centenária por autores como Alberch i Fugueras et al.(2001) e Bellotto (2000; 2006), além da dupla canadense citada acima.

Quando se pensa em difundir a instituição e suas atividades, as formas de acesso, o acervo e seus instrumentos de pesquisa, isso é feito, muitas vezes, sem a contribuição de um sujeito essencial ao debate: o usuário do arquivo ou os potenciais usuários. Assim, à falta de pesquisas sobre as práticas de difusão soma- -se a falta de pesquisas sobre os usos e usuários de arquivo. Ao contrário, os colegas da museologia têm na comunicação calcada nos estudos de público um dos pilares do trabalho nas instituições, o que se reflete na produção acadêmica da área.

Na arquivologia e nos arquivos, quando se trata do tema “Difusão”, é comum centrar, muitas vezes, em um debate que se aproxima das normas descritivas ou dos instrumentos de pesquisa, especialmente após os esforços do Conselho Internacional de Arquivos para a construção de padrões internacionais de descrição que permitam que os instrumentos de pesquisa facilitem os estudos comparativos e que conjuntos documentais de diversas partes do mundo “conversem” entre si sobre funções e atividades semelhantes. Outra vertente para o debate concentra-se nas mudanças que as novas tecnologias da informação trouxeram para as instituições e, mesmo, na forma como o pesquisador busca o acesso ao documento arquivístico com o advento da Internet, por exemplo. Embora, o dicionário Multilingual Archival Terminology defina difusão como “função do serviço de arquivo que visa promover o conhecimento do respectivo acervo documental” (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, online).

Desde os anos 1990, Bellotto já apontava estratégias cabíveis para que instituições arquivísticas estabelecessem práticas de difusão: trazer as pessoas aos Arquivos ou irem ao encontro delas (BELLOTTO, 2006, p. 228), ao discutir a função social dos arquivos.[1] Dessa forma, independente dos novos canais possíveis com a web 2.0, a ida até o potencial usuário tem que ser pensada a partir do reconhecimento do público a ser atingido, seja por meio das novas ou das tradicionais ferramentas de comunicação, como as postagens nas redes sociais ou uma publicação de um periódico, como a que abriga este dossiê.

Aldabalde e Rodrigues (2015, p. 259) definem difusão como o

[…] processo cujo objeto é a informação que segue uma dinâmica emissiva em relação ao público para o qual se dirige, numa estratégia de transmissão cujo objetivo último é a acessibilidade via produtos e serviços […]”.[2]

A partir das suas experiências de trabalho no Arquivo Público do Estado de São Paulo, Barbosa e Silva (2012) definem difusão no Arquivo com a função que se relaciona a “mostrar o potencial do acervo; transformar o documento bruto em pesquisa; incitar a investigação; sugerir interpretações das fontes; produzir leituras da história; dar a conhecer o universo documental com a linguagem que o público final entende” (BARBOSA; SILVA, 2012, p. 46).

Para além de dar a conhecer a instituição e o seu acervo, outra acepção corrente enfatiza a importância do caráter “cultural” das ações de difusão. Isso, de certo modo, restringe a função de se pensar no valor do trabalho de difusão como garantidor de direitos e da cidadania, ação do arquivo como órgão público que promove a gestão de documentos e o acesso qualificado aos documentos arquivísticos.

Outro viés do trabalho de difusão atrela-se às ações educativas como um elemento essencial à dinamização das relações do arquivo com seus públicos, o que implica ações mediadas pelo arquivista ou outros profissionais da instituição ligados à área da Educação, como professores de história e ou pedagogos. As ações educativas podem ser parte das atividades tradicionalmente compreendidas como educação patrimonial das instituições arquivísticas. Entretanto, é necessário compreendê-las como um conjunto de múltiplas atividades a serem planejadas como um programa, o que envolve não apenas a história contada por meio dos documentos, como também ações formais e não formais que permitam aos participantes transcender o discurso do documento, entender o “dever de memória” (HEYMANN, 2006) das instituições arquivísticas públicas e criar conexões com outros contextos estudados, como sugerem os trabalhos de Koyama (2015).

Nessa perspectiva, Heloísa Bellotto (2000, p. 152) destaca que as atividades educativas e as ações de difusão oportunizam pensar

[…] seja no sentido da consolidação da noção de cidadania aos estudantes de primeiro e de segundo graus, seja no de um maior entendimento, junto às autoridades e à população, do real papel que devem ter os arquivos públicos, ademais de serem os custodiadores e organizadores da documentação produzida / acumulada como prova, testemunho ou informação em questões que envolvam direitos e deveres nas relações entre governo e os cidadãos.

Para Normand Charbonneau (1999, p. 374-375), a difusão se relaciona ao ato de tornarem conhecidos os documentos arquivísticos aos cidadãos e às demais instituições. A difusão é compreendida como uma função que deve ser desempenhada tanto na gestão de documentos (arquivos correntes e intermediários), quanto nas atividades do arquivo permanente. Ao tratar da gestão documental, enfatiza-se a difusão das ferramentas como planos de classificação e tabelas de temporalidade ou de promoção de cursos que orientem os produtores de documentos sobre a arquivologia, por exemplo. Desse modo, a difusão fortalece e contribui para as funções classificação, avaliação e preservação, por meio da extroversão das suas práticas e referencial teórico.

Como ações de difusão, Charbonneau (1999, p. 391-400) destaca: exposições, publicações impressas, instrumentos de pesquisa, visitas guiadas e conteúdos difundidos na Internet. Ao tratar da Internet, em livro dos anos 1990, o autor enfatiza as possibilidades de uso dos sites para disponibilizar informações sobre os documentos, instrumentos de pesquisa e condições de acesso em detrimento do acesso ao próprio documento, algo que só se tornaria viável para grande parte das instituições e mesmo para os usuários a partir do final da primeira década do século XXI. Outra preocupação do autor com relação ao uso dos sites diz respeito à capacidade dos novos canais de promover o acesso e de torná-lo qualificado.

Após esse breve percurso sobre a difusão, o leitor é convidado a percorrer textos que encaram a função de modo processual, dinâmico e afetivo. Os arquivistas e os profissionais de arquivo, ao difundirem o trabalho que realizam nas instituições arquivísticas, cada vez mais convidam para a realização de pesquisa de diversos perfis de usuários e para a compreensão de outros contextos históricos, marcados por mudanças políticas e administrativas, mas, essencialmente, construídas por sujeitos que deixaram suas marcas de existência nos conjuntos documentais que chegam aos arquivos permanentes. Ao construir políticas de difusão, estes atores deixam de apenas comemorar ou rememorar fatos e homenagear líderes, para contribuírem para a construção das memórias coletivas por meio das narrativas que nascem do cotidiano das instituições públicas ou privadas de quem custodiam acervos.

Notas

1. Obra originalmente publicada em 1991 e citada neste trabalho pela 4ª edição.

2. ALDABALDE, Taiguara Villela; RODRIGUES, Georgete Medleg. Mediação cultural no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. TransInformação, Campinas, v. 27, n. 3, p. 255-264, set. / dez. 2015. Disponível em: http: / / www.scielo.br / pdf / tinf / v27n3 / 0103-3786-tinf-27-03-00255.pdf . Acesso em: 19 mar. 2019.Citado por MELO, 2019, p. 19.

As discussões presentes no texto são tributárias do trabalho com a autora durante a orientação de sua dissertação de mestrado.

Referências

ALBERCH i FUGERAS, Ramón; BOIX, Lurdes; NAVARRO, Natália; VELA, Susanna. Archivos y cultura: manual de dinamización. Gijón: Ediciones Trea, 2001.

BARBOSA, Andresa Cristina Oliver; SILVA, Haike Roselane K. Difusão em arquivos: definição, políticas e implementação de projetos no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Acervo, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 45-66, jan. / jun. 2012.

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Patrimônio documental e ação educativa nos arquivos. Ciências e Letras, Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 27, p. 151-166, jan. / jun. 2000.

____________. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 320 p.

CHARBONNEAU, Normand. La diffusion. In : COUTURE, Carol (Colab.). Les fonctions de l’ archivistique contemporaine. Québec: Presses de I’ Université du Québec, 1999. p. 373-428.

CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. Multilingual Archival Terminology. Disponível em: http: / / www.ciscra.org / mat / mat / term / 6797 . Acesso em: 10 de jan. 2020.

HEYMANN, Luciana. O “devoir de mémoire” na França contemporânea: entre a memória, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Contemporânea do Brasil; Fundação Getúlio Vargas, 2006. 27 p. Disponível em: https: / / bibliotecadigital.fgv.br / dspace / bitstream / handle / 10438 / 6732 / 1685 .pdf. Acesso em: 10jan. 2020.

KOYAMA, Adriana Carvalho. Arquivos online: ação educativa no universo virtual. São Paulo: Associação de Arquivistas de São Paulo, 2015. 360 p.

MELO, Suellen A. Difusão de documentos fotográficos: análise de experiências de três instituições arquivísticas brasileiras no Facebook. 171 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998.

Ivana D. Parrela – Professora Associada do Curso de Arquivologia da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); doutora e mestre em História, pela UFMG; especialista em Organização de Arquivos, pela USP; e graduada em História, pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).


PARRELA, Ivana D. Introdução. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano V, n.10, junho, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930) | Ana Beatriz D. Barel e Wilma P. Costa

livro Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930), organizado pelas historiadoras Ana Beatriz Demarchi Barel e Wilma Peres Costa, é uma coletânea de trabalhos que pesquisadores de diferentes instituições do país apresentaram durante o “Seminário Internacional de Estado, cultura e elites (1822-1930)”, na Fundação Casa de Rui Barbosa, em 2014. A obra tem como recorte cronológico o chamado “longo século XIX” no Brasil, que, segundo as próprias organizadoras, foi marcado pela “intensidade das transformações que atravessaram a experiência humana no Velho e no Novo Mundo” (p. 7).

Através da análise de objetos variados e trajetórias individuais, o livro apresenta as disputas travadas no interior do processo de definição da identidade nacional brasileira, um itinerário complexo marcado pela construção do Estado e pela consolidação da nação. Para a elite letrada brasileira, o desafio consistia em estabelecer símbolos que fossem importantes para o público interno letrado do país e para os leitores do velho continente. Seu objetivo era integrar o Brasil no sistema cultural das nações europeias, ao mesmo tempo que era necessário distingui-lo das demais nações do Novo Mundo.

Os projetos nacionais para o Brasil, a fundação de instituições culturais, a composição da sociedade letrada, a relação entre Estado e cultura, tudo isso está presente ao longo dos doze capítulos que compõem as duas partes da obra. Os da primeira parte abordam especialmente a propagação da cultura escrita no país, destacando-se algumas figuras importantes que conduziram os debates sobre a nação através da produção de obras, organizações literárias e disputas dentro das próprias instituições do país. Na segunda parte do livro, observamos a importância e o impacto da difusão da imagem, em particular dos retratos e da fotografia nas décadas que compreendem a segunda metade do século oitocentista até o início da república brasileira. Em ambas as partes, as disputas pela construção de narrativas para o país, bem como a relação tensa entre cultura e poder, constituem o eixo de análise dos capítulos.

O primeiro capítulo da obra, “Espaço público, homens de letras e revolução da leitura”, do historiador Roger Chartier, fornece a chave para compreender as tensões entre o Estado, as elites e a constituição da cultura nacional exploradas em diferentes momentos do livro. Chartier desenvolve aí a genealogia de três noções, a de espaço público, a de circulação de impressos e a de constituição do conceito de intelectual. Desenvolvidas durante o movimento iluminista, essas noções apresentaram variações no desenrolar do mundo contemporâneo e influíram decisivamente nas nações a surgir nas Américas, entre elas o Brasil.

A construção de um imaginário para a nação a partir do olhar estrangeiro do viajante, tema clássico mas sempre atual nas discussões sobre o Novo Mundo, é apresentado no segundo capítulo do livro, de Luiz Barros Montez Barros. O texto analisa os objetivos da produção dos relatos do alemão Johann Natterer a respeito de sua viagem ao Brasil entre os anos de 1817 a 1835. Como sugere Barros, conhecer novas terras possibilitava a elaboração reflexiva sobre a cultura dos países de origem dos próprios viajantes. Essa produção, além de prezar pela objetividade científica das informações, resultava em avaliações eurocêntricas que ressaltavam a “afirmação da supremacia do modelo civilizacional e técnico” dos países capitalistas emergentes (p. 49).

O estudo de Wilma Peres Costa sobre a figura de um dos intelectuais mais importantes do século XIX brasileiro, Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), também explora a temática da construção da identidade nacional brasileira em sua complexa relação com o Velho Mundo. A autora observa a complexidade de um personagem que pertencia à linhagem francesa e vivenciava o contexto desafiador de criação de um campo literário e artístico no Brasil oitocentista. Através da análise do processo de mudança do próprio nome do literato, aponta que Taunay, em oposição à maioria dos intelectuais brasileiros, buscava se distanciar das referências francesas e se aproximar das de Portugal e do nativismo brasileiro. Assumindo a condição de uma “dupla cidadania intelectual”, o letrado revelava em suas obras, com destaque para A Floresta da Tijuca, o projeto de construção de uma memória e história vinculadas ao poder do Imperador e da monarquia no Brasil.

O esforço pela construção do Estado e pela busca da estabilidade política monárquica no Brasil também se materializou na fundação das instituições literárias na primeira metade do século XIX, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838. Naquele momento, a elite letrada do Brasil se inspirava nas instituições francesas – o Instituto Histórico de Paris havia sido fundado alguns anos antes (1834) e contava com a presença de representantes do Império brasileiro em suas sessões iniciais. A preocupação do homem do século XIX, dos dois lados do Atlântico, era com o registro histórico para a composição e conformação da memória nacional.

Dois capítulos do livro se ocupam dos temas relacionados à composição social dos membros do IHGB e às escolhas de temas nas publicações de sua Revista, na primeira metade do século XIX. A historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães analisa como a seleção de acontecimentos históricos e suas respectivas narrativas, junto à composição social dos membros do IHGB desde a sua fundação até o ano de 1850, apontam para o esforço considerável de construir um passado nacional legitimador do Estado monárquico. A defesa da monarquia e da figura do Imperador era necessária diante das conturbações e pressões vividas naquele momento. “O passado acabaria então por converter-se em ferramenta para legitimar as ações do presente.” (p. 62).

Tamanho esforço também poderia ser observado na busca pelo estabelecimento dos cânones literários brasileiros na Revista do IHGB, dado que os escritores nacionais a figurar entre as referências literárias também foram definidos no interior do próprio Instituto. Conforme nos indica Ana Beatriz Demarchi Barel, a seção da revista intitulada “Biographia dos Brasileiros Distintos por Letras, Armas, Virtudes, &” tinha a finalidade de apresentar ao público os nomes de personalidades nacionais (escritores, advogados, diplomatas, navegadores, inquisidores) dignas de elogios, e dentre elas é possível observar a indicação de quais nomes deveriam pertencer ao panteão dos escritores da literatura nacional, em diálogo com as referências europeias. Assim, “a RIHGB conforma-se como instrumento de propaganda da política alavancada pelas elites e do poder de um monarca ilustrado nos trópicos” (p. 83).

O historiador Avelino Romero Pereira abordou a música no Império como um campo de prospecção e definição de um projeto cultural nacional. Propondo refletir sobre suas características “aproximando-a da literatura e das artes visuais” (p. 100), o autor destaca que, a exemplo dos gêneros literários, a produção, a circulação e o consumo musical estiveram permeados de tensões. O mecenato exercido pelo imperador nessa área não reduziu a música a um caráter meramente oficialista do Império, como se os artistas fossem “marionetes a serviço do poder pessoal do Imperador e da construção de um projeto exótico de Império nos trópicos”. (p. 93) Araújo Porto Alegre seria um dos representantes da multiplicidade de ideias contrapostas à visão de unicidade nacional.

As trajetórias individuais iluminam as contradições, oposições e alianças estabelecidas no processo de formação de campos discursivos culturais no Brasil, como se pode ver no capítulo de Letícia Squeff. A autora nos apresenta o caso do pintor Estevão Silva, negro, que se indignou ao receber a medalha de prata como artista das mãos do Imperador, em 1879, Academia Imperial de Belas Artes. Squeff aponta a tensão que esse episódio gerou, intensificando, inclusive, o momento de crise vivido dentro da instituição e, também, acentuando ainda mais o descrédito público da figura do Imperador. “Foi percebido como atitude potencialmente revolucionária, numa monarquia que já vinha sendo sacudida por debates e discursos republicanos” (p. 294).

Ricardo Souza de Carvalho também traz à tona uma importante trajetória individual ao analisar a atuação do abolicionista e monarquista Joaquim Nabuco em duas instituições de peso, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Academia Brasileira de Letras. Como dito, o IHGB se vinculou, durante todo o período do Império, à figura do Imperador e à Monarquia, enquanto a Academia Brasileira de Letras, fundada na última década do século XIX, marcou as necessidades relacionadas aos dilemas da construção do início da República no Brasil. Carvalho estuda a presença de Nabuco nessas instituições para mapear as relações tensas entre instituições culturais e política no fim do Império.

A relevância social das imagens na segunda metade do século XIX aparece no capítulo de Heloisa Barbuy, dedicado à organização de uma galeria de retratos na Faculdade de Direito de São Paulo no século XIX. O retrato ganhava ares de prestígio no momento em que a fotografia ainda não era tão glorificada. Retratar significava eternizar uma memória, dando início a uma “cultura de exposições” na segunda metade do século XIX que se ligava à construção de narrativas nacionais e, também, ao estabelecimento de personalidades como figuras de referência. Barbuy indica a relação entre a formação do Estado Nacional, em particular o seu sistema jurídico, e a escolha de determinadas trajetórias de “homens públicos-estadistas e governantes” para figurar uma sala de retratos. “Homenagear alguém com o seu retrato em pintura, em telas de grandes dimensões, era a expressão máxima da admiração reverencial que se desejava marcar.” (p. 223).

O capítulo de Ana Luiza Martins aborda a importância da iconografia para demarcar a preponderância do café na economia imperial brasileira. A ideia de que o “café dava para tudo” é problematizada através da análise de inventários e das obras literárias sobre os cafeicultores do Vale do Paraíba. As dificuldades encontradas com o declínio do tráfico negreiro e as oscilações do mercado ficaram, durante muito tempo, submersas na imagem do poder que a economia cafeeira proporcionava, imagem construída em grande medida pela iconografia. Os casarões dos proprietários das fazendas de café estavam retratados em telas pintadas por artistas de renomes da corte, o que representava o “poderio econômico e político” dos cafeicultores mesmo no momento em que a produção da região já não estava em seu auge.

Analisando a arquitetura do Vale do Paraíba, Carlos Lemos aponta para as transformações da cultura material nas residências da região. Lemos salienta que o material para construção das residências não variava e que o Estado não teve influência na constituição de suas características. As questões estéticas das casas, ao longo do Paraíba no século XIX, não eram primordiais. O tamanho das casas era o fator que diferenciava a classe social e econômica e é nesse aspecto que podemos perceber o esforço de diferenciação social que ocorreu através da monumentalidade dos casarões dos cafeicultores. “O que interessava aos ricaços era unicamente o tamanho de suas casas de dezenas de janelas” (p. 168).

O simbolismo de poder existente nas construções grandiosas, nas imagens e em suas exposições também ganharam aspectos novos com o advento e difusão da fotografia no Brasil. A chegada de fotógrafos europeus, a partir da segunda metade do século, possibilitou que aspectos da nossa sociedade fossem retratados com base em uma nova materialidade. Ao analisar a trajetória do fotógrafo alemão judeu Alberto Henschel, Cláudia Heynemann observa que, no momento em que o retrato a óleo ainda se restringia a uma minoria economicamente favorecida, a fotografia, através do desenvolvimento do formato carte de visite, possibilitou que outros setores da sociedade também tivessem acesso ao consumo de suas próprias imagens. O álbum privado, que trazia imagens de “famílias brasileiras, abastadas, das camadas médias em ascensão, de libertos, de escravizados, gente de todas as origens”, se tornou uma febre social (p. 258). A respeito de Alberto Henschel, a autora ainda destaca a diversidade de seus trabalhos, inclusive inúmeras fotografias que retratava os negros brasileiros, marcando um novo momento da história visual do Império e da sociedade escravista.

A diversidade de abordagens apresentada nos capítulos que compõe Cultura e poder entre o Império e a República nos permite compreender, com mais acuidade, o panorama múltiplo das relações entre as elites brasileiras e o Estado Nacional ao longo de mais de cem anos. A leitura de cada capítulo dá densidade a esse relevante tema de investigação. À medida que nos detemos em um determinado personagem ou em algum contexto mais específico, nos aproximamos das mais variadas formas de produção e circulação de ideias que fizeram parte da construção do imaginário nacional de um país monárquico cercado de repúblicas e profundamente marcado pela herança da escravidão.

Referência

BAREL, Ana Beatriz Demarchi; COSTA, Wilma Peres. (Orgs). Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2018.

Lilian M. Silva – Universidade Federal de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


BAREL, Ana Beatriz Demarchi; COSTA, Wilma Peres. (Orgs). Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: SILVA, Lilian M. Relações de poder na cultura escrita e visual no “longo século XIX” brasileiro. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

O urucungo de Cassange: um ensaio sobre o arco musical no espaço atlântico (Angola e Brasil) | Josivaldo Pires de Oliveira

Ao escrever as palavras urucungo e Cassange no programa de edição de textos, o corretor ortográfico as sinaliza como grafadas de forma errada. O mesmo não ocorre quando escrevemos violoncelo ou Paris usando o mesmo editor de textos. O erro deve estar justamente aí, na programação dos computadores e na nossa formatação como historiadores. Palavras de origem africana soam estranhas no português no Brasil, no português dos intelectuais do Brasil, mas a outros estrangeirismos estamos acostumados e os naturalizamos.

O professor da Universidade do Estado da Bahia e mestre de capoeira Josivaldo Pires de Oliveira escreveu um ensaio intitulado O urucungo de Cassange. O livro decorre justamente de sua experiência como intelectual acadêmico e profundo conhecedor do corpo, da musicalidade e dos instrumentos como fontes para a historiografia e como objetos do interesse do historiador. Josivaldo tem clareza sobre como desempenhar uma das funções que poucas vezes cumprimos a contento neste ofício: dialogar com públicos mais amplos e oferecer materiais de qualidade para uso nas escolas por estudantes e professores atuantes na rede de ensino básico. Quando endereçamos publicações a esses leitores, nem por isso o rigor deve ser deixado de lado – e, neste caso, o rigor foi conjugado a uma linguagem apropriada. Esse é o primeiro ponto do livro que quero destacar.

Urucungo ou barimbau é o arco musical usado na capoeira. Josivaldo encontra evidências do uso desse instrumento antes da sua popularização, graças às rodas de capoeira. O último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX são os marcos temporais da obra e o Cassange do título não é exatamente a região da Angola atual de onde vieram milhares de escravizados pelo Atlântico até o Brasil, mas sim um tocador de berimbau e personagem do folhetim oitocentista Ataliba, o vaqueiro, do diplomata e escritor piauiense Francisco Gil Castelo Branco. O formato em arco e a referência à África e ao Brasil funcionam como metáforas da diáspora africana em suas múltiplas expressões.

O ensaio divide-se em três capítulos. No primeiro, intitulado “Cassange e seu arco musical”, a epígrafe recupera a descrição da personagem do folhetim (mais tarde republicado em livro) e, em meio a uma fisionomia eivada dos preconceitos comuns no século XIX, informa-se que Cassange, homem nessa altura já encanecido, “fora importado da África ainda moleque e conservava o nome de sua terra natal”. A terra e o homem, unidos em um mesmo nome, já nos alertam para a tentativa de transformar seres humanos em simples elementos da natureza. Essa era uma leitura de sabor oitocentista que incluía, entre outras coisas, nomear os africanos escravizados conforme a região ou o porto de origem, inventando etnônimos que pouco definiam as origens e a cultura. Tendo por guia o homem chamado Cassange, Josivaldo vai em busca de uma história do arco musical no Brasil.

Para isso, ele percorre o interior e o litoral da África Centro-Ocidental, o Atlântico e a província do Piauí, tradicionalmente ocupada desde a colonização pela pecuária extensiva no sentido sertão-litoral. Vaqueiro inseparável do arco musical que carregou consigo desde os tempos de liberdade na terra natal até ter por volta de oitenta anos de idade, Cassange é o representante dos tocadores desse instrumento no Brasil. Imbangala, como outros em sua terra, o africano dominava o arco de uma corda só usado no pastoreio e que os viajantes que conheceram aquela região africana denominaram “violam”, por analogia, como faziam todos os viajantes para aproximar os lugares exóticos e as coisas estranhas aos leitores brancos e europeus que pretendiam alcançar. No Brasil e no Congo/Zaire dos séculos XIX e XX, outros literatos, estudiosos e folcloristas foram unânimes ao apontar a origem bantu do berimbau, que não deve ser confundido com marimbau, e a importância dele para a música e a dança brasileiras. Berimbauurucungohungorucumbo ou mbulumbumba são sinônimos encontrados por Josivaldo em fontes dos dois lados do oceano para designar esse instrumento feito de corda metálica, vara de madeira e cabaça. A circulação das palavras, do instrumento e das personagens literárias simbólicas pelas margens atlânticas leva a pensar que ficção e História têm vários pontos de intersecção. O nome disso é verossimilhança.

No capítulo 2, “Os parentes de Cassange ou os arcos musicais em Angola”, somos levados ao outro lado do oceano: estamos na Angola que nos civilizou, nas palavras recuperadas por Luiz Filipe de Alencastro. O ensaio de Josivaldo dá mais lastro à ideia de civilização, na medida em que, além da força de trabalho, agrega o saber musical ao rol dos inúmeros saberes que os brasileiros receberam como herança dos povos africanos trazidos compulsoriamente para a América portuguesa e o Brasil imperial. Mas ver no urucungo apenas um legado aos brasileiros seria uma apropriação simplista e incompleta: o instrumento tem uma história que antecede sua vinda ao Brasil na bagagem literal e cultural dos escravizados e que continuou a existir na Lunda, terra dos imbangala que mantiveram trajetórias históricas em seu próprio continente. A se fiar nas narrativas dos viajantes europeus do século XIX que por ali passaram, o uso do instrumento era recreativo – “tocam-no quando passeiam e também quando estão deitados nas cubatas”, afirmou Henrique Dias de Carvalho em 1890 – e suas formas eram idênticas às que já se conhecia no Brasil, ou seja, a cabaça como caixa de ressonância e o contato com a pele nua na criação da musicalidade. Todavia, nos relatos dos viajantes, o urucungo não aparecia compassar o movimento dos corpos. Pequenas variações e especificidades, como o berimbau de boca e o toque por mulheres, também foram registradas lá e cá, em Angola e no Brasil.

O arco musical espalhou-se por arcos territoriais amplos, em lugares de cultura bantu para além do nordeste de Angola. As fontes de Josivaldo, neste capítulo, são basicamente os registros de viagens e a etnografia feita por portugueses, no afã de construir conhecimentos acerca das regiões sobre as quais se pretendia legitimar a conquista, nos termos acordados na Conferência de Berlim. Não por acaso, são escritos do último quartel do século XIX – indício seguro de que o urucungo existia desde antes disso e que a ausência do registro não deve ser lida como inexistência do objeto descrito. Afinal, como Josivaldo revela, saiu da pena do padre Fernão Cardim, no século XVI, a primeira menção ao termo “berimbau”.

O capítulo 3 faz o percurso de volta. “Do outro lado do Atlântico: tocadores de urucungo no Brasil” é um exercício de boas práticas em História Social. Mesmo quando a fonte não é de próprio punho e não se pode nomear os sujeitos, como nas histórias de viés político mais tradicionais, o coletivo e os indivíduos ganham corpo e voz (som, no caso). Artes plásticas, jornais e outras fontes dos séculos XIX e XX são visitadas em busca da a(tua)ção dos tocadores. As confusões de significado em crônicas e anúncios de jornais desde fins do século XIX, que faziam a gaita ser definida como berimbau, são esclarecidas neste capítulo. Não por acaso, Edison Carneiro já anotava a expressão “berimbau não é gaita”, usada de norte a sul do país, com o sentido de alertar o ouvinte para uma situação absurda e, assim, satirizá-la.

O binômio “origem africana como atraso” e “origem europeia como civilidade” não é novo nos estudos sobre a cultura brasileira, especialmente no que se refere ao início do século XX e às pretensões modernizantes da recém-instaurada República. Soaria divertido, se não fosse um sintoma do preconceito, o esforço em europeizar o berimbau como corruptela do francês “berimbele”, ainda que se tratasse de instrumentos diferentes (o barimbau de corda e o de sopro).

Fazer desaparecer a Pequena África no Rio de Janeiro planejado como cartão postal era um ideal republicano. Nesse processo, o arco musical tinha seu lugar, manuseado como era por negros presentes na cena musical popular das ruas da capital federal. Mas o urucungo não estava só ali nem só naquele momento: José de Alencar em seus romances rurais, Luiz Gama em sua obra poética, Antônio Ferrigno em óleo sobre tela e as páginas de jornais de diferentes províncias do Império exemplificaram a dispersão territorial do instrumento, como que unificando o Brasil de matriz africana.

A partir da vasta gama de fontes compilada para a escrita do ensaio, Josivaldo Oliveira encerra o terceiro capítulo em coautoria com Gabriel Ferreira, artista plástico que transformou em dez desenhos as descrições contidas nas evidências históricas. O resultado são páginas com representações iconográficas contemporâneas e legendas-textos informativas, tudo composto com grande liberdade criativa. A Bahia, como é justo, dá o desfecho à história do urucungo/berimbau. Folcloristas de meados do século XX afirmavam que o instrumento era quase desconhecido fora daquele estado, dando corpo à hipótese de que foi o uso do berimbau na capoeira que garantiu sua permanência. O livro aqui resenhado deixado claro que a história é bem mais complexa.

Áfricas transplantadas, ressignificadas, perseguidas e persistentes. Áfricas que ainda são o nosso outro, mesmo que sejam tão fortemente parte de nós. É dessa história que trata Josivaldo, por meio de um indício da cultura material e imaterial, ao mesmo tempo um objeto de madeira biriba, corda e cabaça e um saber-fazer transmitido corporal e musicalmente ao longo de gerações.

O livro traz ainda dois anexos. O primeiro reproduz um texto de Edison Carneiro sobre o berimbau, originalmente publicado em 1968. O segundo cumpre, de forma competente, o que determina a legislação conquistada pelos movimentos negros e que se refere ao ensino de História da África e da Cultura africana e afro-brasileira. Ali, são sugeridas formas de trabalhar O urucungo de Cassange com estudantes do ensino básico.

Terminada a leitura deste ensaio, não será mais possível adotar a postura do assistente passivo de uma roda de capoeira apenas pelo fascínio do movimento dos corpos ou por contemplação desinteressada do conjunto de sons e gentes ali reunidos. Sem perder isso de vista, o assistente verá o arco vertical se horizontalizar, ligando os dois lados do Atlântico numa história única, secular, sul-sul e do tempo presente. A sugestão do berimbau como ponte entre dois continentes foi feita por Enrique Abranches e, mesmo não sendo original, funciona bem para exprimir a sensação de leigos diante de práticas que, embora admire, não deve praticar sem iniciação correta. Por isso, a condução pelo historiador e mestre Josivaldo Oliveira traz uma sensação de segurança na narrativa sobre o percurso de um instrumento tão emblemático.

Referência

OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. O urucungo de Cassange: um ensaio sobre o arco musical no espaço atlântico (Angola e Brasil). Itabuna: Mondrongo, 2019.

Jaime Rodrigues – Universidade Federal de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. O urucungo de Cassange: um ensaio sobre o arco musical no espaço atlântico (Angola e Brasil). Itabuna: Mondrongo, 2019. Resenha de: RODRIGUES, Jaime. Ancestralidade na história e na música: o berimbau/urucungo nos séculos XIX e XX no Brasil e em Angola. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

Reinventando a autonomia: Liberdade – propriedade – autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo 1535-1822 | Vania M. L. Moreira

A recopilação Legislação indigenista no século XIX, publicada por Manuela Carneiro da Cunha em 1992, ofereceu um importante quadro referencial de onde partir para estudar a problemática indígena durante o século de consolidação da independência política brasileira. A partir de então, os comentários da autora abriram duas importantes linhas de frente, e de crítica, para os estudos indigenistas relativos ao período. A primeira delas – a afirmação de que a política indigenista passou, durante o século XIX, de uma política de mão de obra para uma política de terras – vem sendo contestada por inúmeros autores que destacam a dimensão do trabalho compulsório e o apagamento da identidade indígena durante o período em questão. A segunda, por sua vez, refere-se ao escopo temporal, anotando que a revogação do Diretório pombalino em 1798 abriu um período de vazio legislativo durante o qual o Diretório teria sido aplicado, de maneira oficiosa, até a aprovação do Regulamento das Missões em 1845.

Sem gastar tempo refutando essas afirmações, Vânia Moreira aborda em Reinventado a Autonomia (2019) todos os temas centrais das observações de Carneiro da Cunha: a identidade indígena, as questões de terras e mão de obra, as particularidades do período pombalino e as mudanças ocorridas durante o século XIX, passando, ademais, por questões de gênero e família e conectando-as de forma convincente com as demais temáticas tratadas. Ainda que o foco geográfico seja o território específico do Espírito Santo, a autora trata de vincular as suas conclusões com as de outros autores que estudaram diferentes regiões brasileiras, oferecendo uma visão mais ampla do contexto no qual se inserem.

Apesar de enunciar uma temporalidade muito mais ampla (1535-1822), a maior riqueza documental do trabalho encontra-se precisamente no estudo do período pombalino em diante (capítulos 3 a 6), foco de pesquisa da autora durante os últimos anos. Quem está familiarizado com o trabalho de Vânia Moreira pode experimentar uma sensação de déjà vu ao ler o livro. De fato, a obra recolhe o conteúdo tratado nos seus principais artigos sobre os indígenas no território do atual Espírito Santo, organizados de forma mais temática que cronológica, voltando e avançando as datas para contextualizar devidamente cada um dos temas tratados. Porém, não se trata de mera coletânea de artigos publicados. A autora estabelece um diálogo entre seus próprios textos, devidamente referenciados para aqueles que queiram aprofundar em questões específicas, o que acaba convertendo o livro numa espécie de quadro geral de parte da sua produção acadêmica dos últimos quinze anos. Acrescente-se, finalmente, o cuidado em anexar fotografias, mapas e gráficos ao longo da obra, elementos normalmente mais limitados no espaço dos artigos científicos, e que contribuem para reforçar esse caráter estrutural da obra.

No primeiro capítulo, intitulado “Tupis, tapuias e índios”, a autora se vale de uma extensa bibliografia para abordar os caracteres da população que habitava a costa leste do continente antes da chegada dos europeus. Os vestígios das suas etnias, troncos linguísticos, organizações políticas, cultura material e demografia são abordados de forma probabilista, valendo-se de forma convincente dos trabalhos sobre as fontes disponíveis a respeito. No mesmo capítulo, a autora também reconstrói os impactos dos primeiros conflitos com os europeus, ressaltando que a escravização dos prisioneiros de guerra afetou significativamente os valores que presidiam a guerra ameríndia, dando lugar a uma perspectiva promissora para os colonos da região no final do século XVI. Não obstante, a autora enumera uma série de razões pelas quais em meados do século seguinte a escravidão de africanos teria substituído, na capitania, a aposta pelos “negros da terra”. Apesar da perda de protagonismo econômico da região a partir desse momento, a autora anota a sua importância geopolítica, dado que se configurava como fronteira tanto para o mar como para o interior do continente, especialmente a partir da descoberta do ouro na região das Minas. Essa importância se traduziu em diferentes tensões entre indígenas, moradores e jesuítas, relatadas com detalhe por Moreira. Finalmente, o capítulo encerra adentrando-se em questões jurídicas. A autora define a posição jurídica indígena, nomeadamente dos aldeados, como status específico no contexto do Antigo Regime, status que se traduzia na obrigação de prestar serviços, tendo como principal contraprestação a garantia de permanência em terras coletivas (p. 89). Para falar do status no Antigo Regime, não obstante, a autora referencia o conhecido livro de António Manuel Hespanha (2010) dedicado ao estatuto jurídico de coletivos atípicos no Antigo Regime. Nesse espaço, sente-se falta de uma citação direta ao trabalho de Bartolomé Clavero (autor citado, não obstante, ao falar da estrutura de poder do Antigo Regime ibérico, nas páginas 275-276), pois, pertencendo ambos a uma mesma corrente historiográfica, o trabalho do autor espanhol é muito mais incisivo que o de Hespanha no relativo à posição específica atribuída à humanidade indígena na cultura jurídica do Antigo Regime (CLAVERO, 1994, 11-19).

O capítulo seguinte trata sobre os processos históricos que pouco a pouco foram desembocando na consolidação territorial de certos grupos indígenas e sua conversão em aldeamentos. A autora repassa as guerras e migrações mais significativas, assim como dinâmicas particulares que surgiram nesse processo (por exemplo, o curioso fato de que grandes guerreiros aldeados recebessem nomes portugueses idênticos aos dos principais líderes portugueses da terra, fato que exige portanto uma especial atenção dos historiadores na análise das fontes). À continuação, são descritos os principais aldeamentos da capitania, as etnias que os compunham e a importância do trabalho jesuítico na fixação desses grupos ao território. Moreira define três tipos de aldeias administradas pelos jesuítas: (1) as aldeias de serviço do Colégio, (2) as aldeias do serviço Real e (3) as aldeias de repartição (130-131). Por outro lado, destaca-se a importância paramilitar dos indígenas aldeados, que protegiam o território dos ataques de outros povos guerreiros (europeus ou americanos). Os inacianos são descritos como destacados mediadores entre a Coroa e os povos indígenas, encarregando-se da evangelização como fase sucessiva e necessária da conquista mediante a guerra. Por outro lado, a autora destaca o trabalho dos religiosos em aprender as línguas locais e interpretar a cultura dos indígenas, dando a entender que, nesse processo de contato, “escolhiam determinados códigos em detrimento de outros e procuravam neutralizar o processo de conquista e subordinação” (113). Para a autora, isso caracterizaria a presença de uma verdadeira relação intercultural entre os indígenas e os inacianos das aldeias do Espírito Santo.

Do terceiro capítulo em diante, a autora entra definitivamente na cronologia pós-Pombal, tratando as diversas vicissitudes inauguradas com a legislação indigenista aprovada a partir de 1750. O capítulo terceiro trata de uma das principais consequências políticas do Diretório dos Índios – a capacidade de autonomia e autogoverno – ilustradas na conversão das duas maiores aldeias da capitania (Nossa Senhora da Assunção de Reritiba e Santo Inácio e Reis Magos) em Vilas (Nova Benevente e Nova Almeida). Vânia Moreira repassa os debates da Segunda Escolástica relativos à liberdade das pessoas e bens dos aborígenes e, analisando as leis pombalinas, considera que “o que a legislação efetivamente reconheceu e prometia garantir aos índios era a posse e o domínio das terras de seus aldeamentos” (144). A Lei de 6 de junho de 1755 teria especialmente assegurado sua liberdade, propriedade e autogoverno mediante sua equiparação aos demais vassalos da Coroa. Essas medidas foram limitadas pela restituição da tutela mediante o Diretório dos Índios, analisado pela autora neste capítulo (151-158). Em seguida, é explicado o processo de implantação do Diretório no território do Espírito Santo, destacando aspectos como a relação econômica das novas vilas indígenas com o resto de vilas da capitania, os processos eletivos que garantiam a preeminência indígena nas Câmaras, os atos de gestão local do patrimônio e as medidas de controle dos costumes levadas a cabo pelas autoridades – especialmente em relação com as mulheres indígenas.

O capítulo 4 recupera a Lei de 4 de abril de 1755, que incentivava o casamento entre indígenas e brancos como forma de assimilar aqueles à sociedade colonial. A autora destaca o assimilacionismo das políticas pombalinas, interpretando como eminentemente cultural a discriminação no período, e adotando, portanto, as posições que preferem reservar o termo “racismo” para os processos de racismo biologicamente fundamentado (210). Recuperando a argumentação dos inícios da colonização, que caracterizou os indígenas como sujeitos que viviam no “estado natural”, a autora percebe uma continuidade entre essa concepção e as ideias que presidem a abertura do século XIX, onde os indígenas eram acusados de carecer de “vida civil”, continuidade que só seria quebrada com a irrupção do racismo biologicista na segunda metade do século XIX. Para falar sobre políticas matrimoniais, a autora retorna uma vez mais aos relatos dos primeiros missionários no continente, tratando de reconstruir os costumes dos indígenas no relativo às práticas sexuais, alianças afetivas, vestimenta etc. A autora recorda o papel histórico da instituição do matrimônio para a consolidação do poder da Igreja desde as reformas gregorianas, destacando que também na América essa intervenção na organização familiar indígena foi uma política de longa duração (236). Na última seção do capítulo, a autora recupera os seus trabalhos sobre a interpretação que os indígenas da vila de Benevente fizeram das políticas matrimoniais e territoriais contidas no Diretório pombalino. Através de um estudo específico de caso, ela mostra que esses índios interpretaram que o aforamento de terras a moradores brancos, permitido no artigo 80 do Diretório, estava condicionado à sua união em matrimônio com alguma índia da aldeia.

Vânia Moreira volta a tratado desse tema no capítulo seguinte, dedicado às questões de luta pela terra coletiva. A autora destaca que durante a vigência do Diretório os ouvidores de comarca se encarregavam da administração dos bens dos índios, enquanto os diretores eram os responsáveis pela administração das suas pessoas. Para Moreira, as críticas da historiografia à figura dos diretores devem ser tomadas com cautela, pois ela observa que nas duas vilas de índios do Espírito Santo os conflitos entre índios e diretores eram habituais, e que na prática estes acabavam tendo um poder de mando relativo (271). Ela destaca, além do mais, que durante esse período os indígenas foram efetivamente preferidos para os cargos de governo municipal, o que inclusive propiciou a consolidação de uma elite indígena muito ativa na cena política local. Essa situação começou a mudar no fim do século XVIII, com o aumento das intrusões de brancos e pardos nas terras indígenas, garantidas pelo aval das autoridades chamadas, em princípio, a proteger os interesses indígenas (neste caso, os ouvidores de comarca). Assim, ao mesmo tempo que os indígenas eram cada vez menos preferidos para os cargos municipais, as terras eram cada vez mais aforadas a brancos e pardos pelos mesmos poderes municipais. Segundo a autora, essa situação se manteve até o século XIX, pois ela documenta um conflito ocorrido na vila de Nova Almeida em 1847, no qual a Câmara municipal argumentara que levava ao menos 79 anos aforando as terras indígenas a brancos. Em alguns momentos, essas incursões em períodos muito anteriores ou muito posteriores aos fatos narrados podem conduzir a interpretações por vezes anacrônicas, que não tomam em conta o contexto do momento de produção do documento. Em relação ao documento de 1847, por exemplo, Moreira critica a afirmação da Câmara de que os índios eram somente usufrutuários das terras, e não os seus donos. Para a autora, a afirmação é criticável porque as terras não pertenciam ao município, mas sim aos índios, e deveriam ser protegidas segundo as leis específicas que regulavam o patrimônio indígena. Não obstante, segundo o Regulamento das Missões, aprovado dois anos antes do conflito, os índios aldeados eram somente usufrutuários das terras que ocupavam, ainda que contassem com a garantia de não ser expulsos e com a possibilidade de converter-se em proprietários após 12 anos de cultivo ininterrupto (BRASIL, 1845, art. 1.15º). O capítulo conclui, em qualquer caso, retornando ao final do século XVIII e sugerindo que esses episódios de traição por parte das autoridades chamadas a protegê-los permaneceram na memória coletiva dos moradores indígenas. Mais de vinte anos depois dos episódios, os nativos continuavam narrando aos viajantes a pouca confiança que depositavam na justiça institucional.

O último capítulo adentra no processo de subalternização dos indígenas que se abriu com o século XIX e a chegada da família real ao Brasil. Para a autora, um dos fatores que contribuiu para a progressiva exclusão dos índios dos cargos municipais foi a revogação do Diretório em 1798, porque implicou a eliminação dos privilégios dos índios e a sua equiparação jurídica ao status dos brancos. A autora conta que, ao mesmo tempo, essa equiparação só foi efetiva naqueles pontos prejudiciais à autonomia indígena, pois na prática o cargo de Diretor foi recriado, por exemplo, na vila de Nova Almeida em 1806, com o adendo de que esses novos Diretores exerciam funções mais restritas e coercitivas do que os antigos escrivães-diretores, e respondiam a uma configuração diversa do poder. Moreira conta como o sistema de trabalho compulsório foi se tornando muito mais pesado, marcado pela violência e validado pela “escola severa” do período joanino. Nesse sentido, a autora sugere que as Cartas Régias de 1808 que voltavam a permitir a “guerra justa” tinham também como objetivo reencenar a potência da monarquia, que se encontrava num contexto de crise após a fuga da Casa Real sob a ameaça de invasão napoleônica (318). No processo, reforça-se a noção de menoridade jurídica do indígena, e a subsequente submissão à tutela. Moreira conta que no Espírito Santo essa tutela foi exercida especialmente por particulares que eram encarregados de educá-los, cristianizá-los e civilizá-los. Outra faceta da menoridade jurídica era a tutela pública, que se traduzia em uma série de mecanismos que em última instância visavam ao controle social e ao trabalho coercitivo. Assim, muitos indígenas foram recrutados para o serviço militar, especialmente quando mantinham meios de vida diferenciados da cultura do trabalho nos termos europeus. Destarte, os índios que viviam da caça, pesca, roça e atividade madeireira eram os mais vulneráveis a recrutamentos forçados. Este caráter forçoso do recrutamento foi especialmente evidente porque a prestação de serviços militares à Coroa deixou de ter como contraprestação as tradicionais garantias de direito à terra, proteção e direitos específicos. O resultado, segundo Moreira, foi um significativo movimento diaspórico de indígenas aos sertões cada vez mais distantes do controle institucional, muitas vezes com as trágicas consequências de perda de laços com as suas antigas comunidades de origem, além da perda dos privilégios jurídicos reconhecidos aos índios aldeados.

Ao narrar os acontecimentos ao longo do livro, Vânia Moreira se esforça por destacar as estratégias dos indígenas para conseguir manter suas posições no contexto da conquista, esforço que se inserta numa agenda indigenista que vem buscando identificar o seu agenciamento e protagonismo como sujeitos da história. É uma tarefa que durante os últimos vinte anos vem rendendo prolíficos resultados, ainda que sejam insuficientes para situar os indígenas como agentes nos relatos não-indigenistas da história brasileira, como destacou a própria autora alguns anos atrás (MOREIRA, 2012). Por outro lado, talvez seja necessária certa cautela ao referir-se à relação entre indígenas e missionários como uma relação intercultural. Especialmente porque dentro dos estudos culturalistas a noção de diálogo intercultural vem sendo criticada por partir de um pressuposto de igualdade entre as partes que não leva em consideração a problemática da violência intrínseca à noção de universal que a cristandade e a modernidade europeia carregam, o que torna essa noção, portanto, inaplicável nos casos de identidades culturais ou reivindicações particularistas que desafiam os pressupostos do liberalismo econômico e do capitalismo mundializado – como ocorre, atualmente, com as demandas territoriais dos diferentes povos indígenas brasileiros (ÁLVAREZ, 2010).

Por momentos fica a sensação de que os jesuítas eram um mal menor no contexto da colonização, já que com eles era possível o diálogo, enquanto que com os poderes locais só imperava a força. A mesma autora, porém, frisa que a evangelização era um braço necessário da conquista violenta, que serviu para legitimá-la num momento no qual a Coroa não exercia nenhum tipo de controle efetivo sobre o território. Também é perigoso, nesse sentido, afirmar que a expulsão jesuítica acarreou uma política laica de civilização (88), já que no Diretório dos Índios o Reino reclamava para si a jurisdição temporal sobre os aldeados, mas continuava a encarregar a tarefa de evangelização e jurisdição espiritual aos representantes da igreja católica.

Tudo indica, portanto, que se existiu algum nível de diálogo prolífico entre jesuítas e indígenas, esse só foi possível pela existência de uma conjuntura em que também havia outros interesses em disputa, como os dos moradores e representantes do poder régio. Como a própria autora mostra em seu trabalho, a expulsão dos jesuítas abriu um período em que os indígenas conseguiram conservar e inclusive reforçar uma efetiva dimensão de autogoverno, que começou a desmoronar definitivamente com a mudança drástica de conjuntura aberta pelas revoluções liberais na Europa e a necessidade de reafirmação e consolidação do poder por parte das Coroas portuguesa e, posteriormente, brasileira.

Referências

ALVAREZ, Luciana. Mas alla del multiculturalismo: Critica de la universalidad (concreta) abstracta. Filosofia Unisinos n. 11, v. 2, p. 176-95, setembro 2010.

BRASIL. Decreto n. 426 – de 24 de julho de 1845 que contem o Regulamento acerca das Missoes de catechese, e civilisacao dos Indios. In Colleccao das leis do Imperio do Brasil de 1845. Tomo VIII, parte II, p. 86-96. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1846.

CLAVERO, Bartolome. Derecho indigena y cultura constitucional en America. Mexico: Siglo Veintiuno Editores, 1994.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislacao Indigenista no Seculo XIX. Sao Paulo: Edusp, 1992.

HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas. As bem-aventurancas da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. Sao Paulo: Annablume, 2010.

MOREIRA, Vania Maria Losada. Reinventando a autonomia: Liberdade, propriedade, autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo, 1535-1822. São Paulo: Humanitas, 2019.

MOREIRA, Vania Maria Losada. Os indios na historia politica do Imperio: avancos, resistencias e tropecos. Revista Historia Hoje n. 1, v. 2, p. 269-74, 2012.

Camilla de Freitas Macedo – Universidad del País Vasco. Bilbao – País Vasco – España.


MOREIRA, Vania Maria Losada. Reinventando a autonomia: Liberdade, propriedade, autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo, 1535-1822. São Paulo: Humanitas, 2019. Resenha de: MACEDO, Camilla de Freitas. Autonomia como agência: o caráter polifacetado da história de luta indígena no Espírito Santo. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

A cidade e suas imagens / Revista Maracanan / 2020

A definição de “cidade” e “imagem” não é tarefa epistemológica simples e o cruzamento das apreensões já propostas pode levar a um labirinto tão desafiador quanto atraente. São duas coordenadas complexas, cujas relações desenham planos intrincados, exigindo uma abordagem multidisciplinar. O que define uma cidade? Seu tamanho, suas formas, suas funções, seu contingente populacional? Suas redes de cultura? O que é uma imagem e quanta informação ou material sensível cabe numa tela, num quadro, num muro?

Os coordenadores deste dossiê, pesquisando diferentes temas, se formaram a partir dessas miradas sobre a cidade e suas imagens, expressas nas suas teses de doutoramento. Amanda Danelli Costa investigou as reformas urbanas e a modernidade carioca a partir das obras, literária e fotográfica, de João do Rio e Augusto Malta. Enquanto o cronista elaborava interpretações e representações do Rio de Janeiro, disputando a narrativa moderna da cidade nos periódicos; Augusto Malta inventariava as transformações da urbes, assentado em uma tradição ilustrada, tanto do ponto de vista técnico quanto pela referência civilizadora vinculada ao urgente progresso material urbano.1

Carlos Eduardo Pinto de Pinto abordou a representação da cidade do Rio de Janeiro pelo Cinema Novo entre 1955 e 1970, abarcando o surgimento das ideias que embasariam o movimento nos anos 1960, bem como suas mutações ao longo da década. A vinculação do Cinema Novo à vivência urbana carioca define um de seus perfis e fornece elementos para a elaboração de imaginários sociais na e sobre a cidade. Capital federal até 1960, o Rio começou a década sendo transformado em Estado da Guanabara, depois de perder o posto de cabeça do país para Brasília. Ainda assim, a capitalidade foi o eixo norteador das obras analisadas, que mobilizam duas estratégias de representação: a oposição da modernidade urbana às mazelas sociais, caso de Rio, 40 graus, Cinco vezes favela e A grande cidade; ou a evocação da capitalidade em sua relação com os traços identitários da jovem classe média, como Os cafajestes, O desafio, Garota de Ipanema e Todas as mulheres do mundo. Através de agenciamentos diversos, os atores sociais abordados pela pesquisa – profissionais envolvidos nas produções dos filmes, críticos, teóricos, políticos e outros – se apropriaram das obras, pondo em disputa os imaginários urbanos e as práticas sociais.[2]

Viviane da Silva Araujo investigou como as transformações urbanas ocorridas em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX tornaram-se temas para fotógrafos locais e estrangeiros. Analisando as duas cidades comparativamente, a tese identifica na produção fotográfica algumas das tensões próprias à experiência da modernidade urbana latino-americana, onde o desejo de adequar-se a um modelo ideal de civilização não foi capaz de produzir uma sociedade ordenada segundo os preceitos do almejado progresso material e moral, mas experimentou uma realidade imprevista, original e complexa. Realidade esta que a fotografia não só captou, mas contribuiu para criar maneiras de imaginar, ver e sentir ambas as cidades em acelerado processo de transformação naquele período.[3]

Frequentemente, e desde há muito tempo, as urbes vêm sendo tematizadas por diferentes imagens [4] – dos registros cartográficos às mídias digitais, passando pelas artes plásticas, fotografia, cinema, TV, vídeo, grafite e pichação – produzindo representações que alargaram as possibilidades de interpretação e produção de sentidos sobre as cidades, vistas em perspectiva histórica. Desse modo, as cidades em ampliação e transformação foram largamente fixadas em imagens cada vez mais várias e complexas, um processo que não ficou de fora do conjunto de interesses dos historiadores.

Observadas a partir da modernidade, cidade e imagem também ensejaram reflexões sobre a subjetividade moderna e as novas formas de estar no mundo, interpretá-lo e representá-lo. [5] A invenção da fotografia, na primeira metade do século XIX, facilmente associada à consequente mudança do padrão de visualidade, só se efetivou como um invento possível em razão de uma transformação da própria subjetividade moderna na passagem do século XVIII para o XIX. [6] As grandes cidades, que enfrentaram o frenesi da revolução urbana oitocentista, foram os palcos principais para esse novo “observador de segunda ordem”. [7] Sujeitos e cidades eram, enfim, atravessados e traduzidos pelo registro da reprodutibilidade técnica.[8]

Movimento semelhante pode ser observado nas relações entre cidades e cinema, que tem interessado, sobretudo, à historiografia norte-americana e francesa. De modo geral, os americanos focam a importância simultânea da cidade e do cinema para a conformação da modernidade, enquanto os franceses privilegiam a representação do urbano pelos filmes.[9] Entre a produção francesa, cabe destacar, além das obras homônimas La ville au cinéma, também Visions urbaines, Cités-cinés, Ville et cinéma e Un nouvel art de voir la ville et de faire du cinéma. [10] Nessas obras, a maioria formada por reunião de artigos, é flagrante o recurso à interdisciplinaridade, havendo contribuição de historiadores, cineastas, críticos, cenógrafos, antropólogos, sociólogos, linguistas, comunicólogos, arquitetos e urbanistas. Por mais que sejam variadas as abordagens, todas confluem na crença de que os filmes urbanos não oferecem um acesso direto às cidades, sendo, ao contrário, considerados reinvenções destas, ao mesmo tempo em que constituem suas realidades.

Se por um lado observamos a multiplicação de pesquisas que tomavam os registros imagéticos, especialmente depois da criação da fotografia – e, mais tarde, do cinema – como fontes para a análise das transformações urbanas, dos códigos sociais e das sociabilidades, mais recentemente se tornaram frequentes os trabalhos que vão às cidades para compreenderem como diferentes grupos produzem registros variados no próprio corpo da urbes, criando imagens (pichações, grafites, estênceis) que revelam distintas urbanidades, relações de poder e apropriação possíveis.

A fotografia e o cinema também assumem relação forte e estreita com a memória, seja de indivíduos, grupos sociais ou de cidades. [11] Suas dinâmicas de recorte de um tempo e espaço, que sobrevive para além do momento do clique e da filmagem, contribuiu vivamente para que frequentemente assumam papel de gatilho ou ponto de partida para a memória. Aquilo que aqui chamamos de dinâmica própria da fotografia e o específico fílmico também se aproximam da maneira como a memória se organiza: seja em uma foto, em um filme, ou seja, com a memória, é impossível lembrar tudo ou colocar tudo dentro do quadrado. [12] Os três implicam seleção, esquecimento e tomadas de pontos de vista. [13]

Na Europa, abordagens dessa natureza foram iniciadas nos anos 1960, pela Nova História Urbana, tendo Richard Sennett como figura mais proeminente, e pela História da Arte, com destaque para Giulio Carlo Argan.[14] Como alternativa a abordagens que equacionam o objeto “cidade” a processos de urbanização (dimensões, formas, funcionalidades), tais enfoques privilegiam as cidades como objetos singulares, atuando como centro geradores de identidades. [15] Argan, por exemplo, defende que a cidade seja um acúmulo de bens culturais (incluindo-se as imagens) e não apenas “o produto das técnicas de construção [que] também concorrem para determinar a [sua] realidade visível”. [16]

O papel da cidade como o locus a partir do qual se imagina, projeta e se representa a experiência moderna e sua realidade visível também esteve no cerne da reflexão de estudiosos latino-americanos neste mesmo período. Em 1976, o historiador argentino José Luis Romero publica sua mais importante obra, cujo subtítulo, “as cidades e as ideias”, já expõe a permanente tensão entre a cidade real e a cidade imaginada. Tal argumento é desenvolvido mais tarde por pesquisadores como Adrián Gorelik, que adverte que a modernidade urbana experimentada na América Latina foi original e complexa e, se comparada às seculares cidades europeias, a cidade latino-americana não decorre dos processos de modernização, mas antecipa a eles, como um instrumento capaz de “criar” uma sociedade moderna.[17]

No Brasil, pesquisas que relacionam cidade, modernidade e imagem ganharam força a partir dos anos 1980, convivendo com uma produção – naquele momento, mais vasta – a respeito das relações entre cidade e literatura. Eram, na sua maioria, reflexões sobre registros fotográficos realizados nas primeiras décadas do século XX nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, resultados das pesquisas de mestrado e doutorado de Ana Maria Mauad, Maria Inez Turazzi, Vânia Carneiro de Carvalho e de Charles Monteiro. Desde então, multiplicaram-se os enfoques, com uma seleção variegada de urbes, tipos de imagens e recortes cronológicos.[18]

O encontro entre o urbano e o imagético por meio da análise de uma variedade de cidades, reais e imaginárias, e de imagens dos mais diferentes suportes, está presente nos 18 artigos e na entrevista que compõem a presente edição da Revista Maracanan. O número expressivo de submissões que atenderam à chamada nos alegrou, ao demonstrar a potencialidade do tema. Esperamos que a publicação deste dossiê contribua para o reconhecimento e a ampliação das abordagens e significados teórico-metodológicos a respeito das interfaces entre cidade e imagem.

A entrevista que abre o dossiê foi realizada ao longo de uma noite muito agradável na companhia (virtual) de Ana Maria Mauad. A pesquisadora e professora nos apresentou um vasto panorama a respeito das relações entre as cidades e suas imagens, centrando-se nos trabalhos sobre fotografia, tema da maioria de suas pesquisas, mas alcançando também outros suportes. O registro dessa conversa dá acesso a um vislumbre dos caminhos percorridos por uma das primeiras historiadoras, no Brasil, a se dedicar às relações entre história e imagem.

Entre os artigos que compõem o dossiê, a estereoscopia e o seu desenvolvimento no Brasil, entre 1850 e 1950, são apresentados por Maria Isabela Mendonça dos Santos a partir dos acervos de fotógrafos profissionais e amadores que produziram uma variedade de vistas de cidades brasileiras, contribuindo para a formação e divulgação de uma imagem do Brasil, exótica e civilizada, enquanto redimensionava a própria subjetividade moderna pelo olhar. A produção amadora de estereoscopias de Guilherme Antonio dos Santos por mais de cinquenta anos, resultando em um acervo particularmente extenso, é objeto de análise neste artigo que observa a produção de imagens sobre a cidade do Rio de Janeiro como artifícios da construção de uma paisagem ideal.

Em diálogo com o campo da história pública, Michel Kobelinski analisa pinturas, gravuras, fotografias e narrativas – entendidas aqui como lugares de memória – produzidas por Estanislau Schaette, Hermann Schiefelbein, Arthur Wischral e Hugo Hegenberg sobre a identidade teuto-brasileira e seus efeitos na sociedade paranaense na primeira metade do século XX. Essas obras são tomadas por seu caráter pedagógico que, além de educar sobre o passado, contribuiu para a aproximação com histórias plurais e ainda para a produção de vínculos coletivos.

O artigo de Samuel Oliveira aborda fotorreportagens que tematizam a favela publicadas na revista O Observador Econômico e Financeiro – especializada em análises econômicas e sociais e articulada ao projeto desenvolvimentista das décadas de 1940 e 1950. Em sua análise, demonstra como tais matérias reiteraram os estigmas da pobreza urbana e sua racialização por meio dos registros fotográficos das favelas cariocas e dos contrastes estabelecidos com o padrão de vida da classe média.

Em artigo que analisa a Primeira Exposição Fotográfica de Motivos Belorizontinos, ocorrida em 1953, fruto de uma parceria entre o Foto Clube de Minas Gerais e a Prefeitura de Belo Horizonte, Lucas Mendes Menezes investiga relações entre fotografia amadora e poder público. Além da análise da composição visual de fotografias reproduzidas no catálogo desta exposição, o autor explora o olhar que os fotógrafos lançaram sobre a cidade – especialmente sobre os seus elementos arquitetônicos – assim como seus condicionamentos e espaços de atuação, entendendo a fotografia no conjunto das iniciativas culturais do período e suas interseções com o poder público.

Débora Bueno, Ricardo Freitas & Vania Fortuna investigam as fotografias de César Barreto, tomando-as como elementos constitutivos da memória urbanística da cidade do Rio de Janeiro. Fotógrafo oficial da “cidade olímpica”, coube a César Barreto documentar, entre 2011 e 2013, as reformas que a cidade enfrentava para abrigar os Jogos Olímpicos de 2016. As fotografias publicadas em um portal institucional eram peças imagéticas centrais no processo de valorização da marca-cidade, a fim de torná-la mais competitiva no concorrido mercado internacional de cidades globais. Mais do que registrar o processo de revitalização da zona portuária, como quem guarda as lembranças do que fora a cidade, as fotografias de César Barreto apontavam para o futuro olímpico do Rio de Janeiro, como destino incontornável da cidade maravilhosa.

Utilizando a metodologia de leitura da imagem da cidade de Kevin Lynch, Paulo Barata identifica o acúmulo de tempos desiguais presentes no centro comercial de Campo Grande, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, no século XXI. O autor nos convida a observar com detalhes como esta localidade outrora rural apresenta hoje uma paisagem tipicamente urbana.

A cultura midiática da Belle Époque carioca é desnudada por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo Souza, que analisa como as crônicas literárias registraram novos modos de ver e narrar a cidade no contato com os novos aparatos e imagens – produzidas pelo cinema, pela imprensa e expostas em vitrines –, afetando a constituição e a percepção dos sujeitos modernos, expressas nas transformações das sociabilidades e sensibilidades das primeiras décadas do século XX. As crônicas de João do Rio, Olavo Bilac, Benjamin Costallat e Lima Barreto são, neste artigo, exemplos da renovação representativa e da alteração na estrutura de percepção dos sujeitos modernos, revelando a tensão entre o imaginário literário e o imaginário técnico.

Wolney Vianna Malafaia aborda o Rio de Janeiro a partir da oferta de condições materiais e intelectuais para a formação do Cinema Novo brasileiro. Embora aponte alguns traços de representação da cidade em dada filmografia cinemanovista, a proposta principal do autor é pensar a cidade como catalisadora do movimento cinematográfico, ao longo dos anos 1960. Por meio do levantamento de instituições e redes de sociabilidade, o trabalho demonstra o quanto aquela, que até há pouco tinha sido capital do Brasil, seguiu exercendo funções associadas à capitalidade.

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior analisa o filme Notas para uma Oréstia Africana (Appunti per un’Orestiade Africana, Pier Paolo Pasolini, 1969), com vistas a compreender a construção visual das paisagens urbanas e naturais de alguns países africanos no documentário do diretor italiano. Para o enfrentamento do específico fílmico, o autor mobiliza a iconologia, a narratologia histórica e a abordagem filmológica, problematizando o estatuto sócio-histórico das imagens, evidenciando os mecanismos empregados na construção do filme e cruzando os resultados com os escritos sobre cinema.

Mauro Amoroso & Gustavo Romano propõem uma abordagem heurística do modo como o Jornal do Brasil (JB) e o filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) narraram eventos relacionados à “guerra” da Cidade de Deus, conflitos entre traficantes ocorridos na virada da década de 1970 para a de 1980. Em suas análises, os autores levam em consideração a especificidade da linguagem de cada veículo, bem como os diferentes contextos históricos, elencando os elementos constitutivos de cada modo de “ler” ou “ver” os eventos.

Fabio Allan Mendes Ramalho assume perspectiva benjaminiana ao analisar os corpos em perambulação por espaços urbanos, tomados como lugares de encontro afetivo e desejo (homo)erótico. Por meio da análise de três filmes de Marcelo Caetano – Bailão (2009), Na sua companhia (2011) e Corpo elétrico (2017) –, o autor demonstra como a linguagem cinematográfica é capaz de reelaborar, mais do que registrar, a materialidade urbana em consonância com a vivência sexual e afetiva das personagens.

Leonardo Perdigão Leite & Pedro Jorge Lo Duca Vasconcelos investigam novas práticas museais e museológicas na cidade do Rio de Janeiro – o Museu de Favela Pavão-Pavãozinho Cantagalo, a Galeria Providência e o Museu Nami – observando como essas iniciativas se baseiam em visões não ortodoxas de patrimônio, memória e museu. Tais experiências produzem alternativas aos modelos tradicionais e consagrados, apoiadas em uma museologia social, comunitária, popular, informal ou progressista, contribuindo para a construção de outros modos de expressão a partir da subjetivação (reveladas através de grafites, estênceis, murais, painéis) de grupos subalternizados, no lugar de promover a cristalização de identidades.

O grafite é tematizado por Ivânia dos Santos Neves que toma o aniversário de 400 anos de Belém como um período favorável para a reflexão sobre os discursos que forjaram a história oficial da cidade, uma história escrita pelo colonizador, como de tantas cidades latino-americanas, mas que exibe suas fraturas quando movimentos indígenas e outros enunciadores artístico-culturais conquistam espaço na dinâmica de contar a história. Ao contrapor o frontal da Basílica de Nazaré e a escultura de bronze de um indígena de um bairro nobre de Belém e os grafites de artistas locais que retomam a memória indígena em suas produções e visibilizam a pluralidade étnica da cidade, a autora mostra como o grafite visibiliza a presença indígena silenciada no patrimônio oficial.

Ana Paula Alves Ribeiro propõe uma abordagem etnográfica da peça teatral In_Trânsito, encenada pela Cia. Marginal e com direção de Isabel Penoni e Joana Levi, entre 2013 e 2014. Trata-se de uma performance site-specific, partindo da Central do Brasil e estendendo-se por paisagens urbanas fruídas ao longo do percurso ferroviário. O registro da vivência dos múltiplos estímulos propiciados pela experiência, com ênfase nos elementos visuais, permite à autora pensar o Rio de Janeiro em um biênio marcado pelas lutas urbanas manifestadas, entre outras possibilidades, no artivismo (ativismo político executado por meio de ações artísticas).

A sessão de artigos livres também traz trabalhos que abordam o tema da cidade e de suas representações. Propostos para além da análise de suportes imagéticos propriamente ditos, são estudos que igualmente colaboram para ampliar o conhecimento sobre a elaboração de imaginários urbanos e de imagens ideais das cidades em distintos espaços e momentos históricos.

Nesse bojo, o Rio de Janeiro, cidade a partir da qual a Revista Maracanan se comunica com o mundo acadêmico, teve sua gênese marcada por uma disputa de ideais de cidade, o que resultou em tensões em torno da sua dupla fundação, francesa e portuguesa. Apesar da crise que o Estado moderno impôs às individualidades e às cidades-republicanas, a projeção das utopias levadas a frente significava uma resistência do próprio ideal de cidade moderna, de modo que “a noção de utopia qualificava criticamente o desempenho dos homens na cidade projetando-a para fora do espaço real”. [19]

Assim, chegamos ao entendimento de que a cidade, além de recorrentemente aparecer como tema de interesse dos homens de letras desde as fundações das primeiras cidades latino-americanas, significava para eles o lugar primordial – e também inescapável – no qual viveriam a experiência da modernidade, de tal forma que era a partir dessa dupla referência (cidade / modernidade) que eles se constituíram como sujeitos no mundo e, por conseguinte, refletiram sobre a modernidade na cidade. [20] Nesse sentido, como já apontado acima, a experiência moderna nas cidades latino-americanas foi o trampolim para que se produzissem as condições de modernização desses espaços, de suas relações sociais e políticas, bem como de suas representações, de modo que “a modernidade se impôs como parte de uma política deliberada para conduzir à modernização, e nessa política a cidade foi o objeto privilegiado”. [21]

Fabrina Magalhães Pinto apresenta uma leitura da Laudatio de Leonardo Bruni no quattrocento, observando em particular os debates acerca dos ideais republicanos de liberdade, autogoverno e cidadania, neste que é um dos principais elogios da cidade de Florença no período. Entre os séculos XII e XV, Florença, como lócus privilegiado da ação do homem renascentista, experimentou a construção paulatina de um ideal de cidade, fosse no âmbito arquitetônico, político ou das instituições. Nesse momento se conjugaram ambições republicanas com a construção de uma imagem ideal de cidade, onde justiça, racionalidade e liberdade estariam em destaque.

Andréa Cristina de Barros Queiroz nos apresenta o panorama da construção da “República de Ipanema”, como um lugar de vanguarda no Rio de Janeiro, durante os anos 1960. A imagem de cidade maravilhosa fora atualizada por uma boemia-literária a partir das sociabilidades vividas em diferentes espaços de encontro no bairro de Ipanema, como os bares e a praia. Além disso, atribuiu-se ao bairro a condição de polo difusor de uma série de movimentos políticos, sociais e culturais que ocuparam a cena de oposição aos anos de ditadura civil-militar.

A imagem da cidade de Brasília lida como cidade utópica e ícone do desenvolvimentismo brasileiro nos anos 1950 e 1960 ainda se apresenta como a imagem hegemônica da capital federal. No entanto, Lucía Tennina revela-nos a construção de novas miradas sobre a cidade e a partir dela nos saraus das periferias. Espaços contra-hegemônicos, os saraus exploram temas e tensões que transbordam das margens dos enquadramentos apaziguados do Plano Piloto. O cartão postal, expressão da imagem desejável, é a metáfora escolhida para nos falar das pluralidades que não cabem em uma história única.

Hércules da Silva Xavier Ferreira, Luana Campos & Pedro Clerot analisam uma série de grafites e uma escultura que evocam as imagens de três jovens assassinados no Rio de Janeiro em 1998, 2005 e 2017 nas proximidades do túnel Santa Bárbara, que conformaram o que os autores definem como “polígono da violência” ou “circuito da dor”. A criação desses memoriais permite que os transeuntes, moradores ou não da cidade, vejam e sejam afetados pelo conhecimento dessas histórias, ao mesmo tempo em que ressignificam o sofrimento e conformam espaços de resiliência.

Esperamos que a leitura dos artigos deste número da Revista Maracanan contribua para a ampliação de debates e pesquisas interessadas no cruzamento das cidades e suas imagens. Fazemos votos de que o contato com esses textos seja tão instigante e prazeroso para os leitores da revista quanto foi para nós.

Notas

  1. COSTA, Amanda Danelli. Cidade, reformas urbanas e modernidade: o Rio de Janeiro em diálogo com João do Rio e Augusto Malta. 2011. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  2. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Imaginar a cidade real: o Cinema Novo e a representação da modernidade urbana carioca (1955-1970). 2013. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ).
  3. ARAUJO, Viviane da Silva. Fragmentos urbanos da modernidade: a fotografia em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX. 2013. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  4. SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  5. CRARY, Richard. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
  6. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
  7. GUMBRECHT, Han Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
  8. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM, 2013.
  9. CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
  10. JOUSSE, Thierry; PAQUOT, Thierry (dir.). La ville au cinéma: encyclopédie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005; BARILLET, Julie; et al. La ville au cinéma. Arras: Artois Presses Université, 2005; NINEY, François (dir.). Visions urbaines: villes d’Europe a l’ecran. Paris: Éd. Centre Pompidou, 1994; Cités-cinés. Paris: Éd. Ramsay et La Grande Halle; La Villete, 1997. [édité à l’occasion de l’exposition Cités-Cinés]; Espaces et Societes, Paris, L’Harmattan, 86 – “Ville et cinéma”, 1996.
  11. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Câmera-arma: a representação das funções sociais da fotografia em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962). Revista Brasileira de História da Mídia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 151- 158, jul.-dez. 2013.
  12. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Relatos fantasmas: os filmes históricos cinemanovistas e a política cultural da ditadura civil-militar nos anos 1970. REBECA – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, São Paulo, v. 2, n. 1, jan.-jun. 2013.
  13. COSTA, Amanda Danelli. Augusto Malta e a fotografia da alma dos kiosques cariocas. Acervo, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, v. 32, n. 2, p. 117-132, maio-ago. 2019.
  14. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1999; ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  15. SILVA, Luís Octávio da. História urbana: uma revisão da literatura epistemológica em inglês. EURE, Santiago, v. 28, n. 83, maio 2002.
  16. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte… Op. cit., p. 75
  17. ROMERO, José Luís. América Latina: as cidades e as ideias. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009; GORELIK, Adrián. Ciudad, modernidad, modernización. Universitas Humanística, Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana, n. 56, jun. 2003.
  18. MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social, na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. 1990. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ); TURAZZI, Maria Inez. As artes do ofício: fotografia e memória da engenharia no século XIX. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Do indivíduo ao tipo: as imagens da (des)igualdade nos álbuns fotográficos da cidade de São Paulo na década de 1950. 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo; MONTEIRO, Charles. A inscrição da modernidade no espaço urbano de Porto Alegre. 1992. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  19. RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. América Renascentista- um ensaio: as experiências modernas no espaço da Baía de Guanabara – a dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre utopias e ideais. MORUS, Campinas (SP), UNICAMP, v. 3, p. 213-242, 2006.
  20. COSTA, Amanda Danelli. A produção de guias de viagem por intelectuais brasileiros: um ensaio. In: MARAFON, Glaucio; FACCIOLI, Marina; SÁNCHEZ, Meylin Alvarado. Patrimônio, território e turismo no Brasil, Costa Rica e Itália. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020.
  21. GORELIK, Adrián. Ciudad, modernidad, modernización. Op. cit., p. 13. Tradução nossa. No original: “la modernidad se impuso como parte de una política deliberada para conducir a la modernización, y en esa política la ciudad fue el objeto privilegiado”.

Referências

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Amanda Danelli Costa – Professora Adjunta do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Campus Teresópolis. Doutora e Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0002-6845-4733  Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 1855259803755979

Carlos Eduardo Pinto de Pinto – Professor Adjunto do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em História. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense; Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7448-2565 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 2703751377441692

Viviane da Silva Araujo – Professora Adjunta do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Doutora e Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7378-0210 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 5388549060655237


COSTA, Amanda Danelli; PINTO, Carlos Eduardo Pinto de; ARAUJO, Viviane da Silva. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores (I) / HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática / 2020

Quando fomos convidados pelo editor chefe da HISTEMAT para a tarefa de organizar o número temático de 2020, sentimos o peso da responsabilidade de executar um bom trabalho dada a qualidade das publicações presentes nesta revista. A HISTEMAT tem se consolidado como um importante periódico da área da História da educação matemática e nesse sentido cumpre importante papel na disciplinarização do campo científico (Hoffmann, Costa & Valle, 2019).

Como resposta ao convite formulado, decidimos então propor o tema Histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores. Ao iniciarmos as divulgações no âmbito internacional e nacional, rapidamente tivemos o acolhimento de pesquisadores comprometendo-se a encaminhar propostas. Isso demonstrou o reconhecimento pelos investigadores do espaço assumido pela HISTEMAT no campo científico da História da educação matemática. Agradecemos aqueles que responderam a esta chamada. Procuramos identificar, dentre os artigos submetidos, os que melhor apresentaram aderência a proposta.

Os artigos apresentados neste número contemplam divulgações de pesquisas e estudos de autores em âmbito internacional e nacional. Como resultado deste processo, apresentamos neste Número Temático doze artigos dos quais quatro foram escritos por pesquisadores estrangeiros e oito foram escritos por pesquisadores brasileiros.

Dos quatro primeiros artigos estrangeiros podemos observar distintas abordagens metodológicas abrangendo temas relacionados a história do saber matemático em espaços de ensino e formação, particularmente em Portugal, Espanha, México e Venezuela. Privilegiou-se a diversidade geográfica não necessariamente vinculados a uma periodização no desenvolvimento de seus estudos ou mesmo no tratamento do nível de ensino.

O primeiro artigo intitulado CONSTRUINDO O CONHECIMENTO PEDAGÓGICO DO CONTEÚDO EM TEMPOS DA MATEMÁTICA MODERNA: as múltiplas facetas da lógica de autoria de José Manuel Matos e Teresa Maria Monteiro intenta caracterizar os significados atribuídos ao termo “lógica” em tempos da reforma da Matemática Moderna. As análises apresentadas se apoiam sobre um corpus de 26 trabalhos produzidos pelos estagiários do Liceu Pedro Nunes em Lisboa entre 1956 e 1968. Esta instituição, no período considerado, era responsável pela formação de professores de matemática do ensino secundário em Portugal.

A MATEMÁTICA PARA ENSEÑAR EN LOS LIBROS DE AURELIO RODRÍGUEZ CHARENTÓN: la numeración y las operaciones é o artigo produzido por Encarna Sánchez-Jiménez e tem como objetivo caracterizar a matemática para ensinar nos livros indicados deste autor. O prof. Charentón está ligado diretamente ao processo de disciplinarização da metodologia da matemática. Essa narrativa se dá nos espaços de formação dos professores normalistas que preparavam futuros professores para ensinar matemática nas escolas primárias espanholas em tempos de difusão da escola nova na década de 1930.

Retrocedendo no tempo, mas mantendo-se na temática dos saberes matemáticos, o terceiro artigo escrito por Alberto Camacho Ríos tem como título EL POSITIVISMO MEXICANO DEBATE SOBRE LOS FUNDAMENTOS DEL CÁLCULO INFINITESIMAL A FINALES DEL SIGLO XIX. Neste trabalho, o autor relata o debate sobre a fundamentação filosófica do cálculo infinitesimal engendrado no Centro de Ensino preparatório de matemática por dois professores que promoveram sua criação em 1867. A Escola Nacional Preparatória é o cenário da discussão presente no texto e esta instituição se desdobra contemporaneamente na Universidade Nacional Autónoma de México.

O quarto artigo, de autoria de Walter O. Beyer K, intitula-se EL CÁLCULO INFINITESIMAL EN LA FORMACIÓN DE INGENIEROS Y SU PROFESORADO EN EL SIGLO XIX VENEZOLANO. Tomando a história de um saber matemático do ensino superior, este texto apresenta resultados de uma investigação sobre o processo que conduziu a incorporação do Cálculo Infinitesimal nos estudos superiores da Venezuela por alguns dos seus docentes na Academia Matemática de Caracas (AMC), na Universidade e Escola de Engenharia. Para este empreendimento o autor se utilizou de outros estudos históricos e bibliográficos, de catálogos comerciais de livros e de bibliotecas, dos informes da AMC, assim como tomou as obras de cálculo infinitesimal que circularam na Venezuela no século XIX.

A partir das contribuições recebidas pelos pesquisadores brasileiros, podemos destacar que no Brasil há, também, um crescente movimento de historiadores da educação matemática preocupados em construir histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores, sob uma variedade de abordagens teóricas, metodológicas e de estilos narrativos, alinhados com certo fazer de uma história dita cultural.

Nessas historiografias, há espaços não apenas para os fatos regulares, mas, ainda, para episódios que fogem ao comum em um dado tempo histórico, sem nenhuma preocupação com grandes sínteses generalistas que tudo explicam independentemente do contexto sociocultural e suas peculiaridades (Vainfas, 1997). Seguem essa ótica as pesquisas nacionais que compõem este número temático.

De fato, tais pesquisas evidenciaram, em primeiro plano, que os saberes matemáticos não foram constituídos no ensino e na formação do professor de forma homogênea, estanque e inflexível nas mais diversas localidades brasileiras em cada tempo histórico-pedagógico (Valente, 2016). Houve, nesse sentido, uma pluralidade de saberes matemáticos, sedimentados por certos ideários de educação e por contextos socioculturais como sendo necessários e importantes para cada uma das dimensões das modalidades de ensino e de formação do professor que ensinaria matemática, em distintos períodos históricos.

Sob o contexto das escolas normais, que formavam o professor que iria lecionar nas escolas primárias brasileiras (Tanuri, 2000), os saberes matemáticos foram analisados em três diferentes cenários.

Nesse sentido, no quinto texto intitulado OS SABERES A ENSINAR DESENHO PARA A ESCOLA NORMAL DO MARANHÃO: um encaminhamento pelas finalidades de ensino, 1905-1934, o autor Marcos Denilson Guimarães direciona sua investigação para as finalidades do saber Desenho na formação dos professores normalistas maranhenses durante a primeira metade do século XX.

Os dois textos seguintes refletem uma política de expansão da educação baiana para o interior voltada para a formação do professor na década de 1950. Assim, ambos os textos foram construídos no mesmo espaço geográfico, isto é, no estado da Bahia e possuem periodizações semelhantes. Contudo, revelam cenários diferentes, tanto em termos de localidades, bem como em relação às categorias administrativas das instituições analisadas.

Com efeito, o texto SABERES RELACIONADOS AO ENSINO DE MATEMÁTICA NO CURSO PEDAGÓGICO DO GINÁSIO DE JEQUIÉ de Marly Gonçalves da Silva e Janice Cassia Lando direciona-se para os saberes matemáticos, mais precisamente, para aqueles presentes nas disciplinas de Matemática, Estatística e Desenho, no período de 1954 a 1966. Tais saberes, faziam parte das práticas pedagógicas dos professores formadores do Curso Pedagógico do Ginásio de Jequié, uma instituição de iniciativa privada criada no município de Jequié.

Já o trabalho de Wesley Ferreira Nery, Larissa Pinca Sarro Gomes e Martha Raíssa Iane Santana da Silva intitulado SABERES RELACIONADOS AO ENSINO DE MATEMÁTICA NO CURSO PEDAGÓGICO DO GINÁSIO DE JEQUIÉ contempla o ensino dos saberes aritméticos na Escola Normal Teodoro Sampaio no período de 1954 a 1963. Trata-se de um estabelecimento público, localizado na cidade de Santo Amaro, outra cidade do interior da Bahia.

O oitavo artigo, A MATEMÁTICA PROFISSIONAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES, escrito por Nara Vilma Lima Pinheiro, também aborda os saberes profissionais em um espaço específico de formação do professor que iria ensinar matemática em escolas primárias. No entanto, sua análise sobre a constituição e sistematização de uma matemática profissional própria na formação do docente foi circunscrita ao Instituto de Educação do Rio de Janeiro, criado na década de 1930. Esse Instituto, diferentemente ao modelo de formação que predominava até aquela conjuntura nas escolas normais, trouxe uma estruturação fundamentada nos saberes advindos das ciências da educação a partir de uma preocupação com o desenvolvimento infantil.

De outra parte, os autores Jonathan Machado Domingues e Denise Medina de Almeida França, no nono texto deste número temático da HISTEMAT, intitulado DIDÁTICA ESPECIAL DA MATEMÁTICA: em busca dos saberes da profissão docente fazem, do mesmo modo, uma investigação dos saberes da profissão docente, mas debruçados na obra de Manuel Jairo Bezerra, intitulada “Didática Especial da Matemática”, publicada em 1958.

Para além dos saberes matemáticos na formação do professor, essa edição temática, ainda, contemplou trabalhos que tiveram um enredo construídos em torno dos saberes matemáticos presentes em duas modalidades de ensino: primário e industrial.

Na ambiência do ensino primário, Elenice de Souza Londron Zuin conduz a análise de seu artigo FRAÇÕES NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DE SANTA CATARINA: um olhar sobre planos de aula da década de 1940 para o ensino de frações a partir de planos de aula de aritmética para o 3º e 4º anos, elaborados por docentes de escolas do Estado de Santa Catarina, nos anos de 1941 e 1942.

Outro estudo, nessa mesma modalidade de ensino, foi realizado por Nícolas Giovani da Rosa e Elisabete Zardo Búrigo. Esses autores no texto APRENDER E DECORAR: aulas de matemática da Escola Evangélica Duque de Caxias nos anos 1960 realizam uma investigação sobre as aulas de matemática ministradas na Escola Evangélica Duque de Caxias, Rio Grande do Sul, nos anos de 1960, por meio de entrevistas com ex-alunas e uma professora dessa Escola e, ainda, fazendo uso de um Relatório de Estágio escrito no ano de 1967.

Por último, finalizando o rol de artigos deste número temático da HISTEMAT tem-se o texto de Oscar Silva Neto e David Antonio da Costa intitulado SABERES MATEMÁTICOS NO ENSINO INDUSTRIAL: o caso dos números complexos e incomplexos, produzido na esfera do ensino industrial brasileiro, criado mediante promulgação do Decreto-Lei nº 4073, de 30 de janeiro de 1942. Em tal texto, os autores analisam o ensino dos números complexos e incomplexos (não entendidos como números imaginários) nos cursos industriais básicos brasileiros por meio da obra “Caderno de Matemática”, de Arlindo Clemente, publicada no ano de 1955.

Assim, a partir desse universo de 12 pesquisas, foi possível perceber que os saberes matemáticos passaram por processos de transformações a depender dos objetivos educacionais e do contexto sociocultural que vigoravam em cada tempo histórico, nas mais diversas localidades internacional e nacional. Sob essa ótica, ratifica-se, portanto, uma compreensão problematizadora acerca da pluralidade de histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores.

Boa leitura!

Referências

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David Antonio da Costa

Eliene Barbosa Lima

Os organizadores,


COSTA, David Antonio da; LIMA, Eliene Barbosa. Editorial. HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática. São Paulo, v.6, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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A historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a escrita e o tempo / Anos 90 / 2020

O número que aqui apresentamos aos leitores da Revista Anos 90 é composto por sete trabalhos relativos ao Dossiê A Historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a Escrita e o Tempo, além de dois artigos livres. Todos eles se debruçam sobre um tema cuja trajetória é tão extensa quanto volumosa: a atividade missionária da Companhia de Jesus, e a produção historiográfica a respeito dela.

Podemos dizer que a ação dos inacianos em relação às populações dos territórios não europeus, para onde eles se expandiram desde os inícios do século XVI, foi uma das marcas mais significativas da primeira globalização (ALMEIDA, 2010; ARANHA, 1998; CARNEIRO DA CUNHA, 1998; GRUZINSKI, 2004). Nos territórios do Novo Mundo, a nova Modernidade buscou ser, como afirmou Bartomeu Meliá (MELÍA, 2006), “sem limites”, uma vez que visava a agir sobre os colonos europeus, assim como sobre as populações ameríndias, trabalhando para uma transformação que se processava em todos níveis, na sociedade e na economia, na vida familiar e material, no espiritual e no simbólico. As suas “missões”, especialmente aquelas que tinham por método a reducción a pueblos, foram uma singular “experiência de contato”, cuja complexidade e cujos desdobramentos gerou perene interesse de especialistas de variados campos. De uma perspectiva geral, aquilo que os jesuítas definiram como “missão por redução” pode ser entendida, assim, como um “fato social total”, não isenta de tensões.

No Brasil, os estudos sobre os vários espaços missionários em que os jesuítas atuaram, conheceram uma significativa renovação desde os finais do século XX, quando foi possível superar, a partir de uma produção acadêmica gestada no âmbito dos cursos de pós-graduação, em franca expansão na época, os tradicionais enfoques de elogio ou detratação. Na mesma medida, produziu-se, desde então, uma fecunda ampliação dos temas e das abordagens emprestadas às missões, acompanhando a própria trajetória do campo da história naquele momento. Perspectivas que dirigiam seu interesse a questões do campo da Antropologia relativas ao cultural e ao simbólico fecundaram, assim, as tradicionais histórias sobre esta temática.

Mais recentemente, a este movimento associou-se outro igualmente renovador, capaz de produzir uma mudança substancial na perspectiva pela qual se analisa o tema, dizendo respeito à recuperação, para as populações não europeias, de um lugar ativo na configuração dos elementos simbólicos e materiais que constituíram essa história. Tratou-se, fundamentalmente, no caso das Américas, como disse Celestino de Almeida (MOSTACCIO, 2010), de trazer as populações indígenas, dos “bastidores para o palco”.

A partir dos anos 1990, a história dos índios, negligenciada pelos historiadores brasileiros, desenvolveu-se produtivamente no campo da Antropologia, em que surgiram as primeiras vozes críticas, questionando as velhas concepções que lhes reservavam o lugar de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização. Antropólogos e historiadores como Manuela Carneiro da Cunha (ROBERTSON, 1997) e John Manuel Monteiro (ROBERTSON, 1997) representaram as primeiras tentativas de pensar neles como sujeitos históricos. Ambos foram as principais forças motrizes da história dos índios em contato com as sociedades coloniais e pós-coloniais, transformando-os em agentes históricos.

O diálogo com a Antropologia e a fecundidade das abordagens culturais e etno- históricas foram essenciais na reconfiguração do entendimento sobre a dinâmica indígena da missão. Isso em termos de estratégias, lógicas e práticas locais, associadas a uma adoção de certos dispositivos de poder – como a escrita – para fins diferentes daqueles do colonialismo.

Seguindo estes pressupostos teórico-metodológicos, foi possível, dessa maneira, superar a visão clássica que percebia as missões como resultado do talento organizador dos jesuítas, considerando os indígenas como sujeitos passivos e submissos a ele. Outro elemento de “densificação” das histórias que se passaram a produzir, residiu em aportar uma compreensão mais complexa dos espaços missionários, no sentido de superar visões idílicas de sociedades utópicas que puderam viver um “cristianismo feliz”, tal como na definição de Ludovico Muratori (1743)¹.

Trabalhos recentes, partindo de uma perspectiva mais complexa, concebem as missões como espaços ao mesmo tempo religiosos, culturais e políticos, bem como de interações e negociações, individuais e coletivas, em que se transformam tradições, fundamentalmente nativas, mas nas quais, igualmente, sob certos aspectos, as europeias necessitaram ser adaptadas aos contextos locais. Se, por um lado, a análise “global” nos permite situar missões no contexto das políticas de evangelização da Companhia de Jesus no Brasil, por outro lado, a perspectiva “local” integrará, modificará e / ou alterará a implementação de estratégias etnomissionais à escala mundial, bem como envolverá todos os aspectos da colonização europeia. Uma tensão entre agência política, cultura local e redes globais que alguns teóricos definiram como “glocal”².

Finalmente, podemos mencionar a importância de estudos empenhados em superar os prejuízos analíticos comportados por visões compartimentadas do espaço missionário, construídas pelas historiografias nacionais decimonônicas. A elas se opõem, com evidente avanço interpretativo, perspectivas que problematizam a noção de fronteira e que apontam para a ideia de “região”. Podemos, assim, concluir que os estudos contemporâneos sobre os espaços missionários são abertos e interdisciplinares, apontando para a importância de avaliações historiográficas que hoje em dia retomam e reinterpretam criticamente as fontes que permitem estudá-los.

Ao trabalho missionário jesuíta, que se estendeu desde o século XVI, para amplas porções do planeta, está associada uma notável produção historiográfica. Trata-se, portanto, de um tema que tem condensado fortemente, sob muitos aspectos, o interesse de historiadores de diferentes épocas e matrizes historiográficas.

Podemos dizer, efetivamente, que, no esforço de promover e “fazer memória” da sua atuação, as primeiras narrativas das missões foram construídas pelos próprios jesuítas coetâneos a elas, muitas vezes como exercício de propaganda das suas atividades apostólicas. Entretanto, há́ elementos para afirmarmos que o estudo dos espaços missionários permanece revestido de importância e densidade analítica no momento presente.

Ele é, assim, um bom ponto de partida para pensarmos, em vários sentidos, a nossa Modernidade. Entre os mais importantes ou evidentes desses sentidos, podemos apontar a atenção para as respostas locais (ou culturais) à expansão europeia iniciada junto com a Idade Moderna. É de fato possível, a partir daí, instalar-se uma profícua discussão sobre os processos de contato cultural e seus desdobramentos, tema absolutamente contemporâneo. Assim sendo, ao remetermo-nos inapelavelmente às questões das alteridades, das culturas (e, por conseguinte, do relativismo cultural), de seus trânsitos, empréstimos e apropriações, compreendemos que a importância dos espaços missionários jesuíticos justifica o número da Revista Anos 90 aqui apresentado.

Nosso Dossiê é uma amostra da variedade de reflexões que podem ser acionadas a partir da temática sobre a qual discorremos anteriormente, e de como tais problemáticas renovam uma historiografia que já é multissecular. Desejamos que a leitura seja proveitosa e estimuladora de novos trabalhos.

Notas

  1. Erudito italiano, Ludovico Antônio Muratori (1672-1750) ficou particularmente conhecido por meio da obra Cristianesimo felice nelle missioni de’ padri della Compagnia di Gesù nel Paraguay, publicada em Veneza, em 1743. A obra, conhecida como O Cristianismo Feliz defende o trabalho dos jesuítas nas Missões do Paraguai, quando elas eram fortemente criticadas.
  2. Como consequência da tese de doutoramento na Universidade de Chicago (1985), Negros da Terra. Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo (1994), Monteiro deu visibilidade ao protagonismo dos índios na construção da sociedade colonial da capitania paulista, mostrando que as dinâmicas de conquista e colonização dependiam, em grande medida, das populações indígenas, cujas ações se baseavam nas dinâmicas de suas próprias sociedades.

Referências

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Giovani José da Silva – Professor da Universidade Federal do Amapá, Macapá, Brasil. E-mail: [email protected] Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0003-4906-9300

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Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (HU)

ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda Editorial, 2016. 376 p. Resenha de: CODARIN, Higor. “Resistencialismo” e resistência: as tensões entre história e memória. História Unisinos 24(2):334-337, Maio/Agosto 2020.

A trajetória intelectual da historiadora Denise Rollemberg, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), é indissociável das temáticas, das tensões e dos dilemas envolvendo o passado recente, em específico relacionado às experiências autoritárias ao redor do globo, ao longo do século XX. Em um primeiro momento, sua produção acadêmica edificou-se através de análises consistentes a respeito dos caminhos e descaminhos das esquerdas brasileiras diante da ditadura civil-militar, seja a partir da construção analítica a respeito da perspectiva de revolução difundida por essas esquerdas, ou pela vigorosa análise a respeito do exílio experimentado por esses militantes ao longo da ditadura.2 Contudo, a partir de então, a historiadora, influenciada por parte da historiografia francesa empenhada em renovar as análises a respeito da resistência à ocupação nazista e/ou em relação à construção social do regime instaurado em Vichy, das quais falaremos adiante, passa a centrar seus esforços em outros aspectos dos regimes autoritários, buscando iluminar sua compreensão através de duas linhas centrais: por um lado, de que modo esses regimes foram construídos socialmente e se mantiveram por longos anos? Por outro, e de modo mais importante para o objetivo desta resenha, como se relacionam memória e história na construção do conhecimento a respeito dessas experiências? Mais especificamente: de que modo a construção da memória coletiva sobre esses regimes buscou criar oposições binárias entre Estado e Sociedade, sedimentando a perspectiva de sociedades oprimidas, manipuladas e, sobretudo, resistentes a esses regimes? Confirmação dessa nova vereda analítica são as obras organizadas em conjunto com a também historiadora da UFF Samantha Quadrat – A construção social dos regimes autoritários (2010); História e memória das ditaduras do século XX (2015) – e Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália (2016).

Neste que é seu mais recente livro, Rollemberg busca, como objetivo central, analisar o movimento de constante construção e desconstrução dos discursos memoriais a respeito das experiências de resistência francesa e italiana às ocupações nazistas que ocorreram durante a II Guerra Mundial. Dividido em cinco capítulos, Resistência parte de um consistente balanço historiográfico indicativo dos esforços e das dificuldades em conceituar o termo “resistência” (capítulo 1), para, em seguida, passar ao exercício analítico de sua ampla gama de fontes: os museus e memoriais franceses (capítulo 2), as cartas de despedida dos resistentes e reféns fuzilados (capítulo 3), que constroem a primeira parte do livro, dedicada à França, e, por fim, os museus e memoriais italianos (capítulo 4), com especial destaque à construção da memória e historiografia a respeito da trajetória da família Cervi, e do fuzilamento dos sete irmãos – os Sette Fratelli – integrantes da Resistência3 italiana (capítulo 5).

De modo inicial, é importante ressaltar, Rollemberg indica que as populações dos países ocupados “experimentaram comportamentos que variaram de país para país, ao longo do tempo, num amplo campo de possibilidades desde a colaboração mais aguerrida com os vencedores até a resistência mais combativa” (Rollemberg, 2016, p. 17). Nessa perspectiva, a autora, como cerne da argumentação que permeia todo o livro, busca desconstruir não apenas a visão maniqueísta entre Estado e Sociedade, conforme citamos anteriormente, mas também a visão que opõe, drasticamente, resistentes e colaboradores, como se resistir ou colaborar fossem as únicas possibilidades de atuação dentro desses contextos históricos. Para isso, inspira-se, essencialmente, no historiador Pierre Laborie, mais especificamente em seus conceitos de zona cinzenta e pensar-duplo, que realçam o amplo espaço de atuação entre os dois polos, marcado por contradições e ambivalências.4 Enveredando pela discussão conceitual, a autora busca explicitar que as experiências variadas de país para país deram origem, também, a conceituações diferentes. Assim, distingue as discussões historiográficas realizadas na França, Itália e Alemanha.

Sobre a França, campo com que Rollemberg tem maior familiaridade, a discussão é robusta. Demonstra, como prelúdio, que logo após o fim da ocupação, 1944, o termo resistência iniciou um processo de naturalização no seio da sociedade francesa, por intermédio da memória oficial que ia sendo desenvolvida pelo governo surgido do processo de libertação, comandado por Charles de Gaulle.

Criava-se, então, o mito da resistência, ou “resistencialismo”, no neologismo de Henry Rousso (2012). Ou seja, o mito de que a sociedade francesa havia, em sua totalidade, resistido aos alemães e ao governo instaurado em Vichy, sob o comando de Philippe Petain. Por muitos anos, o termo ficou sob o domínio dessa memória, estando fora dos objetivos e anseios dos historiadores. Realizando uma genealogia do conceito, a historiadora demonstra que a historiografia francesa se voltou à “resistência” apenas em 1962, com a tese de Henri Michel, que abre os debates acadêmicos a respeito do termo, ainda sob forte influência do processo de mitificação. Contudo, é com o livro de Robert Paxton, Vichy France (1972), que há uma guinada no debate. A revolução paxtoniana, como ficou conhecido o impacto da tese de Paxton, abriu novas temáticas e interpretações, pois deu início a uma corrente historiográfica indicativa de que o Estado de Vichy era produto da própria sociedade francesa e não uma marionete da Alemanha de Hitler. Iniciava-se, portanto, o processo historiográfico de problematização do mito da resistência.

Passeando com propriedade pelas contribuições de François Bédarida, Pierre Azéma, Pierre Laborie, Jacques Sémelin, François Marcot, Henry Rousso e Denis Peschanski, a historiadora apresenta, de forma nítida, reflexões a respeito da criação do mito de resistência como “necessidade social” (Rollemberg, 2016, p. 33) e, sobretudo, tentativas de conceituar o termo. Em uma diversidade de propostas de conceituação que, conforme diz a própria autora, engolfam-se, por vezes, em “excessivas filigranas e retórica” (Rollemberg, 2016, p. 37), vemos emergir a problemática fundamental do debate: resistência é apenas expressão coletiva, consciente, organizada e clandestina contra um invasor estrangeiro, como propõem alguns autores, ou também podem ser considerados resistentes as expressões individuais, cotidianas e anônimas, seja contra o regime alemão instaurado na zona ocupada ou contra o regime de Vichy? Cria-se, assim, um dilema, bem sintetizado por Jacques Sémelin: “ou bem se mergulha nas profundezas do social, mas sua especificidade [da resistência] tende a se diluir; ou bem se define exclusivamente através de suas [da resistência] estruturas e ações e ele se reduz à sua dimensão organizada” (Rollemberg, 2016, p. 32). Apesar de parecer intransponível, a historiadora apresenta um caminho possível para sua resolução, demonstrando a importância das propostas teóricas de Laborie para sua análise: A zona cinzenta, o pensar duplo, o homem duplo, segundo a perspectiva de Pierre Laborie que considera comportamentos ambivalentes nuançados entre resistir e colaborar, por outro lado, talvez seja a solução para o impasse levantado por Sémelin (Rollemberg, 2016, p. 148).

Seja como for, adotando-se ou não as posições de Laborie para resolver o impasse sintetizado por Sémelin, o exercício reflexivo que o desencadeou, segundo Rollemberg, demonstra, per se, a importância e a necessidade de reflexão a respeito do conceito de resistência, pois concei tuá-la “é mais lidar com as possibilidades e os limites das próprias definições, aproveitando as tensões e riquezas que são intrínsecas ao dilema observado por Sémelin, do que buscar resolvê-lo” (Rollemberg, 2016, p. 37).

Para o caso italiano, a discussão é menos densa. Segundo a autora, isso se deve ao fato de que para a historiografia italiana importa menos definir “o que foi e o que não foi resistir”, centrando os esforços, em contrapartida, no “papel de seus atores, principalmente das lideranças ou de militantes destacados” (Rollemberg, 2016, p. 47). Apesar da não importância da conceituação, a historiadora alerta que as contribuições historiográficas têm buscado desconstruir, também, o mito da resistência.

Por fim, finalizando o primeiro capítulo, está a reflexão a respeito do conceito de resistência proposto pela historiografia alemã. Rollemberg oferece destaque à definição proposta por Martin Broszat. Esta, ao contrário de utilizar o termo resistência (Widerstand), prefere utilizar Resistenz, cuja tradução é imunidade, termo devedor da biologia, que diz respeito a “reações espontâneas e naturais dos organismos vivos a micro-organismos como vírus e bactérias” (Rollemberg, 2016, p. 52). Assim, com essa nova definição, procurou-se jogar luz sobre a “resistência a partir de baixo”, como bem sintetizou Klaus-Jürgen Müller a respeito da definição proposta por Broszat.

Nos capítulos seguintes, sejam relacionados ao contexto francês ou italiano, notamos, com clareza, dois aspectos predominantes: por um lado, o esforço analítico da autora, buscando demonstrar e desenvolver as relações tensas e mutáveis entre história e memória, por intermédio, essencialmente, dos museus e memoriais como corpus documentais de análise. Por outro, o realce e a recorrência, ao longo de todo o texto, na importância de compreender as ações dos sujeitos que fizeram parte desse processo histórico a partir de suas ambivalências e contradições, buscando problematizar as visões romantizadas e heroicizadas construídas sobre esses indivíduos. Assim, a historiadora reforça a necessidade de compreendê-los sem operar distinções binárias e estéreis. Nas palavras da própria Rollemberg a respeito da criação de museus e homenagens aos resistentes:

A homenagem precisa incorporar a complexidade, as contradições, as ambivalências da realidade. A produção do conhecimento, resultado da incorporação das múltiplas dimensões dos acontecimentos e dos homens e mulheres neles envolvidos, submetidas à interpretação crítica, é a melhor homenagem que se possa fazer. A sacralização da memória afasta o herói de todos nós, condena-o ao desconhecimento, mesmo que inúmeros museus e memoriais sejam erguidos em seu nome (Rollemberg, 2016, p. 97).

Portanto, perseguindo essa trilha, Rollemberg empreende uma análise ampla acerca de 15 museus/memoriais ao redor da França, 130 cartas de resistentes ou reféns5 prestes a serem fuzilados e, por fim, analisa oito museus/memoriais italianos. É digno de nota demonstrar a metodologia empregada pela historiadora na construção dos museus/memoriais como corpus documentais para discussão das questões propostas na obra. Seguindo a senda proposta por Jacques Le Goff, a respeito do conceito documento/monumento6, a historiadora compreende a criação e, consequentemente, os próprios museus/memoriais através dessa dinâmica. Assim, a disposição dos museus/memoriais, os locais onde foram construídos, seus acervos, suas narrativas, dinâmicas e relações com o poder público são importantes ao olhar analítico da autora.

Todos os aspectos, constituintes da criação e perpetuação dos museus/memoriais, são vistos como esforços “das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si própria” (Rollemberg, 2016, p. 90). Outrossim, constatando que os museus/memoriais são criados com uma dupla-função, informativa e comemorativa, a historiadora compreende- os como espaços privilegiados de manifestação das tensões entre história e memória, analisando, assim, de que modo esses espaços incorporam ou recusam os avanços e novos temas propostos pela historiografia (Rollemberg, 2016, p. 90).

Sobre a França, vale ressaltar que a autora deslinda de que modo foi construído o “resistencialismo”. Apresenta a importância da memória nesse processo, a memória como construção social, como maneira de “lidar com a história, reconstruindo-a” (p. 84), formulada no período pós-ocupação, “comportando a lembrança, o esquecimento, o silêncio” (Rollemberg, 2016, p. 84), como aponta Beatriz Sarlo (2007), a memória como captura do passado pelo presente; o mito da resistência, o mito que explica a ausência, ao menos na grande maioria dos museus, de informações a respeito da colaboração dos franceses com os nazistas e com o regime de Vichy; o “resistencialismo” tornando ausente das narrativas dos museus “a zona cinzenta, o pensar duplo, a ambivalência” (Rollemberg, 2016, p. 142).

Com relação à Itália, deve-se atentar para a valiosa trilha percorrida pela historiadora ao confrontar a história e a memória do caso dos Sette Fratelli. Realizando uma genealogia da criação do mito, que remonta a dois textos de Italo Calvino publicados em 1953 (Rollemberg, 2016, p. 335), Rollemberg expõe as relações de legitimação dos mais diversos setores da sociedade italiana com a criação e manutenção de uma narrativa romantizada acerca dos sete irmãos fuzilados em 1943. Aponta não apenas para a necessidade do Partido Comunista Italiano (PCI) em vincular- se à história dos irmãos, mas, também, a necessidade do próprio governo italiano, simbolizado na recepção de Alcide Cervi, pai dos sete irmãos, pelo primeiro presidente eleito pós-ocupação, Luigi Enaudi, em 1954, no Palácio Quirinale, em Roma, além de diversas medalhas de honra que Alcide recebeu como representante dos filhos (Rollemberg, 2016, p. 318). A história dos irmãos resistentes e, consequentemente, da superação do sofrimento de um pai que teve a família devastada como símbolos da história italiana recriada pela memória, a Itália resistente, a exemplo dos sete irmãos, livre do nazifascismo, que buscava superar o sofrimento, como Aldo Cervi buscava superar a perda dos filhos.

Resistência, portanto, cumpre os objetivos a que se propõe, descortinando as relações problemáticas e, ao mesmo tempo, férteis entre história e memória em meio à construção da memória coletiva na França e na Itália a respeito das ocupações nazistas ao longo da II Guerra Mundial. Mais do que isso, o livro da historiadora é um interessante ponto de vista metodológico para os interessados em compreender as complicadas questões vinculadas à História do Tempo Presente.7 Se vivemos, como aponta o historiador François Hartog (2017), um regime de historicidade presentista, em que a Memória busca destronar a História de seu lugar privilegiado como intérprete hegemônica do passado, Resistência é uma contribuição fundamental à historiografia brasileira para aqueles que buscam fugir às armadilhas da Memória, que opera, na maioria das vezes, por intermédio de uma cultura binária de demonização ou sacralização de indivíduos e/ ou períodos históricos. Rollemberg, portanto, em seu novo caminho analítico, do qual Resistência é a reflexão mais profunda até o presente momento, apresenta os desafios dos historiadores que trilham as temáticas envolvendo experiências sociais traumáticas do passado recente. Ao buscar recolocar os personagens em seus respectivos contextos históricos, questionando as construções memoriais e realçando a importância de lançarmos luz às zonas cinzentas, contradições e ambivalências dos sujeitos históricos, a autora deixa-nos – aos historiadores – um sinal de alerta: o dever do historiador é compreender o passado, não o mitificar.

Referências

HARTOG, F. 2017. Crer em História. Belo Horizonte, Autêntica, 252 p.

LABORIE, P. 2010. 1940-1944: Os franceses do pensar-duplo. In: S.

QUADRAT; D. ROLLEMBERG (org.), A construção social dos regimes autoritários: vol. I, Europa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 31-44.

LE GOFF, J. 2013. História e Memória. 7ª ed. Campinas, Editora da Unicamp, 504 p.

PAXTON, R. 1973. La France de Vichy. Paris, Seuil, 475 p.

QUADRAT, S.; ROLLEMBERG, D. (org.) 2010. A construção social dos regimes autoritários. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3 vols.

QUADRAT, S.; ROLLEMBERG, D. (org.) 2015. História e memória das ditaduras do século XX. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2 vols.

ROLLEMBERG, D. 2000. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro, Record, 375 p.

ROLLEMBERG, D. 2016. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo, Alameda Editorial, 376 p.

ROUSSO, H. 2012. Le Régime de Vichy. 2ª ed. Paris, PUF, 128 p.

ROUSSO, H. 2016. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro, Editora FGV, 341 p.

SARLO. B. 2007. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo, Companhia das Letras / Belo Horizonte, Editora da UFMG, 129 p.

2 Referimo-nos aqui, respectivamente, à sua dissertação de mestrado (A ideia de revolução: da luta armada ao fim do exílio (1961-1979)) e à tese de doutorado (Exílio. Entre raízes e radares), esta última publicada pela Editora Record (1999).

3 O termo Resistência, com letra maiúscula, consolidou-se na historiografia como modo de referir-se a posições e ações ligadas a organizações, partidos e movimentos (p. 175).

4 Para maior aprofundamento a respeito dos conceitos, cf. Laborie (2010).

5 “Reféns” denominam-se os indivíduos presos, seja na França ocupada ou na França de Vichy, em represália às ações da Resistência.

6 Para maiores detalhes, cf. Le Goff (2013).

Higor Codarin – Universidade Federal Fluminense. Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n. 24210-201 Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Número do processo: E-26/201.860/2019. E-mail: [email protected].

Que história pública queremos? Ana Mauad, Ricardo Santhiago e Viviane Trindade

Organizado por Ana Maria Mauad, Ricardo Santhiago e Viviane Trindade Borges, o livro “Que história pública queremos?” (What public history do we want?) convida os leitores a participarem de um debate que caracteriza o campo e os caminhos da história pública no Brasil. Como novidade, essa produção de 2018, escrita por historiadores brasileiros e brasilianistas, oferece a tradução dos seus vinte capítulos para o inglês, o que ressalta não só a relevância dos percursos reflexivos (Que história pública queremos?) e práticos (Que história pública fazemos?) estabelecidos em território nacional, mas suas perspectivas de alcance internacional, que não descartam, segundo os organizadores, influências e diálogos do Brasil com as tradições teóricas estrangeiras referentes à área.

Adicionam-se ao catálogo editado pela Letra e Voz1 esses textos em que os autores compartilham suas visões sobre história e história pública ao mesmo tempo que repensam seus próprios campos, temas, objetos, métodos e objetivos de pesquisa. Assim, o que caracteriza a contribuição do livro perante a pretendida história pública brasileira é exatamente a união entre uma espécie de autoavaliação das trajetórias e experiências teóricas e práticas do ofício do historiador e a redescoberta da “dimensão pública do conhecimento histórico” (MAUAD; SANTIAGO; BORGES, 2018, p. 11). Leia Mais

Cultura e democracia: convergências, conflitos e interesses públicos / Albuquerque: revista de história / 2020

Até ontem a palavra do alto César podia resistir ao mundo inteiro. Hoje, ei-lo aí, sem que ante o seu cadáver se curve o mais humilde. Ó cidadãos! Se eu disposto estivesse a rebelar-vos o coração e a mente, espicaçando-os para a revolta, ofenderia Bruto, ofenderia Cássio, que são homens honrados, como vós bem os sabeis. Não pretendo ofendê-los; antes quero ofender o defunto, a mim e a vós, do que ofender pessoas tão honradas. (Marco Antônio, em Júlio César de William Shakespeare)

O dossiê Cultura e Democracia: convergências, conflitos e interesses públicos, ainda que esteja ligado a temas e problemas temporais próximos ao que estamos vivendo no imediato presente, abrange uma temporalidade mais ampla que envolve os diversos meandros que compõe a estrutura do mundo e do Estado modernos. Desde as revoluções burguesas, que marcaram o surgimento de uma nova sociedade, homens e mulheres em vários espaços geográficos passaram por diferentes tipos de instabilidades políticas, o que gerou muitos debates intelectuais além de lutas e disputas frequentes pelas formas de entendimento sobre o poder de atuação das pessoas no espaço público.

O século XIX, por exemplo, é caracterizado no âmbito do continente europeu por numerosas lutas de trabalhadores que perceberam as possibilidades de transformação de suas condições de sobrevivência e de atuação política inaugurada pelo enredo liberal no final do século anterior. Um dos exemplos mais importantes nesse sentido ocorreu em Paris em 1848 quando a utopia da transformação atingiu inúmeras pessoas que incendiaram e subverteram as ruas da capital. A população invadiu e saqueou o Palácio das Tulherias, então residência do rei Luís Felipe. E antes que um governo provisório fosse formado e a Dinastia dos Orleans perdesse o poder, populares arrastaram o trono pelas ruas e o incendiaram na Bastilha. A força política e simbólica do que ocorreu a partir desse acontecimento foi retratada por imagens e palavras, mas nada mais forte que a análise produzida por Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Escrito entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, Marx elaborou no calor dos acontecimentos uma análise cortante sobre a amplitude da atuação política de setores sociais explorados na vida democrática da França à época. O mesmo país que poucos anos antes havia legado ao mundo o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” utilizou o discurso da democracia para que as subversões e lutas de 1848 fossem acalmadas e conformadas. A derrota imediata dos trabalhadores que ocupavam as ruas de Paris ocorreu a partir de junho de 1848, quando a Assembleia Nacional Constituinte foi formada e começou a elaboração das bases da Segunda República Francesa. O trono queimado de 1848 foi calmamente reconstruído até que, em 1851, o sobrinho imitou o tio e fez do dia 2 dezembro o seu 18 de Brumário.

Esse é apenas um exemplo onde os temas da democracia e da cultura estiveram fortemente imbricados em um “momento de perigo” do século XIX. Nele podemos observar muitas coisas e tirar diversas conclusões, mas o mais importante é perceber que o discurso democrático, por si mesmo, não garante a ampla e profunda participação política de diferentes estratos sociais. Aqui é desnecessário realçar a habilidade de Marx em tratar desse tema, inclusive porque O 18 de Brumário é inquestionavelmente um clássico, mas é impressionante perceber que desde 1852, quando ele foi publicado, temos condições de desdobrar essa discussão principalmente para entender que a democracia não é um bem em si, mas um constructo social que depende de variáveis históricas e, portanto, de condições sociais que precisam ser cotidianamente pensadas e, claro, reescritas. Inclusive o próprio Marx nas linhas iniciais de seu texto chama a atenção para o fato de que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2001, p. 25). A participação política requer responsabilidade de todos. As noções de cidadania, igualdade e direitos, entre outros, como todos os aparatos discursivos, possuem correspondentes na prática. O autor alemão nos mostrou no século XIX, que quando alguns grupos colocam em prática a igualdade, outros reagem, inclusive no campo do discurso lançando mão do vocabulário de participação política inaugurado pelas revoluções burguesas.

Tomando essa reminiscência do século XIX como referência, podemos buscar outras no século posterior. O que nos motiva nesse caminhar é o vocabulário político do Estado Moderno, lembrando sempre que nosso escopo são as convergências entre democracia e cultura.

Ao longo do século XX, as duas guerras mundiais foram acontecimentos que alteraram profundamente os debates sobre democracia. Se antes de começar, o primeiro conflito fora saudado em prosa e verso por inúmeras pessoas embaladas pelo nacionalismo e o imperialismo de fins de século na Europa, 1918 apresentou um quadro muito distinto. Além dos problemas econômicos decorrentes da guerra e do novo quadro de forças políticas mundiais, o nacionalismo adquiriu cada vez mais traços xenófobos e chauvinistas. Isso sem contar o peso que a Revolução Russa de 1917 teve para os debates ideológicos da época bem como a acentuada gravidade do processo de exploração do continente africano para a política internacional. Não por acaso, as derrotas mais duras para o campo democrático não tardaram a chegar. Em 1922, Benito Mussolini promoveu a conhecida Marcha sobre Roma, com isso o fascismo entrava triunfal na cena pública contemporânea e, em 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha pelo presidente Paul von Hindenburg. Daí até a Segunda Guerra Mundial foi uma questão de tempo e novamente o mundo se viu diante de inúmeros debates sobre a questão democrática.

Muitos autores se dedicaram à discussão sobre democracia e espaço público nesse amplo contexto que abarca também o período posterior a 1945, quando inclusive se coloca em prática no ambiente europeu o Estado de bem estar social. Uma das reflexões mais marcantes da época surge das letras da filósofa Hannah Arendt, em especial por ela entender que o espaço da ação política é o espaço da ação pública por excelência. A política se efetiva onde os Homens se unem aos seus iguais, são capazes de assumir posicionamentos, persuadem, sofrem e aceitam derrotas.

Arendt se dedicou, desde As Origens do Totalitarismo (1951), amplamente às reflexões que envolvem “ação” e “pensamento” no ambiente dos autoritarismos inaugurados no século XX. Os leitores atentos encontram nos seus livros análises primorosas sobre as incongruências que o tema da democracia carrega, entre eles Sobre Revolução (1963), Entre o passado e o futuro (1968) e Crises da República (1969). Nesse último, tratando especificamente da realidade dos Estados Unidos, país que acolheu a autora quando ela fugira do Nazismo, a análise se volta para a revisão da ideia de representatividade política frente às questões da liberdade pública:

Queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter uma possibilidade de determinar o curso político do nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; lá somos, quase todos nós, nada mais que o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando a sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional de opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. (ARENDT, 2010, p. 200)

É perceptível pela ótica da autora, entre outras coisas, que a participação democrática ampla depende de fatores que vão além do depósito do voto nas urnas e inclui a ampliação dos espaços públicos, a capacidade de diálogo, o processo formativo cultural e educacional, daí a importância do ambiente escolar e da escolarização, discutidos de maneira tão contundente no texto A Crise na Educação. Ninguém nasce em um mundo livre de construções humanas, por isso cada nova geração tem responsabilidade com o passado e com o futuro. Portanto, sem o processo educacional, corremos o risco de ignorar o que as gerações anteriores construíram e, com isso, desprezamos os perigos autoritários inaugurados no passado. E isso, infelizmente, é possível sem o diálogo frequente e a expansão da esfera pública.

Com tantos e profundos autoritarismos no século XX percebemos, lendo autores diferentes e refletindo sobre momentos e sociedades distintas, que é impossível não ser constantemente vigilantes com o processo formativo das pessoas. É ele que minimamente pode garantir um debate mais consistente sobre os meandros democráticos e, principalmente, condições de sobrevivência onde existam conflitos e convergências de interesses públicos.

Apesar de termos percorrido apenas vinte anos do século XXI, está claro que a força autoritária recrudesce imensamente no mundo e no Brasil nos últimos anos. Há inclusive uma extensa bibliografia sobre o tema que vem colocando acentos interpretativos distintos e importantes sobre a ideia de democracia. Desde a publicação de Como as democracias morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, temos acesso no Brasil aos livros Como a democracia chega ao fim (2018), de David Runciman; O povo contra a democracia (2019), de Yascha Mounk; Na contramão da liberdade (2019), de Timothy Snyder, entre outros. Já entre autores e pesquisadores brasileiros a situação não é diferente e merece destaque o livro do sociólogo Leonardo Avritzer, O pêndulo da democracia (2019).

Levando em conta toda essa discussão e entendendo, desde os escritos mais contundentes do século XIX, que a democracia é um tema sempre a ser discutido, construído e cultivado que estruturamos a proposição deste dossiê. Assim, a articulação entre Cultura e Democracia não é apenas um jogo de palavras que diz respeito às urgências intelectuais da época em que vivemos, mas é um retorno ao passado carregado de historicidade e de respeito aos contínuos movimentos das lutas de homens e mulheres que formaram nossa sociedade ao longo do tempo. Está também relacionada à constatação de que o conhecimento acadêmico é fundamental para uma época que despreza a ciência e a racionalidade como sintoma de autoritarismos políticos e sociais que desprezam a vida e a multiplicidade humana.

Abrindo o dossiê, Durval Muniz de Albuquerque Júnior no texto Narrar vidas, sem pudor e sem pecado: as carnes como espaço de inscrição do texto biográfico ou como uma biografia ganha corpo problematiza a noção de biografia histórica, trazendo à tona como o ato de escrever biografias maneja a dimensão temporal e carnal da existência. Para tanto, o historiador lança mão da obra Roland Barthes por Roland Barthes (2017) e permite que os leitores compreendam que o ato de narrar e ler sobre vidas é carregado de significados variados. No campo do debate sobre democracia, o texto adquire singularidade por nos permitir compreender que quando lidamos com agentes do passado por meio de biografias estamos diante de uma “potência carnal que corporifica a escrita biográfica”.

Na sequência, disponibilizamos as reflexões de Rosangela Patriota sobre as incertezas contemporâneas em torno de práticas democráticas, por meio do artigo A questão democrática em tempos de incertezas. Com essa preocupação, a autora realiza um mergulho no cenário político internacional das últimas décadas para, posteriormente, discutir o tema do antissemitismo em sociedades contemporâneas, a partir do revisionismo na historiografia do Holocausto e por intermédio da peça teatral Praça dos Heróis de Thomas Bernhard. Articulando diálogos entre passado / presente, Patriota problematiza dúvidas e impasses de nossa história imediata.

Ainda no contexto de elaboração de narrativas históricas, cabe destacar o artigo do historiador Antonio de Pádua Bosi, Trabalho, Imigrantes e Política em “Greve na Fábrica”: o maio de 68 para Robert Linhart. Homem público francês, que viveu um dos momentos mais intensos dos debates democráticos da segunda metade do século XX, Linhart produziu um texto revelador sobre identidades culturais e experiência de trabalho industrial a partir da vivência de operários de diferentes nacionalidades na linha de montagem da Citroën, em 1969. Bosi recupera esses escritos e dá dimensão histórica e crítica ao livro do autor francês. Ler o artigo nos ajuda a perceber o quanto a dinâmica do trabalho e o debate sobre democracia se alterou ao longo do tempo, ao mesmo tempo que trouxe consequências marcantes para a vida e a luta dos operários.

Caminhando para a compreensão das discussões da democracia no Brasil, o artigo Paulo Freire: el método de la concientización, em la educación, para analizar y compreender el contexto actual de la Globalización, escrito por José Marin Gonzáles, traz para o debate sobre democracia o tema da educação por meio do método de Paulo Freire no atual contexto de Globalização. O texto é fundamental para um momento em que muito se critica o educador brasileiro sem nenhum tipo de fundamentação acadêmica e mais ainda quando o processo educacional é pensado prioritariamente como corpo que oferece aos sujeitos, desvinculados de quaisquer coletividades, ferramentas exclusivas para o mercado de trabalho. Freire é um chamamento à coletividade, à noção de educação voltada para o bem comum e principalmente para a justiça social, temas caros às experiências democráticas.

Entrando especificamente no diálogo com linguagens artísticas no Brasil dos últimos anos, o dossiê conta com quatro artigos. Em O homem de La Mancha: aspectos da utopia no teatro musical brasileiro da década de 1970, André Luis Bertelli Duarte promove importantes discussões sobre o teatro brasileiro nos duros anos da repressão política brasileira, com destaque para as possibilidades do debate democrático promovido pela encenação musical de O homem de la mancha (Dale Wasserman, 1965), produzido por Paulo Pontes, sob a direção de Flávio Rangel, em 1972-1973. No ambiente de autoritarismos diversos e em especial contra a figura de artistas e intelectuais, a releitura de Quixote se apresentava como ideal de justiça e liberdade.

Ainda dialogando com o campo teatral, Rodrigo de Freitas Costa promove no artigo O teatro de rua e sua expressão política: os primeiros anos do Grupo Galpão de Belo Horizonte (1982-1990) reflexões sobre o teatro de rua no período logo após o processo de abertura política, tendo por referência o trabalho desenvolvido pelo conhecido grupo teatral da capital mineira. O texto contribui para a discussão sobre democracia e cultura no Brasil especialmente por problematizar e questionar a ideia de “vazio cultural” desenvolvida por inúmeros críticos teatrais que tratam da produção nacional pós Estado Autoritário. Nesse sentido, as primeiras peças escritas e encenadas pelo Galpão são o mote para compreender parte da complexidade do processo cultural brasileiro e a amplitude do teatro político nos anos 1980.

Já sobre a relação entre Cinema, Democracia e História, o artigo de Rodrigo Francisco Dias, Autoritarismo e democracia nos filmes “Jânio a 24 Quadros” (1981, de Luís Alberto Pereira) e “Jango” (1984, de Silvio Tendler), permite ao leitor compreender como os temas do autoritarismo e da democracia são reelaborados nos documentários de Luís Alberto Pereira e Silvio Tendler no início da década de 1980. Abordando aspectos formais, o autor mostra como as configurações estéticas carregam posicionamentos históricos e políticos. Com isso, une forma e conteúdo por meio da historicidade e promove considerações importantes capazes de elucidar as dinâmicas do debate democrático dos anos finais da Ditadura Militar.

Por fim, o dossiê se encerra com uma discussão sobre financiamento cultural nos dias atuais. Essa discussão é fundamental para o Brasil de hoje, onde a arte é menosprezada e diversos artistas e intelectuais são hostilizados publicamente. Em um país que investe pouco em educação e cultura, sabemos que as discussões democráticas são frágeis e que os espaços públicos são minados por discursos surdos e preconceituosos. O artigo Democracia e Arte: as percepções da Lei Rouanet e o financiamento da cultura de Jacqueline Siqueira Vigário e Anna Paula Teixeira Daher promove reflexões importantes recolocando essa discussão em bases acadêmicas inicialmente analisando a lei de incentivo à cultura e, por fim, utilizando como exemplo o caso da exposição “Queermuseu: Cartografia da diferença na arte brasileira” (2017).

Como parte do dossiê para este este número de albuquerque: revista de história, há uma entrevista da Professora Doutora Maria Helena Rolim Capelato. Historiadora atuante na esfera pública, árdua defensora do conhecimento histórico cientificamente elaborado e produtora de reflexões importantes sobre História e Imprensa no Brasil do século XX. Na entrevista, a professora fala de sua formação ainda na Ditadura Militar, destaca os principais debates que dizem respeito à sua pesquisa sobre imprensa no Brasil e na América Latina e, por fim, reflete sobre temas políticos brasileiros contemporâneos.

Esperamos que os leitores aproveitem as reflexões que o dossiê traz e que possam cada vez mais entender e divulgar que a democracia não é um bem em si, mas um processo que precisa constantemente ser reelaborado, inclusive quando o objetivo é favorecer o humanismo em tempos sombrios.

Referências

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MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.

MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Todavia, 2018.

SNYDER, Timothy. Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Rosangela Patriota (Universidade Presbiteriana Mackenzie / CNPq)

Rodrigo de Freitas Costa (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)

Thaís Leão Vieira (Universidade Federal de Mato Grosso)

Organizadores


PATRIOTA, Rosangela; COSTA, Rodrigo de Freitas; VIEIRA, Thaís Leão. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Democracia, Patrimônio e Direitos: a década de 1980 em perspectiva / Anais do Museu Paulista / 2020

Os artigos reunidos nesse dossiê têm como foco as experiências e reflexões do campo do patrimônio cultural brasileiro na década de 1980. A motivação primeira que nos uniu para pensar os anos 1980 foi a percepção de um desafio historiográfico de superação dos sensos comuns da década tida como perdida, entendendo que nas práticas e políticas de preservação de patrimônio houve uma expansão sem precedentes dos espaços, temáticas e agentes possíveis. Na luta pela democracia, o patrimônio constituiu-se como lugar de tensões, debates e ações, nem sempre lineares ou bem-sucedidos, sobre as identidades, os direitos culturais e urbanos, as práticas e os conceitos estabelecidos.

A necessidade de debater a década foi impulsionada também pelos duros ataques e desmontes das instituições de cultura e de patrimônio que têm ocorrido desde 2017 e estão sendo aprofundados em 2019. A partir de uma perspectiva multidisciplinar e ampla em termos de território nacional, organizamos um encontro com pesquisadores tendo em vista o desafio de problematizar a década e os mais variados questionamentos.

Buscamos atentar para situações concretas daquele contexto e também projetar um olhar prospectivo. Nesse sentido, fontes muito variadas foram consideradas nas análises, evidenciando sua riqueza e densidade. Destaque para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que marcou presença na maioria dos artigos. A releitura dos números lançados nos anos 1980 surpreende o leitor, pelos temas variados, pela salutar presença do debate e do contraditório, de certa forma espelhando um sentimento de esperança, que tem nos feito muita falta nos dias atuais, em que só vemos a destruição de toda ordem.

Em junho de 2019, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), realizou-se o seminário “Democracia, patrimônio e direitos: a década de 1980 em perspectiva”, uma parceria da FAUUSP com a Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Os textos aqui reunidos decorrem diretamente do seminário e têm por objetivo mais geral ampliar a compreensão das práticas patrimoniais e de sua história no Brasil, concentrando-se na década da redemocratização.

Acreditando na multidisciplinaridade do patrimônio também no que se refere aos diálogos acadêmicos, foram reunidos autores com vinculações institucionais diversas, oriundas da história, geografia, sociologia, museologia e arquitetura, que se dispuseram a discutir o período lançando olhares a agentes e lugares variados, bem como produzindo narrativas a partir de suas próprias centralidades: do Ceará a Santa Catarina, passando por Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, pelas práticas de estados e municípios, pelo patrimônio natural, bens móveis, bens edificados, pelos agentes e sujeitos sociais, sem deixar de lado o chamado “patrimônio nacional”. Os textos mostram a variedade e complexidade das ações, sem a pretensão de ver nelas caráter exemplar, mas de apontar as inúmeras possibilidades de investigação. Um campo de desafios que não se encerra aqui, mas que, assim se espera, abra novos caminhos de pesquisa, reflexão e, quem sabe, ação.

A década de 1980 no Brasil foi marcada pelas disputas políticas no processo de redemocratização. As articulações para a saída do regime militar e os caminhos para a democracia levaram quase uma década de consolidação. Da Lei da Anistia, em 1979, até a Constituição Cidadã em 1988 e as eleições diretas em 1989 – de acordo com a periodização proposta para a redemocratização –, dez anos de pressões e lutas democráticas tiveram lugar. A luta por direitos urbanos e a ação dos grupos sociais nas demandas pelo direito à moradia e, sobretudo, à cidade já estavam presentes desde o final dos anos 1970 e ganharam protagonismo na década de 1980. Neste processo, assiste-se a muitas reações às sucessivas transformações do período de ditadura militar, no qual a modernização conservadora autoritária modificou, entre outras coisas, o padrão de urbanização do país.

O patrimônio cultural passou a se situar no vértice das ações e debates sobre o urbano, mas não somente nesse ponto. As disputas por memórias e narrativas acerca da identidade nacional colocaram o passado e a preexistência física das cidades no campo de disputas que pressionaram por ações para além daquelas impostas pela chamada “ortodoxia do patrimônio”. Dentro do órgão federal, à época denominado Subsecretaria ou Secretaria do Patrimônio do Histórico e Artístico Nacional / Fundação Nacional Pró-Memória (Sphan / PróMemória), e, para muito além dele em órgãos estaduais e municipais não somente do campo específico do patrimônio cultural, chegando às políticas que são formuladas a partir da Constituição, assiste-se a uma ampliação sem precedentes.

A década foi um momento de muitas transformações no pensamento sobre a preservação em âmbito nacional, redundando em ações, debates e políticas inovadoras no contexto da história do patrimônio brasileiro, que não necessariamente tiveram continuidade, como analisado neste dossiê.

O período culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, em que os preceitos de patrimônio cultural brasileiro foram legalmente transformados, incluindo toda sorte de temas da cultura e expressões que extrapolaram o excepcional. Em 2020, completam-se 32 anos desde a promulgação da nova Constituição Brasileira, e podemos afirmar que o campo do patrimônio transformou-se profundamente. Essas mudanças, largamente incrementadas pelas políticas culturais dos anos 2000, referem-se à amplitude e diversificação das políticas públicas, em conexão intersetorial, com base nos novos conceitos de patrimônio, que aproximaram a temática do universo dos direitos – urbanos, por exemplo, como o direito à moradia, e o direito à cultura. Referem-se também à inclusão de novos sujeitos no amplo debate sobre diversidade cultural brasileira, associada ao direito à memória, bem como ao reconhecimento de grupos tradicionalmente pouco assistidos pelas políticas patrimoniais, especialmente após a implantação de uma política em 2001 para a salvaguarda do patrimônio imaterial.

No caso dos afrodescendentes brasileiros, o debate remonta aos anos 1970, período em que os movimentos negros foram fortalecidos, em parte na esteira dos amplos debates que se davam nos EUA. No contexto da redemocratização, a luta antirracista e por direitos iguais tornou-se bandeira partilhada por setores progressistas da intelectualidade, que se juntaram a representantes dos movimentos negros, mediando várias de suas reivindicações no campo do patrimônio. Ao mesmo tempo, como sujeitos desse processo, integrantes do movimento passaram a lutar por espaços políticos e institucionais, para conduzir uma política de afirmação da cultura negra. No artigo de Márcia Chuva, essa discussão se coloca no âmbito das políticas de memória e patrimônio no Rio de Janeiro, a partir da análise das medidas adotadas pelo órgão estadual de patrimônio, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e pela Sphan / Pró-Memória, nos anos 1980, e, numa leitura também prospectiva, do Rio de Janeiro tornado Patrimônio Mundial nos anos 2010.

O contexto também demandava o conhecimento das práticas distintivas desse grupo formador da sociedade brasileira, e em seu artigo Márcia Sant’Anna analisa um projeto muito bem-sucedido realizado em Salvador, que foi o Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia. Mapeamentos e inventários são metodologias tradicionais no campo do patrimônio e sua utilização, nesse caso, produziu material inédito. Sua importância extrapola o evento em si, tendo contribuído para formular o conceito de patrimônio cultural, que hoje substituiu amplamente o tradicional patrimônio histórico e artístico, como também para incluir bens relacionados à cultura afro-brasileira no seletivo rol do patrimônio, tendo em vista os vários terreiros de candomblé tombados a partir do ato inaugural do Terreiro da Casa Branca em Salvador, em 1984.

Contudo, esse universo de bens ainda permanece sub-representado na lista geral de bens protegidos. Outro problema que merece ser apontado, e que se repete em outras situações, é a insistência em adotar rigores estilísticos inadequados ao tipo de bem. Vimos, portanto, mudanças importantes no sentido de novos sujeitos de atribuição de valor intervindo nas políticas de seleção, mas a gestão desses bens tombados ainda requer mudanças substanciais na cultura patrimonial. Problema similar se deu com o tombamento da Serra da Barriga, local do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, em 1985. Fruto da pressão do movimento negro, sua gestão colocava questões que se misturavam a desafios urbanos e habitacionais, para os quais a instituição federal não tinha respostas. O artigo de Joseane Brandão contém uma riqueza de informações sobre a trajetória de reconhecimento dos quilombos como patrimônio brasileiro, no qual a pesquisadora analisa o processo histórico e jurídico de construção social da categoria de comunidades remanescentes de quilombos. Esse processo teve início na Constituição Federal Brasileira de 1988, que determinou o tombamento de quilombos, enfatizando assim o caráter de reparação desse gesto. Isso ocorreu graças à pressão dos movimentos negros na Constituinte.

Num olhar prospectivo, consolida-se a ideia de pedidos de reparação como solicitações de reconhecimento. Todo esse processo tem contribuído para a reflexão sobre a escravidão no Brasil, o pós-abolição e o racismo como problemas estruturais de nossa sociedade e como oportunidade para o campo do patrimônio intervir social e culturalmente, ao associar processos de reparação ao reconhecimento do patrimônio afro-brasileiro.

Portanto, no universo dos direitos, o patrimônio aproximou-se de políticas afirmativas, de reparação e de inclusão, com experiências inúmeras e bastante diversificadas que resultaram em novas estratégias políticas. Esse crescimento do campo também resultou na e da ampliação de investigações acadêmicas e da formação profissional, com a criação de cursos de pós-graduação ou a inserção do tema em áreas de formação tradicionais, voltando-se para a reflexão sobre o patrimônio e as políticas públicas no setor, bem como sua inclusão nas graduações por meio de diversas disciplinas. Dessa forma, os trabalhos aqui reunidos são fruto do campo acadêmico do patrimônio cultural e mostram a importância da reflexão histórica sobre o assunto. Os autores se debruçam sobre aspectos diversos e complementares do período, e os artigos contribuem para a compreensão da história e da historiografia do patrimônio cultural brasileiro, uma vez que apresentam e problematizam o período de modo inédito.

Entre narrativas e práticas, o campo do patrimônio se redimensiona nos anos 1980. A historiografia é ponto-chave e talvez inicial para lançar luz sobre a década. Por isso, optamos por abrir o dossiê com o artigo de Luciano Teixeira, que aborda os primeiros passos da construção de uma historiografia do patrimônio, a partir de duas publicações seminais desse contexto, que demarcaram a possibilidade de uma escrita da história do patrimônio no Brasil. Acompanhada da efervescência dos debates que transcorriam em São Paulo, nos anos 1980, numa rede distinta de agentes e instituições, acirravam-se os debates e as disputas sobre o controle do discurso patrimonial no processo de redemocratização, especialmente no caso do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e pela Sphan / Pró-Memória, órgão de grande importância para o período, presente em todos os artigos deste dossiê. Sua história é, sem dúvida, mais uma frente de pesquisa a ser abordada, como aponta este dossiê.

Como o campo do patrimônio se distingue historicamente pelas práticas que se rotinizam na agência federal, optamos pelo contraponto entre narrativas e práticas, colocando em sequência o artigo de Beatriz Kühl sobre as restaurações realizadas pela Sphan / Pró-Memória. Justamente pela ausência de documentos reflexivos, normativos ou teóricos sobre essas restaurações desde os anos 1930, as fontes privilegiadas neste artigo foram os quatro números da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dos anos 1980, já mencionados, nos quais há densos artigos sobre restaurações emblemáticas realizadas na época. Esse material é analisado com olhar crítico, e reflete sobre a forma de circunscrição do tema e de sua abordagem, trazendo outros artigos desses números para matizar os debates sobre a restauração de então.

É consenso entre estudiosos que uma das grandes mudanças perpetradas pela modernização conservadora autoritária do regime militar foi a do perfil urbano do Brasil, dada por diversos processos, dentre os quais a urbanização e a metropolização somadas às novas conexões territoriais pela onda rodoviarista. A emergência de um debate urbano do patrimônio no Brasil surge pari passu às transformações nas cidades e às ações de planejamento urbano e territorial organizadas pelo governo militar. A pressão urbana nas cidades consideradas “históricas” e as perdas substanciais em outras tantas estão claras desde a década de 1970, mesma época em que o “patrimônio urbano” como campo conceitual se consolida no cenário internacional, com a promulgação de cartas patrimoniais e políticas urbanas específicas para áreas patrimonializadas, como aconteceu na França, Itália e Reino Unido.

No Brasil, as ações são assumidas ainda nos anos 1970 – o que tensiona, como já visto, as temporalidades da década de 1980 – pelo campo do planejamento urbano de municípios que organizaram inventários, conceitos e novas formas de acautelamento a partir de leis urbanas e planos diretores. Os conceitos de ambiente urbano e de patrimônio ambiental urbano foram mobilizados no contexto de áreas urbanas no Rio de Janeiro e em São Paulo – aqui discutidas pelos textos de Marly Rodrigues e Andréa Tourinho, Mariana Tonasso e Flávia Brito do Nascimento –, ao mesmo tempo que buscaram incluir a cidade nas práticas patrimoniais. No entanto, e apesar das importantes mudanças que foram capazes de implantar na área – com a inclusão de novos agentes e novas áreas urbanas até então não consideradas como patrimônio –, muitas vezes recaíram nos cânones arquitetônicos, protegendo bens isolados e afastando-se das demandas por consideração das relações entre habitantes e bens culturais.

Nos anos 1980, o debate sobre a cidade e o patrimônio cultural assume-se democrático em níveis municipal, estadual e federal, quando a Sphan / Pró-Memória passa a proteger muitas áreas urbanas a partir dos argumentos da história, entendendo a própria cidade como um documento. A cidade-documento, discutida no texto de Lia Motta, viabiliza a permanência do Iphan no debate urbano que passou a proteger novos núcleos urbanos e utilizar critérios inéditos, como são exemplares os casos de Laguna, Natividade e Petrópolis.

O ambiente como argumento de preservação urbana era parte de um quadro ainda mais amplo da discussão ambiental, um dos temas latentes do período. Da mesma forma, nas cidades, a pressão da urbanização desde os anos 1960 e seus impactos nefastos nas áreas ditas naturais ou nas comunidades tradicionais levou à mobilização da comunidade internacional, com o papel decisivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). No Brasil, o protagonismo do debate sobre as áreas naturais veio de dois agentes novos no campo, ainda na década 1970: a geografia e o Estado de São Paulo. O papel decisivo de Aziz Ab’Saber, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, no Condephaat, estabelecendo parâmetros conceituais para a consideração da natureza como patrimônio nos seus aspectos memoriais, foi analisado por Simone Scifoni.

A atuação do Condephaat nas áreas naturais é característica do envolvimento de novos agentes na busca pela preservação de novos objetos, espaços e práticas. A abertura do conselho às universidades públicas paulistas permitiu práticas para além das ortodoxias, emblemáticas do acolhimento de novos temas e possibilidades de expansão das práticas patrimoniais a partir da legislação de tombamento. Abertura essa hoje ameaçada, com a redução da presença das universidades no conselho. A natureza tombada era salvaguardada naquilo que tinha de valores memoriais, históricos e culturais. A criação de novos instrumentos de proteção, segundo o interesse do planejamento pela preservação urbana, aparece também nos debates sobre o licenciamento ambiental, tratado por Claudia Leal. Trata-se de uma temática urgente, em razão da recente política ambiental perversa e destruidora da vida, que vem sendo implantada no Brasil, com imensas interseções com o campo do patrimônio.

Outra vertente de atuação no campo é sua relação com a museologia, aqui também apresentada a partir do Condephaat. Inês Gouveia analisa o assunto a partir da trajetória de Waldisa Rússio, voltando-se para a contribuição teórica e política da museóloga, que incorpora na ideia de museu a noção de direito e acesso aos patrimônios e às memórias. Daí também a ampliação do debate da museologia enquanto área de conhecimento específica que ocorre nos anos 1980. A interlocução da museologia com o patrimônio fica marcada por sua atuação no grupo executivo que propõe a criação do Condephaat. Contudo, o campo museológico pouco aderiu, naquele momento, às transformações que o diálogo com o patrimônio trouxeram. Ainda assim é surpreendente o protagonismo dessa mulher, aqui tangenciado pela perspectiva dos estudos de gênero, cujas relações com o patrimônio merecem ser aprofundadas.

A cultura que adjetiva o patrimônio mudou, desde os anos 1970, as perspectivas de atuação dos novos agentes nos níveis municipal e estadual, não somente em instituições de patrimônio, mas também em associações da sociedade civil. A dimensão política da preservação tornou-se evidente nos anos 1980, como novo instrumento da luta política por direitos, aspecto que é ressaltado em vários artigos deste dossiê. O texto de Lucina Matos mostra a presença da sociedade civil organizada na valorização do patrimônio ferroviário, colocada em marcha pelos movimentos sociais e associações de defesa deste patrimônio, que lutaram pelo direito à memória e ao passado ferroviário, abrindo diálogos e embates pela sua preservação. Trata-se de um processo longo e disputado, cujos desdobramentos serão vistos quase três décadas depois com a Lei 11.483 de 2007, que atribuiu ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a responsabilidade de administrar os bens móveis e imóveis nesse âmbito da extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA).

Um aspecto fundamental do olhar voltado para a década de 1980 neste dossiê foi a possibilidade de compreender as temporalidades da patrimonialização no Brasil, constituídas ao longo das últimas quatro décadas. Se muitas das práticas foram estabelecidas nos anos de redemocratização e puderam ser, de certa forma, atendidas naqueles anos, outras tantas tiveram na Constituição de 1988 um ponto de chegada e de partida. O patrimônio ferroviário é exemplo claro: os sucessivos desmontes dos anos 1990 ampliaram as demandas do direito à memória ferroviária e se tornaram tema de atenção institucional nos anos 2000.

Este dossiê também põe em pauta aspectos regionais das políticas de patrimônio, que surgem antes mesmo dos anos 1970 em diversos locais, incentivados especialmente pelas possíveis associações entre patrimônio, turismo e desenvolvimento. A progressiva organização de movimentos e associações locais em favor do patrimônio é indício de novas narrativas patrimoniais, articuladas por argumentos de pertencimentos e identidades urbanas. Várias iniciativas dessa época trouxeram novos agentes para o campo, bem como temas ainda ausentes dos processos de patrimonialização. Um deles é a imigração e modos de vida dos colonos imigrantes no Brasil. Esse tema é trabalhado por Daniela Pistorello, que problematiza a imaginação do imigrante alemão em Santa Catarina a partir da dissecação do projeto “Roteiro Nacional da Imigração”, que gerou não apenas um enquadramento do imigrante alemão, como o apagamento de outras etnias ali presentes.

A entrada ou não de novos agentes e outros sujeitos sociais tem desdobramento nas novas visualidades no final da década de 1970 e nos anos 1980, quando a diversidade cultural se anunciava como tema. A fotografia, tal como tratada por Eduardo Costa, embora presente desde o início da atuação do Iphan, vai dialogar com distintas formas de compreensão do patrimônio, seja por meio da inclusão dos habitantes nas representações ou pelas novas profissões que se ocupam do patrimônio, como a do designer Aloísio Magalhães.

Outras formas de construção patrimonial aparecem na regionalização do patrimônio ou nas ações regionais interessadas nas tradições locais como temáticas de grande significado para o campo da cultura no Brasil, explícitas em manifestações diversas desde os anos 1960. No patrimônio, novamente, a temporalidade dessas explorações conceituais finca raízes nos anos 1970: por exemplo, nas tão propaladas ações do Centro Nacional de Referência Cultural de Aloísio Magalhães (CNRC). A experiência do Centro de Referência Cultural do Estado (Ceres), entre 1975 e 1990, tratada por Antonio Gilberto Nogueira, de mapeamento e registro audiovisual da memória da cultura tradicional popular no Ceará é também emblemática do alcance das ações locais e de seus efeitos na relação entre cultura e turismo.

O debate sobre o local ou, mais especificamente, dos estados e municípios na valoração e gestão do patrimônio tem se intensificado desde a década de 1970. A questão regional e a ação dos estados e municípios – em caráter colaborativo e não concorrente, tal como posto no Artigo 216 da Constituição – são um dos temas ainda importantes e irresolutos para o patrimônio no Brasil. A tentativa de estabelecer um sistema nacional de patrimônio nos anos 2000 e os ensaios de gestão compartilhada que começaram nos anos 1980 têm sido interrompidos ou são pontuais. Na época, as experiências se basearam no planejamento urbano ou na criação de instituições municipais e estaduais de preservação, sendo o caso de Belo Horizonte, tratado por Flávio Carsalade, significativo para pensar a questão, principalmente quando Minas Gerais assumiu o protagonismo ao incluir municípios na valorização e salvaguarda do patrimônio a partir da “Lei Robin Hood” de 1995. Como essas experiências mimetizaram a legislação federal de preservação e seguiram a ortodoxia do patrimônio nacional ou abriram novos caminhos de valoração é ainda campo de investigações futuras. As questões aqui tratadas apontam para a reiteração de lógicas fincadas no patrimônio arquitetônico e monumental, ao mesmo tempo que buscam novas formas de acautelamento e proteção.

Como se pode confirmar com a leitura deste dossiê, as mudanças no campo do patrimônio condensadas nos anos 1980, e sintetizadas no marco legal da nova Constituição, são evidentes e passaram, acima de tudo, por uma análise diacrônica. Desse modo, a reflexão se deu em conjunto, por vezes indiretamente, sobre a hegemonia da chamada ortodoxia do patrimônio, com seu império estético e formal, e trouxe à luz inúmeras situações que dela divergem ou com ela se confrontam. Apontou também aqui a inércia dessa ortodoxia, que ainda perdura nos dias atuais. Talvez em posição menos evidente, mas ainda em combate.

É na dimensão política da preservação evidenciada nos anos 1980 que nota-se uma mudança estrutural, capaz de suscitar novos paradigmas, colocados em disputa no campo. Isso diz respeito à ideia de que o patrimônio não existe em si e, portanto, não pode mais ser (des)vendado ou (des)coberto. Tudo o que alcançou o status de patrimônio cultural – categoria também forjada naquele contexto – tornou-se patrimônio pela vontade dos homens.

Evidentemente, não tivemos a intenção de esgotar todas as frentes que a política patrimonial abrange, tampouco trazer casos exemplares para o dossiê. Buscamos, sim, enfatizar a complexidade do campo e, sobretudo, apontar o modo como integra a história política e social brasileira, recusando a abordagem empobrecedora que coloca o tema à parte, como assunto apenas técnico, para digestão por especialistas.

Desejamos uma boa e instigante leitura!

Referências

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VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana [online], v. 12, n. 1, p. 237-248, 2006. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2020.

Flávia Brito do Nascimento – Professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, obteve o título de mestre e de doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Realizou pós-doutorado na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. https: / / orcid.org / 0000-0002-6889-7614

Márcia Regina Romeiro Chuva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós- -doutorado na Universidade de Coimbra. Pesquisadora do CNPq. É professora associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).


CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.28, p.1-12, 2020. Acessar publicação original  [DR].

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História da Arte e da Cultura | Unicamp | 2020

Historia da Arte e da Cultura

Revista de História da Arte e da Cultura (Campinas, 2020-) é uma publicação vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e uma iniciativa do Centro de História da Arte e Arqueologia (CHAA), desta universidade. Seu principal objetivo é promover um contínuo desenvolvimento da História da Arte e da Cultura no Brasil, relacionando-as com a produção internacional da área.

Revista de História da Arte e da Cultura é a continuação natural da Revista de História da Arte e Arqueologia (RHAA), que em seus 24 números, entre 1994 e 2015, tornou-se referência das revistas científicas brasileiras na área, além de ser a primeira a tratar as duas disciplinas de modo correlato. O objetivo da nova RHAC é continuar com excelência o trabalho, adequando-se às novas necessidades e determinações dos padrões internacionais das revistas acadêmicas.

Primeiro a Revista de História da Arte e Arqueologia e agora a Revista de História da Arte e da Cultura são partícipes do crescente interesse na disciplina, que no departamento de História da Universidade Estadual de Campinas cristaliza-se com a área de concentração em História da Arte e suas linhas de pesquisas. Este periódico afirma o compromisso com a área e sua divulgação em um cenário internacional. Sua publicação online garante uma irrestrita visualização a todos os interessados na disciplina.

A RHAC tem por objetivo a publicação e divulgação da produção acadêmica na área de História da Arte e da Cultura. Abrange textos voltados particularmente à reflexão sobre a visualidade, em suas conexões com o campo cultural. A publicação de trabalhos em português, inglês, francês, italiano e espanhol facilita o acesso a leitores brasileiros e estrangeiros. Publica inéditos de especialistas nacionais e estrangeiros nas seguintes modalidades: artigos, resenhas, entrevistas e transcrições de documentos. Propostas para dossiês podem ser encaminhadas para aprovação no conselho.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2675-9829

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Humanidades Digitais / Estudos Históricos / 2020

Este número de Estudos Históricos tem por tema “Humanidades digitais”. Trata-se de um rótulo recente, abrangente e pouco preciso. Nele, pode-se incluir tudo que signifique a aplicação de computação e de tecnologias digitais ao universo das humanidades. O pano de fundo é a expansão de big data, conjuntos de dados grandes demais para serem analisados por formas tradicionais de pesquisa.

Não há uma visão consensual sobre o que é esse mundo. Para alguns, trata-se de um novo campo de conhecimento; para outros, seria mais uma “comunidade” de práticas de pesquisa. De qualquer forma, podemos afirmar ao menos duas coisas com segurança: primeiro, que se trata de um mundo profundamente multi e interdisciplinar; segundo, que a prática da pesquisa de cientistas sociais e historiadores será, se já não o foi, profundamente alterada. Temos, assim, tanto uma riqueza em termos de potencialidade criativa quanto um desafio em termos de formação profissional. Não se trata de substituir o “artesanato intelectual” de que tratou C. Wright Mills por computadores e inteligência artificial, mas de continuar existindo o que ele chama de “imaginação sociológica” nesse admirável (?) mundo novo.

Os artigos selecionados para este número, bem como a entrevista com o professor Matthew Connelly, permitem-nos, para além de seus objetos específicos, conhecer um repertório variado de possibilidades de pesquisa, bem como alguns caminhos que os pesquisadores têm utilizado. Esperamos que sirvam de inspiração para outras explorações.

Referência

MILLS, C. W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

Celso Castro – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV) e Editor convidado da Revista Estudos Históricos. E-mail: [email protected]


CASTRO, Celso. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.69, jan. / abr.2020. Acessar publicação original [DR]

Ensino de história, história das mulheres e desigualdades sociais no Brasil / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2020

O dossiê Ensino de história, história das mulheres e desigualdades sociais no Brasil é um convite a um presente e um futuro feministas. A obra conta com um conjunto de ações concretas, propositivas e imediatas dos ensinos de história dentro do campo da história das mulheres e dos estudos de gênero. De norte a sul, de oeste a leste do Brasil, o dossiê em tela recebeu artigos que são atravessados pelas discussões acerca dos marcadores sociais de gênero, de classe e de raça. São contribuições dos fazeres da história que permeiam temas e problemáticas distintas. Além disso, abrangem uma diversidade de fontes documentais – legislações, livros didáticos, literatura, oficinas temáticas, literatura de cordel, história oral, fontes digitais e iconográficas, entre outras –, cotejando metodologias de pesquisa e dos ensinos de história. Trata-se de uma riqueza que amplia a perspectiva de gênero e não se encerra em si mesma, abre caminhos e condições de possibilidade para futuras reflexões, relacionando ensino, pesquisa e extensão – tripé caro aos institutos federais e às universidades–, bem como os desafios para a Educação Básica.

Dentro da perspectiva do engajamento militante e de mobilização política, o dossiê aborda vozes marginalizadas e invisibilizadas pela história, tais como a de Dandara dos Palmares e a representação de mulheres negras em dois livros didáticos do Ensino Fundamental. Vidas ressignificadas pela educação, pela história das mulheres e pela história pública mantêm o vínculo entre o feminismo e potencialidades de um ensino posicionado. Entre avanços e desafios, as ações do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) na formação inicial das professoras para o exercício da docência inauguram uma estratégia política por meio do acesso à educação formal, incluindo igualdade e senso de justiça social.

É precisamente por meio do ensino de história e do combate à violência de gênero no Brasil contemporâneo que se assume a responsabilidade de erradicar a violência sistêmica e estrutural. A esse respeito, as lutas políticas e sociais por meio da educação assumem papel fundamental. O dossiê é norteado por caminhos reflexivos por entender que é possível operacionalizar os feminismos partindo das margens do ensino de história, corroborando com as discussões que vêm sendo desencadeadas desde a década de 1980, pautadas pela ideia de que não somente as mulheres brancas, da classe média e de países do Norte Global produzem história.

Em se tratando do Brasil, presenciam-se feminismos plurais e transdisciplinares que emergem nos entre-lugares sociais e políticos que compõem o escopo deste dossiê. Outrossim, os feminismos mobilizados por meio dos artigos se mostram potencializadores de críticas às desigualdades sociais e às discriminações das diferenças. Nesse sentido, pensar as relações de gênero por meio de oficinas temáticas se propõe como uma perspectiva de discussão das práticas históricas e sociais alicerçadas no patriarcado e no racismo estrutural secular. Construindo caminhos, trilhando possibilidades de ensinar histórias no chão das escolas, professoras e estudantes enfrentam os silêncios que persistem na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCCEM), nos livros didáticos e em outros documentos normatizadores dos ensinos, defendendo uma pedagogia feminista voltada para um mundo justo com equidade de gênero.

Por fim, esse espaço de reflexão crítica é fruto da acolhida que a chamada do dossiê recebeu. Foram 92 artigos submetidos a avaliação que sinalizam a potencialidade dos debates relacionando ensino de história, história das mulheres e marcadores sociais; e, sobretudo, evidenciam o compromisso de professoras e estudantes no enfrentamento cotidiano da estrutura de violência de gênero. Como reconhecimento de sua latência, o dossiê foi agraciado pela entrevista inédita da historiadora e feminista Joana Maria Pedro, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A todas, dedicamos o nosso agradecimento pelo trabalho e pelas inspirações!

Kênia Érica Gusmão Medeiros – Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás – UFG (2019). Mestre em História pela Universidade de Brasília – UnB – (2011). Graduada em História pela Universidade Estadual de Goiás – UEG- (2008). Atualmente docente do quadro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG).

Gilmária Salviano Ramos – Doutorado em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2015), com período sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris (2013). Mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2009). Graduação em História pela Universidade Federal de Campina Grande (2006). Professora Visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa / MG.

Paula Faustino Sampaio – Graduada em Licenciatura em Historia pela Universidade Federal de Campina Grande (2006) e mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2009). Atualmente, é Professora Assistente II da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Rondonópolis e cursa doutorado em História pelo PPGH / Universidade Federal da Grande Dourados.


MEDEIROS, Kênia Érica Gusmão; RAMOS, Gilmária Salviano; SAMPAIO, Paula Faustino. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 14, n. 27, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Mulheres e Gênero na Historiografia Capixaba | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2020

O presente dossiê é fruto de reflexões que vêm ocorrendo há quase duas décadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), notadamente a partir da criação do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG). A institucionalização desse campo de estudos, em especial com pesquisas sobre mulheres, tem contribuído para promover na historiografia capixaba novas perspectivas e novos objetos. Este é um movimento de renovação devedor de muitas fontes. Está atrelado tanto a mudanças de paradigmas nas Ciências Humanas, quanto a uma tradição capixaba de memória e história que começou a ser repensada a partir da publicação de obras pioneiras, como A mulher na História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes.

Escrito nos idos dos anos 1950, mas publicado somente em fins da década de 1990, a obra de Novaes pode ser lida em diálogo com uma vertente mais testemunhal e memorialística, mas que indica uma busca de espaço pouco discutida até então sobre a urgente necessidade de se narrar as experiências marginalizadas de mulheres. De lá para cá, a historiografia produzida no Espírito Santo vem trilhando um longo caminho, no esforço por consolidar os estudos sobre mulheres e relações de gênero. Nesse ponto, uma crítica é pertinente, pois se houve avanços incontestáveis de abordagem e método, ainda estamos longe de ter uma extensa produção acadêmica pautada nas temáticas de gênero, com pesquisas que privilegiem o enfoque regional. Leia Mais

Ideias e práticas econômicas no mundo atlântico: liberdade, circulação e contradições entre os séculos XVII e XIX / Cantareira / 2020

Ao longo das últimas décadas, o mundo atlântico e seus desdobramentos no campo conceitual tem, cada vez mais, ganhado destaque nas produções historiográficas. Há uma ressignificação na abordagem usada, em detrimento de certa historiografia tradicional, que admitia o mundo atlântico como uma barreira geográfica e política. Esta nova interpretação historiográfica se vale das conexões. Passa a ser entendido, portanto, como espaço de trocas, circularidades e trânsito de pessoas e ideias. Esse movimento teórico-conceitual encontra expoentes na historiografia internacional e nacional a partir dos anos 1980 e, ainda hoje, apresenta caminhos oportunos a serem explorados. O objetivo do dossiê não é se pautar em uma única historiografia ou autor, mas abrir espaço para um conjunto de trabalhos que compõem esse movimento intelectual.

O rompimento com os paradigmas de categorias de análise inflexíveis, como, por exemplo, a dualidade antagônica metrópole-colônia, foi um passo importante para a adoção de uma perspectiva renovada. Mas ainda é preciso romper com a universalidade de conceitos que, muitas vezes, são mobilizados de forma acrítica. Na formação do mundo atlântico, as ações e ideias eram muito mais complexas do que os conceitos tradicionais podem sugerir. Compreendendo a complexidade das relações intelectuais e das práticas econômicas, mostra-se imperioso pontuar as singularidades a partir das quais se conformam as ideias para além da realidade social, política e econômica europeia ao longo do tempo.

Os interesses que permeiam as pessoas e instituições que formam este novo cenário de uma primeira globalização traz à tona novas formas de pensar inauguradas com o contato entre os povos e a ascensão de uma latente ordem comercial que começa a tomar forma e constituir os ditames das políticas construídas na europa e no comércio ultramarino. Contudo, é importante atentar que esmiuçar o pano de fundo das empreitadas coloniais, em seus diversos aspectos, não é mitigar o processo de brutal dominação ocorrido.

O objetivo do presente dossiê não é apresentar contribuições de determinada corrente historiográfica. Trata-se, na verdade, de reunir trabalhos que, a partir de perspectivas teóricas diversas, dialoguem entre si e, ao mesmo tempo, expressem a complexidade de abordagens no cenário atlântico. Os artigos presentes no dossiê apresentam variações de temas e abordagens que a História Política e a História Econômica podem oferecer. Compreender a multiplicidade de interesses que formaram os impérios e as rotas comerciais na idade moderna – em seu lado micro e macro – torna-se, portanto, a proposta central deste dossiê. O trabalho de Steven Pincus é uma referência nesta questão, pois mostra a ineficácia de se trabalhar com conceitos totalizantes, como o “mercantilismo” e compreender as disputas internas que ocorrem no interior deste.

As novas interpretações historiográficas acerca do atlântico nos permitem questionar o papel das colônias como simplesmente replicadoras das políticas, práticas econômicas e pensamentos originados no cenário europeu. O conceito de “histórias conectadas”, proposto por Sanjay Subrahmanyan, coloca em evidência as conexões e supera a falsa ambiguidade de uma historiografia eurocentrada.

O dossiê contém cinco artigos que articulam temas de economia, ideias econômicas, administração estatal, cultural material e redes de poder. E provém uma dimensão do que está sendo produzido no sentido de aprofundar o debate da história econômica.

O primeiro destes, de autoria de Alice Teixeira, “Cultura material e o cotidiano do trabalho no Estado do Grão Pará e Maranhão no final do século XVIII e início do século XIX”, investiga – a partir de inventário e relatos de viajantes – como se dava a relação construída entre a dinâmica do mercado externo e as populações locais nas empreitadas agrícolas da região.

O artigo propõe uma visão ampla sobre o comércio regional, atenta à agência dos indivíduos, por meio da descrição de seus objetos O artigo seguinte, “Comércio de cabotagem e tráfico interno de escravos em Salvador (1830-1880)”, de Valney Filho, traz importantes observações sobre o tráfico intra e interprovincial, articulando o comércio de cabotagem e as companhias atuantes nesta dinâmica. A pesquisa aponta para a complexidade das dinâmicas sociais e econômicas na comercialização dos escravizados, por meio de um intenso trabalho com fontes.

O artigo de Débora Ferreira, “Uma bandeira da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá vai aos domínios de Castela”, examinou, a partir de um estudo de caso, as redes de poder que compunham o cenário político e econômico colonial. Tratando da “bandeirinha sertaneja” em meados do século XVII, a autora demonstra as disputas de poder entre certos agentes e instituições que tinham interesse em negociações com a Coroa.

Diogo Gomes, por sua vez, no artigo “Rendas e encargos das finanças municipais: uma análise da atuação do Conselho Geral de Minas Gerais nos primeiros anos do Império do Brasil (1828-1832)”, propõe uma análise da atuação do Conselho Geral Províncias, especialmente em Minas Gerais. O autor mobiliza as atas do Conselho a fim de identificar as funções deste órgão administrativo e compreender sua atuação, enquanto instância intermediária entre as câmaras municipais e o poder central, diante de um novo sistema político estabelecido, com ênfase na dimensão econômica atribuída à cobrança de tributos pelos municípios e pelas províncias.

O artigo “A produção de café na Vila de São João de Itaboraí e sua comercialização em Porto das Caixas (1833-1875)” é escrito por Gilciano Costa. Trata-se de uma pesquisa de História Regional em que se pauta a formação socioeconômica de Itaboraí, por meio da cultura cafeicultora e seu comércio. A pesquisa empenhada apresenta fontes e dados diversificados de registros de época para remontar a trajetória do café na região.

Por fim, a entrevista realizada com o professor português, José Subtil, da Universidade Autónoma de Lisboa, partindo de sua trajetória acadêmica, elucida certos questionamentos concernentes às discussões historiográficas sobre as instituições e o aparelho jurídico e administrativo. Versa, também, sobre questões atuais da História enquanto conhecimento acadêmico, como a sua relação com o público e possíveis direcionamentos para a ciência histórica.

Leonardo Cruz – Graduando IH / UFF E- mail: [email protected]

Matheus Basilio – Graduando IH / UFF E-mail: [email protected]

Matheus Vieira – Graduado IH / UFF E- mail: [email protected]


CRUZ, Leonardo; BASILIO, Matheus; VIEIRA, Matheus. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.32, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Nova História militar / Antíteses / 2020

Nova História militar / Antíteses / 2020

A designação “História Militar”, como quase tudo em História, está sujeita a discordâncias, controvérsias e disputas. De fato, como gênero historiográfico, a História Militar surge no final dos Oitocentos, derivada das histórias nacionais, isto é, emerge como narrativa das guerras que deram origem e formação dos Estados Nacionais naquele período.

Como consequência, as doutrinas sobre a Guerra, a do militar prussiano Carl von Clausewitz e, especialmente a de Jomini, marcaram a compreensão da História Militar de uma perspectiva ciceroniana, isto é, uma espécie de “mestra da vida”. Tratava-se de compreender os “acertos”, mas principalmente os “erros” militares para corrigi-los tendo em vista a realização da guerra, conceituada como “continuidade da política por outros meios”, fórmula célebre em determinados meios civis e militares.

Neste sentido, a História Militar tinha um aspecto didático muito claro: ela propiciaria exemplos para a formação das novas gerações de militares. Exemplos de guerras bem ou mal sucedidas, mas também, de guerreiros heróis (modelos morais) que serviriam para inspirar as novas gerações de soldados. Assim, este tipo de história militar, configura uma espécie de repositório moral que se coloca no plano da memorialística, da mitificação, fruto de uma reconstrução do passado com finalidade doutrinária.

Se assim fosse, porém, os historiadores contemporâneos pouco teriam a dizer sobre fenômenos militares. Mas felizmente não é o caso. A História Militar stricto sensu, isto é, enquanto campo historiográfico, emerge da ruptura da historiografia com a história nacionalista colocando em foco os homens, suas ações, dilemas e tragédias, com base em investigação temática e documental diversa e multifacetada. Assim não só aquela velha “história militar” se torna fonte e objeto de investigação, como também novos temas como as instituições militares, seu funcionamento e idiossincrasias, a vida dos soldados, o quotidiano das guerras, os estudos de gênero, focalizando a presença de mulheres e gays no âmbito das Forças Armadas, bem como a desconstrução das batalhas, dentre outras inúmeras problemáticas.

No caso do Brasil, a história militar tem especial interesse. Não porque o país tenha participado de extensas guerras. Ao contrário, stricto sensu podese dizer que a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai foi, de fato, o único conflito externo travado pelo Brasil e com participações limitadas, mas de grande impacto interno, na I e na II Guerras Mundiais. O que também torna o estudo das questões militares no Brasil relevante reside na longa tradição de participação dos militares na política nacional.

Embora alguns analistas datem o início destas intervenções com o golpe militar que instituiu a República, este evento foi a manifestação pública de um processo que se desenvolvia, pelo menos desde meados do século XIX, acelerado pela crise provocada pelo conflito no Prata.

Recentemente, no período da assim chamada redemocratização brasileira, houve um renovado interesse nas discussões acerca da defesa nacional, e neste contexto, por iniciativa civil, foi criada a ABED- Associação Brasileira de Estudos de Defesa, que tem por objetivo o estudo de questões de defesa.

Por outro lado, além dos estudos de defesa, na ABED, formou-se também um grupo vinculado ao estudo da História Militar. Este grupo cresceu e adquiriu autonomia e dimensão suficientes para criar um Simpósio Nacional de História Militar em 2016, um Grupo de Trabalho de História Militar no âmbito da ANPUH- Associação Nacional de História em 2019 e, finalmente, desde o IV SNHM realizado na Universidade Estadual de Londrina, também em 2019, buscar a criação de uma Associação Brasileira de História Militar.

O que importa ao grupo de pesquisadores da História Militar é a colaboração acadêmica na área de História, da iniciação científica à pósgraduação. Isto tem promovido a aproximação dos historiadores que se dedicam à pesquisa dos fenômenos militares.

Finalmente, cabe destacar que o presente dossiê é parte das contribuições que a Universidade Estadual de Londrina e o Programa de Pós-Graduação em História Social têm dado continuamente à área. Em 2009, a UEL sediou o III Encontro da ABED. Naquele mesmo ano, foi publicado um dossiê sobre História e Defesa nesta revista. Em 2010, foi publicado um dossiê sobre os Cem Anos da Revolta da Chibata e, em 2014, um tematizando a Cultura Marítima. Além disto, em 2019 o Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais Política e Mídia, o GT de História Militar da ANPUH do Paraná, o Departamento de História e o Programa de Pós Graduação em História Social organizaram, com a colaboração dos GTS de História Militar do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, o IV Simpósio Nacional de História Militar. Paralelamente, organizou-se o presente dossiê sobre a Nova História Militar.

Foi uma honra ter contato com a colaboração, na organização deste, dos professores António Manuel Fernandes da Silva Ribeiro do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas -Universidade de Lisboa e Francisco Eduardo Alves de Almeida da Escola de Guerra Naval, cuja presença aponta para uma ampliação da colaboração internacional no campo e com o Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina.

Não foi surpresa, assim, o grande número de artigos enviados para a Revista, num total de vinte e quatro. Difícil a tarefa de selecionar os onze textos aqui publicados e que constituem uma amostragem da excelência do campo.

Abrindo o dossiê, no texto “Na perda da opinião, arrisca-se um reino”, Marcello Loureiro analisa as condições da guerra nos séculos XVI e XVII, para compreender as tentativas de formação das opiniões durante os conflitos. Faz um balanço da historiografia acerca da questão da opinião coletiva na modernidade, seguido dos estudos de caso da monarquia portuguesa em torno da entrega de Pernambuco em 1648, mas elenca também exemplos da península itálica e da França, para concluir que é preciso superar a lógica de uma doutrina militar – especialmente a clausewitiziana – para se compreender os conflitos da modernidade.

Na sequência, Ana Paula Wagner e Bruno César Pereira no artigo intitulado “Que sendo de uma indispensável necessidade para a confecção do exército, em que consiste a manutenção e a defesa dos meus reinos: Notas sobre a nova forma de se fazer recrutas no Império Português (Século XVIII)”, analisam a reforma das formas de recrutamento paras as Tropas Regulares do Império Português, destacando as preocupações em delimitar o perfil dos homens a serem recrutados e as estratégias utilizadas por estes para eximir-se de sentar-praça.

Já Christiane Figueiredo Pagano de Mello, em seu texto “Política Militar Pombalina: nas áreas de alto e baixo risco de guerra” desvenda a estratégia ‘Defender para povoar’ da administração pombalina analisando os efeitos das reformas militares do período na região do Macapá, considerada como território de alto risco. Faz para isto, uma comparação com as regiões norte e centro-sul da América para compreender de modo mais amplo a política militar portuguesa nas suas colônias ultramarinas.

Por sua vez, Sérgio Willian de Castro Oliveira Filho, no texto “Em prol da moralidade e da disciplina: os oficiais do culto da Marinha imperial ente 1822 e 1865”, analisa – no contexto da institucionalização da Marinha – que pouco se fez para a efetivação de um Corpo Eclesiástico profissionalizado. Assim, recupera a atuação dos oficiais de culto da armada imperial e os discursos da imprensa e dos relatórios de ministros sobre estes oficiais e suas atribuições.

Em instigante artigo intitulado “Corrupção na armada imperial: fraudes no provimento de carvão para os navios de guerra da Marinha ( 1877-1879)”, Pablo Nunes Pereira e William Gaia Farias discutem o tema pouco explorado processos de corrupção no abastecimento do carvão para os navios de guerra situando-o em um contexto de transformações em máquinas de navegação, embarcações durante o desenvolvimento do capitalismo industrial da segunda metade do século XIX.

Ludolf Waldmann Júnior, analisa em seu artigo os Programas Navais da Argentina durante a Segunda Guerra Mundial, demonstrando que, inicialmente, os planos de renovação da esquadra foram feitos tendo em vista retomada da hegemonia argentina na América do Sul, numa complexa teia de relações que articulavam questões externas e internas. Ao longo da guerra, no entanto, e devido às mudanças tecnológicas na construção naval e nos armamentos, estes planos foram se modificando.

Entre 1937 a 1947, Apolônio de Carvalho filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, lutou na guerra civil espanhola ao lado dos republicanos e engajouse na resistência francesa ao nazismo. A trajetória antifascista, bem como as memórias que produziu sobre esta militância é estudada por Marco Antonio Machado Lima Pereira, em envolvente artigo sobre este oficial do Exército, que lutou também na resistência à ditadura militar no Brasil e foi militante do Partido dos Trabalhadores desde sua fundação.

Rosemeri Moreira aborda em seu texto “Heroínas, gênero e guerras” as representações do feminino e das heroínas de guerra presentes na imprensa militar dos anos de 1942 a 1945. São analisadas diferentes publicações sobre as mulheres nas revistas militares: A Defesa Nacional; Nação Armada e Revista Militar Brasileira.

Em texto instigante, Francisco Cesar Alves Ferraz demonstra que o fato da composição racial da Força Expedicionária Brasileira – FEB, espelhar a estrutura multiétnica da sociedade brasileira, foi um resultado não planejado pelas autoridades do Exército. Estas desejavam uma composição de “elite” em termos físicos e de alfabetização, mas enfrentaram dificuldades – resistência mesmo – no recrutamento de membros das classes mais elevadas e da classe média brasileira predominantemente “brancas”, o que resultou em uma tropa mais diversa do ponto de vista racial.

Claudio Beserra de Vasconcelos em seu artigo sobre a Escola Superior de Guerra (ESG), analisa as políticas repressivas aplicadas a militares após o golpe de 1964, baseadas nas doutrinas de segurança nacional e de guerra revolucionária. Desvenda assim não apenas as fundamentações ideológicas e políticas, mas também os métodos e focos deste processo.

Finalmente, Francisco Eduardo Alves de Almeida, demonstra no seu artigo, o ainda pequeno número de trabalhos sobre História Naval nos meios acadêmicos, a partir de levantamento do catálogo de teses e dissertações da CAPES entre os anos de 2016 e 2018. Serve como estímulo aos pesquisadores a se debruçarem sobre a temática em seus trabalhos já que se trata de campo fértil e inexplorado pelos historiadores.

Há indícios notáveis de que os estudos de História Militar no Brasil têm enorme potencialidade e muito trabalho a fazer. Como se sabe, o futuro é imprevisível, mas por esta amostragem podemos ao menos divisar que o papel da História no processo de construção de conhecimento sobre os fenômenos militares, do passado e do presente, é fundamental para a democratização da sociedade brasileira.

José Miguel Arias –  Universidade Estadual de Londrina.

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Medievalismo (s), neomedievalismo e recepção da Idade Média em períodos pós-medievais / Antíteses / 2020

Em Busca dos Dragões: a Idade Média no Brasil

O que é medievalismo pós-colonial?

Em sua forma mais reconhecida, o medievalismo é o reaproveitamento de elementos considerados “medievais” em qualquer formato e época após o fim da Idade Média histórica. Essa cronologia histórica está associada aos anos 500- 1500 da era cristã e cobre desde a queda de Roma até o Renascimento. Nesta primeira posição teórica da disciplina, no entanto, os estudos do medievalismo pressupõem, por um lado, o fim da Idade Média e, por outro, um reuso consciente de que esta Idade Média constitui-se num período do passado, um período que deveria ter terminado para que o medievalismo propriamente dito pudesse começar. Leslie Workman estabeleceu essa separação no primeiro volume da revista Studies in Medievalism (SIM), onde observou que “o medievalismo só poderia começar, não simplesmente quando a Idade Média tivesse acabado, quando quer que tenha sido, mas quando a Idade Média foi percebida como algo no passado, algo que era necessário reviver ou desejável imitar” (WORKMAN, 1979, p. 1, tradução nossa). [3]

Essa separação em relação a um tempo que se encerrou e sua percepção como ocorrida no passado não é especialmente problemática para os centros hegemônicos de conhecimento. Para os centros hegemônicos, sua própria Idade Média é uma época histórica que já acabou e que está, em seu próprio imaginário, cuidadosamente colocada além da realidade cotidiana. Mas essa mesma posição teórica acerca do final do período medieval cria dificuldades nas áreas pós-coloniais ou no chamado mundo subdesenvolvido. As áreas póscoloniais são consideradas como carentes de um verdadeiro passado medieval europeu e, ao mesmo tempo, são em sua maioria vistas como sociedades atrasadas, sociedades anacrônicas onde continuam os modos de vida medievais que estão fora de sincronia com o presente. Como outros países do sul global, o Brasil sofreria de ambos os problemas, tanto pela falta de uma Idade Média própria que lhe permitisse estudar o “após” de uma autêntica era medieval, quanto pelo fato de grande parte de sua extensão continuar a ser considerada por muitos como uma sociedade ultrapassada que ainda vive dentro de uma certa Idade Média. Nessas condições, então, o que significa estudar “a Idade Média” e o medievalismo no Brasil?

Os estudos pós-coloniais podem nos ajudar a reconhecer as razões e diretrizes de tal projeto. Diante da noção mais comum nos estudos do medievalismo (de que há uma Idade Média histórica que é reutilizada e volta a se difundir após 1500), uma perspectiva pós-colonial sobre a disciplina e um compromisso explícito com localidades fora da Europa nos mostram um panorama distinto. Ao contrário da posição comum acima mencionada, estas localidades permitemnos perceber mais claramente que, antes que um reaproveitamento da “Idade Média” possa ocorrer, uma ideia prévia do que é a “Idade Média” deve ser criada para o seu consumo e sua nova difusão.

Como exemplo, podemos citar dragões. Não há dúvida de que os dragões jamais existiram, nem na época medieval ou antes dela, e que, como criaturas do universo fantástico, encontram-se tanto fora da Europa como em tempos anteriores à Idade Média, como no caso da China. É também notável, no entanto, que hoje em áreas cultural e economicamente hegemônicas os dragões se tornaram um elemento frequente em cenários “medievais”, não aparecendo menos que castelos, armaduras e monarcas. O medievalismo como disciplina, então, não é sobre se os dragões existiam na Idade Média real ou cronológica. O que o medievalismo aborda é o fato de que hoje os dragões se tornaram elementos comuns da ideia de “medieval” nas produções culturais do Atlântico Norte. Ressalte-se que os dragões não foram os elementos primários da ideia do medieval no século XIX, mas pode-se dizer que eles o são no medievalismo do século XXI no Atlântico Norte. O que podemos aprender com esses “dragões”, então, é que os elementos associados ao medievalismo mudam com o tempo e que devem ser formulados como “medievais” antes que possam ser difundidos efetivamente em um lugar e tempo específicos. Da mesma forma, este exemplo nos permite apontar que a necessidade de que um componente seja inventado como medieval antes que se possa usá-lo como medieval também se aplica a centros hegemônicos e a geografias que supostamente tiveram sua própria e verdadeira Idade Média. Em centros e geografias com passado medieval histórico, esses elementos não devem ser considerados ou tomados como mais “autênticos” ou menos inventados do que nas periferias. Em outras palavras, qualquer lugar e qualquer época terão que ter formulado e difundido seus próprios “dragões”—seus próprios elementos do que é “medieval” e com eles suas próprias versões e seus próprios reaproveitamentos locais do medievalismo. Um estudo de quais são as versões brasileiras de “o medieval” e, portanto, de quais são suas próprias formas de medievalismo, é o diálogo que começa a se realizar através desse dossiê.

Sendo um novo campo de estudos, este dossiê também mostra a tensão que existe entre as obras que acompanham os estudos do medievalismo tal como são definidos em suas versões anglófonas, e a compreensão pós-colonial mais ampla do campo no qual o Brasil, para seguir nossa própria metáfora, encontrará seus próprios “dragões”. Essas tensões e as dificuldades que o conhecimento hegemônico cria nas tradições pós-coloniais de conhecimento não são novas. Por exemplo, após um encontro em São Paulo em 2003, organizado por colegas europeus francófonos com o objetivo de aprender como era a Idade Média do “além-mar” da América do Sul, o professor francês Joseph Morsel se mostrou decepcionado devido ao caráter imitativo dos estudos medievais na América Latina. Ele observou que esses estudos usaram a mesma construção cronológica, os mesmos métodos e as mesmas metodologias possíveis que na Europa. Morsel reclama que, embora os ibero-americanos olhem para a Idade Média “do equador”, eles claramente não a vêem de forma diferente dos europeus ou oferecem algo que os europeus não tenham visto (MORSEL, 2003, p. 3). Ao contrário, os ibero-americanos teriam simplesmente importado as diretivas europeias para seus próprios estudos. O que, então, o Brasil pode oferecer se for apenas um derivado deslocado fazendo o mesmo e da mesma forma que os centros hegemônicos?

Como muitos neste dossiê reconheceram, uma boa resposta é o medievalismo. O medievalismo é uma forma produtiva e intelectualmente estimulante de lidar precisamente com o uso local do “medieval” e das funções que o medieval tenha exercido em um cenário específico como o Brasil. Porque o medievalismo está interessado no lugar e na época em que o medieval é difundido, seja na Austrália, França ou Brasil: que função ele teve? Por que foi usado? Com que efeitos? Quais foram as razões para inventar um determinado elemento como “medieval” em uma época e lugar específicos?

Estipulemos também claramente que os estudos de caráter derivativo não são um problema exclusivo do “equador” e são encontrados em universidades europeias, marcadas por um nepotismo evidente, ou em universidades do Atlântico Norte, onde a falta de financiamento suprime a maioria dos projetos de pesquisa mais inovadores. Há também uma certa facilidade em exigir desde os centros de produção intelectual que as periferias acadêmicas “nos surpreendam” e “nos deem” algo novo e desconhecido. Em sua forma mais crua, essas expectativas são transformadas em uma forma de extrativismo, em que geografias menos familiares fornecem uma “renovação” e novos materiais para localidades hegemônicas, estas já talvez sem brilho ou absortas em suas rotinas, mas ainda exercendo autoridade. Junto com o desejo de novidade, uma questão semelhante é que é muito fácil saber pouco ou nada sobre o que acontece e é feito nas periferias, exceto quando esses trabalhos se enquadram em contextos disciplinares reconhecíveis. Há, portanto, uma linha tênue que separa o fornecimento de produções acadêmicas que são “iguais”—e, portanto, imitativas e desinteressantes—e fornecer inovações acadêmicas que são demasiado “nicho” em um contexto disciplinar regido principalmente pela academia de língua inglesa.

A favor do neomedievalismo

Uma área em que os praticantes brasileiros estão se posicionando para mudar é a “controvérsia” entre o medievalismo e o neomedievalismo. O que hoje é conhecido como medievalismo no Atlântico Norte poderia facilmente ter sido conhecido como estudos do neomedievalismo. Para os estudiosos brasileiros, a questão do neomedievalismo ressurge porque “neo” é a terminologia mais óbvia e direta. Se essa terminologia tivesse sido incorporada nos centros hegemônicos, aqueles que estudam a Idade Média histórica fariam o chamado medievalismo— sentido que continua a ser corrente na América Latina—enquanto aqueles que estudam as reapropriações posteriores fariam o neomedievalismo. Se essa seria uma solução possível, por que falamos em medievalismo e não em neomedievalismo no campo anglófono e seus derivados?

Um dos motivos é que seu fundador nos Estados Unidos, Leslie Workman, chamou a disciplina de medievalismo e só fazia distinções entre os estudos medievais e o medievalismo, sem mencionar o “neo” e às vezes sem reconhecer abertamente a correlação entre medievalismo e classicismo. Assim, em entrevista no livro em sua homenagem, publicado na década de 1990, Workman associa os estudos clássicos aos estudos medievais, mas não identifica a existência do classicismo como um processo de criação do passado grecoromano, paralelo ao medievalismo como um processo de criação da Idade Média (UTZ, 1998, p. 446–447). Já em relação ao Brasil e a possibilidade de se optar pelo termo neomedievalismo na contramão de Workman, Clínio Amaral menciona em entrevista ao grupo de pesquisa Linhas, que sua importância no Brasil se deve ao uso dado em Travels in Hyperreality de Umberto Eco, uma figura fundadora da disciplina e cujo renome e reconhecimento superam Workman, principalmente no Brasil, onde a historiografia está mais voltada à Europa (particularmente à França) do que aos Estados Unidos. Disciplina em início de incorporação e, se necessário, contando com uma figura fundadora alternativa como Eco, o Brasil é terreno fértil para o restabelecimento do termo neomedievalismo como equivalente ao uso corrente encontrado na academia de língua inglesa e seus seguidores.

Sejamos também claros que na academia de língua inglesa o senso de medievalismo e neomedievalismo não é hermético nem desprovido de fissuras. Dentro dessa academia seria possível usar o termo medievalismo igualmente para se referir a “estudos medievais”, tanto por ser um termo generalizado quanto pelo fato de os estudos medievais também ocorrerem após a Idade Média histórica. Por outro lado, diante das investidas de uma cultura popular que mistura e reinventa radicalmente o significado de “medieval”, a academia anglófona têm se esforçado para manter o termo medievalismo intacto, referindo-se a produções que mantêm vínculos com “a verdadeira Idade Média”, enquanto ela, finalmente, inclina-se ao uso do termo neomedievalismo para aquelas produções mais desligadas do período histórico e que mostram um distanciamento lúdico em relação a este passado. Para quem se apegava ao uso original institucionalizado por Workman, o medievalismo entraria em diálogo com a Idade Média cronológica e seus elementos históricos, enquanto o neomedievalismo mostraria maior desconexão com estes, vinculando-se com produções que apenas produzem o “sentimento” do medieval.

Uma forma de esclarecer os limites e possibilidades das terminologias medievalismo e neomedievalismo é uma comparação com os termos muito mais familiares e comuns de classicismo e neoclassicismo. Como é bem conhecido das histórias culturais da literatura e da arte, o classicismo foi uma tentativa erudita de recuperação de traços culturais durante o chamado Renascimento, que seus praticantes associaram ao passado greco-romano e consideraram esquecidos após a queda de Roma: foi um renascimento, um ressurgimento da antiguidade clássica. Este sentido constitui um bom paralelo em relação ao chamado “Medieval Revival”, como o medievalismo foi chamado quando pela primeira vez se tornou objeto de estudo das Ilhas Britânicas: um movimento de retorno aos valores, estéticas e modos de vida do passado, associados à Idade Média histórica e que consideravam-se perdidos em meio à era industrial. Isso se torna visível, por exemplo, na restauração da cavalaria ou no retorno ao catolicismo no chamado Movimento de Oxford. Devemos já notar que em contraste com o “Medieval Revival” ou, se quisermos, o “renascimento medieval” das Ilhas Britânicas, os primórdios do “medievalismo” na América espanhola e portuguesa não apresentam um renascimento ou um desejo nostálgico de reviver o passado, mas uma forte rejeição dos elementos que associavam-se com o medieval. Na Ibero-América, então, as primeiras mobilizações foram desde o início formas do “neomedieval” no seu sentido de apropriação a-histórica: não ressurgimento de tempos acabados, mas mobilizações politicamente motivadas com pouco ou nenhum interesse na autenticidade de um passado histórico (ALTSCHUL, 2020). Mencionemos novamente que o termo usado para o renascimento da antiguidade clássica é classicismo, enquanto as reutilizações e reproduções do período clássico após o século XVIII são conhecidas como neoclassicismo. Em contraste com o Renascimento ou o classicismo, o neoclassicismo não busca a recuperação ou ressurgimento da antiguidade clássica, mas, em vez disso, volta a difundir, por suas próprias razões e motivos, certos elementos que permaneceram filiados à antiguidade: leis rígidas nas produções culturais, arranjos considerados racionais, estruturas imponentes, colunas e mármores em seus edifícios. As linhas gerais do neoclassicismo podem então fornecer uma analogia com o neomedievalismo: um uso posterior e remoto de um suposto revival original e que manipula e implanta elementos quase estereotipados que permaneceram afiliados a uma ideia da Antiguidade Clássica ou da Idade Média. Além do auxílio que essas analogias com respeito ao confuso termo medievalismo podem nos oferecer, o que é evidente é que há boas, ou talvez melhores razões para associar nosso campo ao termo neomedievalismo do que continuar com o uso já estabelecido, mas confuso, que vem até nós hoje através da academia de língua inglesa. Nesse sentido, é instrutivo observar que Workman, como vimos, não tinha em mente o conceito de neoclassicismo ou de “neo” como um equivalente que o teria ajudado a avançar do neoclassicismo ao neomedievalismo. Uma hipótese nesse sentido é que o neoclassicismo (como o barroco) não foi uma categoria primária na disciplina histórica, na qual se formou, como o é na história literária e na história da arte. Por outro lado, essa ausência do neoclassicismo como categoria cultural que pudesse funcionar como intermediária foi exacerbada pela importância central dada ao ditado de Lord Acton em 1859, e que se reproduz até hoje nos volumes de Studies in Medievalism. Como as epígrafes tornam explícito:

Dois grandes princípios dividem o mundo e disputam o domínio, a antiguidade e a idade média. Estas são as duas civilizações que nos precederam, os dois elementos que compõem o nosso. Todas as questões políticas e também religiosas se reduzem praticamente a isso. Este é o grande dualismo que permeia nossa sociedade (DALBERG-ACTON, 2010, p. 9, tradução nossa) [4]

Em suas origens, o uso dessa posição maniqueísta de Lord Acton foi uma exigência na busca por reconhecimento e aceitação de uma nova disciplina, e a elevação da Idade Média ao nível de uma Antiguidade de cuja importância ninguém duvidava. Mas o “medievalismo”, como o tratamos aqui, ficou refém nessa divisão dicotômica necessária em seus primórdios. A divisão categórica que continua nas epígrafes do SIM parece ter sido estabelecida como uma categoria elementar, levando Richard Utz e Tom Shippey, por exemplo, no volume em homenagem a Workman, a elogiar a frase de Acton por sua “abrangência definitiva” e a identificar uma “cisão clássico / medieval” (UTZ; SHIPPEY, 1998, p. 5, 10, tradução nossa) [5]. Essa cisão é problemática: ela estabelece apenas dois canais únicos que negam na prática que outras civilizações como o Islã ou o mundo pré-colombiano tenham contribuído com elementos essenciais para “nossa” civilização. Também, em relação ao tema que nos interessa agora, estabelece uma progressão temporal em que o medievalismo chega com a era romântica. [6] Um caso instrutivo dessa progressão e dualidade fundamental pode ser visto na explicação de William Calin no mesmo volume em homenagem a Workman. Ali, Calin explica que o medievalismo é “igual” ao classicismo, embora “seu oposto” e “seu contrapeso”, mas com a diferença temporal de que o classicismo foi uma invenção do início da modernidade, enquanto o medievalismo é uma invenção dos séculos mais recentes (CALIN, 1998, p. 451, tradução nossa). [7]

Mas são essas questões terminológicas mesquinhas e, em última análise, ninharias? A incorporação de uma nova disciplina é precisamente um daqueles momentos que podem se tornar oportunidades perdidas e posições imitativas e, portanto, decepcionantes do que poderia ter sido uma posição intelectual própria e, portanto, verdadeiramente inovadora. Voltando ao dossiê, então, e como vários de seus ensaios observam, não há razão para “transferir” as perspectivas da língua inglesa para novos territórios como o Brasil. Ao contrário, um verdadeiro desvio pós-colonial pode deslocar a disciplina para fora de seus canais usuais e oferecer uma transformação em como ela se entende; pode conter uma transferência que não é imitativa, mas segura em suas diferenças e perspectivas. O que se propõe aqui, sob o signo de uma transferência pós-colonial, é que a abertura dessa disciplina no Brasil possa ser pautada pelo neomedievalismo como termo mais preciso e adequado para examinar as invenções e os reaproveitamentos de elementos daquilo que em nossos próprios espaços e trajetórias têm sido associado ao “medieval”.

Por sua singularidade, o Brasil colocou desde cedo os pesquisadores interessados no passado medieval diante de um complexo dilema: afirmar a necessidade do estudo de uma Idade Média histórica em um país que não a havia experimentado; e, ao mesmo tempo, construir um discurso que equilibrasse a conexão com o passado medieval português sem perder a formação de uma identidade própria nos horizontes dos debates acadêmicos. Ao leitor desavisado, tal problemática parece longínqua, assentada sobre os momentos fundadores da disciplina histórica no território brasileiro. Todavia, um mero olhar para as discussões levantadas em torno da proposta da Base Nacional Curricular Comum, que excluía do conjunto de temas de ensino obrigatório da disciplina histórica aqueles referentes à Idade Média—entre outros, vale lembrar. O tom geral das críticas levantadas por especialistas do medievo nas diversas manifestações de desagravo à proposta do governo federal incluía sistematicamente a ideia de que o passado brasileiro se estenderia, de uma forma ou outra, sobre a Idade Média europeia através da colonização portuguesa. Seríamos, portanto, também medievais, no sentido de herdeiros de uma tradição transferida pelos colonizadores, a qual não somente justifica ainda o investimento em pesquisa na área, mas também a sua presença nos currículos de ensino obrigatório. Como tal noção persistente se formou na academia brasileira ao início do século XX é o tema do artigo que abre o dossiê aqui apresentado. Nele, Renan Birro aborda o tema dos colonialismos culturais e intelectuais—sobretudo o francês—na academia brasileira e seu impacto na construção dos elementos mais marcantes do medievalismo brasileiro, os quais ecoam ainda hoje na produção acadêmica e no ensino de história no Brasil.

Se Birro em seu trabalho nos apresenta tal diagnóstico, preciso e necessário para a tomada de consciência das relações coloniais que permeiam a intelectualidade brasileira—em especial aqui o medievalismo, Marcelo S. Berriel nos traz, em sua contribuição, uma proposta de aproximação a partir de uma abordagem decolonial. Em seu trabalho, Berriel faz confluir reflexões sobre as deficiências que o vínculo cego aos modelos euro-referenciados trazem à compreensão dos medievalismos brasileiros, por um lado, e as possibilidades que as propostas decoloniais podem trazer, a partir daquilo que o autor chama de empirismo radical e perspectivismo, ou seja, uma perspectiva que parte essencialmente da experiência brasileira para explicar seus próprios fenômenos, que são ao mesmo tempo próprios e diversos, variando desde a literatura de Suassuna, até o medievalismo religioso presente em movimentos ultra-conservadores. A relação entre medievalismo e religião é, sem dúvida, um campo novo dentro da própria área de estudos do medievalismo. Esse é o sentido do artigo apresentado por Maria Eugenia Bertarelli e Clínio de O. Amaral. Em um instigante trabalho a respeito da missa “Urbi et Orbi” do Papa Francisco os autores propõem estratégias para pensar as questões de temporalidade que marcam a prática religiosa do cristianismo e sua constante atualização do passado—também medieval.A partir dessa reflexão, partem então para a análise da missa de Francisco, encarando o conteúdo desta como expressão de uma postura profundamente marcada pelo medievalismo. Ao final de seu trabalho, os autores reforçam a necessidade da ampliação dos estudos do medievalismo em caráter multidisciplinar, assim como propõem, de maneira inovadora, a abordagem das expressões da religiosidade cristã essencialmente como manifestações do medievalismo no mundo contemporâneo. Uma abordagem decolonial acompanha também o trabalho de Otávio L. Vieira Pinto e sua excelente proposta de discussão do colonialismo acadêmico e do medievalismo em torno da história da África ao sul do Saara. A partir desse pressuposto, Vieira Pinto conclui que a ideia de uma África Medieval se concentra sobre o território Ocidental africano não por questões externas, vinculadas à práxis historiográfica (como o acesso a documentação), mas devido, sobretudo, às pressões (políticas) exercidas pelo colonialismo acadêmico, que reconhece ali a emulação de realidades europeias e suas categorias analíticas. Vieira Pinto aponta como a própria noção de uma Idade Média africana acaba por se constituir em uma expressão de “medievalismo de exportação” que atende somente os interesses da academia euro-referenciada e ocidental. Ao se pensar em uma história decolonial e globalizada, é preciso repensar, reforça o autor, as categorias de aproximação aos objetos de análise de modo a promover— em consonância com Berriel—um ambiente de pesquisa que parte da própria realidade estudada para identificar as suas categorias analíticas viáveis.

Essas importantes reflexões de caráter teórico em torno do medievalismo e seu impacto na análise histórica são acompanhadas no presente dossiê por um conjunto de estudos de caso referentes tanto à experiência brasileira, com Elton O. S. Medeiros e Douglas M. X. de Lima, quanto da Europa, com Daniele Gallindo-Gonçalves e Vinicius C. D. de Araujo. O trabalho de Elton Medeiros nos traz importantes contribuições para a intersecção entre medievalismo e educação no contexto brasileiro. Medeiros parte de uma análise de monumentos arquitetônicos da capital paulista que buscam referenciar um (suposto) passado medieval à época de suas construções no âmbito do modernismo. A partir de seus resultados, o autor propõe esses espaços do medievalismo como possíveis fontes para o ensino de história com base nas experiências da sociedade brasileira. De Lima, por outro lado, nos oferece uma análise a partir da noção do lúdico, embasando seu trabalho nas apropriações do passado medieval e suas representações em jogos de tabuleiros. O autor conclui que o medievalismo presente nessa plataforma reforça a construção de um simbolismo atrelado ao imaginário euro-referenciado. Assim, os aspectos do medievalismo se tornam visíveis em novos espaços da cultura de entretenimento, reforçando a sua universalidade enquanto proposta midiática, assim como os problemas que colocam para uma representação da Idade Média em consonância com os avanços da história global e as críticas decoloniais. Mudando o foco para o espaço europeu e para a política, Vinícius de Araújo apresenta nesse dossiê uma análise do medievalismo presente no nacionalismo italiano da Lega Nord e suas influências sobre a política e cultura italianas na contemporaneidade. Daniele Gallindo-Gonçalves, por sua vez, analisa o medievalismo das obras de Otto Rahn e como este influenciou o pensamento nazista em torno da temática do Graal e do catarismo. Ambos os trabalhos transitam em um campo muito fértil da análise do neomedievalismo: a política.

Como já afirmamos, a publicação do presente dossiê recebe um caráter fundacional da área de estudos no cenário brasileiro ao propor novas perspectivas de análise, a discussão de importantes aspectos teóricos, bem como a apresentação de contribuições fundamentais ao campo a partir de uma perspectiva original. Convidamos os leitores da Revista Antíteses a se debruçarem sobre os materiais aqui publicados e buscarem neles a inspiração para o desenvolvimento do campo de estudos do neomedievalismo no Brasil.

Notas

3. “medievalism could only begin, not simply when the Middle Ages had ended, whenever that may have been, but when the Middle Ages were perceived to have been something in the past, something it was necessary to revive or desirable to imitate”.

4. “Two great principles divide the world, and contend for the mastery, antiquity and the middle ages. These are the two civilizations that have preceded us, the two elements of which ours is composed. All political as well as religious questions reduce themselves practically to this. This is the great dualism that runs through our Society”.

5. “definitive comprehensiveness”; “Classical / medieval divide”.

6. Por muito tempo, essa sequência quase implícita tornou desconhecidos os medievalismos pré-românticos.

7. “Equal,” “opposite,” “counterweight.”

Referências

ALTSCHUL, Nadia R. Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-century south America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2020.

CALIN, William. Leslie Workman: a speech of thanks. In: UTZ, Richard; SHIPPEY Tom (ed.). Medievalism in the modern world: essays in honour of Leslie J. Workman: with the assistance of L. Workman. Turnhout: Brepols, 1998. p. 451–452.

DALBERG-ACTON, John Emerich Edward, Lord. [Epigrafe]. In: FUGELSO, Karl. Defining neomedievalism(s). Cambridge: D. S. Brewer, 2010. (Studies in Medievalism, 19).

MORSEL, Joseph. Le moyen âge vu d’ailleurs. BUCEMA, [Paris], v. 7, p. 1–5, 2003.

UTZ, Richard. Speaking of medievalism: an interview with Leslie J. Workman. In: UTZ, Richard; SHIPPEY Tom (ed.). Medievalism in the modern world: essays in honour of Leslie J. Workman: with the assistance of L. Workman. Turnhout: Brepols, 1998. p. 433–449.

UTZ, Richard; SHIPPEY, Tom (ed.). Medievalism in the modern world: essays in honour of Leslie J. Workman: with the assistance of L. Workman. Turnhout: Brepols,1998.

WORKMAN, Leslie. Editorial. Studies in Medievalism, Cambridge, v. 1, n. 1, p. 1–3, 1979.

Nadia R. Altschul– University of Glasgow.

Lukas Gabriel Grzybowski – Universidade Estadual de Londrina

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[DR]

 

História do Direito | UFPR/IBHD | 2020

HISTORIA DO DIREITO

A Revista História do Direito – Revista do Instituto Brasileiro de História do Direito (Curitiba, 2020), publicada pela Universidade Federal do Paraná em conjunto com o Instituto Brasileiro de História do Direito, é um periódico científico semestral destinado à publicação de textos de excelência na área de História do Direito e ao aprofundamento do diálogo com áreas afins.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2675-9284

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A Organização Internacional do Trabalho e as Américas: conexões e influências / Anos 90 / 2020

Em 2019, foi comemorado o centenário da Organização Internacional do Trabalho, a mais antiga organização internacional em atividade. A OIT foi criada como uma dependência da Liga das Nações, que sobreviveu à reformulação do sistema internacional – posterior à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria –, que incluiu as disputas pela hegemonia das organizações internacionais. Em diferentes locais, por ocasião do centenário, foram realizadas celebrações como o lançamento de livros, atividades artísticas, encontros de especialistas em Direito do Trabalho e de Historiadores interessados no legado desse centenário. A própria OIT realizou atividades comemorativas de diferentes tipos. O centenário foi um momento de comemoração, autocongratulação e de reflexão pelo caminho andado em todo esse tempo. A OIT passou por diferentes etapas e transformações, incorporando novos temas, interesses e reformulando certas abordagens. Algumas coisas mudaram significativamente – a América Latina já teve um Diretor Geral – e algumas temáticas foram incorporadas – abandonando o tom paternalista existente nos primeiros anos e outros temas, como as trabalhadoras domésticas – que passaram a fazer parte do grupo de profissões contempladas e protegidas. Outras permanecem inalteradas desde o início, como a necessidade de ratificação nacional das decisões tomadas em Genebra e a presença de trabalhadores e empresários no processo de tomada de decisões.

Ao longo desses cem anos, a OIT cresceu, incorporando países que nem sequer existiam no momento da sua criação. Hoje em dia, ao todo, são 187 os países membros, um número um pouco menor do que os 193 que integram a Organização das Nações Unidas, que são superados pelos 211 que integram a Federação Internacional de Futebol Associado. Esta quantidade de filiados e os seus cento e um anos de trajetória podem nos levar a pensar num caminho de êxitos constantes, porém, a OIT atravessou uma série de dificuldades nos primeiros anos, bem como durante e depois da Segunda Guerra Mundial. As fortes disputas ideológicas do período Entreguerras e ao longo da Guerra Fria fizeram com que a sua existência fosse, às vezes, subestimada ou fosse transformada em palanque para confrontos entre os adversários ideológicos. É importante destacar que a Liga das Nações, entidade-mãe da OIT, não sobreviveu aos conflitos ideológicos que levaram à Segunda Guerra Mundial e que a ONU, surgida ainda durante a Segunda Guerra Mundial, teve enormes dificuldades até ser aceita como um centro de discussão e debate das relações entre os diversos países.

Tendemos a naturalizar a existência desta instituição e de outras que fazem parte dos organismos internacionais. Porém, quando estudamos os diversos momentos pelos quais atravessou a OIT, assim como a diversidade de questões de que tratou e a necessidade de estabelecer um equilíbrio entre formações econômicas e sociais muito diferentes, então, compreendemos que a sua existência tem a ver com a perícia das suas primeiras conduções e o compromisso dos representantes para que a principal questão social do século XX, o Trabalho, tivesse um espaço de importância nas relações entre os países. O esforço coletivo teve como ponto de partida a demanda dos trabalhadores no final da Primeira Guerra Mundial e, a poucos anos da revolução triunfante na Rússia, para que as suas problemáticas fossem contempladas e legitimadas como importantes no convívio social e na reconfiguração das sociedades europeias no imediato Pós-Guerra. Neste primeiro momento, a existência da OIT não contribuiu para a incorporação plena dos trabalhadores na vida social e, ainda, normalizou o trabalho colonial. Digamos que o objetivo principal da OIT era o combate à ameaça comunista, esvaziando as reclamações operárias. Mesmo assim, esta instituição deve ser valorizada por ter colocado em pauta e estimulado o debate sobre as questões fundamentais do trabalho desde as oito horas de trabalho diárias ao trabalho forçado, o trabalho infantil e feminino, o trabalho marítimo, entre tantos outros.

Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, a OIT foi assumindo uma posição cada vez mais técnica, discutindo como as tarefas devem ser desempenhadas, a carga e as condições do trabalho em cada um dos âmbitos em que as tarefas são desenvolvidas e a forma em que as tarefas devem ser desenvolvidas. Ao mesmo tempo em que estabelecia parâmetros técnicos, também politizava o seu acionar reformulando categorias, incorporando novos contingentes de trabalhadores e reconhecendo a importância do trabalho nas sociedades fora da produção capitalista. Esse reconhecimento permitiu que indígenas e comunidades tradicionais pudessem reivindicar direitos e um outro tipo de relação com os Estados Nacionais. De forma definitiva, esse reconhecimento deu elementos legais para a posterior existência de Estados Plurinacionais. A OIT também foi plataforma para denúncias de violações aos Direitos Humanos, pelo que o perfil técnico também foi acompanhado pela politização das suas ações.

Em síntese, a OIT é uma instituição que nos proporciona múltiplas possibilidades analíticas e representa um campo de estudos fértil e promissor. Veremos alguns exemplos nas temáticas desenvolvidas neste dossiê. É preciso mencionar que até dez anos atrás, os estudos sobre a OIT eram escassos, muitas vezes realizados por funcionários ou ex-funcionários da própria OIT. A partir do lançamento do Projeto Centenário, lançado pela OIT, foi que os estudos começaram a deslanchar. Na América Latina, o interesse pela OIT é crescente, porém, ainda engatinha, sendo um grupo importante mais limitado de historiadores. No Brasil, por exemplo, são pouquíssimos os pesquisadores do tema, mas há uma certa expectativa de crescimento e interesse sobre esse tema. Entendemos que este dossiê estimulará algumas novas pesquisas e interesses e revelará a existência de fontes e repositórios que podem renovar os estudos sobre a História do Trabalho no Brasil.

No caso da Argentina, existe, desde 2015, a Rede Interdisciplinar OIT – América Latina, que reúne, num esforço coletivo, regional e interdisciplinar, investigadores e investigadoras de universidades de diversos países como Chile, Brasil, Argentina e Bolívia, entre outros, e que, desde então, na sua perspectiva latino-americana em relação à OIT e ao mundo do trabalho, publicou dois livros, um outro dossiê, organizou oficinas na Argentina (La Plata, 2015) e no Brasil (Niterói, 2017) reunindo muitos painéis, mesas-redondas e apresentações ao longo dos seus cinco anos de existência. Este mesmo dossiê faz parte de uma trajetória comum, que esperamos que continue em franca expansão em relação aos temas, colegas e às produções.

Os artigos que compõem o presente volume da Revista Anos 90 reúnem um grupo de historiadores da América Latina. Em todos os casos, identificamos um diálogo entre a História nacional do Trabalho e a História dos Organismos Internacionais. O diálogo se dá de formas diferentes e identificam questões próprias do vínculo estabelecido entre as partes. Três dos artigos situam-se no período Entreguerras, outro trata do imediato Pós-Guerra e o último deles aborda as décadas de 1950 e 1960. Ao mesmo tempo, a relação Genebra-América Latina é central em todos os casos. Seja abordando questões técnicas ou políticas, o vínculo entre a sede e os governos nacionais são de central importância para todos os autores. Dois artigos colocaram a ênfase em questões técnicas como a maternidade e a produtividade, e o restante analisou as relações políticas entre as partes. Os países analisados são Argentina, Chile e México. O Chile é um dos países com um vínculo mais intenso e prolongado, com uma importante quantidade de Convenções aprovadas, que, ainda, proporcionou importantes quadros técnicos, entre eles, o único Diretor Geral latino-americano, Juan Somavía, que exerceu essa função entre 1999 e 2012.

O primeiro artigo do dossiê é de autoria de Fabian Herrera León, que, em La Oficina Internacional del Trabajo en México: la visita de Edward J. Phelan y Stephen Lawford Childs en mayo de 1933, analisa o interesse da OIT em estabelecer um vínculo duradouro com o México. Esse país estava em processo de ingresso na OIT e na Liga das Nações. As visitas de Phelan e Childs, funcionários de alto escalão na OIT, tinham como objetivo discutir elementos técnicos e principalmente compreender a realidade mexicana pós-revolucionária. O México estava excluído do convívio internacional desde a Revolução e pretendia a sua incorporação nas organizações internacionais, assim como pretendia discutir a sua compreensão das relações entre os países e discutir a forma como se organizava o trabalho e a sociedade nesse país. A visita dos representantes permitia discutir certos elementos da organização da OIT, como a representação corporativa, e resolver a representação operária nas Conferências Internacionais do Trabalho, ante a disputa entre as confederações mexicanas e o vínculo que tinham com o Estado.

O artigo de Paula Lucia Aguilar, Entre la protección y la igualdad: la OIT y el seguro por maternidad en perspectiva regional 1936-1939, analisou os debates acontecidos nas Conferências Pan-Americanas do Trabalho que tiveram lugar na década de 1930. As Conferências foram organizadas pela OIT e os países do continente americano. O interesse da autora está centrado no estatuto da mulher trabalhadora frente à maternidade e às dificuldades para manter o seu salário. A maternidade entrava no debate regional como uma questão vital no processo de expansão da classe trabalhadora no momento de rápida expansão da industrialização e do crescimento da presença feminina no mercado de trabalho.

Andrés Stagnaro analisa a relação da OIT com outro país latino-americano que tem um forte movimento operário, a Argentina. No artigo De la incertidumbre a la estabilización: el devenir de los muchachos peronistas en Ginebra. La representación obrera Argentina ante la OIT (1945-1955), é apresentada uma experiência inovadora do governo peronista, os agregados operários nas embaixadas. Stagnaro apresenta a forma como a Argentina lutava contra o isolamento no imediato Pós-Guerra com uma diplomacia que privilegiava as questões sociais e, portanto, via na OIT um espaço para recompor os seus vínculos internacionais, não sem tensões. A Argentina, governada pelo General Juan Domingo Perón, tinha uma política trabalhista que dialogava com a OIT, porém, precisava resolver as tensões existentes em relação à escolha da representação operária, principalmente com o vínculo estreito existente entre o Estado e a principal central operária, a Confederação Geral do Trabalho.

No caso estudado por Silvia Simonassi em El problema de la productividad en Argentina: perspectivas locales y transnacionales entre el primer peronismo y el frondicismo, temos uma análise de uma política discutida fortemente em Genebra que impactou fortemente na Argentina. A questão da produtividade e a capacidade produtiva da indústria argentina e, no caso dos seus trabalhadores, foi iniciada durante o governo de Juan Domingo Perón e se estendeu pelos vinte anos seguintes. Embora o governo de Perón tenha colocado a produtividade em discussão, nos governos posteriores, durante a proscrição do peronismo, a produtividade foi utilizada pelo governo ditatorial posterior ao golpe que depôs Perón e, no governo de Arturo Frondizi, como um avanço empresarial e estatal, para controlar o processo produtivo. Os trabalhadores, por sua vez, identificaram neste debate técnico uma forma de disputa com os governos antiperonistas.

O último estudo apresentado neste dossiê corresponde à autoria de Patricio Herrera e Juan Carlos Yáñez, Saberes compartidos entre América Latina y la Organización Internacional del Trabajo: un recuento historiográfico contemporâneo. O artigo é uma importante contribuição para compreender a construção de um campo de estudos devido ao mapeamento realizado sobre os estudos em relação à OIT. O seu foco prioritário é o Cone Sul, em grande medida, devido a que esse espaço é o que concentra a maior quantidade de estudos. Os autores mostram que os estudos têm se concentrado no período Entreguerras e no imediato Pós-Guerra. É um artigo importante pela sua capacidade de síntese de um determinado momento da produção regional sobre a OIT, bem como as relações e influências desta organização na região.

Em síntese, o dossiê mostra que este é um campo fértil de estudos e que está em crescimento e expansão. A OIT segue sendo uma instância-chave na legitimação e formação de consensos em relação à concepção e às definições do que é trabalho, quem são consideradxs sujeitos desse mundo e suas diversas formas, como deveriam ser reguladas, quais são os seus direitos básicos associados aos homens e às mulheres que o exercem. No atual contexto, as próprias formas do trabalho e com elas o labor da OIT viram-se profundamente afetados pela pandemia mundial, as diversas formas que adotou a quarentena em cada contexto nacional e regional, e as prementes situações de desconhecimento de Direitos, desregulação trabalhista laboral e demais situações limites em campos, tais como o chamado trabalho de plataformas, os novos sujeitos ficaram visíveis nesta conjuntura como os repartidores de aplicações, afirmação que corresponde à nossa região e que visibilizou e demandou a intervenção e o debate sobre essas questões, com particular intensidade na Argentina e aqui no Brasil. Em particular, o Brasil ainda precisa voltar o seu olhar para as relações internacionais e com os organismos internacionais. Compreender a importância e influência mútua entre as partes e a necessidade desses organismos políticos e técnicos no estabelecimento ou na legitimação de políticas. Esperamos que o dossiê ajude a alavancar novos estudos e debates sobre o tema.

Laura Caruso – Dra. Laura Caruso. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-6556-5705 . Universidad Nacional de San Martín (UNSM), San Martín, Buenos Aires, Argentina

Norberto O. Ferreras – Dr. Norberto O. Ferreras. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-3801-0418 Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil


CARUSO, Laura; FERRERAS, Norberto O. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Ideias para adiar o fim do mundo / Ailton Krenak

KRENAK Ailton
KRENAK A Ideias para adiar o fim do MundoAilton Krenak / Foto: Fondation Cartier  /

O livro de Ailton Krenak, estruturado em três capítulos referente a palestras e adaptação de uma entrevista realizada em Lisboa – Portugal, configura-se enquanto uma excelente ferramenta de auxílio para o questionamento do desenvolvimento moderno e a sua humanidade. O autor indígena, oriundo do povo Krenak que se territorializou na região do Vale do Rio Doce, além de produtor gráfico e jornalista dedicou-se ao ativismo do movimento socioambiental e dos direitos dos povos indígenas, sendo lembrado muitas vezes pelo seu discurso proferido na Assembleia Constituinte de 1987, aonde, protestando pintou seu rosto com tinta de jenipapo como expressão do luto ao massacre dos povos indígenas legitimado pelo retrocesso dos direitos das comunidades tradicionais.

Seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” objetiva realizar uma discussão sobre os impactos das ações que imprimimos no planeta terra orientados pela cosmovisão de que somos seres separados da natureza, retroalimentando uma autodestruição, que não é compreendida pela ideia de humanidade construída pela modernidade eurocêntrica. Sendo assim, os povos tradicionais, compreendidos como sub-humanos pela modernidade, são compreendidos pelo autor como uma alternativa a lógica de autodestruição e exploração excessiva da natureza. Leia Mais

Alteridades em tempos de (in)certezas / Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

A história imediata nos ajuda a pensar algumas razões do estado atual das coisas. Tenho pesquisado, desde dezembro de 2019, o fenômeno da emergência e organização de policiais organizados em um movimento antifascismo, acompanhando debates públicos e realizando entrevistas com os sujeitos envolvidos. Para executar essa tarefa é preciso uma postura sensível aos anseios desses profissionais da segurança pública (policiais militares, civis e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes penitenciários, peritos, etc.), expressos nos seus posicionamentos públicos sobre os rumos das polícias e das políticas de segurança pública no Brasil e sobre o avanço de estruturas políticas que favorecem a disseminação de práticas fascistas. Refletir sobre o tempo presente e sobre as dinâmicas que contribuíram para a configuração política do presente, disso que Wendy Brown (2019) chamou de Frankenstein gerido pelo neoliberalismo, é uma tarefa que demanda uma escuta sensível, um olhar sensível, uma atenção com o mundo. Escutar o outro em tempos dissonantes e incertos como o nosso, demanda um trabalho de reconfiguração das nossas certezas e de nossas incertezas epistemológicas.

É exatamente este o convite dos organizadores do livro Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis, Miram Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore, na introdução à coletânea. Os autores são, respectivamente, coordenadora e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) e são pesquisadores de temas caros ao tempo presente: sindicalismo industrial, políticas públicas para a juventude, teatro e arte no período da ditadura civil-militar. A organização do livro se deu pela participação dos autores na comissão local do XII Encontro Regional Sudeste de História Oral – Alteridade em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis, em Belo Horizonte, no ano de 2017, ocasião em que foram responsáveis pelo planejamento da programação das mesas redondas, conferências e atividades ao longo do evento.

A coletânea é a reunião dessas falas pronunciadas por pesquisadores, de formação múltipla, nos auditórios da UFMG, mas também em outros espaços públicos, como o Museu de Arte da Pampulha e a Casa de Referência da Mulher Tina Martins. A história oral e, especialmente, o problema da escuta sensível, nos são apresentados de modos distintos nesse livro: reflexão sobre acervos, memória e identidade, alteridade e espaço urbano, a entrevista como prática social e coletiva, as estratégias de organização individuais e coletivas, o oral e o audiovisual na construção de sentidos, a urgência da participação da história e das(os) historiadoras (es) no debate público, a publicização de experiências de vidas que demandam cuidado e atenção e a reflexão sobre percursos biográficos ligados à própria história da pesquisa em história oral.

Na introdução, o livro é dividido em três grandes conjuntos de textos: alteridade como marcador das possibilidades da entrevista de história oral; “problematizações de identidades de minorias políticas”; e “escutas sensíveis diante das diferenças”. Ana Maria Mauad abre o primeiro grupo de texto com um artigo que analisa a questão indígena na obra fotográfica de Claudia Andujar, analisando seu trabalho a partir da categoria de fotografia pública, associando-a com “uma dimensão crítica e (…) dialética” (p. 25). O engajamento público de Andujar na causa indígena se deu, também, pelo movimento de inclusão da comunidade Yanomami como parte desse público e também como partícipe da narrativa pública sobre os sentidos das imagens. A confiança é a base dessa relação pública com a questão indígena, assim como a relação entrevistador-entrevistado.

O segundo texto, de Mario Brum, aprofunda o problema da relação entre fatos e representações, abordado por Alessandro Portelli, ao analisar as representações sociais e as identidades em torno da construção da favela da Cidade Alta (e seus entornos) na cidade do Rio de Janeiro. O estigma dos “removidos” da região central para a Cidade Alta, marcou “toda a trajetória posterior do conjunto” habitacional, seja a partir do silenciamento, seja pela diferenciação social com outra categoria, a dos “inseridos”. Em seguida, Luciana Kine e Emilene Souza apresentam reflexões metodológicas para lidar com narrativas de vida ligadas a “tópicos sensíveis”, em especial jovens vivendo com HIV/aids. A multiplicidade das experiências de vida que giram em torno de “temas delicados”, remonta à ideia de calidoscópio narrativos e conduz a uma reflexão ética sobre a relação entrevistado-entrevistador e a condução partilhada do processo de narrar e da elaboração do produto final da pesquisa. No caso, as autoras exploraram uma metodologia de embaralhamento das histórias, “estratégia ética, estética e política” que possibilitou a discussão de “experiências do cotidiano” (p. 50) e criou uma alternativa para superar os limites do sigilo, e do constrangimento. Os diálogos possibilitados por essa metodologia reafirmam um posicionamento epistemológico da “pesquisa como prática social [e] ação coletiva” (p. 54).

Abrindo o segundo conjunto de textos, Valéria Barbosa de Magalhães e Luiz Morando, apresentam, respectivamente, duas reflexões sobre migração e sociabilidade da comunidade LGBT(QIA) em espaços e situações distintas. O primeiro texto apresenta pouca reflexão propriamente dita em relação às entrevistas, mas propõe uma indagação fundamental sobre a relação entre sexualidade e migrações em contextos políticos conturbados, como a eleição de um governo autoritário no Brasil. Magalhães apresenta, muito atenta aos anseios e às experiências de migrantes brasileiros LGBT na Flórida (EUA) na última década, a mudança das “estratégias de legalização no exterior” e a apreensão que o cenário político produziu nas expectativas de vidas desses sujeitos. Seu trabalho desloca o objeto da pesquisa sobre imigração e sexualidade do campo dos problemas de saúde e da exploração sexual, interrogando outros modos pelos quais a imigração relaciona-se com a sexualidade para além do negativo.

Já Morando, apresenta uma reflexão sobre identidade e diferença, analisando representações identitárias de homens gays em relação à memória e à suas experiências em espaços de sociabilidade LGBT em Belo Horizonte, entre 1960 e 1980. O texto faz uma divisão analítica de duas formas imbricadas de lidar com essa memória, percebidas pelo pesquisador em suas entrevistas: a romantização do passado e o ceticismo em relação à experiência dos clubes noturnos da capital mineira. O gozo e a descrença apresentaram-se como faces do mesmo problema: o prazer e o desconforto de lembrar as vivências do passado. Se o estabelecimento da diferença e da identidade implica em distanciamentos temporais, tricotar – “fazer um tricô”, ou seja, estabelecer um diálogo – figura como uma alternativa para o isolamento social de gerações mais novas em relação à vivência de gerações anteriores.

O historiador Amilcar Araújo Pereira, apresenta um belo estudo sobre a luta e a formação dos movimentos negros no Brasil, organizados durante a ditadura militar. Surgida a partir de reuniões em bairros, universidades, ou grupos de teatro, no Nordeste e no Sudeste, a militância negra brasileira se caracterizou pela pluralidade de perspectiva, pelas diferenças regionais, geracionais e ideológicas. Apesar dessas diferenças, Amílcar Pereira, buscou demonstrar a importância das redes estabelecidas pelos militantes, que criaram conexões e espaços de experiência compartilhadas por diferentes grupos. A proposição no final da década de 1970, de organização do movimento por rede, teve como norte o fortalecimento e o estímulo de formação de lideranças. Já o artigo de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e Roberto Carlos da Silva Borges aborda o problema do audiovisual como parte do projeto de construção narrativa sobre o passado e o imaginário da cultura negra, contribuindo para uma educação antirracista no Brasil. Os autores estão interessados em investigar o “estatuto de testemunho” em torno da produção audiovisual sobre e da cultura negra, no sentido de problematizar o “funcionamento da memória” que funda “imaginários individuais e coletivos” (p. 106). Os vídeos analisados, produzidos em diferentes instâncias, representam formas heterogêneas de “contraponto à ideologia da branquitude” que sustenta as relações étnico-raciais no Brasil (p. 118).

Finalmente, o terceiro grupo de artigos apresenta diferentes abordagens metodológicas da pesquisa com a alteridade. As demandas dos policiais militares contidas no acervo “Tropas em Protesto”, que reúne narrativas de policiais, tendo como ponto de partida o movimento das praças das polícias desde 1997, ficaram silenciadas na década de 2010, especialmente após o arquivamento da PEC 21/2005, que previa a desmilitarização das polícias estaduais. Juniele Almeida argumenta a necessidade urgente de retomar o debate público em torno da desmilitarização das polícias. As “tensões históricas”, que esse debate faz emergir, correspondem à ideia de pertencimento à corporação e, ao mesmo tempo, aos movimentos contestatórios da estrutura militarizada das polícias brasileiras. Até hoje, essas tensões podem ser representadas a partir de três grandes dimensões que norteiam a urgência da redefinição do papel da polícia em um estado democrático: “o discurso institucional militarista, os problemas em segurança pública [da sociedade brasileira] e as questões trabalhistas dos servidores públicos” da segurança (p. 122).

A historiadora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, com sua sensibilidade ímpar, tece uma reflexão muito provocativa sobre um conjunto de memórias de mulheres que nos ensinam novas “formas de entrevistar e de registrar narrativas” (p. 141) e nos impulsionam para uma nova concepção de conhecimento histórico, compromissado com uma “escuta atenta” (p. 151). Em atenção às vidas que pedem cuidado e reparação, a autora propõe uma postura de amorosidade do pesquisador diante da “intolerância” e dos silenciamentos que atravessam as vidas de mulheres. A história oral como espaço de reinvenção da existência, como espaço de audiência – e não de análise – segue sendo uma possibilidade de compromisso ético do pesquisador, uma “escuta atenta” – e não promessa de remissão – capaz de intermediar outras possibilidades de construção de um mundo mais humano.

Rodrigo Patto Sá Motta nos brinda com uma reflexão sobre o uso de fontes orais em suas pesquisas sobre as universidades durante a ditadura e as surpresas advindas desse processo, contribuindo, inclusive, para incorporação do conceito de acomodação para leitura dos arranjos sócio-políticos no período (p. 158). A emoção do pesquisador ao entrevistar intelectuais importantes para o campo das ciências no Brasil, em especial na área de Ciências Humanas, e a emoção dos indivíduos ao receber informações pessoais por parte do pesquisador, contribuíram para mudanças dos sentidos da pesquisa. Proporcionando o redimensionamento dos problemas de pesquisa a partir do confronto entre diferentes documentos, por um lado, e a reapropriação e ressignificação dos objetivos da pesquisa por parte dos sujeitos entrevistados. O conceito de acomodação, como lembra Motta, não se pretendeu um modelo perfeito, mas visou apresentar uma explicação aos eventos da ditadura a partir de evidências que emergiram na pesquisa em história oral, aprofundando o debate e nos convidando para possibilidade de transformação, criando e mobilizando outros jogos que não o das acomodações (p. 162-163).

Encerrando o volume, o pesquisador Ricardo Santhiago apresenta uma reflexão sobre a trajetória biobibliográfica de Ecléa Bosi e sua contribuição para a formação do campo da história oral no Brasil. A trajetória intelectual de Bosi nos convida a uma reflexão sobre “a capacidade humana e humanizadora do exercício da escuta” como prática de formação dos jovens pesquisadores (p. 175). Os conselhos, as indicações e as sugestões de Ecléa Bosi emergem como elementos metodológicos. Ao invés da rigidez das normas, a atenção, a afetividade, a criatividade, a sensibilidade. A partir das reflexões iniciais em sua tese de doutorado, o autor argumenta a importância seminal do trabalho de Bosi para o campo da história oral brasileira, de onde se desabrocharam diferentes frutos, com pesquisas atentas “à memória, à linguagem”, a partir da “empatia, curiosidade e pluralismo” (p. 177).

Gostaria de ressaltar que há uma dissonância no ritmo de leitura do livro, pois cada capítulo corresponde a uma dimensão da pluralidade da pesquisa em história oral. Levando em consideração os itinerários formativos das(os) pesquisadoras(es), essa dissonância longe de significar um problema, torna-se potência para o contato do leitor com uma gama de leitura polissêmica sobre as possibilidades de escutar o outro de modo sensível sem abandonar o rigor metodológico. Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore nos brindam com um livro plural que retoma o antigo problema da relação pesquisador-entrevistado, apresentando contribuições proveitosas e polêmicas para a pesquisa em história oral (que por sua vez, é preciso dizer, não é metodologia, campo ou área exclusivos de historiadores).

A multiplicidade de abordagens e perspectivas dos artigos do livro, que se configura como um desafio para toda coletânea, funciona como uma postura necessária diante do desafio de se produzir conhecimento sobre o tempo presente. Mais do que mera alegoria, essa multiplicidade é, ao mesmo tempo, unidade em diferença e múltiplo nas identidades. As bases epistemológicas para imaginar outras formas de relação de poder, implicam em diálogos mais profundos e em escutas mais sinceras entre diferentes áreas do conhecimento. O livro em questão é resultado de um refinado trabalho de seleção e de enfrentamento de questões políticas e epistemológicas desse tempo imediato. De tudo ficam algumas questões: Estamos preparados para escutar o outro? Até que ponto conseguimos realizar a escuta do diferente? Em tempos de monstruosidades políticas típicas do fascismo, ou do que Traverso (2019, p. 19) chama de pós-fascismo – enfatizando as continuidades e transformações históricas do fenômeno – até quando teremos forças e disposição para ouvir quem não admite escutar? Como restabelecer o diálogo – em que a arte da escuta (PORTELLI, 2016) é o centro dessa relação – em um mundo que nasceu e da implosão das noções do “comum” e da “democracia”, das próprias “ruínas do neoliberalismo” (BROWN, 2019)?

Referências

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016. (Coleção Ideias).

TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Translation David Broder. New York/London: Verso., 2019.

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Doutor em História Social (UFRJ). É professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Betim. Atualmente, faz residência pós-doutoral na UFF, investigando o debate público promovido por e em torno dos policiais antifascismo. E-mail: [email protected].


HERMETO, Miriam; AMATO, Gabriel; DELLAMORE, Carolina (Org). Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2019. 180p. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aquiar. A escuta do outro em tempos dissonantes. Canoa do Tempo, Manaus, v.12, n.1, p.457-463, 2020. Acessar publicação original. [IF].

Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente / Timothy Snyder

No pensamento político moderno, coube a Nicolau Maquiavel expor a importância de compreender a natureza da tirania. O pensador florentino desferiu suas argutas críticas ao príncipe bárbaro, inimigo das artes, destruidor das religiões, inimigo das letras e da virtù. Nesta análise, Maquiavel prorrompeu seu julgamento ao qualificar o tirano numa espécie de licencioso, oposto ao homem político, em que a virtù opera nele práticas violentas, mas ele não se deixa cegar pelo poder ao ponto de perder de vista a glória e o reconhecimento dos homens. Não me parece distante pensar nas questões da tirania contemporânea aos problemas diagnosticados pelo autor de O príncipe.

Daí a importância da reflexão do historiador Timothy David Snyder, a respeito da tirania no século XX como lição para o presente. Assim, pensar o impacto histórico dos regimes tirânicos ao longo do último século, tornou-se um ato ético, pois os inúmeros revisionismos historiográficos dos regimes de exceção, sinalizam para a urgência inequívoca deste objeto de estudo. Inclusive ao pensar “o longo século XX”, que inaugurou aquilo que Walter Benjamin denominou de “estado de exceção” permanente. E que também, Hannah Arendt ao tratar dos totalitarismos, vinculou as violações aos direitos humanos enquanto instrumentos de violência onipresentes; estes totalitarismos também foram utilizados, com frequência e insistência, na modernidade nas irrupções das guerras mundiais e revoluções (ARENDT, 2013, P. 11-13). Aqui seria oportuno pensar e atualizar as sincronias inferida por Arendt no prefácio do livro Origens do Totalitarismo (1950), em que denominou de “otimismo temerário” e, também, no “desespero temerário, os seus sentimentos políticos do mundo pós totalitarismo. Leia Mais

Digital Humanities e o fazer histórico na contemporaneidade / Aedos / 2020

Ao adentrar a terceira década do século XXI, tornou-se um eufemismo apontar a emergência das Tecnologias de Informação e Comunicação como o grande fenômeno cultural dos nossos tempos. A obra Cibercultura, de Pierre Levy (1997), já conta mais de vinte anos desde sua publicação e, neste intervalo, foi seguida por extensa bibliografia que se dedicou a escrutinar as transformações produzidas pela cultura da informação em nosso cotidiano a partir de variados enfoques. Ainda assim, continuamos a sentir os impactos produzidos pelo advento do que alguns têm denominado como ‘quarta revolução industrial’ (SCHWAB, 2017), sendo constantemente atravessados pelas transformações que uma diversidade de novas plataformas, ferramentas e gadgets têm causado em nossa vivência cotidiana, em nossas formas de sociabilidade e em nossos processos de trabalho.

O campo acadêmico tem sido um dos pontos focais deste processo, posto que ocupa, simultaneamente, três papéis distintos nas dinâmicas que se produzem a partir da emergência de um novo paradigma tecno-cultural: é um espaço de criação – de concepção de novas tecnologias, de desenvolvimento de ferramentas, de inventividade, enfim; é um espaço impactado pelo desenvolvimento das novas técnicas, instrumentos, programas, recursos e métodos, à medida que incorpora estes ao seu próprio processo de produção do conhecimento; e, ademais, é um espaço que se propõe a refletir sobre os impactos e transformações que ditos processos produzem sobre a sociedade e sobre si próprio, bem como suas potencialidades e limitações.

Nesse contexto, é possível apontar que as Humanidades vêm incorporando progressivamente as novas tecnologias aos seus processos de produção, interpretação e crítica do conhecimento. Se bem que esta não seja exatamente uma novidade: como afirma o professor Daniel Alves – que participa de uma das entrevistas publicadas nesta edição da Aedos –, a convergência entre os computadores e investigadores das mais diversas áreas das humanidades (sejam historiadores, geógrafos, filólogos, linguistas, cientistas sociais, etc.) é algo presente desde o surgimento dos primeiros, nos (aparentemente) distantes anos 1950 ou 1960. Por outro lado, os últimos vinte ou trinta anos parecem ter produzido uma mudança qualitativa nesta relação, a partir da disposição desse campo em assumir e pensar sobre as transformações de caráter epistemológico produzidas pela interface entre humanidades e tecnologias – em outras palavras, a partir do momento em que reconhecemos que as tecnologias impactam nossa forma de produzir conhecimento e transformam o próprio conhecimento que produzimos.

No início dos anos 2000, o linguista John Unsworth, da University of Virginia, formaliza a utilização de uma nova categoria para pensar estas relações e seus desdobramentos: Digital Humanities, termo posteriormente traduzido como “Humanidades Digitais”. A obra A Companion to Digital Humanities, de 20042 , consistiu no primeiro esforço de discussão sistemática de trabalhos relacionados à área de humanidades que tinham como denominador comum justamente a incorporação das TIC’s ao seu fazer acadêmico, e os efeitos que se produziam a partir daí. Mais do que isso, a obra aspirava a constituição das Humanidades Digitais como uma nova disciplina acadêmica, o que, como ficaria demonstrado depois, está longe de constituir um consenso entre os pesquisadores que vêm se envolvendo neste debate desde então.

A partir desta primeira definição, outros autores viriam a tratar desta relação nos anos seguintes, propondo diferentes abordagens e interpretações. Daniel Alves, por exemplo, defende que o conjunto de pesquisadores que passam a se dedicar ao desenvolvimento de estudos na área de Humanidades Digitais constituem, antes do que uma disciplina ou área específica, uma “comunidade de práticas”, tendo em comum o emprego das tecnologias informáticas como ferramentas para produção do conhecimento (ALVES, 2016). Anaclet Pons, por sua vez, aponta que o “humanista digital” seria aquele que aposta em novos modelos interpretativos, não apenas por “hacer cosas de modo distinto” mas principalmente por “’pensar’ el mundo de manera diferente a través de las especificidades que definen el medio digital y el pensamiento computacional” (PONS, 2018, p. 38).

Já o historiador uruguaio Juán Bresciano, ao refletir sobre a atualização do campo historiográfico nesse processo, indica que a incorporação das novas tecnologias introduz novas formas de produção e comunicação do conhecimento histórico, que o autor classifica como rizomáticas, justamente em razão da centralidade que o hipertexto assume nas novas tecnologias de comunicação baseadas na Internet (BRESCIANO, 2015, p. 33). Para além disso, o autor destaca o fato de que “los acontecimientos históricos actuales se reflejan en una variada gama de registros digitales que modifican el concepto tradicional de fuente […] por sus estructuras, funciones y características, de aquellos a los que se encuentra habituado el historiador” (Idem, p. 20). Serge Noiret, por seu turno, destaca que “quase todas as problemáticas tradicionais do ofício de historiador […] sobretudo a comunicação da história e dos resultados de pesquisa […] passam agora, em parte ou no todo, pela tela do computador” (NOIRET, 205, p. 32-33), sinalizando a emergência de novos desafios para o exercício de nosso ofício.

A última década, em particular, assistiu a uma proliferação de produções acadêmicas das mais diversas áreas que se incorporaram a esta discussão, seja a partir de reflexões de cunho teórico, seja em estudos aplicados que incorporaram propriamente as ferramentas informáticas aos seus métodos de trabalho. E nessa leva podemos identificar que a História, enquanto disciplina dinâmica e em permanente processo de (re)construção, tem marcado presença, inclusive com uma significativa participação de jovens pesquisadores brasileiros que têm se dedicado a explorar um campo emergente que têm sido denominado por alguns como História Digital – especialmente em sua interface com os debates acerca da História Pública, como se verá. Aqui, sem nenhuma pretensão de dar conta da totalidade dos trabalhos e pesquisadores que têm se destacado nesta área, poderia apontar alguns nomes, tais como os de Anita Lucchesi, Bruno Laitano, Bruno Leal, Dilton Maynard, Fábio Almeida, Leonardo Barleta, Pedro Telles, Rafael Laguardia, Tiago Gil e Thiago Nicodemo, dentre outros nomes de uma geração – na qual muito modestamente me incluo – que tem contribuído para a construção de uma produção historiográfica qualificada e, quiçá, inovadora, a partir dos métodos, práticas e reflexões que vem propondo.

Torna-se muito pertinente destacar, neste sentido, o dado apresentado por Daniel Alves (2016), quando destaca que o português se consolidou como a segunda língua em termos de produção acadêmica no campo das Humanidades Digitais, ficando atrás apenas da produção em língua inglesa. Isto demonstra, a nosso ver, certa maturidade nos debates que vêm se desenvolvendo no campo acadêmico lusófono, e ao mesmo tempo indica o quanto podemos contribuir para o avanço do conhecimento em humanidades nessa área.

Partindo deste contexto, o presente dossiê da Revista Aedos teve por objetivo discutir a produção do conhecimento histórico e a constituição do próprio ofício do historiador contemporâneo a partir da abordagem das ditas Humanidades Digitais, em suas mais diferentes apresentações. Pensado a partir do Manifeste des Digital Humanities (2010), este número temático desafiou os colegas historiadores e historiadoras a incorporar tais ferramentas às suas reflexões teóricas e à construção de seus objetos e pesquisas. Assim, o presente dossiê se propõe a contribuir para a discussão a respeito da incorporação das tecnologias informacionais às práticas dos profissionais da área, bem como suas implicações teóricas, metodológicas e epistemológicas para a constituição de nossa disciplina. Cabe destacar, antes de adentrar a apresentação propriamente dita dos artigos que compuseram esta edição, o expressivo número de submissões recebido pela revista: foram mais de 20 trabalhos enviados para a composição deste dossiê temático, abrangendo os mais diversos recortes, abordagens teóricas e metodologias. Tivemos bastante trabalho até chegar a nossa seleção final, mas podemos afirmar que ficamos realmente felizes com o resultado.

A configuração do dossiê que ora se apresenta foi marcada por uma diversidade de temáticas e abordagens, trazendo para o debate diversas perspectivas possíveis da relação entre a História e as novas tecnologias. Dentre essas perspectivas, podemos notar que a relação entre a História Digital e a História Pública foi bastante presente, aparecendo de forma transversal nos artigos que compuseram este número. Exemplo disso é o trabalho de Bruno Constante, intitulado “O uso da mídia social Twitter como fornecedora de fontes primárias e sua utilização em um caso específico”. Nele, o autor discute o uso da rede social Twitter como fonte para o estudo de temas contemporâneos, utilizando como corpus um conjunto de tuítes publicados por lideranças políticas e empresariais brasileiras no ano de 2016. Pela própria temática abordada, o artigo dialoga diretamente com a construção de uma história política e socialmente engajada, nos moldes do que já foi defendido por autores como Eric Hobsbawm ou René Rémond. Desta forma, Constante analisa a polarização que se estabeleceu nas redes em torno do episódio da queda do governo petista de Dilma Rousseff, concluindo pela defesa de que o processo que levou a sua derrubada consistiu, efetivamente, em um golpe de Estado.

Outro trabalho que se debruçou sobre a relação entre História Digital e História Pública foi o artigo “Grupo ‘História de Guaíba’: uma iniciativa de História Pública Digital no Facebook”, de Karen Silva. A autora busca, em seu texto, estabelecer um diálogo com o conceito de História Pública Digital formulado por Serge Noiret para analisar as postagens realizadas na página que empresta seu nome ao título do artigo. A partir do exame das postagens realizadas, Silva discute as potencialidades que iniciativas similares têm de contribuir para a difusão do conhecimento histórico nas redes, além de colaborar para o engajamento de agentes diversos na construção desse conhecimento, extrapolando as fronteiras da academia e dialogando diretamente com as discussões sobre a produção de uma História Pública.

Já Ana Carolina Machado busca refletir sobre as relações entre o público, o digital e o conhecimento histórico a partir de uma perspectiva bastante atual no artigo “História digital em tempos de crise: as demandas do tempo imediato e suas implicações no trabalho dos historiadores”. Pensando as consequências ocasionadas pelo contexto de pandemia em que nos encontramos no momento desta publicação, Machado procura entender o papel que cumpre à História Digital em tempos em que a presença física se encontra impossibilitada. Desta forma, estabelece um diálogo privilegiado com a proposta original deste dossiê, ao discutir temas como “o ofício do historiador e seu papel social, a função da história diante das demandas do presente e do imediatismo, e os limites e potencialidades do ciberespaço como meio de divulgação e método de ensino da história”.

A constituição da rede mundial de computadores como um espaço de produção e divulgação da História também está presente nos trabalhos publicados nesta edição – como esperado, aliás. Um exemplo é o artigo “Produzindo e Difundindo Conhecimento Histórico no Youtube: O Canal ‘Nerdologia’ e os Conceitos de ‘Golpe’ e ‘Revolução’”, de Danilo Linard, que, também partindo das discussões a respeito da História Pública e das propostas metodológicas formuladas por Carneiro e Laitano (2019), busca compreender como conceitos históricos são apresentados e problematizados em um canal da plataforma de vídeos Youtube. Linard observa que o conteúdo produzido pelo canal “Nerdologia”, embora não seja voltado para um público acadêmico, não deixa de observar critérios pertinentes à pesquisa e à escrita da história. O autor conclui sugerindo que essa nova prática “historiográfica” (qual seja, a produção de conteúdo de divulgação científica para plataformas e ambiente virtuais) reafirma a “relevância do papel social do historiador e da contribuição do conhecimento histórico para a compreensão e intervenção na realidade que nos cerca”.

Outro trabalho que aborda o papel da Internet e as novas formas de produção do conhecimento é o artigo “Memórias afetivas na era digital: um passado não tão distante”, de autoria de Kelly Nepomucena e Lucas Pereira. Neste caso, o foco dos autores foi problematizar a noção de memória afetiva frente ao advento da cultura digital, discutindo o universo dos matches e o crescente mercado de aplicativos de relacionamento no Brasil – uma temática que, pela sua singularidade, contribui para demonstrar como o público e o digital contribuem para a abertura de novas perspectivas e abordagens de pesquisa, especialmente quando pensamos na história da própria Internet.

Na chamada original desta edição, também propúnhamos debater as variadas metodologias, abordagens e tipologias documentais que se apresentam para o historiador a partir da emergência das tecnologias informáticas, sendo este um tema que também se fez presente, grosso modo, em todos os trabalhos que reunimos. Contudo, para facilitar nossa apresentação, escolhemos destacar três artigos que, a nosso ver, discutem de forma mais sistemática a perspectiva metodológica relacionada a apropriação das tecnologias ao fazer acadêmico, apresentando diferentes enfoques que podem ser adotados quando se trabalha com as Humanidades Digitais.

O primeiro desses trabalhos é o artigo de Priscila Scoville, intitulado “As definições do tablete foram atualizadas: o Antigo Oriente Próximo e as Humanidades Digitais”, que explora o uso da metodologia de Análise de Redes Sociais (ou SNA, na sigla em inglês). Sendo esta uma técnica que se notabilizou nos últimos anos pelos estudos aplicados a redes sociais online, destacamos a inovação do trabalho apresentado por propor sua aplicação ao estudo de sociedades da Antiguidade Próximo-Oriental. Partindo da aplicação das ferramentas de Análise de Redes, Scoville apresenta um “mapa” em que são exploradas as interações diplomáticas entre diferentes reinos, propondo assim “revisitar o antigo oriente, desmistificando e recontextualizando aqueles povos em uma realidade mais integrada e interconectada”.

Pedro Nuñes, Marcia Vasquez e Bruno Martins, por sua vez, discutem a utilização de softwares de Realidade Virtual em pesquisas históricas e arqueológicas no artigo “Projeção tridimensional de uma estrutura funerária egípcia: implicações, formulações e análise espacial da tumba de Nakht (1401-1353 A.E.C.)”. Como se vê, ganha destaque mais uma vez o contraste entre uma temporalidade afastada e a aplicação de ferramentas normalmente pensadas em contextos contemporâneos, como no trabalho anterior. Os autores apresentam, em seu trabalho, uma reconstrução tridimensional de uma estrutura funerária egípcia, buscando discutir como o uso da Realidade Virtual pode auxiliar na compreensão do espaço e na análise de significados simbólicos e religiosos, de modo a facilitar a interpretação da agência dos objetos e imagens dispostos na tumba.

Já no artigo de Leandro Santos, intitulado “Entre o líder político e o mito religioso: a construção do perfil de Padre Cícero a partir de acervos de periódicos e arquivos digitais”, o foco da discussão recai sobre o uso de acervos digitais na pesquisa histórica, no caso, o acervo de jornais digitalizados e disponíveis na Hemeroteca Digital, sítio eletrônico mantido pela Biblioteca Nacional. A partir da pesquisa em 18 periódicos e jornais publicados no estado do Ceará na primeira metade do século XX, Santos analisa a construção do perfil público do padre Cícero Romão Batista, figura política de destaque na Primeira República, buscando refletir sobre as diferentes imagens construídas pela imprensa da época e como estas variavam de acordo com o posicionamento político-editorial de cada veículo.

O uso das novas tecnologias em sala de aula também é um tema debatido por alguns dos trabalhos do presente dossiê. No artigo “A História que queremos: uma proposta de ensino de História para as redes sociais”, por exemplo, Bruno Schlatter propõe-se a discutir o uso de redes sociais online em sala de aula a partir de um estudo de caso desenvolvido em sua prática docente no Ensino Fundamental. Trabalhando com o conceito de protagonismo juvenil, o autor parte das postagens realizadas pelos seus estudantes para analisar o engajamento e agência dos alunos na produção do conhecimento, demonstrando como as redes sociais podem se constituir como um espaço privilegiado para a construção das relações de ensino-aprendizagem, seja como espaço de expressão dos jovens, seja como apoio para produção e disseminação de novos saberes.

Por outro lado, Ana Gláucia Motta analisa a utilização de exposições museológicas disponibilizadas em formato digital como ferramentas pedagógicas no texto “Museus históricos no mundo digital e suas potencialidades em sala de aula”. O trabalho busca discutir o uso de exposições disponíveis na web como ferramentas didáticas e sua aplicação na construção do conhecimento histórico no âmbito escolar, partindo da análise de três importantes e tradicionais instituições de memória que disponibilizam parte de seu acervo para acesso online – o Acropolis Museum, de Atenas, o British Museum, de Londres, e o Museu Imperial, localizado em Petrópolis. A partir de um esforço de revisão bibliográfica e das reflexões propostas ao longo do trabalho, a autora destaca que, mais importante do que a simples incorporação dessas novas tecnologias ao cotidiano escolar, é o trabalho do professor na construção de uma didática que propicie a construção de um raciocínio crítico e autônomo por parte dos estudantes.

Por falar em museus na Internet, outro trabalho que busca explorar a relação entre as instituições de memória e a rede mundial de computadores é o artigo de Ian Marino, denominado “A história e as mídias digitais na experiência do Instituto Museu da Pessoa”. Neste trabalho, o foco recai sobre a análise de uma experiência singular de uma instituição que tem seu trabalho pensado em termos virtuais e colaborativos. Assim, Marino propõe-se a discutir o papel das tecnologias digitais na constituição deste museu, levantando importantes questionamentos a respeito dos métodos de construção do conhecimento histórico em meio ao advento das novas tecnologias digitais, além de destacar a experiência única desenvolvida pelo Museu da Pessoa em seus mais de 20 anos de existência, constituindo-se em uma instituição na qual o debate com a História Pública se dá também de forma privilegiada.

Concluímos o presente dossiê trazendo duas entrevistas internacionais com pesquisadores cujas produções constituem uma significativa contribuição para o desenvolvimento do campo das Humanidades Digitais. Na primeira delas, os integrantes do grupo de pesquisa Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas (ARISE), da USP, reuniram-se para entrevistar Andrew Reinhard, professor do Departamento de Arqueologia da University of York, no Reino Unido, e especialista em um campo inovador do conhecimento arqueológico denominado Archaeogaming. Conforme apontam os autores, o objetivo central da entrevista foi “difundir a área de pesquisa que relaciona videogames com Arqueologia”, explorando, entre outros temas, a constituição dos softwares e jogos digitais como registros da cultura humana contemporânea, além de aspectos teóricos e metodológicos presentes na obra do professor Reinhard.

Na segunda entrevista, realizada por este que vos escreve, trazemos uma conversa com o professor Daniel Alves, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (UNL). Como um dos principais divulgadores do campo das Humanidades Digitais em nosso idioma, o professor Daniel tem desenvolvido um trabalho marcado por intensa colaboração interdisciplinar, sendo um dos fundadores da Associação das Humanidades Digitais (AHDig), que reúne grande número de pesquisadores brasileiros e portugueses vinculados a áreas bastante diversas do conhecimento acadêmico. A entrevista explora aspectos diversos da relação entre humanidades e tecnologias, como o surgimento do campo das Humanidades Digitais e os impactos das novas tecnologias para o trabalho do historiador, além de retomar o conceito de “comunidade de práticas” defendido pelo pesquisador em seus trabalhos.

Como apontamos, as contribuições para o presente número temático foram diversas e variadas, abordando a interface entre Humanidades e as novas tecnologias a partir de múltiplas perspectivas. Esperamos, assim, que a publicação deste conjunto de trabalhos possa contribuir para que se avance no debate a respeito das Humanidades Digitais no campo historiográfico brasileiro, fomentando cada vez mais a incorporação destas ferramentas no trabalho de jovens historiadores e historiadoras, como forma de ampliar as perspectivas do conhecimento histórico, alcançar novas fronteiras e atingir públicos cada vez mais diversos. Boa leitura!

Notas

1 Licenciado e Mestre em História. Doutorando no PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq / SARAS – Sociedades de Antigo Regime no Atlântico Sul. Tem experiência na área de Tecnologias da Informação e Comunicação aplicadas à pesquisa e ao ensino de História, com interesse no campo das Digital Humanities. É colaborador do Portal de História Digital Cliomática, mantido pelo Laboratório de História Social da UnB. E-mail: [email protected]

2 Embora o termo Digital Humanities possa ser identificado de forma esporádica em obras da década de 1990, ele só é formalizado e alcança certa popularização a partir da publicação da obra organizada por Unsworth, Schreibman e Siemens (2004).

Referências

ALVES, Daniel. As Humanidades Digitais como uma comunidade de práticas dentro do formalismo académico: dos exemplos internacionais ao caso português. Ler História, Lisboa, n. 69, p. 91-103, 2016. Disponível em: https: / / journals.openedition.org / lerhistoria / 2496. Acesso em: 05 / 08 / 2020.

BRESCIANO, Juán André. Los estúdios históricos em la sociedade de la información. In: BRESCIANO, Juán André; GIL, Tiago Luis (orgs.). La historiografia ante el giro digital: reflexiones teóricas e prácticas metodológicas. Buenos Aires: Ediciones Cruz del Sur, 2015.

LEVY, Pierre. Cyberculture: Rapport au Conseil de l’Europe. Paris: Odile Jacob Éditions, 1997.

CARNEIRO, Anita; LAITANO, Bruno. YouTube como fonte histórica: uma proposta de metodologia. In: BASSO, Alana, et. al. Comunicações do 3º Encontro Discente de História da UFRGS. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. Disponível em: https: / / www.editorafi.org / 563historia. Acesso em: 05 / 08 / 2020.

MOUNIER, Pierre. Manifeste des Digital Humanities. ThatCamp. Journal des Anthropologues, Paris, n. 122-123, p. 447-452, 2010. Disponível em: https: / / journals.openedition.org / jda / 3652#tocto1n1. Acesso em: 05 / 08 / 2020.

NOIRET, Serge. História Pública Digital. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 28- 51, 2015. Disponível em: http: / / revista.ibict.br / liinc / article / view / 3634. Acesso em: 01 / 07 / 2020.

PONS, Anaclet. El pasado fue analógico, el futuro es digital. Nuevas formas de escritura histórica. Ayer, Madrid, n. 110, v. 2, p. 19-50, 2018. Disponível em: http: / / revistaayer.com / articulo / 1280. Acesso em: 05 / 08 / 2020. S

CHREIBMAN, Susan; SIEMENS, Ray; UNSWORTH, John (Ed.). A companion to Digital Humanities. Hoboken: Blackwell Publishing, 2008.

SCHWAB, Klaus. The Fourth Industrial Revolution. New York City: Crown Business, 2017.

Israel Aquino1 – Licenciado e Mestre em História. Doutorando no PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq / SARAS – Sociedades de Antigo Regime no Atlântico Sul. É colaborador do Portal de História Digital Cliomática, mantido pelo Laboratório de História Social da UnB. E-mail: [email protected]


AQUINO, Israel. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 26, ago, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Da Antropologia e Sociologia do corpo aos Estudos Corporais. Análise e quadro interpretativo / Albuquerque: revista de história / 2020

Estudios sociales, cuerpos y corporeidades

El cuerpo como lo que percibe, lo que toca o lo que ve, es fácil que a su vez sea lo no visto, lo rara vez tocado aunque a menudo trabajado, y como tal lo que se le ha escurrido hace tiempo a la percepción, lo no sentido. Esto llega incluso a lo normativo. La salud y el bienestar pueden definirse como el cumplimiento de la disposición de que el cuerpo no tiene que hacerse notar. Hans Blumenberg (2011)

En los últimos 30 años, y como resultado de un trabajo entrecruzado y permeable entre diferentes disciplinas (entre las cuales podemos mencionar la antropología, la comunicación, la historia, la sociología, el arte, la psicología o la educación), se ha desarrollado un amplio y novedoso campo interdisciplinario que podemos denominar con el término de habla inglesa: Body Studies (Estudios Corporales). Desde los trabajos iniciales de algunos autores que arrancaron con esta forma de investigar y de arropar el cuerpo como objeto de estudio (Marcel Mauss con su texto Techniques du corps; Michel Foucault y una amplia red de textos que han tejido escrituras corpóreas; Pierrre Bourdieu y su trabajo iniciático Remarques provisoires sur la perception sociale du corps) se creó un marco interpretativo sin la pretensión de generar un campo de estudio específico. A través de una segunda generación de investigadores dedicados todavía de forma más amplia y específica al estudio del cuerpo (Bryan Turner o David le Breton, ambos con infinidad de trabajos centrados en el cuerpo como objeto central de sus investigaciones), se han desarrollado diferentes contribuciones que, de forma casi definitiva, han permitido la posibilidad de transitar por caminos alternativos a la hermenéutica del cuerpo como algo biológico, fisiológico o biomecánico.

Es así como podemos aventurarnos a afirmar que los Body Studies nacieron, sin saberlo o sin ser plenamente conscientes de ello, como complemento o alternativa a la perspectiva anatómica y biológica del cuerpo humano. El cuerpo era (y en su esencia sigue funcionando de esta forma) asimilado a los órganos, a lo fisiológico, a lo biológico, pero muy pocas veces a su dimensión cultural o vivencial-experiencial. Desde hace más de 50 años el filósofo alemán Edmund Husserl hizo una distinción que se convirtió en algo fundamental para entender esta cuestión, y que consistió en diferenciar el concepto Leib (cuerpo vivido) de Körper (cuerpo físico).

Desde aquellos autores iniciales se ha tratado de arrojar luz sobre ciertas preguntas centrales sobre las formas de vivir la condición de humanidad. Diferentes escenarios y ubicaciones han desempeñado un papel relevante, pero de manera especial en los últimos 10 años han surgido grupos de investigación, proyectos, tesis, artículos, libros y congresos que ubican a países como México, Brasil, Colombia o Argentina como ejes globales de producción de conocimiento. El dossier que presentamos de la revista Albuquerque busca ofrecer a los lectores trabajos actuales centrados en la perspectiva de los Estudios Corporales con una amplia visión de temas y disciplinas interesados en ofrecer otras miradas sobre el cuerpo. Investigadores y académicos proponen trabajos que nos permiten seguir pensando en el ser humano y sus formas de interacción y circulación por el mundo desde su dimensión simbólica-corporal. Como hemos avanzado, se trata de un campo de intersección, de un espacio en el cual se puede discutir su ejercicio en forma de proyectos de investigación (artículos), resultados de proyectos, ensayos o artículos de revisión en los que se incorporan problemas que abordan la perspectiva de los estudios corporales desde diferentes dimensiones, inclinaciones teóricas o metodologías.

El dossier arranca con un artítulo titulado “O corpo na historia: reflexões sobre a historiografía do corpo, do gênero e das sexualidades”, que propone una profunda revisión de los estudios corporales desde la perspectiva historiográfica. El trabajo recorre distintos momentos, perspectivas, temas y metodologías que en el contexto de una disciplina como la historia han tomado forma en el cuerpo como objeto de estudio. Su propuesta consiste en analizar estos interrogantes con el telón de fondo del género y la sexualidad, verdaderos territorios de impacto social y personal del asunto corporal.

Un segundo trabajo, titulado “A morte no filme ‘Ventos de agosto’: os usos sociais do corpo”, apuesta por mostrar los estudios corporales aplicados al campo de las artes visuales. A partir de la película Ventos de agosto se despliega un conjunto de visiones sobre el cuerpo que lo trasladan hacia la muerte. ¿Qué es un cuerpo en estado final? ¿Cómo se traza una línea que separa la vida de la muerte, el cuerpo del cadáver? El trabajo apuesta por pensar y problematizar de forma dialógica la muerte como uno de los temas centrales de los Estudios Corporales. El tercer trabajo del dossier se presenta alrededor de los cuerpos que no son dóciles. Titulado “Corpos (não tão) dóceis: o rock e a juventude”, el texto transita por elementos no estándares de esta tipología de investigaciones. Se trata de pensar, o mejor dicho de repensar, los cuerpos jóvenes, productores de resistencias somáticas frente a una sociedad ultranormalizada; el rock es el hilo conductor que permite este análisis.

El cuarto trabajo lleva por título “As fronteiras de um corpo imaginário: o gênero e a identidade em ‘O menino que brincava de ser’” y propone estudiar esta obra de Georgina Martins (2000) desde la perspectiva de los estudios corporales. Ello se traduce en un recorrido analítico por las geografias del texto que confrontan las identidades, los géneros, los cuerpos y los imaginarios simbólicos que las envuelven.

Un quinto trabajo propone la recuperación de un término cada vez más en desuso frente a lo que podemos denominar “terminologías queer”. Con el título “A viacrucis do corpo travesti em ‘A Inevítavel Historia de Letícia Diniz’ (2006)”, nos adentramos en la mirada hacia la práctica del travestismo y su vinculación con la vida misma, con el dolor y el sufrimiento de las miradas y de los actos ajenos.

El sexto artículo con el título “‘Com sedas matei e com ferros morri’: o corpo em disputa (classificação, abjeção e violência no Brasil)” propone comprender la disputa de los cuerpos desarrollados a través de su clasificación, basada en la abyección y que tiene en consecuencia, la violencia dirigida a una gran parte de la población LGBT+ en Brasil.

Lo artículo “Concepciones del cuerpo en contextos multi e interculturales” habla de la importancia que reporta la multiculturalidad y la interculturalidad en el análisis de la diversidad cultural, la inclusión social, las identidades colectivas, para visibilizarlos en el cuerpo como auténtico artífice material y simbólico intercultural; el lugar de la intersección de flujos, tensiones y contradicciones del proceso intercultural, siempre precario.

El dossier cierra con un trabajo dedicado a la educación y a los estudios corporales: con el título “Los cuerpos en los procesos de formación inicial en Educación Física ¿Cómo se observan y comprenden?”, el artículo ofrece un análisis de cómo se forman, deforman o performan los cuerpos en uno de los grandes dispositivos sociales: la escuela.

Este conjunto de artículos sirve para abordar desde ángulos distintos y complementarios un marco de trabajo amplio que permite repensar un campo disciplinar todavía en proceso de construcción, y que necesita de aportes transdisciplinares que no se cierren en fronteras académicas y que fluyan por los distintos temas que forman el campo de los estudios corporales para insistir en su vigor.

Referências

BLUMENBERG, Hans. Descripción del ser humano. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011.

Jordi Planella Ribera (Universitat Oberta de Catalunya, España)

Héctor Rolando Chaparro (Universidad de los Llanos, Colombia)

Organizadores


RIBERA, Jordi Planella; CHAPARRO, Héctor Rolando. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.23, 2020. Acessar publicação original [DR]

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A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico – NIXEY (AN)

NIXEY, Catherine. A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico. Porto Salvo: Desassossego, 2018. Resenha de: SILVA, Paulo Duarte. Ecos de Gibbon: a s trevas cristãs revisitadas?  Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020.

“A encantadora estátua de Atena [em Atenas, aproximadamente entre 529 e 532 e.C.], a deusa da sabedoria […] [n]ão foi só decapitada, como […] usada como degrau. […]. O ‘triunfo’ do Cristianismo estava completo” (NIXEY, 2018, p. 279). Assim Catherine Nixey encerra A chegada das trevas (The Darkening Age, Pan Macmillian, 2017).

Composta por 329 páginas, uma introdução e 16 capítulos, 1 mapa, 33 ilustrações referen­ciadas, 25 páginas de bibliografia e 6 de índice onomástico, a versão portuguesa possui poucos contratempos.1 Uma breve busca online mostra que o texto alcançou grande repercussão. Em linguagem acessível e amparada em novas — e tradicionais — referências, a jornalista recorre à sua formação em Estudos Clássicos em Cambridge e à sua experiência docente pregressa para discutir o papel do Cristianismo na “derrocada” do mundo clássico.

Segundo Nixey, tal ruína iniciou-se com a ascensão de Constantino, que teria inaugurado o “século I do domínio cristão” (p. 197, 201), desvirtuando um mundo em que religião e política não se misturavam (p. 243), já que eram civilizadamente regidos pelas leis (p. 255). Assim, embora reconheça a relevância de questões climáticas e demográficas (p. 157), das invasões “bárbaras” (p. 30-31, 264) e de suposta decadência moral romana (p. 37), a autora responsabiliza o Cristianismo.2

Ao considerar que muitos usa(ra)m “o monoteísmo e suas armas para fins terríveis” (p. 34, 129), a autora relaciona a temática ao debate público contemporâneo, pela alusão expressa à Palmira (p. 17-18, 29): sem citar a obra de Veyne (2015) dedicada à cidade síria, denuncia seu drama, arrui­nada pelos cristãos e, hoje, pelos muçulmanos.

Nixey argumenta que, após intensa contenda intelectual e a destruição de espaços e monu­mentos considerados “pagãos”, a pregação cristã voltou-se à moralização dos costumes sociais e sexuais (p. 28-29, 189-252).3 É difícil não tomar tal juízo como advertência às recentes discussões sobre televangelismo, movimentos antivacina e terraplanistas, “ideologia de gênero” e afins: pro­vavelmente esta é a principal contribuição da obra e, a um só tempo, seu grande risco.

Deste modo, o primeiro eixo da obra remete ao embate entre os escritos de “pagãos” e cris­tãos, com o amplo escopo de interesses e a complexidade investigativa dos primeiros contrastados à relativa simplicidade dos últimos: por exemplo, ao apresentar os tratados de medicina de Galeno (p. 61-65), para quem “[e]ra preciso provar […]. Fazer outra coisa era, para Galeno, o método de um idiota. Era o método de um cristão” (p. 64).4

Além das contribuições “científicas”, outro âmbito elogiado é o da poesia e do teatro, pelas obras de Calímaco e de tragediógrafos como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (p. 160-172). A estes se somam textos satíricos e/ou sexuais, como os de Ovídio, Marcial e, sobretudo, Catulo (p. 171-179).5 No plano religioso, a autora exalta a interpretação cética de Celso em relação aos dogmas cristãos (p. 64-73), e o relativismo politeísta de Luciano, Plínio o Velho, Plutarco, dentre outros (p. 70-81, 110-111, 121, 173-181, 305).

São aclamados ainda pensadores como Cícero, Sêneca, Plínio o Novo (p. 99-113), Libânio (p. 141-152, 189-228, 254-255), Damáscio (p. 23-26, 259-272) e Símaco, líder da chamada “reação pagã” de fins do século IV (153-154). Em termos científicos, literários e religiosos, seus nomes e obras são reunidos sob o epítome da “cultura clássica” e os cuidados do imperador-filósofo Marco Aurélio (m. 180) (p. 61).

À intelligentsia antiga opuseram-se os “grandes gigantes da Igreja” (p. 47). Neste grupo, figuram Tertuliano (p. 91-105, 174-183, 219-228), Orígenes (65-69), Cipriano, Jerônimo (227-241), Martinho de Tours (p. 143-151), Shenoute (p. 243-256) e Agostinho; além de Atanásio (p. 37-49), Teófilo (p. 141-144, 164) e Cirilo (p. 154-167), bispos de Alexandria (p. 157-167), e Crisóstomo, importante pregador cristão (p. 189-252).

Na disputa com os “pagãos”, estes contariam não somente com o apoio de imperadores,6 mas de hostes violentas e temerárias: além de monges que, segundo detratores, eram “vulgares, malcheirosos, mal-educados, violentos” e “falsos” (p. 141, 231-239), as fileiras eram compostas por maqueiros, coveiros, parabolanos alexandrinos (p. 167), além dos circunceliões africanos (p. 252-256).

Subentende-se que o Cristianismo só teria superado o “gênio” cultural clássico pelos favores imperiais e, sobretudo, por meio da violência. Como “todo um modo de vida […] desaparecia” (p. 201), Nixey enfatiza a destruição promovida pelos cristãos, dividindo-a em três ramos: das estátuas, dos monumentos e espaços urbanos e do citado patrimônio literário.

Quanto às estátuas, a autora destaca, dentre outras (p. 127-130, 138-139), as dedicadas à Atena em Palmira (p. 17-18, 280) e Atenas (p. 273), e a ateniense dedicada à Afrodite (p. 137), que ilustra a capa da versão portuguesa. Considera ainda tanto a reutilização dos materiais quanto associa suas castrações ao recrudescimento da pregação cristã (p. 143-153, 252). Centrando-se em Atenas (p. 27, 117, 267-273), e, principalmente, Alexandria, Nixey denuncia a devastação promovida pelos cristãos. Assim, lamenta a destruição da “maior biblioteca do mundo antigo” (p. 27, 157-167), bem como do Farol, do Serapeu e do Museu (p. 117-122). As referências dispersas pelo texto dão a entender que, em âmbito local, outros espaços sociais relevantes foram sendo destruídos ou abandonados, como os teatros, jogos, circos e banhos (p. 221-228).7

Daí resultaria a perda colossal de textos (p. 28, 30-31, 71), “combinação de ignorância, medo e idiotice” (p. 198) e, no campo artístico, correlata à “maior destruição […] que a história humana alguma vez assistiu” (p. 33, 71, nota 97). Tal estrago associou-se a dois processos: por um lado, e não sem problemas, as letras clássicas seriam adequadas ao filtro cristão, que lhes concedia pouca ou nenhuma brecha (p. 171-186); por outro, a censura e a queima de livros cresceriam, com a referida moralização dos costumes testemunhada nos sermões cristãos (p. 189-228).

A nosso ver, Nixey tem dois méritos: criticar contundentemente a interpretação histórica demasiado otimista sobre o “triunfo cristão” (p. 18, 25-26, 33, 273), ao recorrer parcialmente às recentes discussões historiográficas. Assim, ainda que concorde com a premissa dos pesquisadores tardo-antiquistas, pela qual a expansão cristã deva ser considerada um fenômeno histórico rele­vante e multifacetado, a autora critica o viés positivo que algumas interpretações assumiram (p. 130-134, 148-149), como a de Brown (1997, p. 212-213 apud NIXEY, 2018, p. 149, nota 322), que minimizaria a destruição de templos, ou mesmo a alegação de que o Cristianismo seria “prote­tor da tradição clássica” (p. 171).8 Para tal, recorre aos recentes argumentos de Drake (p. 129, nota 260) e Garnsey (p. 150, nota 327), e do próprio Brown (p. 158, nota 346) a respeito da “tolerância cristã”, além de Shaw e Gaddis sobre a “violência sagrada” cristã (p. 243-256).9

Contudo, em que pese reconhecer seus méritos, a leitura do texto promove diversos incômo­dos. Formalmente, a falta de um plano de capítulos e o fato de que os títulos de cada sessão nem sempre são esclarecedores criam uma sensação de repetição. Porém, mais embaraçoso é perceber que, mesmo ao incorporar importantes contribuições historiográficas, um juízo gibboniano per­meia o texto, pelas citações diretas ao historiador britânico (p. 65-66, 95, 121, 132, 192, 201, 264) e pelo tom pejorativo com que interpreta, ironicamente, o “triunfo cristão”.

A responsabilização do Cristianismo conduz a um indisfarçado senso de superioridade estética e cultural dos antigos frente aos seus rivais. Comparados a crianças (p. 126), os cristãos teriam erguido, sobre as ruínas dos templos antigos, edifícios de pior qualidade (p. 117-121, 261), e possivelmente só equiparariam o volume documental da biblioteca alexandrina em meados do século XIV (p. 161).

No texto, a ênfase da autora em um contraste caricato entre a ignorância destrutiva dos cris­tãos e a liberdade “iluminista” antiga é ressalvada de modo muito pontual (p. 31, 117, 137-138, 173-174, 225, 272). Pior: esbarra em frases categóricas como “quer o politeísmo greco-romano fosse verdadeiramente ‘tolerante’ ou não, não restam dúvidas de que os velhos hábitos eram, na sua base, liberais e generosos” (p. 153), ou, ao comentar sobre Plínio o Novo, indicar que este era “o romano perfeito: demasiado educado para se dedicar a uma fervorosa crença nos deuses” (p. 104).

Nixey subestimou a capacidade intelectual dos cristãos no embate com os “pagãos”, mas não apenas. Em um dos raros comentários sobre as contendas intelectuais entre cristãos, afirma que

[o]s heréticos eram intelectuais, portanto os intelectuais eram, se não heréticos, sem dúvida suspeitos. Assim era o silogismo. A simplicidade intelectual ou, para usar um nome menos elogioso, a ignorância, era largamente celebrada […]. A ignorância era poder. (p. 180).

Talvez por isso, também tropece em questões metodológicas e conceituais. Quanto aos docu­mentos, frisa-se o relativo cuidado em relação às fontes selecionadas (p. 31-33, 50, 55, 65, 86, 130-134, 139-143, 238): este, contudo, se ofusca por uma reflexão tardia sobre contingências materiais que então envolviam a produção textual (p. 196, cf. p. 64, 68, 80, 171-186) e pela discrepância com 4 de 5  que examina, minuciosamente, a variada documentação cristã10 em busca da “lente distorcida” (p. 107) e de sua “visão deturpada” (p. 185), e que não encontra equivalência no caso dos “pagãos” (cf. p. 85-90, 99-113).

Quanto aos conceitos, ainda que atente sobre o uso de termos como “nação”, “religião” e “pagão” (p. 33, 133-134), o mesmo não ocorre com outros termos decisivos, como “cristão” e correlatos, como “bíblia” (p. 57, 129, 197), “heresia” (p. 70), “herético” (p. 80, cf. p. 134, 180) e mesmo “judeus” (p. 164-165), indispensáveis em qualquer estudo sobre o assunto. Em verdade, à exceção da menção a bispos e à “elite cristã” (p. 203), não se oferece uma reflexão sobre igreja(s) e Cristianismo(s).

Nota-se que, embora recuse parte do otimismo de diversos estudos tardo-antiquistas, Nixey desconsiderou aspectos que, em conjunto, resultam em uma obra que não atenta devidamente às nuances que envolvem o estudo das relações entre cristãos e “pagãos”. É significativa a ausência de menções aos trabalhos seminais de Jaeger (2014, original de 1961) e Cameron (1991), que mostraram que as fronteiras entre os discursos de cristãos e pagãos eram muito mais porosas do que se supunha.

Assim, embora saudemos a iniciativa em trazer à tona assuntos delicados, com os quais a historiografia vem demonstrando certo embaraço e dificuldade no debate público, frisamos que a dispensa de importantes ressalvas pode apenas reforçar o clichê gibboniano sobre as “trevas” cristãs: corre-se o risco de os muitos lados se entrincheirarem ainda mais. Resta saber como o público lusófono vai tomá-la.11

Referências

CAMERON, Averil. Christianity and the Rhetoric of Empire: the development of Christian discourse. Berkeley: University of California, 1991.

JAEGGER, Werner. Cristianismo primitivo e paideia grega. Santo André: Academia Cristã, 2014.

NIXEY, Catherine. A chegada das trevas: como os cristãos destruíram o mundo clássico. Porto Salvo: Desas­sossego, 2018.

VEYNE, Paul. Palmyre: l’irremplaçable trésor. Paris: Albin Michel, 2015.

Notas  

1 Para além de erros de datação (p. 117), ortográficos (p. 185, 221, 234, nota 584), de concordância (p. 246, 254) e de tra­dução (p. 47, 72, 149), frisa-se a ausência dos títulos dos capítulos no sumário (p. 9).

2 Não à toa, ao defender que o citado “triunfo cristão” teria precipitado gradualmente a “Idade das Trevas” (p. 264), recorre a conhecidos episódios em que os cristãos teriam sobrepujado a “filosofia”, como no assassinato de Hipácia em 415 (p. 158-167) e na destruição da Academia ateniense (p. 30-32, 259-273). Ademais, ressaltam outros em que o “paga­nismo” teria sido suplantado, caso dos monumentos alexandrinos em fins do século IV, e da promulgação do Código de Justiniano, em 529 (p. 262-264).

3 Reconhecendo, timidamente, que tais reclames estivessem de acordo com ditames prévios de parte da aristocracia (p. 215-216).

4 Da mesma forma, é saudada a teoria atomista de Demócrito, além de físicos, matemáticos e astrônomos como Arqui­medes, Erastóstenes, Aristarco, Hiparco (p. 161-162, 272) e a citada Hipácia.

5 No caso deste, Nixey ressalta que o pudor editorial para com seus textos não se limitou aos oitocentos, chegando mesmo até traduções de fins do século passado (p. 176-177).5 de 5

6 Mesmo ambíguo e vacilante, Constantino teria aberto caminho ao “rugido do mundo” cristão (p. 55-57). Justiniano, por sua vez, é mencionado quando se aborda o ímpeto moralizador cristão (p. 211, 252-271).

7 Em compasso à superação das festas antigas (p. 228, 238, 261-262).

8 Além de expor o pudor com que se pode tratar, ainda hoje, a sexualidade em Catulo (p. 171-179) e Ovídio (p. 196), ou mesmo exibida em Pompeia (p. 205-212).

9 Outros temas relevantes remetem à destruição de estátuas por Kristensen (p. 138, nota 279) e à censura de livros por Chadwick e MacMullen (p. 186, nota 438) e Rohmann (p. 198-228).

10 Hagiografias (p. 143-147), epístolas (p. 152-153), histórias (p. 185-186) e, sobretudo, os relatos martiriais (p. 90-98) e de perseguição (p. 99-113), dentre outros.

11 Em 2018, Nixey concedeu uma entrevista ao semanário Expresso, de maior alcance em Portugal no mesmo ano. Disponível em: https://leitor.expresso.pt/diario/29-05-2018/html/caderno-1/cultura/catherine-nixey–o-meu-livro-mostra-como-os-cristaos-destruiram-estatuas-e-templos-e-queimaram-livros-1. Acesso em: 7 jul. 2019. Ao passo que historiadores como Cameron (2017) e Drake (2019) já produziram resenhas de amplo alcance em língua inglesa, a recep­ção do público lusófono continua ainda particularmente atrelada à blogosfera cristã, vide: https://logosapologetica.com/ critica-do-livro-a-chegada-das-trevas-de-catherine-nixey. Acesso em: 7 jul. 2019.

Paulo Duarte Silva – Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em História Comparada da mesma instituição (PPGHC-UFRJ). E-mail: [email protected].