Pós-abolição no sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras | J. M. Mendonça, L. Teixeira e B. G. Mamigonian

MAMIGONIAN Beatriz G Pós-abolição
Beatriz Gallotti Mamigonian. Foto: LEHMT |

MENDONCA J M N Pos abolicao no sul do Brasil Pós-aboliçãoO paralelo que se faz a famosa obra de Fernando Henrique Cardoso, apesar de ser démodé, é inevitável. Muito se avançou nas pesquisas os múltiplos mundos da escravidão e da liberdade no sul do país, dando destaque para o evento que acontece bienalmente de mesmo nome. E, nesse intento que chega mais uma importante obra sobre o período pós-abolição no Brasil Meridional. O livro foi produto do seminário Negros no Sul: trajetórias e associativismo no pós-Abolição, ocorrido na UFSC em novembro de 2018, e recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no Edital “Memórias Brasileiras: Biografias” (2017-2019). Cabe destacar que o projeto denominado Afrodescendentes no Sul do Brasil: trajetórias associativas e familiares foi desenvolvido em parceria entre as universidades UFSC e UFPel. E, busca essencialmente, discutir dois temas bem caros a historiografia recente: associativismos e trajetórias. E por que deveríamos colocar no plural no título do livro? A miríade de experiências de associativismos e de trajetórias é o grande trunfo do livro, e por isso deveria ser valorizada em seu título. Falar de uma única forma de associativismo e de trajetória não parece ser o indicado, uma vez que as múltiplas possibilidades de ação são traçadas por esse livro. Destacaria como principal qualidade do livro ir além do “apesar de”.

Convencionou-se adotar o racismo como contexto imperante, engessando as ações dos indivíduos, na qual a experiência do pós-abolição de São Paulo é imposta para as mais diversas regiões do país. Mas o livro, magistralmente, inverte a lógica. Todos os artigos se concentram nas ações desses indivíduos, no sul do país, e a partir delas que o contexto é (re)construído. São eles os balizadores das experiências limites, que ultrapassam fronteiras estruturalmente e artificialmente construídas pela historiografia, das décadas de 70 e 80. Portanto, a mudança teórica para a microanálise é o grande trunfo do livro.

Dentre os mais diversos temas de pesquisas existentes nos pós-abolição – dentre os quais destaco: saúde, migrações, expressão cultural, identidades, gênero, quilombolas, atuação política, entre outros – o livro foi certeiro em escolher dois: associativismos e trajetórias. Em primeiro lugar, encontra-se a importância de se demonstrar como a população negra não adentrou o pós-abolição de forma desorganizada, muito pelo contrário, as associações demonstraram a reunião em torno de projetos coletivos e racialmente orientados, constituindo grupos de apoio mútuo no combate ao racismo. Essa experiência compartilhada orientou e viabilizou projetos que colocavam na praça e na opinião pública a discussão sobre o processo de racialização que a sociedade passava, durante a Primeira República. A segunda grande contribuição do livro versa sobre as trajetórias. Apesar de a maior parte dos autores não realizarem uma boa discussão diferenciando trajetórias de biografias, as experiências individuais, coletivas, e, principalmente, familiares trazem uma ótima reflexão sobre o papel dessa parcela da população na construção da sociedade, do pós-abolição. A mudança de ótica da macroestrutura imobilizadora de ações individuais para a microanálise mostrou como eles usaram as incoerências dos sistemas normativos para ultrapassar as barreiras do racismo imperante para construir um novo contexto e impor também os seus projetos e desejos.

O primeiro artigo da coleção apresenta o estado da arte da discussão bibliográfica sobre os associativismos negros no período pós-abolição. Petrônio Domingues, em seu artigo, tenta atingir todas as múltiplas experiências de associativismos negros, no pós-abolição.

Verdade seja dita, os limites de páginas impostos ao autor não tiram o brilho e o trabalho empenhado para tentar acompanhar uma produção bibliográfica em ampla expansão. Petrônio elenca as associações voluntárias, tais como: agremiações beneficentes, clubes sociais, centros cívicos, sociedades carnavalescas, ligas desportivas que no seu entender são catalisadoras de laços de solidariedade e união em prol de um fim coletivo. Somado a isto também levanta a bibliografia referente as trajetórias de suas lideranças, formas de resistência, lutas, acomodações, as estratégias, as ações coletivas e o papel das mulheres. Lembra o autor que a maior parte dessas associações investiu fortemente na formação educacional de seus membros e parentes, principalmente através de cursos alfabetizantes e montando bibliotecas. Por fim, para além das atividades objetivas, muitas dessas associações foram responsáveis em oferecer uma gama importante de atividades recreativas, tais como: bailes, festas, competições, concurso de fantasias, desfiles, entre outros.

Na esteira da discussão sobre a importância dos clubes negros, uma das mais importantes contribuições do livro vem do artigo de Fernanda Oliveira. Fruto de sua Tese de Doutorado, intitulada As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, cidadania e racialização na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1870-1960), o artigo condensa as principais conclusões. De longe, a mais importante foi a demonstração das trocas transnacionais de informações entre membros de clubes negros do Brasil e do Uruguai. Com isso demonstra belamente que os limites nacionais não foram impeditivos aos sujeitos de compartilharem experiências cotidianas de discriminação.

Nos capítulos seguintes conseguimos ter uma visão ampla sobre a quantidade e importância das associações negras. Racke e Luana Teixeira apresentam as agremiações em Florianópolis: o Centro Cívico e Recreativo José Arthur Boiteux (1915-1920), as Escolas de Samba “Os Protegidos da Princesa” e a “Embaixada Copa Lord”. Assim como no Paraná, Merylin Ricieli dos Santos pesquisa a existência do “Clube Treze de Maio” de Ponta Grossa, a partir de entrevistas. Em todos os trabalhos a tônica se mantêm quase a mesma, a de reforçar a existência de associações com uma identidade étnico-racial constituída e organizada politicamente com objetivos específicos.

Chegando a parte 2 do livro temos mais uma importante contribuição aos estudos do pós-abolição: as trajetórias. Nos capítulos que seguem fica claramente distinto tanto os aportes teóricos quanto a metodologia em diferenciar trajetórias individuais e coletivas.

Sobre a segunda, vale a pena reforçar nesses estudos o quanto o fortalecimento das famílias negras foi importantíssima estratégia para a manutenção da vida e consequente para a mobilidade social de seus integrantes. Logo, separaremos as pesquisas nos dois blocos: indivíduos e famílias.

São variadas e importantes trajetórias individuais externadas pelos pesquisadores. Zubaran, por exemplo, ressaltou as vidas de médicos negros, a saber: Alcides Feijó das Chagas Carvalho – graduado em 1916, defendia o “saneamento moral” obtido por meio da educação que levantaria a “moral” da comunidade negra; Arnaldo Dutra, diretor dos jornais O Imparcial, entre 1916-1918, e da Gazeta do Povo, entre 1920-1922, ambos de Porto Alegre. Assim, como o autor José Bento da Rosa que nos apresenta a belíssima trajetória de Firmino Alfredo Rosa e Manoel Ferreira de Miranda. São trabalhos aparentemente ainda em fase de execução e ao seu final com certeza serão uma ótima contribuição à historiografia.

Ao analisar as ações dos indivíduos é possível perceber as estratégias construídas ao longo de sua vida, sendo a busca pela educação uma importante engrenagem para a mobilidade social. Naomi Santos nos mostra a experiência de duas pessoas que passaram pela escravidão: Barnabé Ferreira Bello e João Baptista Gomes de Sá. O primeiro, escravizado, nasceu no ano de 1845, em Curitiba, e fora sapateiro. De acordo com a autora com o letramento e o fim do Império foi possível encontrá-lo no alistamento eleitoral de 1889. Já João matriculou-se aos 50 anos na escola noturna, sendo livre e empregado público. Essas histórias tinham por objetivo mostrar a busca por educação no processo de construção de liberdade e de lutas por cidadania, no pós-abolição. Apesar de belíssima contribuição desses trabalhos, de colocar à luz da história essas trajetórias de negros importantes, não há nesses artigos uma discussão que diferencie biografia de trajetórias, e muito menos fazem uma reflexão que diferencie “trajetórias negras” das demais.

Para além das trajetórias individuais, o livro se debruça sobre a importância das trajetórias coletivas, para ser mais preciso às famílias negras. Perussatto analisa a Família Calisto, grupo fundador do Jornal O Exemplo. Utilizando uma gama de fontes – tais como: alistamentos eleitorais, anúncios e notas diversas publicadas no jornal A Federação; habilitações e registros de casamento religioso e civil; registros de batismos e de óbitos; testamentos e inventários post-mortem; relatórios e almanaques – brilhantemente consegue traçar toda a genealogia e, principalmente, a atuação familiar na arena pública.

Calisto construiu uma ampla rede de sociabilidades entre homens de cor que lhe conferiu mobilidade e respeitabilidade, e sua atuação nos ajuda a compreender melhor o papel e a importância das famílias negras na mobilidade social, no período pós-abolição. É na trajetória familiar de Maria Teresa Joaquina que temos uma maravilhosa discussão sobre a importância das famílias negras no pós-abolição do Brasil Meridional.

Através de uma miríade de fontes, Rodrigo Weimer dá sentido e importância a trajetória da Rainha Jinga ao enfatizar o seu papel na congada e na atuação política para o reconhecimento da Comunidade Quilombola a que pertence. E sua maior contribuição é a do fortalecimento das pesquisas sobre famílias negras através de dois prismas: o primeiro se refere a percepção de que os sujeitos das famílias foram capazes de colocar suas marcas na história com autonomia superando a vitimização que normalmente lhes são imputados; e, por conseguinte; afirma ser as famílias negras a melhor unidade de observação, e não as trajetórias individuais, uma vez que as estratégias de vida não eram pensadas de forma individual, mas sim vividas e pensadas coletivamente.

Na continuidade de observar as ações coletivas e familiares de negros do pós-abolição, a História Oral se mostrou como um dos principais caminhos. Joseli Mendonça e Pamela Fabris reconstruíram as experiências das famílias Brito e Freitas, a partir da entrevista de Nei Luiz de Freitas. Descendente de escravizados, o seu depoimento abriu as portas para a realização de mais entrevistas com os seus familiares e permitiu a reconstrução de uma rede imbricada vivenciada por Vicente e Olympia. Vicente Moreira de Freitas acumulou recursos durante o período da escravidão, exercia a profissão de pedreiro, tinha instrução e obteve cargos que conferiam status e dignidade na Sociedade Protetora dos Operários –, fundada em 1883. Apesar da preocupação dos autores ser a análise das memórias e das identidades dos entrevistados, a pesquisa tem por principal contribuição a demonstração de que famílias negras, no pós-abolição, buscavam por diferentes redes de sociabilidades numa clara estratégia para diminuir as incertezas em relação ao futuro.

O último artigo dessa coletânea nos agracia com uma profunda pesquisa de microanálise em uma história de família. Henrique Espada Lima coloca em prática a redução de escala de análise de forma primorosa, buscando, ações, estratégias, incertezas e valores da família de Maria do Rosário. De acordo com a documentação, a família apostou, em primeiro lugar, na aproximação por alianças e construção de redes de solidariedade com pessoas brancas. As alianças com mulheres brancas frequentemente viúvas ou solteiras, de acordo com o autor, era conectada com “a própria vulnerabilidade a que se expunham essas mulheres – de outro modo, privilegiadas – que tentavam proteger-se de algum modo das incertezas da velhice solitária”. Mesmo que diante da possibilidade de se construir alianças, Henrique não percebe, pelo menos nesse texto, que essas relações eram construídas de modo a manter a população ex-escravizada em situação subalterna.

Em seguida, outra estratégia tomada pela família é a procura por ocupar diversos ofícios e isso permitiu o alistamento ao voto e o pertencimento à Guarda Nacional. Esses eram elementos que distinguiam homens pardos da maior parte dos seus pares, isto é, dando acesso ao exercício da cidadania. E, por último, uma das principais estratégias de mobilidade social foi a busca incessante pela educação. A trajetória da família, e principalmente de Olga Brasil, bisneta de Maria do Rosário, é marcada desde o início pelo investimento na educação formal, combinado com a participação em atividades ligadas à igreja católica. Contudo, a maior contribuição, e mais polêmica, do artigo é a de analisar uma família “parda” da escravidão ao pós-abolição. De início Henrique retoma uma discussão sobre o “silenciamento da cor” na documentação como estratégia para diminuir o horizonte de vulnerabilidade imposta aos ligados, mesmo que minimamente, à escravidão. Para o autor, à medida que a família se ascendia socialmente, a família de libertos “pardos” conseguiu se desfazer da associação com o passado escravista. E aponta, mesmo que sem aprofundamento, que o branqueamento pode ter sido um sucesso.

Verdade é que a documentação analisada não permite observar como a população ao entorno observava a família, assim como não é possível acompanhar os impedimentos de acesso a burocracias do estado ou mesmo a postos de poder. Apostar na estratégia (in)consciente de “branqueamento” da população negra, que perpassou pela escravidão e guardou em seu corpo as marcas desse passado, é muito arriscado na atual realidade da produção historiográfica a qual aposta na racialização como marco definidor dos lugares de poder e decisão, mesmo sem precisar falar de cor.

Essa é uma obra que ocupará um espaço importante na historiografia, não somente regional, do pós-abolição, mesmo que tenha altos e baixos, com artigos de historiadores ainda em formação. O livro contribui com importantes marcos, como as associações, as trajetórias individuais e familiares para a história nacional. E, desse modo, convido a todos a ler essa obra que incentivara novas pesquisas pelo Brasil todo.

Carlos Eduardo Coutinho da Costa – Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, docente do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de História da mesma instituição.


MENDONÇA, J. M. N; TEIXEIRA, L.; MAMIGONIAN, B. G. (Org.). Pós-abolição no sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras. 1. ed. Salvador: Sagga, 2020. 293p. Resenha de: Carlos Eduardo Coutinho da. O pós-abolição no Brasil meridional. Revista Ágora. Vitória, v.31, n.2, 2020. Acessar publicação original [IF].

História do Esporte e das Práticas Corporais / Caminhos da História / 2020

Prezadas (os) leitoras (es),

É com enorme satisfação que publicamos o primeiro número do volume 25 da Caminhos da História, Periódico do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG). Empenhados com a produção de dossiês que possam proporcionar ricos subsídios para os debates vigentes na História, apresentamos, aqui, o dossiê História do Esporte e das Práticas Corporais, atenciosamente refletido e organizado pela professora e pesquisadora Janice Zarpellon Mazo, Doutora da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (ESEFID) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano (PPGCMH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A proposta dessa coletânea de artigos agrega textos de pesquisadorxs que tratam da conexão entre os esportes e as práticas corporais com as particularidades locais e sua ligação com o que é geral e universal, até mesmo na área da História. Entre tais, destacamos: a prática esportiva em colônia de imigrantes; representações da construção da identidade torcedora no futebol; os percursos de atletas femininas paralímpicas; a presença das mulheres no esporte no início do século XX; e a ocorrência e as características de reportagens sobre o futebol feminino em programas de televisão.

Ora… Estes consistem, absolutamente, em temas caríssimos para auxiliar-nos a decifrar nosso panorama sociocultural e político-econômico. Isto porque se tratam de pesquisas que abarcam olhares a respeito do embricamento do assunto com diferentes campos científicos. Estas investigações têm se deparado com um frutífero espaço de debate com a consolidação do estudo em História do esporte e das práticas corporais a partir da concepção de múltiplos centros, núcleos e grupos de pesquisa por todo o Brasil. É nesta conjuntura que destacamos a relevância do dossiê temático proposto, o qual emergiu como ação das articulações entre pesquisadorxs do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, a partir de parcerias estabelecidas entre grupos de pesquisa de instituições de ensino superior de ambos os estados.

Para ilustrar a edição com este importante dossiê, a Caminhos da História conta com uma pintura do italiano Giovanni Battista Tiepolo, denominada Polichinelo e os acrobatas, de 1797, período em que a ginástica reaparecia em manifestações públicas.

Na seção que agrega artigos livres, expomos três preciosas contribuições. O primeiro texto apresenta um estudo sobre o exercício da Justiça criminal na cidade de Mariana-MG, a partir dos processos envolvendo escravos, no século XIX. Outro artigo debate sobre a figura de Silvio Romero, importante interprete do Brasil, na passagem do século XIX para o século XX: instigado pelas ideias naturalistas, oriundas da Europa, combateu a visão nacional em voga do romantismo brasileiro, alegando ser esta uma visão irreal, mística e fantasiosa. Por fim, apresentamos um estudo que debate as práticas preservacionistas da cidade de Belo Horizonte, apontando os desafios impostos ao poder público, entre as décadas de 1990 e 2000, quando se trata de ações voltadas para a salvaguarda de bens culturais vinculados à identidade e memória negra.

Boa leitura!

Atenciosamente,

Ester Liberato Pereira,

Rafael Dias de Castro

e Comissão Editorial!


PEREIRA, Ester Liberato; CASTRO, Rafael Dias de. Editorial. Caminhos da História, Montes Claros, v. 25, n.1, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Poder e gênero nas relações políticas / Caminhos da História / 2020

A década de 2010 se encerra com o crescimento dos populismos de direita, e o forte caráter extremista é um aspecto saliente. A perseguição a valores progressistas, ou mesmo pautas que dialoguem com os Direitos Humanos, pressiona pela necessidade de uso do conceito de política de forma permanente, atuante, militante, engajada, mantendo a coerência e a seriedade. É entender que o fazer História (como quem escreve e como quem faz) é inevitavelmente permeado por ideologias, e a neutralidade é a utopia dos tolos, ou daqueles que camuflam as posições já tomadas – geralmente do lado hegemônico.

Assim, a política não deve ser vista como terreno restrito aos assuntos institucionais, ou elitistas, pois esse é masculina, eurocêntrica, falocêntrica, remetendo a um histórico de dominação colonial e imperialista e, por isso, obsoleta. Porém, embora decadentes, as estruturas dominantes não falecem em silêncio, mas reagem com violência que é típica dos grupos em hemorragia de poder. Assim, política e poder devem fugir das esferas restritamente partidárias e factuais. Uma vez tributária da sociologia, psicologia, direito público, psicanálise, linguística, matemática, informática, como afirma René Remond (1997, p. 29), a História Política tem a obrigação de se fazer plural, compreendendo os fenômenos ações coletivos como organizações extra-partidárias e movimentos sociais, sem esquecer das ações subjetivas e identitárias que marcam a pós-modernidade.

Por outro lado, não se deve ignorar que o aparato repressivo estatal existe, e continua vigorosamente utilizado como instrumento normatizador e regulador sendo, portanto, nas palavras de Mbembe, um mecanismo de instrumentalização da vida humana e destruição (literal e metafórica) de corpos humanos e populações que não se encaixam (MBEMBE, 2018, p. 10-11). O nacionalismo oficial se torna imperativo na contemporaneidade, torna o grupo hegemônico o modelo inalcançado do retrato esperado para o país. Revelador, portanto, do descompasso entre o país legal e o país real na fala do ex-ministro da Educação Weintraub, na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020: “Esse país não é… odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré…”. Implicitamente se reforçou ali a imagem de um povo existente apenas de forma ideal, avessa à materialidade e a existência física e concreta de populações marginalizadas, excluídas, despidas de direitos básicos e fundamentais. Na ótica apresentada pelo ex-ministro, as minorias devem se incorporar, perdendo a identidade que lhes são definidoras ou, inevitavelmente, serão exterminadas. Dominação e / ou extermínio são as únicas escolhas permitidas àqueles externos às instâncias de decisão política em um Estado repressivo e tomado por grupos de elite despidos de representação popular.

Tal discurso afeta grupos distintos que tem como divisor comum tão somente o ícone da exclusão e da indiferença: mulheres, gays e trans; índios, retirantes, posseiros. Na lógica estreita e dicotômica dos integrantes de um Estado excludente, para somente assim construir a nação ideal, tal diversidade e pluralidade, típica das democracias saudáveis, estão desamparadas, exiladas dentro do próprio país, por não serem aceitas e incluídas ao que se espera ser “um povo nesse país”.

O dossiê “Poder e Gênero nas relações políticas” repercute as distorções e desproporcionalidades nos arranjos de poder, forçando grupos não-hegemônicos a elaborarem mecanismos e estratégias alternativos de atuação e manifestação não apenas de presença, mas de existência política e física. Tal preocupação é uma regularidade na revista Caminhos da História, conforme podemos visualizar em seus números anteriores, por exemplo, através das aproximações políticas entre América Latina e China no contexto da Guerra Fria (como no artigo de Maria Strabucchi, 2016) ou nos debates sobre intolerância e preconceito através da visão de intelectuais brasileiros da década de 1930 (Costa Filho, 2017).

Com o intuito de manifestar e repercutir esse objetivo, o atual dossiê sublinha temáticas sensíveis com relação às manifestações de poder. A decolonialidade como estratégia para romper com o modelo tradicional de historiografia, é uma das abordagens trabalhadas por Ana Paula Jardim Afonso. Em seu artigo se ressalta a importância de se combater a historiografia eurocêntrica que legitima o discurso e a narrativa do colonizador, e assim, se eleva em importância o papel das ações políticas decorrentes do “terrorismo de gênero”.

Carlos António Aguirre Rojas retoma o conceito de economia moral de E. P. Thompson, inicialmente lançado em A Formação da Classe Operária Inglesa. Nesta obra, o autor inglês buscava evidenciar a maneira de reagir às transformações impostas pela modernização e pelo capitalismo, através da associação entre tradição, identidade e as novidades que eram inseridas ao cotidiano do operariado em vias de formação. De maneira original Aguirre Rojas busca o emprego do conceito na América Latina, seja através do Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil, com os indígenas neozapatistas mexicanos na Marcha del Color de la Tierra em 2001, ou pelos bloqueios e a paralização em diversas cidades estratégicas da Bolívia.

De maneira correlata, está o artigo “Um debate sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no campo entre os anos de 1948 e 1964”, de Rafael Sandrin. Neste, há a análise das formas de atuação do partido de Luiz Carlos Prestes contra a violência do latifúndio durante o período democrático anterior ao Golpe Militar. Através do periódico “Terra Livre”, Sandrim percebe o esforço por mobilizar os trabalhadores agrários em torno de direitos já garantidos ao operariado, como, por exemplo, o acesso ao décimo terceiro salário. Deste modo, é abordado dentro do recorte de 1948 a 1964, temática sensível e contemporânea, ainda não resolvida no século XXI no Brasil.

A desigualdade de renda e das formas de subsistência tornam a violência meio de reação, e o crime como elemento marcante da institucionalização dos desníveis de acesso aos direitos, políticas públicas e acesso a renda. Em locais onde o Estado se manifesta de maneira negligente e atribui suas responsabilidades a iniciativa particular, há o espaço para a disputa do poder, conquistado por aquele que tem maiores recursos e potencial de manifestação da força e da violência em suas mais variadas configurações. Deste modo, Rejane Meirelles Amaral Rodrigues apresenta a trajetória do fazendeiro sertanejo marcado por essas disputas em “Literatura e banditismo social: Antônio Dó retratado por Saul Martins e Petrônio Braz”.

Por fim, Yôkissya Coelho e Monalisa Pavonne Oliveira fazem o rastreamento familiar e trajetória política de mulheres na política. Dentro da metodologia prosopográfica, o artigo “O perfil social de mulheres eleitas em Roraima (2014–2016)” se vincula a História do Tempo Presente. Portanto, tem como proposta detectar a possibilidade de ascensão social das mulheres na e pela política institucional em diferentes colorações políticas. No entanto, é ressaltada a participação das teias familiares no processo de criação do capital político para lançamento de campanhas eleitorais. Dentro dessa dinâmica familiar, o poder político se mantém limitado a determinados grupos.

Deste modo, encerramos o dossiê ancorado na atuação política em seus mais diferentes cenários e configurações. A proposta dos artigos, por mais diversas que possam parecer, tem como elemento unitário o anseio por manifestar o descontentamento através do registro, análise e investigação das desigualdades e suas marcas em seus diversos níveis sociais e econômicos, sendo manifestos desde a luta por terra, até no esforço por reconhecimento identitário subjetivo. Torcemos, que diante da conjuntura pessimista, possamos despertar o otimismo na ação e superação do conservadorismo, do reacionarismo e do proto-fascismo que germina em terreno fértil.

Referências

COSTA FILHO, Cícero João. ‘Raízes raciais’ do Projeto integralista (nacional) de Gustavo Barroso: o preconceito, a intolerância e o racismo para com a figura do judeu no Brasil da década 1930. Revista Caminhos de História, v.22, nº2, jul / dez, 2017, PPGH, Unimontes.

MBEMBE, Achile. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n1 edições, 2018.

MONTT STRABUCCHI, Maria. Writing about China’ Latin American Travelogues during the Cold War: Bernardo Kordon’s ‘600 millones y uno’ (1958), and Luis Oyarzún’s ‘Diario de Oriente, Unión Soviética, China e India’ (1960). Revista Caminhos da História, vol. 21, no. 1, jan / jun., p. 93–124, 2016, PPGH, Unimontes.

REMOND, René. Uma história presente. In. REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Fundação Getulio Vargas, 1997.

Felipe Azevedo Cazetta – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor de História Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. E-mail: [email protected] ORCID: http: / / orcid.org / 0000-0002-2110-7531


CAZETTA, Felipe Azevedo. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 25, n.2, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Dossiê: Imprensa, partidos e eleições no Oitocentos  / Ágora / 2020

Ágora da imprensa: a experiência do oitocentos em revista

A década de 2020 iniciou-se com o impensável, até inícios do século XXI, questionamento da imprensa. Pode-se dizer que tudo se começou com a revolução tecnológica que tirou da imprensa jornalística a primazia da informação, disputada agora por blogs, plataformas, transmissão on-line, entre outras inovações. Em princípio, a novidade foi festejada em todo o mundo, dando ensejo a movimentos populares conhecidos como a primavera árabe e as agitações no Brasil de 2013.

Após dez anos de canais informais de notícias, emergiu o grande fantasma intitulado Fake News. Nomeado por Donald Trump, justamente o líder mais retrógrado com potencial global, reconheceram-se os danos à política que a máquina do Fake News pode proporcionar. A discussão tornou-se acalorada e colocou em novo patamar as antigas empresas jornalísticas com seus protocolos de ética a serem cumpridos sob pena de sofrerem sanções judiciais. Não se esqueceu, porém, a crítica sobre os interesses corporativos que, muitas vezes, dominam as empresas oficiais de imprensa. Não se desconsidera o poder de divulgação de notícias omitidas pela grande imprensa pelos canais informais. No entanto, enfrenta-se atualmente o desafio de produzir com a nova tecnologia informações confiáveis, éticas e fidedignas.

A imprensa merece toda atenção dos estudiosos, dado o lugar que ocupa no mundo contemporâneo. E este periódico não podia se omitir diante do assunto. Como ensina Marc Bloch, a história não é ciência retroativa, mas é sempre o passado lido com preocupações do presente. Daí a decisão de organizar um dossiê que remetesse ao século XIX, quando a imprensa era declaradamente partidária e claramente abrigava grupos de interesse. A solução do século XX em tornar a imprensa um empreendimento capitalista, como bem definiu Habermas, alterou completamente os procedimentos jornalísticos. Não nos propomos a avaliar as mudanças, mas apenas apontar as diferenças.

Nesse sentido, o dossiê temático elaborado para esta edição, intitulado Imprensa, partidos e eleições no Oitocentos, teve como proposta apresentar a dinâmica política do século XIX a partir de diferentes abordagens, evidenciando, por exemplo, a atuação de grupos políticos, as transformações na cultura política, o uso da imprensa como veículo de ideias, assim como o funcionamento do sistema representativo. O dossiê reúne textos de pesquisadores que se dedicam a analisar a política do Oitocentos por meio de investigações que vão além do viés institucional, apontando para novas reflexões teóricas que buscam as múltiplas dimensões circunscritas no campo político e da imprensa deste período.

É importante afirmar que dentre os elementos que se destacam no conjunto de textos apresentados, percebe-se a pluralidade de fontes utilizadas e suas distintas análises metodológicas para a compreensão do contexto oitocentista. Além disso, os estudos inseridos neste dossiê dedicados ao contexto político do Brasil oitocentista evidenciam desde as discussões e agitações políticas da Corte, até aquelas ocorridas em províncias e municípios.

No artigo de abertura deste dossiê, Marcela Ternavasio nos apresenta o estudo denominado Pluralidad ciudadana y unidad del cuerpo político: desafíos y dilemas de la soberanía popular en el Río de la Plata en la primera mitad del siglo XIX. Utilizando a imprensa da época, a autora discute os elementos que permearam a composição da dinâmica política do Rio da Prata na primeira metade do Oitocentos. A reflexão proposta tem o objetivo de recriar os ambientes de discussão política no Oitocentos e os debates acerca da representação eleitoral, a divisão de poderes e a busca por cidadania.

Com a escala de análise agora centrada no Brasil oitocentista, o artigo de Arthur Ferreira Reis, intitulado A imprensa pernambucana no processo de independência (1821- 1824), busca identificar a circulação de ideias políticas ligadas ao processo de independência por meio de jornais produzidos em Pernambuco. Já com o intuito de compreender as reformulações em torno das esferas municipais e provinciais, além do novo arranjo monárquico-constitucional, o artigo Entre a autoridade do monarca e o lugar do poder local: rupturas e continuidades na Assembleia Constituinte de 1823, escrito por Glauber Miranda Florindo, destaca as rupturas e continuidades na Assembleia Constituinte de 1823.

Momento de conturbações políticas e discussões de diferentes projetos de nação, o período regencial também se tornou objeto de análise de alguns textos contidos neste dossiê. O artigo de Kátia Santana, Ajuntamentos e política na Corte regencial (1831– 1833), destaca a análise dos registros de ocorrência da Secretaria de Polícia da Corte e os Instrumentos de Justiça, enfatizando a atuação das autoridades contra as reuniões que eram enquadradas como ajuntamentos ilícitos naquele contexto.

Já no artigo Na “Cadeira da Verdade”: a ação política dos padres por meio dos púlpitos em Minas Gerais regência, Júlia Lopes Viana Lazzarini demonstra a dinâmica política mineira na década de 1830. A autora lança mão da imprensa local para analisar a participação de padres e párocos na política provincial, indicando a participação destes em grupos políticos, além da propagação de seus discursos e a atuação dos padres no cenário eleitoral.

O artigo escrito por Pedro Vilarinho Castelo Branco, denominado Imprensa e Política no Piauí na primeira metade do período monárquico, transita entre o período regencial e o início do Segundo Reinado. O autor elabora sua análise a partir das particularidades envolvidas na criação da imprensa no Piauí, destacando as dificuldades da difusão de discussões oposicionistas diante do domínio político do Barão de Parnaíba. A imprensa oitocentista permanece no diálogo proposto por este dossiê por meio do artigo A mão pesada da morte acaba de arrebatar mais uma vida preciosa”: sensibilidades nos anúncios de falecimento no jornal “O Piauhy” entre 1869 e 1873, escrito por Mariana Antão de Carvalho Rosa. Nesta análise, as relações políticas e sociais do Piauí da segunda metade do XIX são colocadas em discussão por meio dos anúncios de falecimento e das sensibilidades envolvidas neste processo, tendo os jornais como fonte de pesquisa.

Rodrigo Marzano Munari, no artigo Eleições em São Paulo do século XIX: uma pletora de leis, votantes e votos em disputa, aborda o contexto das eleições em São Paulo na segunda metade do Oitocentos. O autor assinala os principais aspectos políticos que envolviam a dinâmica eleitoral, além de elaborar sua análise acerca do voto e dos votantes, destacando-os como participantes ativos do processo político do período.

O fim do século XIX e a difusão das ideias republicanas são reflexões também levantadas em estudos do presente dossiê, sobretudo, por meio do cenário político das províncias e da atuação da imprensa. O artigo As vozes do progresso: os liberais positivistas na imprensa capixaba oitocentista, escrito por Karulliny Siqueira, analisa a relação entre a imprensa e o projeto político dos liberais positivistas visualizado na província do Espírito Santo no início da década de 1880. Por meio dos jornais políticos, um novo vocabulário foi inserido na dinâmica política provincial, destacando a ideia de progresso e, posteriormente, abrindo espaço para a a discussão acerca do republicanismo e da crítica ao Império.

A Moção Plebiscitária de São Borja e o jornal A Federação: uma análise a partir da hipótese de agendamento (1888), é o último artigo que completa esta coletânea. Escrito por Taciane Neres Moro, este estudo analisa a imprensa republicana Rio-Grandense, evidenciando o contexto de consolidação do Partido Republicano do Rio Grande do Sul, bem como sua ramificação no município de São Borja. Por meio do estudo de jornais, a autora indica a circulação do plebiscito acerca da possibilidade do III reinado no Brasil, demonstrando a adesão e a influência desta publicação no sul do país durante os momentos finais do Império.

Junho de 2020

Ou a Era do Fake News

Adriana Pereira Campos – Doutora em História (UFRJ). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo e dos Programas de Pós-Graduação em História e em Direito da mesma instituição. Coordenadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens (UFES). Bolsista produtividade do CNPq. Editora Chefe da Revista Ágora desde janeiro de 2020. E-mail: [email protected].

Karul l Iny Sil Verol Siqueira – Doutora em História (UFES). Professora do Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens da mesma instituição. Organizadora do presente dossiê “Imprensa, partidos e eleições no Oitocentos”. E-mail: [email protected]

kátia Sausen da Motta – Doutora em História (UFES). Pesquisadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens (UFES). Atua no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo como bolsista do Programa de Fixação de Doutores da Capes/Fapes, desenvolvendo pesquisa de pós-doutorado. Vice-editora chefe da Revista Ágora desde janeiro de 2020. E-mail: [email protected]

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Pós-abolição: sociabilidades, relações de trabalho e estratégias de mobilidade social / Ágora / 2020

O interesse dos historiadores (as) brasileiros (as) pelo pós-abolição tem crescido de forma significativa nas últimas décadas, o que trouxe à luz aspectos importantes da participação dos próprios escravizados e de seus descendentes no processo de emancipação, bem como sua atuação individual e coletiva após o 13 de maio nas mais diversas regiões do país. No Espírito Santo, berço da Revista Ágora, os estudos sobre o pós-abolição têm ganhado fôlego recentemente na esteira da renovação historiográfica sobre a escravidão observada nas duas últimas décadas. O acesso a documentos inéditos pelos pesquisadores como registros civis, eclesiásticos e outros, possibilitaram a escrita de teses e dissertações na área e o diálogo com a produção nacional. Tais trabalhos foram, em sua maioria, realizados por historiadores que compõem o Laboratório de História, Poder e Linguagens, da Universidade Federal do Espírito Santo, coordenado pela Dra. Adriana Pereira Campos. Algumas dessas pesquisas estão reunidas no dossiê Pós-abolição: sociabilidades, relações de trabalho e estratégias de mobilidade social que temos a honra de apresentar.

O atual número da Revista Ágora conta com nove artigos e uma resenha, sendo cinco trabalhos baseados em pesquisas desenvolvidas em vários locais do Espírito Santo, abarcando desde a capital até áreas do interior. Os anos finais da escravidão na antiga província e os embates do período posterior à abolição são abordados nessas pesquisas que dialogam com a historiografia produzida nacionalmente.

Dentre os artigos que contemplam o Espírito Santo, está o de Michel Dal Col Costa, que busca uma conexão entre um dos eventos relacionados à resistência dos escravizados mais conhecidos localmente, a Insurreição do Queimado (1849), e um conjunto de festas e folguedos populares cuja origem remonta ao período da escravidão e segue vivo como importante componente da cultura da região central do estado.

Rafaela Lago, por sua vez, analisou as relações sociais dos libertos no imediato pós abolição (1889-1910) na cidade de Vitória, utilizando-se de registros de nascimento, de batismos e jornais locais. A pesquisadora identificou tanto a permanência quanto a chegada de egressos do cativeiro na região. Ao invés de indivíduos apáticos e desprovidos de aptidão para o trabalho livre, o leitor se depara no artigo com pessoas que no dia a dia e durante suas atividades enfrentavam dura realidade e que muitas vezes foram marginalizados e excluídos da cidadania civil.

Outro estudo sobre a região de Vitória foi realizado por Juliana Almeida. Trata-se de uma análise das relações socioculturais entre a capoeira e o candomblé. A pesquisadora observou movimentos distintos, ou seja, certo distanciamento da capoeira Contemporânea capixaba com os elementos do Candomblé e aproximações deste com o grupo de capoeira Angola, que reafirmou tradições inventadas e reforçou a identidade africana com esse estilo de capoeira.

O trabalho de Laryssa Machado desloca o nosso olhar para o sul do Espírito Santo, onde procura identificar e analisar as famílias construídas pelos escravizados em Itapemirim nas últimas décadas antes da abolição (1872-1888). Além de discutir a importância da família para os próprios escravizados e para o sistema escravista, a historiadora aborda a persistência do tráfico de almas após a Lei Eusébio de Queirós naquela região, ajudando-nos a compreender o valor da escravidão para aquela sociedade.

Ainda no sul da província, temos o artigo de Geisa Ribeiro sobre os dois principais jornais publicados em Cachoeiro de Itapemirim, o mais importante município cafeeiro do Espírito Santo nas últimas décadas do século XIX, sobre o “glorioso ato de 13 de maio de 1888”. Por meio da análise de conteúdo, a autora investiga como o jornal conservador e o jornal de tendência republicana se posicionaram diante da abolição e, principalmente, como suas narrativas foram construídas entre o efêmero momento de comemoração e a proclamação da República.

É importante reconhecer que o destaque às pesquisas locais, que consideramos fundamentais para ajudar a compreender o país em sua diversidade, não diminui a necessidade do diálogo com pesquisadores de outras regiões, o que contribui para dimensionar a presença dos pesquisadores e pesquisadoras da Bahia, São Paulo e Minas Gerais que colaboraram com este dossiê.

Com o objetivo de abordar a perspectiva dos descendentes de escravizados sobre as experiências de seus ancestrais na época da escravidão e após a abolição formal, Carolina Pereira aplicou a metodologia da História Oral em seu trabalho sobre as famílias quilombolas do Piemonte da Chapada Diamantina, Bahia. Por meio das entrevistas realizadas com netos e bisnetos de escravizados, a autora pode acessar uma memória sobre a escravidão silenciada e, assim, perceber interpretações valiosas sobre diversos aspectos da vida dos escravizados e seus descendentes durante e após o 13 de maio.

Lucas Ribeiro trouxe informações sobre a primeira associação civil negra do Brasil, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, na cidade de Salvador. O pesquisador identificou a associação enquanto um espaço importante de negociação entre lideranças de cor e políticos baianos durante a segunda metade do século XIX. Investigou como trabalhadores negociaram e disputaram um projeto político para os homens de cor, com a intenção de alcançar direitos básicos enquanto cidadãos, como educação, dignidade, assistência mútua, participação política e pertencimento racial.

Jucimar dos Santos, Fabiano de Silva e Silvado Santos discutiram em artigo a atuação de professoras e professores na “instrução popular” entre o final do século XIX e início do século XX, na Bahia. Os pesquisadores identificaram a atuação dos docentes em diferentes espaços para além da sala de aula, como na redação de jornais, em Conferências Pedagógicas, na Assembleia legislativa da Bahia, em associações sociais e na escola para formação de professores, a Escola Normal da Bahia.

Mateus Castilho utilizou Ações de Tutelas e manuscritos processados na esfera do Juízo de Órfãos para compreender a esfera do trabalho na sociedade de Pindamonhangaba (Vale do Paraíba Paulista), no período do pós-abolição. Os dados revelaram famílias negras sendo separadas e fugas empenhadas por menores tutelados na companhia de seus tutores.

Ao todo, portanto, apresentamos nove artigos e uma resenha da obra organizada por Joseli Mendonça, Luana Teixeira e Beatriz Mamigonian, “Pós-Abolição no Sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras”, contribuição especial do professor Carlos Eduardo Coutinho da Costa (UFRRJ).

À título de encerramento desta breve introdução que não pretende tomar muito tempo do leitor e da leitora, gostaríamos de dizer que nosso objetivo com este dossiê é oferecer uma oportunidade de reflexão sobre a temática do pós-abolição que, embora tenha recebido atenção crescente nos últimos anos, mantém-se um campo fértil para novas pesquisas.

Boa leitura!

Geisa Lourenço Ribeiro – Professora do Instituto Federal do Espírito Santo (campus Viana). Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo sob orientação da professora Dr.ª Adriana Pereira Campos. Pesquisadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected]

Rafaela Domingos Lago – Doutora em História (UFES). Professora da Faculdade Novo Milênio. Pesquisadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected]

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Revueltas. Revista Chilena de Historia Social Popular | NHSPAP | 2020

Revueltas Pós-abolição

Revueltas – Revista Chilena de Historia Social Popular (Santiago, 2020-) tiene como objetivo promover la discusión y difusión de trabajos en torno a la historia social popular y el movimiento popular chileno y Latinoamericano, generando un espacio de producción y socialización de saberes a partir de las investigaciones realizadas tanto por investigadores y estudiantes de grado o posgrado.

La presente revista está dirigida a la comunidad académica nacional e internacional interesada en los problemas de la historia social popular. No obstante ello, busca satisfacer consultas e interrogantes de un público amplio del campo popular y público en general.

Revueltas. Revista Chilena de Historia Social Popular es una publicación científica semestral de acceso abierto, cuya cobertura temática es la historia social popular. La revista publicar trabajos inéditos de manera semestral con el fin de aumentar la comunicación en la comunidad, así como promover la producción del conocimiento historiográfico en nuestro país y en los diversos países y regiones de Nuestra América.

Revueltas. Revista Chilena de Historia Social Popular es una publicación seriada semestral, editada en la ciudad de Santiago, Chile, por el Núcleo de Historia Social Popular y Autoeducación Popular.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN 2452-5707

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Sur y Tiempo | UV | 2020

Sur y Tiempo Pós-abolição

Sur y Tiempo. Revista de Historia de América  (Valparaíso, 2020-) una publicación del Instituto de Historia y Ciencias Sociales de la Universidad de Valparaíso que tiene como objetivo impulsar corrientes disciplinarias innovadoras y de calidad en permanente diálogo con el campo historiográfico nacional e internacional.

Sur y Tiempo es una revista dedicada a la historia, en cualquiera de sus áreas, y a todas las investigaciones que impliquen una perspectiva histórico-temporal. Por lo mismo, se abre al diálogo interdisciplinario y a contribuciones provenientes de las ciencias sociales. Aunque brinda espacio a todas las épocas y las regiones geográficas, privilegia aquellos artículos abocados a problemáticas latinoamericanas. Pretende divulgar también el conocimiento del patrimonio histórico de Valparaíso. Está dirigida a la comunidad científica nacional e internacional y a todo público interesado.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

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História oral e História pública: escutas sensíveis em tempos desafiadores [1] / Canoa do Tempo / 2020

Qual é a potência dos trabalhos que se comprometem com a história oral e a história pública? Por que, nos últimos anos, ambas têm se tornado tão presentes nas pesquisas historiográficas? Como afirmou Linda Shopes [2], esses campos ou práticas nem sempre se apresentaram de forma convergente e não devem ser entendidas como sinônimos. No entanto, quando parceiras, tornam-se práticas reflexivas, ou reflexões com consequências práticas, em que ao historiador é colocado o desafio de contribuir para a construção de uma ciência em meio a um processo dialógico e inclusivo com o público, aqui entendido como mais do que massa ou audiência. Esse público é compreendido como a sociedade plural, conflituosa e dinâmica que antecede a Universidade e a ultrapassa, cobrando dela a sua reinvenção no trabalho com o conhecimento, o que significa abrir-se a demandas de grupos que tiveram suas histórias, memórias e identidades invisibilizadas.

Vivemos, no decorrer dos séculos XX e XXI, ditaduras, discriminações sociais e catástrofes que tiveram efeitos sociais devastadores e colocaram os historiadores em posição de atenção ao seu próprio tempo, de forma a colaborar na criação de comunidades de contadores/testemunhos e de ouvintes; sujeitos diversos que exigiram e continuam a exigir o direito à memória a fim de cobrar reparações, pertencimentos e reconhecimentos. A história oral, como abertura à escuta ética, e a história pública, como atitude aberta a negociações na produção, na divulgação e no acesso ao conhecimento, tornaram-se emergentes em tempos de confronto por narrativas e usos do passado, com finalidades múltiplas e interesses políticos que colidem entre si, ora para conservar leituras e privilégios, ou para romper com processos de silenciamento estabelecidos por visões lineares e vazias de experiências. Leia Mais

Complexo madeira: região, fronteiras e diversidades / Canoa do Tempo / 2020

Nas últimas décadas, a concepção de História Regional passou a se constituir como importante campo de estudos ao valorizar espaços sócio-históricos considerados periferias dos centros de tomadas de decisões políticas. Ao privilegiar noções como região, território, fronteira, etnicidade, dentre outras, ela tem possibilitado a valorização de espaços até então invisibilizados por análises historiográficas generalizantes. Os desdobramentos destas últimas têm sido, em muitos casos, a construção de representações esvaziadas de especificidades sócio-históricas, as quais negligenciam as características de determinados espaços regionais marginalizados pelas estruturas das organizações sociais hierarquizantes e pelas tendências geopolíticas hegemônicas e homogeneizadoras.

Considerando as reflexões apresentadas pelo editorial da Revista de História Regional (RHR), periódico do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, a noção de “região” pode ser concebida como “uma produção de diferentes grupos, classes e culturas que a constroem mediante determinadas vivências e representações. [Assim,] uma região é tanto um espaço físico, ambiental e material quanto um espaço imaginário, simbólico e ideológico. E uma dimensão é inseparável da outra”.1 Para Claude Raffestin, o “espaço” se constitui como um campo de possibilidades para a conformação do “território” e “falar de território é fazer uma referência implícita a noção de limite que, mesmo não sendo traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém com uma porção do espaço”. Assim, “a territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalidade [sociedade-espaço-tempo] do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral”.2

Nesse sentido, o presente dossiê se propôs a reunir trabalhos que se debruçassem sobre as especificidades presentes na região denominada por Alfredo Wagner Berno de Almeida, em 2009, de “A última grande fronteira amazônica”. Para este autor, é preciso pôr em evidência os antagonismos sociais existentes na região amazônica, sendo importante que apresentemos elementos comparativos entre as diferentes realidades vivenciadas por indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais e outros grupos sociais denominados formalmente pelos órgãos fundiários como assentados e agricultores familiares, além dos residentes em perímetro urbano. Isto porque de acordo com Almeida, o discurso da “vocação mineral, agropecuária e energética”, voltado para a materialização de projetos desenvolvimentistas gestados na Amazônia em forma de construção de grandes obras de infraestrutura como hidrelétricas, rodovias, ferrovias, portos fluviais, dentre outros cresce a cada dia, sendo que a região denominada de “O Complexo Madeira” não está dissociada desse fenômeno.

Assim, a tese de Almeida é de que a ação das agências multilaterais, os interesses neoliberais dos agronegócios e aqueles referidos ao que se denomina usualmente de globalização “não teriam derrubado a capacidade e o poder de intervenção do Estado na região amazônica, ao contrário, se associaram a ele numa poderosa coalisão de interesses”, concorrendo para o aumento da concentração fundiária e o crescimento dos conflitos agrários nas fronteiras amazônicas.3 Por outro lado, o respeito e a preservação da relação entre natureza e cultura, no que concerne ao modo como as populações tradicionais lidam com o meio ambiente, está pautada no artigo 216 da Constituição brasileira de 1988, o qual prescreve que é responsabilidade do Poder Público e da comunidade zelar pela preservação do patrimônio material e imaterial relacionado às referências identitárias e às memórias dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.4

Dessa forma, consideramos que as representações sobre esta parte da Amazônia compreendem diferentes espaços e perspectivas que informam particulares relações sócio-históricas desenvolvidas ao longo das relações de contato entre diferentes sujeitos e coletivos. Além disso, o espaço relacionado ao Complexo Madeira, inclui regiões fronteiriças entre os atuais estados do Amazonas, Rondônia e Acre, assim como áreas relacionadas ao Vale do Guaporé até a fronteira com a Bolívia, partindo de uma perspectiva que privilegia a História Regional e evidencia diferentes relações estabelecidas nesta parte da Amazônia brasileira. Assim, as propostas que compõem esse dossiê privilegiam características sócio-históricas específicas e particularizadas. Cada uma delas a seu modo apontam caminhos e rascunham interpretações que nos permitem evidenciar vestígios do cotidiano social nessa parte da Amazônia.

Seguindo essa linha, o texto escrito pelo professor do Departamento Acadêmico de História da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Dante Ribeiro da Fonseca, intitulado Santo Antonio do Rio Madeira: as ambiguidades de uma povoação amazonense do Mato Grosso e a Madeira-Mamoré, evidencia o processo de surgimento e a dinâmica das transformações ocorridas na povoação de Santo Antonio do Rio Madeira, assim como as mutações ocorridas desde o início da construção da ferrovia Madeira-Mamoré em sua relação com o colapso da economia da borracha no Vale Amazônico, num processo que mescla referências dos séculos XIX e XX. Dentre suas importantes contribuições está a evidenciação dos processos históricos que informam o modo como a povoação de Santo Antonio, que surgiu como uma localidade do Mato Grosso ocupada pelo Amazonas, hoje resiste como um bairro da capital do território do Guaporé, Porto Velho, RO.

Outro trabalho que evidencia processos que informam uma espécie de geografia humanística é aquele desenvolvido por Aleandro Gonçalves Leite e intitulado Sentidos colonizados: a Zona Sul de Porto Velho na redemocratização nacional. Nesta proposta, o autor analisa, através da imprensa periódica, o processo de formação discursiva da ideia de uma periferia da capital de Rondônia e apresenta elementos para refletirmos sobre o modo como os sentidos produzidos discursivamente pela imprensa dos anos 1980, no contexto de reabertura política no Brasil, influenciaram os processos de expansão urbana de Porto Velho, RO.

Partindo das concepções de patrimônio, memória e representações, apresentamos três trabalhos que nos permitem compreender o modo como a relação entre as culturais materiais e imateriais vêm se constituindo nessa região. O primeiro deles, produzido pelo professor Alexandre Pacheco e intitulado O patrimônio histórico da EFMM: entre a “política do precário” e o impacto da natureza (Porto Velho, 2007- 2017), traz como proposta a análise estética e histórica do complexo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), em Porto Velho, a partir dos resultados de sua revitalização/restauração, a partir de 2007, e os impactos decorrentes da chamada “Grande Enchente do Rio Madeira”, ocorrida em 2014. A ideia do autor é evidenciar como a inadequação das políticas patrimoniais de preservação da cultura material e os impactos dos fenômenos naturais têm concorrido para um processo de invisibilização da EFMM nos últimos anos.

Já o trabalho desenvolvido por Marcelo Leal Lima, intitulado A instalação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré em O mar e a Selva, de Henry Tomlison e Mad Maria, de Márcio Souza, apresenta o projeto cartográfico “Complexo Madeira”, considerando a EFMM através das cartografias literárias de Tomlinson e Márcio Souza.

A proposta do autor é enveredar pela literatura de modo a evidenciar o processo de construção dessa ferrovia em plena Amazônia e indicar possibilidades do uso da literatura como elemento indicador de novos olhares socio-históricos e político-culturais na região.

Em seguida, a pesquisadora Carmem Rodrigues, no texto intitulado Um experto em Amazônia? O Visconde de Balsemão e a representação da Amazônia portuguesa no mapa “Colombia Prima or South America”, faz uma análise sobre os agentes colonizadores que auxiliaram o geógrafo inglês William Faden a produzir seu grande mapa da América do Sul intitulado Colombia Prima or South America, publicado em 1807. A proposta da autora é verificar quem foram os oficiais portugueses que auxiliaram nesta produção e, através da análise de suas trajetórias, verificar de que modo eles contribuíram para a criação de representações cartográficas sobre a região amazônica.

O terceiro conjunto de artigos traz uma mescla de discussões referentes às fronteiras, colonizações, projetos desenvolvimentistas e seus derivados impactos socioambientais. Cada um deles, a seu próprio modo, problematiza as mudanças micro e macro relacionais ao Complexo Madeira em múltiplas escalas. O trabalho escrito por Antônio Cláudio Barbosa Rabello, intitulado Agentes e agências na construção da política mineral brasileira e da fronteira amazônica (1930-1960), traz elementos para refletirmos sobre a noção de “volatividade da fronteira amazônica”, entendendo-a como produto de relações sociais em permanentes disputas na condução das políticas de Estado.

O trabalho ainda evidencia que os argumentos utilizados pelos agentes da mineração são fundamentados na ideia de que há primazia das atividades de mineração em detrimento dos processos de industrialização entendendo a primeira como principal alternativa à independência econômica do Brasil ao mesmo tempo em que produzem diferentes interpretações sobre a Amazônia e seu papel enquanto fronteira de recursos minerais.

Em seguida, o professor Rogério Sávio Link, no texto intitulado A “Ferrovia de Labre” e a consolidação da última fronteira, problematiza o projeto colonizador de Antonio Rodrigues Pereira Labre para o Complexo do Madeira e para a última fronteira brasileira entre Brasil e Bolívia. Nele, o autor apresenta elementos que contribuem com as reflexões relacionadas à História Regional do Complexo Madeira e com a evidenciação de processos de colonização e demarcação daquilo que também denomina como a última fronteira brasileira.

Já o trabalho redigido por Paula de Souza Rosa e Jéssyka Sâmia Ladislau Pereira Costa, intitulado O célebre Telesforo Salvatierra, o herói da terrível tragédia de Carapanatuba: conflitos pela posse de seringais e o mundo do trabalho no rio Madeira (1870-1887), analisa a trajetória do negociante e seringalista boliviano Manoel Telesforo Salvatierra no contexto de expansão conflituosa da fronteira extrativista desenvolvida na região. Ao refletir sobre os mundos do trabalho a partir de meados do século XIX, as autoras se propõem a reconstruir redes de relações familiares, econômicas e sociais estabelecidas por Manoel Telesforo na Bolívia e ao longo do Rio Madeira.

O trabalho que encerra esta apresentação é fruto uma excelente pesquisa desenvolvida junto aos pescadores do Rio Madeira, na região de Porto Velho. Intitulado Pescarias tradicionais da Cachoeira do Teotônio submersas pelas Usinas em Rondônia, os autores trazem à tona as transformações ocorridas na atividade de pesca de pequena escala, uma atividade de profunda importância histórica e que garantia segurança alimentar e renda para as comunidades desenvolvidas ao longo do Rio Madeira antes da construção das Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. Outra importância do trabalho está na evidenciação de que antes da construção das usinas, as atividades pesqueiras da região da Cachoeira de Teotônio se destacavam pela pescaria altamente adaptada à captura e produtividade. Nesse sentido, o objetivo do trabalho é descrever as mudanças socioambientais e históricas ocorridas nas atividades de pesca após a construção das usinas e nos indicar de que modo a alteração da condição da pesca pela modificação antropogênica do ambiente, aliado ao deslocamento de comunidades inteiras de suas regiões de atividades de sobrevivência tradicionais, altera as relações sócio-históricas entre sujeitos e coletivos e suas paisagens ao longo de gerações de pescadores.

Dessa forma, o dossiê reflete as diferentes tentativas de seus colaboradores e idealizadores para evidenciar um caleidoscópio de possibilidades de análise sobre uma região complexa e historicamente resultante de constantes transformações sóciohistóricas e geopolíticas. Não nos admiramos, nesse sentido, de que os trabalhos distribuídos ao longo desta publicação possam suscitar possibilidades de pesquisas futuras que privilegiem aquilo que se tem denominado a última grande fronteira amazônica. Com este dossiê, esperamos contemplar diferentes pesquisadores que se debruçam sobre essa região particular, denominada de “O Complexo Madeira”.

Notas

1As publicações feitas pela Revista de História Regional desde 1996 e demais informações sobre o periódico podem ser acessadas através do endereço: https://revistas2.uepg.br//index.php/rhr/index; Acesso em: 21 jan. 2021.

2 RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder – Terceira parte: capítulo I – O que é o Território. Tradução: Maria Cecília França. São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 153.

3 DE ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. A última grande fronteira amazônica: anotações de preâmbulo. In. DE ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno (Org.). Conflitos sociais no” Complexo Madeira”. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/UEA Edições, 2009, p. 22. Disponível em: http://novacartografiasocial.com.br/download/conflitos-sociais-no-complexo-madeira/; Acesso em: 21 jan. 2021.

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm; Acesso em: 21 jan. 2021.

Fernando Roque Fernandes Porto Velho – Inverno amazônico, 2021.

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Rio de Janeiro e a Cidade Global: Histórias comparadas de cidades na Era Moderna da Globalização / Almanack / 2020

Em seu livro, descrevendo os seis meses que passara no Brasil em 1846, o americano Thomas Ewbank escreveu que “os gritos em Londres são bagatelas quando comparados aos da capital brasileira. Escravos de ambos os sexos anunciam seus produtos em todas as ruas.” Quer fossem frutas ou vegetais; itens de vidro, porcelana ou prata; ou ainda sedas e jóias “tais coisas, e milhares mais, são vendidas pelas ruas diariamente”[5]. A comparação feita com Londres sugere que ao tentar traduzir a sua experiência com o Rio de Janeiro para os seus leitores, Ewbank achou necessário referenciar a cidade que, no imaginário Americano, estaria mais associada a um comércio urbano vibrante e abundância de mercadorias advindas de regiões mundiais mais diversas. Na mesma época em que Ewbank publicava seu livro, Friedrich Engels compunha sua obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, onde ele descreveu Londres como o centro comercial do mundo [6]. É pouco provável que Ewbank e seus leitores conheciam o texto de Engels, mas certamente saberiam da reputação da capital do império Britânico e do alcance global de suas instituições financeiras e mercantis. Ao comparar as duas cidades, Ewbank associava o Rio de Janeiro oitocentista à cidade global por excelência daquela época.

Para Ewbank, o ponto de comparação com Londres era a disponibilidade de qualquer produto comercial imaginável em qualquer momento que o cidadão urbano o requeresse. O Rio de Janeiro da metade do século XIX estava, de fato, inserido em uma complexa rede de trocas comerciais e financeiras que se estendia pelo interior do território brasileiro, pelo mundo atlântico, e além [7]. Assim como Londres, a cidade portuária brasileira atuava, desde o século XVII, como nódulo importante na rede de centros urbanos e portos que conectava diferentes cantos do mundo e promovia a movimentação global de produtos comerciais, ouro e prata, pessoas, ideias e práticas. Mesmo com as restrições econômicas e políticas de monopólio do antigo regime, diferentes historiadores apontam a participação crucial de comerciantes do Rio de Janeiro, e da cidade portuária em si, na circulação econômica no império português [8]. Mas não é somente a referência a mercadorias diversas que, na passagem do texto de Ewbank, ilustra as conexões transoceânicas que caracterizavam o Rio de Janeiro oitocentista. O breve comentário sobre escravos de ambos os sexos, encarregados de animar tantas trocas comerciais, invoca um outro lado do caráter transnacional ou global daquela cidade: o papel central que o Rio de Janeiro tivera no tráfego de africanos escravizados entre diferentes regiões do Atlântico e do Índico [9].

Essa curta passagem de Life in Brazil aponta, sem necessariamente se dar conta, para a globalidade potencial do Rio de Janeiro, ou seja, a centralidade da cidade em processos de circulação globais que animaram a definiram realidades do século XIX e experiências urbanas de viajantes, consumidores, e comerciantes grandes e pequenos, livres e escravos. A notável cacofonia da cidade, evidência de um setor comercial urbano ativo, representa mais do que conexões mercantis; ela invoca um ambiente urbano familiar, reconhecível. Descrições como essa, disseminadas por viajantes, indicam como o Rio de Janeiro contribuiu para reforçar a imagem do que era típico, esperado, ou desejado em uma cidade[10]. Contribuía assim para noções do urbano no mundo oitocentista.

A relação entre o urbano e o global é a questão histórica que esse dossiê propõe examinar. A fundação da cidade do Rio de Janeiro em 1565 é um dos eventos que marcou um primeiro processo histórico de globalização. A expansão marítima e projeto colonizador de Portugal, Espanha e, eventualmente, de outras comunidades europeias, integraram novas rotas Atlânticas, e mercados nas Américas, a existentes rotas marítimas e redes de trocas econômicas do Mediterrâneo e Oceano Índico. Os séculos XV ao XIX testemunharam, pela primeira vez, a circulação global de mercadorias e o contato entre as populações humanas de todos os continentes[11]. A articulação dessa rede global se deu nas águas e navios, feitorias e mercados, e nos vários centros de poder onde atividades mercantis e alianças políticas foram negociadas. Especificamente, grande parte desse processo se deu em cidades e vilas, tanto portuárias quanto algumas interioranas, onde atores urbanos moldaram espaços e práticas locais para manejarem melhor oportunidades e pressões criadas por forças e conexões globais. O urbano e o global, enquanto fenômenos históricos, interagiram de forma dialógica: dinâmicas urbanas sustentaram a criação de um mundo moderno globalmente conectado enquanto a movimentação global de pessoas, bens, ideias e práticas ajudou a definir realidades e imaginários urbanos. A perspectiva que salienta a interconexão entre a cidade e globalização—a cidade global—é corrente em estudos urbanos do fim do século XX e início de XXI[12].A adoção dessa mesma perspectiva analítica para o princípio do período moderno nos permite entender melhor o papel que cidades como o Rio de Janeiro e populações urbanas tiveram naquela era de globalização, assim como a maneira pela qual aquele momento histórico definiu a cidade.

Interrogar o diálogo entre o urbano e o global a partir de trabalhos somente sobre o Rio de Janeiro não seria suficiente. Estudos individualizados de cidades frequentemente produzem biografias de centros urbanos que tendem a exagerar o distinto ou excepcional de uma localidade e ignorar importantes conexões com outras localidades ou contextos para além do contexto nacional ou imperial [13]. A história global, enquanto disciplina, encoraja comparações e contextualizações amplas que revelam sincronicidades históricas, novas geografias de análise que não a nação ou império, e conexões entre eventos distintos e diacrônicos14. Histórias globais urbanas oferecem também comparações e contextualizações férteis, capazes de produzir narrativas e análises inovadoras, porém ancoradas em localidades e experiências humanas tangíveis15. É em busca dessa perspective urbana global, e seu potencial para elucidar o processo de globalização durante o período moderno e a centralidade da cidade nesse processo, que o dossiê O Rio de Janeiro e a Cidade Global combina textos de pesquisadores de renome internacional sobre o Rio de Janeiro e sobre outras comunidades urbanas do mundo Atlântico. Juntos, os sete artigos aqui reunidos contribuem duas principais intervenções historiográficas: expandir o corpo literário ainda limitado que aborda o Rio de Janeiro como um importante estudo de caso para a discussão sobre a história urbana global e sedimentar a relevância de uma perspectiva comparativa e voltada para o período moderno para estudos de cidades como agentes de globalização.

O leitor encontrará aqui uma análise de processos históricos que marcaram os séculos XVII ao XIX centrada em comunidades urbanas do mundo Atlântico. Luciano Figueiredo e Paul Musselwhite avaliam a relevância histórica de cidades—Rio de Janeiro e James Town, e cidades do mundo Atlântico Britânico, respectivamente—na construção de uma geografia política imperial de proporções globais. Eles ressaltam a importância de populações urbanas para o processo de articulação e negociação de vínculos políticos e econômicos entre o velho e o novo mundos. Em particular, eles demonstram a atuação de espaços urbanos como forjas de identidades políticas e palcos de conflitos e confrontações que reconfiguraram a relação entre colônia e metrópole num contexto imperial influenciado por processos globais.

Jesus Bohorquez e Fabrício Prado examinam comunidades e redes mercantis centradas no Rio de Janeiro, Montevideo, Buenos Aires e além, e sua relevância para a organização de uma economia, assim como alinhamentos políticos, trans-imperiais. Eles exploram os esforços feitos pelas coroas portuguesa e espanhola para regulamentar e controlar uma economia cada vez mais globalizada e assim proteger seus interesses e dominação política. Ao focarem, porém, conexões comerciais entre diferentes cidades, eles demonstram que mais do que projetos imperiais, essas redes de troca se materializaram graças às ações de agentes econômicos e mercados coloniais. Essa análise revela ainda a necessidade de se pensar as conexões econômicas dessa região inseridas numa geografia global muito mais ampla do que o Atlântico Sul e mais influentes na maturação das ambições políticas regionais do que os ideais pro-independência da era das revoluções atlânticas.

Emma Hart, Randy Sparks e Ynaê Lopes dos Santos dedicam seus artigos a uma discussão de populações urbanas comumente marginalizadas em narrativas da formação do mundo Atlântico e de processos globalizadores: trabalhadores manuais, imigrantes voluntários e forçados, africanos e seus descendentes, pessoas escravas e libertas. Os séculos XVIII e XIX testemunharam a intensificação de trocas comerciais e movimento de populações ao longo de rotas Atlânticas organizadas em torno de algumas cidades específicas. Hart, Sparks e Santos examinam a trajetória de Charleston, na Carolina do Sul, de Annamaboe, na Costa do Ouro, e do Rio de Janeiro. Dialogando com a historiografia que explica a centralidade de cada cidade em termos das atividades econômicas e poder político de elites e populações europeias ou euro-descendentes, os autores demonstram que foram as diferentes iniciativas e prioridades de populações marginalizadas, de agentes econômicos africanos e de escravos negros que moldaram Charleston, Annamaboe, e o Rio de Janeiro, respectivamente. Esses grupos urbanos, repetidamente ignorados em histórias dominantes do mundo Atlântico, construíram espaços, mercados, e práticas urbanas que viabilizaram articulações econômicas, sociais, e culturais cruciais à constituição do mundo setecentista e oitocentista.

O presente dossiê, através da comparação implícita entre a cidade do Rio de Janeiro e centros e comunidades urbanas do Atlântico britânico, espanhol, e da Costa do Ouro na África, oferece uma nova perspectiva da relação entre o urbano e o global durante o período moderno. Por um lado, ele ilumina a relação dialógica entre dinâmicas e experiências urbanas e a formação de redes de contato e troca globais que marcaram aquela era histórica. Por outro, ele revela a relevância de cronologias, geografias, e atores históricos ao processo de globalização centrado na cidade—e portanto ao fenômeno da cidade global—que são pouco explorados na literatura corrente, a qual tem se preocupado mais em focar o chamado norte global durante o final do século XX e começo do XXI.

Notas

5. EWBANKS, Thomas. Life in Brazil, or, A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. New York: Harper & brothers, 1856. p. 92-93.

6. ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England in 1844. London: Sonnenschein & Co, 1892. p. 23.

7. COSTA, Sérgio; GONÇALVES, Guilherme Leite. A Port in Global Capitalism: Unveiling Entangled Accumulation in Rio de Janeiro. London: Routledge, 2019.

8. FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. PESAVENTO, Fábio. “Para além do império ultramarino português: as redes trans, extraimperiais no século XVIII.” In: GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2013. p. 97-111. GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Os ingleses no Rio de Janeiro da primeira metade do século XVIII: o caso da família Gulston, c. 1710-1720 – primeiras impressões.” In: MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de; GUIMARÃES, Carlos Gabriel; RIBEIRO, Alexandre Vieira. Ramificações Ultramarinhas: Sociedade Comerciais no Âmbito do Atlântico Luso. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2018. p. 93-114.

9. FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. BORUCKI, Alex. From Shipmates to Soldiers: Emerging Black Identities in the Río de la Plata. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2015. p. 25-56.

10. MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.

11. ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: The World System A.D. 1250-1350. New York: Oxford University Press, 1989. CROSBY, Alfred. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport: Greenwood, 1972. PAGDEN, Anthony. Lords of All the Worlds: Ideologies of Empire in Spain, Britain, and France, c. 1500-c.1800. New Haven: University of Connecticut Press, 1995. RUSSELL-WOOD, A.J.R. The Portuguese Empire, 1415-1808: A World on the Move. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998, p. 8-26.

12. SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 2013. TAYLOR, Peter; DERUDDER, Ben. World City Network: A Global Urban Analysis. London: Routledge, 2015. KING, Anthony. Writing the Global City: Globalization, Postcolonialism, and the Urban. New York: Routledge, 2016.

13. SAUNIER, Pierre-Yves; EWEN, Shane. Another Global City: Historical Explorations into the Transnational Municipal Moment. New York: Palgrave: 2008. NIGHTINGALE, Carl. Segregation: A Global History of Divided Cities. Chicago: University of Chicago Press, 2012.

14. CONRAD, Sebastian. What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016.

15. ARAÚJO, Erick Assis de; SANTOS, João Júlio Gomes dos, Jr. (orgs.). História Urbana e Global: novas tendências e abordagens. Fortaleza: Editora UECE, 2018.

Referências

ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: The World System A.D. 1250-1350. New York: Oxford University Press, 1989. [ Links ]

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Mariana Dantas – Ohio University. É autora do livro Black Townsmen: Urban Slavery and Freedom in the Eighteenth-Century Americas (2008). Ela foi a co-investigadora do projeto de rede de pesquisa internacional “Global City: Past and Present”, financiado entre 2015 e 2017 pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanas do Reino Unido. http: / / orcid.org / 0000-0003-2691-5033

Emma Hart – University of St. Andrews. É autora dos livros Building Charleston: Town and Society in the Eighteenth-Century British Atlantic World (2010) e Trading Spaces: The Colonial Marketplace and the Foundations of American Capitalism (2019). Ela foi a investigadora principal do projeto de rede de pesquisa internacional “Global City: Past and Present”, financiado entre 2015 e 2017 pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanas do Reino Unido. http: / / orcid.org / 0000-0003-0749-3701


DANTAS, Mariana; HART, Emma. O urbano e o global na era moderna em uma perspectiva comparativa. Almanack, Guarulhos, n.24, abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Iglesia Atlântica. Iglesia universal. Iglesia romana. Escenarios de la modernidad Católica en el siglo XIX / Almanack / 2020

La iglesia es un mundo”, tituló Emile Poulat uno de sus libros en 1984 [5]. Con esta expresión el intelectual francés daba cuenta de la multiplicidad de aspectos y facetas que abarca la iglesia: es una institución, una comunidad creyente, una cultura, un complejo de templos, conventos, colegios, una infinidad de prácticas y costumbres… . En la medida en que el catolicismo, en tanto religión universal, procuró su expansión globalmente, también es un mundo a escala geográfica, que amplía todavía más su multiplicidad. Pero también en esa expresión puede leerse una advertencia de época. Porque, si bien la iglesia es todo un mundo, es sólo uno, al lado de otros muchos mundos que pueden convivir, no sólo en una misma nación, sino incluso en un mismo individuo. Charles Taylor ha hecho extensiva esta situación para todas las religiones en en la “era secular”: la característica de la modernidad religiosa no es la desaparición de la creencia, sino la posibilidad de no creer[6]. Analizar el catolicismo y su iglesia en clave transnacional durante el siglo XIX implica reconocer esas dos dimensiones: su diversidad y su coexistencia con nuevos marcos de referencia, nuevas instituciones y prácticas que pretendían, también, matrizar la vida de los pueblos.

En términos metodológicos, el impacto que tuvo y sigue teniendo en los últimos años la ola de las historias globales (transnacional, interconectada..) en los estudios de historia de la Iglesia y del catolicismo dan cuenta de que había mucho para aportar desde esos puntos de vista. El gesto metodológico más valioso de los nuevos estudios que adoptan este enfoque transnacional no es reconocer la condición mundial de la Iglesia y el catolicismo, sino hacer de las formas concretas en que se expresa esa condición parte del objeto de estudio.

Si bien esa advertencia es válida desde los siglos XV y XVI, cuando las sociedades cristianas entraron en contacto fluido con culturas y pueblos ajenos a sus marcos de referencia originales -en un proceso que José Casanova llama globalización sin occidentalización (Casanova, 2020)-, es más importante considerarla a la hora de historiar el mundo atlántico en el siglo XIX. En ese espacio y período cobraron fuerza dos fenómenos que, por su enorme potencia transformadora y, sobre todo, por el éxito que tuvieron hacia el siglo XX, invadieron el panorama que observaba el historiador hasta casi hacer desaparecer todo lo demás. Nos referimos a la construcción de los estados nacionales y a un proceso de cambio religioso que, en el espacio católico, supuso el triunfo de la corriente ultramontana por sobre otras alternativas para pensar el catolicismo en las sociedades modernas. Para plantearlo gráficamente, la historia de la iglesia en el siglo XIX se leyó en la clave que ofrecían la declaración de la infalibilidad papal, el Syllabus y la caída de Roma en manos del naciente Estado italiano.

De tal manera, la historia de la Iglesia en el mundo occidental se presentaba como una réplica a escala nacional de esa lucha matriz: las iglesias locales enfrentando los impulsos laicistas de los estados nacionales, bajo la dirección del papa. En ese esquema, las variables a estudiar eran fundamentalmente nacionales o sub nacionales: jerarquías eclesiásticas, clero, laicado. Podría objetarse que ese enfoque nunca perdía de vista la centralidad de Roma en la dirección de esas luchas de las iglesias locales contra la modernidad. De hecho, es en ese relato que cobra sentido la idea de “romanización”: un proceso por el que las iglesias periféricas (en nuestro caso, las amaericanas) habrían sido subordinadas y homogeneizadas en sus formas a la autoridad papal. Sin embargo, en la medida en que la acción del papa era un dato constante e independiente del caso que se estudiaba, los vínculos entre los actores locales y la Iglesia universal eran incorporados al análisis, pero siempre en forma de contexto. Es que, en última instancia, el papa era la contracara simbólica de otro dato contextual: la modernidad.

Hace unos años, todo este cuadro está sufriendo críticas muy fértiles. Por un lado, el modelo clásico de modernidad, tal como fue impulsado desde los países “occidentales”, es hoy considerado sólo como un proyecto, pero no como la única expresión posible de la modernidad. Por el otro, y de manera solidaria, también está siendo revisada la forma de entender los proyectos y actores que se oponían a ese modelo: puede llamársele reacción o corriente contra revolucionaria. La hipótesis de trabajo hoy es que, en diversos espacios se vivieron procesos de modernización específicos (aunque interconectados) sin que existiera un único sentido posible para ellos, pero también que, incluso en los espacios donde esa modernidad tomó sus formas clásicas, como en la Europa occidental, las expresiones de disidencia, lejos de ser elementos anacrónicos y externos a esos procesos, también deben ser consideradas parte esencial de esas modernidades. Y esto por dos motivos. Primero, porque en la confrontación, los movimientos contrarrevolucionarios y conservadores se vieron obligados a cambiar en sus métodos y contenidos, y ello los llevó a compartir muchas de las características y herramientas de sus contrincantes (la prensa periódica, la movilización popular, la organización de redes transnacionales). Segundo, porque su acción también obligó a las fuerzas herederas de la revolución a reformularse y repensar sus objetivos.[7]

A la luz de estas novedades, la imagen del catolicismo decimonónico se está viendo fuertemente transformada. Ya no se trata de un actor retardatario y anacrónico dirigido autocráticamente por el papa bajo el libreto del Syllabus. El catolicismo es un mundo de intereses, representaciones y actores donde resuena, con tonalidades locales, el cambio político, cultural y económico acelerado a nivel global desde fines del siglo XVIII. Los artículos publicados en este dossier se nutren de diferentes enfoques nucleados en la gran familia de la historia global para analizar ese catolicismo en contexto de modernidad. Hay dos ejes que nos permiten relacionarlos porque uno u otro, en muchos casos ambos, se hallan presentes en todos los trabajos.

Uno es el de la dimensión atlántica del catolicismo en el siglo XIX. Luca Cordignola demuestra la fertilidad de abandonar el marco “nacional o subnacional” para analizar un elemento clásico de la historia eclesiástica: la “mala conducta” de los sacerdotes. Cordignola muestra muy claramente que, en regiones de fuerte inmigración como las del norte de América (y también podríamos decir del sur de ese continente) las normas residían en los territorios, pero también se desplazaban con las personas. ¿con qué criterios juzgar el desempeño de un párroco inmigrante? ¿con los de las autoridades de su destino?¿con las costumbres de su lugar de origen? ¿con las de sus feligresías también inmigrantes? Pero además, ¿cómo fueron modificados esos criterios por la misma experiencia inmigratoria y, fundamentalmente, por las condiciones extremas de los territorios en los que estos sacerdotes oficiaban? En este sentido, es fundamental considerar la convivencia de gentes de múltiples orígenes y religiones, y las enormes distancias que separaban a los sacerdotes de sus autoridades para entender la laxitud o rigidez exigida en términos de conducta personal a los sacerdotes. Sin un enfoque transnacional es imposible comprender estos fenómenos.

El artículo de Ferreira y Guedes, junto con el de Codignola sacan buen partido de una modalidad específica de la historia atlántica: el estudio a escala de imperio. Los autores muestran que, en el marco del imperio portugués, la condición colonial o de misión de Brasil y Angola otorgaba cierto marco legal común: en este caso, las normas para celebrar y registrar bautismos en Luanda eran las que había dispuesto el arzobispo de Bahía. Una disposición lógica si se considera que muchos africanos fueron bautizados en esa ciudad (la principal exportadora de esclavos) para ser luego trasladados y vendidos en Brasil. Sin embargo, ello no significa que la norma era aplicada de manera homogénea en contextos tan diversos: hacia fines de siglo XVIII en Luanda era común el del bautismo masivo sobre lotes de esclavos antes de ser enviados al Brasil, práctica impensada por el arzobispo de Bahía. Por otro lado, el reconocimiento de la escala imperial operando en prácticas y normas sobre el bautismo, permiten a los autores salvar vacíos documentales ensayando comparaciones entre Angola y Brasil bajo la hipótesis de análisis de un compadrazgo atlántico. Por otro lado, los autores señalan que el bautismo en Luanda era parte de la trata atlántica de esclavos. Por medio de ese rito y del compadrazgo los esclavos buscaban evitar la deportación para América. El bautismo y el compadrazgo eran, en definitiva, signos de jerarquía en la sociedad de Luanda.

El trabajo de José Ramón Rodriguez Lago, ubicado temporalmente en el otro extremo del siglo, nos muestra un mundo atlántico totalmente transformado por el vertiginoso desarrollo político y económico de Estados Unidos y el ocaso definitivo del imperio ibérico en América. Rodríguez Lago da cuenta de dos fenómenos fundamentales (y sorprendentemente poco explorados) para entender el catolicismo occidental contemporáneo: el creciente peso del catolicismo y del poder político estadounidenses en la transformación de la Iglesia católica durante el siglo XX, y la profunda transformación que vivió el poder papal en sus formas de entender y ejercer el poder eclesiástico y su rol en el nuevo mapa geopolítico mundial.

Y este punto nos lleva al segundo eje que mencionábamos arriba: el de la transformación de la figura y el poder papales en este largo siglo XIX. El breve pero muy rico trabajo de Carlo Fantappiè [8], (cuya versión portuguesa se publica por primera vez en Brasil en la página de Almanack en la sección “Texto em Destaque”), da algunas claves para la comprensión de esa dinámica en el largo plazo. En resumidas cuentas, el trabajo de Fantappiè nos advierte que es imposible entender la vocación de dominio universal del papado sin considerar su predisposición a adaptar ese dominio a las circunstancias geográficas e históricas precisas. Así, nos habla de estrategias que oscilan entre “adaptación” y “disciplinamiento”, entre “inculturación” y “aculturación”, cuando el ordenamiento católico debe ser aplicado en contextos muy diferentes. Es una lógica en la que la representación del poder como “centro” y “periferia” debe necesariamente revisarse. En ese constante trabajo de negociación y adaptación, Iglesia y Estado modernos se nos presentan como el producto de un proceso de imitación reciproca cuyo producto final, en el espacio eclesiástico, será la codificación del derecho canónico en 1917, no casualmente, al cierre del largo siglo XIX.

Esas lógicas de imitación recíproca de dos esferas que comenzaban a diferenciarse cada vez más, la secular y la espiritual, pueden identificarse en el trabajo de Ivo Silva sobre las resonancias atlánticas del anticlericalismo brasileño del siglo XIX. Por supuesto que la contestación religiosa no es una novedad del mundo moderno, pero los muy fluidos diálogos y referencias internacionales que reconstruye Silva para el anticlericalismo brasileño sólo pueden entenderse en diálogo con la difusión, también internacional, de un discurso clerical que se expandía por los mismos medios y con las mismas herramientas que utilizaban sus adversarios. A tal punto es esto así, que al autor se le hace difícil (podríamos agregar, vano) determinar si fue primero el clericalismo o el anticlericalismo en esta clave moderna.

El discurso clerical que combatían con tanta pasión los anticlericales de Brasil y de todo el mundo, fue parte de un proceso, también global y de amplio alcance, que podríamos describir con dos términos clásicos, que han sido sin embargo sustancialmente modificados en los últimos años: ultramontanismo y romanización. Los trabajos de Benedetta Albani y Anna Clara Lemmans Martins, por un lado, y de Italo Santirocchi y Pryscylla Cordeiro, por el otro, abordan aspectos concretos de esos fenómenos. En el caso del primero, es parte de un vasto proyecto institucional con sede en el Instituto Max Planck de Frankfurt, que desde hace varios años estudia la presencia del poder papal en las iglesias del mundo ibérico. En esta ocasión se concentra en la imagen que poseían los juristas brasileños sobre las características y el funcionamiento de los dicasterios romanos. En este trabajo el carácter transnacional de la autoridad papal se analiza en sus diferentes dimensiones: por un lado, el pensamiento jurídico sobre esa autoridad es parte de una red de producción y circulación transnacional que pone en evidencia, en el peso de la literatura de origen europeo, pero no italiano, el carácter multilateral del impulso romanizador; por otro lado, la consideración en suelo brasileño de la validez de las disposiciones de la congregaciones romanas y el peso de esas disposiciones sobre la autoridad episcopal permite evaluar la dimensión, pero también las formas específicas que fue adquiriendo el poder romano en este período y espacio específicos.

El artículo de Italo y Pryscylla Santirocchi analiza aspectos transnacionales de un instituto religioso católico: la Congregación de la Misión. Éste se presentó como uno de los protagonistas del proceso de reforma ultramontana en varias partes del mundo, debido a su cultura religiosa, que se desarrolló desde su creación en el siglo XVII. En la liña de Carlo Fantappiè, los autores reflexionan sobre los esfuerzos de esa congregación para evitar roces entre el contexto local y su propuesta universalizante. Centrando su atención en las misiones, analizan la organización jerárquica y los procesos de disciplinamiento, los instrumentos formativos, las reglas del instituto y los trazos de su cultura misional, para luego mostrar cómo se daba la flexibilización de las reglas y las directrices centrales, así como las consecuencias de la desobediencia a esas reglas, en un contexto geográfico particular: Ceará, provincia del imperio de Brasil. El artículo permite percibir cómo la reforma ultramontana sólo fue posible en diálogo estrecho con la religiosidad popular brasileña a pesar de ser un proceso global.

Notas

5. POULAT, Emile. L’Eglise, c’est un monde. L’Ecclésiosphère.Paris: Èd du Cerf, 1984.

6. TAYLOR, Charles. A Secular Age. Cambridge (Massachussetts): Belknap Press of Harvard University Press. 2007.

7. RÚJULA, Pedro y RAMÓN SOLANS, Javier, El desafío de la revolución : reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionarios, (Siglos XVIII y XIX). Granada: Comares, 2017. En este sentido, Vincent Viaene afirma que “…in their desire to rewrite the master narrative of modernity, historians of modernization and historians of religion are natural allies.” VIAENE, Vincent. International History, Religious History, Catholic History: Perspectives for Cross-Fertilization (1830-1914). European History Quarterly,Vol. 38(4). 2008, p. 584.

8. O texto de Carlo Fantappiè foi traduzido pela primeira vez e publicado na seção “Texto em Destaque” na página da Almanack no Portal de Periódicos da Unifesp, disponível em: https: / / periodicos.unifesp.br / index.php / alm / article / view / 11453.

Referências

POULAT, Emile. L’Eglise, c’est un monde. L’Ecclésiosphere. Paris: Ed du Cerf, 1984. [ Links ]

RUJULA, Pedro y RAMON SOLANS, Javier, El desafio de la revolucion : reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionarios, (Siglos XVIII y XIX). Granada: Comares, 2017. [ Links ]

TAYLOR, Charles. A Secular Age. Cambridge (Massachussetts): Belknap Press of Harvard University Press. 2007. [ Links ]

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Ignacio Martínez – Universidad Nacional de Rosario. Es doctor en Historia por la Universidad de Buenos Aires, investigador adjunto del Conicet y docente regular de Historia Argentina I en la carrera de Historia de la Universidad Nacional de Rosario. Es autor de Una nación para la Iglesia argentina. Construcción del estado y jurisdicciones eclesiásticas en el siglo XIX (2013), coautor con Diego Mauro de Secularización, Iglesia y política en Argentina. Balance teórico y síntesis histórica, y coeditor con Natacha Bacolla de Universidad, élites y política. De las reformas borbónicas al reformismo de 1918 (2018). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-8522-6241

Ítalo Domingos Santirocch – Universidade Federal do Maranhão. Professor adjunto do curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMA. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-3343-1283


MARTÍNEZ, Ignacio; SANTIROCCH, Ítalo Domingos. [Iglesia Atlântica. Iglesia universal. Iglesia romana. Escenarios de la modernidad Católica en el siglo XIX[. Almanack, Guarulhos, n.26, dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Historia Agraria de América Latina | CEHAL | 2020

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ISSN 2452-5162

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The Second American Revolution: The Civil War-Era Struggle over Cuba and the Rebirth of the American Republic | Gregory P. Downs

On April 17th, 1888, Frederick Douglass addressed a crowd that had gathered in honor of the twenty-sixth anniversary of emancipation in the District of Columbia. Douglass, the most prominent black abolitionist of the century, had recently turned seventy. He might, at this age, have been expected to look back proudly on a career that had helped bring about the liberation of four million slaves. Instead, he despaired. On that day, he described in stark terms what he had witnessed on a recent tour of the Southern States. In the South, “the landholder imposes his price, exacts his conditions, and the landless Negro must comply or starve…we shall find him a deserted, a defrauded, a swindled, and an outcast man-in law free, in fact a slave; in law a citizen, in fact an alien; in law a voter, in fact, a disfranchised man.” Emancipation, Douglass concluded, was “a stupendous fraud-a fraud upon him, a fraud upon the world.”

This scene-and others like it-have dominated the recent historiography of Reconstruction in the United States. Over the past two decades, scholars have engaged in what Carole Emberton calls “Unwriting the Freedom Narrative”-challenging a standard historical synthesis that still focuses on Lincoln’s Emancipation Proclamation as the moment when the Civil War transformed into a war for freedom.3 These narratives have also laid siege to the foundational text in Reconstruction literature-Eric Foner’s Reconstruction: America’s Unfinished Revolution 1863-1877. In 1988, Foner argued that the end of slavery marked a moment of revolutionary possibility for interracial democracy in the United States. For a brief time, a significant number of Southern whites “were willing to link their political fortunes to those of blacks,” in a massive democratic experiment “without precedent in the history of this or any other country that abolished slavery in the nineteenth century.”4 Since then, historians including Amy Dru Stanley, Stephen Kantrowitz, Ari Kelman and many others have questioned the revolutionary potential of Reconstruction. Their work has exposed the deep continuities between slavery and freedom, whether by revealing the roots of contract labor in white anti-slavery ideology, by highlighting the ambiguous meaning of freedom for black abolitionists, or by centering the devastating consequences of Northern victory for indigenous people across the continent.

In The Second American Revolution: The Civil-War Era Struggle Over Cuba and the Rebirth of the American Republic, Gregory P . Downs seeks to restore the revolutionary possibility of Reconstruction. The first part of his story points to the forceful, extralegal transformation of the U.S. Constitution between the years 1865 and 1870 as proof of the revolutionary nature of the times. During these years, the Radical Republicans in Congress relied on military force to compel Southern states to ratify three amendments that radically altered the Constitution. The 13th, 14th, and 15th amendments-which destroyed slavery and granted freedmen full citizenship rights-were only passed because Congress extended its war powers past the date of surrender. This story, largely familiar to U.S. historians, has one important analytical twist. Downs characterizes the Radical Republicans in Congress as “bloody constitutionalists.” In moments of bloody constitutionalism, he argues, “managerial revolutionaries temporarily turn to violence to implement new political systems, then try to return to peace.”5 After the U.S. Civil War, Republican congressmen did not want to enter a state of permanent revolution. Rather, they sought to force through a specific legal transformation-emancipation-and then return to “banal, normal time.”6 To Downs, this category can help explain why Americans so frequently overlook the radical “re-founding” that took place during Reconstruction, and instead hold on to a comforting idea that the Civil War saved the nation.

The second part of Downs’ story moves U.S. Reconstruction out into the Atlantic World. Here, he argues that U.S. Reconstruction was part of a series of “revolutionary waves” that began in Cuba and Mexico, reverberated into the United States, and eventually swept back out again into the Spanish-speaking Atlantic World.7 In order to support this claim, Downs begins chapter two by exploring the role that Cuba played in U.S. antebellum politics. He argues that Cuban annexationists, slaves, and revolutionaries all helped push the questions of Cuban slavery and annexation into center stage in the United States, deepening the divide over slavery that culminated in the secession crisis of 1861. In chapter three, he turns to the revolutionary possibilities that U.S. Reconstruction opened up in Cuba and Spain. Here, he argues that U.S. Reconstruction created widespread, international expectations for the end of slavery and the triumph of democracy.8 In the late 1860s, Cuban and Spanish revolutionaries both embraced these possibilities to launch republican revolutions. In Spain, these men toppled a monarchy; in Cuba, they launched a ten-year war for national independence. In Downs’ telling, the failure of Radical Reconstruction in the United States undermined Cuban independence. In 1870, President Grant refused to intervene on behalf of the Cuban insurgency. As a result, slavery “limped along” in Cuba for another twenty years.

One aspect of this story represents a remarkable challenge to the existing literature on Reconstruction. Throughout The Second American Revolution, Downs sidelines the question of whether Reconstruction marked a moment of lost “promise” for American democracy. Instead, he claims, Reconstruction history demonstrates the likely need for a third re-founding of the United States. “It may be safer to pretend that we live in a self-governing and perhaps self-correcting political machine,” Downs writes. “But the past does not confirm to our wishes. Nor does the future.”9 This stance marks a sharp break with Foner, who has recently suggested that the Reconstruction-era Constitution provided civil rights activists with the foundation for success during the twentieth century.

Yet, the role of Cuba in this argument is never entirely clear. According to Downs, the outcome of Reconstruction was determined by “managerial revolutionaries.”10 These men operated within the boundaries of the U.S. Congress or the U.S. military. Actors outside of the nation-state bear no causal force in bringing about the radicalism of Reconstruction, or its demise; rather, Cuba appears in the narrative as a new way to highlight the revolutionary nature of Reconstruction. As he puts it, “once we see the Civil War within international events, it no longer looks moderate or restorative, in its leaders’ intentions, in its methods, or in its effects.”11

This disconnect is the result of a major omission. In more than a hundred pages, Downs barely mentions the tens of thousands of Republican voters who did desire permanent revolution: the freedpeople themselves. The Republican Party only triumphed as a coalition. Northern industrialists depended on abolitionists and former slaves to destroy the planter class in the United States. Cuban revolutionaries understood this. In 1868, at the height of Radical Reconstruction, liberal elites launched the first war for Cuban independence. Within three months, they had declared all slaves behind enemy lines free. As in the United States, it was the slaves who transformed a conservative war for the nation into a radical war for abolition and democracy.

The radicalism of this moment, then, was rooted in black politics across the Atlantic World. While The Second American Revolution breaks new ground by calling for revolutionary change based on the historical experience of Reconstruction, Downs misses an opportunity to explore the roots of this revolution in a transnational struggle for black freedom. Still, as Downs explains, “this book is less a finished argument about the outcome” of Reconstruction than an invitation to engage in new explorations of transnational history.12 In this respect, the book will certainly succeed.

Notas

3. Carole Emberton, “Unwriting the Freedom Narrative: A Review Essay,” Journal of Southern History 82, no. 3 (May 2016): 377-394.

4. Eric FonerReconstruction: America’s Unfinished Revolution (New York: Harper & Row, 1988), xxiv.

5. Downs, The Second American Revolution: The Civil War-Era Struggle over Cuba and the Rebirth of the American Republic (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2019), 6.

6. Downs, The Second American Revolution, 6.

7. Downs, The Second American Revolution, 7.

8. Downs, The Second American Revolution, 97.

9. Downs, The Second American Revolution, 54.

10. Downs, The Second American Revolution, 6.

11. Downs, The Second American Revolution, 57.

12. Downs, The Second American Revolution, 10.

Referência

DOWNS, Gregory P. The Second American Revolution: The Civil War-Era Struggle over Cuba and the Rebirth of the American Republic. Chapel Hill: University of North Carolina Press. 2019. 232p. Eric Foner, Reconstruction: America’s Unfinished Revolution (New York: Harper & Row, 1988), xxiv.

Samantha Payne – Harvard University. Cambridge – Massachusetts – United States of America. Samantha entered the PhD program at Harvard’s University Department of History in 2015. Her research interests include the comparative history of slavery and emancipation, race, and the history of capitalism.


DOWNS, Gregory P. The Second American Revolution: The Civil War-Era Struggle over Cuba and the Rebirth of the American Republic. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2019. Resenha de: PAYNE, Samantha. The place of cuba in the global history of reconstruction. Almanack, Guarulhos, n.23, p. 509-513, set./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Vendem-se impressos a preços cômodos na cidade do Maranhão | Romário S. Basílio e Marcelo C. Galves

Em tempos em que o obscurantismo rodeia a percepção sobre a prática do historiador, o livro Vendem-se impressos a preços cômodos na cidade do Maranhão, dos historiadores Marcelo Cheche Galves, Romário Sampaio Basílio e Lucas Gomes Carvalho Pinto, expõe as vísceras do métier, de forma a salientar o aspecto crucial da pesquisa e do trabalho em grupo, bem como a importância das agências que ainda financiam pesquisas no país.

Resultado do projeto de pesquisa “Posse, comércio e circulação de impressos na cidade de São Luís”, desenvolvida pelo Núcleo de Estudos do Maranhão Oitocentista (NEMO), da Universidade Estadual do Maranhão, sob orientação do professor Marcelo Cheche Galves, a obra tem como premissa o reconhecimento de uma efetiva circulação de impressos na capitania e, posteriormente, província do Maranhão, entre o final do século XVIII e o ano de 1834. O livro resgata a existência de um comércio ativo envolvendo impressos, pouco explorado até então. O objetivo da obra é relacionar os impressos que circulavam em São Luís com importantes transformações sociais e econômicas pelas quais passava a cidade.

Ancorada em arquivos brasileiros e portugueses, a pesquisa recolheu, para identificar práticas comerciais e circulação ligadas aos impressos, informações sobre trânsito de alunos entre universidades de Lisboa e a cidade de São Luís, de funcionários régios, de autoridades eclesiásticas e de súditos buscando colocações melhores na máquina administrativa ou condições de sobrevivência. A existência de uma demanda por impressos está ligada ao que os autores definem como “razões práticas” para se ler. Nessa tipologia de impressos práticos, os historiadores elencam bíblias, gramáticas, dicionários e manuais de comércio e de Direito.

A obra faz oposição às produções que articulavam desenvolvimento econômico com desenvolvimento cultural que, segundo os autores, imprimiram sobre os estudos acerca dos impressos um tom elitista e europeizado. Com posições marcadas, os historiadores frisam a emergência de uma cultura escrita que é componente de uma São Luís em movimento.

Para os autores, o conceito de cultura escrita é o oposto do defendido pela historiografia que relacionou tal cultura à erudição. No caso dos estudos do tema no Maranhão, podemos citar Jerônimo Viveiros, que defendeu a quase nulidade de comércio de impressos na região, atrelando a ideia de atraso intelectual à “tardia” adesão da província do Maranhão ao projeto de independência do Rio de Janeiro. Caminhando em sentido totalmente oposto, os autores entendem cultura escrita como uma série de práticas amplas, funcionais e dinâmicas, que não necessariamente são eruditas.

Nesse sentido, a obra está no campo das proposições de Maria Beatriz Nizza da Silva (1973) que estudando a produção, distribuição e consumo de impressos no Rio de Janeiro a partir de 1808, propôs a “dessacralização” do livro, frisando a necessidade de fazer um contraponto aos campos dos estudos sociais e historiográficos que o entendiam de forma presa à ideia de grande obra. Essa abordagem, criticada por Silva e pelos autores de Vendem-se impressos a preços cômodos na cidade do Maranhão, negligenciou o aspecto comercial dos impressos. Em suma, trata-se da necessidade de se fazer “uma sociologia da leitura” e encarar os livros e os folhetos como objeto comercial.

Sob a influência explícita de estudiosos que trabalharam o livro em sua dimensão social, a obra se propôs fazer uma pesquisa que encarasse o tema de forma pragmática e materialista, centralizando aspectos econômicos e sociológicos que não podem deixar de figurar nessa área de estudos. Encarar de forma materialista os impressos é ter em mente o aspecto de realidade que envolve tais documentos e poder acessar um cenário de transformações de ordem demográfica, social e econômica. A cultura escrita é aqui entendida como um componente de uma cidade em movimento.

Alguns estudos apontaram pistas acerca de fontes que seriam importantes para o desenvolvimento do livro. Márcia Abreu, em Os caminhos dos livros, apontou para a potencialidade da documentação da Real Mesa Censória ao localizar, no período de 1796 a 1826, 350 pedidos de autorizações para envio de livros vindo de Portugal para o Maranhão, número que seria inferior somente aos destinados para o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Os números levantados por Abreu corroboram, segundo os autores, com a pertinência de atrelar crescimento populacional e cultura escrita. Além das colaborações importantes de Abreu para o campo, os autores citam ainda as contribuições do estudo de Iara Lis Carvalho Souza, que no livro Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831), apontou para o ano de 1800 a vinda de vários exemplares de “Direito natural”, de Burlamaqui, e da pesquisa de Geraldo Mártires Coelho que, estudando o Grão-Pará na época colonial, referiu-se a remessas de obras de Voltaire e Montesquieu ao Maranhão nos anos de 1813 e 1816.

O livro é dividido em duas partes, sendo que a primeira, “Impressos, mercadores e autores na cidade do Maranhão”, abarca os capítulos “O Maranhão nos quadros do reformismo ilustrado português: a livraria da Casa do Correio”, “António Manuel e Manuel António, mercadores de livros – atuação dos mercadores de livros”, “O Piolho Viajante no Maranhão, seus leitores e movimentos – a recepção dos escritos”, “Gramáticas e dicionários em circulação pelo Maranhão no início dos Oitocentos – a demanda por determinada literatura, por vezes captada pela oferta” e “O Conciliador do Maranhão: produção, difusão e comercialização de literatura política em tempos de Revolução do Porto”; já a segunda parte, “O que se anuncia e o que se lê: impressos nos jornais de São Luís”, oferece aos leitores os capítulos “’Vendem-se a preços cômodos’: os impressos anunciados em São Luís” e “Catálogo dos impressos anunciados em jornais ludovicenses (1821-1834), precedido de texto com considerações acerca do catálogo.

O capítulo 1estabelece como um lugar privilegiado para observação do comércio de impressos em São Luís a Casa do Correio, que permitia o recebimento, a venda e o envio de impressos na cidade por meio de uma política de distribuição do conhecimento. As principais obras identificadas refletiam o projeto ilustrado português à época, cabendo ressaltar o predomínio de obras ligadas ao aperfeiçoamento técnico da agricultura. Assim, o principal objetivo dos autores no capítulo é discutir a materialidade da ideia de que a sociedade maranhense era, nesse momento, pouco afeita ao letramento e ao projeto de desenvolvimento de Dom Rodrigo de Souza Coutinho.

Ainda no contexto do Reformismo ilustrado, o capítulo 2 investiga a ação de dois mercadores importantes na composição de uma rede de comércio de livros nos espaços luso-brasileiros. O objetivo dos autores aí é entender o comércio no exclusivo comercial da metrópole com a colônia, não no sentido de encarar a relação como sendo parte de um entendimento acerca do conceito de periferia consumidora, mas de mapear e procurar entender dinâmicas estruturais da relação metrópole-colônia. Assim, temos no capítulo algumas considerações acerca da atuação de António Manuel Policarpo da Silva, livreiro em Lisboa e possível autor da obra, que será estudada no capítulo seguinte, O piolho viajante, do comerciante de livros no Maranhão Manuel António Teixeira e da relação que os dois estabeleceram entre si no contexto da Era Pombalina. A documentação trabalhada no capítulo é referente à Real Casa Censória e do Desembargo do Paço. A obra O piolho viajante e seu possível autor, António Manuel Policarpo da Silva é o tema do capítulo 3. Nesse cenário, os autores se esforçam por traçar o movimento de uma obra popular, concluindo que junto a clássicos de literatura religiosa, manuais mercantis, dicionários, gramáticas, literatura jurídica e política, as novelas populares tiveram espaço privilegiado naquele momento.

O capítulo 4 traz um estudo sobre a demanda por determinado tipo de literatura que pôde, segundo os autores, ser captada pela oferta. Além da documentação da Real Mesa Censória e do Desembargo do Paço, privilegiada nos dois capítulos anteriores, os autores se debruçaram sobre os anúncios impressos em jornais que circulavam em São Luís entre os anos de 1821 e 1834. O objetivo do capítulo é captar a movimentação contínua desses títulos na cidade. Na tipologia de livros ofertados, e algumas vezes requeridos pelos anúncios, há o predomínio de dicionários e gramáticas e essa tendência deve-se, de acordo com a hipótese dos autores, ao projeto de imposição da língua portuguesa posto em prática no início dos oitocentos.

Os jornais, que começam a ser fontes privilegiadas, sobretudo após a reunião das cortes de Lisboa, aparecem no capítulo 5 como principal objeto de análise. Segundo os autores, o movimento constitucional e a liberdade de imprensa potencializaram o interesse por certa tipologia de títulos. Assim, o mote do livro, que é o reconhecimento de uma efetiva circulação de impressos na capitania\província do Maranhão, pode ser observado nas páginas do jornal que os pesquisadores colocam em tela neste capítulo, uma vez que a publicização de um comércio de impressos era anunciada no Conciliador de Maranhão.

Já na segunda parte do livro, os historiadores trazem, no capítulo 6, uma análise dos anúncios de livros nos periódicos maranhenses, com o intuito de apreender o gosto literário e prático do público consumidor à época. A identificação de grupos temáticos feita pelos pesquisadores, que indicam maior interesse por publicações a respeito de Direito e Política, estão diretamente relacionadas com o momento de transformações pelas quais passava a sociedade maranhense. Por fim, no capítulo 7, os autores oferecem ao leitor a transcrição de 126 extratos de anúncios de impressos observados nos jornais da cidade entre os anos de 1821 e 1834. Trata-se sem dúvida de um repertório importante para novas pesquisas na área.

Apoiado em vasta pesquisa em arquivos situados em Lisboa, Rio de Janeiro, São Paulo e São Luís, Vendem-se impressos a preços cômodos na cidade do Maranhão ilumina um cenário de mudanças de ordem social e econômica, oferecendo uma análise que conjuga a ideia de dimensão social dos impressos com o contexto de transformações pela qual passava a sociedade ludovicense entre o final do século XVIII e o começo do XIX. Sua leitura deixa a sensação de que os tempos de mudanças – no passado como no presente – são particularmente preciosos para os historiadores.

Referência

BASÍLIO, Romário Sampaio; GALVES, Marcelo Cheche; PINTO, Lucas Gomes Carvalho. Vendem-se impressos a preços cômodos na cidade do Maranhão. São Luís: Editora UEMA, 2019

Danielly Telles – Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos – São Paulo – Brasil.


BASÍLIO, Romário Sampaio; GALVES, Marcelo Cheche; PINTO, Lucas Gomes Carvalho. Vendem-se impressos a preços cômodos na cidade do Maranhão. São Luís: Editora UEMA, 2019. Resenha de: TELLES, Danielly. Impressos e sua dimensão prática. Almanack, Guarulhos, n.23, p. 514-519, set./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano | Edward E. Baptist

Não há dúvidas de que a escravidão moderna tornou-se um tema clássico dos debates historiográficos, sobre o qual foram produzidos um sem-número de obras, e que atualmente segue como tema de dissenso de livros, teses e pesquisas. O que é incomum em A metade que nunca foi contada, do norte-americano Edward Baptist, são os debates que este livro gerou para além da esfera acadêmica. Lançado em 2014 nos Estados Unidos, um ano depois da estreia do filme 12 Anos de Escravidão, a obra recebeu uma resenha negativa no jornal The Economist, por não ser uma “história objetiva”, ou científica o suficiente, pois caracterizava senhores de escravos sulistas do século XIX – e outros brancos que lucraram com a escravidão nesse período – como “vilões”, e os negros como “vítimas”. A resenha gerou tamanha polêmica que fez o jornal publicar uma nota de desculpas em uma tentativa de retratação. No entanto, esse foi apenas o epicentro de uma série de debates subsequentes que levaram Baptist e sua obra ao centro das atenções nas discussões sobre o escravismo estadunidense. Não por acaso: o formato escolhido por Baptist para a construção de seu argumento gerou debates historiográficos, os quais comentarei mais adiante, e também atingiu noções consolidadas da memória nacional dos Estados Unidos, assim como da memória sobre a expansão do capitalismo industrial.

Utilizando como fio condutor relatos biográficos de pessoas escravizadas, e cruzando estes relatos com uma variedade de fontes e dados (como cadernos de contabilidade, jornais, debates parlamentares e dados quantitativos mais amplos), Baptist constrói uma narrativa sobre o fenômeno do acirramento da escravidão produtora de algodão no sul nos Estados Unidos após sua independência. Esse acirramento caracteriza um novo tipo de escravidão, uma segunda escravidão [2], moldada para a extração exitosa de excedentes cada vez maiores desse trabalho, que por sua vez, argumenta Baptist, tiveram um papel central na expansão territorial do país, em seu desenvolvimento e no fortalecimento de investimentos e lucros. Em um escopo mais amplo, a nova forma de escravidão algodoeira foi também um pilar fundamental para o surgimento do complexo industrial têxtil da Inglaterra.

A escolha por enfatizar relatos biográficos expõe uma face dura da produção exponencial de algodão oitocentista: as técnicas de tortura, o desmembramento de relações familiares em migrações forçadas e a transfiguração de pessoas negras em mercadorias foram métodos integrantes do desenvolvimento econômico e do progresso da nação das liberdades individuais. Tais relatos se assemelham à narrativa do filme 12 Anos de Escravidão, baseado nas memórias de Solomon Northup, homem livre que foi sequestrado para trabalhar como escravo na Luisiana, cuja história também é citada na obra de Baptist. O livro adentra linhas teóricas e temas clássicos da história econômica, como trabalho e capitalismo, com recursos da história oral e debates sobre temas socialmente vivos [3], como relações raciais e de gênero. Torna-se evidente também a habilidade do autor em trabalhar com a esfera das relações políticas intrincadas, as disputas e pactos entre grupos políticos do norte e do sul dos Estados Unidos. É provável que a opção do autor por esse formato científico-narrativo, junto ao conteúdo chocante dos relatos de escravizados, tenham suscitado a acusação de falta de objetividade por parte da resenha do The Economist. Ou talvez, a crítica tenha partido da ideia de que eventos tão significativos na trajetória do capitalismo, como o desenvolvimento dos Estados Unidos e a Revolução Industrial, só se concretizaram por meio da acumulação gerada pela crueldade do trabalho escravo. Essa ideia, no entanto, não pode ser vista como alheia ao âmbito científico, constituindo um tema de extensos debates acadêmicos.

Existe um argumento central em A metade que nunca foi contada: a relação simbiótica entre a exploração dos corpos negros – e as formas de tortura desenvolvidas para tal – e a ascensão do capitalismo estadunidense de fins do século XVIII até a Guerra Civil, na segunda metade dos oitocentos. Tal argumento implica em dois pontos a serem analisados à luz da produção científica sobre o tema. O primeiro, no nível nacional, diz respeito ao papel do escravismo sulista na expansão do território e no desenvolvimento econômico do país como um todo. O segundo ponto é a relevância deste escravismo para a expansão industrial inglesa, seguido da pergunta: esta escravidão é capitalista? Tais questões colocam o livro de Baptist no âmbito da chamada Nova História do Capitalismo (NHC), que propõe a revisão dos padrões da história do capitalismo a partir das relações políticas e das experiências dos grupos subalternizados. Outros trabalhos semelhantes da NHC, lançados na mesma época, são Empire of cotton de Sven Beckert (2014) e River of dark dreams de Walter Johnson (2013). [4] Estes três livros foram, por vezes, criticados conjuntamente, por partirem de premissas semelhantes e por terem construído o campo em torno da tríade algodão-escravidão-capitalismo. A maior parte das críticas ao campo atinge um ponto em comum: influenciados pelo trabalho de Eric Williams, bem como pelas reinterpretações de Kenneth Pomeranz e Joseph Inikori, os trabalhos da NHC, especialmente A metade que nunca foi contada, teriam ignorado os argumentos da Nova História Econômica baseados em estudos cliométricos e dados empíricos. [5]

As críticas de Alan Olmstead e Paul Rhode aos aspectos empíricos do livro são das mais extensas. [6] Baptist cita a afirmação de Olmstead e Rhode sobre a quadruplicação da produtividade das fazendas de algodão entre 1800 e 1860, porém invalida a importância da inovação biológica das novas sementes nesse aumento, argumento central dos autores. A calibragem da violência por meio de um sistema de cotas crescentes, que punia escravos por não manterem seu ritmo de colheita, seria o principal motivo da produtividade crescente. O papel da violência foi questionado não apenas por Olmstead e Rhode, mas também por James Oakes, que afirma que Baptist generaliza um cotidiano de torturas que não corresponde à realidade, mas nem por isso as relações do escravismo foram menos cruéis.[7]

Baptist teria também negligenciado que a tese da centralidade do algodão já estava presente no trabalho de Douglass North, e que a Nova História Econômica (NHE) já teria apresentado argumentos contrários: a baixa relevância das exportações de algodão para o PIB, a menor lucratividade em relação ao milho, entre outros.[8] No geral, os números de que Baptist lança mão para sedimentar suas afirmações sobre a centralidade do algodão no desenvolvimento dos Estados Unidos são superdimensionados ou de origem incerta. Ainda que as críticas da cliometria não levem em consideração a complexidade política ou as relações sistêmicas do capitalismo, um engajamento maior com a produção historiográfica deste campo fortaleceria os argumentos do livro.

Um outro ponto de análise em A metade que nunca foi contada é o caráter capitalista da escravidão, especificamente da segunda escravidão do sul estadunidense. Em uma leitura mais tradicional de modos de produção, Eric Hilt questiona a existência de uma relação de dependência do norte em relação ao sul, e Oakes aponta para uma ambiguidade entre a escravidão e o trabalho livre, entre o atraso e a modernidade.[9] Tal ambiguidade dentro das mesmas fronteiras, afirma Oakes, teria sido o próprio estopim da Guerra Civil. Já para John Clegg, a escravidão da qual Baptist fala é capitalista, mas em razão das motivações e mentalidade dos senhores (razões endógenas), e não pela vitalidade de sua produção para a industrialização.[10]

Na realidade, Baptist não se preocupa em definir o capitalismo, mas em mostrar o quanto a escravidão foi necessária para o seu desenvolvimento. Ainda que primordialmente sua leitura seja delimitada por um Estado-nação, é importante levar em consideração a relação subjacente do escravismo algodoeiro com a Revolução Industrial. Gavin Wright aponta que, no período pré-Guerra Civil, as exportações do algodão sulista foram de grande importância para alimentar a indústria têxtil britânica, mas após a abolição tal demanda foi atendida por exportações da Índia, Egito e Brasil e, posteriormente, pela produção do trabalho livre estadunidense. Wright afirma que a relevância da escravidão foi caindo no quadro do capitalismo global, aproximando-se da segunda tese de Williams.[11] Isto significa que a perspectiva de causalidade entre escravidão e Revolução Industrial é frágil. Nas palavras de Dale Tomich: “Essa ‘segunda escravidão’ se desenvolveu não como uma premissa histórica do capital produtivo, mas pressupondo sua existência como condição para sua reprodução”[12]. Aqui surge outra questão: se a escravidão foi relevante, mas findou não por ambiguidades internas, e sim porque perdeu espaço no quadro mais amplo do capital, como ocorreu essa virada?

Algo que tanto Baptist quanto seus críticos podem considerar para responder esta e outras questões é a literatura da segunda escravidão brasileira, além dos trabalhos que se centram na presença imperial britânica na Índia e no comércio oriental. Oakes questiona se as plantations de algodão seriam o melhor lugar para analisar o capitalismo; mas se apenas analisarmos o capitalismo oitocentista em condições “ideais”, nitidamente lucrativas, explicitamente modernizantes e criadoras de tecnologia, não há espaço para entendermos as desigualdades produzidas pelo sistema em nível global. Para Baptist, a segunda escravidão nos Estados Unidos é um fenômeno observado no âmbito nacional e referente à demanda inglesa. Mas se considerarmos os estudos da Segunda Escravidão de Rafael Marquese e Tâmis Parron, o fenômeno da escravidão oitocentista não pode ser compreendido apenas nos Estados Unidos: sua integração com os escravismos cubano e brasileiro formam uma unidade, uma nova divisão do trabalho. Consequentemente, a íntima relação entre o escravismo norte-americano e o escravismo cafeeiro brasileiro moldou preços, gerou impactos recíprocos e formou alianças e conflitos que auxiliam a compreensão da abolição nos Estados Unidos.[13] Tanto a questão do caráter capitalista da escravidão quanto a conjuntura do escravismo sulista ganham novas nuances a partir destes debates.

Em relação à empreitada britânica no Oriente, John Darwin afirma que o desenvolvimento do Império Britânico origina-se na diversidade de relações estabelecidas em diferentes regiões de influência e domínio. Em um quadro de pressões geopolíticas em que a Inglaterra não era hegemônica, a busca pela inserção no comércio com a Índia, China, a antiga Anatólia e o Cáucaso permitiram que o Império Britânico se consolidasse como o entreposto “do comércio do Novo Mundo com o Velho – assim como para o comércio transoceânico entre Europa e Ásia até a abertura do Canal de Suez em 1869” [14]. Assim, a expressividade do fornecimento de matéria-prima estadunidense para as indústrias inglesas deve ser colocada em perspectiva para pensarmos o êxito da Revolução Industrial, já que a presença do Império no Oriente reconfigura o papel dos Estados Unidos para os ingleses.

A importância da escravidão algodoeira do século XIX para a formação dos Estados Unidos e sua integração aos interesses do capitalismo industrial em expansão são pontos importantes trazidos por Baptist e, ainda que sejam necessários ajustes e considerações mais consistentes, sua tese não pode ser descartada tão facilmente. A força de seus argumentos não está apenas nas narrativas e no alcance de sua obra para além dos limites do público acadêmico. Sua exposição traz à tona as contradições de estudiosos liberais, que acreditavam que o fim da escravidão norte-americana era inevitável frente ao progresso, e expõe a falta de diálogo entre as esferas econômica e política em estudos historiográficos prévios. A ampliação dos horizontes de sua obra para além do nacionalismo metodológico será um passo importante para revelar outras partes da história que ainda não foram contadas.

Notas

2. O autor faz menção ao conceito de Segunda Escravidão, de Dale Tomich, sem se aprofundar no mérito de suas premissas teóricas. No entanto, a influência do trabalho de Tomich se faz presente no livro. TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. New York: Lanham, Rowman & Littlefield, 2004.

3. O termo faz alusão ao conceito de “questões socialmente vivas”, relativo a temas relevantes socialmente, assim como no campo de estudo historiográfico. LEGARDEZ, Alain; SIMONNEAUX, Laurence. L’école à l’épreuve de l’actualité: enseigner les questions vives. Paris: ESF, 2006.

4. BECKERT, Sven. Empire of cotton: a global history. New York: Alfred A. Knopf, 2014; JOHNSON, Walter. River of dark dreams: slavery and empire in the cotton kingdom. Cambridge: Harvard University Press, 2013.

5. Referência a tese sobre a centralidade do escravismo para a industrialização britânica em WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; e suas atualizações em POMERANZ, Kenneth. The great divergence: China, Europe, and the making of the Modern world economy. Princeton: Princeton University Press, 2000; e INIKORI, Joseph. Africans and the Industrial Revolution in England: a study in international trade and economic development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

6. OLMSTEAD, Alan; RHODE, Paul. “Cotton, slavery, and the New History of Capitalism”. Explorations in Economic History, v. 67, jan. 2018, pp. 1-17.

7. OAKES, James. “Capitalism and slavery and the Civil War”. International Labor and Working-Class History, n. 89, mar.-jun. 2016, pp. 195-220.

8. OLMSTEAD, Alan; RHODE, Paul, op. cit.

9. OAKES, James, op. cit.; HILT, Eric. “Economic history, historical analysis, and the ‘New History of Capitalism’”. The Journal of Economic History, v. 77, n. 2, jun. 2017, pp. 511-536.

10. CLEGG, John. “Capitalism and slavery”. Critical Historical Studies, set.-dez. 2015, pp. 281-304.

11. WRIGHT, Gavin. “Slavery and Anglo-American capitalism revisited”. InEHS Annual Conference. Belfast, 2019. Disponível em <http://www.ehs.org.uk/multimedia/tawney-lecture-2019-slavery-and-anglo-american-capitalism-revisited>.

12. TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. New York: Lanham, Rowman & Littlefield, 2004, p. 87.

13. MARQUESE, Rafael Bivar de; PARRON, Tâmis. “Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, 2011, pp. 97-117; e MARQUESE, Rafael Bivar de. “Estados Unidos, Segunda Escravidão e a economia cafeeira do Império do Brasil”. Almanack, Guarulhos, n. 5, 2013, pp. 51-60; PARRON, Tâmis. A escravidão na era da liberdade: Estados unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese. FFLCH-USP, 2015.

14. DARWIN, John. The Empire Project: the rise and fall of the British world-system, 1830-1970. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 37.

Referências

BAPTIST, Edward E. A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

BECKERT, Sven. Empire of cotton: a global history. New York: Alfred A. Knopf, 2014.

CLEGG, John. “Capitalism and slavery”. Critical Historical Studies, set.-dez. 2015, pp. 281-304.

DARWIN, John. The Empire Project: the rise and fall of the British world-system, 1830-1970. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

HILT, Eric. “Economic history, historical analysis, and the ‘New History of Capitalism’”. The Journal of Economic History, v. 77, n. 2, jun. 2017, pp. 511-536.

INIKORI, Joseph. Africans and the Industrial Revolution in England: a study in international trade and economic development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

JOHNSON, Walter. River of dark dreams: slavery and empire in the cotton kingdom. Cambridge: Harvard University Press, 2013.

LEGARDEZ, Alain; SIMONNEAUX, Laurence. L’école à l’épreuve de l’actualité: enseigner les questions vives. Paris: ESF, 2006.

MARQUESE, Rafael Bivar de. “Estados Unidos, Segunda Escravidão e a economia cafeeira do Império do Brasil”. Almanack, Guarulhos, n. 5, 2013, pp. 51-60.

MARQUESE, Rafael Bivar de; PARRON, Tâmis. “Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, 2011, pp. 97-117.

OAKES, James. “Capitalism and slavery and the Civil War”. International Labor and Working-Class History, n. 89, mar.-jun. 2016, pp. 195-220.

OLMSTEAD, Alan; RHODE, Paul. “Cotton, slavery, and the New History of Capitalism”. Explorations in Economic History, v. 67, jan. 2018, pp. 1-17.

PARRON, Tâmis Peixoto. A escravidão na era da liberdade: Estados unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese. FFLCH-USP, 2015.

POMERANZ, Kenneth. The great divergence: China, Europe, and the making of the Modern world economy. Princeton: Princeton University Press, 2000.

TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. New York: Lanham, Rowman & Littlefield, 2004.

WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

WRIGHT, Gavin. “Slavery and Anglo-American capitalism revisited”. In: EHS Annual Conference. Belfast, 2019. Disponível em <http://www.ehs.org.uk/multimedia/tawney-lecture-2019-slavery-and-anglo-american-capitalism-revisited>.

Fernanda Novaes – Universidade Federal Fluminense. Niterói – Rio de Janeiro – Brasil.

BAPTIST, Edward E. A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano. São Paulo: Paz e Terra, 2019. Resenha de: NOVAES, Fernanda. O capitalismo no quadro escravista dos EUA e a modernidade industrial. Almanack, Guarulhos, n.23, p. 500-508, set./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil | Sergio O. Nadalin

A imigração alemã no Brasil é significativa, principalmente nos três estados do sul do país. O livro “Memórias de Gustav Hermann Strobel” narra a história da família Strobel, que saiu de Glauchau, na Saxônia (região da atual Alemanha), e chegou ao Brasil, juntamente com outros imigrantes germânicos, em 20 de novembro de 1854. Os imigrantes foram levados para a colônia Dona Francisca, atual Joinville, à época província de Santa Catarina. Devido à precariedade da colônia, o pai de Gustav, Christian August Strobel, migrou para São José dos Pinhais, nos arredores da capital da recém-criada província do Paraná.

A história escrita por Gustav Hermann Strobel é uma importante fonte para quem estuda a inserção social dos imigrantes alemães na sociedade paranaense e brasileira de modo geral. O texto, originalmente escrito em língua alemã, recebeu uma primeira tradução em 1987 e foi publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. A tradução para a língua portuguesa foi realizada a partir de manuscritos reproduzidos ao longo do tempo, já que os descendentes de Gustav faziam cópias do texto para que este não fosse perdido.

Em razão de algumas disparidades nos manuscritos é que o professor Sergio Odilon Nadalin (UFPR), pesquisador do CNPq, e Egon Frederico Michells Ribeiro, descendente de Gustav, se empenharam em uma nova tradução para tentar resolver algumas dessas questões (três cópias dele chegaram ao século XXI). O texto original, muito provavelmente, foi escrito entre 1909 e 1928, não sendo possível datar de forma exata e, ao que tudo indica, não foi escrito de uma única vez (NADALIN, 2015, p.13).

A nova tradução é acompanhada de um posfácio em que a professora Cacilda da Silva Machado (UFRJ) e o professor Sergio Odilon Nadalin (UFPR) fazem uma análise da obra. Nessas considerações, os dois pesquisadores ressaltam como as lembranças individuais de Gustav Hermann Strobel são depositárias das memórias herdadas e/ou compartilhadas pelos pais (NADALIN, 2015, p.195). Muitos dos episódios narrados pelo imigrante alemão fazem referência a um período em que este era uma criança, como, por exemplo, a saída de Glauchau e a viagem de navio para o Brasil, quando Gustav contava apenas cerca de 5 anos de idade.

No posfácio os autores também tecem importantes considerações acerca das imagens do imigrante germânico e do nacional a partir das reminiscências de Gustav. Importante destacar que o texto original foi redigido de forma retrospectiva, ou seja, os fatos descritos dizem respeito a situações ocorridas várias décadas antes. Supondo que o manuscrito tenha sido concluído em 1928, e visto que a família desembarcou na colônia Dona Francisca em 1854, as memórias do autor cobrem mais de 70 anos. Portanto, Sergio Odilon Nadalin e Cacilda da Silva Machado destacam como o discurso de Gustav Hermann Strobel está ancorado na sua vivência em sociedade e na memória coletiva, seja para reforçar ou para negar pontos de vista (NADALIN, 2015, p.215).

As Memórias, propriamente ditas, estão divididas em dezoito capítulos, tendo um capítulo complementar que inexistia na edição em língua portuguesa publicada em 1987. O memorialista descreve não apenas fatos vivenciados por ele, mas também narra acontecimentos transmitidos principalmente por seus pais, Christian e Christiana (reforçando o que foi dito acima sobre o discurso social presente nas linhas grafadas). Assim, podemos entender como, grosso modo, os sete ou mesmo oito capítulos iniciais relatam fatos ocorridos na época em que Gustav tinha menos de 10 anos de idade.

A exposição dos motivos para a família deixar a Saxônia, as expectativas e a decepção ao desembarcarem em Dona Francisca, bem como a mortalidade a bordo do navio que cruzou o Atlântico trazendo a família e demais pessoas da Europa para o Brasil são lembranças que ajudam a compreender o processo (e)imigratório transatlântico. Os eventos narrados por Gustav, portanto, não se resumem ao processo vivido apenas pela família Strobel. Era difícil a decisão de deixar a Europa para embarcar numa aventura em direção à América, pois a possibilidade de regresso era mínima. Será, então, que os imigrantes estavam conscientes da quase nulidade da chance de regressar à Glauchau, ou qualquer outra região da atual Alemanha, caso o encontrado no Brasil não correspondesse às expectativas?

De acordo com o capítulo 4 das “Memórias de Gustav Hermann Strobel”, a maioria dos germânicos que chegaram no mesmo navio, não só estavam decepcionados com o cenário que encontraram em Dona Francisca como foram tomados de espanto

À medida que avançávamos rio acima, o silêncio tomava conta dos viajantes […] A decepção era visível nos rostos de cada um, pois a vegetação fechada que víamos nas margens era um tanto assustadora (NADALIN, 2015, p.40).

Concomitantemente à desolação, veio a revolta; os conterrâneos de Christian August Strobel se sentiram enganados. Porém, o regresso à Europa era algo deveras irreal para imigrantes que chegaram à América gastando as poucas economias que possuíam: “Todos estavam dispostos a retornar à Europa. Fácil dizer, mas difícil realizar” (NADALIN, 2015, p.42).

O contraste entre a expectativa do momento da partida com a realidade no desembarque obrigou o patriarca da família a migrar. Christian Strobel saiu a pé de Joinville em direção a São José dos Pinhais à procura de emprego; após um período de tempo providenciou para que a esposa e os filhos fossem ao seu encontro. Posteriormente a família ainda migrou para Campo Largo da Roseira e, depois, para Curitiba. Essas constantes mudanças demonstram como a vida do imigrante no Brasil não está marcada pela imobilidade espacial e muito menos à fixação definitiva em uma gleba de terra. Mas é necessário lembrar que o pai de Gustav era carpinteiro, portanto possuía um ofício que lhe permitia buscar trabalho em centros urbanos e não depender exclusivamente dos produtos da terra.

As Memórias desses pioneiros da imigração alemã ajudam a pensar as dificuldades dos imigrantes (não apenas de origem germânica), bem como também permitem analisar as táticas de sobrevivência em um novo espaço social. Enquanto Christian trabalhava longe de casa exercendo seu ofício de carpinteiro, sua esposa Christiana, junto com filhos menores, cultivavam alimentos no quintal, tanto para a subsistência como para gerar algum excedente que pudesse ser vendido ou trocado. Como o pai de Gustav passou a ser (re)conhecido entre a “comunidade” germânica, não raro a casa servia de hospedagem a alguns migrantes, de origem alemã principalmente.

A questão étnica está presente em todo o texto de modo implícito, mas em alguns pontos ela fica explícita. No capítulo 11 Gustav fala de uma corporação de escavadores, homens que abriam valetas para delimitar as propriedades, onde todos tinham origem germânica. O autor das Memórias sempre está relacionando a vida da família e o trabalho desta com o fluxo de novos alemães que chegavam e partiam (o capítulo 12 é exemplar a respeito disso). Claro que sempre sem desconsiderar os contatos culturais cada vez mais estreitos com os brasileiros e demais grupos imigrantes de outras origens.

Entre muitos episódios interessantes, um caso contado no capítulo 13 diz respeito à questão religiosa dos imigrantes. Gustav lembra que em determinada ocasião um imigrante, amigo da sua família, saiu dos arredores de Curitiba em direção à Joinville para conseguir um padre alemão que ouvisse sua Confissão. Embora houvesse padres latinos na região, o homem não conseguia ficar em paz se não confessasse com sacerdote da mesma origem que ele e na sua língua materna. A viagem não era simples, pois estradas entre a capital do Paraná e Santa Catarina eram praticamente inexistentes na segunda metade do século XIX, e o meio de transporte era basicamente o lombo de uma montaria (que poucos possuíam) ou as solas dos sapatos.

As memórias da família Strobel serviram também de fonte para que Sergio Odilon Nadalin (2007), a partir dos prenomes escolhidos para os membros da família, ao longo dos séculos XIX e XX no Brasil, pudesse analisar a identidade teuto-brasileira em Curitiba. A forma de nomear as pessoas pode trazer consigo elementos de distinção étnica:

ao optar por um nome de batismo, os pais de uma criança são ou estão influenciados por uma determinada herança, ou seja, os nomes são emprestados de um estoque cultural, e a maneira de grafá-los refere-se à língua falada e escrita (NADALIN, 2007, p.17).

Portanto, o fator língua é fundamental para o estudo da identidade teuto-brasileira em Curitiba. Por isso o esforço do imigrante alemão que viajou dezenas de quilômetros em busca de um confessor, conforme explicitado anteriormente, é compreensível na construção étnica no Brasil. Da mesma forma que as escolhas de nomes não são aleatórias, conforme ressaltado (NADALIN, 2007).

A endogamia também é um fator importante no estudo da identidade construída pelos imigrantes de origem germânica no Brasil. No período de 1870 a 1939 na Comunidade Evangélica Luterana da capital paranaense, chegava a 87% os casamentos em que os dois noivos eram de origem alemã (NADALIN, 2012, p.56). Mas, não podemos concluir que os imigrantes de origem alemã vivessem isolados, inclusive a etnicidade se constrói e é mais visível no contato com o diferente, conforme apontado por Fredrik Barth (2011). A percepção da marca étnica, seja pelos nomes de batismo ou pela endogamia nas uniões matrimoniais, só é possível de análise na comparação com quem não faz parte da comunidade teuto-brasileira.

Essa distinção étnica em face do “outro” pode ser vislumbrada no capítulo 13. Nele há menção à alegria que os carpinteiros da família Strobel sentiam por terem um ferreiro da mesma origem, com quem conseguiam seus instrumentos de trabalho: “Estávamos felizes por termos agora um ferreiro alemão que confeccionava boas ferramentas para nós” (NADALIN, 2015, p.115. Grifo original). A questão étnica fica explícita nessa informação, pois a qualidade de tais apetrechos estava diretamente ligada à origem de quem os fabricava/fornecia. Ainda no capítulo 13, Gustav narra a admiração dos brasileiros com as técnicas alemãs de construção.

Nos capítulos finais a narrativa de Gustav versa, entre outros aspectos, a respeito das construções executadas pelo pai, e por ele também, na capital paranaense, demonstrando as mudanças na urbe e a contribuição alemã nessas transformações. Também há no capítulo 16 menção à ineficiência brasileira e às hostilidades entre alemães e franceses devido à guerra franco-prussiana. Essas duas questões são descritas em razão dos problemas na gestão do Hospital da Misericórdia. Devido aos desmandos dos brasileiros no hospital, freiras enfermeiras da França foram chamadas para gerir a instituição. Apesar de pontuar as animosidades que as freiras tinham em relação aos pacientes de origem alemã, Gustav não deixa de ressaltar que elas em pouco tempo restauraram a ordem no hospital (NADALIN, 2015, p.163).

Mas essas questões não diminuem a riqueza do texto escrito por Gustav Hermann Strobel. São justamente esses posicionamentos do autor que permitem uma análise dos contatos culturais e da construção de uma identidade teuto-brasileira. As “Memórias de Gustav Hermann Strobel”, escritas pelo filho varão mais velho da família, Gustav, demonstram como a identidade e a cultura alemã no Paraná se formou e se transformou ao longo do século XIX e início do século XX, à medida que os contatos culturais aumentaram, às vezes de forma amistosa e às vezes de modo conflituoso.

As reminiscências de Gustav Hermann Strobel permitem que as análises tomem diversos caminhos: possibilita a conjugação de memórias individuais e coletivas; propicia a análise do passado e sua relação com o presente; dá ênfase na construção e transformação da sociedade paranaense; ressalta como as identidades se constroem no contato com o outro.

Portanto, a nova tradução coordenada pelo professor Sergio Odilon Nadalin não é esforço vão. As reminiscências de Gustav Strobel, relançadas em livro pelo Instituto Memória, cumpre o desejo do autor de perpetuar a história da família Strobel na memória das futuras gerações (ele mesmo havia incumbido seus descendentes de redigir cópias do manuscrito). Além disso, a nova edição amplia o acesso a uma fonte histórica que tem servido para problematizar aspectos da teuto-brasilidade.

Referências

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. 2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.

NADALIN, Sergio Odilon (Org). Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil. 2. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2015.

______. A constituição das identidades nacionais nos territórios de imigração: os imigrantes germânicos e seus descendentes em Curitiba (Brasil) na virada do século XX. Revista Del CESLA, Varsóvia, n.15, p.55-79, 2012. Disponível em:. ______. João, Hans, Johann, Johannes: dialética dos nomes de batismo numa comunidade imigrante. História Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.1, p.14-27, jan./abr. 2007. Disponível em:

Lourenço Resende da Costa –  Doutorando em História pela UFPR, Mestre em História pela UNICENTRO, professor de História pela SEEDPR. Bolsista CAPES.


NADALIN, Sergio Odilon (Org). Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil. 2. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2015. Resenha de: COSTA, Lourenço Resende da. As memórias de um imigrante alemão no Brasil: a História da família. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.603-608, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Viva la Revolución: a era das utopias na América Latina | Eric Hobsbawm

Introdução

Falecido em 2012, é (im)possível imaginar qual seria a reação de Eric Hobsbawm à situação atual da América Latina. O historiador “britânico” (nascido egípcio, de pai britânico e mãe austríaca, educado na Áustria, Alemanha e depois Inglaterra) deixou esse mundo quando o nosso continente tinha vários governos ditos ou considerados de esquerda [2]: Kirchner na Argentina, Chavez na Venezuela, Mujica no Uruguai, Morales na Bolívia, Correa no Equador, Rousseff no Brasil e – apesar de ser uma ilha caribenha –, Castro (Raul) em Cuba.

De lá pra cá se viu a volta do neoliberalismo na Argentina de Macri; uma ditadura traidora pelos sandinistas na Nicarágua; um conservadorismo que encontrou seu testa-de-ferro em Bolsonaro, presidente recém-eleito no Brasil; um socialismo em situação de reconsolidação, com a eleição de Miguel Díaz-Canel em Cuba, dando fim ao governo “direto” dos Castro (apesar de Raul ainda estar vivo); outros socialismos que precisam se reinventar pela parte de Morales na Bolívia, Tabaré Vázquez no Uruguai e Nicolás Maduro na Venezuela; e um presidente trabalhista recém-eleito no México, Andrés Manuel López Obrador.

Apesar de ser uma área de estudo pouco explorada (a América latina), Hobsbawm escreveu resenhas e ensaios sobre o continente por um período que abarca quarenta anos. Tal massa de trabalho acabou se transformando em livro póstumo, com um total de 31 artigos. Se fosse vivo até hoje, crê-se que esse recorte de 2012-2018 provavelmente chamaria a atenção do historiador para novos escritos. Como isso não é possível, essa resenha procura trazer a hipótese que a leitura da obra já ajuda a compreender não apenas uma parte da história latinoamericana do século XX, mas fornece igualmente alguns insights de entendimento, e até mesmo fôlego para refletir novas maneiras de encarar tanto o estudo de nosso país e continente, em uma dialética eterna de história “local” e “total” acadêmica, como social para atuação no dia-a-dia em sociedade.

Portanto, fazer resenha de um livro que é uma colcha de retalhos – além de póstumo – é desafiador e fadado a um fracasso parcial. Por conta da falta de uma “tese central” no livro, perder-se-ia muito tempo explorando as várias temáticas estudadas por Hobsbawm. Esse texto, deste modo, vai focar em dois pontos: a relevância da leitura do livro e os limites que ele traz.

A obra

Editado em 2016, sob o título Viva la Revolución: On Latin America, o livro foi traduzido para o Brasil em 2017 com um título mais chamativo e “propagandístico”: Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. Apesar da manutenção da abertura original, o subtítulo já merece dois avisos (deixar-se-á o segundo para ser a conclusão): o primeiro é que a obra não pode ser considerada “uma das Eras” da coleção de Hobsbawm; e imagina-se que esse subtítulo fora utilizado se baseando (os editores) no conhecimento do Historiador no Brasil pela sua “tetralogia” [3]. Todavia, pode-se dizer que os artigos inseridos nessa coletânea ajudaram a encorpar alguns argumentos – e capítulos – de duas “Eras”, apesar do livro da América Latina se inserir no corpo cronológico da Era dos Extremos. Mas, para um leitor atento, Hobsbawm não escreveu “apenas” as “Eras”. Seu interesse sobre a América Latina apareceu em sua primeira obra Rebeldes Primitivos (1959), como depois em Bandidos (1969), e voltou com Pessoas Extraordinárias (1998).

No caso de Era dos Extremos, não foram gratuitos, por exemplo, os usos de expressões como “Suíça da América Latina” para o Uruguai (HOBSBAWM, 1995, p.115) e “candidato a campeão mundial de desigualdade econômica” para o Brasil (HOBSBAWM, 1995, p.397), que podem ser vistas em Viva la Revolución. Nessa mesma esteira de raciocínio, dois artigos são “copia-e-cola” mais ou menos costurados das “Eras”: O capítulo “A Revolução Mexicana” saiu de trechos da Era dos Impérios, enquanto o “A Revolução Cubana e suas consequências” adveio da Era dos Extremos. A “reciclagem” de textos não é apenas das “Eras”. Outro, também, é uma costura de trechos de Bandidos, enquanto dois estão presentes em Rebeldes Primitivos, dois em Pessoas Extraordinárias e um de Tempos Interessantes. Em suma, de 31 artigos, 8 são provenientes de outras obras, ou seja, 23 artigos são completamente inéditos no Brasil.

Isso não retira o mérito do livro. Ao contrário, demonstra tanto uma espécie de desmistificação em torno de um caráter eurocêntrico que pode pairar em torno de Hobsbawm — por sua preferência pela França e Inglaterra, presente na Era das Revoluções, bem como a Europa e Estados Unidos na Era do Capital e Era dos Impérios, e Estados Unidos e União Soviética na Era dos Extremos. O que se tem com a leitura de Viva la Revolución é a característica de uma história global que se interliga a todo o momento a partir de uma perspectiva “total”. Apesar de, em termos “escritos”, no papel, a América Latina figurar como coadjuvante ou sem muito espaço em vários livros e coletâneas, Hobsbawm sabia da importância do estudo do continente americano para uma melhor compreensão da história do mundo, principalmente no século XX. Não é à toa que, em vários artigos, o historiador “britânico” chama a atenção ao caráter displicente dos europeus em relação aos assuntos latino-americanos.

E que assuntos eram esses?

Vale dizer de início que, diferente das outras “Eras”, Hobsbawm não escreveu visando criar em um futuro uma obra com gavetas. O pesquisador não separou de maneira deliberada os temas da Política, Economia, Língua, Classes Sociais, Arte, Religião, Ciências etc. Portanto, tem-se o primeiro “limite” do livro de Hobsbawm: a circunscrição de temas. Esses variam, especialmente, nas temáticas dos camponeses, revolução política, industrialização e reforma agrária. Ou seja: a ideia de “progresso” (economia feudal versus industrial), de luta de classes (camponeses, bandidos, guerrilheiros socialistas e comunistas versus oligarcas, hacienderos, coronéis, latifundiários e ditadores estatais) e a disputa entre ideologia Capitalista e Socialista (influências do imperialismo norte-americano versus vários socialismos – cubano, leninista-stalinista e maoísta) perpassará todo o livro. Qualquer semelhança com as temáticas centrais das outras quatro “Eras” não é mera coincidência.

Esses temas invocam também a perspectiva historiográfica e ideológica de Hobsbawm. O capítulo 8, “Elementos feudais no desenvolvimento da América Latina”, é o que deixa mais latente suas reminiscências teóricas que transitavam entre o marxismo dito “estruturalista” e eurocêntrico, provenientes de leituras de obras como A Ideologia Alemã e Manifesto do Partido Comunista, além de a nova oxigenação metodológica, principalmente a partir das leituras dos Grundrisse e do filósofo italiano Antonio Gramsci (HOBSBAWM, 2011, 12-15). Mesmo não levando ao pé da letra o uso do conceito “feudal” e “feudalismo”, Hobsbawm não deixou de perceber o estilo de vida agrária na América Latina, e utilizou os termos muito mais como uma denúncia de “anacronismo” social e econômico de países que queriam se mostrar modernos e em vias de industrialização. Sua crítica era no sentido que, enquanto existissem relações de poder massacrantes entre os donos de terras e haciendas, e camponeses pobres e índios na América, era quase impossível levar a sério as tentativas de políticas burguesas que as classes citadinas e políticas queriam promover.

Porém, não há nos capítulos dos livros nenhuma tentativa de leitura estrutural vulgar em relação às sociedades. Vale dizer: se a América Latina não era “feudal” propriamente dita, também não o era “moderna”, com suas classes burguesas e proletárias bem “divididas” ou organizadas como na Europa desde finais do século XVIII. O próprio termo “classe” é quase inexistente no livro. Hobsbawm preferiu ainda diluir as camadas dominantes em políticos, hacienderos, oligarcas, empresários, grandes comerciantes; e as subalternizadas em camponeses, bandidos, operários de minas, mendigos, vagabundos, guerrilheiros etc. O historiador demonstrou finesse em analisar com cuidado as relações entre os diferentes grupos sociais nos momentos de traçar alianças ou explodir revoltas. Mesmo depois de várias décadas de apreciações, Hobsbawm continuaria receoso em dividir facilmente os estratos sociais americanos, optando por um exame mais inteligente no capítulo 30, Nacionalismo e nacionalidade na América Latina, publicado originalmente em 1995.

Cabe agora apresentar algumas “críticas”. Uma em especial é a falta de dois estudos que provavelmente Hobsbawm deve ter escrito, mas que não figuram na seleção da obra: arte e religião. Pensa-se que, apesar de referências a literatura de Gabriel Garcia Marquez e a Bossa Nova brasileira, é triste não ter uma análise, seja ensaística ou mais detalhada, em relação à arte latino-americana. A Bossa Nova tem um capítulo só dela, mas de apenas quatro páginas. Sua existência pode se dar pelo especial interesse que Hobsbawm tinha no “jazz brasileiro”, uma vez que sua paixão pelo Jazz norte-americano rendeu um livro, e lá também fez referência à Bossa Nova (HOBSBAWM, 2016). No quesito “Arte” (cinema, pintura, literatura, música, teatro etc.), sabe-se que o autor não era nenhum leigo. Seu livro (também póstumo) Tempos Fraturados dá mostra do fôlego e do tamanho de conhecimento e análise crítica que o historiador tinha e que a todo o momento era exposto em resenhas, artigos e conferências (HOBSBAWM, 2013). Nessa mesma linha de raciocínio, apesar da existência de algumas pontuações sobre a Igreja Católica, o leitor sente falta de colocações sobre os diferentes papéis dessa instituição, fosse por meios reacionários, ou por meios revolucionários. O máximo que aparece são alguns comentários mais ácidos à Igreja, chamando-a de Medieval (levando em consideração o que foi escrito acima sobre o caráter “feudal” da América Latina), e mais resguardados aos progressistas da Teologia da Libertação.

O tema da reforma agrária deve ser lido com cuidado. Em muitos momentos Hobsbawm se mostra esperançoso com os rumos que tomavam as revoltas camponesas na América Latina. Ao mesmo tempo, via com intensa desconfiança a maneira como a Reforma Agrária era administrada pelo Estado, principalmente aquele que se encontrava “longe” da população que ele julgava entender e atender. Allende no Chile e os Militares no Peru sofrem um misto de esperança e críticas severas de Hobsbawm. Julga-se que o “cuidado” da leitura sobre esse tema no livro Viva la revolución deve ser salientada por conta do tratamento que o historiador vai dar ao mesmo assunto nas suas quatro “Eras”.

Deixando de lado as três primeiras, mais caras aos finais do século XVIII e todo o século XIX, cabe chamar atenção à Era dos Extremos, em que Hobsbawm analisou a reforma agrária da Rússia e China. Em ambos os casos o historiador soltou críticas vorazes à maneira como os planos de agricultura e reforma agrária foram levados a cabo pelas duas potências comunistas. Fazer uma análise comparativa seria interessante para estudos futuros de quem se interessa pela temática.

Outro ponto em especial são as temporalidades e recortes geográficos dos escritos. Saber diferenciar “espaço e conjuntura” é essencial para não se perder em análises generalizantes sobre o livro. Pode-se dizer que o historiador escrevia de maneira mais profícua de acordo com os abalos socioeconômicos e políticos que apareciam vez ou outra no continente americano. O grosso dos artigos se concentra na temporalidade de 1959 (com a edição de Rebeldes Primitivos) e vai até 1977, mas com especial vantagem entre 1963-1973. Na década de 80, Hobsbawm escreveu um em 1986 e os trechos sobre a revolução mexicana em Era dos Impérios, de 1987. Depois, só voltou a dar atenção pós-Era dos Extremos, com um artigo em 1995 e outro em autobiografia de 2002 [4]. Soma-se a tudo isso a heterogeneidade de veículos e motivações para escrever algo sobre a América Latina. Os textos são de artigos de jornais, conferências acadêmicas, artigos de revistas científicas, capítulos de livros organizados por terceiros e capítulos de livros autorais já mencionados, e ainda as famosas resenhas críticas que o autor fazia para a New York Review of Books.

Além dos motivos de queda de escritos nos anos 80 e 90, ressalta-se a falta de interesse do historiador com outras localidades do continente. Pouco foi dito sobre o Uruguai, Paraguai, Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela e até mesmo Brasil (tirando o tema dos camponeses bandidos-justiceiros de Lampião e sua passagem por Recife em 1963). Em contrapartida, Chile, Colômbia e Peru recebem especial atenção. Cuba e México aparecem menos, mas com força, provavelmente por conta de suas revoluções. Entretanto, a temática da revolução cubana (sua influência prática e ideológica sobre vários estratos sociais no restante do continente) dilui-se em todo o livro. Pode-se até mesmo arriscar a dizer que a revolução Cubana é uma das chaves principais para começar a estudar a América Latina continental da segunda metade do século XX, uma vez que ela ajudou a atrair as influências Soviética e Maoísta, bem como dos Estados Unidos.

Conclusão

Pode-se dividir a conclusão em duas partes. Apesar do termo “conclusão” estar errado, imagina-se que dois pontos dos escritos devam ser salientados.

O primeiro é o paralelo entre uma ideia de Hobsbawm e a do historiador brasileiro Caio Prado Jr. O segundo, ao falar do Brasil na época de colônia, colocou que “devemos abordar a análise da administração colonial com o espírito preparado para toda sorte de incongruências” (PRADO JR., 2011, p.320). Com uma visão da América Latina, Eric Hobsbawm (2017, p.56) chegou a um insight mais amplo:

No entanto, quando se começa a pesquisar sobre a América Latina, descobre-se imediatamente um obstáculo ainda maior do que a simples ignorância. Pelos nossos padrões – não apenas britânicos, mas, se quiserem, norte-americanos ou mesmo russos – e nos termos em que em geral analisamos os fenômenos políticos, a região simplesmente não faz sentido.

O segundo ponto é o retorno do que se falou no início desse texto em relação ao uso do termo “utopia”. Apesar do apreço de Hobsbawm em relação a Cuba pós-revolucionária, ao Chile de Allende, aos movimentos camponeses no Peru e na Colômbia, passando pelo banditismo social em México e Brasil, a leitura completa da obra demonstra que não havia, nem no historiador, e muito menos de maneira bem trabalhada naquelas sociedades estudadas, o que seria uma “utopia”. De fato, todos esses assuntos acima mencionados invocam a luta de classes, os descontentamentos políticos e socioeconômicos, os conflitos culturais e as inúmeras tentativas de mudanças (da guerrilha aos governos reformistas de esquerda e até mesmo militares, como o caso do Peru) que visassem uma sociedade melhor, mais igualitária e justa. No entanto, a escolha do subtítulo pela editora brasileira deixa o caráter ambíguo: 1) as utopias socialistas já se foram e agora temos que nos contentar com a vitória do neoliberalismo e do capitalismo encabeçado pela meritocracia do cada-um-por-si-e-ninguémpor-todos, alimentado pela concepção de livre-mercado a partir de um Estado Mínimo subalterno a interesses de empresas e governos estrangeiros? 2) será que estamos passando por uma nova fase que deve entender – a partir do estudo frio e racional – a “era das utopias” para não mais idealizar um passado que no papel e na teoria é revigorante, mas que na atual situação não se encaixa mais de maneira acrítica e que deve, portanto, ser reformulado para outros caminhos de ação?[5]

Eric Hobsbawm não era afeito a profecias e cuidava de fazer suas análises de maneira bem fundamentada para evitar escorregões e comentários mais apaixonados (HOBSBAWM, 2000). Ao fechar o livro, o leitor não terá respostas ou “linhas de ação” para traçar planos de mudança ou “revoluções”. Entretanto, estudar o “fracasso” de várias tentativas servirá como aprendizado tanto da história como da própria filosofia política (BERMAN, 2008, p.172-191; THOMPSON, 1987, p.13; BENJAMIN, 2016, p.9-20). Por outro lado, o impacto de sempre aprofundar o estudo da história do continente americano também surtirá efeito. Entretanto, o pesquisador “britânico”, fazendo jus à sua formação, deixou latente seu método de análise dialética onde as histórias da América Latina se conectam entre si e com o os outros continentes, nunca se sobrepondo (evitando, assim o provincianismo apaixonado), nem se subalternizando (impedindo a chamada “síndrome de vira lata”), mas sempre se retroalimentando – sem a ingenuidade de pôr na balança todo o mundo em pé de igualdade nos aspectos do poder. Seus artigos servem, portanto, para um mergulho mais aprofundado na nossa necessidade de não procurar um “homem latino-americano”, mas um latino-americano livre dos colonialismos, das explorações, e das desigualdades sociais. A ideia é antiga, presente igualmente no discurso do poeta chileno Pablo Neruda (2010, p.505) na entrega de seu Prêmio Nobel de Literatura, em 1971:

Nuestras estrellas primordiales son la lucha y la esperanza. Pero no hay lucha ni esperanza solitarias. En todo hombre se juntan las épocas remotas, la inercia, los errores, las pasiones, las urgências de nuestro tempo, la velocidade de la historia. Pero, qué sería de mí si yo, por ejemplo, hubiera contribuido em cualquiera forma al pasado feudal del gran continente americano? Cómo podría yo levantar la frente, iluminada por el honor que Suecia me ha outorgado, si no me sintiera orgulloso de haber tomado una mínima parte en la transformación actual de mi país? Hay que mirar el mapa de América, enfrentarse a la grandiosa diversidad, a la generosidad cósmica del espacio que nos rodea, para entender que muchos escritores se niegan a compartir el pasado de opróbio y de saqueo que oscuros dioses destinaron a los pueblos americanos.

Notas

2 Ou progressistas para os intelectuais frustrados, mas esperançosos; ou pequeno-burgueses para os críticos de esquerda; ou, ainda, populistas de esquerda para os críticos da direita; ou, ditaduras comunistas para a extrema direita que ainda revive a “guerra fria”.

3 Seriam elas: a era das revoluções; a era do capital; a era dos impérios; a era dos extremos.

4 A cronologia ficaria da seguinte maneira: 1959, 60, 62, 63(4), 65, 67, 68, 69(4), 70(2), 71(3), 73(3), 74, 76, 77, 86, 87, 94, 95, 2002. E um inédito, sem data.

5 Crítica parecida também já era esboçada por Edward Thompson (1978, p.207-208) contra o “stalinismo” na América Latina e na Índia.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: ______. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

BERMAN, Marshall. Aventuras no marxismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

______. Tempos Fraturados. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

______. História social do Jazz. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

______. Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HOBSBAWM, Eric; POLITO, Antonio. O novo século. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

NERUDA, Pablo. Discurso de Estocolmo. In: ______. Antología General. Lima: Real Academia Española. Asociación de Academias de La Lengua Española, 2010.

THOMPSON. Edward. A miséria da teoria, ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Alex Rolim Machado – Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


HOBSBAWM, Eric. Viva la Revolución: a era das utopias na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: MACHADO, Alex Rolim. Os filhos das Revoluções: a América Latina na Era dos Extremos. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.609-616, dez., 2019.Acessar publicação original [DR]

A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro | Gabriel Amato, Natália Batista e Carolina Dellamore

RC Destaque post 2 11 Pós-abolição

Durante o século XIX, a constituição do ofício de Clio como uma disciplina universitária produziu a necessidade de profissionalizá-lo. A afirmação da História enquanto uma prática científica foi possível por conta de alguns pressupostos, tais como a separação radical entre sujeito e objeto, a primazia dos registros escritos em detrimento das fontes orais e o afastamento das questões do presente. Por conseguinte, os historiadores rejeitaram os acontecimentos recentes, que ainda contavam com partícipes vivos, sob o argumento de que seria preciso manter a escrita da história guiada pelos ditames da objetividade e da imparcialidade, o que implicava no tratamento do passado na condição de alteridade e no estabelecimento da dicotomia entre memória e história.

No entanto, esse descrédito atribuído à memória começou a mudar a partir do final da Segunda Guerra, quando várias obras produzidas a partir de relatos das testemunhas da violência política obtiveram uma enorme atenção por parte da esfera pública. Nesse sentido, a visibilidade conferida à uma dessas manifestações memorialísticas em particular, o testemunho, iniciada a partir da revelação e dos julgamentos dos crimes nazistas, foi impulsionada por conta de eventos que ocorreram quase que simultaneamente: as transições democráticas no Cone Sul e o surgimento das teses negacionistas do Holocausto na Europa.

Por conseguinte, os historiadores não passaram incólumes a esse fenômeno conhecido como boom da memória, que suscitou a “guinada subjetiva”, descrita por Sarlo (2007) como sendo uma mudança epistemológica que ocorreu no interior das ciências humanas: no lugar das estruturas econômicas e sociais, houve a revalorização do ponto de vista subjetivo. Deste modo, a emergência dos relatos amparados em experiências referentes a situações limite, que constituem um “passado vivo” (traz muitas inquietações e desafios para além do momento em que ocorreram) foi crucial para o desenvolvimento do campo da História do Tempo Presente [2].

É justamente nesse contexto de fortes críticas a alguns dos fundamentos da história dita “positivista” ou “tradicional”, que se iniciou uma percepção incisiva de que o cinema detém um potencial enorme para a investigação historiográfica. Desde o seu nascimento, no final do século XIX, a sétima arte consiste em uma testemunha da história e sempre registrou os fatos no “calor do momento”, sendo imprescindível para a compreensão do tempo presente [3]. Dessa maneira, conforme aponta Michèle Lagny (2012) se por um lado o cinema sempre se referiu à história, seja por meio da captura instantânea do que ocorreu, ou seja, pela recriação e romantização do passado em filmes ficcionais; por outro, a história só começou a se interessar tardiamente pelas produções audiovisuais. Essa historiadora francesa também indica que a emergência do estudo do tempo presente e a inclusão das fontes memorialísticas audiovisuais aconteceram simultaneamente no interior do fazer historiográfico. Por conseguinte, pode-se afirmar o seguinte:

[…] a apreensão audiovisual é considerada indiscutivelmente como testemunho porque ela ‘mostra’ o que se passa no momento em que a história acontece. Assim, o cinema revela de imediato um interesse pela história do tempo presente […] É justamente quando, nos anos 60-70, começa a ser formulada a noção de história do tempo presente que certos historiadores acabam, após um período de desprezo pelo audiovisual, percebendo que podem […] servir-se dele para interrogar a forma com que o momento presente é apresentado ou pela qual determinados atores querem que ele seja percebido (LAGNY, 2012, p.24-25)

Nesse sentido, a coletânea A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro, publicada pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e organizada por três jovens pesquisadores, Carolina Dellamore, Natália Batista e Gabriel Amato, contribui substancialmente para os debates em torno dos vínculos que as memórias do nosso último período ditatorial mantém com a linguagem historiográfica e cinematográfica na sua vertente documental.

O livro contém 12 artigos divididos em duas partes (“As batalhas da memória no cinema documentário sobre a ditadura” e “O fazer e o guardar no campo do cinema documentário sobre a ditadura”) além de um prefácio assinado pela professora Miriam Hermeto, do departamento de História da supracitada instituição, e uma espécie de introdução denominada “A Ditadura na Tela: Questões Conceituais”, escrita pelos organizadores. Nessa seção, somos informados que a publicação é fruto de uma iniciativa anterior: o projeto de extensão “A Ditadura na Tela”, parceria entre o Núcleo de História Oral (NHO) dessa universidade, primeiro com o Centro de Referência da Moda e depois no Museu da Imagem e do Som (MIS), por meio do MIS Santa Tereza, ambos localizados na capital mineira. Tal projeto, que começou em 2014 e findou após três anos, ao longo das suas edições, promoveu a exibição de filmes documentais que tratam do regime autoritário iniciado em 1964 e encontros entre o público, cineastas e pesquisadores.

Um mérito desse projeto de extensão, que se traduziu na análise das películas dos artigos que compõem a coletânea, consiste na pluralidade de assuntos tratados em diferentes formatos cinematográficos. Ou seja, em relação à temática, foram escolhidas produções que vão desde o imaginário mais comumente atribuído ao período ditatorial que se refere, muitas vezes, aos jovens, geralmente homens de classe média ou alta, que aderiram ao movimento estudantil e à luta armada até as especificidades de grupos como as mulheres, as populações negras e os LGBT’s, que geralmente não são incluídos na escrita da história ou na memória social sobre a ditadura militar brasileira.

Ademais, os filmes eleitos também demonstraram igualmente uma variedade de formatos, sendo possível identificar filmes com características típicas dos chamados documentários ditos tradicionais, que se caracterizam por uma pretensão de objetividade, pela utilização de uma voz em off que procura tecer comentários distantes dos problemas suscitados pela realidade e pela presença de imagens apenas como ilustração para o que está sendo dito, mas também notamos que foram selecionados documentários com outros tipos de formato, nos quais o entrecruzamento entre as vivências do/a diretor/a e das personagens entrevistadas se torna um elemento central e as próprias fronteiras com o cinema ficcional são diluídas.

Assim, os organizadores afirmam que esses pressupostos permitem concluir que os filmes escolhidos, tanto para fazer parte do projeto de extensão quanto os analisados nos capítulos do livro em questão, se preocupam em valorizar não só a memória da esquerda armada, mas também aquela de outros personagens, isto é, a memória de “gays e lésbicas perseguidos pelo regime e a censura, artistas mais próximos da contracultura, sujeitos invisibilizados pela questão racial, entre outros” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.18). Em suma, através de um formato cinematográfico específico (caracterizado pela voz em off, de entrevistas e de imagens de arquivo) os documentários não apenas reproduzem memórias amplamente exploradas, mas evidenciam a pluralidade dos relatos dos vários grupos afetados pelos mecanismos repressivos. Além disso, também se inserem na luta desses grupos por visibilidade, reconhecimento de seus direitos na atualidade.

Não obstante à essa atenção a novos aspectos e testemunhas, a coletânea contém artigos que tratam de filmes que versam sobre objetos que, na historiografia e na memória coletiva sobre a ditadura, já são consagrados, a exemplo do movimento estudantil. No capítulo “A UNE Somos Nós: A Construção de Uma Memória Social Nostálgica da Resistência à Ditadura no Documentário Memória do Movimento Estudantil”, de Silvio Tendler (2007), Gabriel Amato realiza uma crítica ao filme citado no título. É uma produção idealizada por conta das comemorações dos 70 anos da própria União Nacional dos Estudantes, que é retratada como a unificadora dos embates dos jovens contra o autoritarismo nos anos 1960, apesar da multiplicidade de tendências no movimento estudantil da época. Deste modo, os estudantes seriam símbolos da defesa à democracia e representam o espírito da sociedade que resistiu bravamente aos abusos e desmandos. Entretanto, Amato faz menção aos trabalhos de Daniel Aarão Reis, que ressalta que as relações entre Estado e sociedade foram muito complexas e que não podem se resumir na polarização opressão e resistência. Assim, trata-se de um filme fortemente imbuído de uma memória oficial/institucional.

Nesse sentido, é importante enfatizar quatro capítulos da obra resenhada aqui que discorrem acerca de documentários que evidenciam as vivências de mulheres sob o jugo do regime ditatorial. São eles: “Repare Bem (2012) e as Estratégias de Construção da Memória em Diálogo com o Estado brasileiro: o caso da Comissão da Anistia”, escrito por Juliana Ventura de Souza Fernandes, “Censura, Homossexualidades e Resistências na Narrativa Cinematográfica de Cassandra Rios: a Sarfo de Perdizes (2013)”, assinado por Ana Marília Menezes Carneiro, “Uma Resposta de Vida à Ditadura Militar Brasileira: Memórias Femininas no Filme Que Bom Te Ver Viva (1989)” de Débora Raiza Carolina Rocha Silva e, por fim, “O Ato de Lembrar a Militância sob a Ótica Feminina: O Caso do Documentário Subversivas (2013)”, de Isabel Cristina Leite.

Se, por um lado, esses textos possuem a mesma matéria-prima, por outro lado, eles exploram aspectos distintos referentes a essa mesma temática. O primeiro se debruça sobre o filme Repare Bem, lançado em 2012 e dirigido pela portuguesa Maria de Medeiros, cuja trama focaliza as dores vividas por Denize Chrispim e Eduarda Leite, respectivamente viúva e filha do guerrilheiro Eduardo Collen Leite, assassinado em 1970 e conhecido pela alcunha de Bacuri. Somos apresentados, então, a duas gerações de mulheres atingidas pela perda de um ente querido vitimado pela violência política. Outro ponto a ser sublinhado é o fato de essa produção ser resultado do projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil”, desenvolvido pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Como se pode perceber, é um projeto que exemplifica a chamada “estatização da memória”, que consiste na apropriação por parte do Estado do quê e de como se deve lembrar, o que implica em um discurso oficial que, embora reconheça as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos durante a ditadura e a necessidade de se fomentar iniciativas que tocam nesse assunto sensível, possui demasiadas limitações devido à Lei da Anistia e da suavização, justificação e até mesmo negação das práticas repressivas apresentadas por membros das Forças Armadas, representantes deste mesmo Estado.

Já o segundo texto, escrito por Ana Marília Menezes Carneiro, trata do filme Cassandra Rios: a Safo de Perdizes de 2013, dirigido por Hanna Korich. É uma produção sobre a vida de Cassandra Rios (1932-2002), uma escritora que, desde o final dos anos 1940 até o início dos anos 2000, publicou diversos romances que possuíam como pano de fundo as relações homoafetivas, especialmente entre mulheres. Os livros da escritora obtiveram bastante sucesso no mercado editorial, não obstante o conservadorismo de cunho moral observável tanto em setores à esquerda quanto à direita na sociedade brasileira. Em consequência desses tabus, a liberdade de expressão de Cassandra era constantemente tolhida antes mesmo do golpe de 1964. Entretanto, com a censura prévia de instalada no começo dos anos 1970, houve a sistematização do cerceamento às publicações que se contrapunham à preservação dos bons costumes. A própria escritora chegou a ser submetida a interrogatórios, ameaças e até agressões físicas. Em suma, a obra de Cassandra Rios nos ajuda a complexificar o entendimento acerca da diversidade das práticas censórias e também conferiu “visibilidade à homossexualidade – notadamente a feminina – em contraponto não somente ao conservadorismo proveniente dos órgãos de censura e repressão, mas também presente na militância da esquerda” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.75).

A autora do próximo artigo dessa série, Débora Raiza Carolina Rocha Silva, já o inicia com indagações sobre a possibilidade de se afirmar a existência de uma memória feminina no que tange à resistência à ditadura e, se sim, porque essa memória foi escamoteada e porque ela deve receber visibilidade. A partir desses questionamentos, Débora analisa Que Bom Te Ver Viva, documentário que recolhe depoimentos de oito mulheres que narram o seu engajamento contra a ditadura e como elas lidam com os traumas causados pelo encarceramento e pelas múltiplas torturas, mas também por atitudes machistas e por silenciamentos acerca da atuação de mulheres dentro das organizações de esquerda. Lançado em 1989, este foi um dos filmes pioneiros a retratar o combate ao autoritarismo por parte do cinema durante a redemocratização.

A atriz Irene Ravache, que muitas vezes se dirige diretamente ao telespectador por meio de um monólogo, interpreta um álter ego da diretora, Lúcia Murat, que assim como as suas entrevistadas, também foi uma presa política. O filme em questão ainda apresenta outro aspecto que merece ser acentuado: a sua instigante linguagem cinematográfica que apresenta a forma de um docudrama: uma mescla entre elementos ficcionais, como a presença de uma atriz profissional, e elementos típicos de filmes documentais, como o uso de entrevistas com testemunhas de carne e osso e de imagens de arquivo. Por conseguinte, Que Bom Te Ver Viva não é um representante de uma narrativa tradicional e se aproxima dos documentários performáticos que, de acordo com Nichols (2016), são caracterizados justamente pela predominância das subjetividades e do engajamento do/da cineasta e dos seus entrevistados nos processos históricos.

Por fim, o último texto da coletânea, que busca esmiuçar documentários cuja tônica é a participação de mulheres na luta contra a ditadura, analisa Subversivas: Retratos Femininos de Luta Contra a Ditadura, produzido e dirigido por Fernanda Vidigal e Janaína Patrocínio. O audiovisual aborda a inserção feminina nos movimentos de resistência em Belo Horizonte. Embora esse artigo se refira à atuação de um determinado grupo em uma cidade específica, a autora do artigo, Isabel Cristina Leite, tece reflexões mais amplas, acentuando as relações entre a emergência de se narrar o trauma sofrido pelos sobreviventes e o desejo, expresso no grito de “nunca mais”, de que a exceção e a violência política não retornem: “narrar um trauma tornou-se um desafio e estava relacionado com a necessidade de […] não repetição do passado traumático” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.206).

Uma singularidade deste filme reside no fato de que uma das suas diretoras, Fernanda Vidigal, é filha de João Furtado e Thereza Aurélia (que inclusive é uma das entrevistadas), dois militantes que fizeram parte do grupo Ação Popular, ligado à juventude católica que foi uma das várias organizações de oposição ao regime militar. Sendo assim, tomados em conjunto, os filmes Subversivas, Que Bom Te Ver Viva, Cassandra Rios: a Safo de Perdizes e Repare bem possuem o mérito de se antecipar à historiografia e sobre a memória hegemônica sobre o período, uma vez que tornam públicas as especificidades de gênero da repressão e da resistência.

Outros dois artigos presentes na coletânea que no nosso entendimento são passíveis de destaque são “As Batalhas da Memória da Ditadura em Simonal – Ninguém Sabe O Duro Que Dei” (2009) e “Esquecidos, Celebrados, Geniais: Reconfigurações do Campo Historiográfico a Partir do Documentário Dzi Croquettes” (2009). O primeiro deles discute Ninguém Sabe O Duro Que Dei, de 2009. Esse documentário, produzido a partir da vida Wilson Simonal, que conviveu com a imensa popularidade, mas também com as acusações de que as suas canções seriam “apolíticas” e até mesmo que ele seria um informante do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). No entanto, o autor do capítulo, Bruno Vinícius de Morais argumenta que controvérsias sobre a colaboração ou não do cantor a um dos principais órgãos repressivos à parte, Simonal foi um dos artistas mais engajados na defesa do orgulho negro e do enfrentamento ao racismo, temáticas que atualmente são fundamentais, mas que, naquele período, eram bastante secundárias. Ou seja, a partir da tese sustentada pelo autor, podemos afirmar que assim como as questões de gênero, as pautas relacionadas à igualdade racial também foram escamoteadas e que, portanto, precisam ganhar cada vez mais espaço no cinema e na história.

Já o segundo, escrito por Natália Batista, investiga as possibilidades de análise contidas no documentário Dzi Croquettes, que levou para as telonas a trajetória do grupo de teatro homônimo, que construía espetáculos nos quais o binarismo entre elementos considerados como tipicamente masculinos e femininos era quebrado constantemente, o que levou a uma experimentação que explorava a desconstrução dos padrões dicotômicos de gênero e de sexualidade. Por conseguinte, percebe-se que contrariamente a outras agremiações teatrais do período, que realizava peças com um teor político tradicional, os integrantes do Dzi Croquettes, que embora não fossem alheios a esses debates corriqueiros na esquerda nos anos 1960 e 1970, militavam muito mais por uma revolução nos costumes e pela ruptura com os valores conservadores que desconheciam fronteiras ideológicas.

Se a primeira parte é escrita por historiadoras e historiadores, na segunda, encontramos dois textos de profissionais que lidam diretamente com produções audiovisuais. A cineasta Anita Leandro assina o artigo “Testemunho Filmado e Montagem Direta dos Documentários” que discorre acerca de Retratos de Identificação, de 2014, dirigido por ela e cuja trama é desenvolvida a partir de um conjunto de 60 fotos que mostram quatro presos políticos. Esses materiais provenientes de arquivos dos órgãos de repressão referem-se, sobretudo, ao tipo de imagem que nomeia o filme: fotografias em preto e branco, realizadas no momento da prisão, que registram o prisioneiro, de frente e de perfil, segurando um número de cadastro inserido em uma cartolina pendurada junto ao pescoço. O relato de Anita sobre o seu próprio filme é bastante instigante porque ele nos informa qual foi o método escolhido por ela. Em contraposição à montagem convencional (perceptível tanto em documentários quanto em obras de história oral) que utiliza entrevistas dirigidas àqueles que contam as suas vivências e que geralmente ficam ausentes da edição (no caso do cinema) e da escrita (no caso da historiografia), a diretora subverte esse processo, já que ao invés de recolher depoimentos cujos resultados dependem de perguntas feitas previamente, ela faz com que haja contato com o documento (nesse caso, as fotografias) e assim, a interpretação daquele passado se torne um diálogo entre as testemunhas e os rastros do passado, isto é:

[…] a associação dos arquivos à fala durante as filmagens oferece, tanto ao historiador quanto ao cineasta, a ocasião de observar os efeitos de um encontro entre a testemunha e as marcas do passado […] Esse compartilhamento […] favorece o diálogo entre o passado e presente, sem o qual não há elaboração possível de uma memória […] Contemporâneos um do outro […] testemunhas e documentos se complementam mutuamente (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.222).

Por fim, há ainda o texto “BH Em Movimento: Memórias da Ditadura Militar na Capital de Minas Gerais Presentes no Acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS)”, de Marcella Furtado, que possui como tópico uma breve descrição de um dos lugares onde aconteceu o já citado projeto de extensão, o Museu da Imagem e do Som (MIS) de Belo Horizonte, que possui cerca de 50 mil itens, sendo o maior acervo audiovisual de Minas Gerais. Por conta do tamanho do arquivo, o MIS é muito procurado por pesquisadores, já que lá há o registro fílmico de vários episódios relacionados à ditadura naquela cidade: o movimento pela anistia, greves estudantis, protestos, militares em comemorações e eventos oficiais, dentre outros.

Por fim, esse livro (que possui ainda capítulos que versam sobre documentários com outros assuntos: as relações do futebol com as ditaduras no Brasil e nos outros países do Cone Sul, o movimento operário no ABC Paulista e a Tropicália) por mais que abordem filmes documentais bastante distintos entre si, partem de uma mesma premissa: os/as partícipes do regime ditatorial são múltiplos, e consequentemente, a historiografia deve incorporar essa diversidade de memórias.

Os autores e as autoras dessa coletânea tecem críticas incisivas à noção de que memória e história são antagônicas e ao conceito de memória coletiva que fazem parte do trabalho de Halbwachs (2006): um elemento de tons oficiais no qual todos se identificam e em contraposição a esse conceito, eles evidenciam as memórias subterrâneas, descritas por Pollack (1989) como sendo aquelas pertencentes aos grupos minoritários e silenciados. Então, pode-se afirmar que o livro, através da análise de obras do cinema documentário, sublinha que não é apenas preciso, mas urgente, conferir notoriedade às memórias subterrâneas não só em relação ao aparato repressor, mas também na própria esquerda revolucionária das décadas de 1960 e 1970, cujas perspectivas de ação política não contemplavam devidamente a luta contra a misoginia, o patriarcado, a LGBTfobia e o racismo. Dessa forma, o livro contribui significativamente para pensarmos as relações profícuas que o cinema documental e a historiografia mantêm com as muitas memórias em torno do período ditatorial de 1964 a 1985 que, infelizmente, ainda é um passado doloroso e traumático e que, portanto, coloca muitos desafios para o tempo presente.

Notas

2 De acordo com Seligmann-Silva (2000), depois de Auschwitz, houve a percepção nítida de que a história não deve ser tomada como radicalmente oposta à memória e que o ofício de Clio deve questionar com afinco não só os pressupostos de cunho positivista típicos do século XIX, mas igualmente as noções de temporalidade linear e progressista advindas do Iluminismo. Portanto, diante dessa notável acolhida das manifestações memorialísticas, especialmente àquelas que possuem como pano de fundo experiências dos vitimados durante essas situaçõeslimite, houve a percepção de que seria preciso desenvolver um novo campo historiográfico. Então, em 1978, surgiu na França o Instituto de História do Tempo Presente (IHTP) Conforme aponta Dosse (2012), um dos fundadores do Instituto, François Bédarida, afirmava que a existência deste campo se devia justamente a dois fatores: as fortes críticas às noções positivistas de objetividade e de “verdade” históricas e as mudanças epistemológicas dentro do interior do fazer historiográfico, provocadas pela ascensão da memória. Nesse sentido, conforme apontam Franco e Levín (2007) muitos historiadores afirmam que esse é um campo historiográfico marcado pelos seguintes aspectos: a presença daqueles que vivenciaram um determinado passado e que podem oferecer os seus relatos para o historiador; uma memória social bastante intensa sobre esse passado e a proximidade e até mesmo a coincidência entre o tempo de vida e de atuação do historiador e o tempo alvo da pesquisa.

3 Uma definição sucinta, mas instigante do que seria essa temporalidade é a seguinte: o presente corresponderia a “aquele conjunto de experiências que não se tornaram ainda uma alteridade para nós” (LÜBBE, 2003, p.402 apud MATA; PEREIRA, 2012, p.15). O presente, de acordo com essa acepção, pode ser entendido como sendo a temporalidade na qual as fronteiras entre o passado e o tempo corrente são estreitas. Então, o pretérito não é considerado como “um outro”, uma vez que as suas questões frequentemente irrompem e desafiam as pretensas estabilidade e distância do hoje em relação às insistentes cobranças realizadas pelo ontem.

Referências

AMATO, Gabriel; BATISTA, Natália; DELLAMORE, Carolina. A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018.

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MATA, Sérgio da; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Transformações da Experiência do Tempo e Pluralização do Presente. In: ______; MOLLO, Helena Miranda; ______; VARELLA, Flávia (orgs). Tempo Presente & Usos do Passado. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p.9-30.

NICHOLS, Bill. Introdução Ao Documentário. Trad. de Mônica Sandy Martins. 6ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2016

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, jun. 1989, p.3-15. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2019

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. Trad. de Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A História Como Trauma. In: ______; NESTROVSKI, Arthur. Catástrofe e Representação: Ensaios. São Paulo: Escuta, 2000, p.73-98

Samuel Torres Bueno – Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]


AMATO, Gabriel; BATISTA, Natália; DELLAMORE, Carolina. A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. Resenha de: BUENO, Samuel Torres. Memória, História do Tempo Presente e Cinema: Representações da Ditadura Militar no Gênero Documental. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.617-626, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna | Jacques Rancière

No início dos anos 1970, Hayden White causara grande agitação entre os historiadores ao demonstrar o recurso destes aos procedimentos e elementos poéticos na construção da narrativa e da interpretação histórica (WHITE, 1992). Trinta anos depois, François Hartog evidenciava, a partir de seus regimes de historicidade, não somente outra faceta da historiografia oitocentista, como também, de modo mais geral, da relação da sociedade ocidental com o tempo histórico. De acordo com Hartog (2013), o regime historicista moderno, marcado por uma concepção de tempo futurista, não se limitava às narrativas historiográficas – ia além, perpassando diversas formas de relação social com a temporalidade, inclusive a literatura.

Contemporâneo de White e Hartog, Jacques Rancière, filósofo francês, foi gradativamente afastando-se do marxismo althusseriano [2] – que marcou o início de seu trabalho – até se aproximar, sobretudo nos anos 1990, das discussões em torno da relação entre estética e política, e mesmo entre a ficção e a historiografia. No âmago dessas reflexões, Rancière (2005) identificou a existência, no Ocidente, de três regimes na produção das artes: um regime ético, cuja base é a filosofia platônica; um regime representativo, orientado pela poética aristotélica; e, finalmente, um terceiro regime, o estético, que é propriamente moderno, e cuja origem encontra-se no questionamento e na subversão da poética representativa. Esses regimes implicam não somente concepções e relações poéticas, mas igualmente políticas, uma vez que o filósofo identifica certa indissociabilidade entre essas esferas. Desse modo, esses regimes são fundamentais na compreensão, tanto da composição poética quanto dos seus desdobramentos críticos em sua recepção. As implicações de sua reflexão, no entanto, não se limitam à ficção e à política, permitindo recolocar em questão a relação entre estas e a história, compreendendo sua articulação, especialmente, no momento da constituição da disciplina ou ciência histórica no século XIX.

Em O fio perdido, um conjunto de ensaios sobre a ficção moderna, Rancière percorre, ao longo de três capítulos, diversos nomes consagrados do romance, da poesia e do drama com o intuito de identificar mecanismos e indícios específicos que demarcam em cada obra e em cada segmento a decadência do regime representativo, centrado no modelo orgânico e na lógica da ação, e a emergência do regime estético que caracteriza propriamente essas ficções como modernas.

O primeiro capítulo da obra, O fio perdido do romance, é aberto por um texto sobre Gustave Flaubert, O barômetro da Sra. Aubain. Nele, Rancière tenta dar conta da novidade contida na obra flaubertiana, identificando-a, primeiramente, a partir das críticas tecidas ao romancista. Logo no início do prólogo do livro, o filósofo recorre à sentença de Barbey d’Aurevilly sobre a Educação sentimental: “não há livro ali dentro; não há essa coisa, essa criação, essa obra de arte de um livro, organizado e desenvolvido, que vai em direção a um desfecho” (1869 apud RANCIÈRE, 2017, p.7). A crítica é sintomática, ela evidencia a cisão que o filósofo identifica na obra do romancista. Conforme afirmava Michel de Certeau (1998, p.91-106; p. 266-268), a crítica pertence ao terreno das táticas, consiste em um instrumento de controle, no caso, não somente das leituras, mas também das práticas de escrita literária. Ela demarca, segundo a própria reflexão rancieriana, uma concepção de ficção literária vigente. Nesse caso, trata-se do regime representativo, presente na poética aristotélica, que define a ficção, positivamente, como uma “intriga de saber” que implica na construção poética o estabelecimento de uma ordem temporal (começo, meio e fim), de uma ordem causal regida pela verossimilhança, pela necessidade, pela subordinação dos detalhes e das partes ao conjunto da obra e também por certa proporcionalidade e correspondência entre a descrição, o pensamento e a ação.

Desse modo, para o crítico de Flaubert, sua obra transgredia esses princípios, logo ela era carente de elementos necessários para qualificá-la enquanto ficção. No entanto, para Rancière, não se trata de uma carência, mas sim do efeito da emergência de um novo “paradigma estético”, que não deixa de ser um “novo paradigma da vida”. Nesse sentido, o excesso descritivo presente no romancista – encarnado na presença do barômetro da sra. Aubain, em Um coração simples –, demarcaria não a deficiência de um elemento destoante e desnecessário, muito menos um efeito de real pelo qual Roland Barthes e a crítica estruturalista estipulavam o lugar da descrição inútil e demarcavam a tentativa burguesa de petrificação e naturalização da ordem social, mas um aspecto próprio ao regime estético.

Essa descrição inútil é, para Rancière, primeiramente a recusa à progressão do relato, e consequentemente uma recusa à ação, à submissão das partes – inclusive do detalhe – ao todo, ou seja, ao desfecho, que marca a poética representativa e seu modelo orgânico. A multiplicidade desses detalhes que antecedem ao ato, à ação, também são sintomas da ampliação e da complexificação das relações causais.

No entanto, segundo o autor, a poética aristotélica não é somente uma estrutura de racionalidade, mas “uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível” (RANCIÈRE, 2017, p.21). Em outras palavras, a ordem representativa, na qual a ficção constrói-se como um corpo no qual os membros se submetem a um centro e as ações se ordenam pela necessidade ou pela verossimilhança, é também a metáfora de uma concepção do ordenamento social, segundo a qual os homens dividem-se hierarquicamente entre ativos e passivos. Nessa ordem, os aristocratas são ativos, pois podem conceber grandes fins ou outros fins e buscar sua realização, enquanto os demais – a grande maioria, o povo – são considerados passivos, não por sua inação, mas porque sua ação não pode conceber outro fim senão a mera reprodução da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2017. p. 21). Essa distinção limitava, portanto, o acesso dos passivos à ficção, da qual não eram dignos devido às suas supostas capacidades sensíveis inferiores. É como contraponto a essa “política representativa” que o filósofo propõe sua leitura da obra flaubertiana. Desse modo, não somente o barômetro da sra. Aubain, mas principalmente Emma Bovary, são anunciadores de uma democracia ficcional própria ao regime estético. A presença do barômetro produz um “efeito de igualdade” entre os elementos da ficção, ele não está a serviço do real, nem da ação e muito menos do todo, enquanto Emma marca a igualdade sensível de todos: “a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas” (RANCIÈRE, 2017, p.19). Essa afirmação da capacidade sensível dos anônimos proporciona, de acordo com Rancière, um poder de desidentificação em relação à velha ordem representativa que articulava posições sociais, identidades e capacidades sensíveis. No entanto, esse poder dos anônimos é deles afastado para forjar o “poder impessoal da escrita” (RANCIÈRE, 2017, p.33). Dessa forma, segundo o autor, Flaubert incorpora em sua escrita o poder da “igualdade sensível dos anônimos” e dos “estados sensíveis coexistentes”, mas acaba por submetê-los à “velha lógica da ação” (RANCIÈRE, 2017, p.37).

No texto seguinte, A mentira de Marlow, dedicado à obra de Joseph Conrad, Rancière observa a radicalização desse novo regime da ficção. Se a obra flaubertiana evidenciava a debilidade dos encadeamentos causais orientados pelo necessário e pelo verossímil, próprios a uma concepção orgânica de totalidade (ta katholou), mas também subordinava a ordem das sucessões (kath’hekaston) e das coexistências ao curso de uma intriga ainda causal, os romances de Conrad recusam totalmente qualquer controle que tente se impor à verdade da ficção – que é também a verdade da vida –, ou seja, à ausência de qualquer ordem ou qualquer sentido.

Consequentemente, na obra de Conrad, a ordem que orienta a composição das ficções advém do kath’hekaston, não tomado como mera sucessão de fatos da vida cotidiana, mas como uma ordem das coexistências que não pode ser reduzida a qualquer ordenamento. Uma temporalidade das coexistências substitui, portanto, os encadeamentos possíveis. Mas não somente isso, para Rancière, o ceticismo do romancista inglês conduz a uma indistinção entre a ficção e o real, de modo que este real passa a englobar tudo, inclusive a ficção e o sonho. Dessa concepção ampliada do real decorre a destruição da verossimilhança, e toda a lógica da ação tradicional torna-se o indício de uma mentira. Mentira não somente sobre a ficção, mas principalmente sobre a própria vida.

Por conseguinte, de acordo com o filósofo francês, a narrativa de Conrad compõe-se, contrariamente à escrita de Flaubert, de modo a ampliar os círculos das coexistências, revelando-as e evidenciando a tirania mentirosa das intrigas bem construídas. Portanto, a ficção não deve mostrar a progressão rumo a um desfecho, mas tão somente esse “meio sensível” que é a própria vida, cuja única temporalidade é o presente, um presente que engloba tanto resquícios do passado quanto antecipações do futuro. Ela torna-se, desse modo, palco “de um encontro aleatório e inevitável entre um ser de desejo e de quimera, e uma realidade cuja síntese escapa a qualquer cálculo das causas e dos efeitos” (RANCIÈRE, 2017, p.54).

Contudo, Rancière indica que essa temporalidade das coexistências que recusa qualquer sentido, controle ou finalidade encontra certos limites impostos pela ficção. Um deles é o “fim”. Desse modo, se a mentira dos inícios é contornada por Conrad ao iniciar suas ficções com algum equívoco ou acaso desdobrando-o, a necessidade do ponto final, sempre mentiroso, não faz o romancista recuar em sua convicção. Pelo contrário, para o filósofo, os fins das ficções do capitão Conrad sempre reafirmam sua concepção mesmo quando mentirosos. Esses artifícios para encerrar o livro são basicamente dois: o recurso a um deus ex machina ou à mentira necessária (como no caso de O coração das trevas) que deixam transparecer, no entanto, a verdade da ficção.

O último texto do primeiro capítulo do livro aqui resenhado, A morte de Prue Ramsay, analisa a obra de Virginia Woolf. A romancista partiria, segundo a leitura rancieriana, dos mesmos pressupostos de Conrad. Dessa forma, a imagem que lhe traduz a verdade da vida e, conseguintemente da própria ficção, é a da “chuva sempre cambiante de acontecimentos sensíveis” e impessoais (RANCIÈRE, 2017, p.39). A verossimilhança e a necessidade não podem, portanto, regular a ficção, pois tanto a vida quanto a ficção pertencem à ordem do kath’hekaston (entendido como coexistência). Consequentemente, a intriga torna-se, para Woolf, uma tirania, que pode ser: paterna, em sua forma clássica; ou materna, em sua forma contemporânea, aquela que “ordena a grande rede das coexistências” e reduz a “chuva anárquica dos átomos às pequenas coisas e aos pequenos milagres da vida cotidiana” (RANCIÈRE, 2017, p.60).

Entretanto, o autor observa que a forma desta “chuva anárquica de átomos” é incompatível com a forma narrativa da ficção que precisa de uma mínima organização de ações. Nesse caso, a saída encontrada nos romances de Woolf consiste na prática de instaurar no próprio romance a “tensão entre várias maneiras de inscrever a chuva de átomos” (RANCIÈRE, 2017, p.64). Nessa prática, o filósofo distingue dois procedimentos complementares: por um lado, a multiplicação, pela qual se ampliam as redes das coexistências que conservam sua autonomia escapando a tirania de uma intriga que busca apropriar-se dessa multiplicidade; por outro lado, opera-se uma divisão, pela qual se separa a multiplicidade que evidencia o amor e a vida universais dos “prazeres conhecidos e das virtudes familiares” (RANCIÈRE, 2017, p.69) que compõem a tirania materna da intriga, mas também do equívoco dos que confundem toda multiplicidade da vida impessoal com mensagem individual, apropriando-se dela e submetendo-a a qualquer pessoalidade. Septimus Warren Smith, personagem de Mrs. Dalloway, vítima dessa segunda indistinção que se torna loucura, é também, aos olhos do filósofo, uma figura essencial da nova ficção, pois seu sacrifício resolve a “relação entre a verdade da chuva de átomos e a lógica mentirosa das intrigas” (RANCIÈRE, 2017, p.72), e impede igualmente que “o halo luminoso da vida universal” seja confundido com as “aspirações pessoais dos filhos do povo semieducados” (RANCIÈRE, 2017, p.74).

O segundo capítulo do livro, A República dos poetas, é composto por dois textos. O primeiro deles, O trabalho da aranha, é dedicado à obra de John Keats. Keats encarna, aos olhos de Rancière, uma das novidades do regime estético, pois ele é antes de tudo, como Emma e Septimus, um “filho do povo” que, no entanto, recusa a posição e a identidade que, de acordo com a ordem clássica, o nascimento lhe impunha. Contudo, a política de sua poesia, conforme assinala o filósofo, não se encontra na articulação do poema com as agitações sociais, os posicionamentos políticos, ou em seu sentido, mas em uma “identidade dos contrários” (RANCIÈRE, 2017, p.81).

Essa identidade dos contrários não os relaciona como “antípodas”, mas como “equivalentes”. Ela subverte a lógica da ação tradicional ao equiparar a atividade com a passividade, mais precisamente, ao fazer perceber na ação o seu contrário, a passividade, e nesta última um caráter ativo, liberto, no entanto, da necessidade dos fins ou da função utilitária que caracteriza a ação na ordem clássica. Essa subversão é observada por Rancière na “negative capability” forjada por Keats, a qual consiste em uma “‘capacidade de não’: não buscar uma razão […], não concluir, não decidir, não impor” (RANCIÈRE, 2017, p.85). Tal recusa à determinação é uma marca da própria estética e sua disponibilidade a todos destrói a “diferença sensível entre duas humanidades”, aquelas que orientavam o regime representativo e a “distribuição dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.86).

Na leitura rancieriana, essa identidade é produzida pelo estabelecimento de três formas de comunidade: a primeira é aquela estabelecida “entre os elementos tecidos pelos poemas: as palavras e a presenças que elas suscitam”; a segunda comunidade se constitui “entre os poemas e outros poemas: os que o poeta escreve e os que ele não escreveu”; a terceira forma de comunidade é “aquela que o modo de comunicação sensível próprio do poema projeta como possível comunicação entre os humanos”. A política do poema consiste, portanto, na “configuração de um sensorium específico que mantém juntas essas três comunidades” (RANCIÈRE, 2017, p.81-82).

Desse modo, a imagem que define, em grande medida, a interpretação que Rancière faz de Keats é da teia de aranha, pois ela pressupõe uma igualdade horizontal, a qual desconhecia qualquer superioridade, e que se opunha, a seu tempo, à igualdade vertical ou cristã, proclamada por Willian Wordsworth, que a reconhecia como concessão ou presença divina comum, o que evidenciaria, segundo Rancière, uma superioridade do poeta que a proclama. A igualdade da teia liberta, dessa forma, as sensações de qualquer identificação pessoal e faz da obra poética uma disponibilidade acessível a cada um, pela igualdade sensível, para integrar suas teias.

O outro texto desse segundo capítulo, O gosto infinito pela República, é dedicado a Baudelaire. A expressão que dá título ao ensaio, tomada do próprio poeta que a utiliza para caracterizar a obra de Pierre Dupont, serve igualmente a Rancière para caracterizar uma categoria estética ou uma política estética presente na obra baudelairiana, que marca a participação de todos na Vida Universal, esta compreendida como um poder que perpassa e iguala a todos.

Entretanto, para compreender esse “republicanismo estético” é preciso, afirma o filósofo, distanciar-se da “interpretação benjaminiana”, demasiadamente centrada no “dado antropológico constitutivo da modernidade: o da perda da experiência, produzida pela reificação mercantil e pelo encontro da cidade grande e da multidão” (RANCIÈRE, 2017, p.103). Desse modo, essa interpretação que percebia nos escritos do poeta a substituição do modelo orgânico por um modelo inorgânico é incapaz de perceber a novidade contida em sua obra ou, mais precisamente, o “tecido estético” dentro do qual esse republicanismo ganha sentido.

Para apresentar esse “paradigma poético” da época, Rancière analisa os temas do heroísmo e da beleza modernos. O que ambos evidenciam e que permeia toda a época romântica é a falência da ação, da ação como modo de pensamento e racionalidade que normatiza os “comportamentos sociais legítimos” e a “composição das ficções” (RANCIÈRE, 2017, p.108). Essa falência é, para o filósofo, fruto do excesso, da ampliação e complexificação do mundo e do conhecimento, pois a ação demandaria “um mundo finito”, “um saber circunscrito”, “causalidades calculáveis” e “atores selecionados” (RANCIÈRE, 2017, p.108). A leitura rancieriana de Baudelaire é, consequentemente, tributária de Balzac, pois seria dele que o poeta teria tomado não somente a característica da beleza moderna, ou seja, o “flutuante”, a fugacidade, mas, sobretudo, a percepção do divórcio entre o saber e a ação. Em outras palavras, desde Balzac o mundo social perdera-se gradativamente em “infinitas ramificações”, e o tema perdera-se, igualmente, em uma “rede infinita de sensações” (RANCIÈRE, 2017, p.111-112), tornando o tecido sensível incompatível com a ação clássica. Essa ampliação também produziria um efeito de desidentificação, positivado pelo filósofo. A multidão, portanto, não igualaria a todos, mas, pelo contrário, o olhar sobre ela abrir-se-ia para a sua multiplicidade.

No último capítulo de O fio perdido, O teatro dos pensamentos, Rancière analisa a relação entre “o pensamento, a palavra e a ação no teatro moderno” (RANCIÈRE, 2017, p.123) ou, mais precisamente, no chamado teatro popular. Sua análise parte do diagnóstico, dado por Barthes, de “aburguesamento” do Théâtre National Populaire (TNP), de Jean Villar, sobretudo pela atuação de Gérard Philippe, seu maior astro nos anos 1950, para retomar a longa história do teatro moderno.

O primeiro protótipo do teatro popular é encontrado por Rancière no princípio do “palco aberto”, formulado por Victor Hugo. Este consistiria não somente na destruição das convenções ligadas aos gêneros, mas na “mistura de tudo” como na vida, “um igualitarismo radical” (RANCIÈRE, 2017, p.126). Esse palco aberto ao povo celebrava, no entanto, algo maior que ele. Celebrava, segundo tal leitura, a vida universal que ultrapassa todas as individualidades, constituindo uma dramaturgia da coexistência.

Porém, a reflexão de Hugo detém-se aí. O teatro representa, contudo, não apenas uma metáfora do ordenamento social, mas é também uma metáfora do pensamento, afirma o filósofo. Nesse sentido, duas imagens governaram historicamente a relação entre pensamento e teatro: uma negativa ou platônica opõe um ao outro, fazendo do teatro o reino da imagem, da mentira do poeta e do ator, da ilusão e da passividade, do excesso e da paixão, o contrário do pensamento; e há uma imagem positiva, a aristotélica, que faz do teatro uma “intriga de saber”, um “modelo de racionalidade”, ou do “pensamento em ato”, no qual “o espaço visível da representação é dado como o lugar de efetuação de um esquema” e a palavra adere e expressa o pensamento, controlado por uma vontade, anunciando o ato (RANCIÈRE, 2017, p.128-29). A subversão da segunda imagem dessa relação é encontrada por Rancière nos trabalhos de George Büchner. Em sua obra o modelo orgânico é substituído por um modelo vivo, resultado de uma nova concepção do meio da ficção, não mais entendido como intervalo entre um início e um fim, mas como uma rede infinita que ultrapassa qualquer forma de unidade, seja a do organismo seja a da ação.

O pensamento torna-se desse modo, sinônimo do excesso, afirma o filósofo. Suas operações infinitas excedem o corpo, a palavra, o gesto e o ato, e a sua origem e fim imprecisos impedem que qualquer vontade possa controlá-lo. Isso não significa que ele não age, mas que o modelo de sua ação verdadeira, aquele que desconhece suas origens e fins, opõe-se à forma da ação racional controlada do modelo aristotélico, e a sua nova forma será, pelo contrário, a do sonho ou do sonambulismo. Essa nova imagem do pensamento faz da imagem aristotélica do teatro como “intriga de saber” uma mentira, um equívoco sobre a natureza, a forma e a origem do pensamento, bem como sobre o modo como ele ganha corpo e age.

Como consequência dessa nova concepção do pensamento no palco, Rancière observa o surgimento de uma “arte da direção” que compreende duas modalidades: a primeira, presente nas reflexões de Maurice Maeterlinck, faz da direção a “arte da disposição das palavras no espaço” (RANCIÈRE, 2017, p.142), atribuindo à palavra não uma função de anunciar o pensamento ou o ato, mas de evidenciar o meio sensível, o “fora-do-espaço”, que é o lugar desse pensamento tomado como excesso. Ela demarca, dessa forma, a distância entre o verdadeiro pensamento e as pretensões da intriga clássica. Asegunda modalidade é proveniente, entre outros trabalhos, das atuações de Jean-Gaspard Deburau no Théâtre dês Funambules, e “consiste em bordar na trama ficcional das causas e efeitos um cenário de pura atuação”, uma atuação que consiste não na representação, mas na pura ação dos corpos (RANCIÈRE, 2017, p.144-45).

O teatro moderno que culmina no TNP é, portanto, marcado por essa disjunção entre o pensamento, caracterizado pelo excesso, a palavra, cuja função é evidenciar a distância que marca o meio seio sensível do palco, e o ato, tomado como pura atuação dos corpos. Para Rancière, essa longa história é ignorada no juízo de Barthes, que toma por base a oposição brechtiana entre um teatro da identificação e um teatro do distanciamento, pela qual Brecht buscava restabelecer o vínculo entre o prazer estético e o saber necessário para a ação revolucionária. Essa oposição omite essa história, pois, como concepção “revolucionária”, ela busca restabelecer a velha lógica da ação em crise desde o século XVIII. Desse modo, a “questão pela qual a política está ligada ao teatro não é saber como sair do sonho para agir na vida real; é a de decidir o que é o sonho e o que é a vida real” (RANCIÈRE, 2017, p.149).

Embora O fio perdido de Rancière consista em um livro dedicado à ficção, sua leitura inquietante não se limita aos interesses do crítico literário ou do ficcionista, indo além desses limites. Ao reconhecer, como White, que a constituição da História, e mesmo, das Ciências Sociais, enquanto saberes e disciplinas modernas ou ciências é tributária do modelo da poética tradicional, centrado na lógica da ação e da intriga causal, e que a própria poética representativa é igualmente uma concepção de comunidade ou de um ordenamento social, Rancière fornece novos elementos para a compreensão de aspectos que permeiam a constituição do campo de trabalho e das práticas dos historiadores. Desse modo, cabe também questionar, a partir desses indícios da falência da ação e desses deslocamentos nas práticas da escrita ficcional, suas possíveis consequências no campo da historiografia e das ciências da sociedade.

É intrigante, igualmente, refletirmos acerca dos contrastes entre, de um lado, essa emergência de um regime estético na ficção desde o final do século XVIII, identificada nesse conjunto de ensaios de Rancière, cuja marca fundamental consiste em uma crescente abertura, pluralização ou multiplicação heterogênea do social, da noção de acontecimento e de pensamento, e do próprio vínculo entre pensamento, palavra e ação. Por outro lado, no que tange à historiografia, mas também à ampla parcela do pensamento filosófico, sociológico e antropológico, observamos, nesse mesmo período, um crescente processo de unificação, homogeneização e hierarquização da temporalidade histórica e do conjunto dos recursos conceituais de análise histórica, sociológica e antropológica. Portanto, trata-se de uma leitura fundamental, pois implica um conjunto de problemas cruciais às ciências humanas tanto em sua origem quanto na contemporaneidade.

Nota

2 Rancière participou inclusive do primeiro volume da obra Ler O capital, coordenada por Louis Althusser (1979).

Referências

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Cássio Guilherme Barbieri – Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humana da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Graduado em História pela UFFS – Campus Chapecó. É membro do Laboratório Escrita, Memória e Arte (LEMA) e do Grupo de Estudos Teoria da História, ambos vinculados ao Curso de História da UFFS. E-mail: [email protected]


RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017. Resenha de: BARBIERI, Cássio Guilherme. Estética, política e historiografia: indícios da emergência do regime estético na ficção moderna. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.627-636, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Proteção de dados pessoais e acesso à informação / Revista do Arquivo / 2019

LGPD, instituições públicas e profissionais de arquivo: uma reflexão necessária

No dia 14 de agosto de 2018, é sancionada a Lei no 13.709 que regulamenta a proteção de dados pessoais no território nacional. Um primeiro ponto que deve ser destacado é que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) traz como principal avanço não apenas a delimitação de direitos e de obrigações daqueles que efetuam tratamento de dados pessoais, como também, e principalmente, o empoderamento do indivíduo em relação aos dados capazes de identificá-lo ou discriminá-lo no que pertine a fornecedores de bens e serviços, independente da natureza jurídica do controlador dos dados. Com isso, ele deixa de ser cliente ou um mero registro em um banco de dados controlador e passa a ser reconhecido como titular dos dados e detentor de direitos sobre os mesmos.

Da mesma forma que a Lei no 12.527, de 11 de novembro de 2011, estabelece importantes diretrizes para assegurar o direito de acesso à informação aos documentos públicos, direito já previsto no art. 5º da Constituição Federal de 1988, inciso XXXIII, a LGPD regulamenta outro direito fundamental, o de inviolabilidade da intimidade e da vida privada, previsto no inciso X do mesmo artigo constitucional. Além disso, estende o direito de acesso às informações a seu respeito existentes nos arquivos e bancos de dados de fornecedores de bens ou serviços, independente de sua natureza pública ou privada.

Porém, diversamente da LAI, que ensejou uma diversidade de debates nos arquivos em torno de sua aplicabilidade, a LGPD não vem recebendo a mesma atenção da comunidade arquivística ou mesmo das instituições públicas. De fato, o que se observa, decorridos mais de doze meses de sua edição, é que o tema está restrito aos escritórios de advocacia, a institutos de certificação e aos fornecedores de ferramentas tecnológicas. Estes vêm encontrando um nicho de mercado descortinado com a ameaça de multas que podem atingir a astronômica quantia de R$ 50 milhões, valor provavelmente inimaginável para o ambiente dos arquivos, mas que serve como mecanismo propulsor para outros seguimentos.

O que se identifica em comum entre os nichos e agentes fomentadores de discussão da LAI e da LGPD é que ambos parecem ignorar que tanto o acesso à informação quanto a proteção da privacidade individual dependem de um processo minucioso e detalhado de identificação, classificação e avaliação, funções arquivísticas que estabelecem normas e padrões para produção, controle de acesso, de circulação, de acumulação e de uso de documentos – e isso inclui, por óbvio, dados e informações neles contidos – independente de seu suporte.

É importante enfatizar que a LGPD estabelece diversos princípios a serem observados, dentre os quais se destacam: finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, qualidade, transparência, responsabilização e prestação de contas. Tais princípios asseguram, de um lado, o direito do titular dos dados à consulta, à exatidão e à obtenção de informações acerca dos agentes, das hipóteses de compartilhamento, e das formas de tratamento, que envolve coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração. Restringem também, de outro lado, fornecedores de bens ou de serviços ao tratamento mínimo dos dados necessários à sua finalidade, responsabilizando-os e obrigando-os a adotar medidas eficazes de observância e cumprimento das normas de proteção de dados pessoais.

Ao se refletir acerca do direito do titular dos dados à transparência e à consulta facilitada e gratuita quanto à forma e duração e quanto à integralidade de seus dados, vem à mente o direito já assegurado ao indivíduo de “[…] receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, contidas em documentos de arquivos” (BRASIL, 1991, p. 1). Isso permite concluir que a transparência prevista na LAI, mas que já estava inserida na Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, deve também ser observada pelos fornecedores de bens ou serviços, que estão agora obrigados a prestar contas ao titular dos dados quanto à totalidade do que detêm a seu respeito e a atendê-lo quando lhe for solicitada a sua exclusão ou portabilidade.

Outra associação rápida que se pode fazer entre a LGPD e a Lei de Arquivos é que a finalidade de tratamento, com respeito a propósitos legítimos e específicos para isto, guarda estreita relação com o conceito de arquivos que são os

[…] documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos (BRASIL, 1991, p. 1, grifo nosso).

Essa vinculação é importante para se ter em mente que os dados que são produzidos ou recebidos em decorrência do exercício de atividades específicas do fornecedor de bens ou prestador de serviços dispensam o consentimento mencionado no art. 7º, I, da LGPD, para que se possa efetuar seu tratamento, pelo simples fato de que esses dados comprovam uma atividade própria de um organismo. E essa justificativa autoriza, inclusive, que se possa invocar o legítimo interesse do controlador para manter dados para apoio ou promoção de suas atividades ou até mesmo para o exercício regular de direitos em relação ao titular dos dados.

A conexão de preceitos estabelecidos nas Leis de Arquivo, LAI e LGPD busca destacar dois pontos centrais relevantes em relação ao tema privacidade e proteção de dados:

  1. que as instituições públicas deveriam fomentar mais discussões, uma vez que a LGPD dilata a abrangência da LAI e estabelece critérios que podem interferir nas atividades de gestão de documentos da administração pública, como é o caso do pedido do titular de exclusão e o de acesso a informações quanto a todos os tratamentos efetuados com seus dados;
  2. que os profissionais de arquivo precisam estar mais engajados em relação ao tema, já que, (1) como ressaltado por Jardim (2019, p. 12), “[…] o arquivista é inevitavelmente um gestor de um determinado tipo de recurso vital às organizações: as informações registradas nos documentos que derivam das suas ações”. Além disso, (2) é com base em seus conhecimentos específicos, como o estudo da gênese documental, da diplomática contemporânea e da tipologia documental, que se pode delimitar com precisão a legítima necessidade e adequação do tratamento de dados pelo controlador.

Os dois pontos enfatizados acima se tornam ainda mais relevantes quando se compreende que a diplomática é capaz de auxiliar na identificação da estrutura formal do documento, estabelecendo os dados necessários à construção de um registro de um determinado fato. Além disso, a tipologia documental leva em conta os procedimentos realizados dentro de um conjunto documental que disponha ou que cumpra uma mesma função para verificação de sua autenticidade. Com efeito,

Desde sua gênese, o documento, considerando-se aqui sobretudo o documento público e, mais, o diplomático, é reconhecível por sua proveniência, categoria, espécie e tipo. A gênese documental está no ‘algo a determinar, a provar, a cumprir’, dentro de determinado setor de determinado órgão público ou organização privada. (BELLOTTO, 2006, p. 57).

Partindo-se dessa premissa, resta cristalina a importância de o profissional de arquivo se inserir na discussão acerca das ações necessárias para garantir a privacidade e proteção de dados pessoais. É ele quem possui os conhecimentos necessários para identificar os elementos intrínsecos de um documento diplomático e que se constitui de dados estruturados de forma significante e pré-estabelecida, para que sirva como prova de ação de um determinado fato. Além disso, é ele também quem possui embasamento teórico e prático capazes de promover a identificação, classificação e avaliação de documentos que irão afetar no tratamento de dados e informações neles contidos. Sem minimizar a relevância dos advogados, que atuam como intérpretes da Lei e na elaboração de normativas para seus órgãos ou seus clientes, e também dos profissionais da área de TI, que descortinam um diversificado repertório de ferramentas adequadas a diferentes ambientes digitais, o certo é que a base obtida pelo profissional de arquivo e o conhecimento contido nas instituições arquivísticas são essenciais para o diagnóstico de um ambiente organizacional sob o aspecto informacional e para proposição de medidas capazes de, simultaneamente, fornecerem proteção aos dados pessoais e também assegurarem o legítimo tratamento de dados pessoais pelo controlador ou operador de dados.

Daí a importância de uma publicação como a presente, que propicia oportunidades para discussões ao redor de um tema tão atual e desafiador. Estão de parabéns a Revista do Arquivo e o Arquivo Público do Estado de São Paulo pela iniciativa!

Referências

BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2002. 120 p.

BRASIL. Lei n. 8159 de 9 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial da União. 29, n.6, p.455, jan. 1991, Seção I.

JARDIM, José Maria. Governança arquivística: um território a ser explorado. Revista do Arquivo, ano 4, v. 7, out. 2018.

Lenora de Beaurepaire da Silva Schwaitzer – Doutora em História, Políticas e Bens Culturais, arquivista, bibliotecária, bacharel em Direito e professora Assistente da Universidade Federal Fluminense.


SCHWAITZER, Lenora de Beaurepaire da Silva. Introdução. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano V, n.9, outubro, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Concebendo a liberdade / Camillia Cowling

O livro de Camillia Cowling publicado nos Estados Unidos, em 2013, e recentemente traduzido para o português já se constitui uma leitura obrigatória para historiadoras, historiadores e demais pessoas interessadas em conhecer aspectos da luta de pessoas escravizadas na Diáspora. Em Concebendo a liberdade a autora apresentou uma pesquisa comparativa entre Havana (Cuba) e Rio de Janeiro (Brasil) na qual “mulheres de cor” apareciam na linha de frente da luta por liberdade legal para elas próprias e suas crianças nas décadas de 1870 e 1880.

Ao prefaciar a obra Sidney Chalhoub foi muito feliz ao lembrar a acolhida que o livro de Rebeca Scott a Emancipação Escrava em Cuba teve no Brasil, ainda na década de 1980, evidenciando o interesse do público brasileiro em saber mais sobre este processo em Cuba, colônia Espanhola que assim como o Brasil e Porto Rico foi um dos últimos redutos da escravidão nas Américas.

Mais de três décadas desde a tradução do livro de Scott, a pesquisa de Cowling chegou ao Brasil em um momento que embora já possamos contar com vários estudos de referência para o conhecimento a respeito da escravidão e da liberdade muitos lacunas ainda estão por serem preenchidas, a exemplo, das especificidades da experiência das mulheres – escravizadas, libertas e “livres cor”.

Felizmente, o alerta das feministas negras, especialmente a partir da década de 1980 de que as mulheres negras tinham um jeito específico de estar no mundo ganhou novo impulso nos últimos anos, notadamente, devido ao processo que resultou na Primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, ocorrida no Brasil, em 2015, cujos desdobramentos já podem ser percebidos na sociedade brasileira e tem inspirado pesquisadoras e pesquisadores no desafio de reconstituir esse passado.

Inserida no campo da história social e utilizando uma escala de tempo pequena para descortinar a agência feminina negra, Cowling esteve atenta também para questões mais amplas do período investigado como às conexões atlânticas entre Cuba e Brasil no contexto da “segunda escravidão”. Isso permite que a leitora e o leitor possam notar que embora tivessem optado por um processo de abolição gradual da escravidão ambos vivenciaram processos paralelos e distintos um do outro.

A obra foi dividida em três partes e subdividido em 8 capítulos. Neste texto destaco alguns aspectos, dentre vários outros, que chamaram minha atenção de maneira especial. Primeiramente, saliento que Cowling conseguiu remontar o itinerário de duas libertas tornado visíveis as marcas deixadas por elas tanto em Havana como no Rio de Janeiro, de modo que personagens tradicionalmente invisibilizadas pela documentação e, até mesmo, pela historiografia tiveram seu ponto de vista descortinado nas páginas de seu livro.

Os fragmentos da experiência de Romana Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes remontados pela autora é a demonstração de um esforço investigativo de fôlego e bem sucedido. As questões levantadas e o exercício de imaginação histórica da pesquisadora tornaram possíveis que a partir do ponto de vista dessas mulheres possamos saber como pensavam várias outras de seu tempo e compreender os sentidos de suas escolhas, bem como daquelas feitas por seus familiares, escrivães, curadores e integrantes do movimento abolicionista.

A liberta Romana que comprara a própria liberdade um ano antes de migrar para Havana, em 1883, encaminhou uma petição dirigida ao governo-geral de Cuba reivindicando a liberdade de suas 4 crianças, María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves que estavam em poder de seu ex-senhor, Manuel Oliva. Quase um ano depois, foi a vez da liberta Josepha dar início a uma ação de liberdade na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de retirar sua filha, Maria, ingênua, com apenas 10 anos, do domínio de seus ex-senhores José Gonçalves de Pinho e sua esposa, Maria Amélia da Silva Pinho.

Assim como outras tantas pessoas, Romana e Josepha eram migrantes que a despeito das dificuldades das cidades, usaram a seu favor as possibilidades que as mesmas ofereciam na busca pela liberdade, além disso, como ressaltou a autora as chances de uma pessoa escravizada conseguir a liberdade morando nas áreas urbanas eram maiores do que aquelas que moravam nas áreas rurais.

De acordo com Cowling as duas libertas se apegaram as brechas da lei e fizeram omesmo tipo de alegação para contestar a legitimidade do domínio senhorial. EnquantoRomana declarou que sua filha era vítima de negligência e abuso sexual, Josepha alegou que suas crianças não estavam recebendo educação. Foi com base nessas denúncias que os senhores foram acusados de maus tratos, o que implicava na perda do domínio sobre as mencionadas crianças, conforme a legislação de Cuba e do Brasil respectivamente determinava.

No livro de Cowling, a leitora e o leitor interessado no tema pode verificar que as perguntas feitas a documentos como petições, ações judiciais, correspondências, jornais, obras literárias, imagens e legislação explicitam que as mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor” sempre estiveram no centro da luta por liberdade legal. Isso porque as noções de gênero foram determinantes para o modo como elas vivenciaram a escravidão e consequentemente influenciaram em suas escolhas na luta pela conquista da manumissão. Além disso, especialmente nas décadas de 1870 e 1880, elas que sempre estiveram na linha de frente das disputas judiciais foram colocadas ainda mais no centro do processo da abolição gradual da escravidão.

As Romanas e as Josephas foram muitas nas duas cidades portuárias investigadas pela autora e com o objetivo de conseguir a própria liberdade e de suas crianças, elas se apegaram a argumentos legais tomando como base a legislação, como a Lei Moret de 1870 e a Lei do Patronato de 1880, em Cuba; e a Lei do Ventre Livre de 1871, no Brasil, mas também se apegaram a argumentos extralegais baseados em valores culturais como o“sagrado” direito a maternidade, apelando para piedade e a caridade das autoridadespara os quais levaram suas demandas de liberdade para serem julgadas.

Para Cowling, sobretudo, a retórica da maternidade era tão forte que era utilizada tanto por mulheres ao reivindicarem a liberdade de suas filhas e filhos como nos casos em que eram os filhos que buscavam libertar suas mães, e mesmo, nos casos em que os pais apareceram junto com as mães tentando libertar suas crianças, a opção era por colocar a maternidade no centro.

Não poderia deixar de trazer para este texto aquele que a meu ver é um dos pontos mais fortes da obra. Trata-se da opção da autora de enfrentar o tema da violência sexual contra “mulheres de cor”, aspecto da vida de muitas dessas personagens, ainda pouco explorado pela historiografia brasileira, seja devido ao sub-registro dessa violência na documentação disponível que era escrita em sua maioria por homens da elite e autoridades muitos dos quais também proprietários de cativas, seja devido à própria tradição de priorizar outros aspectos da experiência das pessoas.

Para a autora a tradição de violar o corpo de “mulheres de cor” era naturalizada entre os senhores e os homens da lei tanto que os primeiros não viam qualquer impedimento à prática de estuprá-las. Por isso mesmo, a falta de proteção extrapolava a condição de cativas e nem mesmo a liberdade legal era garantia de proteção ou reparação contra aqueles que as forçassem a ter relações sexuais com eles ou com outros (muitas escravizadas eram forçadas a prostituição por suas proprietárias e proprietários).

No entanto, se por um lado, ao se depararem com denúncias de violência sexual as autoridades geralmente posicionavam-se a favor dos agressores, inclusive responsabilizando as próprias “mulheres de cor”, prática que tinha a ver com a imagem que esses homens de maneira geral faziam desse grupo social considerado por eles como lascívias e corruptoras das famílias da elite. Por outro, ao procurar à justiça para denunciar a violência sexual elas explicitavam sua própria compreensão sobre si mesmas. Ao fazer isso Romana e várias outras estavam dizendo que acreditavam ter conquistado para si e para suas filhas o direito de poder dizer não para um homem com quem não quisessem fazer sexo.

Cheguei ao epílogo da obra convencida por Cowling de que embora Romana e Josepha tenham vivido em lugares diferentes e nem se quer se conhecessem, caso tivessem tido a oportunidade de se encontrar naqueles anos cruciais de suas vidas, elas teriam muito que conversar. Inevitavelmente suspeito ainda que várias mulheres negras do século XXI que tiverem acesso as minúcias do itinerário das personagens trazidas no trabalho terão a sensação de que também poderiam participar da conversa.

Por fim, acredito que as questões levantadas ao longo da obra sob vários aspectos servirão de inspiração para historiadoras e historiadores empenhados na reconstituição tanto quanto possível da vida de mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor”, bem como de seus familiares e das pessoas com as quais elas se aliaram na construção de outros tantos processos coletivos de luta por liberdade legal.

Karine Teixeira Damasceno – Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (PUC-Rio), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).


COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Tradução: Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas: UNICAMP, 2018. 440p.. Resenha de: DAMASCENO Karine Teixeira. “Mulheres de cor” no centro da luta por liberdade legal em Havana e no Rio de Janeiro. Canoa do Tempo, Manaus, v.11, n.2, p.294-297, out./dez., 2019. Acessar publicação original.

Escravos da Nação: o público e o privado na escravidão brasileira 1760-1876 | Ilana Peliciari Rocha

De que maneira o Estado brasileiro atuou como senhor de escravos? A questão é colocada pelo livro “Escravos da Nação”, da historiadora Ilana Peliciari Rocha. O estudo é oriundo de sua tese de doutorado, defendida em 2012. A autora, que tem experiência em história demográfica, já desenvolveu pesquisas sobre a população escrava do município de Franca (SP) no século XIX e a respeito do fluxo imigratório para São Paulo no período republicano. Atualmente, Rocha é professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e tem publicado artigos que abordam a trajetória de escravos e escravas da nação na história brasileira.

No livro em questão, Rocha investiga uma peculiaridade: a condição pública atribuída a alguns escravos no Brasil. Já de início a autora explica que os “escravos da nação” se tornaram uma categoria específica no Brasil após a expulsão e o confisco dos bens da Companhia de Jesus pela Coroa portuguesa, o que se deu em 1760. De acordo com ela, a partir desse evento é possível traçar, por meio da análise de documentação coeva (como cartas e ofícios, relatórios dos ministérios do Império, legislação e recortes de jornal), as formas de tratamento direcionadas aos “escravos públicos” espalhados em fazendas e outros estabelecimentos localizados em distintas regiões do Brasil. A administração desses cativos coube, no século XIX, às instituições vinculadas ao Estado imperial e perdurou até, precisamente, o ano de 1876, quando expirou o prazo que, segundo a legislação, era necessário para que tais cativos entrassem em posse de suas liberdades.

Segundo a avaliação de Rocha, os estudos historiográficos sobre a presença de escravos da nação nas fazendas e fábricas do Brasil mostraram, de maneira isolada para cada estabelecimento e localidade, que a administração desses cativos teria acompanhado o modelo da escravidão privada ou tradicional. A autora buscou acrescentar a esses trabalhos um olhar mais atento para o caráter público de tais escravos, com destaque para aqueles mantidos na Fazenda de Santa Cruz, na província do Rio de Janeiro, e na Fábrica de Ferro São João de Ipanema, na província de São Paulo. Sua proposta principal é compreender em que medida a administração desses escravos permite apreender o significado de “coisa pública” no Brasil entre o final do século XVIII e o último quartel do século XIX. Para isso, a pesquisadora leva em conta o conceito de “patrimonialismo” e dialoga com as obras de Raimundo Faoro, Fernando Uricoechea e José Murilo de Carvalho.

A estrutura do livro, inteligentemente pensada, colabora para o entendimento do estudo. A obra é composta por três partes bem articuladas, nas quais são abordados, respectivamente, os percursos dos escravos após a expulsão dos jesuítas, as concepções compartilhadas a cada época sobre tais cativos e os aspectos das experiências cotidianas desses escravos nos estabelecimentos do Estado. Ao longo dos capítulos, Ilana Peliciari Rocha compara o tratamento destinado a esses cativos com outras experiências ocorridas entre senhores e escravos, no âmbito do que chamou de “escravidão privada ou tradicional”, de modo que seja possível empreender o “significado de ser público para o escravo e também para o Estado” (p. 20). Os argumentos estão bem fundamentados tanto nas narrativas produzidas pelos contemporâneos quanto na projeção de dados quantitativos que auxiliam o leitor a visualizar os perfis dos escravos nacionais e as características da escravidão pública.

Na primeira parte do livro, em que é identificado o início de um cativeiro “público” no Brasil, Rocha discorre sobre os caminhos dos escravos após o confisco dos bens dos jesuítas, em 1760. Segundo ela, os escravos adquiridos pela Coroa portuguesa, então chamados “escravos do Real Fisco”, tornaram-se “patrimônio público” sem que houvesse legislação uniforme para o seu tratamento. Seja pela dificuldade de estabelecer um regimento homogêneo para estabelecimentos distintos, seja pela eficácia do controle administrativo desenvolvido pelos religiosos inacianos, a manutenção das propriedades e dos cativos confiscados deu continuidade – ao longo de todo o período colonial – ao modelo adotado pelos jesuítas.

Em seguida, a segunda parte apresenta as concepções e, sobretudo, as dificuldades enfrentadas pelos membros do governo imperial no trato dos escravos da nação. Aqui, a análise concentra-se em meados do século XIX – período em que a documentação oficial permitiu perceber, com maior recorrência, a presença de cativos “públicos”. A autora mostra que houve a tentativa inicial de vender tais escravos a particulares, mas que o governo imperial acabou adaptando-se à condição de proprietário. Havia um sistema de trocas entre as fazendas e fábricas para suprir as necessidades de mão de obra, além de regulamentos para o controle e a manutenção da rotina produtiva nesses estabelecimentos públicos.

Quanto a esta segunda parte do livro, cabe destacar o capítulo que aborda a “visão oficial” sobre os escravos nacionais. Nele, Rocha busca dimensionar o impacto da escravidão pública nos debates políticos de meados do século XIX brasileiro e perpassa alguns temas caros ao período, como abolicionismo, patrimonialismo e liberalismo. De acordo com seu entendimento, a administração dos cativos “públicos” pelo Estado imperial teve um papel relevante na época, pois intensificou as discussões em torno da manutenção da escravidão “privada” na década de 1860. Segundo ela, “[…] como sancionadora da escravidão, a presença deles [dos escravos da nação] não gerava incômodos, mas no momento em que o Estado passou a ter uma nova atitude e as questões emancipacionistas ganharam vulto, isso influenciou as políticas públicas para com eles” (p. 171).

Entretanto, Ilana Peliciari Rocha também expõe os limites dos posicionamentos que questionaram a escravidão e o uso de escravos pelo governo imperial nesse período. Ao analisar os discursos do Parlamento do Império e um embate entre o periódico Opinião Liberal e a Mordomia-mor – repartição responsável pelos escravos da Fazenda de Santa Cruz -, ela identifica que a defesa da liberdade dos escravos da nação sofreu reveses devido à preocupação de que o assunto se estendesse à abolição do sistema escravista. Na compreensão da autora, tais discussões mostram que houve uma contradição entre o discurso liberal e as práticas do governo imperial, bem como o uso dos escravos nacionais no âmbito privado – o patrimonialismo. Juntos, tais aspectos teriam dificultado a aprovação de medidas favoráveis à alforria dos escravos da nação e, ao mesmo tempo, postergado o fim da escravidão particular no Brasil.

Especificamente sobre o “patrimonialismo”, Rocha acompanha a perspectiva de José Murilo de Carvalho e entende que a escravidão pública esteve relacionada à “administração patrimonial” empreendida pela burocracia nascente do século XIX brasileiro. Ela avalia, por meio da historiografia e das fontes, a complexidade que envolveu o uso de cativos pelo Estado: de um lado, o uso de escravos da nação para fins privados era admitido porque foi recorrente e não foi “efetivamente combatido” (p. 188); de outro lado, em alguns locais, como a Real Fábrica de Pólvora da Estrela, tal prática foi repreendida. A dificuldade do tratamento de tal patrimônio público esteve associada, ainda segundo sua leitura, à proximidade dos estabelecimentos com a sede do governo imperial e do Imperador, o qual teria influenciado uma postura “paternalista” em relação aos cativos. Para a autora, é possível afirmar que o Estado imperial, quando atuava como proprietário de escravos, foi patrimonialista, pois prevaleceu a confusão entre as esferas pública e privada na administração dos escravos da nação.

Vale observar que a “visão oficial”, tal como disposta por Rocha neste capítulo, dá centralidade aos embates entre liberais e conservadores no Brasil do Oitocentos. De certa forma, as atividades administrativas das instâncias do Estado e das instituições que mantiveram os escravos da nação, apresentadas ao longo de todo o estudo, ficaram em segundo plano nessa análise. Assim, é preciso sublinhar que não apenas as discussões no Parlamento e na imprensa, mas as diferentes medidas direcionadas aos escravos – presente nos regimentos, ofícios e relatórios – compõem a “visão” que o Império brasileiro pôde revelar sobre a escravidão pública e os escravos nacionais na época.

A última parte do livro de Ilana Peliciari Rocha é dedicada às ocupações e às experiências dos cativos mantidos na Fazenda de Santa Cruz, que foi usada como residência de passeio do imperador, e daqueles que se encontravam na Fábrica de Ferro de Ipanema. A autora conta que nesses estabelecimentos houve grande diversidade quanto às funções desempenhadas pelos escravos e que as oficinas manufatureiras permitiram que alguns deles se especializassem. Motivadas mais pelas demandas casuais dos administradores do que pela orientação de um regimento geral, a profissionalização e a diversificação das atividades nem sempre eram vantajosas para os cativos, os quais muitas vezes foram deslocados dos estabelecimentos em que viviam com suas famílias para trabalhar em outros locais, inclusive em propriedades particulares.

Nesta terceira parte, Rocha elenca ainda tópicos conhecidos na historiografia da escravidão, como a resistência escrava e a obtenção de alforrias, e aponta que os escravos da nação também recorreram às fugas ou aos pedidos de liberdade, mas de maneira distinta dos cativos “privados”. Enquanto as dificuldades de supervisionar a rotina de trabalho nos estabelecimentos favoreceram as fugas, a condição pública contribuiu, em muitos casos, para obtenção de alforrias. Aliás, apesar das ponderações feitas na segunda parte do livro, a autora conclui que a discussão parlamentar sobre a liberdade dos escravos da nação, iniciada na década de 1860, teve grande impacto na vigência da escravidão privada no Brasil. Segundo sua perspectiva, o debate que culminou na Lei do Elemento Servil, de 1871, teria impulsionado o discurso abolicionista e, até mesmo, “antecipado” a abolição aprovada em 1888.

Em suma, pode-se dizer com a investigação de Rocha que “ser público” para o Estado imperial brasileiro teve como característica o problema de “ser possuidor” de escravos para manter o funcionamento de seus estabelecimentos e de ter que lidar com um patrimônio disputado na sociedade oitocentista. Para os escravos da nação, “ser público” era estar sob o controle de um senhor disperso, algumas vezes favorável à liberdade, mas de qualquer forma presente em sua rotina e seus percursos. Os aspectos abordados indicam que este estudo contribui para ampliar as indagações, os debates historiográficos e a compreensão, entre os leitores interessados de hoje, sobre uma faceta pouco conhecida da história da escravidão e do Estado senhor de escravos no Brasil.

Referências

ROCHA, Ilana Peliciari. Escravos da Nação: O Público e o Privado na Escravidão Brasileira, 1760-1876. São Paulo: Edusp, 2018.

ROCHA, Ilana Peliciari. O escravo da nação Florencio Calabar: da Fábrica de Pólvora da Estrela para a Fábrica de Ferro São João de Ipanema. Nucleus (Ituverava), v. 15, n. 2, p. 7-2-13, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://nucleus.feituverava.com.br/index.php/nucleus/article/view/3011 >. Acesso em: 29 abr. 2019.

ROCHA, Ilana Peliciari. ‘Escravas da nação’ no Brasil Imperial. História, histórias, Brasília-DF, v. 4, n. 8, p. 44-61, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/view/10944 >. Acesso em: 29 abr. 2019.

ROCHA, Ilana Peliciari. Imigração Internacional em São Paulo: retorno e reemigração, 1890-1920. Novas Edições Acadêmicas, 2013.

ROCHA, Ilana Peliciari. Demografia escrava em Franca: 1824-1829. Franca: UNESP-FHDSS, 2004

Larissa Biato Azevedo – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Câmpus de Franca. Mestre em História e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Câmpus de Franca. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


ROCHA, Ilana Peliciari. Escravos da Nação: o público e o privado na escravidão brasileira, 1760-1876. São Paulo: Edusp, 2018. Resenha de: AZEVEDO, Larissa Biato. O estado imperial: um senhor de escravos “pouco definido”. Almanack, Guarulhos, n.22, p. 612-618, maio/ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

 

Construtores do Império – defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais 1823-1834

Dentre os estudos mais recentes que se debruçam sobre o processo de construção do Estado nacional no Brasil, a obra de Carlos Eduardo França de Oliveira – vencedora do 5º Prêmio de Teses da Anpuh – se destaca como inovadora e polêmica. Resultado de Doutorado defendido em 2014, ela desconfia, como escreve Cecília Helena Salles de Oliveira no prefácio, do “saber já sabido” e das certezas prévias. Isso pelo motivo de se inscrever em um movimento de renovação historiográfica que, sobretudo nas últimas duas décadas, amparando-se em exaustiva exploração de fontes e referenciais teórico-metodológicos diversos, tem contribuído para o esclarecimento de aspectos fundamentais da sociedade brasileira no século XIX.

Durante muitas décadas, a história do período imperial brasileiro foi pensada a partir de duas temáticas essenciais: a revolução liberal como projeto inacabado e a escravidão. Resguardadas suas especificidades, as leituras tradicionais sobre as origens, as instituições e o percurso do Brasil independente, baseando-se em paradigmas do ideário liberal formulados no Oitocentos e (re)configurados à luz das interpretações posteriores, apontavam ao menos para três grandes assertivas: a conservação de uma incômoda herança colonial que impossibilitou o efetivo desenvolvimento de cidadãos; o profundo desarranjo das ideias e práticas políticas europeia e estadunidense aplicadas à dinâmica do liberalismo brasileiro, marcado pelo cativeiro de africanos; e, por último, porém não menos importante, a fase imperial do Brasil como momento desprovido de perfil próprio, sendo mera etapa entre a época colonial e a republicana de sua história.[3]

Ao propor uma análise da ascensão de políticos paulistas e mineiros no processo de formação do Estado nacional brasileiro entre 1823 a 1834, enfatizando-se a criação das esferas do poder provincial em São Paulo e Minas Gerais, bem como a projeção desses agentes no cenário político da Corte fluminense, Oliveira vincula-se a um conjunto maior de estudos renovados sobre a formação do Império do Brasil. Essas interpretações, inspiradas por questões contemporâneas e pelas crescentes análises desenvolvidas nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras a partir da segunda metade do século XX, vêm repensando a supremacia do “econômico” sobre as práticas e o imaginário dos agentes históricos, fazendo cair por terra conclusões que sublinham o suposto “atraso” da sociedade brasileira em relação à modernidade, sua intangibilidade e inconsistência no século XIX, como também a incompatibilidade entre liberalismo e a lógica escravista.[4]

Desse modo, unindo-se ao rol de análises que revalorizaram os estudos políticos em uma ampla variedade de temas, da cultura política ao constitucionalismo, da formação dos espaços públicos e formas de sociabilidades às identidades e às transformações das mentalidades dos agentes que experienciaram as rupturas entre os séculos XVIII e XIX, [5] o autor coloca em outra ordem de importância o papel da cultura e das iniciativas dos indivíduos, especialmente de paulistas e mineiros, na formação da sociedade brasileira e consolidação do projeto liberal moderado. Baseando-se em repertório amplo de fontes variadas, como documentos oficiais e periódicos, assim como em uma bibliografia abrangente e atualizada, Oliveira joga luz sobre o arranjo de relações que envolveram instituições e homens, marcando a consolidação da província como novo lócus de poder.

No primeiro capítulo, Oliveira explora os vínculos entre política e economia nas províncias de São Paulo e Minas Gerais nos primeiros anos do Império, chamando a atenção para os grupos e sua incorporação no processo de construção da nova ordem monárquica-constitucional com sede no Rio de Janeiro. Esse processo, de um lado, assumiu lugar primordial ao assegurar a integridade do novo Estado e, de outro, permitiu a esses mesmos círculos a conquista de participação política na Corte. Problematizando a tese decadentista (segundo a qual as dinâmicas das duas províncias estagnou após o declínio da produção aurífera mineira), o autor defende que, mais do que redutos de nomes consagrados no processo de Independência, São Paulo e Ouro Preto foram importantes arenas de disputa e articulação política em que parcelas socioeconômicas plurais, vindas de variadas partes das províncias, batalhavam pelo poder.

Evitando intepretações rígidas que unem segmentos socioeconômicos específicos a orientações políticas particulares seguindo um fio único de interesses, o autor convida o leitor a olhar para a diversidade de situações e fidelidades que coloriam um quadro mais amplo de relações políticas, econômicas e sociais da época. Assim, como contraponto à vertente mais tradicional, Oliveira implode categorias como “centro” e “província”, “interesse nacional” e “interesse local”, enfocando as formas negociadas com que mineiros e paulistas foram concebendo suas províncias como espaços essenciais de articulação política e poder.

No segundo capítulo, o autor detém-se na exposição pormenorizada dos principais aspectos dos conselhos provinciais – Conselho da Presidência e Conselho Geral – em São Paulo e Minas Gerais, principalmente seu funcionamento, ação política e participação na composição do poder nessas regiões. Oliveira trata, primeiro, da dinâmica do Conselho da Presidência e da atuação dos presidentes de província, relativizando a historiografia que caracteriza o Primeiro Reinado como momento “centralizador”, no qual os chefes do Executivo provincial seriam meros “delegados” a serviço de D. Pedro. O autor tece sua problematização com perícia, apontando como a atuação dos vice-presidentes – sujeitos escolhidos nas próprias localidades – e do Conselho da Presidência serviram de contrapeso ao poder dos presidentes. Ademais, o autor afirma que os Conselhos da Presidência paulista e mineiro, ultrapassando o papel de órgãos consultivos a serviço dos presidentes de província, se elevaram a âmbito privilegiado de prática política, seguindo os moldes de um regime representativo preocupado com a defesa dos preceitos monárquico-constitucionais.

Na segunda parte, Oliveira apresenta o processo de instalação dos Conselhos Gerais nas províncias de Minas Gerais e São Paulo, conforme previsto na Carta de 1824. A partir da exposição da relação entre esses órgãos, câmaras municipais e finanças provinciais, o autor delineia um panorama em que aponta como o aparelhamento político-administrativo das províncias, ligado às realidades locais e certa margem de autonomia para geri-lo, foi chave para a manutenção e consolidação do Estado monárquico-constitucional.

Para dar conta das formas como políticos paulistas e mineiros ocuparam o Legislativo do Império a partir de 1826, Oliveira apresenta e discute os aspectos fundamentais da representação e do encaminhamento dos assuntos provinciais na Câmara dos Deputados e no Senado. Na primeira parte, ele aborda a composição das bancadas mineira e paulista na Câmara dos Deputados. Explanando uma temática pouco explorada, o autor matiza o enfrentamento que ocorreu no Parlamento, especialmente na câmara baixa, como simples embate entre os herdeiros de um suposto conflito entre “portugueses” e “brasileiros” na Independência. Afirma que o âmbito da Câmara dos Deputados se configurou como espaço de matizes e nuances, no qual a distinção entre os grupos políticos não pode ser compreendida como elemento preexistente à luta política. Tampouco havia uma simetria entre inserção econômica e posicionamento político, como também uma dicotomia entre províncias e Corte.

Há que mencionar ainda que o autor aborda um dado importante não desenvolvido por muitos estudos: o de como os grupos políticos parlamentares teriam se inserido no sistema eleitoral das províncias paulista e mineira, forjando-se no espaço local para, a partir dele, se rearticular na Câmara dos Deputados. Longe de estabelecer uma simplificadora correspondência entre fidelidades de origem, representação e aprovação de pautas provinciais, baseada em uma relação de causa e efeito, Oliveira põe em exibição uma realidade mais cambiante, em que a composição das bancadas paulista e mineira nas três legislaturas da câmara baixa dependeram da convergência de um emaranhado de fatores como distintas concepções de representação e projeto de Estado, questões político-institucionais, alianças (inter)provinciais, rivalidades entre os grupos políticos, tensões sobre perspectivas diversas a respeito dos negócios e de ocupações dos espaços administrativos. Portanto, conclui que o encaminhamento das necessidades provinciais na Câmara dos Deputados foi um processo complexo que não se diluía na transposição automática das demandas das províncias para o Legislativo.

Dando prosseguimento à discussão sobre a maneira como os representantes provinciais deram vazão às demandas das suas províncias, um segundo movimento, ainda relacionado à primeira parte, dá conta da análise do engajamento do Senado no tocante às demandas que partiam de São Paulo e Minas Gerais. De novo, o autor rompe com afirmações prévias, relativizando a ideia de um Senado fechado em si mesmo, atento apenas às estratégias de contenção da câmara baixa. Pelo contrário, Oliveira assume que tais assertivas desembocaram em deduções simplistas e perigosas. Apesar do envolvimento menor do Senado com as propostas dos Conselhos Gerais, não se pode dizer que a casa vitalícia era desalinhada das causas provinciais. Mesmo diante da sua maior autonomia frente às bases eleitorais das províncias, perceber o Senado superficialmente como instrumento político em prol do monarca e de seus ministros, provoca o autor, seria cair no jogo retórico dos liberais, produzido especialmente pelos moderados da época.

Na segunda parte, o autor tematiza a questão do comprometimento dos deputados com as propostas dos Conselhos Gerais, sobretudo daqueles que ocuparam as duas instituições, a fim de encarar se eles eram “homens da província”, ou seja, seus representantes no Parlamento. No fim da análise, o autor conclui que as pautas dos Conselhos Gerais serviram para os parlamentares como instrumento de luta e negociação política, no qual assegurar os interesses provinciais nem sempre foi o objetivo final. Além do mais, essa dinâmica teria sido permeada por um encadeamento complexo de relações entre os eleitores, conselheiros-gerais, deputados e senadores, perpassado por outros fatores como enfrentamentos políticos, heterogeneidade das bancadas provinciais, autonomia dos legisladores em relação às bases eleitorais e existência de tópicos considerados mais relevantes do ponto de vista nacional. Nesse sentido, Oliveira esvazia categorias como “interesse local” e “interesse nacional”, já que para esses legisladores ao fazer política provincial, direta ou indiretamente, eles estavam dando conta também da política nacional e vice-versa.

Dividido em cinco partes, o quarto e último capítulo é o maior do livro. Na primeira parte, o autor apresenta em linhas gerais o clima de tensão e redefinição de forças que caracterizou o contexto político após a saída de D. Pedro, um quadro marcado pelas discussões em torno de uma reforma constitucional do país nascente. O autor faz uma ponderação metodológica relevante, recomendando ao especialista que evite descrições estanques, tendo em vista a fluidez que os termos “moderados”, “exaltados” e “caramurus” possuem. A coerência programática desses grupos, forjada pelos próprios coevos, pesava menos do que sua função política influenciada pelas tensões em jogo.

Na segunda parte, Oliveira sugere que a elaboração de um movimento de reforma constitucional atrelou-se à intensificação da investida liberal contra o governo pedrino no Primeiro Reinado, o que também gerou uma fratura entre os grupos liberais, particularmente acerca das relações entre Legislativo e Executivo. Nessa lógica, os debates sobre a reforma da Carta de 1824 travados depois da abdicação de D. Pedro I, em 1831, retomariam, sob nova luz, questões já presentes no triênio de 1821 a 1823, sobretudo as relações entre centro e província, as atribuições que caberiam ao Poder Moderador, a existência do Conselho de Estado e a vitaliciedade dos senadores, solapadas com o fechamento da Constituinte por D. Pedro. Toda essa discussão não se restringiu só aos setores oficiais da luta política. Ela alargou o espectro social de ação política, como aponta o autor na terceira parte, percebida nos debates levados a cabo pelos círculos dos alunos do Curso Jurídico de São Paulo e vários periódicos mineiros e paulistas. Toda a tensão em torno da reforma constitucional desencadeou uma restruturação do campo de luta política.

Na penúltima parte, o autor não economiza esforços para demonstrar que as discussões em torno do projeto de reforma constitucional propunham mudanças radicais na estrutura política do Império, permeada pelas ideias de federação que seriam exploradas a fundo pela imprensa e pelos heterogêneos grupos políticos. Com o adensamento da inevitabilidade da reforma, tanto ela quanto o sistema federativo em si acabaram ganhando uma conotação positiva em meio à então resistente ala moderada, que via na ampliação dos poderes provinciais, especialmente de cunho legislativo e fiscal, uma maneira para se garantir no poder, resguardando a continuidade da monarquia-constitucional. Na última parte, o autor apresenta as discussões que culminaram no Ato Adicional, apontando que as maiores polêmicas em relação à reforma constitucional repousaram nas atribuições das Assembleias Legislativas. Aqui o pesquisador, mais uma vez, assume uma postura revisionista, amparando-se em autoras como Miriam Dolhnikoff e Maria de Fátima Gouvêa, encarando a execução da reforma como parte de um arcabouço legal maior que vinha sendo gestado anteriormente.

Baseado em uma bibliografia vasta e atualizada, como também em variedade de fontes de natureza diversas, Carlos Eduardo França de Oliveira tece apontamentos e questionamentos pertinentes sobre um momento complexo da história do estabelecimento do Estado nacional brasileiro. Sem se deter em um único segmento social em São Paulo e Minas Gerais e, muitas vezes, apontando o que acontecia em outras províncias do Império, o autor esboça o emaranhado de relações múltiplas e cambiantes que esses indivíduos teceram, sem que tal dinâmica se restringisse à cooptação de forças pelo poder central na Corte ou outras associações unilaterais. Desse modo, ancorado nesse processo de ampla complexidade, o autor ressignifica episódios importantes do período, fazendo cair por terra ideias pouco fluídas como “centro” vs. “província” e “interesse nacional” vs. “interesse provincial”.

Notas

1. Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Guarulhos – São Paulo.

2. Graduada em História e mestranda do Departamento de Pós-graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista FAPESP, processo nº 2018/11696-0. E-mail: [email protected]

3. MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In: ______ (orgs.) Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 10-11.

4. Ibidem, p. 11.

5. GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 183, 2. Semestre 2013.

Referências

GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 183, 2. Semestre 2013.

MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In: MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (orgs.) Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017.

Claudia de Andrade1-2 – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Guarulhos – São Paulo. Graduada em História e mestranda do Departamento de Pós-graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista FAPESP, processo nº 2018/11696-0. E-mail: [email protected]


OLIVEIRA, Carlos Eduardo França de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado nacional e dos poderes locais, 1823-1834 [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017. Resenha de: ANDRADE, Claudia de. O império negociado: agentes provinciais no ajuste da ordem no Brasil independente. Almanack, Guarulhos, n.22, p. 619-626, maio/ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

Negócios internos: economia e sociedade escravista no Brasil do oitocentos (Freguesia de Itajubá – Minas Gerais século XIX) | Juliano Custódio Sobrinho

Localizada no sul da Mantiqueira, no sul da Capitania de Minas G, no sul da Capitania de Minas Gerais e próxima ao nordeste da Capitania de São Paulo, a Freguesia de Itajubá se configura como uma região fronteiriça, local de passagem e de rotas comerciais, mas também de habitação e permanência. Seu povoamento data do início do século XVIII, decorrente dos fluxos migratórios ocasionados pela busca por ouro na região que, aparentemente, não prosperaram. Seu núcleo populacional se deslocou no início do século XIX, precisamente em 1819 e, em 1862, foi elevada à categoria de cidade, consolidando-se onde se localiza atualmente. Em Negócios internos: economia e sociedade escravista no Brasil do oitocentos (Freguesia de Itajubá, Minas Gerais, século XIX)Juliano Custódio Sobrinho aborda a dinâmica interna da Freguesia de Itajubá, suas estruturas produtivas, bem como sua inserção no circuito mercantil do sudeste brasileiro, especialmente na primeira metade do século XIX.

Com base no levantamento, identificação e caracterização do perfil socioeconômico da freguesia, o autor revela uma dinâmica rede de abastecimento interno, impulsionada sobretudo pela agropecuária voltada ao mercado local e regional, bem como ao consumo das unidades produtivas internas. Mercadorias como gado bovino, gado suíno e seus produtos derivados associavam-se a uma crescente produção de bens de raiz e investimentos em escravaria. Valendo-se do método analítico da história serial e da perspectiva da História Social, o autor, podemos dizer, contribui para o crescente campo da “História Social da escravidão”.

Dentre as fontes consultadas, privilegia a investigação de inventários post mortem pertencentes ao Fórum Wenceslau Braz (Itajubá, MG). Menciona também o uso de Listas Nominativas e Mapas de População, para os anos compreendidos entre 1831 e 1835, disponíveis no banco de dados do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR/UFMG), além de visitar outros acervos paulistanos e mineiros, como o Arquivo Público do Estado de São Paulo, a Cúria Metropolitana de São Paulo, o Centro de Estudos Campanhense Monsenhor Lefort, e o Banco de Dados do Arquivo Histórico Ultramarino. O estudo das fontes se volta não só para uma abordagem quantitativa, senão também qualitativa dos dados, buscando compreendê-los em conjunto.

Segundo Custódio Sobrinho, até a década de 1970 a historiografia pouco se debruçou sobre a dinâmica interna das sociedades coloniais, secundarizando as especificidades regionais e o funcionamento do mercado interno. Trata-se de uma perspectiva historiográfica que não está superada e segue ancorada em um modelo explicativo que compreende as sociedades coloniais a partir das relações externas, invisibilizando suas próprias dinâmicas e especificidades. Não obstante, muitos são os estudos que protagonizam a economia mineira e a vertente historiográfica que privilegia os estudos regionais tem se ampliado, especialmente a partir da década de 1970, quando houve uma inflexão historiográfica no viés interpretativo, protagonizando novos agentes e abarcando novas fontes.

O autor é Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente é professor da Universidade Nove de Julho (Uninove). O livro é resultante de sua dissertação de mestrado, apresentada em 2009 à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) sob orientação da Profa. Dra. Carla M. Carvalho de Almeida, que assina o generoso prefácio. Com 193 páginas, o livro divide-se em quatro capítulos: I – Povoamento e riqueza na capitania do ouro, II – Poder e privilégios entre os “melhores da terra”, III – Escravizados nas páginas dos inventários e IV – Produção agropecuária e perspectivas de mercado.

O primeiro capítulo, “Povoamento e riqueza na capitania do ouro” é subdivido em três tópicos: “A economia colonial nas Minas”, “Mercado interno e a historiografia revisitada” e “A freguesia de Itajubá”. Nele, o autor descreve a formação da freguesia de Itajubá dentro de um panorama mais amplo e discute como o seu desenvolvimento é abordado nos debates sobre a economia colonial mineira. Grosso modo, pode-se dizer que a produção historiográfica define a extração aurífera como determinante da economia mineira e descreve um cenário, a partir do declínio da mineração, em que a extrema estagnação econômica invisibilizou todo um circuito mercantil dedicado à produção interna, em especial a agropecuária.

É inegável que a história de Minas Gerais está intimamente ligada às atividades de mineração, no entanto seu declínio não deve ser compreendido como estagnação econômica, como se houvesse simplesmente engessado dali por diante. Trata-se de um processo importante cujo decaimento resultou em uma dinamização da economia voltada ao mercado interno, inclusive decorrente da necessidade de rearticulação dessa mesma economia diante das transformações do contexto. Para o caso de Itajubá esses rearranjos são verificáveis, por exemplo, na produção agropecuária, e o autor demonstrou que o fortalecimento do mercado interno estava plenamente em consonância com a lógica escravista da sociedade em que se circunscrevia. Nesse sentido, os estudos regionais ampliam o debate no sentido de evidenciar as especificidades locais, demonstrando uma complexidade socioeconômica muito maior inerente às suas próprias lógicas de organização. É a partir desse método interpretativo que Custódio Sobrinho se debruça, como que por uma lupa, fugindo a homogeinizações e generalizações que desapercebem toda uma rede de relações que se articulava internamente.

O segundo capítulo, intitulado “Poder e privilégios entre os ‘melhores da terra’”, também se organiza em três subtítulos: “Percepções demográficas”, “Indivíduos e relações sociais” e “Vida material e hierarquia na freguesia”. Aqui, podemos conferir uma melhor explanação e cotejamento de informações acerca da demografia e do perfil socioeconômico da região em estudo, compreendendo as hierarquias, distribuição de riquezas e vida material por meio da análise em conjunto dos inventários post mortem com os dados levantados por meio do Banco de Dados Populacional do CEDEPLAR-UFMG. A partir de 125 inventários, Listas Nominativas e Mapas de População, o autor evidencia uma sociedade extremamente estratificada, cujos privilégios se expressam, por exemplo, nos bens de herança. Mais que um levantamento quantitativo, Custódio Sobrinho qualifica esses dados, revelando questões sociais em dimensões mais amplas.

O terceiro capítulo, “Escravizados nas páginas dos inventários”, versa sobre a participação dos negros escravizados nas atividades produtivas de Itajubá (suas partes são “Posse de cativos na freguesia”, “A participação escrava” e “Sujeitos, ações e identidades”). O autor procurou traçar o perfil destes sujeitos e compreendê-los enquanto agentes, buscando lançar luzes em suas formas de agir, reagir e resistir. Compreendidos enquanto posse, o levantamento de escravos foi feito também a partir dos inventários post mortem. Nesse caso, as limitações inerentes a esse tipo documental deixam dúvidas acerca de sua suficiência para compreendermos efetivamente a participação dos negros nas unidades produtivas e na própria consolidação da Freguesia de Itajubá. Um arrolamento maior de outras espécies documentais contribuiria melhor para o propósito. De todo modo, Custódio Sobrinho deixa claro não se tratar do objetivo central da pesquisa e sua contribuição se verifica ao demonstrar o quão expressiva foi a participação de pessoas escravizadas nas atividades voltadas ao abastecimento interno em uma freguesia da província que, segundo o autor, deteve o maior contingente de escravos do Império em sua estrutura produtiva.

Pode-se inferir, ainda, que a expressiva importação de cativos para a região deve-se, fundamentalmente, à expansão e diversificação socioeconômica, especialmente a partir do declínio da mineração que impôs a rearticulação da economia. O autor menciona que a província de Minas Gerais se tornou a maior detentora de escravos e assim permaneceu até a abolição da escravidão, em 1888. A produção de alimentos na região também atende à manutenção dos afluxos na importação de escravos durante todo o século XIX e se intensifica com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro. Para além disso, constata em Itajubá uma situação não rara no Brasil oitocentista, mas ainda pouco tratada pela historiografia, em que a mão de obra escrava trabalhava lado a lado com a mão de obra familiar, no caso das pequenas propriedades. De forma mais ampla, Custódio Sobrinho se vale do mapeamento da posse de cativos como indicativo para melhor compreender a estratificação social e a hierarquização das unidades produtivas.

Por fim, o quarto e último capítulo, “Produção agropecuária e perspectivas de mercado”, é também o mais extenso. Dividido em quatro partes (“Produção mercantil”, “Composição dos bens nos inventários”, “Padrões de riqueza e utilização da terra” e “Terras de cultivo, campos de criar: a agropecuária na freguesia”), esse é o capítulo que, talvez, melhor situe o autor dentro de sua própria obra. São oito tópicos que se preocupam em discutir a participação de Itajubá no contexto regional, isto é, sua inserção na produção mercantil sul mineira e sua relação com o Rio de Janeiro. Aqui, o autor se volta a uma caracterização das unidades produtivas, rurais e urbanas, a fim de evidenciar a diversidade econômica da região. Reafirma, ainda, o expressivo envolvimento dessas unidades com o abastecimento interno e a massiva participação das pessoas escravizadas, composta sobretudo por cativos nascidos na região (crioulos).

A partir de um estudo de caso, Juliano Custódio Sobrinho nos apresenta um trabalho pertinente e pormenorizado acerca das estruturas econômicas na Freguesia de Itajubá no Brasil oitocentista. Voltada fundamentalmente ao mercado interno, a pesquisa é provocativa na medida em que demonstra uma complexa rede de relações econômicas e sociais, mais ampla e diversa que a imagem estanque que se pressupunha pela historiografia até a década de 1970. Uma narrativa que se consagrou entre os historiadores que centravam o argumento da dependência econômica externa enquanto modelo explicativo para as colônias e sob um viés que se sedimentava no pressuposto de um capitalismo comercial. Neste sentido, ao passo em que se privilegiava territórios voltados à macroeconomia escravista e de exportação, invisibilizou-se todo um mercado interno do sudeste brasileiro, seus agentes e suas dinâmicas próprias de organização.

Para além dos interessados no caso específico de Itajubá, o livro é indicado àqueles que almejam compreender melhor como se engendram as relações econômicas e sociais que envolvem o sudeste brasileiro no século XIX, bem como os distintos grupos que aí se verificam e se conformam. Por meio da Demografia Histórica enquanto método analítico, o autor buscou caracterizar e compreender as estruturas daquela sociedade, as práticas que a orientam e os agentes que a organizam, para além da dicotomia senhor-escravo. Nesse sentido, nos informa sobre uma sociedade altamente estratificada e hierarquizada, envolvida em uma dinâmica rede de abastecimento interno e que se fundamentava sobretudo na diversidade agropecuária. Ao longo de seu livro, o autor nos revela o entrecruzamento de histórias de uma elite local, emaranhada por relações de parentesco, conflitos por heranças e articulações pela manutenção do patrimônio, junto às diversas formas de cotidiano e resistência dos sujeitos subalternos, sobretudo a população negra escravizada. A obra confere um espectro mais plural para a compreensão de economia e sociedade do centro-sul do Brasil.

Referência

CUSTÓDIO SOBRINHO, Juliano. Negócios internos: economia e sociedade escravista no Brasil do oitocentos (Freguesia de Itajubá, Minas Gerais, século XIX). São Paulo: Universidade Nove de Julho – UNINOVE, 2017.

Karina Oliveira Morais dos Santos – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Graduada em História pela Universidade Federal de São Paulo; Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP) e bolsista FAPESP. Atualmente em mobilidade internacional enquanto aluna visitante na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). E-mail: [email protected]


CUSTÓDIO SOBRINHO, Juliano. Negócios internos: economia e sociedade escravista no Brasil do oitocentos (Freguesia de Itajubá, Minas Gerais, século XIX). São Paulo: Universidade Nove de Julho – UNINOVE, 2017. Resenha de: SANTOS, Karina Oliveira Morais dos. História serial e economia de abastecimento no Sul de Minas. Almanack, Guarulhos, n.22, p. 627-633, maio/ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides | Martinho T. M. Soares

Em sua tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal, Martinho Soares aborda uma lacuna relevante na história da teoria contemporânea da historiografia: o papel do paradigma historiográfico de Tucídides nas reflexões do filósofo Paul Ricoeur; o primeiro uma referência clássica que resiste pertinente e atual há milênios, o segundo talvez quem melhor sintetizou a polêmica sobre a relação entre histórica e ficção ao longo do séc. XX. O objetivo é em si problemático: Soares está ciente que Ricoeur cita Tucídides apenas em notas, não dedica nem uma página para análise específica de sua obra, e não apresenta indícios de conhece-la a fundo, para além de alguns de seus comentaristas modernos mais ilustres (SOARES, 2014, p.23). No entanto, Tucídides é um marco inaugural, exercendo inegável influência em intelectuais com quem Ricoeur dialoga, principalmente historiadores e teóricos modernos que o viam como paradigma de historiografia antiga. Se o filósofo moderno foi a pedra angular nos intensos debates do séc. XX sobre história e ficção, os estudos sobre a fortuna crítica da obra História da Guerra do Peloponeso extrapolam o próprio ambiente acadêmico, como demonstram os constantes apelos às lições tucideanas em situações geopolíticas contemporâneas2. Para cumprir tal tarefa Soares divide seu livro em duas partes: a primeira, mais longa, dedica-se exclusivamente à Ricoeur; a segunda aborda Tucídides, mas seguindo uma estrutura organizacional estabelecida com base na leitura da obra ricoeuriana.

A primeira parte é a própria sistematização da contribuição do filósofo francês que, nas palavras de Soares (2014, p.18), serviu de “pretexto para uma compilação, inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagônicos, sobre história e ficção”. Em quatro capítulos, Soares refaz o longo percurso da contribuição ricoeuriana: começa em Histoire et Vérité (1964) no capítulo I, passando pelos três volumes de Temps et Récit (1983- 1985) nos capítulo II e III, e finalmente se concatena em La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000) no último capítulo desta primeira parte do livro de Soares.

No capítulo I são abordadas as primeiras reflexões de Ricoeur sobre objetividade e subjetividade na interpretação histórica, que desembocam no capítulo II sobre a dialética entre explicação e compreensão histórica. Este segundo capítulo refaz o percurso duplo de Ricoeur que perpassa, de um lado, o eclipse da narrativa histórica, o qual envolve tanto a historiografia francesa dos Annales quanto o modelo nomológico de língua inglesa; e de outro lado, as teses narrativistas que, oriundas da filosofia analítica e da crítica literária, focam no papel da narrativa na historiografia, cujos nomes mais conhecidos são Hayden White e Paul Veyne.

A concepção narrativista, que pode ser simplificada na máxima “narrar já é explicar”, torna opaca a fronteira entre história e ficção, o que certamente serve de gatilho para a maior parte das reflexões de Paul Ricoeur. Contra ambas tendências – rejeitar a narrativa histórica em prol de seu caráter científico ou ofuscar seu caráter veritativo por conta da sua dimensão narrativa – Ricoeur interpôs sua dialética sobre o papel da compreensão narrativa à explicação histórica, restaurando a função da ficção na configuração narrativa histórica. O saber histórico procede da compreensão narrativa, resguardando seu caráter investigativo alicerçado na interpretação dos traços do passado, prática na qual a intenção do historiador não deixa de ter sua marca subjetiva, sem negar seu caráter epistêmico (SOARES, 2014, p.53, 76). Assim, Soares revisita as teses de Ricoeur de forma a sedimentar os instrumentos de análise com o qual abordará a obra tucideana.

Se a história precisa de narrativa para ser compreendida, a última não deixa de definirse pela sua relação com o tempo. O capítulo III de Soares concentra-se no itinerário de Ricoeur sobre o tempo desde a dimensão fenomenológica (tempo vivido) até histórica (tempo histórico e narrado). Soares sintetiza ideias já conhecidas de Ricoeur sobre a distentio animi de Agostinho de Hipona, a teoria das três mimeses e as abordagens da ficção do século XX sobre as aporias do tempo vivido, de forma a desembocar no axioma de que o tempo se torna humano na medida em que é articulado de modo narrativo. Deste longo percurso, Soares retém a narrativa enquanto tríplice mimese da prefiguração ética, configuração narrativa e refiguração receptiva (ou leitura). Tal tríplice noção de narrativa organiza a leitura que Soares faz da História da Guerra do Peloponeso na segunda parte da obra. Na fase final da vida intelectual de Ricoeur, o prestígio da narrativa havia se restabelecido na historiografia francesa, devido a fatores que vão do ressurgimento da história política, e perpassa a micro-história e principalmente a predominância do conceito de representação histórica. Daí que Soares concentre-se no capítulo IV sobre os conceitos de representação e representância, especialmente se a narrativa histórica e seu encadeamento do tempo resolve (ou não) as aporias da representação mnemônica enquanto presença do ausente. A questão envolve debates éticos intensos sobre a possibilidade de representação do holocausto judeu e o risco do fortalecimento do negacionismo histórico, com as teses narrativistas que ofuscam a fronteira entre histórica e ficção. Até aqui, pode-se parabenizar a leitura industriosa que Soares faz de Paul Ricoeur, mas não sem notar o longo percurso percorrido até finalmente concatenar tais reflexões com o texto tucideano.

A segunda parte volta-se para Tucídides em dois capítulos. O primeiro se preocupa com a noção de história e verdade na obra, revisitando discussões já consagradas sobre a noção de “ktema es aei” (tesouro para sempre) e sobre o procedimento de composição dos discursos na História da Guerra do Peloponeso. O segundo capítulo se desdobra na aplicação dos três estádios ricoeurianos da operação historiográfica na obra: a fase documental (prefiguração compreendida como testemunhos, indícios e prova documental), a fase narrativa, (explicaçãocompreensão e configuração narrativa), e a fase da refiguração ou leitura, que concentra-se nas estratégias retórico-persuasivos e seus efeitos de “fazer ver” (SOARES, 2014, p.405-406). Em contraste com Heródoto, Tucídides é lacônico e reticente ao expor suas fontes e procedimentos de investigação, logo Soares admite e enfatiza as dificuldades em abordar a metodologia histórica da obra, bem como sua inadequação para os parâmetros modernos (2014, p.502-504, 545-549). A leitura de Soares, portanto, desenvolve-se melhor quando aborda as estratégias persuasivas do autor ateniense, de forma a encontrar nelas ecos das teses de Ricoeur.

O estudo é industrioso e pertinente, mas desmembrar a análise em duas partes acaba por ser simultaneamente uma qualidade e um defeito da pesquisa. Sua exposição sobre Ricoeur revela excelência e domínio das discussões, por outro lado, alonga-se demasiadamente divorciada do seu segundo objeto de pesquisa. Isto significa que não teremos notícias de Tucídides pelas 360 páginas e 4 capítulos que compõem a primeira parte da obra. Da segunda parte, somente o segundo capítulo propõe interpelação direta entre Ricoeur e Tucídides, ou seja, de um volume de 600 páginas o leitor pode esperar tal confronto apenas na última centena, e ainda assim de forma tímida, ao que se segue uma conclusão extremamente sucinta.

No entanto, as sendas abertas pela pesquisa de Soares são profícuas, por exemplo, na abordagem do método de composição de discursos de Tucídides (I. 22.1-2) à luz das teses ricoeurianas. Desde Heródoto a dramatização (no sentido de “representação da ação”) de discursos e debates oratórios são conectores de acontecimentos que conferem sentido a estes tanto progressivamente (antecipam fatos ainda não narrados) como regressivamente (julgam e explicam fatos já narrados), assim o historiador revela ao leitor as disposições dos agentes históricos frente a uma ação inacabada, bem como expectativas frustradas ou não pelos acontecimentos desenrolados (SOARES, 2014, p.454-455). Ainda que construção subjetiva, os discursos ligam-se à interpretação dos acontecimentos, na medida em que funcionam como narração-explicação do sucesso ou insucesso das ações (SOARES, 2014, p.479). Tucídides na sua escrita não procura a descrição asséptica de acontecimentos, mas enreda-os narrativamente. Tal procedimento revela ressonância evidente com a tríplice mimese ricoeriana, na medida em que exige do historiador uma prefiguração ética na avaliação e seleção das fontes e traços do passado, bem como uma configuração narrativa na forma de ação (discurso e acontecimento), e por fim, subscreve a intenção deste em elementos persuasivos que visam alcançar a refiguração do leitor capaz de reconhecer o que foi ali prefigurado e configurado.

Soares desdobra-se com competência na apresentação destas questões, no entanto, lidar simultaneamente com a tradição milenar da hermenêutica tucideana e a profundidade das discussões de Ricoeur é, de fato, muito trabalhoso, e a pertinência destas fontes acaba por ofuscar a marca autoral de Soares. O diálogo entre duas referências fundamentais para a historiografia, no qual consiste a originalidade da obra, acaba ficando frágil na separação rígida das duas partes do livro.

Soares ressalta especialmente o papel da narrativa como uma forma da história “cativar o público”, “se dar a ler” (2014, p.30), em suma, “uma forma estilizada de apresentar a verdade”, sendo esta a “tese maior” que pretende expor (2014, p.483), e defende enfaticamente a fronteira entre história e ficção, e talvez por isso privilegia a função ornamental e persuasiva da narrativa. Afirmar isto parece subestimar o papel da narrativa na configuração do tempo histórico: as reflexões de Ricoeur e a metodologia de Tucídides apontam que a ficcionalização dos fatos está para além da persuasão e do elemento imagético (ou cor local) da história: ela é a forma privilegiada de expressar o pensamento e a compreensão do historiador sobre as ações humanas no tempo, resolvendo poeticamente o embaraço da distentio animi agostiniana e a própria noção aristotélica de história enquanto narrativa episódica, sem vínculo com o provável e o necessário. Sua discussão do confronto entre a Poética aristotélica com a obra de Tucídides (2014: p.552-565) faz excelente balanço bibliográfico da questão, mas não responde se Tucídides almejava configurar um tempo histórico nos moldes ricoeurianos a partir das suas generalizações, ou se ele de fato tentava se aproximar do cronista imaginado por Aristóteles que narra indiscriminadamente o que “Alcibíades fez ou sofreu”. Soares opta por descrever Tucídides como parte poeta e parte historiador (2014, p.561-565), e por fazer eco às teses que Aristóteles não reconhecia nele um historiador, mas sim um pensador político (2014, p.552- 558).

Esta indefinição, no entanto, tem implicações. Por exemplo, Soares afirma, com base em A. W. Gomme (1954), que os contrastes dramáticos de Tucídides residem nos próprios acontecimentos que “se sucedem no tempo, sem nada de relevante entre eles” (SOARES, 2014, p.492), o que faz parecer que o historiador apenas revela os acontecimentos sem precisar configurá-los narrativamente. Isto deixa em segundo plano a configuração narrativa que Ricoeur extrai da Poética de Aristóteles (“um por causa do outro” ao invés de “um depois do outro”) e faz parecer que Tucídides seguia uma sucessão natural dos eventos, e nãos os compôs e enredou numa síntese do heterogêneo. Tucídides poderia ter apresentado outros eventos menores entre a sucessão, poderia ter-se dado às digressões tipicamente herodoteanas, mas é na disposição das ações que reside o efeito dramático alcançado, que não se pode atribuir aos próprios acontecimentos sem subestimar o papel da configuração narrativa, que Soares claramente não ignora de todo, mas ao longo do texto dá mais ênfase ao seu papel ornamental e persuasivo, especialmente na sua discussão sobre o “fazer ver” o passado, sua exposição sobre os conceitos de enargeia e ekphrasis (2014, p.582-595).

Em conclusão, Soares faz justíssima representação das teses ricoeurianas e das principais discussões em torno da obra de Tucídides, mas na hora de enredá-las em conjunto na sua própria configuração narrativa, oferece ao leitor uma interpretação que, por vezes, subestima a complexidade da configuração narrativa histórica enquanto síntese do heterogêneo e ordenador do tempo humano e histórico, ao menos no que diz respeito na sua interpelação das teses ricoerianas com o texto tucideano. Esta característica não apaga o brilho das conquistas de Soares, pois o leitor da sua obra pode esperar excelente abordagem da contribuição de Ricoeur sobre história e ficção, bem como uma expedição competente aos debates em torno da obra tucideana, cuja sombra projetou-se desde as teorias positivistas e metódicas da história do séc. XIX até as teses narrativistas que agitaram o debate historiográfico no séc. XX.

Nota

2. Para um estudo de dois casos relevantes nos quais o paradigma tucidideano foi invocado em contextos geopolíticos contemporâneos ver PIRES, Francisco Murari. “O General Marshall em Princeton, Tucídides na Guerra Fria”. História da Historiografia n. 2, 2009, pp. 101-115.

Referências

GOMME, A. W. The Greek atitude to poetry and history. Berkeley: University of California Press: 1954

RICOEUR, Paul. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1964 (2003).

______. Temps et Récit – Tome I. Paris: Seuil, 1983 (2005).

______. Temps et Récit – Tome II. Paris: Seuil, 1984 (2005).

______. Temps et Récit – Tome III. Paris: Seuil, 1985 (2005).

______. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Seuil, 2009.

SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Fundação Eng. António de Almeida: Porto, 2014, 638 pp.

Denis Renan Correa – Professor Adjunto II na área de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e estudante de doutoramento da Universidade de Coimbra.


SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2014. Resenha de: CORREA, Denis Renan. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides por Martinho Soares. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.388-393, ago., 2019.Acessar publicação original [DR]

Leandro Gomes de Barros: vida e obra | Arievaldo Vianna

No dia 19 de setembro de 2018 a literatura de cordel foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). [2] Trata-se, sem dúvida, de um importante reconhecimento do poder público dessa manifestação literária e cultural e motivo de orgulho para poetas cordelistas e amantes dessa literatura. O ano de 2018 também representa o centenário de morte daquele que é considerado o “pai da literatura de cordel” nordestina brasileira e principal influência dos poetas cordelistas: Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Esses acontecimentos nos estimulam a fazer uma reflexão sobre a história e a trajetória da literatura de cordel no Brasil. Uma obra que trouxe contribuições importantes para essa discussão é: Leandro Gomes de Barros: vida e obra, de Arievaldo Vianna, lançada em 2014, que buscou realizar uma biografia de Leandro, o fundador desta literatura.

Arievaldo Vianna Lima é poeta cordelista, radialista, ilustrador e publicitário. Nasceu em Quixeramobim, no Ceará, em 1967, sendo alfabetizado por sua avó com o auxílio da literatura de cordel. Publicou mais de 70 folhetos de cordel[3] e livros. Arievaldo é também um militante pela utilização da literatura de cordel em sala de aula por meio do projeto Acorda Cordel na sala de aula, publicando em 2006 um livro homônimo [4], com diversas sugestões para os professores (LIMA, 2006, pp. 83-84). Arievaldo faz parte da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ocupando a cadeira número 40, cujo patrono é João Melquíades Ferreira [5]. Arievaldo participa de vários eventos pelo Brasil, como feiras do livro e divulga suas atividades de poeta no blog Acorda Cordel. [6]

Leandro Gomes de Barros: vida e obra é resultado de uma pesquisa de vários anos, iniciada pela aproximação de Arievaldo, com folhetos de Leandro, ainda em sua infância, como Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, Juvenal e o Dragão, Cachorro dos mortos e Cancão de fogo. Assim, a obra é uma homenagem ao poeta que o ajudou em sua alfabetização e que continua sendo a sua principal inspiração na composição de folhetos. O livro conta com 13 capítulos, mais dois apêndices [7], e com textos de apresentação de Marco Haurélio [8] e Gilmar de Carvalho [9]

, além de ilustrações de Jô Oliveira [10].

O fato de Arievaldo não ser historiador de formação pode fazer com que alguns acadêmicos com visões mais fechadas para estudos de fora do ambiente acadêmico “torçam o nariz” e não deem o valor devido à obra. Ao contrário dessas visões hierárquicas em nosso entendimento, a aproximação de Arievaldo com a literatura de cordel traz uma sensibilidade maior ao seu trabalho de investigação, explorando nuances que os acadêmicos que apenas se ligam ao cordel por meio da pesquisa não conseguiriam identificar. Sendo poeta cordelista e militante pela causa da poesia popular, Arievaldo demonstra ser um pesquisador do cordel comprometido com o levantamento bibliográfico e análise de fontes com rigor. Dessa forma, o trabalho de Arievaldo Vianna pode ser visto como uma biografia histórica.

Segundo Mary del Priore, “a moda da biografia histórica é recente”, já que até a metade do século XX, sem ser de todo abandonada, “ela era vista como um gênero velhusco, convencional e ultrapassado por uma geração devotada a abordagens quantitativas e economicistas.” (PRIORE, 2009, p.7). Marc Ferro debitava esse desinteresse pela biografia a dois fatores: a valorização do papel das massas e a diminuição do papel dos ‘herois’ inspirada no determinismo ou no funcionalismo, das análises marxistas e estruturalistas que marcaram a produção europeia dos anos 1960(PRIORE, 2009, p.7).

Na primeira metade do século XX, vários escritores se tornaram grandes biógrafos, como Guy de Portalés, Michel de Leiris, André Maurois, Lytton Strachey, dentre outros. Mary del Priore aponta que o gênero é um “convite à viagem artificial no passado, fortemente ligada aos fatos, a maior parte das biografias era acrítica e lançava suas raízes no terreno das paixões coletivas.” (PRIORE, 2009, p.8). Um dos pioneiros em colocar as bases de uma biografia histórica renovada foi Lucien Febvre, que ao fazer as biografias de Lutero e Rabelais, “deu vida a personagens tributários de uma utensilagem mental que os ultrapassava e os permitia se situar numa dada época e sociedade.” (PRIORE, 2009, p.9). A rejeição da biografia histórica só teve fim nos anos 1970 e 1980, conforme Priore:

O fenecimento das análises marxistas e deterministas, que engessaram por décadas a produção historiográfica, permitiu dar espaço aos atores e suas contingências novamente. Foi uma verdadeira mudança de paradigmas. A explicação histórica cessava de se interessar pelas estruturas, para centrar suas análises sobre os indivíduos, suas paixões, constrangimentos e representações que pesavam sobre suas condutas. O indivíduo e suas ações situavam-se em sua relação com o ambiente social ou psicológico, sua educação, experiência profissional etc. O historiador deveria focar naquilo que os condicionava a fim de fazer reviver um mundo perdido e longínquo. Esta história “vista de baixo” dava as costas à história dos grandes homens, motores das decisões, analisadas de acordo com suas consequências e resultados, como a que se fazia no século XIX. (PRIORE, 2009, p.9).

Dessa maneira, embora não dialogue diretamente com obras do campo da biografia histórica, Arievaldo Vianna acaba por realizar um estudo biográfico com foco em Leandro Gomes de Barros sem perder de vista o contexto histórico em que o poeta viveu, além das pistas deixadas pelo próprio poeta em seus folhetos de cordel, que também trazem marcas de sua vida e que foram exaustivamente analisados por Vianna.

Em Leandro Gomes de Barros: vida e obra, o autor defende o pioneirismo de Leandro Gomes de Barros na produção de folhetos de cordel, concordando com Francisco das Chagas Batista, que já indicava isso em sua obra Cantadores e poetas populares, de 1929. Embora já existissem alguns folhetos publicados antes de Leandro, Vianna ressalta que “foi coisa esparsa, sem um programa editorial consistente” (VIANNA, 2014, p.22), diferente do que foi feito por Leandro, que produziu de forma sistemática. Vianna também aponta a originalidade do poeta paraibano na forma poética do cordel:

Leandro não se limitou a reaproveitar os temas correntes, oriundos do romanceiro medieval e dos ABCs manuscritos compostos em quadra, que já circulavam aos montes pelo Nordeste narrando a gesta do boi e do cangaceiro. Ele foi mais longe. Criou um tipo de poesia cem por cento brasileira, versejou em diversas modalidades (sextilha, setilha e martelo), utilizando a redondilha maior (sete sílabas) e o decassílabo. (VIANNA, 2014, p.20).

Utilizando fontes como certidões de nascimento, casamento, de óbito, registros de batismo, além do depoimento de Cristina da Nóbrega, sobrinha-neta de Leandro Gomes de Barros, Arievaldo conseguiu trazer à tona algumas pistas da vida de Leandro. Embora nascido em Pombal, na Paraíba, Leandro passou boa parte de sua infância e adolescência na Vila do Teixeira, também na Paraíba, sendo criado pelo seu tio materno, o Padre Vicente Xavier de Farias, pois se tornou órfão muito jovem. Esse momento foi crucial para sua formação de poeta, pois, em primeiro lugar, a Vila do Teixeira foi o berço dos grandes cantadores do passado, como Francisco Romano Caluête e o famoso glosador Agostinho Nunes da Costa. Vianna ressalta que esses poetas antigos “tinham o costume de escrever cadernos com as melhores glosas de sua produção poética.” (VIANNA, 2014, p.29). Além disso, já circulavam nessa época cópias manuscritas de poemas em quadras, como Obra de Ricarte (que deu origem ao Soldado Jogador), Rabicho da Geralda e Cantiga do Vilela (que deu origem ao folheto História do Valente Vilela) (VIANNA, 2014, p.29).

Em segundo lugar, a Vila do Teixeira foi uma terra de “grandes valentões, com destaque para os Guabirabas, família de celerados cuja bravura Leandro imortalizaria em versos, muitos anos depois.” (VIANNA, 2014, p.29). Os conflitos políticos e a presença dos cangaceiros na região estavam marcados na memória dos moradores, sendo a infância de Leandro “povoada por mirabolantes histórias de lutas, muitas delas narradas em quadras pelos cantadores do Teixeira.” (VIANNA, 2014, p.36).

Em terceiro lugar, a vida na Vila do Teixeira foi importante pela educação que Leandro recebeu do Padre Vicente Xavier de Farias [11]. Leandro teve acesso a diversas leituras, como as Escrituras Sagradas e a História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Além disso, várias irreverências de Leandro na juventude e seus conflitos com o Padre Vicente, que o levaram a fugir de casa, inspiraram, segundo Vianna, personagens de folhetos como Cancão de Fogo. (VIANNA, 2014, pp. 41-44).

Mudando-se para Pernambuco [12], onde passou a viver unicamente da venda de folhetos de cordel, Leandro se casou com dona Venustiniana Eulália de Sousa e teve quatro filhos: Rachel, Esaú, Julieta e Herodias. Arievaldo também identifica algumas influências do convívio familiar nos folhetos de Leandro, a exemplo da convivência com a sogra. Segundo Vianna, “uma análise da obra de Leandro demonstra a sua constante ojeriza pela figura da sogra, o que leva a crer que o poeta mantinha uma relação tumultuada com a mãe de sua esposa.” (VIANNA, 2014, pp. 47-48).

Analisando os próprios folhetos de Leandro, que trazem pistas biográficas sobre o poeta, e relatos de contemporâneos, como Eustórgio Vanderley e Câmara Cascudo; Arievaldo também identifica algumas informações importantes: Leandro era “um homem cosmopolita, pois se mudara ainda adolescente para as imediações do Recife, uma das mais prósperas capitais do Brasil”; “lia regularmente, além dos livros úteis à sua pesquisa, jornais e revistas”, “andava constantemente de trem, hospedava-se em hotéis quando viajava e andava regularmente calçado de sapatos ou botinas” (VIANNA, 2014, p.62); “tinha um espírito aventureiro, gostava de viajar sertão afora, ora em lombo de burros e cavalos, ora nos trens da Great Western, percorrendo os estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Rio Grande do Norte.” (VIANNA, 2014, p.65).

O pioneirismo do poeta paraibano também se deu na questão da comercialização e distribuição dos folhetos de cordel. Vianna afirma que “nada se compara ao tino comercial, ao estro prolífico e a persistência de Leandro Gomes de Barros”, que fez com que “fossem criados pontos de venda em vários Estados brasileiros, fazendo com que sua produção se espalhasse por todo o país, sobretudo nos estados do Norte-Nordeste.” (VIANNA, 2014, p.72). Além da venda direta, Leandro também utilizava os serviços do correio para venda, o que era divulgado na própria contracapa dos folhetos.

O capítulo mais polêmico é o décimo, intitulado “Leandro x Athayde”, no qual Vianna discute a apropriação que João Martins de Athayde fez das obras de Leandro. Após a morte de Leandro, em 1918 [13], Athayde adquiriu os direitos autorais sobre a obra do poeta paraibano em um negócio realizado e registrado em cartório com a viúva de Leandro. Quando Athayde passou a publicar os folhetos de Leandro, ele retirou o nome do poeta da autoria, colocando o seu próprio como editor-proprietário e, depois, como autor dos folhetos. Soma-se a isso, o fato de Athayde em alguns folhetos alterar o acróstico na última estrofe, de forma a apagar as pistas da autoria de Leandro.

Arievaldo Vianna ataca Athayde de várias formas. Primeiramente, aponta que o seu biografado tinha mais qualidade poética, afirmando que Athayde “não tinha a mesma verve criativa de Leandro”, “não tinha o senso crítico, a sátira mordaz e afiada do velho poeta de Pombal nem sua habilidade para extrair romances inéditos da própria cachola” (VIANNA, 2014, pp. 88-89). Em segundo lugar, afirma que a apropriação e a adulteração da obra de Leandro não foi algo inocente, pelo contrário, “foi um ato pensado, medido e bem calculado”, Athayde “jamais agiu dessa maneira por ingenuidade, desinformação ou desejo de preservar a sua ‘propriedade literária’”, pois, para isso, bastava colocar seu nome como Editor-Proprietário, mantendo o nome do autor e respeitando os acrósticos no final do poema (VIANNA, 2014, pp. 99-100).

Vianna também questiona alguns pesquisadores “simpatizantes do poeta João Martins de Athayde”, que tentam atribuir a ele a autoria de alguns folhetos “comprovadamente escritos e editados por Leandro, baseados em informações nebulosas, que nas mãos de um leitor mais atento e informado são facilmente dissipadas.” (VIANNA, 2014, p.93). Vianna critica autores como Umberto Peregrino, Átila de Almeida, Liêdo Maranhão de Sousa, Waldemar Valente e Mário Souto Maior. A título de exemplo, iremos apontar o comentário que ele faz a Umberto Peregrino na obra Literatura de cordel em discussão, de 1984. Peregrino, baseado em Átila de Almeida, aponta que o folheto Meia-Noite no Cabaré é de autoria de Athayde, que teria se inspirado na obra A noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Leandro não teria sido o autor da obra porque, conforme Almeida, “jamais se daria a leituras como a de Camões ou de Álvares de Azevedo.” (VIANNA, 2014, pp. 93-95). Para rebater essa afirmação, Vianna indica que Leandro era leitor assíduo de vários livros que eram fonte de inspiração para seus folhetos, citando estofes do folheto História da Donzela Teodora, além de apontar vários outros que eram inspirados em livros: Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, inspirado no livro Carlos Magno e os Doze Pares de França; Juvenal e o Dragão, que vem do conto “Os três cães” de Figueiredo Pimentel; A vida de Pedro Cem, que é inspirado num livro de origem lusitana; Os Martyrios de Christo, inspirado em O Mártyr de Gólgotha, do romancista espanhol Enrique Pérez Escrich; A filha do pescador, inspirado num conto das Mil e uma noites. (VIANNA, 2014, p.94). Além disso Leandro certamente frequentava a livraria de seu genro, Pedro Batista, que possuía clássicos da Literatura portuguesa e brasileira. A defesa que Arievaldo Vianna faz de seu biografado na autoria de folhetos atribuídos a Athayde é tanta que, curiosamente, ele critica até mesmo o seu irmão, o seu poeta Klévisson Viana, que teima em atribuir o romance História de Roberto do Diabo à Athayde (VIANNA, 2014, p.96).

Essa “campanha” para restituir a Leandro Gomes de Barros a autoria de folhetos identificados como sendo de Athayde também foi feita por Aderaldo Luciano em seu livro Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro, de 2012 [14]. Contudo, ao contrário de Vianna, que identifica autores “simpatizantes” de Athayde, Luciano aponta que a insistência de atribuir folhetos de Leandro a Athayde são resultados de “pesquisadores e estudiosos que não têm vivência e se recusam a conhecer as nuanças, os detalhes, do cordel” (LUCIANO, 2012, p.75), da “falta de averiguação das informações recebidas por alguns pesquisadores” e, “muitas vezes, a preguiça de pesquisar de certos estudiosos” (LUCIANO, 2012, p.77).

Por fim, Arievaldo Vianna analisa uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, intitulada “Leandro, o poeta”, publicada no Jornal do Brasil em 1976; na qual Drummond elogia o poeta cordelista afirmando que ele deveria ter recebido o título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, ao invés de Olavo Bilac. Este artigo, “tem sido utilizado exaustivamente pelos admiradores de Leandro como uma prova incontestável de seu talento, afinal de contas, trata-se do reconhecimento de um medalhão das nossas letras.” (VIANNA, 2014, p.113). Contudo, Vianna questiona alguns termos que Drummond utiliza para se referir a Leandro, pois este “não era totalmente ‘inculto’ e ‘iletrado’.” (VIANNA, 2014, p.117). Drummond também se equivoca, segundo Vianna, quando considera a obra de Leandro “pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco”, pois Leandro tinha sim “métrica, ritmo, conhecimento de gramática e apoio livresco.” (VIANNA, 2014, p.120).

Logicamente, Leandro Gomes de Barros: vida e obra ainda deixa algumas lacunas acerca da vida do “pai da literatura de cordel”. A impressão que dá ao leitor é que o livro termina rápido demais comparado a outras biografias. Contudo, há de se mencionar a dificuldade no acesso às fontes. Em certo trecho, Vianna menciona que “se já era difícil” para pesquisadores como Sebastião Nunes Batista e Ruth Terra, que conviveram com descendentes diretos de Leandro, “mais difícil ainda é para o pesquisador de hoje, com poucos recursos financeiros e nenhum incentivo à sua pesquisa (VIANNA, 2014, p.27). Assim, é importante relembrarmos de Jacques Le Goff, que observa que é a documentação que dita a ambição e os limites de investigação do historiador na escrita de uma biografia histórica (LE GOFF, 1999, p.22). Diferente do romancista, por exemplo, que não raras vezes vai além do que diz as fontes e abusa da criação e da imaginação. Já o historiador deve “saber respeitar aqui as falhas, as lacunas que a documentação deixa” (LE GOFF, 1999, p.21). Assim, Arievaldo Vianna age como um verdadeiro historiador.

Ao pensar teoricamente a biografia histórica, Le Goff questiona a oposição entre o indivíduo e a sociedade. Esse é um “falso problema”, pois “o indivíduo não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas”, sendo necessário o conhecimento da sociedade “para ver nela se constituir e nela viver uma personagem individual.” (LE GOFF, 1999, p.26). No caso de Leandro Gomes de Barros: vida e obra, Arievaldo Vianna consegue pensar a produção cordelística de Leandro articulada com o contexto histórico em que viveu e perscrutar a teia de relações sociais e culturais que possibilitaram o sucesso do poeta paraibano na divulgação de seus folhetos no Norte e Nordeste do Brasil no início do século XX. Em nosso entendimento, é uma obra fundamental para quem quer conhecer e se aprofundar na história da literatura de cordel no Brasil; e importante de ser retomada neste momento de festejos pelo reconhecimento do cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro.

Notas

1. Doutorando em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, e da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC).

2. Ver “Literatura de cordel recebe título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro”. Portal G1 PE. 19 set. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2018/09/19/literatura-de-cordelrecebe-titulo-de-patrimonio-cultural-imaterial-brasileiro.ghtml. Acesso em: 20 set. 2018.

3. Dentre os folhetos, podemos citar , A mulher fofoqueira e o marido prevenido, A raposa e o Cancão, As proezas de Broca da Silveira, Atrás do pobre anda um bicho, Brasil – 500 anos de resistência popular, Encontro com a consciência, Encontro de FHC com Pedro Álvares Cabral, Galope para Patativa e Castro Alves, História da Rainha Ester, Luiz Gonzaga o rei do baião, O príncipe Natan e o cavalo mandingueiro.

4. Segundo Arievaldo Vianna Lima, “o Projeto Acorda Cordel na Sala de Aula propõe a revitalização do gênero e sua utilização como ferramenta paradidática na alfabetização de crianças, jovens e adultos e também nas classes do Ensino Fundamental e Ensino Médio, a partir do lançamento de uma caixa de folhetos, contendo 12 obras de diferentes autores, para ser trabalhada nas escolas acompanhadas deste livro.” (LIMA, 2006, p.14).

5. A Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) foi fundada no dia 7 de setembro de 1988, e tem como presidente o poeta Gonçalo Ferreira da Silva. Sua sede é no Rio de Janeiro, e possui 40 cadeiras que são ocupadas pelos “imortais”, que são poetas cordelistas ou pesquisadores do cordel. Ver Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Disponível em: http://www.ablc.com.br/  Acesso em: 20 set. 2018.

6. Ver o blog Acorda cordel. Disponível em: http://acordacordel.blogspot.com/  Acesso em: 20 set. 2018.

7. Os apêndices são: “Fatos importantes da vida de Leandro por ordem cronológica” e “Entrevista de Arievaldo Viana ao jornal Diário de Pernambuco, nos 90 anos de morte de Leandro.”

8. Marco Haurélio é poeta popular, editor e folclorista. Em cordel, tem vários títulos editados, dentre os quais: Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo; História da Moura Torta e Os Três Conselhos Sagrados (Luzeiro). Possui um blog intitulado Cordel Atemporal. Disponível em: http://marcohaurelio.blogspot.com/  Acesso em: 21 set. 2018.

9. Gilmar de Carvalho é Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo. Autor de diversas publicações, dentre as quais destaca-se Patativa do Assaré − Uma biografia, já em terceira edição, Lyra Popular: o cordel do Juazeiro, em segunda edição, e A xilogravura de Juazeiro do Norte.

10. Jô Oliveira foi aluno da Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Durante seis meses estudou desenho animado no Stúdió Pannónia, e depois frequentou a Academia Húngara de Artes Aplicadas (Magyar Iparmüvészeti Föiskola, hoje conhecida como Universidade Moholy-Nagy de Arte e Design), onde concluiu o curso de Artes Gráficas. Os seus primeiros trabalhos, livros e quadrinhos, foram impressos nos anos 70 na Itália. Publicou também livros na França e Alemanha, e seus quadrinhos tiveram edições na Espanha, Itália, Grécia, Sérvia, Dinamarca, Argentina e Brasil. Jô participou em exposições de ilustração em várias partes do mundo. Desenhista de selos postais, criou mais de 50 peças filatélicas para os Correios. Ver o site O Brasil de Jô Oliveira. Disponível em: Acesso em: https://www.obrasildejooliveira.com.br/  Acesso em: 21 set. 2018.

11. O Padre Vicente Xavier de Farias também foi um líder político influente chegando a eleger-se deputado ainda no tempo da Monarquia. Por conta disso granjeou a antipatia de alguns adversários que lhe dirigiam pesadas críticas através dos jornais da capital da Paraíba do Norte. (VIANNA, 2014, p.37).

12. Em Pernambuco, Leandro Gomes de Barros residiu em Vitória de Santo Antão, Jaboatão e em Recife.

13. Em relação à morte de Leandro, Arievaldo Vianna cita a certidão de óbito do poeta, que fora encontrado pela sua sobrinha-neta Cristina da Nóbrega nos cartórios do bairro de São José, no Recife. A morte do poeta se deu às 21:30 do dia 04 de março de 1918, tendo como causa mortis aneurisma. As informações da certidão de óbito foram prestadas por seu filho, Esaú Eloy de Barros Lima, que tinha então 17 anos. (VIANNA, 2014, p.109).

14. Para uma resenha da obra de Aderaldo Luciano, ver MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Questionamentos à historiografia do cordel brasileiro. História da historiografia. Ouro preto, n.13, dez. 2013, p.220-225.

Referências

LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999. LIMA, Arievaldo Viana (org.). Acorda cordel na sala de aula. Fortaleza: Tupynanquim /Queima-Bucha, 2006.

LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro; São Paulo: Edições Adaga; Luzeiro, 2012.

PRIORE, Mary del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi. v. 10, n.19, jul.-dez. 2009, p.7-16.

VIANNA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros: vida e obra. Fortaleza: Edições Fundação Sintaf/ Mossoró-RN: Queima-Bucha, 2014.

Geraldo Magella de Menezes Neto – Doutorando em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, e da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC).


VIANNA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros: vida e obra. Fortaleza: Edições Fundação Sintaf. Mossoró-RN: Queima-Bucha, 2014. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Uma biografia de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), o “pai da literatura de cordel”. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.389-399, ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval | Damien Boquet e Piroska Nagy

Quando Gaia Ciência foi publicada pela primeira vez em 1881, Friedrich Nietzsche afirmou:

Quem quiser estudar de agora em diante as questões morais terá diante de sí um imenso trabalho. Existe toda uma série de paixões que devem ser levadas em consideração, observadas separadamente e através das épocas e dos povos nos grandes ou pequenos indivíduos, temos que lançar luz em sua forma de raciocinar, valorizar e esclarecer as coisas. Até hoje nada do que da cor a existência tem todavia sua história, pois quando foi feita uma história do amor, da ganância, da consciência, da piedade, da crueldade? (NIETZSCHE, 1981, p.25)

A citação de Nietzsche é mais que uma simples análise do campo científico ocidental. É um chamado a pensadores, filósofos e cientistas das mais diversas áreas do conhecimento para formular histórias, perguntas e questionamentos acerca dos modos de sentir dentro das questões humanas.

De certo modo, as palavras do filósofo alemão ficaram adormecidas ao longo das décadas. Isso não significou, no entanto, que as emoções não tivessem sido problematizadas nas páginas de livros de historiadores, sociólogos e antropólogos. Podemos destacar dentro desse cenário, títulos como Outono da Idade Média de Johan Huizinga (1919), Sexo e repressão na sociedade selvagem, de Bronislaw Malinowski (1927) e O processo civilizador de Norbert Elias (1939). Estas obras, no entanto, não tinham por pretensão estabelecer um campo autônomo do conhecimento que tratasse as emoções como uma propriedade e que trouxesse à luz os fenômenos culturais mais profundos, que a linguagem e os múltiplos filtros dos códigos sociais não conseguiram conter. Diferentemente do livro aqui resenhado, as emoções ainda eram pouco destacadas ou ocupavam um lugar secundário frente a outras dimensões da vida social. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval é um exercício de pesquisa histórica que tem nas emoções e suas expressões, exatamente os protagonistas do processo, de tal forma que enxergamos e compreendemos a dinâmica dos processos sociais a luz das emoções retratadas.

É na década de 1990, com o advento da neurociência, por exemplo, que as emoções são “convidadas” a ocupar um lugar de destaque nas páginas da historiografia, ao lado de conceitos como luta de classes, mentalidades, cultura etc. No campo historiográfico é impossível deixar de citar a produção dos historiadores estadunidenses, Barbara Rosenwein e William Reddy que exploram a relação entre emoção e cognição, desenvolvendo uma teoria de expressões emocionais e buscando codificar as emoções e suas manifestações. Para Rosenwein (1998), por exemplo, que cunhou o termo comunidades emocionais para estabelecer a íntima relação entre a vida social e a dimensão emocional, o historiador das emoções não deve apenas atentar para a emoção em si, mas para o produto social (discurso). Isso implica na ideia de emoção como uma ancora entre signo e o mundo, encontrando as emoções nos gestos e palavras.

Desse modo, é a partir destes marcos fundacionais que é possível situar o livro Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l’occident medieval dos medievalistas Piroska Nagy, professora da Universidade de Quebec e pesquisadora vinculada ao Centro de Excelência para a História das Emoções entre 2014-1017 e que também escreveu Le don des larmes na Moyen Âge. Un instrument spirituel in aqueleuse d’institution, Ve-XIIIe siècle (2000) e Damien Boquet, mestre de conferência da Universidade de Aix-Marseille e ex- membro do Institut Universitaire de France e coordena juntamente com Nagy o programa “EMMA” (Emoções na Idade Média).

A obra lança um olhar que se ancora dentro do desafio de apresentar e explicar o papel, as representações e especialmente a evolução das emoções, que são entendidas como processos e manifestações dentro de um dispositivo cultural. As emoções não são consideradas como inerentemente irracionais, como se não seguissem padrões racionais. Elas são demonstrativos significativos que justificam e legitimam publicamente os atos praticados. Os historiadores não negam os aspectos biológicos da dimensão emocional, mas reforçam os sentidos sociais da emoção, reforçando as mesmas como zonas de interação e conflito entre o individuo e a sociedade. Mais especificamente na obra em questão, o que chama a atenção é que a emoção é compreendida por meio de aspectos culturais e é expressa em termos de sensibilidades e afetos no interior da sociedade medieval entre os V e XV século.

A obra esta dividida em nove capítulos, com cerca de quatro a cinco subtítulos e cobrem aproximadamente os 10 séculos tidos como tradicionais da História dita Medieval. O livro está organizado tanto cronologicamente – no qual acompanhamos século a século – quanto tematicamente – pelo qual as emoções são agrupadas em temas.

Nas palavras dos autores, “este livro propõe uma história cultural da afetividade do Ocidente medieval” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa)2. A emoção surge em imagens e textos da cultura medieval e “reside no coração da antropologia da Idade Média Ocidental” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa) [3]. Somos convidados, nas páginas do livro, a conhecer uma história que associa processos cognitivos (imaginação, memória, etc.) e se articula com aspectos psicológicos e de uma história social.

Interessar-se pela história das emoções não significa promover uma história do indivíduo, a microscópica, uma história segmentada; pelo contrário, é uma história antropológica, no auge do homem, de todo o ser humano e de singularidades compartilhadas (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa) [4].

Uma boa parte da concepção medieval das emoções e da vida afetiva no Ocidente foi elaborada entre o século III e VI como os autores demonstram no capítulo La christianisation des affects. Os afetos são cristianizados e adquirem novas e originais concepções. Existe com o cristianismo, uma integração da alma humana, entre passio e ratio. A emoção faz parte, agora, da dimensão racional. Para os antigos, a emoção diz respeito à irracionalidade da natureza humana. Platão e Aristóteles, por exemplo, afirmavam que a emoção é um valor ontológico da natureza humana e está ligada a alma irracional. Os Estoicos assim como Santo Agostinho, veem na emoção um movimento da alma que provoca mudança corporal.

A Bíblia é um exemplo. Ela está saturada de emoções. O Antigo Testamento mostra um Deus zangado e misericordioso com seu povo e que oferece (Novo Testamento) um filho dotado de emoções virtuosas: amor, paixão e sofrimento. Deus enviou seu Cristo que sofre por amor para salvar a humanidade. Deste modo, a Bíblia não é apenas um depósito de emoções humanas, mas também de emoções que são de Deus. Desde então, a humanidade é dominada pela vida emocional e busca direciona-las ou afasta-las de Deus, na medida em que participam do sistema de vícios e virtudes que fazem parte da base da educação monástica, que compõe uma elite da sociedade cristã ideal. Converter as emoções em direção a Deus significa orientar-se para a salvação, adotando um comportamento que une uma disposição interior que está em consonância ao movimento espiritual (La cité du désir: le laboratoire monastique, capítulo II). O principal laboratório e matriz gestacional das emoções no Ocidente é o mosteiro. Os monges seguem uma orientação vertical da afetividade, controlando seus afetos e o contato com Deus substitui a solidão e instaura a amizade como um valor que produz boas emoções.

Entre os séculos V e X os textos normativos e morais escritos por monges e clérigos mapearam um processo de conversão de emoções, que foi primeiro dirigido ao mundo dos claustros, voltado para o mundo dos ambientes monásticos e posteriormente passando a ser dirigido para a sociedade laica (Des émotions pour une société chrétienne: Francie, v-x siècle, capítulo III). Um novo projeto de sociedade toma forma na base do laço social cristão por excelência, o amor da caridade e da amizade genuína, formulada no tempo de Carlos Magno e novamente na época daquilo que a historiografia convencionou chamar de Reforma Gregoriana.

No capítulo IV, L`apogée de l´affecct monastique, os autores centram suas análises no contexto da renovatio cristã para analisar o conjunto de processos que influencia a cultura emocional das sociedades do século XI. A reforma do monaquismo alimenta a possibilidade de contato direto com Deus através da expressão sincera de certas emoções.

Em estreita relação, e às vezes em conflito com a valorização religiosa do desejo e a ofensiva clerical para espiritualizar o amor conjugal e enquadrar a vida interior, uma literatura da corte em língua vernácula torna visível uma cultura complexa e refinada dos afetos, expressão dos valores e tensões que atravessam círculos aristocráticos e burgueses, como atesta o capítulo V, Éthique et esthétique des émotions aristocratiques à l´âge féodal. A partir do final do século XI, nos círculos de mosteiros e escolas urbanas, a ascensão de um espírito naturalista leva à integração de emoções na natureza humana, (La nature émotive de l´homme, capítulo VI).

Esses diferentes discursos traduzem e difundem um fenômeno de valorização crescente das emoções no final da Idade Média, cujos usos religiosos e sociais parecem mais do que nunca ricos e diversificados (Politiques des émotions princières, capítulo VII). Nós vemos isso na teoria política e nas práticas do governo principesco, que dão orgulho às emoções. As emoções, contrariando a máxima de muitos cientistas sociais que as vincula como uma dimensão irracional e universal da natureza humana apoiam-se, como vemos nesse capítulo, as estratégias de governabilidade e integram as artes de governar. O jovem príncipe deve aprender muito cedo a dominar um código de emoções – que diz respeito à expressão de raiva e tristeza – que lhe é ensinado nos Espelhos de Príncipe.

Em outro nível, a extraordinária promoção da Encarnação e da Paixão de Cristo, na Idade Média, aumenta ainda mais a eficácia emocional religiosa, ligando-a indefinidamente à sua dimensão incorporada: esses são os fundamentos do misticismo afetivo dos séculos XIII XIV, que mantém relações ambíguas com a instituição eclesiástica (La conquête mystique de l´émotion, capítulo VIII). Como atestam os autores, Francisco de Assis “inaugura por meio de seus valores e de seus atos uma nova comunicação com o sagrado, um novo paradigma religioso” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 268-269. Tradução nossa) [5]. O santo de Assis é no relato hagiográfico centro de uma emoção encarnada, permitindo uma nova forma de manifestar a presença divina na Terra. A emoção encarnada é constituída pela tensão entre o corpo e sua expressão emocional. Se antes a paixão era sinônimo de algo vicioso, a virada do ano 1000 a torna um auto sacrifício para seguir Deus, de forma a espiritualizar o carnal e material, tendo o afeto o veiculo de incorporação.

As emoções também têm seus ritos no campo religioso: rezar juntos, procissão, assistir a sermões, ir a peregrinações ou cruzadas, se esforçar para expiar suas faltas ou as de todos os cristãos, etc. Essas expressões, que nos parecem excessivas, não são histéricas e descontroladas. Pelo contrário, eles se expressam em rituais que visam canalizá-los. Os santos místicos foram, sem dúvida, os que impulsionaram as mais profundas explosões de emoções, ligadas a uma nova devoção à humanidade de Cristo. Eles têm visões e espasmos, choram, jejuam ou buscam se satisfazer com Deus de uma maneira bulímica, entram em êxtase, experimentam levitações, vivem uma fusão amorosa com Deus.

A característica mais marcante desse grupo místico, sem duvidas é o fato de existiram um numero considerável de mulheres, tais como freiras, leigas e membras das Terceiras Ordens Mendicantes que experimentaram fenômenos indistintamente espirituais, tanto afetivos quanto corpóreos; os efeitos textuais que fluem através das fontes, portanto, são responsáveis pela ampla circulação de modelos de várias origens. O caminho tomado por essas mulheres, às próprias modalidades de seu caminho permitem explicar não apenas o sucesso, mas também a eficácia religiosa e social da devoção emocional e incorporada. A imaginação, uma função cognitiva a meio caminho entre a inteligência racional e os sentidos corporais – em primeiro lugar, a visão – desempenha um papel muito importante na devoção emocional. Atuando diante de imagens tão onipresentes em igrejas do final da Idade Média, a imaginação atua como um trampolim poderoso na prática da piedade meditativa que recorre à afetividade, às metáforas corporais ou ao próprio uso do corpo. “As emoções engendram experiências corporais, de incorporação, de identificação ou de união dos corpos de Cristo e da Virgem ou de um santo” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 275. Tradução nossa) [6].

E finalmente, as fontes mais numerosas e diversificadas dos últimos séculos da Idade Média possibilitam abrir uma janela para as emoções das populações anônimas, principalmente nas cidades, ressaltando não só a diversidade das culturas emocionais, em especial as apostas do uso da cultura emocional no relacionamento social (L´émotions commune, capítulo IX).

Qual é a imagem criada da Idade Média Ocidental paginas do livro? É um período histórico marcado por uma hipersensibilidade, como atestou Huizinga? Um momento de transição marcado pelo controle das pulsões emocionais como observou Elias? A resposta dos autores é mais simples: os homens e mulheres que viveram entre os séculos V e XV construíram um modelo cristão de afetividade, que penetrou nas mais diversas camadas sociais interagiu com diferentes grupos sociais, dando origem a uma sociedade que não se situa entre dois momentos históricos diferentes, mas que reforça a própria vitalidade e força de suas particularidades.

Em um balanço geral, a obra apresenta um ponto positivo que merece ser destacado: a articulação entre a expressão emocional e os contextos sociais evidenciam os vínculos existentes entre a dimensão cognitiva e o mundo que cerca os homens. No entanto, em minha opinião, o livro possui um ponto fraco: a organização cronológica confere a obra uma visão fragmentada do todo. Existe pouca relação entre os temas dos capítulos. O conteúdo de um não comunicasse com os demais, dando a impressão e que os mesmos funcionam de forma independente. Outro ponto negativo que merece ser destacado é o fato de que para cada século analisado, existe uma expressão emocional correspondente, de forma que elas parecem hegemônicas no cenário social. Essa abordagem dos autores permite tecer algumas indagações: a sensibilidade expressa num período é hegemônica? Existem emoções “eclipsadas” no tecido social? As emoções atuam como normalizadoras da vida social, impedindo a manifestação conflitante ou não de outras emoções?

“A história das emoções nos leva a nos conscientizar da infinita maleabilidade cultural dessa estranha questão afetiva da qual somos feitos” (BOQUET e NAGY, 2015, p.347. Tradução nossa)[7]. O estudo atento das emoções medievais ajuda a compreender a constante fabricação social e a construção de identidades, fundindo o vinculo de suas expressões com Deus. As emoções agem na história em vários níveis: por sua dimensão cognitiva ou moral, por sua relação com o corpo que as impulsiona; as emoções criam linhas de força e de solidariedade. A emoção, a sensação, o pensamento e os atos manifestados criam vínculos entre os grupos e os indivíduos; a emoção modifica e participa tanto na formação quanto nas mudanças históricas.

A análise atenta das emoções como um modo de comunicação social descortina possibilidades até então pouco consideradas pelos historiadores e funciona como uma chave explicativa para as dinâmicas das relações sociais. Desse modo, o presente livro é um convite a todos aqueles – leigos ou especialistas – que se interessam sobre o tema e o resultado de um exercício criterioso e minucioso de erudição histórica.

Notas

1. Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

2. Tradução nossa: “Ce livre propose une histoire culturelle de l’ affectivité de l´Occident médiéval.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17)

3. Tradução nossa: au coeur de l´antropologique du Moyen Âge” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17).

4. Tradução nossa: “S` intéresser à l´histoire des émotions ne veut donc pas dire promouvoir une histoire de l´individu, du microscopique, une hisire segmenté, au contraire, c´est une histoire anthropologique, à hauteur d´homme, de l´être humain entier et des singularités partagées.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17).

5. Tradução nossa: “François inaugure par se valeurs et ses actions um nouveau modedu communication du sacré, um nouveau paradigme religieux”(BOQUET e NAGY, 2015, pp. 268-269).

6. Tradução nossa: “Ces émotions engendrent à leur tour des expériences corporeççes, sinon des expériences d´incorporation, d´identification ou d´union au corps du Christ, de la Vierge ou d´um saint” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 275).

7. Tradução nossa: “L´histoire des émotions nous conduit à prendre conscience de l´infinie malléabilité culturelle de cette étrange matière affective dont nous sommes faits.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.347).

Referências

MALINOWSKI, Bronilaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1981.

REDDY, William M. Sentimentalism and Its Erasure: The Role of Emotions in the Era of the French Revolution. In: The Journal of Modern History, 72, march 2000.

ROSENWEIN, B. H (Ed). Anger’s past: the social uses of an emotion in the Middle Ages. Ithaca: Cornell University Press, 1998.

Douglas de Freitas Almeida Martins – Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).


BOQUET, Damien; NAGY, Piroska. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval. Paris: Éd. Le Seuil, 2015. Resenha de: MARTINS, Douglas de Freitas Almeida. Por uma antropologia do afeto: emoções, afetos e Idade Média. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.400-407, ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

O esporte em tempos de exceção: práticas desportivas e ações políticas durante as ditaduras na América Latina no século XX / Cantareira / 2019

Sem abrir mão da interdisciplinaridade, o presente dossiê procura analisar os estudos sobre o esporte – e, de forma mais específica, sobre o futebol – existentes em tempos de exceção, durante as ditaduras na América Latina, no século XX. A história do esporte já superou a ideia de que seu campo de estudo pertencia, primordialmente, aos profissionais ligados exclusivamente à sua prática ou ao estudo delas, como os atletas e profissionais da educação física. O presente dossiê, nesse sentido, compreende o esforço de estimular e reunir trabalhos que trazem reflexões sobre a diversidade cultural de um fenômeno que, cada vez mais, requer diferentes campos de saberes para sua a compreensão. Antropólogos, sociólogos e posteriormente historiadores vêm, pelos menos desde a década de 1970, debruçando pesquisas sobre as práticas esportivas e suas ações culturais e políticas, bem como a maneira como essas ações se relacionam com o momento político vivido.

Revisitar o tema das relações entre esporte e os períodos ditatoriais durante o século XX, na América Latina, é, ao mesmo tempo, um desafio e um tema necessário. O Brasil, por exemplo, vivenciou durante 21 anos, um regime de exceção, marcado pela violência política e repressão às ações culturais, políticas, sociais e também esportivas, que impediam que a população se manifestasse e agisse livremente conforme seus desejos de expressão. Assim como diversos outros países da América Latina passaram por golpes e regimes que interromperam a experiência democrática e realizaram inúmeras ações autoritárias.

O cotidiano ditatorial tinha reflexos diretos nas ações esportivas e na vivência de clubes, atletas e torcedores desses países, impondo à eles uma nova realidade e a necessidade da criação de novas maneiras de expressão, manifestação e resistência para aqueles que discordavam da forma como o governo levava a cabo suas ações e eram, portanto, alvo de suas medidas repressivas. Nessas sociedades, marcadas pela ambivalência que nos fala Pierre Laborie, havia também aqueles que concordavam e apoiavam as práticas do governo, e tais indivíduos circulavam também no universo esportivo, fazendo ouvir suas propostas e pensamentos. Sejam dirigentes, técnicos, profissionais, atletas ou torcedores, muitos indivíduos compactuavam com a premissa ideológica do regime e, através do esporte, tinham sua voz ouvida.

Atualmente, a temática do esporte e a necessidade de discussão sobre o período de exceção que o Brasil e outros países latino-americanos vivenciaram ao longo do século XX estão presentes em diversos debates dentro e fora da academia; dessa maneira, se faz necessário abrir espaço nesse periódico acadêmico para que essas discussões tenham lugar de se realizar.

Os artigos que compõem este dossiê trouxeram à tona diversas temáticas e manifestações, que vão desde movimentos torcedores, como é o caso da Raça Rubro-Negra, do clube de Regatas do Flamengo, até ações mais diretas do governo, através de símbolos, como músicas e ações políticas mais diretas que visavam, grosso modo, conseguir o consenso através do esporte. Sendo assim, faz-se um convite aos leitores para uma imersão no mundo do futebol brasileiro em tempos de ditadura, possibilitando a percepção das continuidades e rupturas daquele momento do esporte para aquele que vivenciamos hoje, em tempos democráticos.

Encerrando esta edição e procurando percorrer um momento da história brasileira marcada por uma política de exceção, apresenta-se a entrevista com o ex-jogador de futebol Afonso Celso Garcia Reis, de codinome Afonsinho. Verifica-se, a partir de sua fala, que sua ação é um exemplo de que a repressão recaía sobre profissionais do esporte que se posicionavam um pouco mais à esquerda – ou que, pelo menos, não compactuavam abertamente com as práticas do regime. Afonsinho foi perseguido primeiramente pelo uso de uma barba considerada fora dos padrões da época, que, segundo ele, era apenas pretexto para cerceá-lo em função de seus posicionamentos políticos mais amplos e, posteriormente, tido como símbolo de luta quando da sua busca pelo fim do passe – instrumento que determinava a posse do jogador ao time de futebol para o qual atuava. Boa leitura!

Nathália Fernandes – Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Fluminense.

Aimée Schneider – Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense.


FERNANDES, Nathália; SCHNEIDER, Aimée. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.31, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Resistências africanas: novos problemas e debates / Anos 90 / 2019

A história da resistência africana tem também a sua história. Seus primórdios remontam à tendência anticolonial a partir da segunda metade do século XX e que marca não apenas os textos ficcionais sob a forma de contos, novelas e romances de uma primeira geração de escritores africanos, mas também a historiografia sobre a África do período colonial.

Até então, uma literatura colonial havia abordado as resistências como movimentos retrógrados, refratários à modernização. Ela considerou as várias rebeliões e insurgências como “revoltas bárbaras”, irracionais e amorfas. Na perspectiva dos colonizadores europeus, as resistências eram um atavismo, uma simples manifestação da “tradição” em prol da reprodução das estruturas arcaicas, da preservação dos direitos consuetudinários, da defesa dos privilégios de uma elite local etc.

Nos arquivos coloniais, encontram-se evidências de diversas manifestações e movimentos anticoloniais em África, com destaque para aquelas que ocorreram nas áreas de forte presença muçulmana. Para ficar num exemplo, a Revolta Mahdista ou Mahdiyya no Sudão (1881-1899), uma das maiores experiências históricas de contestação ao domínio estrangeiro. Em reação à ingerência econômica e política da Inglaterra e da França e que atingiam o vice-reinado do Egito quedival e do Império otomano, a Mahdiyya – liderada por Muhammad Ahmad – foi uma forma de resistência paradigmática e com desdobramentos nas relações de poder na África setentrional e na África Oriental durante o imperialismo colonial.

Também na África ocidental, os movimentos de resistência pululam, sobretudo em áreas islamizadas. Tais movimentos foram considerados de caráter “primário” por uma historiografia da primeira metade do século XX. A partir da década de 1950, temos as primeiras análises de relatos produzidos oralmente e de fontes escritas em árabe, que se revelam verdadeiros “campos de batalhas” narrativos, na acepção de Edward Said, na sua conhecida obra Cultura e Imperialismo.

Uma primeira historiografia crítica ao colonialismo favoreceu a identificação de processos de negociação entre os poderes coloniais e as elites africanas. Houve também novas interpretações das resistências africanas. Em Dacar, Ibadan e Dar es Salaam, para ficar em três exemplos, a nova historiografia africana fez das resistências africanas uma ferramenta importante para a análise das relações de poder nos quadros do colonialismo.

Os trabalhos de Allen Isaacman, Jan Vansina, Terence Osborn Ranger e de outros historiadores contribuíram para uma ideia de conjunto sobre as resistências africanas. Houve também propostas para uma tipologia das resistências africanas e mesmo para uma cronologia, como aquelas do historiador queniano Ali Al’amin Mazrui e do historiador ganense Albert Adu Boahen.

Acontece que a lógica binária do modelo “dominação e resistência” para a história da África colonial acabou por limitar a análise de certas formas concretas de exercício do poder. Para Frederick Cooper, o emprego do conceito de “resistência” na historiografia africana foi “menos sutil, menos dialético, menos reflexivo” do que a ideia de agência dos estudos subalternos.1 É verdade que o modelo “dominação e resistência”, que marcou a historiografia sobre a África colonial nas décadas de 1960 e 70, foi por vezes redutor, pois quem não resistia, colaborava e quem não colaborava, resistia.

Ao mesmo tempo, livros como Things Fall Apart (1958), de Chinua Achebe, e Les Damnés de la Terre (1961), de Frantz Fanon, apresentam o colonialismo como um sistema que provocava uma “esquizofrenia social” e que redundava numa série de contradições, numa aporia. Tal processo desagregador, na perspectiva fanoniana, seria superado pela via revolucionária, que provocaria a necessária ruptura com o colonialismo, ensejando as independências africanas.

No entanto, aquilo que justificou ideologicamente certos movimentos de libertação, revelou- -se frágil e anacrônico quando foi transposto como ferramenta de análise dos processos africanos de um passado recente. Pode-se dizer que houve na historiografia pós-colonial uma inflação das resistências anticoloniais e dos movimentos protonacionalistas. Desde o início do processo de independência dos países africanos, uma escrita da história nacionalista projetou no passado africano pré-colonial a ideia de nação. Fazer a genealogia das modernas nações africanas foi a missão de uma historiografia que, não sem ironia, defendeu a perspectiva africana, a história “autenticamente” africana.

Apesar da importância da busca pela autenticidade africana em termos epistemológicos, novas abordagens no campo da história têm suscitado uma revisão da historiografia daquela primeira geração de historiadores africanos e de africanistas. Além dos estudos subalternos e dos estudos pós-coloniais, as próprias experiências políticas de um passado recente, especialmente de ditaduras militares, de guerra civil ou de regimes de partido único, concorrem para repensar as resistências africanas, inclusive contra um neocolonialismo. Destacam-se, por exemplo, as contribuições de Klaas van Walraven, Jon Abbink, Gregory Maddox e Frederick Cooper sobre o conceito de resistência na história da África. Cabe ainda ressaltar uma “feminização” da resistência africana por uma historiografia atenta às questões de gênero e cujos trabalhos de Nina Emma Mba, Catherine Coquery-Vidrovitch, Cora Ann Presley, Luise White, Tabitha Kanogo e Norma Krieger são alguns exemplos.

A reflexão e o debate sobre as resistências africanas trouxeram à baila novas questões sobre a África diante à colonização e mesmo diante à globalização. Os estudos sobre as resistências africanas reunidos nesse dossiê propõem novas abordagens, novos casos e algumas revisões necessárias, inclusive um rigor teórico e metodológico à luz das contribuições historiográficas recentes, além de outras de áreas afins como a antropologia e a sociologia da África contemporânea.

O artigo intitulado O conceito da resistência na África colonial: recompondo um paradigma, de Felipe Paiva, abre o presente dossiê. Trata-se de uma revisão crítica de um paradigma da historiografia sobre a África colonial pelo autor de Indômita Babel. 2Muçulmanos africanos e a escravidão negra no Mundo Atlântico: interpretações, significados e resistências (séculos XVI e XVII) é o segundo artigo do dossiê. De autoria de Thiago Henrique Mota, o artigo aborda algumas resistências na África ocidental a partir da conexão entre escravidão e religião islâmica. O terceiro artigo também destaca a relação entre religião (muçulmana) e resistência. Sua autora, Regiane Augusto de Mattos, aborda as formas de trabalho no norte de Moçambique entre o final do século XIX e início do século XX como elementos fundamentais para a análise das resistências. Diferente é o foco do artigo de Hector Guerra Hernandez sobre as formas de resistências cotidianas durante o colonialismo tardio no sul de Moçambique. O autor analisa diferentes ações individuais e coletivas diante do recrutamento dos trabalhadores forçados durante o colonialismo português.

No quinto artigo do dossiê, Mahfouz Ag Adnane propõe uma análise da resistência nos territórios saarianos do Kel Tamacheque diante da ofensiva colonial francesa (1881-1919). Destaca-se a leitura crítica das fontes para propor uma nova abordagem ao debate historiográfico.

O último artigo do dossiê tem uma componente biográfica. Ângela Fileno da Silva apresenta as dissenções entre os brasileiros que se encontravam em Lagos entre as décadas de 1880 e 1890. A autora analisa conflitos e acomodações diante da presença britânica, destacando aspectos relevantes para a compreensão dos limites das ações individuais e coletivas, das constantes renegociações e dos seus desdobramentos na vida daqueles brasileiros.

A entrevista com Suresh Kumar, do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Délhi, enfatiza a importância do Departamento de Estudos Africanos da citada universidade, criado em 1948, no imediato pós-independência indiana, com a perspectiva de se propor uma aproximação com os espaços africanos em processos de conflitos anticoloniais e de se pensar em pautas internacionais reivindicatórias das novas nações que emergiam. Encerra o dossiê a sessão com as seguintes resenhas: A Escrita da História da África: Política e Resistência, de Carolina Bezerra Machado, Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910), de Matheus Serva Pereira, e Sonhos em Tempos de Guerra, de Daniel De Lucca.

Boa leitura!

Notas

1. COOPER, Frederick. Conflict and connection: rethinking colonial African History. The American Historical Review, v. 99, n. 5, p. 1516-1545, 1994

2. PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Rio de Janeiro: Eduff, 2017.

Patrícia Teixeira Santos – Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil Sílvio.

Marcus de Souza Correa – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil.


SANTOS, Patrícia Teixeira; CORREA, Marcus de Souza. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944) – ROSENBERG (A)

ROSENBERG, Alfred. Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944). São Paulo: Planeta, 2017. 660 p. Resenha de: BERTONHA, João Fabio. Resenha de: Antíteses, Londrina, v.12, n. 24, p. 677-685, jul-dez. 2019.

Alfred Rosenberg (1893-1945) foi um nazista proeminente, mas é uma figura relativamente desconhecida para o grande público atualmente, ao contrário de outros, como Goebbels, Himmler ou Göring. Rosenberg, afinal, não comandou diretamente as operações de extermínio que marcaram o Terceiro Reich, não liderou Exércitos e nem conduziu ações espetaculares de propaganda. Ele teve, contudo, muita influência – ainda que ela tenha declinado com o tempo – no regime nazista. Hitler o nomeou para inúmeras posições de poder e seus escritos o levaram a condição de ideólogo chefe do nazismo. Ele era o grande doutrinador a quem todos prestavam atenção, mesmo quando não entendiam o que ele propunha ou consideravam, no íntimo, que suas ideias eram sem sentido.

Dois livros recentes, publicados em português, nos permitem ter uma primeira aproximação ao pensamento e às ações políticas desse homem. O primeiro, de Robert Wittman e David Kinney é, em essência, uma grande reportagem sobre o destino dos papéis de Rosenberg desde 1945 até a sua recuperação e disponibilização ao público, em 2013. Os autores combinam, no decorrer dessa reportagem em forma de livro, as trajetórias pessoais de Rosenberg e de Robert Kempner, o advogado que recuperou os diários (e outros papéis) na Alemanha e os trouxe para os Estados Unidos. O vai e vem dos papéis dentro dos Estados Unidos e os vários personagens que os possuíram ou tiveram interesse neles formam uma narrativa que prende o leitor, especialmente do historiador que está sempre a caça de fontes e documentos inéditos.

O segundo é mais denso e informativo, pois se trata justamente desses diários. Publicados com uma excelente análise crítica escrita pelos historiadores Juergen Matthaus e Frank Bajohr, eles nos trazem, em centenas de páginas, a possibilidade de olhar para dentro da mente e dos pensamentos de Alfred Rosenberg.

Obviamente, diários, como qualquer outra fonte, devem ser vistos com os cuidados metodológicos devidos. Nem sempre eles são confiáveis para datas e acontecimentos específicos e seu caráter de “monumento pessoal” os fazem documentos a serem lidos com especial cuidado. Ali, afinal, está o coração pulsando da memória de uma pessoa, aquilo que ela queria deixar registrado, com maior ou menor sinceridade, para o futuro. Todas as discussões teóricas sobre a “escrita de si”, sobre as diferenças entre memória e história e correlatas são especialmente necessárias aqui.

Aliás, como bem indicado pelos organizadores na introdução, o problema da redação de diários adquire um significado próprio quando se trata do Terceiro Reich. Normalmente, as pessoas escrevem diários para permitir uma reflexão sobre a própria vida, para facilitar a tomada de decisões ou a elaboração de ideias ou, ainda, para deixar um registro próprio dos acontecimentos vividos.

Na Alemanha nazista, contudo, a própria ideologia do movimento tornava esse exercício diarista inútil e até perigoso. Perigoso, pois deixar provas materiais de pensamento autônomo ou de divergência frente ao regime podia significar simplesmente a produção de provas que seriam usadas pelos inimigos.

E inútil, pois os nazistas se orgulhavam de serem homens de ação, sem tempo ou necessidade de reflexão crítica, adeptos do irracionalismo, numa perspectiva anti-intelectual. Obedecer aos líderes e agir era muito mais valorizado do que pensar e refletir, pelo que escrever num caderno todos os dias não servia para nada.

Além disso, os nazistas eram, em geral, pessoas de convicções ideológicas sólidas. Não no sentido de terem ponderado cuidadosamente sobre o que defendiam e se convencido da sua realidade, mas no de terem alguns eixos de pensamento muito claros, os quais davam sentido à vida e aos atos do dia a dia.

Sem dúvida sobre quais caminhos tomar, a autorreflexão realmente se tornava inútil. Por esse motivo, os principais líderes nazistas não deixaram diários. Hitler não o fez – sendo falsos os seus famosos diários descobertos em 1983 – e muito menos Himmler, Göring ou Heydrich. O que temos, no máximo, são agendas de trabalho ou coleções de cartas enviadas ou recebidas, a maioria burocráticas ou sem maior valor. Os únicos que o fizeram foram justamente os intelectuais do nazismo, ou seja, Goebbels e Rosenberg.

Em parte, o fizeram justamente por isso. Fazia parte das tarefas de ambos dar uma roupagem analítica e descritiva para o que acontecia no Estado nazista, seja formulando princípios e justificativas ideológicas seja elaborando diretrizes de propaganda para o dia a dia. Isso os obrigava a ter uma atividade intelectual mais densa – como será melhor desenvolvido abaixo – o que pode os ter estimulado a ser diaristas. O que eles produziram, contudo, foram essencialmente páginas de ataques aos inimigos, de autocomiseração com os fracassos e de registro de supostos feitos e realizações para futura referência. Como um todo, o nazismo não é bem apreendido na leitura dessas anotações e muito menos em termos ideológicos.

Na verdade, como parece ser a praxe para a maior parte dos intelectuais orgânicos da direita – e, especialmente, da extrema-direita – Rosenberg não era especialmente brilhante, compensando a pouca densidade da sua obra com um empenho contínuo, numa produção quase diária de textos, especialmente palestras. artigos de jornal, memorandos e relatórios. Sua obra prima, O Mito do Século XX, publicado em 1930, teria sido, aparentemente, ridicularizado até pela própria liderança nazista, que ou não o entendia ou o considerava um amontoado de bobagens. Hitler e o NSDAP souberam reconhecer, contudo, que ele servia perfeitamente como manual doutrinário e sua leitura se tornou obrigatória no Terceiro Reich, atrás apenas do Mein Kampf de Hitler como “livro sagrado” do nazismo.

Dessa forma, o papel central de Rosenberg foi o de tomar emprestado escritos de pensadores do passado, como Gobineau e Chamberlain, para formar uma ideologia simples e facilmente compreensível, centrada numa visão conspiratória da História, na superioridade racial e no antissemitismo. Sua importância, na verdade, reside justamente nas suas falhas como pensador. Como bem indicado tanto tempo atrás por Marilena Chauí para o caso do integralismo, a simplicidade e pobreza teórica e empírica, longe de serem um problema, faziam dele um ideólogo perfeito, chamando para a ação e não para a reflexão. Escrevendo sem parar em jornais, revistas e também publicando livros, ele era mais o divulgador e o mobilizador do que um pensador e um cientista, apesar de se considerar um.

Em 1934, Hitler oficializou essa sua posição, nomeando-o como o ideólogo oficial do regime. Mesmo levando-se em conta os limites de Rosenberg e dos seus papéis e a própria fragilidade teórica do nazismo, muita informação útil pode ser retirada dos seus diários; vários aspectos da política e da ideologia do III Reich se tornam evidentes nos mesmos, sendo passíveis de rediscussão a partir de um novo olhar. Mesmo quando seu conhecimento ou entendimento do que acontecia era limitado ou quando sua própria posição o impedia de ver o todo, o que emerge dos diários pode ser útil para repensar a ideologia e a política da Alemanha na época de Hitler.

Rosenberg foi importante, por exemplo, na elaboração da ideia de que havia uma conspiração judaica mundial por trás da revolução comunista na União Soviética. Nessa perspectiva, os eslavos eram uma raça inferior, a ser escravizada pelos alemães, e a URSS era um projeto judeu para liderá-los contra a raça superior. Isso justificou a guerra devastadora dos nazistas contra os soviéticos a partir de 1941 e Rosenberg, até por isso, recebeu cargos importantes no sistema de ocupação no Báltico, na Rússia Branca e na Ucrânia.

É difícil acreditar que Rosenberg tenha sido o criador dessa ideia, bastante comum nos círculos antissemitas e de extrema-direita nos anos 1920. E não apenas na Alemanha. Em Buenos Aires, por exemplo, já em 1917 essa proposta era ventilada e jornais da elite argentina escreviam que os operários em protesto estavam sendo instigados pelos judeus e que os bolcheviques eram conspiradores judeus disfarçados. É razoável admitir, contudo, que Rosenberg colaborou para implantar essa ideia nos ouvidos certos, da pessoa que, no futuro, tomaria as decisões do Holocausto: Adolf Hitler.

Ele também teve um papel importante na questão religiosa, sendo conhecida a sua postura anticristã. Ele considerava as práticas e símbolos cristãos como puro charlatanismo e a doutrina cristã como incompatível com a verdadeira alma alemã. No seu livro O Mito do século XX, isso é evidente. Segundo Rosenberg, os judeus, através de Paulo, haviam corrompido a mensagem original de Jesus e divulgado uma falsa doutrina de submissão, amor e igualdade. Tal doutrina seria incompatível com a superioridade racial alemã e o nazismo devia criar uma nova religião, adequada aos novos valores.

Essa postura o isolou frente a outros representantes da extrema-direita europeia – muitos dos quais tinham raízes no reacionarismo católico, por exemplo – e também dentro do nazismo. Afinal, havia nazistas que consideravam perfeitamente possível conciliar a mensagem cristã com a nazista e outros, provavelmente em maior número, que não acreditavam ser uma boa ideia se indispor com a tradição cristã da população alemã, preferindo o compromisso e a acomodação.

Em Rosenberg, e nos seus escritos, também fica evidente um dos aspectos mais cruciais no funcionamento do Estado nazista, ou seja, os conflitos entre Partido e Estado e entre as várias instituições e grupos dentro do regime. Suas críticas contínuas a Goebbels, a Himmler e a outros são representativas da selva competitiva que era a Alemanha nazista.

Nesses conflitos, ele ganhou e perdeu, conforme as circunstâncias e os equilíbrios do poder. No comando da Einsatzstab Rosenberg, ele saqueou bibliotecas, arquivos e coleções privadas em toda a Europa, especialmente judias. Nesse processo, estava em competição com a SS, que também roubava livros para sua biblioteca sobre os inimigos do Reich. Ele foi muito bem-sucedido e, no seu Instituto de Pesquisa sobre a Questão Judaica, fundado em Frankfurt, ele acumulou um imenso acervo sobre o judaísmo na Europa. Também saqueou arte de propriedade dos judeus por toda a Europa, em competição com Göring, com Goebbels e outros. Mais adiante, ficou responsável até mesmo pelo saque de mobiliário dos judeus. Nessa atividade, foi mais vencedor do que perdedor.

Já na administração do Leste ocupado, a competição com outras agências e grupos se tornou ainda mais brutal e, nesse caso, Rosenberg perdeu. Ele recebeu o encargo de organizar o novo território ocupado, mas sua influência se diluiu, especialmente frente à SS. Ele imaginava o espaço entre Berlim e Moscou como um de dominação, no qual, após o extermínio dos judeus e dos comunistas, haveria alguma negociação com os nacionalismos ucraniano, báltico e outros para a criação de uma frente anti-russa. Já Hitler, Göring e a SS queriam uma dominação mais completa e absoluta, de escravidão e, posteriormente, de substituição demográfica.

Também nas relações exteriores Rosenberg, que tinha sido um ator importante na formatação da política externa do NSDAP, perdeu influência no decorrer do tempo, especialmente para Ribbentrop. Ele também disputou com Goebbels o controle da arte e da literatura alemãs e, nesse caso, houve quase um empate, pois, mesmo perdendo poder, ele continuou um ator importante, comandando vários escritórios e agências culturais dentro da Alemanha.

Todas essas idas e vindas são identificáveis nos diários, especialmente nas suas contínuas críticas aos que o superavam, como Goebbels e Göring. Ao mesmo tempo, ele buscava e registrava cada possível aprovação de Hitler às suas ações, o que refletia tanto a sua submissão psicológica a ele como o reconhecimento que, na luta pelo poder na Alemanha nazista, o favor de Hitler era o elemento chave.

Nos seus papéis, ele vencia as batalhas que estava a perder na realidade e tinha esperanças de reverter a situação. Em linhas gerais, contudo, fica evidente como, com o passar do tempo, ele estava numa posição cada vez mais fraca na estrutura de poder nazista.

Talvez tenha sido um problema, no caso de Rosenberg, o fato de ele ser, apesar de medíocre, um intelectual. A liderança nazista preferia a ação, a política e desprezava a cultura, a não ser aquela dirigida à propaganda e à formação de consensos. Mesmo sendo um intelectual orgânico, no sentido de um homem ligado ao partido e ao Estado nazistas, o ser intelectual demandava um mínimo de refinamento teórico e a liderança nazista normalmente desprezava isso frente ao imperativo da ação, como já indicado acima.

Em qualquer projeto ideológico, na verdade, a escala de convencimento ideológico dos que aderem vai do totalmente pragmático (aquele que não leva a sério aquele conjunto de ideias, mas que as defende por interesses outros, materiais ou emocionais) até o totalmente idealista, ou seja, que acredita piamente em tudo o manifestado. Quase sempre, esses dois extremos não existem e a combinação entre ambos é o padrão geral, com contínuas oscilações conforme o tempo, o espaço, os grupos sociais, a individualidade etc.

No caso dos intelectuais orgânicos, o mesmo acontece, mas a sua própria função – estabelecer, refinar e proclamar uma ideologia que sustenta um dado modelo político ou econômico – demanda que seu pragmatismo seja controlado. Afinal, se o que sustenta a sua posição é o fato de ele ser o defensor de um conjunto de ideais, ele não pode simplesmente ignorar o que é dito e escrito, especialmente por si próprio. Assim, nem Himmler ou o próprio Hitler podiam simplesmente ignorar o que a ideologia nazista proclamava abertamente, mas sua margem de manobra era maior do que a de pessoas como Rosenberg.

A sensação que fica na leitura dos diários, na verdade, é que Rosenberg efetivamente acreditava na ideologia nazista. Como já indicado acima, como acontecia com a maioria dos nazistas, seus conceitos políticos não eram fixos e havia muito oportunismo e negociação na sua prática, como não podia deixar de ser frente a uma conjuntura sempre em mutação e o fato de ele ser um político além de um ideólogo. Mesmo assim, a sensação que fica da leitura dos diários é que seus princípios ideológicos eram mais sólidos do que em outros líderes nazistas.

Em resumo, Rosenberg compartilhou da flexibilidade entre teoria e prática (ou oportunismo) que o regime nazista sempre manifestou. No seu caso, contudo, essa flexibilidade era menor ou demandava, no mínimo, mais articulação teórica, até interna, pois ele parecia realmente acreditar naquilo que dizia e escrevia.

Ele era muito mais inflexível frente a seus princípios ideológicos básicos do que outros líderes nazistas, tanto que seus diários indicam seus malabarismos internos para lidar com a aproximação do Terceiro Reich com a Igreja Católica ou com a União Soviética. Isso, provavelmente, enfraqueceu a sua posição na luta pelo poder na Alemanha nazista, ao mesmo tempo em que delimitava e reforçava o seu espaço e as suas prerrogativas, já que ele era o guardião dos ideais.

Outro ponto interessante que a biografia e os diários de Rosenberg ressaltam é a problemática de ele ser um indivíduo no limite do aceitável para a ideologia nazista. Ele era etnicamente alemão, mas havia dúvidas e questionamentos a respeito da pureza das suas origens germânicas, até porque ele tinha uma sobrenome comumente associado aos judeus e tinha nascido no Báltico. Para piorar, ele, fluente em russo, falava alemão com um sotaque carregado, o que também dava margem a questionamentos e dúvidas: um pertencente ao “nós”, mas na fronteira entre o “nós” e “eles”.

Ao observarmos a história do nazismo, nota-se que, entre os maiores defensores da doutrina, estavam muitos que não se enquadravam perfeitamente no modelo ariano por suas características físicas. Himmler era franzino, Goebbels era muito moreno e manco, Göring era viciado em drogas, Heydrich era considerado, apesar de não ser verdade, meio judeu e o próprio Hitler não era um nórdico puro. A justificativa era que, apesar dessas características, eles ainda estavam dentro do padrão ariano aceitável, mas o fato óbvio era que o poder determinava, em boa medida, como a ideologia era aplicada nos casos reais. Ou alguém teria a coragem de afirmar que Hitler não deveria liderar por não ser um nórdico no modelo viking? Mesmo assim, essa falta de conexão com a doutrina era visível e isso poderia, conforme a conjuntura mudasse, ser utilizado contra os inimigos.

Do mesmo modo, é impressionante a presença de não-alemães no comando nazista. O próprio Hitler era austríaco, Rudolf Hess havia nascido no Egito e Rosenberg e vários outros eram refugiados do Báltico. Mesmo sendo aceitos como alemães, o fato é que eles estavam no limite: não haviam crescido na Alemanha, muitos falavam alemão com sotaque e suas origens, muitas vezes, podiam ser questionadas. Para os nesse meio-termo, a fidelidade ao regime e à ideologia podia ser ainda mais fundamental, até como forma de compensar uma origem questionável. A maciça presença, em termos proporcionais, de austríacos na máquina nazista talvez seja um reflexo não apenas da força da extrema direita na Áustria e no sul da Alemanha nos anos 1920 e 1930, como também um esforço deles para serem aceitos como plenamente alemães depois do Anschluss.

Essa problemática dos “na fronteira”, evidentemente, vai além do nazismo. Nos Estados Unidos, por exemplo, alguns italianos emigrados do Mezzogiorno se tornaram profundamente racistas para afirmarem uma identidade branca que era questionada por muitos anglo-saxões. Isso para não mencionar, evidentemente, o tradicional papel das classes médias no capitalismo, sempre sob o risco de proletarização e, até por isso, seus cães de guarda mais fiéis. Talvez a biografia de Rosenberg pudesse ser útil como foco para estudos desse tipo de perfil, cuja utilidade para o regime nazista ainda não foi explorada a contento.

Em resumo, os diários de Rosenberg são, dentro dos seus limites, uma fonte útil para o entendimento não apenas dele e de sua personalidade, mas também do regime em si. Isso não apenas no tocante à ideologia – o antissemitismo, o racismo, a perspectiva anticristã, o anticomunismo e as articulações entre esses elementos – como também na prática, na conversão desses princípios ideológicos em políticas e ações. Ideias, afinal, não existem fora do mundo real e mesmo as registradas em papeis privados estão conectadas ao mundo material, de interesses, disputas, negociações e acomodações. Rosenberg pode ter suas especificidades enquanto intelectual, mas ele pertencia a um grupo, a uma sociedade e a um regime e é estudando essa relação que sua vida, e seus diários, adquirem significado histórico.

Referências

ROSENBERG, Alfred. Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944). São Paulo: Planeta, 2017. 660 p.

WITTMAN, Robert; KINNEY, David. O diário do diabo: os segredos de Alfred Rosenberg, o maior intelectual do nazismo. Rio de Janeiro: Record, 2017, 460 p.

João Fabio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá JAMES, Cyril. The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution, New York: Vintage Books, 1989.

Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história – IEGELSKI (AHSS)

IEGELSKI Francini Pós-abolição
Francine Iegelski/Divulgação UFF

IEGELSKI F Astronomia das constelações humanas Pós-aboliçãoIEGELSKI, Francine. Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história. São Paulo: Humanitas, 2016, 422 p. Resenha de: BRANDI, Felipe. Annales.  Annales. Histoire, sciences sociales, v.2, p.450-452 2019. Acessar publicação original.

En 1949, Claude Lévi-Strauss publiait, dans un numéro de la Revue de métaphysique et de morale consacré aux « Problèmes de l’histoire », l’article « Histoire et ethnologie », devenu dix ans plus tard la célèbre introduction d’Anthropologie structurale 1. Les deux disciplines qui donnent son titre à l’article y sont montrées comme un Janus bifrons : deux sciences soeurs, solidaires, mais investies de missions opposées. Alors que l’histoire s’en tiendrait au domaine du particulier et à l’étude des expressions conscientes de la vie sociale, l’ethnologie paraît atteindre un degré plus élevé d’abstraction àmême d’explorer les « possibilités inconscientes » et d’opérer le passage à l’universel. Les historiens ont vite compris que leur discipline se trouvait menacée d’être reléguée aux tâches subalternes d’une science de second rang : la collecte consciencieuse des matériaux empiriques dont il reviendrait à d’autres d’opérer la synthèse. Méfiants, ils sentaient que l’anthropologue n’avait insisté sur la complémentarité des deux disciplines que pour mieux les hiérarchiser. Conquérante et forte de ses attraits, la jeune ethnologiemontrait qu’elle s’apprêtait à détrôner son aînée. Depuis lors, le thèmede l’histoire dans la pensée de Lévi-Strauss a suscité l’un des grands débats qui, en France et ailleurs, ont marqué les sciences de l’homme du second XXe siècle – un débat que nous aurions tort d’imaginer dépassé. Le livre de l’historienne brésilienne Francine Iegelski en témoigne. Issu d’une thèse de doctorat soutenue à l’université de São Paulo en 2012, le volume, préfacé par François Hartog et enrichi d’une présentation de Sara Albieri, fraye son chemin au milieu d’une vaste littérature par l’originalité d’une démarche qui allie histoire des idées et réflexion théorique, afin de montrer que les questions posées par Lévi-Strauss à l’histoire peuvent encore nous guider parmi les interrogations actuelles de l’historiographie.

L’ouvrage d’Iegelski présente un triple intérêt. Tout d’abord, il se centre sur les écrits de Lévi-Strauss et montre que celui-ci a enrichi l’histoire, suivant lemêmemouvement par lequel il en a fait une espèce de contrepoint à son projet d’anthropologie sociale. Ensuite, ce travail se lance dans une histoire intellectuelle qui retrace les débats et les controverses ayant jalonné la réception historienne des idées de Lévi-Strauss, depuis l’article de Fernand Braudel sur la longue durée jusqu’aux écrits d’Hartog. Enfin, il change à nouveau de peau et s’engage dans une réflexion, plus théorique, sur les « expériences du temps ». Ce livre est en effet celui d’une historienne de métier, dont le but est de réfléchir sur l’histoire.

On lit avec profit les chapitres qui déclinent les significations diverses dont l’histoire apparaît investie au sein de l’oeuvre de Lévi-Strauss : elle désigne tantôt les expériences vécues des sociétés (le « champ événementiel », si l’on veut), tantôt l’attitude subjective que les différentes sociétés adoptent face au devenir, tantôt un savoir constitué au sein des sociétésmodernes, que ce soit sous la forme de l’histoire qu’écrivent les historiens ou d’un grand récit aux mains des philosophes et des idéologues. Des thèmes bien connus sont utilement revisités : les rapports entre histoire et ethnologie, le problème des discontinuités culturelles, celui de la contingence irréductible de l’événement et, finalement, la mise à nu des rapports entre mythe et histoire. Le mérite essentiel de cette traversée repose sur la gerbe d’informations moissonnées et sur un effort de décryptage d’autant plus estimable que la matière est spécialement compliquée. Au fil de ce parcours, le thème de l’histoire se diffracte au sein des écrits de Lévi-Strauss, tout en restant une constante.

Si l’analyse de l’oeuvre occupe la plus grande part du livre, l’originalité de l’initiative d’Iegelski est de ne pas s’y arrêter. L’autrice couronne son étude par l’histoire du retentissement des idées de Lévi-Strauss chez les historiens, au fil d’un récit truffé d’aperçus nouveaux. Elle propose une lecture intéressante du discours de Lévi-Strauss à l’occasion de la 5e Conférence Marc Bloch, que les Annales publient en 1983 sous le titre « Histoire et ethnologie », comme un écho à son article de 1949 qui ne fait qu’accuser l’écart entre leur conjoncture polémique respective. Cette dernière contribution de Lévi-Strauss dans les Annales atteste que le rapport entre les deux disciplines s’était radicalement transforméentre-temps ; en témoigne aussi, dans le même numéro, un autre article, cette fois signé Hartog, sur l’anthropologie de l’histoire où apparaît pour la première fois, sous une forme encore embryonnaire, la notion de « régimes d’historicité 2 ».

Un quart de siècle après que Braudel a proposé la longue durée comme une réponse à l’avancée de l’anthropologie structurale, Hartog lit Marshall Sahlins et envisage qu’un nouvel échange entre historiens et anthropologues soit désormais placé au niveau de l’événement, et non des « structures », mettant ainsi à l’épreuve l’idéequelerefusduchangement serait l’attitude prédominante des sociétés traditionnelles, supposées « froides », face à l’histoire. La rencontre de ces deux articles de Lévi-Strauss et d’Hartog est explorée par l’autrice comme une coïncidence pleine de sens, qui marque le moment où une conjoncture intellectuelle s’achève afin qu’une autre commence. En amont, l’étude des sociétés dépourvues d’écriture (donc sans archives ni histoire) s’opposait aux recherches consacrées aux sociétés engagées dans le devenir ; en aval, la manière dont les sociétés conçoivent leur inscription dans l’histoire devient un champ problématique commun, partagé par les spécialistes des deux disciplines.

D’une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, l’ouvrage se transmue ainsi en une histoire intellectuelle de la réception historienne de ses écrits, avant de se convertir en un essai sur la genèse de la réflexion sur les « expériences du temps » dans le travail d’Hartog. Les pages finales sont particulièrement novatrices, dédiées à l’influence des écrits de Lévi-Strauss sur le tournant réflexif de l’historiographie des années 1980 et sur l’avènement de cet outil d’investigation historique du temps qu’est la notion de « régimes d’historicité ». L’enjeu touche ici à l’actualité qu’acquiert au sein du travail d’Hartog la réflexion de Lévi-Strauss sur l’histoire. Après avoir remis en question l’idéal de progrès, Lévi-Strauss fut aussi l’un des savants à avoir reconnu les signes avant-coureurs d’un bouleversement des rapports au temps qui allait toucher les sociétés modernes en cette fin de siècle.

En 1993, Lévi-Strauss revient sur le binôme sociétés froides/sociétés chaudes qu’il avait autrefois proposé et signale que les « états » auxquels correspondent ces deux catégories ne sont pas figés, mais eux-mêmes soumis au devenir historique.

Il constate alors une double évolution, symétriquement opposée, qui atteint autant les sociétés traditionnelles (froides) que les sociétés modernes (chaudes) lors du dernier quart du XXe siècle : les premières, s’insurgeant contre le pouvoir des anciens colonisateurs, s’engagent dans l’histoire et « se réchauffent », tandis que les secondes suivent un mouvement inverse de « refroidissement », né de leur effort pour neutraliser les effets du temps et résister au devenir. Signe d’une perte de confiance dans l’avenir provoquée par les expériences traumatiques du XXe siècle (guerres, explosion démographique, ravages de la civilisation industrielle), ce processus de refroidissement au sein des sociétés chaudes recoupe, selon l’autrice, ce qu’Hartog appelle le basculement du « régime moderne d’historicité » vers le « présentisme ». Visiblement, les deux diagnostics convergent et se recouvrent. Pour Iegelski, ce refroidissement dont parle Lévi-Strauss est une expression de la fermeture du futur et de la montée d’un présent omniprésent qui caractérisent le moment « présentiste ». Dans sa préface, Hartog accepte volontiers ce rapprochement, mais se demande si l’on ne peut voir dans le présentisme un « hyper-réchauffement », où l’accélération est telle que le devenir se consume aussitôt, jusqu’à ne laisser de place qu’à un présent perpétuel.

De nouvelles perspectives de recherche s’ouvrent ainsi aux spécialistes de l’historiographie. Elles témoignent de la fécondité des réflexions actuelles sur la conscience historique des sociétés et leur rapport au temps 3. Dans une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, on peut certes regretter que l’autrice effleure seulement le thème des théories diffusionnistes, lequel recèle une piste importante pour comprendre comment les analyses des mythes chez l’anthropologue se situent face à un débat relatif aux processus d’acculturation précolombiens ainsi qu’aux guerres et aux migrations qui ont tantôt rapproché, tantôt séparé les hautes civilisations et les cultures de la forêt et de la savane. On eût aimé qu’Iegelski posât le problème des organisations dualistes en tant que traces de l’histoire perdue d’un ancien syncrétisme, des contacts et d’un vieux fonds culturel commun d’où seraient dérivées les cultures des hautes et des basses terres. L’obscurité enveloppant le passé américain a représenté, sans conteste, un redoutable obstacle qui n’a pas été sans déterminer très tôt les positions adoptées parLévi-Strauss à l’égard de l’histoire. Ces remarques n’enlèvent pourtant rien à la portée d’une étude qui se lance dans une lecture résolument historienne de la pensée vivante de Lévi-Strauss, en convoquant ses différentes réflexions sur l’histoire, en vue de mieux s’armer pour répondre aux défis historiographiques qui sont aujourd’hui les nôtres.

Felipe Brandi. E-mail: [email protected] AHSS, 74-2, 10.1017/ahss.2020.20.

Notas

1- Claude LÉVI-STRAUSS, « Histoire et ethnologie », in Anthropologie structurale, Paris, Plon, [1949] 1958, p. 3-33.

2 – Id., « Histoire et ethnologie », et François HARTOG, «Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire », Annales ESC, 38-6, 1983, respectivement p. 1217-1231 et p. 1256-1263 ; François HARTOG, Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Éd. du Seuil, 2003.

3 -Dossier « L’anthropologie face au temps », Annales HSS, 65-4, 2010, p. 873-996.

Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa | Claudia C. A. Atallah

O livro de Cláudia Cristina Azeredo Atallah – doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora do Departamento de História da mesma universidade e coordenadora do Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime (JIIAR) que reúne pesquisadores brasileiros e estrangeiros afinados com o tema da administração da justiça – insere-se na interface entre a história do direito e a história da justiça. É preciso de imediato ter em mente a distinção entre os dois domínios: o direito como sendo uma manifestação das intenções gerais de ordem e a justiça tendo sua expressão em atos singulares e concretos. Em outras palavras, o direito é universal e a justiça é casuística [2].

Ao analisar o esforço das reformas impostas por Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, em conter as tradições políticas típicas do Antigo Regime na comarca do Rio das Velhas pela ótica de atuação dos ouvidores da coroa, a autora deparou-se com o movimento entre o direito, traduzido no conjunto normativo de ordens emanadas pelo centro, e a justiça, traduzida nas práticas cotidianas ocorridas além das decisões dos tribunais que caracterizavam a cultura jurídica nas Minas Gerais colonial em um contexto de transição entre o pluralismo jurídico e a modernidade jurídica.

O trabalho segue a trilha conceitual aberta pela abordagem de estudos do Antigo Regime nos Trópicos, retomando os modelos teóricos de “centro e periferia” proposto por Edward Shils (1992) e de “autoridades negociadas” proposto por Jack Grenne (1994), revisitados à luz de novos horizontes de pesquisa. Sendo assim, conceitos fundamentais como monarquia pluricontinental, economia do bem comum, economia moral de privilégios, redes clientelares e políticas são mobilizados nos oito capítulos que compõem o livro, pela ótica da ação da justiça. Atallah, portanto, alarga o tema ao mostrar a importância da conciliação e da política de negociação em um universo político marcado por conflitos de jurisdição, espaços mal definidos de poder e sobreposição de poderes em revelia às tentativas de centralização políticaadministrativa e controle sobre os oficiais régios que caracterizaram a nova prática do governo pombalino.

Cumpre destacar que os conflitos jurisdicionais entre as diversas instâncias do poder colonial têm-se mostrado como um dos temas da maior importância para o debate historiográfico recente. Longe de expressarem deformidades ou desordens conforme parte da historiografia afirmou durante o século XX, tais conflitos devem ser entendidos como mecanismos para distribuir poderes em territórios distantes do centro e não como uma anomalia do sistema. Expressavam o pluralismo jurídico do Antigo Regime e não interferiam na centralidade régia. De fato, esta discussão é fulcral para a análise da própria natureza do Império português, como bem mostra o posicionamento da autora ao demonstrar que a manutenção dos conflitos por parte da coroa não tinha como estratégia o caráter punitivo, mas sim o de institucionalizar a negociação.

A autora desenvolve o argumento central de que a Inconfidência do Sabará, episódio ocorrido em 1775 e que levou o ouvidor José de Góes Ribeiro Lara de Moraes à prisão, foi um produto das mudanças intentadas por Pombal e não resultado da desordem e da rebeldia peculiares à região. Essa tradição historiográfica, que tende a considerar as Minas Gerais como um universo distinto das demais áreas do Império português, nasceu da preocupação em definir e justificar o caráter nacional brasileiro mobilizando temas como a instabilidade das formas sociais, os paradoxos das estruturas administrativas e o processo incompleto de formação do Estado nacional racionalizado [3]. Em perspectiva distinta, Atallah entende que o “tom de rebeldia e de contradição torna-se mais compreensível se analisado como reflexo das práticas políticas cotidianas que alimentavam as relações clientelares e a busca pela cidadania nesse universo” (p.18).

Para os fins propostos, o livro está dividido em três partes. Na primeira parte, intitulada “As Minas setecentistas e o Antigo Regime: uma discussão acerca do caráter do poder”, Atallah discute os elementos necessários para entender a organização desta sociedade, cujo modelo político ancorava-se na filosofia jesuítica da nova escolástica que tinha como princípio a autonomia político-jurídica dos corpos sociais, sendo a justiça o fim lógico do poder. Concomitante ao desenvolvimento da nova escolástica, observou-se também um desenvolvimento cada vez maior das teorias corporativas do pensamento medieval e jurisdicionalista, cuja longa sobrevivência relaciona-se à presença sistemática dos padres jesuítas em todo o processo de colonização no ultramar.

Essas ideias forneceram o substrato moral e pedagógico responsáveis pela formação de uma elite jurídica destinada ao serviço régio e tiveram na Universidade de Coimbra e no Desembargo do Paço os principais redutos de legitimação e disseminação. No entanto, em meados do século XVIII, as reformas pombalinas viriam abalar profundamente as bases doutrinais que sustentavam o império e consequentemente as instituições que representavam o poder. A promulgação da Lei de 18 de agosto de 1769, a Lei da Boa Razão, foi a primeira iniciativa mais incisiva em relação às reformas no campo jurídico. À pluralidade das práticas jurídicas do direito consuetudinário vinha se opor a retidão do direito real.

As transformações do direito empreendidas pela Lei da Boa Razão encontraram ressonância nas reformas dos estudos jurídicos ocorridos na Universidade de Coimbra a partir de 1770. O objetivo era formar os futuros administradores da justiça portuguesa de acordo com a nova cultura jurídica e política e implantar um ensino prático, simples e metódico, “era o esforço em substanciar a nova razão de Estado almejada pelo ministério pombalino e que tinha como parte essencial a constituição do direito” (p.185). Para ter a dimensão do embate entre as reformas modernizantes e as tradições políticas no que tange às estruturas jurídicas, Atallah desenvolve na segunda parte “A dinâmica imperial e a comarca do Rio das Velhas no governo de D. João V”, um estudo sobre a atuação dos ouvidores na dinâmica imperial antes das reformas, durante o período de 1720-1725.

Este foi um período conturbado, aos esforços da coroa em implementar medidas de caráter fiscal e conter os distúrbios causados pela cobrança de impostos, somavam-se as exigências de importantes potentados locais. Foi também um período marcado por uma série de conflitos de jurisdição travados entre D. Lourenço de Almeida, governador das Minas, e José de Souza Valdes, ouvidor da Comarca do Rio das Velhas. À medida que os analisa, Atallah demonstra que os conflitos por jurisdição faziam parte de uma estratégia deliberada da coroa que, ao contrário de aniquilar seu poder, tornava-o possível em paragens distantes. Nesse Cantareira, sentido, a coroa não somente os mantinha como às vezes até mesmo os estimulava, sem se posicionar a favor de um ou outro oficial, favorecendo assim a institucionalização da negociação ao invés da punição.

Alinhada com a visão do estudo de José Subtil sobre o Desembargo do Paço, Atallah ressalta a importância dessa instituição como símbolo da essência político-administrativa do Antigo Regime, além de institucionalizar seu aparato jurídico. A partir do ministério pombalino, o Desembargo do Paço e seus homens assistiram a uma diminuição gradativa de suas competências simbólicas, pois “a centralização política impunha também a precedência do direito régio sobre o direito consuetudinário e, desse modo, a autoridade dos juristas ficava reduzida à aplicação das leis” (p.167). E é sobre isto, tomando como exemplo o caso emblemático da prisão do ouvidor da comarca do Rio das Velhas por crime de inconfidência, de que trata a terceira e última parte, “Tensões e conflitos: a época de Pombal e a inconfidência de Sabará”.

Com a ascensão do Marquês de Pombal após o terremoto que abalou Lisboa em 1755, a necessidade de concentrar as ações políticas em um só órgão concedeu preponderância ao Ministério das Secretarias de Estado. Nesse sentido, o Desembargo do Paço perderia a posição de núcleo da administração régia e assistiria a uma invasão de suas competências. No ultramar isto se refletiria em um controle maior dos oficiais régios, e os conflitos, até então comuns e tolerados, tornaram-se alvo do regalismo pombalino. O esforço em construir um governo centralizado e homogêneo resultou em uma verdadeira caça às bruxas, alijando do poder aqueles que não estivessem afinados com a política de fidelidade do Marquês. O Tribunal de Inconfidência assumiu um papel relevante na perseguição e punição aos vassalos infiéis. Foi este o caso do ouvidor José de Góes que assumiu o cargo de ouvidor em uma época de inúmeros debates sobre a arrecadação do quinto real.

Uma representação escrita ao monarca em 1775 denunciaria as relações de interdependência que envolviam alguns homens bons da comarca e o ouvidor, acusado de blasfemar contra Pombal. Iniciou-se então o desenrolar de uma rede trançada pelos poderes locais, cuja análise se constitui o cerne da discussão do livro. Atallah demonstra que em Sabará àquela época existiam redes de clientela que colocaram em lados opostos dois grupos constituídos pelos principais da terra. A acusação de crime de inconfidência que recaiu sobre José de Góes estava inserida na trama de uma desse redes que tinha raízes bem mais profundas. Dessa vez pesou o jugo controlador da monarquia administrada pelo Marquês de Pombal, representado pelo Tribunal de Inconfidência. O ouvidor virou inconfidente. A infidelidade ao novo ministério foi punida para que servisse de exemplo.

O instigante trabalho de Atallah abre inúmeras possibilidades e, por conseguinte, permite vários debates: a dificuldade em colocar o interesse do Estado acima dos interesses privados, a ideia de Viradeira, da qual a autora refuta, pois “acreditamos que os processos de transformação no percurso da história são lentos e de complexa assimilação” (p.252), a propagação do reformismo, tema que é comumente relacionado ao da identidade portuguesa e ao da decadência, dentre outros. Diante do ambiente em que se deflagraram os acontecimentos em Sabará, circunscrito em um processo mais amplo de transformação das relações entre a monarquia e seus súditos, capaz de revelar tensões e conflitos decorrentes do seu funcionamento, a autora conclui que a Inconfidência do Sabará foi um produto dos embates entre a tradição, traduzida na relutância dos oficiais do Desembargo em acatar as novas diretrizes, e a tentativa de modernização das estruturas jurídicas. Resenha recebida em 04/12/2018 e aprovada para publicação em 21/10/2019

Notas

2. Álvaro de Araújo Antunes. As paralelas e o infinito: uma sondagem historiográfica acerca da história da justiça na América Portuguesa. Revista de História, São Paulo, nº169, p. 21-52, julho/dezembro 2013; Álvaro de Araújo Antunes. Prefácio. In: Maria Fernanda Bicalho, Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Isabele de Matos Pereira de Mello (orgs.). Justiça no Brasil colonial: agentes e práticas. São Paulo: Alameda, 2017.

3. Esta tradição historiográfica tem no paradigma da conquista soberana seu modelo interpretativo. Nele, a colonização, apresentada como um embate entre raças conquistadoras e conquistadas, pressupõe a legítima vitória da civilização europeia, a organização do mundo colonial conforme seus recursos materiais e espirituais, e a incorporação de elementos culturais dos grupos subjugados. Esta tradição historiográfica é devedora dos relatos das Minas setecentistas por seus contemporâneos, responsáveis por consolidar “o tema da afetação da gente dos sertões mineiros” e influenciar as interpretações posteriores. Atallah tem o cuidado em não conduzir esta discussão para uma dualidade ordem-desordem, seu caminho é o de reforçar a negociação. Para maiores informações sobre o paradigma da conquista soberana: Marco Antonio Silveira. Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas. Conquista e soberania nas Minas setecentistas. Varia Historia, Belo Horizonte, nº25, jul/01, p.123-143.

Milena Pinillos Prisco Teixeira – Mestranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


ATALLAH, Cláudia Cristina Azeredo. Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2016. Resenha de: TEIXEIRA, Milena Pinillos Prisco. Entre o Direito e a Justiça: ecos da reforma pombalina na administração da justiça na comarca do Rio das Velhas (1720- 1777). Cantareira. Niterói, n.31, p. 92- 96, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

História, memória e violência de Estado: tempo e justiça | Berber Bevernage

“Por que é tão difícil entender o passado assombroso e irrevogável na perspectiva da historiografia acadêmica e do pensamento histórico moderno ocidental em geral?” A pergunta que guia História, Memória e Violência de Estado: tempo e justiça, de Berber Bevernage (2018), pressupõe a angústia da incompletude e do inacabamento (MBEMBE, 2014), da indeterminação e instabilidade do objeto “tempo presente” (DELACROIX, 2018). O autor nos oferece um mergulho na história da crítica à noção de tempo construída pela modernidade para mostrar toda a sua potência e enraizamento enquanto engenhosa forma de “não ver” certos mundos, grandemente incorporada pela disciplina histórica. Por entre as brechas desse olhar pretensamente universal, América Latina e África emergem como que alçadas à categoria de experiências (i)morais – porque marcadas pela violência e injustiça –, da luta política que marca o século XXI periférico: o direito ao tempo.

Entre as referências mais conhecidas pelo universo acadêmico brasileiro dedicado à História do Tempo Presente e que constituem a base da argumentação de Tempo e Justiça estão o crítico literário alemão Hans Gumbrecht e o historiador francês François Hartog. Por caminhos diferentes, ambos chamam atenção para o crescimento ao longo do século XX de uma nova sensibilidade temporal marcada por uma assimétrica concentração na esfera de um presente repleto de simultaneidades (GUMBRECHT, 2014), demarcando a emergência de um novo “regime de historicidade” chamado presentista (HARTOG, 2013). No interior dessa discussão, o livro apresenta os anos de 1980 como período de evidência dos embates entre formas distintas de experienciar o tempo (com suas diferentes articulações entre passado, presente e futuro), expressas pelo desaparecimento da linguagem do esquecimento e da anistia do vocabulário político global. Leia Mais

As Primeiras-damas de Roma: as mulheres por trás dos Césares | Annelise Freisenbruch

As Primeiras-damas de Roma é o primeiro livro da autora inglesa Annelise Freisenbruch, doutora em Antiguidade Clássica pela Universidade de Cambridge e pesquisadora assistente na produção de livros e filmes populares sobre o mundo antigo. Publicado no Brasil em 2015 pela Editora Record, o livro é fruto de um estudo inglês homônimo lançado pela autora em 2010. Em sua obra, de caráter historiográfico, Freisenbruch analisa a importância das primeiras-damas romanas na ascensão e construção do Império Romano.

Para auxiliar e situar o leitor acerca do tema a ser discutido, Annelise divide o livro em nove capítulos, além de utilizar árvores genealógicas, fontes literárias e arqueológicas, mapas do Império Romano, obras literárias contemporâneas, filmes e séries do século XX que abordam o assunto. Leia Mais

The Cause of All Nations. An International History of the American Civil War | Don H. Doyle

“You cannot see, because

it is your everyday life, (…) the

magnitude of the events through

which you are passing in the

light of their influence on the rest of the world”.

We are now sufficiently familiar with the idea of a global and transatlantic history to understand the importance of The Cause of All Nations to this field in general history and U.S. history in particular. What we still might not be completely familiar with is the idea that the American Civil War was an event of international proportions in many senses: economic, social, political, and ideological. Therefore, its outcomes can no longer be constricted to U.S. formation, reinforcing the idea that this was a “fratricide” accident within the narrative of national formation in the United States, but that its influence has reached places far beyond the U.S. and can also be considered a breaking point in a global scope. And, although the question of how to produce a transatlantic, Atlantic, or global history is still object of debate and questioning by its own scholars, in this book we will find that the author masters it: he is able to use local, regional, national and transnational lens throughout his narrative, making it look like an easy enterprise.

The importance of the Civil War as an international event of great proportions is what the American historian Don Doyle, the McCausland Professor of History at the University of South Carolina, demonstrates in his book. He has developed the theme of secession in a comparative perspective for many years (Nations Divided: America, Italy, and the Southern Question; Nationalism in the New World, co-edited with Marco Pamplona; Secession as an International Phenomenon, a collection of essays) and teaches American history, nationalism, and Southern History. With broad experience in the U.S. and other countries such as Italy and Brazil, he has demonstrated American and non-American historians that, far from being an event “as American as apple pie”,the American Civil War not only can be seen from an international and Atlantic perspective, but that this outlook is necessary, especially from the point of viewof the American continent.

Parting from the idea that the Civil War is inserted in a much broader moment of history, “the crisis of the 1860s”, we are able to understand international reactions, fears, expectancies and politics that surrounded one of the most, if not the most studied theme in American history. Don H. Doyle’s main thesis is that the Civil War mattered a great deal to the Western world in the second half of the nineteenth century. And it mattered because it was not simply an intestinal war, fought only by American soldiers on American soil, but it represented a struggle over fundamental themes of the time, such as republicanism, freedom, national sovereignty, and slavery. It is in that sense that the Civil War can be perceived as “the cause of all nations”. And, although we all acknowledge the outcomes of the war, and the growth of the United States as a world potency, the future of the war was not defined at the time, and the international community of states and nations in the nineteenth century had a close eye on what was going on in the U.S.

Thus, rather than imposing an international framingof the conflict, Doyle asserts that this work actually “retrieves a commonplace understanding of the time”. This idea has already been brought by other historians that have affirmed the importance of the issues at stake in the “Civil War Era”, such as nationalism, democracy, liberty, equality, race, majority rule and minority rights, central authority and local self-government, the use and abuse of power, and the horrors of an all-out-war – are as alive in the early twenty-first century as they were in the mid-nineteenth century.

This is demonstrated in a fluid, exciting, and coherent narrative that follows the chronological events of the war engaged through different topics, characters and diplomatic disputes distributed throughout 12 chapters and based on an extensive variety of sources: diplomatic and personal correspondences, newspapers, pamphlets, translations, images, posters, and official documents from several nations.

One of the main issues pointed out by Prof. Doyle is that the United States was not only viewed as a nation growing in size and importance, but it virtually represented the major successful republican experiment to the world. In face of the failure of the republican movements of 1848 in Europe, it is not surprising that a government of the people and by the people, and a republic of such large dimensions (the only other example was Switzerland) was seen as doomed to failure. Conservatives in Europe expected this failure to assert that Monarchy was, as it had always been, the best method of government. On the other hand, the remains of the republican and liberal movements in Europe and the successfully republican, but very troubled governments, in Latin America looked at the U.S. with the hope they would one day thrive as theirneighbor, and counted on its protection from European incursions, in thesis guaranteed by the Monroe doctrine.

We are reminded of the great power that the press had gained by the 1860s, especially due to “print technology and the expansion of literacy, which made cheap publications and mass-audience possible” (p.3), which contributed to the understanding of the war and to the debates over it. As an event that has been analyzed from so many perspectives, the author chooses here to demonstrate that not only it mattered economically to the world (the relationship of the western world with the American cotton has been very well stablished), but its struggle over republicanism, freedom, and slavery was a central issue, especially through the eyes of the world and the need of international recognition from both the Union and the Confederate sides. The author also affirms that in its need of diplomacy and international support, the American Civil War pioneered what we now call public diplomacy, “the first, deliberate, sustained, state-sponsored programs aimed at influencing the public mind abroad” (p.3). From that perspective he sets himself apart from a strictly diplomatic history of the Civil War, building his arguments upon how an international public opinion was built over the war, and how it influenced and was influenced by the events, debates, and particular matters in their own nations.

Divided in three parts, “Only a Civil War”, “The American Question”, and “Liberty’s War”, we are guidedthrough the definition of the Civil War on both sides, its international scope and outcomes. In the first part, composed of 3 chapters, we are drawn to understand onemain question: what was the United States fighting for?The question issued by Garibaldi about whether the war was being fought over slavery or not, expressed the “moral confusion over just what the Union was fighting for” (p.24).How the Union and the Confederacy placed themselves internationally to guarantee, on one side, that governments did not recognize the CSA (Confederate States of America), and, on the other, to be recognized as a belligerent state is the main question in this part of the book. That is, the ideological and discursive dispute based on the idea of a “right” to secession in the realm of international law and within the American Constitution. Doyle affirms, nonetheless that this “legal quarrel (…) obscured a far more salient question as to the reason for secession” (p.29). That reason was being questioned by the international community and it was being answered through public diplomacy as Union and CSA struggled for support. And, although both sides initially tried to elude it, “every one of South Carolina’s grievances centered on slavery” (p.30). British, Spanish, and French declarations of neutrality threatened the Union and gave strength to the Confederacy, a diplomatic battle that would be stretched by the military victories of the CSA. Lincoln’s inaugural address in 1861 sought to place the Civil War as an international conflict, based on the principle of international law and the perpetuity of the union, and placed, once again, the extinction of slavery as a secondary matter: “the main issue before the public was already ‘Union or Disunion’, not slavery or abolition” (p.65). Apparently, however, Europeans were not at all concerned with local politics and the rights to secession. In that sense, it would be better to place the war upon “a higher moral basis”, and Europeans from different social sectors began to answer Garibaldi’s questions for themselves.

The second part of the book – The American Question – shows how the conflict was growing in the minds of the world as a global struggle, particularly as a crisis of life and death to the republican experiment “within the context of alternating swells of revolutionary hope and reactionary oppression that radiated through the Atlantic world in the Age of Revolution” (p.85). Republicanism, democracy, natural rights, and slavery, social change and structure, the delights of the conservatives in Europe and the fears of the liberals in view of the War:all that came to earth in the eyes of international observers of the conflict. Extreme democracy was at its death bed and the Empire powers, Britain, Spain, and France resurged and believed it possible to restore their authority. The imbrications of European politics concerning the Americas and their old colonies, as well as the role of foreign views on the conflict, which made their way to the U.S. through important translations of books and pamphlets, demonstrated how intellectuals were elaborating their own meaning of the conflict, helping to place the Civil War as an ideological conflict between slavery and freedom, monarchy and republicanism. It became definitely a global matter. The last chapter of Part II demonstrates how the Civil War became an internationalized conflict not only intellectually, but also in the battle front. Don H. Doyle brings to light the “Foreign Legions” that added up the military layers of the Union army, constituting among immigrants and sons of immigrants “well over 40 percent of the Union’s foreign-born soldiers” (p.159). Although this is not an unprecedented theme in the studies of the Civil War, Don H. Doyle is able to place their participation in a broad understanding of why these immigrants were so willing to fight for America within the international understanding of the Civil War and the construction of the American nation.

In the final part of the book, “Liberty’s War”, the author demonstrates how the war was defined not only as a war over slavery, but also as a struggle between democratic and monarchical governments and ideals, that is, the struggle for the people’s freedom. In that sense, he unveils the “Confederacy’s shift to the right” (p.186), referring to the support from the French sought by the CSA. This meant that not only was the South fighting for slavery, but to do so it was willing to support and negotiate with conservative European governments and to accept their interference in the American continent, including by offering what “can only be described as a magnificent bribe” (p.203) in the form of a very advantageous and long-term commercial treaty, in exchange for Napoleon III’s declared support of the South. The year of 1862 represented the greatest threat of foreign intervention in the Americas, and in that sense, a threat to all republican governments. The Union’s soft power was also directed at broadening the idea of “national preservation” to all governments by the people in the world, “the outcome of the American contest would decide nothing less than the fate of democracy” (p.215).

How the Union and CSA continuously fought in the field of public diplomacy for this narrative is one of the main points placed by DonH. Doyle, arguing that, considering all the military and political world powers engaged and interested in the outcomes of the American conflict, this diplomatic war was as important as the battlefields in American soil. Throughout the last part of the book, the author is able to discuss the significant changes occurring in Europe, not only towards the American Civil War and slavery, but also towards republicanism, particularly in face of the movement for national consolidation in Italy, leaded by Garibaldi and Mazzini, up to what he calls a “Republican Risorgimento”, which again altered the ideological frames of Europe and the Americas.

This book is not an attempt to account for the Civil War in its totality, it is not a new book on what was the Civil War, its causes and consequences, or how its main events and battles developed. Rather, it offers the opportunity to envision it as an international event that was part of a much broader crisis, which carried beneath it fundamental struggles, problems, and dilemmas that regarded the Western world at the second half of the nineteenth century. The American Civil War had a profound impact on the international relations of the early 1860s and high economic, social and ideological issues were at stake: a “struggle that shook the Atlantic world and decided the fate of slavery and democracy” (p.313). This book places the U.S. among other nations that, to survive as a unified national state, depended upon the support and approval of European and American nations. In this sense, it relates the future of the United States to that of other transatlantic relations and vice-versa. In doing this, not only he helps to give one step further towards the rupture with the idea of exceptionalism in American history, he also goes past its traditional links with Europe, including Latin America as part of the world being built in the 1860s, with its own contradictions and expectations. For Brazilian historians, it gives the opportunity to also step back from our own ideas of exceptionalism in the history of Brazil, understanding the political, economic, and ideological interconnections among the American continent, and that transatlantic history is a possible and fruitful path to do so.

Referência

DOYLE, Don H. The Cause of All Nations.An International History of the American Civil War. New York: Basic Books, a member of the Perseus Books Group, 2015.

Juliana Jardim de Oliveira – Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto – Minas Gerais – Brasil. Licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Viçosa (2007), mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2010), doutoranda do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto. Ênfase em História da construção dos Estados Nacionais na América, particularmente Argentina, Brasil e Estados Unidos. Atualmente pesquisa a Guerra Civil dos EUA como evento internacional e seu impacto nos debates parlamentares brasileiros.


DOYLE, Don H. The Cause of All Nations.An International History of the American Civil War. New York: Basic Books, a member of the Perseus Books Group, 2015. Resenha de: OLIVEIRA, Juliana Jardim de. The war of brothers that changed the world: the U.S. civil war and the 1860s. Almanack, Guarulhos, n.21, p. 609-616, jan./abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

The Cultural Revolution of the Nineteenth Century: Theatre – the Book-Trade and Reading in the Transatlantic World. I. B. | Márcia Abreu e Ana Cláudia S. Silva

É recorrente a ideia, trazida especialmente pelos clássicos estudos sociológicos, de que a intensa conexão entre as nações ocorreu devido aos avanços técnicos e informacionais desenvolvidos durante o século XX, sobretudo em seu último quartel. Graças à rede mundial de computadores, os fluxos de deslocamentos de pessoas e a comunicação online favorecem a troca de informações e conhecimentos entre os vários países do globo, além de promover a ampliação das fronteiras no campo econômico e despertar novas modalidades de conflitos políticos. E se parte desses processos de fluxos mundiais já estivessem – para usar uma metáfora da época – a pleno vapor no século 19? Foi com base em indagações como essa que Márcia Abreu (Universidade Estadual de Campinas) e Ana Cláudia Suriani (University College London) organizaram The Cultural Revolution of the Nineteenth Century: Theatre, the Book-Trade and Reading in the Transatlantic World. Sua ideia central é que ao longo do século XIX havia fortes indícios da formação de uma “Aldeia Global” como conhecemos hoje.

Segundo o argumento geral do livro, as decisivas transformações socioculturais do Oitocentos puderam correr o mundo graças às Revoluções Atlânticas do final do século XVIII, ao crescimento demográfico sem precedentes na história humana e ao avanço tecnológico visível nas chamadas linhas de conexão (estradas de ferro, navios a vapor, cabos telegráficos). O encurtamento da distância e o maior contingente populacional aceleraram a circulação de símbolos e ideais culturais, entre eles o dos impressos. Circulando com muito maior liberdade e alcance através do Atlântico, jornais, livros, magazines, circulares, panfletos e folhas volantes se tornaram mercadorias internacionais e vetores das trocas culturais entre as nações. No século XIX era possível a manutenção do que, hoje, intitula-se globalização cultural.

The Cultural Revolution é resultado do projeto temático “A circulação transatlântica de impressos: a globalização da cultura no século XIX”, que reúne uma série de pesquisas, inseridas no campo da micro-história, que pretendem compreender a “revolução cultural silenciosa”, para utilizar a noção de Jean-Yves Mollier (Université Saint-Quentin Yvelines). O objetivo do grupo foi o de analisar os impressos e a circulação de ideias entre Brasil e demais países da Europa entre 1789 e 1914, intervalo inspirado no clássico de Eric Hobsbawm, A Era dos Impérios. Com características transnacionais, The Cultural Revolution reúne trabalhos de cientistas nacionais e estrangeiros de diversas áreas como a história, a sociologia, a antropologia e a literatura. Tal ponto denota a intenção de interdisciplinarizar as Ciências Humanas, passo fundamental para responder à questão que motivou a pesquisa: como se deram as transferências culturais entre a Europa e a América do Sul no século 19?

O livro possui quatro partes, e a primeira delas, Methodology Issues, como o próprio nome indica, consiste em analisar as questões metodológicas. Os três capítulos dessa parte tratam da análise dos agentes, do suporte, da materialidade e dos textos a partir das perspectivas da história do livro, ou da imprensa periódica, e da história da leitura. O primeiro capítulo, de Roger Chartier (École des Hautes Études en Sciences Sociales), analisa simultaneamente o texto para publicação e a fabricação do livro, dado que os escritos estariam sujeitos a mudanças de acordo com a produção editorial. “What is at stake here is not only the production of the book, but of the text itself in its material and graphic forms” (p. 17). Tal noção já se encontra em trabalhos anteriores do autor. Entretanto, a questão amplia-se agora às mercadorias ideológicas transnacionais, uma vez que é possível abordar como ocorreram as apropriações de livros e impressos confeccionados em determinado espaço e adaptadas para outra realidade.

No segundo capítulo, Jean-Yves Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines) preocupa-se com a história da formação da casa editorial e da profissionalização do editor, analisados segundo aspectos socioeconômicos, ideológicos e políticos. Além da construção cultural dos objetos, Mollier considera o aspecto material e lucrativo da elaboração dos impressos. Esse espaço de produção e concorrência gerou o início da profissionalização do editor, que, não apenas empenhado em disseminar a cultura, também almejou a obtenção de lucros quando adequou conteúdos, fossem textos ou gravuras, para livros e outros suportes impressos, a fim de fazer circular as obras dentro de um espaço transnacional.

Após abordagens sobre o livro, a leitura e o editor, encontra-se o trabalho de Tania Regina de Luca (Universidade Estadual Paulista). A autora debruçou-se sobre o gênero impresso periódico, principalmente jornais e revistas. O texto abordou dois aspectos do fazer historiográfico em torno dessas publicações. O primeiro disserta sobre o universo mais amplo do uso de documentos para a pesquisa histórica que surgiu, sobretudo, com a renovação teórica e metodológica. O segundo ocupa-se com a metodologia aplicada ao estudo da imprensa, em particular a revista, como forma de analisar os problemas históricos de uma época que vão além das transferências culturais.

Com a primeira parte dedicada ao tratamento metodológico dos livros, editores e periódicos, as demais partes de The Cultural Revolution discorrem sobre os três seguimentos inseridos em contextos históricos específicos. A segunda, intitulada “Editing, selling and reading books between Europe and Brazil”, aborda pesquisas em torno de suportes de impressos, livros e periódicos, com foco nas casas editoriais e “editores” em formação.

À luz da abordagem de Mollier, João Luís Lisboa (Universidade Nova de Lisboa) tratou da profissionalização do editor em Portugal. Se num primeiro momento a elaboração de impressos tinha o intuito de informar sobre a política ou disseminar entretenimento, a partir da segunda metade do século 19 iniciou-se o processo de vulgarização de conteúdos variados, principalmente por meio de revistas. Tal mudança necessitou de maior demanda de trabalho e maior agilidade, o que ocasionou o início da profissão de editor na virada para o século XX. Por sua vez, Lúcia Granja (Universidade Estadual Paulista) versou sobre a expansão do mercado livreiro e do desenvolvimento da impressão de livros no Brasil do Oitocentos. Assim como Lisboa, Granja também observou com atenção os agentes em torno do comércio de livros e suas vinculações políticas com os episódios do país. Sua análise destaca Baptiste-Louis Garnier (1823-1893), elo crucial na corrente de circulação de impressos entre Europa e América do Sul. A segunda parte da obra encerra-se com o artigo de Claudie Ponciani (Université Sorbonne Nouvelle), dedicado à figura do engenheiro francês Louis-Léger Vauthier (1815-1901). Vauthier fora pela reforma infraestrutural de Pernambuco, além de vendedor de livros franceses sobre questões técnicas de engenharia e sobre ideais do “socialismo romântico”. O texto inseriu Vauthier na legenda passeur (mediador), noção discutida por Michel de Espagne, que também trouxe à tona a problemática das transferências culturais. Atualmente, a noção de mediação tem sido trabalhada pela historiadora Diana Cooper-Richet, integrante do projeto Transfopress que visa à análise de periódicos em língua estrangeira publicados na França.

Com o título “Cultural exchanges through periodicals”, a terceira parte do livro dedica-se à investigação dos periódicos pela perspectiva das trocas culturais. Eliana de Freitas Dutra (Universidade Federal de Minas Gerais) analisou, sob o ponto de vista da materialidade, como sugere Tania de Luca, a Revue des Deux Mondes (1829-), editada na Cidade Luz e, a título de curiosidade, a preferida de D. Pedro II. Recortando sua análise entre os anos 1870 e 1930, a autora observou o aumento de colaboradores e uma maior discussão sobre diversos países. Na época, o Brasil figurou em várias páginas como alvo de debates que o exibiam como país não desenvolvido por possuir natureza tropical abundante. Os textos de Ana Claudia Suriani da Silva, bem como de Adelaide Machado (Universidade Nova de Lisboa) e Júlio Rodrigues da Silva (Universidade Nova de Lisboa), tomaram os periódicos como fonte de pesquisa. Suriani trabalhou com a moda francesa difundida por impressos franceses e pelos brasileiros Correio das ModasNovo Correio das Modas e A Estação; e Adelaide Machado e Júlio Silva, com problemáticas mais amplas resultantes da integração cultural, como a imigração entre Brasil e Portugal, ponto discutido nas folhas ilustradas Jornal do Brasil (1897-8) e Portugal-Brasil (1899-1914), ambos de Lisboa.

A quarta e última parte do livro, “Plays and novel between Europe and Brazil”, volta-se para a análise ideológica dos teatros e romances modernos, difundidos no século XIX pelos autores ingleses Ann Radcliffe (1767-1823) e Sir Walter Scott (1771-1832). Com o objetivo de comparar e intersectar os diversos interesses de leitores do Brasil, França e Portugal, Márcia Abreu analisou trabalhos de ficção que circularam entre o Rio de Janeiro e Paris. Daniel Melo (Universidade Nova de Lisboa) também se debruçou sobre o gosto dos novos públicos-leitores brasileiro e português, porém com o intuito de examinar o desenvolvimento da leitura em distintos grupos sociais. Por fim, dois artigos examinaram a difusão da produção teatral francesa (tanto a dramática como a lírica). Jean-Claude Yon (Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines) abordou a disseminação dos espetáculos em diversos espaços nacionais ao longo do século XIX, a fim de demonstrar o apogeu do teatro francês no início do século e o seu declínio no desfecho do Oitocentos. Orna Messer Levin (Universidade Estadual de Campinas) associou as peças teatrais no Brasil aos impressos periódicos com a finalidade de demonstrar que ambos revelaram a predominância da cultura francesa no país. Levin ainda chamou a atenção para a produção de outras nacionalidades em convívio com a francesa, pois, apesar da hegemonia da língua de Voltaire, a competitividade teria aberto espaço para a expansão do mercado e a profissionalização de editores e de profissionais do teatro no início do século XX.

Ao abordar a circulação de objetos e ideias através de um mercado em expansão entre o Brasil e a Europa, a obra The Cultural Revolution of the Nineteenth Century evidenciou encontros culturais transatlânticos de primeira grandeza. Do ponto de vista da escrita da história, o livro é um contraponto à historiografia nacionalista-desenvolvimentista que suprimiu documentos e fontes de origem estrangeira em detrimento de produções vernaculares. Graças à história do livro e da leitura, em consonância com a história cultural, os historiadores e outros estudiosos das Ciências Sociais vêm demonstrando que a flexibilização das fronteiras nacionais é muito mais antiga do que se pensa. A “Aldeia Global” de hoje teve suas próprias formas de existir antes da internet, seus bits e bytes.

Referência

ABREU, Márcia; SILVA, Ana Cláudia Suriani. The Cultural Revolution of the Nineteenth Century: Theatre, the Book-Trade and Reading in the Transatlantic World. I. B. Tauris: London, New York, 2016.

Helen de Oliveira Silva – Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). Assis – São Paulo – Brasil. Graduada em História e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Assis. Bolsista Fapesp, processo nº 2017-20828-4. E-mail: [email protected]


ABREU, Márcia; SILVA, Ana Cláudia Suriani. The Cultural Revolution of the Nineteenth Century: Theatre, the Book-Trade and Reading in the Transatlantic World. I. B. London, New York: Tauris, 2016. Resenha de: SILVA, Helen de Oliveira. Entre Brasil e Europa: a Revolução Cultural do século XIX. Almanack, Guarulhos, n.21, p. 617-622, jan./abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

Arquivos de Instituições médicas e de saúde / Revista do Arquivo / 2019

Medicina, saúde pública e arquivo entre os espaços de memória e de história

Recentemente, temas relativos à memória se tornaram objeto de reflexão historiográfica, em particular a partir dos anos 1970, quando os historiadores da Nova História começaram a trabalhar com essa temática, aproximando-se de estudos já avançados no campo da filosofia, da sociologia, da antropologia e, principalmente, da psicanálise. É essa história que se empenha em sua cientificidade, ganhando a memória um lugar de importância decisiva. A partir de um problema em torno da contemporaneidade, uma iniciativa retrospectiva e a renúncia a uma temporalidade linear em favor de tempos múltiplos, a relação de enraizamento do individual no social e no coletivo ganha a atenção desses analistas, fermentando pesquisas em torno de lugares da memória coletiva. Para Jacques Le Goff (1996, p. 473), esse seriam:

[…] lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais e as autobiografias, mas não podendo esquecer os verdadeiros lugares da história, aqueles onde se deve procurar, não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva: Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências históricas ou gerações, levando a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória.

Se a identificação da memória está entre os próprios alicerces da história, muitas vezes se confundindo com o documento, com o monumento ou com a oralidade, é essencial ao ofício do historiador a relação estabelecida com memórias, sejam elas de que natureza forem, exigindo, ao mesmo tempo, cuidados que devem incluir uma clara conceituação entre história e memória, evitando considerar as memórias como um discurso mais verdadeiro, mais próximo do que teria sido o que se poderia chamar de uma “verdadeira história”. O historiador também se deve preocupar em definir em torno das memórias uma clara exposição de métodos, tanto no que tange à coleta dessas memórias como em seu emprego posterior no interior de um discurso historiográfico. Esses cuidados buscam dirimir tensões que existem entre os conceitos de memória e de história, que, longe de serem sinônimos, têm entre si um jogo sobretudo de oposição.

Sempre carregada de grupos vivos, a memória estaria aberta à dialética das lembranças e dos esquecimentos, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações, enquanto a história seria a reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que não mais existe:

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente, enquanto a história é uma representação do passado, porque é uma operação intelectual e laicizante, demandando análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica (NORA, 1993, p. 9).

Nesse sentido, a memória trata dos outros, mas para falar do indivíduo, numa relação consigo mesma e, por isso, construtora de identidade, presa a grupos, à visão de grupo ou grupos que é expressão, envolvendo em seu discurso uma maior ou menor distância em torno da polaridade memória individual-coletiva, envolvendo tríplice atribuição: “a si, aos próximos, aos outros, afinal, não existe um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos?” (RICOEUR, 2007, p. 141-142).

É nesse campo problemático envolvendo memória, identidade e construção de discursos que a história se elabora na externalidade com o acontecido. É uma interpretação a posteriori do fato, trabalhando com as experiências de inúmeros grupos e indivíduos, querendo conhecê-los e, consequentemente, interpretá-los, numa relação com a alteridade, numa relação com a identidade que é a de localizá-la para descobri-la em suas diferenças.

Quando as questões médicas e de saúde pública ganharam compreensão historiográfica, era esse um de seus maiores dilemas: como construir um discurso histórico em torno de uma memória já tão alicerçada em alguns cânones considerados pétreos e como capturar um novo discurso considerando as preocupações que a própria história colocava em seu campo de trabalho, diferenciando o que é a memória e o que é a história, apontando novas possibilidades interpretativas e temáticas?

A proposta de um dossiê

Entre os anos 1960-70, quando a Medicina Social abriu o debate acadêmico e social sobre os processos saúde-doença e as formas de organização das práticas sanitárias em sua visão interdisciplinar, identificou na História e em sua dimensão crítica um campo de saber fundamental. Apresentando a primeira coletânea brasileira sobre aspectos teóricos e históricos da Medicina Social, Cecília Donnangelo (1983, p. 10) recomenda a seus estudiosos e defensores uma atenção particular à dimensão histórica de sua constituição e de seus dilemas, “apreendido[s] e reconstruído[s] também através da análise histórica”.

Esse empreendimento intelectual se distanciou da História da Medicina que vinha sendo difundida desde o século XIX sob balizas positivistas do conhecimento, quase sempre escrita por médicos, que:

[…] ordenavam fatos à luz de esquemas evolutivos que combinavam os marcos cronológicos da história política e administrativa brasileira com a marcha ascendente dos conhecimentos rumo a uma história científica, eficaz, por obra, quase sempre, de vultos de importância nacional e local (BENCHIMOL, 2003, p. 108).

Entre os clássicos dessa produção no Brasil, estão História da Medicina no Brasil (1947), de Lycurgo de Castro Santos Filho, e História da Medicina no Brasil (1948-49), de Pedro Nava.

Assim, no âmbito da saúde e das práticas médicas, a medicina social procurava compreender mais amplamente a história da produção e difusão desses conhecimentos e dessas práticas não mais se restringindo à investigação fechada na ideia de um “irretocável” patrimônio científico e técnico, mas percebendo-os num contexto em que circulam e se articulam inúmeros fatores, inseparáveis das condições econômicas, sociais, políticas e culturais. Em particular, entre os historiadores, o impacto da tradição da Escola dos Annales entre os anos 1970-80 alargou todo um repertório de objetos, abordagens, ferramentas conceituais e fontes, originando temas, metodologias, problemas e alternativas requalificadas por metodologias específicas da ciência histórica e de sua lógica.

Nesses termos, o território da geração da Medicina Social, como George Rosen, Henry Sigerist e Entralgo, viveu incorporações e discussões importantes em torno da perspectiva historiográfica:

Questões pertinentes à raça e ao gênero, uma visão mais refinada de classes e categorias sociais, a atenção aos atores e particularismos locais passaram a informar os estudos sobre políticas, instituições e profissões de saúde. A história da medicina deixou de ser apenas a história dos médicos para se tornar também a dos doentes, e a história das doenças experimentou um verdadeiro boom historiográfico. O corpo, a infância, as sensibilidades, o meio-ambiente e outros objetos atenuaram as fronteiras entre a ciência da história e outras ciências humanas e naturais (BENCHIMOL, 2003, p. 109).

Eis a motivação maior para a construção deste dossiê, reunindo um conjunto de estudos nacionais e internacionais sobre temas médicos e de saúde pública, mas afinados com o lugar da documentação, de sua guarda, conservação e disponibilização para a pesquisa histórica. Isso porque há todo um esforço dos pesquisadores frente à dificuldade de acesso a arquivos que tratam de medicina e saúde pública advinda do próprio campo arquivístico, envolvendo o lugar da memória documental e sua relevância na explicação do passado e na formação de um pensamento presente:

[…] as instituições arquivísticas públicas brasileiras apresentam aspectos comuns no que se refere às suas características fundamentais. Trata-se de organizações voltadas quase exclusivamente para a guarda e acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de valor histórico, ignorando a gestão de documentos correntes e intermediários na administração que os produziu (JARDIM, 1995, p. 7).

Num plano específico, por outro lado, devem-se notar particularidades advindas no campo médico e de saúde pública que tangem ao esforço dos centros arquivísticos para transformar documentos, quase sempre de natureza privada ou institucional, em documentos de valor histórico e público, tendo que acolhê-los, conservá-los e disponibilizá-los a pesquisadores em todo um percurso difícil, fazendo com que parte dessa documentação seja descartada antes de chegar aos arquivos:

Os arquivos privados classificados como de interesse público, apesar de continuarem a ser bens privados, integram o patrimônio cultural da nação. Essa contradição, aparentemente de difícil solução, tem que ser pensada a partir da ideia do interesse público que, por ser comum a toda sociedade, se sobrepõe aos interesses individuais. No caso da propriedade privada, o exercício desse direito possui limite igualmente previsto no texto constitucional brasileiro, qual seja, sua função social ou sua utilidade pública (COSTA, 1998, p. 197).

É nessa dinâmica, que vai da identificação de acervos e da possibilidade de acolhê-los até a escolha do que deve ou não ser preservado e de sua disponibilização para a pesquisa, que o Arquivo Público do Estado de São Paulo vem há anos se preocupando em resgatar parte dessa memória, traduzida por uma intensa experiência acumulada de projetos, atividades e apresentação de temas que variam entre ações educacionais, de pesquisa e divulgação, permitindo:

[…] a integração de diferentes conhecimentos, de diferentes áreas, de diferentes profissionais. Envolve pesquisa, comunicação, ação pedagógica e uso da tecnologia, o que justifica o envolvimento não apenas de historiadores e arquivistas (os profissionais típicos dos arquivos permanentes), mas jornalistas, publicitários, designers, professores, revisores (BARBOSA; SILVA, 2012, p. 8).

É essa ampla e abrangente dimensão arquivística que permite ampliar métodos e, sobretudo, divulgar suas fontes, trazendo como documentos históricos pistas e rastros possíveis que levem a compreensões capazes de repercutir neste dossiê as práticas dos médicos e de seus pacientes, bem como seus espaços institucionais de ensino, pesquisa e trabalho, mas, com a mesma força, as práticas e representações do homem comum, os espaços de associações profissionais, sociedades científicas e periódicos, sem perder de vista o universo popular, suas formas de organização e sua leitura do mundo que o cerca. Assim:

[…] além da legitimidade da memória no fazer histórico, o que se quer perceber são os contrastes de sua facção pela experiência vivida, sempre conduzida pela preocupação da história de apresentar um determinado tempo passado, com seus homens e suas mulheres, revelando por isso o tempo presente, também com seus homens e suas mulheres, mas estes carregados de projeções de um futuro incerto (MOTA, 2018, p. 81).

Referências

BARBOSA, Andresa Cristina Oliver; SILVA, Haike Roselane Kleber da. Difusão em arquivos: definição, políticas e implementação de projetos no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Acervo, Rio de Janeiro, v. 25, n.1, p. 45-66, 2012.

BENCHIMOL, Jaime L. História da medicina e da saúde pública: problemas e perspectivas. In: ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de (Org.). Ciência em perspectiva: estudos, ensaios e debates. Rio de Janeiro: MAST / SBHC, p. 97-106, 2003.

COSTA, Célia Leite. Intimidade versus interesse público: a problemática dos arquivos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 189-199, 1998.

DONNÂNGELO, Maria Cecilia Ferro. Apresentação. In: NUNES, Everardo Duarte. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, p. 10-12, 1983.

JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 2, p. 1-13, 1995.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4a ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.

MOTA, André. Tempos cruzados: raízes históricas da saúde coletiva no Estado de São Paulo 1920-1980. Tese (Livre-docência em História da Medicina) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

NORA, Pierre. Entre memória e história: o problema dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

André Mota – Historiador, Professor Livre-docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina- USP e Coordenador do Museu Histórico-FMUSP.


MOTA, André. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano IV, n.8, abril, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Francisco e o franciscanismo; Sociedades científicas / Antíteses / 2019

Editorial

O ano de 2019 foi particularmente difícil para as universidades brasileiras, que enfrentaram, além da redução de verbas destinadas à pesquisa, a desconfiança em relação ao conhecimento científico e sua relevância social. Neste cenário, o meio acadêmico, em particular o historiográfico, se viu diante do desafio de reafirmar suas bases epistemológicas e metodológicas (como fizemos no número anterior por meio de nossa Carta de princípios) e ao mesmo tempo prosseguir com a busca por resultados de excelência na pesquisa. Para nós, da Revista Antíteses, esse cenário não foi diferente. Este número encerra um ano de muitas transformações internas, da procura por novos caminhos para a difusão dos conhecimentos da área e da consolidação das conquistas obtidas nos últimos anos por nosso periódico.

A presente edição consolida, por exemplo, o novo projeto gráfico da Antíteses, possibilitado pelo apoio recebido do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), que modernizou o layout adequando-o a novos padrões de leitura. Também demos seguimento à nova seção “Sociedades Científicas”, desta vez por meio da parceria com o Laboratório de Estudos de História das Américas (LEHA), da FFLCH-USP. Celebramos ainda, mais uma vez, a conquista do novo Qualis-Capes obtido pela revista (A1). O feito de atingir o estrato máximo da avaliação já nos trouxe como resultado imediato o aumento no recebimento de artigos, vindos das mais variadas universidades brasileiras e do exterior, o que coloca novos desafios para o Comitê editorial.

Em continuidade a esse processo de reformulação, comunicamos a troca do editor-chefe da Revista Antíteses. Após 5 anos de dedicação no comando desta publicação, o professor Gilmar Arruda deixou o cargo de editor-chefe, embora continue como um membro fundamental da nossa editoria.

Em seu lugar, assumiu a professora Carolina Amaral de Aguiar. Essa mudança denota uma enorme responsabilidade e engajamento para manter o nível de qualidade do periódico, assim como o prestígio alcançado no campo historiográfico graças ao trabalho de Arruda nos últimos anos. Também anunciamos a inclusão de uma nova integrante na equipe editorial, a professora Cláudia Martinez, ampliando o número de docentes do Programa de Pós-graduação em História Social-UEL envolvidos neste projeto.

Além dos textos de temáticas variadas na seção “Artigos”, neste número publicamos novamente resultados recentes de pesquisa na seção “Primeiros passos”, destinada a pesquisadores que ainda não terminaram o doutorado. Trazemos também uma resenha, mantendo o espaço reservado à leitura e aos comentários de obras recentemente lançadas. Destacamse ainda dois dossiês. Na seção “Sociedades científicas” – coordenada pelas pesquisadoras vinculadas ao LEHA-USP Ângela Meirelles de Oliveira (UNIOESTE), Camila Bueno Grejo (USP) e Maria Antonia Dias Martins (CUFSA) –, apresentamos artigos representativos de tendências da área de História das Américas. Já a seção coordenada pelos professores Angelita Marques Visalli (UEL) e Daniel Russo (Université de Bourgogne) traz textos que abordam de maneiras variadas o pensamento, as imagens e a memória franciscanos: trata-se do dossiê “Francisco de Assis e a construção da experiência franciscana na Idade Média”.

A variedade de temáticas, períodos abordados, metodologias e pontos de vista presente nesse conjunto de textos reafirma nosso compromisso em dar espaço às mais variadas perspectivas historiográficas, legitimadas pelo rigoroso processo de avaliação pelos pares. Como resultado, obtemos também uma relevante abrangência nacional e internacional que se refere às instituições dos pesquisadores envolvidos para a realização deste número. Nunca é demais lembrar que a Revista Antíteses é resultado do trabalho comprometido de uma grande equipe – entre membros dos comitês editorial e científico; pareceristas ad hoc; autores; e assistentes do processo de edição. Esse compromisso coletivo deriva, sobretudo, de um engajamento com a pesquisa e com a universidade que resistiu aos duros golpes sofridos em 2019. Dessa forma, esperamos que a leitura deste número seja também um momento de reafirmação de princípios e de defesa da universidade em sua função pública e social.

Londrina, dezembro de 2019

Carolina Amaral de Aguiar –  Editora-chefe

Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez

Claudio Denipoti

Gilmar Arruda

Lukas Gabriel Grzybowski

Editores

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[DR]

 

História das Mulheres e Estudos de Gênero: novas questões e abordagens / Ars Historica / 2019

Obs.: Apresentação indisponível na publicação original.

[História das Mulheres e Estudos de Gênero: novas questões e abordagens]. Ars Historica, Rio de Janeiro, v.18, n.1, 2019. Acessar dossiê [DR]

Cultura escrita no mundo ibero-americano: identidades, linguagens e representações / Cantareira / 2019

Segundo Lucien Febvre e Henri Jean-Martin, o livro moderno surgiu a partir do encontro de dois fatores que, apesar de distintos, mantêm alguma ligação. Primeiro, foi necessário que o papel se firmasse enquanto mídia, o que não aconteceu antes do século XIV. Até então, as técnicas empregadas na produção das folhas, faziam com que seu preço fosse alto e sua qualidade inferior, mais frágil e pesado, com a superfície rugosa e repleto de impurezas. Concorrendo com o já estabelecido pergaminho de pele de carneiro, o novo material não oferecia aos copistas um suporte adequado para a transcrição de manuscritos, sugando a tinta, mais do que o necessário, e com possibilidades de duração limitada.[4]

O segundo fator apontado é a técnica de impressão manual, composta pela tríade: caracteres móveis em metal fundido, tinta mais espessa e prensa. Deixando a alquimia das tintas de lado, pela facilidade com a qual era possível produzi-las então, o grande avanço da época foi a composição em separado dos tipos móveis. Para cada signo fabricava-se uma punção de metal duro – composto de uma liga de chumbo, estanho e antimônio que variava de proporção conforme a região –, sob a qual se demarcava a matriz em relevo. Em metal menos duro moldavam-se as imagens em côncavo. A seguir, colocadas em uma forma se podia produzir os caracteres em quantidade suficiente para imprimir uma ou mais páginas. Sob a pressão do torno, o velino – pergaminho de alta qualidade, feito a partir de pele de bezerro ou cordeiro – não resistia à tensão imposta pela placa de metal que guardava os tipos. O papel, por sua vez, forçado à mesma pressão, continha a tinta mais espessa, apresentando uma nitidez regular de impressão. Eis o surgimento da indústria tipografia.[5]

Dos incunábulos impressos na oficina de Johann Gutemberg, em Mogúncia, até o final do século XVIII, o trabalho dos tipógrafos e impressores permaneceu o mesmo, com algumas pequenas alterações. A realização da segunda edição da Encyclopédie, a exemplo, seguia os “ritmos de uma economia agrária”, dependente da sazonalidade dos recolhedores de trapos e dos papeleiros.[6] Segundo Robert Darnton: “No início da Era Moderna, as tipografias dividiamse em duas partes, la casse, onde se compunham os tipos, e la presse, onde se imprimiam as folhas.”[7] Na composição alinhavam-se de forma manual e solitária um a um os tipos, formando linha a linha as placas. No trabalho de impressão eram necessários ao menos dois homens: um deles entintava as formas que estavam encaixadas sobre uma caixa móvel, com a prensa ainda aberta; o outro colocava a folha sobre uma armação de metal, onde eram fixadas as presas, e puxava a barra da prensa, fazendo o eixo girar em parafuso, produzindo uma das páginas. Terminada a resma, a atividade começava novamente, com a impressão no verso das folhas. Uma operação que requeria enorme esforço físico, tanto mais se tratando de uma tiragem grande. [8]

Portanto, até que se introduzissem efetivas mudanças técnicas, o período tratado compreende uma era de manufatura do livro. Entre o trabalho realizado pelos monges nos scriptoria e pelos copistas profissionais, que se instalaram sobretudo ao redor dos grandes centros e das universidades,[9] e a tecnologia adotada em 1814, com a prensa cilíndrica, e da força do vapor, a partir de 1830,[10] existe um intervalo de tempo no qual o trato com o livro é peculiar. Para os homens da época moderna, a relação com este objeto é diametralmente outra, opondo-se tanto daquela adotada pelos medievais, quanto da praticada hoje. O exame cuidadoso dos aspectos físicos era um expediente comum aos leitores do Antigo Regime. À qualidade das páginas era essencial uma espessura fina, de um branco opaco, com a impressão devidamente legível e em caracteres de bom gosto.[11] Uma preocupação material, de consumo, secular.

Junto à difusão dos livros, ocorreu a difusão dos formatos. Pouco a pouco, os pesados in fólio foram dando espaço a novos tamanhos, mais leves e com caracteres menores. Em pleno século XVII, quando a indústria já estava suficientemente estável, os impressores Elzevier lançaram uma coleção minúscula para a época, in-12, o que causou o espanto dos eruditos.[12] A partir de então, as pequenas edições invadiram o mercado com publicações in-12, in-16 e in-18. A predominância da literatura religiosa não cessou, mas o interesse por temas como Literatura, Artes e Ciências, nos circuitos legais, e literatura pornográfica, sátiras, libelos e crônicas escandalosas e difamatórias, que corriam nos circuitos clandestinos, só fez aumentar.[13]

A popularização de material impresso e a diversificação dos temas foram acompanhadas de um aumento do público leitor. A Europa experimentou um crescente processo de alfabetização entre os séculos XVII e XVIII. Analisando países como Escócia, Inglaterra e França, e regiões como Turim e Castilla (Toledo), o historiador Roger Chartier apontou, a partir de assinaturas em registros cartoriais, que a alfabetização demostrou avanços contínuos e regulares nesse período. E, na América, Nova Inglaterra e Virgínia, o movimento seguiu ritmos muito parecidos. Os ofícios e as condições sociais eram fatores determinantes para o ingresso, mesmo que de forma superficial, no mundo da escrita e da leitura. É quase certo que um clérigo, um notável ou um grande comerciante soubesse ler e escrever. Bem como, é quase certo que um trabalhador comum não dominasse essas habilidades.[14]

A imprensa não desbancou de imediato os textos manuscritos. A função e utilização dada à cópia e o público para quem ela se destinava, amplo ou restrito, condicionaram a forma de reprodução durante muito tempo. A sua imposição ocorreu devido à possibilidade de um aumento considerável da reprodução, ao barateamento do custo das cópias e a diminuição do tempo de produção de um livro. Cada leitor individual passou a ter acesso a um número maior de títulos e cada título atingia um número maior de leitores. Estes argumentos, porém, não justificam ou não explicam, por si, as “revoluções da leitura” experimentadas pelo Ocidente na época moderna. A mudança e aprimoramento das técnicas tiveram um papel relevante, mas não são as únicas determinantes.[1]5 Ao mesmo passo em que elas ocorriam, alteravam-se os paradigmas sobre as práticas de leitura e a epistemologia em relação aos livros. A revolução passou por dois movimentos. No final do século XIV, a leitura silenciosa se converteu em prática comum, ganhando um número cada vez maior de adeptos, e a escolástica foi perdendo força, tornando o livro um objeto dessacralizado, um instrumento de trabalho e de conhecimento das coisas do mundo. Segundo Chartier: “Essa primeira revolução na leitura precedeu, portanto, a revolução ocasionada pela impressão, uma vez que difundia a possibilidade de ler silenciosamente (pelo menos entre os leitores educados, tanto eclesiásticos quanto laicos) bem antes de meados do século XV”.[16]

Passou-se, gradualmente, do predomínio de uma forma de leitura intensiva, ler e reler várias vezes um número limitado de obras, decorando trechos, recitando e memorizando com um sentido pedagógico, até outra forma, extensiva. Tornava-se cada vez mais comum possuir alguns livros ou uma pequena biblioteca particular para estudo ou para lazer. Textos curtos, alguns efêmeros, impressos e manuscritos de hora, o comércio ambulante de livretos… em tudo contribuíram para esse novo costume. É sabido que as duas modalidades ocuparam o mesmo espaço de tempo e uma não fez desaparecer a outra, no entanto, as descrições, as pinturas, os escritos e outros testemunhos tendem a sublinhar a vulgarização dessa prática.[17]

Em estudo recente, publicado pelos psicólogos Noah Forrin e Colin M. MacLoad, do Departamento de Psicologia da University Waterloo, no Canadá, constatou-se que a palavra lida em voz alta aparece como uma atividade com “efeito de produção”. Ler e ouvir o que se está lendo, uma medida duplamente ativa – “um ato motor (fala) e uma entrada auditiva autorreferencial” –, faz com que os trechos ganhem distinção, fixando suas marcas na memória de longo prazo. Esta ação, realizada repetidas vezes operacionaliza a memorização de passagens longas.[18] Poemas da antiguidade ou do medievo, possuíam um sem número de versos que eram recitados, em maior ou menor proporção, por diversas pessoas e em diferentes locais. A leitura silenciosa (e extensiva), porém, implica em um vestígio distinto à lembrança, mais próximo da anamnese do que da fixação mnemônica.[19]

O resultado da pesquisa de Forrin e MacLoad pode ajudar a desvendar desencadeamentos que ocorreram no passado e que mudaram nossa relação com o livro. Por um lado, novos gêneros aparecem, uma forma narrativa mais alongada e menos rimada fez sentir sua presença: o romance.[20] Este, possui todos os aspectos necessários para agradar um leitor voraz, que folheasse um volume para seu entretenimento sem a preocupação de decorar passagens, mas, em alguns casos, o efeito foi justamente o contrário. Na lista dos best sellers da época moderna estão Nouvelle Héloise, Pâmela, Clarissa, Paul et Virgine, Souffrances du jeune Werther, Les aventures de Télémaque, dentre outros, novelas com capacidade de prender seus leitores por mais de uma sessão repetidas vezes.[21] Por outro lado, encadernados de caráter mais informativo, como os guias, as enciclopédias, os atlas históricos e geográficos, as cronologias, os almanaques, os catálogos, etc., ganharam cada vez mais espaço. Situação que provocava a queixa dos eruditos, como é o caso do suíço Conrad Gesner, que cunhou a expressão “ordo librorum”, mas não deixou de reclamar da “confusa e irritante multiplicação de livros”, provocada pelo significativo aumento dos números de títulos disponíveis no mercado.[22]

É sob esta arquitetura histórica que debruçam os estudos apresentados para a trigésima edição da Revista Cantareira, compondo o dossiê “Cultura escrita no mundo ibero-americano: identidades, linguagens e representações”. Fisicamente distante das metrópoles europeias, os súditos ibéricos instalados ou nascidos no continente americano não se furtaram a experimentar as consequências dessa nova invenção. Mais do que ler, eles refletiram sobre as ideias trazidas pelos livros e por outros impressos, transportados, muitas vezes, clandestinamente – “sob o capote”. Alguns assumiram uma postura conservadora diante das novidades; outros utilizaram as palavras como motivação para contestar a ordem social, a religião ou as autoridades estabelecidas. A historiografia brasileira avançou significativamente, nos últimos anos, sobre as temáticas abordadas aqui. Portanto, esses textos, ao mesmo tempo em que apresentam novidades relacionadas às pesquisas de historiadores em formação, nível mestrado e doutorado, também caminham por terreno consolidado.[23]

No artigo “A cultura epistolar entre antigos e modernos: Normas e práticas de escrita em manuais epistolares em princípios do século XVI”, Raphael Henrique Dias Barroso aborda os códigos e normas da escrita epistolar que circulavam os ambientes cortesãos do início do Quinhentos. Com base nas obras de Erasmo de Roterdã e Juan Luis Vives, o autor demonstra a presença destes códices nas missivas diplomáticas trocadas entre o embaixador D. Miguel da Silva e D. Manuel, monarca português entre 1469 e 1521.

O segundo artigo, intitulado “A incorporação de elementos da cultura escrita castelhana nas histórias dos códices mexicas dos séculos XVI e início do XVII” de Eduardo Henrique Gorobets Martins, mostra a importância que a cultura escrita possuía nas relações de poder no mundo ibero-americano. Longe de considerar os índios como vítimas passivas da colonização, o autor evidencia como diversos grupos indígenas, que se aliaram aos espanhóis contra os mexicas, se apropriaram da cultura escrita castelhana tanto com o objetivo de reescrever suas histórias a partir de novos vocábulos como se inserir na colonização para obter cargos e privilégios juntos aos espanhóis.

O artigo seguinte, de autoria de Caroline Garcia Mendes, também demonstra a importância da cultura escrita no campo político em um outro espaço: a monarquia portuguesa nos anos seguintes à Restauração de 1640. Intitulado “As relações de sucesso e os periódicos da Península Ibérica na segunda metade do século XVII: imprimir, vender e aparecer nos materiais de notícia sobre a Guerra”, a autora analisou duas dimensões do processo de profusão das notícias impressas em Portugal: a política e a econômica. Para tal, destaca a conflituosa relação entre impressores e cegos no que dizia respeito à circulação dos impressos. Do lado político, enfatiza a importância que certos feitos de alguns personagens adquiriam ao serem difundidos pela cultura escrita. No fundo de tal preocupação, estava a preocupação de se fazer ver diante de todos, especialmente do rei.

Em “Da devoção à violência: a atribuição da mentira como estratégia de discurso na Guerra Guaranítica”, escrito por Rafael Cézar Tavares, o exame recai sobre as estratégias discursivas de ambos os lados partidários dos eventos. Para tanto, o autor analisou três conjuntos documentais difusos: as cartas dos Guarani enviadas aos funcionários coloniais na iminência do enfrentamento; o relatório pombalino escrito já ao fim dos conflitos; e o Cândido de Voltaire, novela em que o protagonista visita o Paraguai no contexto da Guerra. Um estudo relevante acerca de um episódio pouco visitado pela historiografia geral, abordado pela chave da retórica como fonte de análise.

O artigo de Anna Beatriz Corrêa Bortoletto tem como centro a cultura escrita ao avaliar a confecção e a trajetória de um documento do século XVIII redigido por Luís Rodrigues Villares, um comerciante envolvido com a expansão da colonização no atual Centro-Oeste brasileiro. Inicialmente pensado como uma instrução para os comerciantes que atuavam na região, a autora demonstra com tal documento foi ressignificado a partir de sua trajetória e materialidade. Ao fazê-lo, destaca que, atualmente, o documento se encontra num códice com diversos documentos de autoria de Custódio de Sá e Faria, um engenheiro militar que também atuou na América portuguesa do século XVIII, em outras palavras, o documento era importante para a administração colonial. A partir disso, o artigo analisa que, provavelmente, o manuscrito analisado circulou até chegar às mãos do Morgado de Mateus, então governador de São Paulo, cujo um dos descendentes vendeu o códice que hoje pertence à Biblioteca Mario de Andrade em São Paulo que o adquiriu de um bibliófilo com o objetivo de preservar documentos que pudessem responder diversas questões referentes à história do Brasil, ou seja, diferentes temporalidades históricas conferiram diferentes significados ao manuscrito. Natalia Casagrande Salvador, em artigo intitulado “Cultura Escrita para além do texto: percepções materiais e subjetivas do documento manuscrito”, destaca a importância dos estudos da cultura material e da codicologia para a interpretação dos documentos históricos. A partir do Livro de Termos da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência de Mariana, nas Minas Gerais, a autora analisa o papel enquanto suporte, os instrumentos e a escrita, o conteúdo e as posteriores rasuras e correções.

O último artigo deste dossiê intitula-se “Entre Livros, Livreiros e Leitores: a trajetória editorial e comercial da Guia Médica das Mãis de Família” escrito por Cássia Regina Rodrigues de Souza. A autora borda os manuais de medicina doméstica por meio do Guia Médica das Mãis de Família, publicado em 1843 pelo médico francês Jean Baptiste Alban Imbert com o objetivo de instruir mães e gestantes. Ao investigar a trajetória editorial e comercial, a fim de discutir os possíveis leitores da obra, a autora demonstra que seu alcance ultrapassou os limites da elite alfabetizada imperial e penetrou, de diferentes formas, na vida de mães recém-paridas, comadres e parteiras.

Por fim, encerra nosso dossiê entrevista gentilmente concedida pela Dra. Ana Paula Torres Megiani, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Livre Docente em História Social pela Universidade de São Paulo. Em resposta a quatro diferentes provocações, ela nos contou primeiro sobre sua trajetória e formação, indicando os caminhos que levaram às suas escolhas temáticas e as tendências da historiografia principalmente nos anos 1990. Na sequência, abordou a questão da circulação dos livros manuscritos na época moderna, salientando a recente atenção recebida por essa fonte. Para, então, tratar das influências do desenvolvimento da cultura escrita, entre os séculos XVI e XIX, no mundo iberoamericano como uma das bases de sustentação da administração imperial. E, no último bloco falou sobre os chamados “escritos breves para circular”, atribuição de tipologia documental que, segundo nossa leitura, evidência o surgimento de um novo “regime de historicidade”, como classifica François Hartog, ou uma nova “experiência de tempo”, conforme Reinhart Koselleck.

Esta edição conta ainda com dois artigos livres e uma resenha. O primeiro, intitulado “O materialismo histórico e a narrativa historiográfica”, escrito por Edson dos Santos Junior, aborda o problema da narrativa e do pensamento materialista histórico a partir da obra de Walter Benjamin. No segundo, intitulado “Aleia dos Gênios da Humanidade: escutando os mortos”, Cristiane Ferraro e Valdir Gregory tratam da comunidade conscienciológica sediada em Foz Iguaçu e os lugares de memória do grupo que a compõe. Mathews Nunes Mathias resenhou a obra Coração civil: a vida cultural sob o regime militar (1964-1985): Ensaios históricos (2017), escrita pelo historiador Marcos Napolitano.

Notas

  1. FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do livro. São Paulo: Ed; USP, 2017, p. 76-80.
  2. Evidentemente, o processo histórico não é tão linear e simples quanto esta exposição, apresentando múltiplas inconstâncias. Nossa intenção, porém, objetiva explicar de forma sintética o aparecimento de uma ferramenta que transformou o mundo de variados modos. Para uma exposição mais cuidadosa, cf.: Ibidem, p. 105-108ss
  3. DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio: A história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 14.
  4. Ibidem, p. 176.
  5. Idem.
  6. VERGER, Jacques. Os livros. In: Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EdUSC, 1999; FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do Livro… Op. cit., p. 59-63.
  7. DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio… Op. cit., p. 189.
  8. Ibidem, p. 150.
  9. WILLEMS, Afonso. Les Elzevier: histoire et annales typographiques. Bruxelles: G. A. van Trigt, 1880, p. 109.
  10. CHARTIER, Roger. As revoluções da Leitura no Ocidente. In: ABREU, Márcia (org.). Leitura, história e história da leitura. São Paulo: FAPESP, 1999, p. 95-98.
  11. Chamamos genericamente de “registros cartoriais”, os documentos analisados por Chartier, cuja tipologia varia de certidões de casamento até contratos comerciais. CHARTIER, Roger. Práticas de escrita. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao século das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 114- 118.
  12. CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura… Op. cit., p. 22-23.
  13. Ibidem, p. 24.
  14. CHARTIER, Roger. Uma revolução da leitura no século XVIII? In: NEVES, Lucia Maria Bastos P. (org.). Livros e impressos: Retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009, p. 93-95.
  15. FORRIN, Noah; MACLEOD, Colin M. This time it’s personal: the memory benefit of hearing oneself. Memory, [s.n.t.].
  16. Utilizamos “anamnese” no sentido expresso por Platão no Fédon, que é o mesmo retomado pela medicina moderna, no qual a experiência é reconstituída pela consciência individual, por meio dos sentidos, como uma ideia; ao contrário da mnemônica, que se refere a um conjunto de técnicas para gravar de forma mecânica um conteúdo.
  17. CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura… Op. cit., p. 26.
  18. Ibidem, p. 95-96
  19. BURKE, PETER. Uma História Social do Conhecimento. Vol I: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 97; BURKE, Peter. Problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação nos primórdios da Europa moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 44, p. 173-185, abr. 2002, p. 175; CHARTIER, ROGER. A ordem dos livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da UnB, 1994.
  20. Por ser profusa, evitamos listar a produção de historiadores brasileiros. O ato de enumerá-los, mesmo considerando somente os mais relevantes, seria exaustivo e injusto, pois em toda seleção sempre há esquecimentos por descuido ou por cálculo. O leitor interessado, de todo modo, estará bem informado consultando a bibliografia apresentada em cada artigo publicado adiante.

Claudio Miranda Correa – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Gabriel de Abreu Machado Gaspar – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Pedro Henrique Duarte Figueira Carvalho – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense


CORREA, Claudio Miranda; GASPAR, Gabriel de Abreu Machado; CARVALHO, Pedro Henrique Duarte Figueira. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.30, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Grecorromana. Revista Chilena de Estudios Clásicos | UAB | 2019

Grecorromana Pós-abolição

Grecorromana. Revista Chilena de Estudios Clásicos (Viña del Mar, 2019-) es una publicación afiliada al Departamento de Humanidades de la Universidad Andrés Bello, Chile. De periodicidad anual, su propósito es el estudio del mundo antiguo grecorromano, así como su proyección en la Tardoantigüedad y su recepción en períodos posteriores (Recepción Clásica). Como publicación académica, su objetivo es establecer un espacio de análisis crítico y reflexivo sobre la Antigüedad Clásica y promover el diálogo entre las disciplinas que componen los estudios clásicos (historia, filosofía, filologías, arqueología, arte, etc.).

Periodicidade anual.

Acesso livre.

ISSN 0719 9902

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Exercício do poder na idade média e suas representações: novas fronteiras, novos significados / Anos 90 / 2019

Esta publicação é fruto da intensificação de debates dirigidos por um grupo multi-institucional e internacional de pesquisadores(as) latino-americanos(as) que a cada dois anos, desde 2016, tem se reunido nas atividades da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais.1 A Rede não se propõe nem se apresenta como uma Associação. Os(as) pesquisadores(as) nela reunidos(as) consideram que entidades como a Sociedad Argentina de Estudios Medievales (SAEMED) e a Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) cumprem esse papel. A ideia é, portanto, estimular diálogos e atividades sistemáticas de modo a intensificar e qualificar cada vez mais a produção historiográfica sobre o medievo para além dos espaços europeus, sem, obviamente, abrir mão dos convênios, acordos e parcerias com instituições desse continente.

As atividades da Rede começaram a concretizar-se a partir do Foro Internacional Estudios Medievales en Red, ocorrido na Universidad Nacional de Costa Rica, e no II Encontro, realizado na Universidade Federal da Fronteira Sul, em Chapecó (2016 e 2018 respectivamente). Desses encontros foram definidas ao menos duas publicações que colocam em perspectiva diferentes formas de se pesquisar Idade Média: a obra La edad media en perspectiva latinoamericana2, publicada em 2018, e este dossiê publicado pela Anos 90.

Esta proposta visa a ampliar a visibilidade da produção historiográfica latino-americana no campo dos estudos medievais. Objetivo que consideramos plenamente alcançado. A justificativa fundamenta-se no fato de ser possível perceber um crescimento substancial e cada vez mais especializado na área. Junto a este crescimento quantitativo, observa-se, ainda, uma diversidade e originalidade nas abordagens historiográficas, temáticas e conceituais. Cabe ressaltar que a Anos 90 se insere, com esta publicação, em um contexto de recente interesse de periódicos nacionais pela temática da Idade Média, como a Revista Brasileira de História, Revista de História, Tempo, Esboços e História em Revista. 3

Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados reúne dez trabalhos de pesquisadores(as) do Brasil, Chile, Costa Rica, México e França. Pode ser compreendido como uma publicação dividida e pensada em ao menos dois eixos: o primeiro remete às recentes disputas sobre o ensino escolar de história medieval e às reflexões de cunho historiográfico. O texto de Douglas Mota Xavier de Lima abre o dossiê à medida que toca em temas candentes e extremamente atuais sobre os usos públicos da Idade Média – não apenas no Brasil – e, principalmente, no contexto da elaboração / implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Este primeiro artigo do dossiê se dedica, especialmente, a discutir a presença do tema da Idade Média na educação escolar, tendo como documento principal de suas análises três versões da BNCC.

Outros dois trabalhos foram feitos por historiadores mexicanos. No artigo “Claudio Sánchez- -Albornoz y la preocupación por el método o cómo hacer historia medieval desde América Latina”, Martin Federico Rios Saloma investiga o trabalho deste medievalista espanhol, especialmente sua atuação durante seu período de exílio na Argentina. Seus vínculos com medievalistas europeus e seu conhecimento sobre fundos documentais espanhóis serão as bases para a análise de seu trabalho como docente e pesquisador em História Medieval.

Diego Carlo Améndolla Spínola, por seu turno, traz no artigo “Feudalismo: estado de la cuestión, controversias y propuestas metodológicas en torno a un concepto conflictivo, 1929-2015” um estudo não de um historiador em especial, mas de um conceito: o feudalismo. Para tanto, o aporte historiográfico utilizado pelo autor lida com medievalistas alemães, franceses, ingleses e italianos, não com o objetivo específico de definir o conceito, mas de verificar as transformações em sua compreensão e seu uso.

O segundo eixo do dossiê está organizado a partir de aspectos cronológicos, sendo composto pela maior parte dos artigos aqui presentes. Contempla, portanto, diferentes abordagens que assim se caracterizam seja pela diversidade de objetos (relações entre romanos e bárbaros, concílios, mosteiros), espaços (França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Castela) e tipos documentais (narrativos, jurídico-normativos, tratadística, arqueológicos).

Neste segundo eixo, Renato Viana Boy apresenta uma discussão historiográfica sobre as relações de poder e autoridade no mundo mediterrânico do século VI entre romanos bizantinos e bárbaros. Mais do que perceber neste espaço e período apenas as disputas e conflitos, o autor tenta encontrar possíveis relações políticas que poderiam aproximar populações, à primeira vista, distantes.

Outros três artigos lidam com reflexões que têm a Península Ibérica como recorte geográfico. No primeiro deles, intitulado “A imagem historiográfica de Hugo de Cluny em Leão (séc. XI-XII)”, Maria Filomena Pinto da Costa Coelho apresenta uma análise historiográfica sobre a força política do abade Hugo de Cluny, para além de seu espaço de atuação nos domínios da religião, durante o reinado de Afonso IV. Em “O poder sacralizado dos clérigos de Castela (século XIII e início do século XIV)”, Leandro Alves Teodoro analisa, para os séculos XIII e XIV, o processo de sacralização da Eucaristia e a celebração de missas como parte do revigoramento da ação pastoral dos bispos ibéricos, ampliando o espaço de atuação das igrejas paroquianas. Ainda sobre o recorte ibérico, Armando Torres Fauaz, no artigo “Representación y delegación de poderes. Los usos públicos del mandato en el ducado de Borgoña (siglos XIII-XIV)”, apresenta-nos um estudo sobre o exercício de um governo laico no Ocidente medieval, a partir da prática romana do mandato no ducado da Borgonha dos séculos XIII e XIV, como sendo uma atividade central nas práticas de representação de autoridade. Os outros artigos deste dossiê lidam com temáticas aplicadas para além do espaço ibérico. Em “‘Assembled as one man’. The councils of Henry II and the political community of England”, José Manuel Cerda se dedicou a analisar a presença das communitas ou universitas regni como uma comunidade de nobres que eram peça-chave na compreensão das origens parlamentares inglesas. O artigo “Redes e centros de poder no Centro-Oeste Gaulês na primeira Idade Média (séculos V-X)”, de autoria de Adrien Bayard, trabalhou a relação entre fontes de natureza escrita e arqueológica para o estudo das redes estabelecidas entre grupos aristocráticos locais e representantes do poder visigodo e, depois, franco, nas dioceses de Angolema e Saintes, entre os séculos V e X. E, fechando o dossiê, no artigo “O abade, o poeta e o charlatão: reflexões acerca de esoterismo e política nos séculos XV e XVI”, onde o historiador Francisco de Paula Sousa Mendonça Júnior trabalhou com a relação entre esoterismo e política no processo de transição do regimen animarum para a Razão de Estado. Para tanto, Francisco se utilizou de fontes de origem alemãs e italianas.

Assim, entendemos que a reunião de artigos presentes no dossiê Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados apresenta não apenas um apanhado de recentes pesquisas sobre o medievo, mas também demonstra uma forte articulação da produção historiográfica brasileira e estrangeira (em especial, latinoamericana) sobre a Idade Média. Além desse diálogo mais próximo entre pesquisadores de diferentes países, os artigos que compõem este dossiê demonstram, ainda, uma variedade que se dá em aspectos distintos: temático, cronológico, geográfico, documental e metodológico. Assim, acreditamos que os objetivos traçados nos momentos de encontro dos pesquisadores da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais, que se fundamentavam basicamente na produção e divulgação de trabalhos que prezam pela qualidade, atualidade, diversidade e intenso diálogo entre medievalistas de diferentes espaços, tenham sido alcançados neste dossiê.

Notas

1. Informações sobre a Rede em: http: / / edadmedia.cl / rede-latino-americana-de-estudos-medievais /

2. TORRES FAUAZ, A. (org). La edad media en perspectiva latinoamericana. Heredía: EUNA, 2018.

3. Considerando de 2016 a 2019, e incluindo este dossiê da Anos 90, foram / estão para ser publicados ao menos 6 dossiês sobre o medievo. Este número é mais amplo se considerarmos outras publicações, como a Antíteses e a Diálogos Mediterrânicos. Essa inserção / ampliação das publicações se dá além das duas revistas mais específicas da área, Signum e Brathair. Importante considerar também a Revista Chilena de Estudios Medievales e a Temas Medievales, Argentina. Todas podem ser acessadas online e gratuitamente.

Igor Salomão Teixeira – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-6866-9654

José Manuel Cerda Costabal – Professor da Universidad Gabriela Mistral, Santiago, Chile. Doutor em História pela University of New South Wales, Sydney, Austrália. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-6175-774X

Renato Viana Boy – Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó, SC, Brasil. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


BOY, Renato Viana; COSTABAL, José Manuel Cerda; TEIXEIRA, Igor Salomão. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil / Anos 90 / 2019

Em junho de 2010, Judith Butler proferiu uma conferência em Berlim por ocasião do Christoph Street Day, sendo condecorada com o prêmio Courage, o qual recusaria. Queere Bündnisse und Antikriegspolitik, título em alemão dado à fala de Butler, traduzida e publicada em português como Alianças queer e política anti-guerra1, expressa os motivos da filósofa para tal recusa. O texto também ilumina os objetivos que orientaram a proposta do presente dossiê.

Na conferência de Berlim, Butler destacou o quão surpreendente eram as alianças na Turquia (aparentemente “atrasada”), onde feministas trabalhavam com pessoas gays, lésbicas, trans e queer contra a violência policial, “unidas na sua oposição ao militarismo, ao nacionalismo e àquelas formas de machismo que os sustentam”2. Em contraponto, lembrou seu encontro, durante uma conferência sobre gênero e educação em Lyon, na França (aparentemente “avançada”), com uma feminista que havia escrito um livro sobre a “ilusão” da transexualidade e que tinha suas palestras públicas “atacadas” por várias ativistas trans e seus / suas aliados(as) dissidentes queer.

As especificidades da homofobia, da transfobia e da misoginia precisam ser entendidas, reconhece Butler. Contudo, nenhuma delas pode ser bem compreendida sem referência uma à outra. Elas estão profundamente ligadas em um mundo no qual certas normas governam como os corpos podem e não podem se mover no mundo, como corpos devem surgir ou fracassar em surgir, como a discriminação e a violência ocorrem com base no modo como corpos e desejos são percebidos3 . A luta de uma minoria desprivilegiada está invariavelmente ligada à luta de todas as minorias desprivilegiadas.

Nesse sentido, Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também poderia ter como título “Alianças queer e política anti-guerra”. Os artigos reunidos aqui pretendem historicizar e problematizar as lutas feministas e LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer e +) no Brasil. Privilegia como marco temporal a segunda metade do século XX, momento em que emergem, internacionalmente e no Brasil, os feminismos de “segunda onda” e os movimentos homossexuais; e as primeiras décadas do século XXI, quando esses movimentos multiplicam e diversificam sujeitos, reivindicações e estratégias de mobilização. Desse modo, os textos reunidos analisam as estratégias de resistências empreendidas por mulheres e LGBTQ+ a partir do final da ditadura civil-militar, no período da redemocratização, nos últimos governos democráticos.

No artigo que abre o dossiê, Não é mole não, ser feminista, professora e sapatão: apontamentos de uma história a partir do espaço das lésbicas e da lesbianidade na produção de conhecimento sobre mídia, Cláudia Regina Lahni e Daniela Auad analisam as pesquisas apresentadas em 2015, ano em que a Suprema Corte dos Estados Unidos aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em eventos de Comunicação, como o Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania da Intercom, o Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania do Encontro Nacional da Compós e o GT de História da Mídia Alternativa, a fim de questionar se os textos selecionados tematizavam a comunicação de lésbicas — organizadas em grupos ou presentes de forma individual em mídias diversas. Conforme as autoras, nos eventos científicos mencionados, pouco ou nada se discutiu sobre a temática das lésbicas.

Jamil Cabral Sierra, em Identidade e diversidade no contexto brasileiro: uma análise da parceria entre Estado e movimentos sociais LGBT de 2002 a 2015, estuda os processos de constituição, no cenário brasileiro, da noção de diversidade sexual e de gênero, bem como de que maneira tal noção se associou às políticas identitárias das últimas décadas no Brasil. O autor problematiza a parceria entre Estado e movimentos sociais, especialmente LGBT, de modo a caracterizar como essa relação tem produzido as formas de governamento dos sujeitos LGBT nos últimos 13 anos (até o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff).

No texto “Que Possamos Ser o que Somos”: memórias sobre o Movimento Gay de Alfenas no processo de luta pelos direitos de cidadania LGBT (2000-2018), Marta Gouveia de Oliveira Rovai analisa parte da memória coletiva expressa por meio da história oral de vida de quatro membros mais antigos do Movimento Gay de Alfenas (MGA), fundado no ano de 2000 no sul de Minas Gerais. Com isso, a autora lança luz sobre a atuação da organização na defesa dos direitos humanos, em questões jurídicas e em manifestações culturais e políticas.

O que nos faz humanos? Maria Lídia Magliani e a solidão do corpo em tempos fascistas, de Gregory da Silva Balthazar, se apropria do conceito de rosto conforme discutido por Judith Butler como um operador decisivo de uma ética intersubjetiva em tempos de fascismos individualizantes. Para tanto, o autor traz a debate as pinturas de Maria Lídia Magliani, problematizando “sua potência em nos sugerir possibilidades de repensarmos, conjuntamente, o próprio sentido do que nos faz humanos.

Inaugurando as discussões no dossiê sobre o período da ditadura civil-militar no Brasil, Antonio Mauricio Freitas Brito analisa, em “Um verdadeiro bacanal, uma coisa estúpida”: anticomunismo, sexualidade e juventude no tempo da ditadura, algumas representações anticomunistas heteronormativas elaboradas por militares sobre sexualidade, moralidade e juventude durante a ditadura no Brasil. A partir da preocupação de membros da caserna com a ação comunista junto aos jovens, o autor revela a concepção de mundo que estigmatizava e temia comportamentos desviantes de gênero.

Em seguida, no artigo Sob vigilância: os movimentos feministas brasileiros na visão dos órgãos de informação durante a ditadura (1970-1980), Ana Rita Fonteles Duarte analisa as informações produzidas por diferentes órgãos de vigilância ligados ao aparato repressor durante a ditadura civil militar brasileira sobre os movimentos feministas nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, a partir de documentos encontrados nos Arquivos do Estado do Rio de Janeiro, no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional.

Por sua vez, em Feminismo vende? Apropriações de discursos democráticos pela publicidade em Claudia (1970-1989), Soraia Carolina de Mello propõe estabelecer relações entre publicidade, feminismos e democracia nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil a partir da Revista Claudia. A ideia da publicidade como espaço de informação e educação e seu potencial como divulgadora de ideias feministas ou propagadora de estereótipos de gênero também são abordados no artigo, a partir de teorias feministas, estudos culturais e as noções de subjetivação / singularização.

Por fim, no artigo “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”: Movimento de Mulheres do IAJES, Movimento Regional de Mulheres e a luta por democracia no Brasil, Cíntia Lima Crescêncio e Mariana Esteves de Oliveira apresentam a mobilização do Movimento de Mulheres do Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor (IAJES) e do Movimento Regional de Mulheres (MRM), rede formada no interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul, na construção da Carta das Mulheres aos Constituintes de 1987. A Carta foi resultado de ampla discussão a nível nacional de inúmeros movimentos de mulheres e feministas que, entre 1985 e 1987, fizeram debates e coletaram assinaturas para garantir “demandas das mulheres” na nova Constituição (1988). Como lembram as autoras, “a documentação selecionada permite uma reflexão fundamental sobre os movimentos de mulheres e feministas de ontem e de hoje, bem como as sensíveis aproximações e afastamentos desses grupos”.

Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também está assinalado, em sua gênese, pela vulnerabilidade e pela precariedade que marcam as vidas das mulheres e de LGBTQ+s no Brasil contemporâneo. Segundo os dados do Ministério da Saúde, compilados pelo Atlas da Violência, lançado em 2019, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 20174 . A maior parte das vítimas (66%) é negra! Por outro lado, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que pela primeira vez trouxe um recorte específico de casos relacionados à violência contra o público LGBTQ+, informou que 99 gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais foram assassinados(as) em 20175 . Segundo o Anuário, divulgado este ano durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de LGBTQ+s agredidos fisicamente teve alta de 1,3% entre 2017 e 2018.

Parafraseando Butler, este dossiê é sobre essa vulnerabilidade e essa precariedade que marcam as sexualidades e os gêneros dissidentes, mas é também sobre os desejos, as ocupações dos espaços públicos, as reivindicações por visibilidade e escuta ontem e hoje, sendo tudo isso absolutamente essencial para qualquer movimento político / sexual / de gênero. É absolutamente essencial para a vida em democracia com justiça de gênero, sexualidade, raça e classe.

Agradecemos aos / às autores(as) por terem enviado suas propostas. Somos gratos também ao Alessander Mario Kerber e à equipe da revista Anos 90 pelo espaço e pelo diálogo. Finalmente, agradecemos a cada leitor, leitora, leitxr, por fazer da leitura deste dossiê uma possibilidade política de lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia, de alianças queer e política anti-guerra. Boa leitura!!

Notas

1. BUTLER, J. Alianças queer e política anti-guerra. Bagoas: Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 11, n. 16, p. 29-49, 2017. Disponível em: https: / / periodicos.ufrn.br / bagoas / article / view / 12530. Acesso em: 22 dez. 2019.

2. Ibidem, p. 31-32.

3. Ibidem, p. 37.

4. CERQUEIRA et al. Atlas da Violência 2019. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.

5. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019

Joana Maria Pedro – Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorados na França, na Université d’Avignon, e nos Estados Unidos, na Brown University. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5690-4859

Elias Ferreira Veras – Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-7726-4475


PEDRO, Joana Maria; VERAS, Elias Ferreira. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Revistas culturales de Iberoamérica / Antíteses / 2019

En las últimas décadas se ha revalorizado el interés por los estudios de las publicaciones periódicas desde distintas perspectivas de análisis. No sólo porque aportan información valiosa por los datos objetivos que contienen en tanto fuente documental, sino porque son, en sí mismas, observadores e incluso protagonistas del quehacer social y político de su época, constituyendo a la vez dispositivos culturales y actores políticos.

En el universo de las publicaciones periódicas, las revistas culturales registran el pulso cotidiano de la vida social, política y cultural. Difíciles de circunscribir dentro de un campo específico de la historiografía contemporánea, son una ventana para conocer la historia de la cultura impresa, la circulación y la discusión de ideas y escritos, la vida intelectual y política y sus formas de sociabilidad y la modernidad cultural y tecnológica que, como parte de la industria editorial, acercan prácticas y pensamientos a sus lectores al ponerlos en relación con estos productos.

En la tradición publicista iberoamericana, las revistas culturales han servido como generador y vaso comunicante de las ideas políticas y las tradiciones culturales, en particular el arte, la literatura y la ciencia. En palabras de Schwartz y Patiño (2004), las revistas tienen, dentro de la dinámica del campo cultural, funciones específicas pero variables. Tampoco tienen un lugar definido a priori, pues las hay portadoras de una legitimidad cultural buscada por muchos y repudiada por otros, así como hay algunas que por su carácter coyuntural e innovador se permiten un grado de intervención más agudo y determinante sobre las problemáticas de la cultura. Asimismo, las revistas pueden describir trayectorias diferentes, en el sentido de depender de una institucionalidad académica o estatal o de haber nacido como expresión disruptiva de determinadas formaciones intelectuales y artísticas.

De éstas últimas se ocupa el Dossier que se presenta a continuación, pues pretende reflexionar sobre la cultura impresa como plataforma esencial para analizar el tránsito del siglo XIX al XX en la conformación de un ideario continental, que se ha mostrado notable en su producción literaria y artística. Esta propuesta es abarcadora del universo iberoamericano, incluyendo países de habla portuguesa, como Brasil; pero también incorpora aquellas publicaciones editadas en el viejo continente que han interpelado la América Latina (española y portuguesa) y el Caribe como horizonte de pertenencia histórica y cultural.

A través de distintos formatos –prensa periódica, magazines literarios, revistas culturales y de actualidad- las publicaciones han constituido lugares de expresión por excelencia de intelectuales y artistas que, durante la modernidad cultural del continente, conformaron infraestructuras editoriales y circuitos culturales y del pensamiento que encontraron en ellas sitios privilegiados para su manifestación. Por lo mismo han funcionado como un espacio de debate y tribuna, un campo de controversias, una red de solidaridades, un lugar propicio para homenajes, polémicas, manifiestos y declaraciones de alegato o rechazo, de continuación, independencia o renovación. En esa anticipación de escrituras y recorridos de la creación intelectual y artística, logran establecer vínculos con el público lector, compartiendo estéticas, consumos culturales, imaginarios y programas de diversa índole. Indagar en las revistas deja ver las materialidades que las hacen posible – las redes de colaboradores, sus secciones, la diagramación de la información, los tópicos predominantes, el perfil del público lector y potencial consumidor, etc.-, lo cual, en muchos casos, les permiten superar el primer impulso programático y sostenerse en el tiempo, elaborando sus propias tradiciones y genealogías.

La coyuntura socio-histórica que acompañó su recepción y circulación en América Latina correspondió a los inicios de la industrialización del continente e incluye, entre otros factores: la industria cultural; la marginalización política de las oligarquías agrarias; la emergencia de clases modernas con diferenciación de funciones entre el trabajo intelectual e industrial; el desarrollo ‘espectacular’ de las ciudades en algunos países, el impacto de la gran guerra, la revolución mexicana y la reforma universitaria.Esa coyuntura encontró su correspondencia con los puentes culturales tendidos gracias al intercambio intelectual y científico acaecido entre el reformismo liberal, el modernismo literario y las vanguardias estéticas y literarias en ambos continentes.

Si durante su surgimiento -en los comienzos del siglo XX- acompañaron esos procesos globales, en su segunda mitad las revistas fueron espacios de resonancia y amplificación de denuncias contra los totalitarismos europeos por parte de emigrados y asilados, del partido comunista estadounidense, de militantes católicos que, con posterioridad, incursionaron en los debates de la segunda posguerra y su repercusión en el continente, en particular el significado ideológico e intelectual de la revolución cubana. De esta manera las revistas americanistas dieron voz a las denuncias contra la opresión y se constituyeron en medios de resistencia y autoconciencia, de configuración de identidades, de elaboración de programas de emancipación a lo largo de todo el siglo.

Las investigaciones sobre las revistas exigen la convergencia de metodologías cuanti y cualitativas que permitan analizar desde las perspectivas de redes, la circulación de actores, discursos, valores, prácticas y conocimientos en tanto bienes culturales. Es una perspectiva inscripta en el campo de la nueva historia cultural, que ha abarcado en los últimos años perfiles etno-metodológicos e interaccionistas, al reconocer en el mundo de las publicaciones periódicas y en particular las revistas, agentes transculturales (directores, editores, promotores culturales, militantes) cuyos descubrimientos, acciones y discursos articulan sensibilidades, valores y creencias compartidos y definen estrategias y modos de accionar. Al mismo tiempo, estas indagaciones se sitúan en el campo de la historia social de las ideas, que complementa el análisis de redes e identifica la producción y circulación de saberes y programas, es decir las plataformas de difusión y discusión que parten de un corpus de lecturas compartido, prefiguran prácticas y se ponen en funcionamiento en las publicaciones periódicas.

Otro aspecto metodológico importante es el examen de la recepción de ideas, conocimientos y escritos en las publicaciones periódicas pues, por lo general, arrastran viejas controversias, cuya actualización y / o resignificación convierte esos discursos en contemporáneos. En este Dossier, en particular, los autores buscan conocer qué hay detrás de las revistas (ideas, iniciativas, invitaciones, redes intelectuales), tanto en la formación de un pensamiento intelectual americanista de autoafirmación (liberales decimonónicos, católicos militantes) y de resistencia al imperialismo norteamericano (modernistas, nacionalistas), como en el impulso de redes de denuncia exiliar y pedidos de ayuda humanitaria (los republicanos españoles en México), en la promoción de una integración territorial (fomento del ferrocarril y del turismo de mar y playa), en la configuración de ciertas identidades profesionales (arquitectos), en la proyección venturosa del orden americano ideal(izado) por misioneros y exploradores (padres franciscanos, viajeros europeos), hasta la profesionalización del editor / director como auténtico promotor cultural (José Enrique Rodó, Rubén Darío, Emir Rodríguez Monegal).

Pese a su diversidad dentro del campo de la prensa, las publicaciones también se abordan por medio del análisis de los discursos visuales y escritos, además de los enfoques critico-literarios ajustados a la escritura biográfica y la literatura de carácter memorialista. Cualquiera sea el cometido para examinarlas, los trabajos ponen en evidencia la emergencia de agentes que articularon programas de intervención político-cultural desde sus ámbitos específicos. Así el punto de vista biográfico puede indicar la convergencia ‘generacional’ de intereses y expectativas en que se encontraron los directores, editores, patrocinadores, colaboradores y referentes; y resaltar la formación de redes que aquellos integren. Pero también el análisis del contenido de los artículos, notas de opinión, comentarios menores y reseñas, entre otras secciones internas, delimita los modos de intervención que, mediante polémicas, manifiestos e interlocuciones variadas, incluyen la construcción del / de los adversario / s.

En los artículos que aquí se ofrecen, encontramos aquellos que en la circulación de conocimientos, estéticas, programas y prácticas nos permiten seguir el latir cotidiano de la vida literaria y la configuración de un público lector. En este conjunto descubrimos, en el artículo de Fernando Torres Londoño y Sharley José Cunha, las tempranas voces de los padres franciscanos viajeros que a fines del siglo XVIII exploraron la región andina de Ucayali y, desde el Mercurio Peruano, conformaron una comunidad de conocimiento que tradujo los hallazgos del mundo desconocido para los europeos. Beatriz Cecilia Valinotti recorre los caminos de la cultura impresa en la Argentina a comienzos del siglo XX, en particular los avisos publicitarios sobre enciclopedias y compendios de historia universal ofrecido por la revista Caras y Caretas, que demuestran cómo el acto propio y privado de elegir qué leer está directamente atravesado por la resonancia particular de lo público. Mientras, los escritos de José E. Rodó publicados en la Revista Nacional de Literatura y Ciencias Sociales configuran, según Elisângela da Silva Santos, un esbozo de historia de la literatura latinoamericana, la cual ocupa el mismo clivaje de formación de un pensamiento socio-cultural continental en el que se reconocen tanto fuentes europeas como autóctonas, en tensa disputa por la construcción de la autonomía americana y la diferenciación literaria.

Siguiendo esa trayectoria distintiva están también los trabajos que buscan explorar publicaciones que, durante los años 1920 y desde diversos ámbitos públicos (aulas universitarias, redacciones de periódicos), lograron reunir a jóvenes que exploran las bases legitimadoras de las vanguardias literarias y el ultraísmo en el plano nacional argentino. Karina Vázquez analiza estas intervenciones juveniles particularmente en Nosotros, Proa y Martín Fierro. Ronen Man, en clave local, hace foco en la revista El Círculo de Rosario (Argentina) e interpreta la vitalidad ideológica, estética, artística de esas mismas vanguardias a partir del cruce entre los aspectos textuales y los propios del lenguaje visual, que define la progresiva autonomización de la publicación. Aldrin Moura de Figueiredo y Heraldo Márcio Galvão Júnior examinan, hacia esa misma década, los manifiestos de dos revistas brasileñas -Belém Nova y Revista de Antropofagia- que se complementan en la reconfiguración de un modernismo nacional a partir del reconocimiento de lo local-regional y la preponderancia artística y estética que vincula a los autores y los temas de ambas publicaciones. Los trabajos antes señalados hacen hincapié en estas miradas en escala, que distinguen los enclaves territoriales como focos de la vida cultural con sus propios mecanismos internos y lógicas locales, pero que pretenden trascender también hacia horizontes más globales.

En un tercer plano ubicamos los análisis de revistas que permitieron descubrir los anclajes de la modernidad cultural y tecnológica americana y distinguir la configuración de culturas profesionales. Por un lado, aparecen las que, como analiza Andrea Pasquaré, privilegian el viaje como una práctica cultural que suscita comparaciones, búsquedas de goce y experimentación. Es el caso de Mundial Magazine, un emprendimiento editorial de origen parisino -pero ideado y dirigido por hispanoamericanos- que estuvo destinado a escritores residentes y viajeros americanos, intentando proveer, por medio de notas y publicidades, la información necesaria que orientara sus emprendimientos particulares. En tanto que Joana Carolina Schossler compara revistas uruguayas (Turismo en el Uruguay) y del sur de Brasil (A Gaivota) que promovieron el turismo de playa y la cultura de la diversión y el veraneo, en correspondencia con el desarrollo urbano e industrial en transporte y comunicaciones que, durante la primera mitad del siglo XX, ofrecía al sujeto moderno. Otra publicación que articuló en sus páginas un proyecto de modernización social y cultural fue la editada por la Administración General de los Ferrocarriles del Estado: Riel y Fomento. Pablo Javier Fasce demuestra de qué manera esta revista se hizo eco de la aparición y difusión del ferrocarril, promotor del crecimiento agrícola e industrial, y buscó desarrollar, acorde a los tiempos que se vivían, una cultura auténtica de valores americanistas. Leonardo Faggion Novo redefine la noción de circulación y red para analizar la constitución de una cartografía cultural profesional transnacional a través de la promoción de valores, prácticas, saberes, reconocimientos y prestaciones recíprocas entre las principales revistas técnicas de arquitectura y urbanismo editadas en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay durante los años 1920 a 1940; período en el cual la realización del primer congreso panamericano de arquitectos contribuye, también, a pensar el campo de las asociaciones profesionales en disputa, abierto y dinámico.

Finalmente, están las revistas culturales que fueron ámbitos de confrontación, de configuración de constelaciones político-ideológicas y de formación de redes intelectuales. Estos proyectos editoriales por los que circularon valores, epistemologías y que definieron programas políticos, permitieron una lectura específica sobre el presente y pasado de un país, elaborando memorias y genealogías particulares de sus naciones y de su integración al continente. Algunas de ellas, como la Revista del Pacífico, ubican al lector en los proyectos de formación de la nación chilena (segunda mitad del siglo XIX), la actualidad de sus debates político-ideológicos y el acompañamiento programático de una república de las letras transnacional. Nicolás Arenas Deleón anticipa la emergencia de nuevos actores en puja en el ámbito público (intelectuales programáticos, funcionarios y reformadores propios del liberalismo finisecular). Por otra parte, hay revistas que suman sus voces de resistencia a los fascismos europeos al reactualizar sus debates con la presencia de inmigrados políticos en sus países, productos de esos procesos que acabaron promoviendo políticas culturales y diplomáticas, de lucha anti fascista o fomento del panamericanismo. La revista Historia Mexicana que estudia Marcos Gonçalves permite reconstruir el entramado relacional de exiliados republicanos en ese país, sus jerarquías e intereses que lograron ser vehiculizados en la fundación del Colegio de México. De manera particular, el autor considera que la revista contribuye a profundizar la redefinición del discurso historiográfico en términos del exilio como objeto de investigación específico. Mientras que la lucha antifascista, las ideas y prácticas de la buena vecindad, el panamericanismo y el antiimperialismo se entrecruzan en los textos estudiados por Angela Meirelles de Oliveira en la revista New Masses. Aunque cercana al partido comunista norteamericano, se torna visible en ella la tensión epistemológica de sus colaboradores entre la promoción de Frentes Populares para contrarrestar el avance del fascismo en el continente y la declarada tensión antiimperialista que forma su programa.

Por su parte, las revistas Christus y Mundo Nuevo exploran debates ideológicos y nuevas estéticas propias de los años ’60, integrándose a propuestas de emancipación, indagación de nuevas identidades y postulados ideológicos de transformación de la realidad nacional y continental. Igor Luis Andreo inspecciona la resistencia de una parte de la comunidad jesuita mexicana que, próxima a la teología de la liberación de fines de la década del sesenta, le disputa significados, saberes, prácticas y valores a la oficialidad episcopal nacional y a la propia Compañía de Jesús de México. En tanto que María Marcela Aranda indaga la articulación entre arte, literatura e historia en la revista editada en París mediante la relación dialógica que textos e ilustraciones, dibujos y fotografías mantienen con su época. Durante esos años el campo cultural latinoamericano fue interpelado por las convergencias y divergencias con los hechos mundiales derivados de la segunda posguerra y, en especial de la guerra fría y la revolución cubana; y las resistencias que inspiraron, aún con antagonismos, ofrecieron lecturas performativas de la originalidad americanas. Sólo insertándolas en el escenario complejo de la segunda mitad del siglo XX es posible comprender el alcance de la discusión que suscitaron tópicos como: el catolicismo liberacionista, el movimiento contracultural estudiantil en México, la confrontación con el catolicismo integrista, la crítica cultural en clave política y social, las reflexiones en torno a la negritud, el mestizaje cultural y las complejas relaciones con el hemisferio norte.

En síntesis, el conjunto de trabajos que se ofrece en este Dossier muestra cómo las publicaciones periódicas en general y las revistas culturales en particular, han sido desde fines del siglo XIX y durante el siglo XX vehículos idóneos en el desarrollo de representaciones sociales, en la recreación de imaginarios, en la formación de la opinión pública, en la elaboración de estéticas, en la generación de prácticas lectoras y de expresiones generacionales y en la afirmación de identidades político-ideológicas, culturales y profesionales. Al ser parte de las batallas propias del campo cultural en un momento histórico determinado, esas intersecciones entre los proyectos individuales y los proyectos grupales hicieron emerger en sus páginas la preocupación por América como tema filosófico, histórico y coyuntural, su relación estrecha con la cultura letrada y la formación de nuevas subjetividades plurales.

Referências

ALTAMIRANO, Carlos y SARLO, Beatriz. Literatura / Sociedad. Buenos Aires, Hachette: 1983.

BEIGEL, Fernanda. Las revistas culturales como documentos de la historia latinoamericana. Utopía y Praxis latinoamericana, Zulia, v. VIII, n. 20, eneromarzo 2003, p. 105-115.

EHRLICHER, Hanno y RIBLER-PIPKA, Nanette (eds.). Almacenes de un tiempo en fuga. Revistas culturales en la modernidad hispánica. Berlín, Shaker Verlag: 2014.

GRANADOS, Aimer (ccord.). Las revistas en la historia intelectual de América Latina: redes, política, sociedad y cultura. México, Juan Pablos Editor / UAM / Cujimalpa: 2012.

OSSUNA, Rafael. Materia y Texto: una reflexión sobre la revista literaria. Trad. cast. Kassel, Reichenberger: 1998.

SCHWARTZ, Jorge y PATIÑO, Roxana (eds.). Revistas literarias / culturales latinoamericanas del siglo XX. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, v. LXX, n. 208- 209, julio-diciembre 2004.

SOSNOWSKI, Saúl. La cultura de un siglo. América Latina en sus revistas. Buenos Aires, Alianza: 1999.

Andrea Fabiana Pasquaré – Universidad Nacional del Sur

María Marcela Aranda – Universidad Nacional de Cuyo

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Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970) – NICODEMO et. al (A)

NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 238p. Resenha de: ALMEIDA, Letícia Leal de. História da historiografia brasileira: uma apresentação do percurso historiográfico. Antíteses, Londrina, v.12, n. 23, p. 850-857, jan-jul. 2019.

A História da Historiografia é um campo de discussão que se preocupa com a profusão dos discursos historiográficos, que visam compreender as relações que se estabelecem entre os historiadores, as instituições e a História. Buscando compreender as tensões entre o passado e as representações construídas na historiografia, os historiadores que se dedicam a essa perspectiva visam refletir sobre a emergência dos discursos, preocupações, critérios de validação e confiabilidade da historiografia.

O livro Uma introdução à história da historiografia (2018) foi construído a partir dos debates travados nos encontros do Seminário Brasileiro de História da Historiografia, bem como no Núcleo de História da Historiografia e Modernidade da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Em conjunto, Nicodemo, Santos e Pereira são historiadores que se têm dedicado à História da Historiografia, participando da organização dos encontros na UFOP, bem como na problematização da História da Historiografia enquanto campo de produção. Thiago Lima Nicodemo é professor de Teoria da História da Unicamp, com pesquisas desenvolvidas em torno da produção historiográfica de Sérgio Buarque de Holanda. Pedro Afonso Cristovão dos Santos é professor de Teoria da História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), com pesquisas sobre intelectuais do século XIX, com destaque a Capistrano de Abreu.

Mateus Henrique de Faria Pereira é professor associado de História do Brasil da Universidade Federal de Ouro Preto, com estudos em Historiografia no Tempo Presente, Intelectuais e Teoria da História.

O recorte temporal do livro visa contemplar discussões a partir da emergência da História da Historiografia no Brasil, desde o surgimento do moderno conceito de História no século XIX, além das apropriações e ressignificações das matrizes europeias no Brasil. Buscando compreender o percurso da História da Historiografia até a institucionalização da História nas Universidades e ao refletir sobre a elaboração da Cultura História brasileira e dos estudos desenvolvidos acerca desse tema, visa instaurar um lugar para as produções brasileiras na História da Historiografia. A maior parte do livro se centra no contexto após a institucionalização das Universidades.

No que se refere à História, a partir da estruturação dos cursos nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, partir de 1930 (FERREIRA, 2013). O mérito do texto está em apresentar um fio condutor na emergência do historiador de ofício: a partir da preocupação dos historiadores em situar-se em relação às produções anteriores, problematizando a organização da Historiografia brasileira a partir de suas próprias tensões e especificidades, rompem, assim, com a perspectiva da relação centro-periferia, discutindo a produção dos autores na organização de conceitos e de critérios para a Historiografia no Brasil.

No primeiro capítulo, os autores constroem o percurso da Historiografia enquanto campo, ou seja, relacionando problemas, aportes teóricosmetodológicos, nos quais diversos autores buscaram compreender o passado brasileiro. Utilizando um recurso do Google, o Ngram Viewer2, buscaram localizar a palavra Historiografia e seus correlatos em outros idiomas, com destaque para o inglês, espanhol, francês, italiano e alemão, ressaltando, assim, a ascensão no uso da palavra Historiografia a partir do século XX, enquanto fenômeno transnacional. O crescimento, segundo os autores, se deve à estruturação dos primeiros cursos de História nas Universidades, o que ampliou consideravelmente a produção em História (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23 – 25).

Nos capítulos seguintes, segundo e terceiro, destacam os primeiros esforços de se pensar a Historiografia Brasileira, como os livros de José Honório Rodrigues, desde a Teoria da História do Brasil, de 1949, até História da História do Brasil e a Historiografia colonial de 1979. José Honório Rodrigues é um dos autores basilares para se compreender o processo organização do ofício do historiador, do caráter amador-ensaísta ao historiador acadêmico (IGLÉSIAS, 1988).

Desde o gênero ensaístico, que misturava História e Política, os autores apresentam a emergência de novas formas de apreensão do tempo. A divisão da Historiografia no Brasil deveria considerar a produção desde o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 1838, até a organização das Universidades, momento em que a História iniciou o processo de organização disciplinar, definindo seus limites, enquanto uma tradição especializada.

A partir do processo de consolidação da disciplina e da emergência do historiador profissional, os autores discutem sobre a transição entre o intelectual polígrafo e o historiador acadêmico. Nesse sentido, referenciam a produção de Capistrano de Abreu, no Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, publicado em 1878.

Nesse texto, se discutiu sobre o caminho da História Nacional, apresentando um protótipo de historiador: Transparecem as qualidades que comporiam o historiador ideal: a erudição, o conhecimento em primeira mão das fontes, aliados a uma capacidade de fazer reviver, pela escrita, os eventos estudados e de ter empatia com o objeto (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23-25).

Varnhagen, aos olhos de Capistrano, ao apresentar preocupações com as fontes e metodologias, próprias do métier do historiador, foi destacado pelos autores como precursor da Historiografia, compondo um estilo e uma escrita.

Desse modo, a História foi tecendo uma legitimidade enquanto produção de conhecimento. Em vista disso, a produção do século XIX se deu através da acumulação de informação e de fontes, além da crítica documental (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 64).

Ao retratar Varnhagen, Capistrano apresenta uma visão mais refinada do processo metodológico, enviesado pela perspectiva de verdade em História. Os autores esclarecem que, devido à essa produção, a partir do acúmulo exaustivo das fontes, marcada pelo viés cronológico, possui uma natureza diferenciada que visava articular presente, passado e futuro.

Outro texto fundamental, destacado pelos autores, publicado em 1951 por Sérgio Buarque de Holanda, foi O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos. Para Holanda, Capistrano seria o ponto de partida para a Historiografia, enquanto processo de definição dos estudos históricos. A contribuição desse texto é de incidir sobre os anos 20 e 30, momento em que vigorou a produção ensaística.

Sérgio Buarque de Holanda produziu ensaios interpretativos, enquanto uma preocupação desse período, contemporâneo aos estudos de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, que analisaram as heranças coloniais, esses escritos visavam transformar a realidade brasileira. O gênero ensaísta-síntese visava articular instrumentos teóricos, influenciados por matrizes diferentes: americana, alemã e francesa, momento em que o meio de inserção dos intelectuais se dava através da crítica literária ou do serviço público. Os autores dão destaque a Sérgio Buarque de Holanda como um intelectual de transição, entre o intelectual polígrafo e o historiador universitário (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 74 – 75).

No terceiro capítulo, a organização das primeiras Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, com destaque à criação da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, criada em 1934 a partir da missão francesa, e da Faculdade Nacional de Filosofia de 1939, marca o início da organização da produção acadêmica.

Porém, a consolidação dessa produção só começaria a aparecer a partir de 1950, momento em que a pesquisa em História adquire um novo sentido orientada por problemas mais delimitados e mais aprofundados (FERREIRA, 2013).

Ainda nesse capítulo, os autores aprofundam as proximidades da produção acadêmica com a produção dos ensaístas. Nas Universidades, o processo de reflexão sobre o que fora produzido desde o século XIX apresentava rupturas e continuidades.

Holanda foi um dos intelectuais que defendeu a institucionalização universitária e a valorização do trabalho acadêmico. A partir da sua produção, de Raízes do Brasil de 1934, Monções, de 1945, até Caminhos e Fronteiras, de 1957, é possível compreender a preocupação do autor com as condições sociais da produção, bem como o refinamento de uma erudição em história. A produção de Holanda refletiu sobre a mudança na concepção de métodos e dos instrumentos teórico-metodológico, para além das generalidades, e visou afirmar uma cultura acadêmica a partir do discurso do historiador profissional, atento aos dilemas do presente.

A partir da institucionalização das Universidades, no quarto capítulo, os autores buscaram compreender a repercussão da produção acadêmica, com o aumento substancial da produção em História, tanto a partir da estruturação de instituições de fomento às pesquisas, quanto com a criação de cursos universitários e de um mercado editorial que permitiu a circulação dessas produções, como a criação de revistas acadêmicas, com destaque à Revista de História da Universidade de São Paulo. Dentro dessa dinâmica, vale ressaltar que a organização das Universidades estava alinhada à preocupação com a formação de professores e não de pesquisadores, por isso o cuidado estava centrado no ensino de História e na Didática da História.

No quinto capítulo, os autores aprofundam as discussões centrais do livro, sobre a organização da História da Historiografia como campo, no I Seminário Internacional de Estudos Brasileiros de 1971. Nesse seminário, Francisco Iglésias apresenta uma das primeiras concepções de História da Historiografia, enquanto exame exaustivo dos livros sobre História do Brasil e de um roteiro de textos importantes, reafirmando o papel de Capistrano de Abreu, como marco desse tipo de reflexão.

Segundo os autores, a História da Historiografia já havia sido mobilizada em 1961, a partir da publicação da Iniciação aos estudos históricos, de Jean Glenisson, com a colaboração de Pedro Moacyr Campos e Emília Viotti da Costa, ao referirse aos desafios da relação entre Teoria da História e História da Historiografia.

História geral da civilização brasileira, lançado em 1960, é outro livro central para História da Historiografia e foi organizado por Pedro Moacyr Campos e Sérgio Buarque de Holanda, com ênfase aos estudos sobre o Brasil imperial.

A partir da afirmação da Universidade como centro de produção em História, o quinto capítulo visou compreender o reconhecimento do trabalho do historiador, bem como as preocupações dos primeiros professores universitários. Desde a organização do primeiro simpósio da Associação Nacional de Professores Universitários, que aconteceu em Marília em 1961, bem como na produção das coletâneas de José Honório Rodrigues e das produções de José Amaral Lapa, até a inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, os autores discutem sobre as implicações políticas e teórico-metodológicas desse processo nas produções acadêmicas a partir de 1960, a partir da inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, que conciliava tanto a análise da produção dos historiadores quanto a História da História, esta como sinônimo de História da Historiografia.

Foi a partir de 1970 que se deram os embates em torno da inclusão da História da Historiografia enquanto disciplina separada da Teoria da História, presente nas produções de José Roberto do Amaral Lapa. Para este, a História da Historiografia deveria analisar criticamente a produção dos historiadores e a transformação do pensamento histórico, o que significava afirmar que a História da Historiografia possuía um objeto próprio, teorias e metodologias. A reafirmação desse campo rejeitava uma análise centro-periferia, pois buscava construir marcos a partir da própria produção historiográfica, não mais marcos políticos, como a fundação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro ou das Universidades. Além do mais, propunha uma investigação sobre métodos, pressupostos teóricos e formas de se escrever a Historiografia brasileira.

Isto posto, os autores buscaram compreender a organização do campo da História da Historiografia, embates e dilemas, expressos desde os primeiros textos reflexivos como em Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda, a organização das coletâneas como as de José Honório Rodrigues, até a institucionalização da disciplina nos currículos universitários. Enfim, o processo de composição de uma cultura histórica que aos poucos se tornou universitária, a partir do adensamento de projetos políticos, compreendendo sua dimensão prática e política. Como destacado pelos autores: Os tempos são de disputas intensas pelo passado e a dimensão ético-política da escrita da história volta a ser central. Também é hora de pensar nas práticas dos historiadores do passado, incluindo nossos mestres, como práticas arqueologicamente investigáveis. Também é hora de pensar se não é momento da história da historiografia e da teoria da história irem além (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 186).

Tal permite-nos compreender o processo de transformação da escrita em História no Brasil, bem como a organização de métodos e conceitos que consolidam a História da Historiografia.

A História da Historiografia, nesse sentido, permite compreender os balanços do fazer histórico, a partir da investigação sistemática acerca dos discursos produzidos sobre o passado, refletindo sobre as memórias construídas pelos autores em suas obras, suas posições teórico-metodológicas, tensões em torno da escrita da História, que, sob uma perspectiva presentista após os anos 70, visam compreender as novas experiências de apreensão do tempo.

O livro traz uma importante contribuição à historiografia, desde o recorte temporal realizado pelos autores, de 1870 a 1970, que permite compreender o percurso da História da Historiografia no Brasil. Por tratar-se de um balanço do tema, possibilita aos pesquisadores principiantes se inteirar dos debates, conhecer autores referenciais, enfim, compreender a especificidade da escrita da História no Brasil, além de vislumbrar um campo de pesquisa em plena expansão, como muitas fontes inéditas, novos problemas de pesquisa, à luz de novas perspectivas teórico-metodológicas.

Referências FERREIRA, Marieta de M. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 55 – 78, 1988.

NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 232 p.

Notas

2 O Google Ngram Viewer é um recurso do Google que mapeia a frequência da palavra pesquisada a partir de fontes de 1500 a 2008.

Letícia Leal de AlmeidaProfessora na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Doutoranda no Programa de Pósgraduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina. Email: leticialeal.[email protected].

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A Terceira margem do Gran Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2019

Este número da Revista Brasileira do Caribe é composto por três seções. O dossiê “A terceira margem do Gran Caribe” reúne estudos sobre as relações entre o Caribe, Sul da Europa e África. A partir de diferentes referentes disciplinares e temáticos, os textos reunidos focalizam as conexões, os trânsitos e as experiências comuns entre sujeitos e processos desses três espaços. Eles revelam que a densidade e a continuidade histórica destas relações torna possível falar de um terceiro espaço, o do movimento de ida e retorno, de compartilhamento e mútua influência, nomeado aqui de terceira margem. A segunda sessão, artigos livres, reúne artigos diversos sobre a literatura e sociedade caribenhas. Finaliza o número, a seção resenha.

Abre o dossiê “A terceira margem do Gran Caribe” o artigo Infante y Martí pensadores decoloniales de Fernando Limeres Novoa. Neste texto, tendo como ponto inicial os elos entre o Caribe a Andaluzia, são descritos e analisados as coincidências entre o pensamento de Martí e Blas Infante, pensadores revolucionários do período de transição entre o século XIX e XX. Ígor Rodríguez-Iglesias, em Procesos de la ideología lingüística del andaluz en el Caribe cubano a través de la etnografía sociolingüística crítica tece considerações sobre experiências de preconceito linguístico com o falar andaluz vivenciadas por ele durante etnografia realizada em Cuba. Esse artigos, assim, estão situados dentro das relações entre Caribe o Sul da Europa, esse espaço que Garcia de Léon ( ) chama de caribe afroandaluz.

As relações entre o Caribe a África são problematizados por Hélio Márcio Nunes Lacerda no artigo A ficção do Caribe: Tituba e a invenção do mundo colonial. O autor pergunta-se sobre o lugar das reescritas literárias de eventos e personagens históricos realizadas pela literatura caribenha contemporânea e a relação desse processo pelas disputas en torno da memória de eventos como a escravidão e a resistência.

O último artigo, Pata negra: conversaciones sobre negritud, cultura e Historia de Andalucía. Entrevista con Jesús Cosano é um diálogo entre esse autor e Javier García Fernández em que são tratados da relação entre África e Andaluzia, a partir do ativismo cultural e musical de Cosano e da presença africana no sul da Europa.

A seção artigos livres é composta, em primeiro lugar pelo artigo Periodización y praxis para el estudio de la crítica literaria en las principales publicaciones periódicas y culturales de Santiago de Cuba (1825-1895) de Ivan Gabriel Grajales Melian e Yessy Villavicencio Simón. Os autores procuram, a partir de pesquisa em publicações culturais, estabelecer as bases para a periodização e prática do estudo da crítica literária em Santiago de Cuba no século XIX. Em seguida, Luiza Helena Oliveira da Silva e José Antonio Romero Corzo em Estética do atroz, memória e acontecimento no romance Díptico da fronteira: uma caracterização semiótica do trauma dos deslocados pela violência política colombiana estudam o testemunho do trauma a partir do romance Díptico da fronteira, que narra a história de violência política que faz da fronteira colombiana-venezuelana espaço de trânsito e fuga constante. Por outro lado, Olivia Macedo Miranda de Medeiros em Roberto Fernández Retamar em cartas: (des)encantos da Revolução analisa o lugar ambíguo de Fernandez Retamar no processo de endurecimento das relações entre Estado e produtores culturais em Cuba da década de 1970. Completam a sessão, o artigo Atravessamentos de raça, gênero e nacionalidade: a diáspora estudantil de mulheres haitianas no Brasil de Camila Rodrigues Francisco. Neste artigo, são problematizados as dinâmicas de gênero, raça e nacionalidade como contexto importantes para a compreensão da trajetória da diáspora de estudantes haitianas no Brasil.

Por fim, a seção Resenha publica O que Tata escreveu: resenha do livro Conversas que tive comigo de Nelson Mandela de Josiel Santos. O autor descreve as cartas e trechos de diários de Mandela, indicando articulações entre seus pensamentos e o que chamamos de decolonialidade.

Boa leitura.

Os organizadores

Os organizadores. Editorial. Revista Brasileira do Caribe. São Luís, v. 20, n. 38, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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A aclamação de D. João VI – o rei e o reino / Revista do IHGB / 2008

Em 2018, comemoraram-se os 200 anos da Aclamação de D. João VI ao trono do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Constituiu-se um fato inédito no processo histórico do Brasil, que, para além de seu caráter simbólico, demonstrou a diferença entre o mundo colonial que começava a ruir e uma nova feição política e econômica que o Reino tomava. Serviu ainda para reforçar a ascendência do Rio de Janeiro sobre o restante do país, assim como o peso político da parte brasileira no interior do império português. Tais questões orientaram as discussões que repensaram tal evento, por meio de um Seminário, realizado pelo IHGB e intitulado A Aclamação de D. João VI no Rio de Janeiro: o Rei e o Reino. Não só se buscou celebrar a data, por meio da discussão proposta por especialistas e por estudiosos do Brasil e de Portugal, mas se pretendeu construir uma memória do acontecimento que trouxesse novas contribuições à historiografia do processo. Investigar práticas políticas e rituais cívicos significa abrir um leque de possibilidades para se debater as relações da História com seu passado, além de vislumbrar as articulações simbólicas do poder, da sociedade e da cultura na formação do Estado Brasileiro e de suas repercussões até os dias atuais.

Por conseguinte, os artigos aqui apresentados compõem um dossiê das reflexões aprofundadas e ampliadas do Seminário. Não se constituem como uma simples comemoração, sem significado para a memória do acontecimento histórico, mas como um balanço dessa memória histórica.

O dossiê é iniciado por texto original de Arno Wehling, que propõe uma análise do horizonte de expectativas no Brasil, entre sua elevação a Reino Unido em 1815 e os acontecimentos que levaram à sua ruptura com Portugal, em 1822, demonstrando ainda o papel da Aclamação de D. João ao longo desse processo. Em seguida, Lucia Guimarães elabora um balanço crítico sobre o reinado americano de D. João VI, procurando identificar suas principais vertentes interpretativas, apontando confrontos e convergências.

Na abordagem da história renovada do político, seguem as contribuições de Lucia Bastos Pereira das Neves e de Maria de Lourdes Viana Lyra. No primeiro trabalho, política e cultura se entrelaçam para se apreender as tensões que se estabeleceram entre as duas partes do Império, desdobramentos da aclamação realizada nas terras do Reino americano. No segundo texto, a autora volta sua atenção para demonstrar o Rei, como defensor do Reino luso, e, depois, como mentor do Reino Unido luso-brasileiro por ele criado. Realça, assim, o alcance da proposta da aclamação do soberano na parte americana do Império como estratégia em defesa da própria unidade da Coroa.

Sem abandonar o viés político, mas acrescido de uma perspectiva da história cultural, cujo principal objetivo é identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é constituída, pensada, dada a ler, nas palavras de Roger Chartier, encontramos os trabalhos de Ana Carolina Galante Delmas e de Maria Pace Chiavari. No primeiro texto, Ana Carolina volta-se para a prática do oferecimento de dedicatórias impressas em um Brasil do início dos oitocentos. Naquele momento, as dedicatórias representavam práticas de homenagem, tornando-se símbolo das relações políticas, apoiadas na hierarquia social vigente, e das trocas efetuadas em busca por poder e por influência. Demonstra ainda que a época da aclamação de um soberano, algo inédito nas Américas, foi espaço de consagração para tais homenagens. Maria Pace Chiavari propõe uma análise do papel das arquiteturas efêmeras, especialmente, aquelas projetadas pelos franceses, segundo cânones neoclássicos, como um cenário alegórico que contribuiu para colocar em evidência a cidade do Rio de Janeiro, transformada em capital do Reino. A aclamação de D. João VI foi ainda momento fundamental para essa perspectiva, quando o poder soberano soube explorar o festejo real como forma de reforçar o poder da Coroa.

As hierarquias sociais e práticas de condecorações e de mercês também se fizeram presentes por meio de dois artigos: um, de Camila Borges da Silva, sobre as ordens honoríficas e a sociedade, analisando a nobilitação de negociantes na Corte joanina que direcionavam parte de seu capital econômico com o objetivo de galgar um lugar social e de prestígio naquela sociedade de feição do Antigo Regime; o outro, de António Miguel Trigueiros, examina a criação da Real Ordem da Torre e Espada (1808-1834), que foi criada com o objetivo de ser uma Ordem Honorífica e Militar luso-Brasileira, que perdurou mesmo após o processo de independência do Brasil.

Na parte destinada às Comunicações, em que se divulgam trabalhos expostos nas sessões da CEPHAS / IHGB, a sócia emérita Cybelle de Ipanema traz uma curiosa informação sobre João Manso Pereira, personagem que viveu entre o século XVIII e XIX e que fabricou louça afamada com material da Ilha do Governador, pequeno território do município do Rio de Janeiro.

A seção Documentos apresenta a transcrição de um texto manuscrito com a biografia do médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá. Tal estudo foi localizado na Coleção Claudio Ganns, guardada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sem indicação de autoria. Nesse documento, encontra-se uma análise sobre a trajetória do cientista que atuou no Império do Brasil. Ele ainda participou ativamente de diversas instituições e sociedades científicas oitocentistas, bem como publicou inúmeros artigos e livros no campo da medicina e da botânica.

Finalizando esse número, há a resenha de Marize Malta – De volta para o futuro… Outras notícias e outros modos de atualizar a Missão Artística Francesa – sobre o livro de Patricia D. Telles, O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca: dois diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816, publicado em Portugal em 2017. Fugindo de uma história oficial, segundo a resenhista, a autora busca personagens, entendendo-os como peças de um mosaico de relações, e documentos inéditos que trazem novo olhar não só sobre os conhecimentos de intelectuais e de cientistas europeus, mas também sobre os elementos que propiciaram a negociação para a remessa de artistas e de artífices franceses para o Rio de Janeiro.

Aproveitem!

Lucia Maria Bastos P. Neves – Diretora da Revista.


NEVES, Lucia Maria Bastos P. Carta ao leitor. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.180, n.479, p.9-11, jan./abr., 2019. Acesso apenas pelo link original [DR].

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Etnicidade e formação de identidades no mundo de Homero / Hélade / 2019

Há uma identidade étnica em Homero?

“Quem foram os gregos?” é uma pergunta irrespondível. Ainda na Antiguidade não foram poucos os que tentaram respondê-la, e a indagação continuou sendo feita nos séculos seguintes sem que uma conclusão pudesse dar fim a um tema tão longamente examinado. Entre mudanças e permanências, os séculos de história interditam qualquer traço unitário capaz de caracterizar o “ser grego”. Mais do que isso, se considerarmos apenas o mundo das póleis e se confiarmos nos cálculos apresentados por Mogens Herman Hansen [2], existiram pelo menos 1.500 cidades-Estado. De norte a sul, no continente e nas dezenas de ilhas, da Ásia Menor à Península Itálica, a variedade de contatos e particularidades regionais é outro elemento complicador para dar ao problema uma solução que não abra espaço para diversos questionamentos.

A partir do século V a.C., os gregos poderiam persistir com dificuldades para responder quem eram, mas a certeza de quem não eram parecia bem mais clara. A imagem do bárbaro se consolida com o advento da resistência aos persas e é especialmente difundida a partir da pena dos atenienses. Não se trata, certamente, de uma simples percepção das diferenças culturais, mesmo porque a cultura, abordada para além da superfície, desvela não apenas a assunção de que não somos iguais a outras pessoas e grupos, mas que essa diferença produz, é produzida e reproduzida por uma série de implicações que vão muito além da percepção de quem não somos.

A emergência das representações sociais dos bárbaros é francamente tomada como paradigma para pensar as noções de eu e outro a partir do ponto de vista dos gregos. Não sem razão, a consolidação da barbárie se dá no momento em que Atenas não apenas goza de influência política e econômica sem precedentes, abalada apenas com o início da Guerra do Peloponeso (431 a.C.). Entretanto, ainda que o século V a.C. tenha se tornado referencial para os estudos sobre a etnicidade, ele não representa o único momento em que o outro se tornou objeto de reflexão para a definição do ser grego. A documentação anterior ao Período Clássico é absolutamente rica em referências que ajudam a pensar esse problema, e a Ilíada e a Odisseia representam certamente um dos maiores (ou o maior, arrisco dizer) acervo de questões que podem ser exploradas para refletir sobre a história das alteridades nesse “mundo grego”.

Os artigos que compõem esse dossiê exploram o tema da etnicidade e / ou da formação das identidades a partir da Ilíada e da Odisseia. As escolhas particulares dão ao leitor um indicativo da amplitude do problema e da riqueza de um debate pautado por várias convergências e outras tantas divergências. Portanto, os trabalhos que compõem esse número da Hélade são marcados pela interdisciplinaridade, pela pluralidade de ideias, pela variedade de abordagens e pela diversidade teórico-metodológica. No entanto, nada disso interditou a incrível coesão construída em torno do objetivo geral que motivou a organização do volume.

Na abertura do dossiê, busco analisar os intensos debates que opõem estudiosos em torno da relação entre Homero e o ideário Pan-helênico. O artigo intitulado História e Etnicidade: Homero à vizinhança do Pan-helenismo, após uma breve exposição do conceito de etnicidade e sua particular utilização no âmbito da História da Grécia Antiga, discute algumas divergências bastante frequentes quando se busca refletir sobre o lugar que a Ilíada e a Odisseia ocuparam no marco da formação das identidades helênicas. Observo que, por um lado, os épicos podem ser entendidos como uma narrativa capaz de expressar uma noção de helenicidade, dialogando com as transformações que caracterizaram a formação do mundo Pan-helênico; por outro lado, diversos analistas, muitas vezes em evidente discordância, tendem a situá-los no limite que distingue as sociedades pré-helênicas daquelas que vieram a se formar no decurso do Período Arcaico.

No segundo artigo, intitulado Los comienzos de la identidad colectiva helênica, Emílio Crespo dedica sua atenção à Ilíada com vistas a reconhecer em seus versos, particularmente na célebre oposição entre aqueus e troianos, os primeiros indícios de uma identidade coletiva helênica. O autor parte do pressuposto de que as identidades coletivas exigem longo período de construção, e que a experiência do Período Clássico pode ser investigada como um processo de criação que remonta aos poemas homéricos. Assim, através da análise dos nomes coletivos, antropônimos, epítetos, topônimos e outros indicativos, Crespo defende que o início da construção identitária helênica é perceptível na segunda metade do século VIII a.C., época provável da composição da Ilíada, ainda que em bases culturais diferentes daquelas em que repousou o helenismo do século IV a.C..

O terceiro artigo, Em tempo de guerra e de confronto a noção do ‘outro’ na Ilíada, também se dedica a essa temática. Maria de Fátima Silva reconhece na Ilíada a referência mais antiga da oposição entre europeus e asiáticos que perdurou no Período Clássico. Para a autora, a noção de ‘outro’ na Ilíada já está assente em um conjunto de critérios que viriam a ser retomados com outro fôlego, na época clássica, para a definição de quadro equivalente. A análise das características dessas alteridades é feita através das representações da cidade de Príamo, seu povo e seus aliados. A autora demonstra que Ílion não apenas possui características geográficas, topográficas e urbanísticas peculiares, mas que estas peculiaridades são decisivas para a compreensão do comportamento dos troianos. Desta forma, os requintes orientais, as joias do palácio e o luxo da vida cotidiana são características marcadamente presentes no mundo asiático e associadas aos troianos, ainda que seja necessário analisá-las cautelosamente porque muitas delas também se fazem presente na vida dos gregos.

Obviamente, e ainda com base na Ilíada, é preciso reconhecer que o universo de referências de que Homero se utiliza para a construção de seus personagens é bastante amplo. Ainda que a maioria deles – talvez todos – faça parte de um menos grupo social, é certo que as particularidades das caracterizações permitem aprofundar as análises e reconhecer formas bastante peculiares de tratamento das diferenças étnicas. No quarto capítulo, O discurso étnico acerca dos troianos na Ilíada: um estudo de caso de Páris-Alexandre, Renata Cardoso de Sousa explora precisamente as representações do príncipe troiano que desencadeou o conflito em Tróia após raptar Helena. Através de epítetos, qualificativos a ele atribuídos, discursos enunciados, comportamento em batalha e demais símbolos diacríticos utilizados na formulação narrativa de seu ethos heroico, a autora procura identificá-lo como uma das sínteses que distinguem aqueus e troianos.

O tema do discurso etnográfico é abordado no quinto artigo, assinado por Graciela C. Zecchin de Fasano. Em Egipto, Fenicia, Creta: tres espacios-clave para el discurso etnográfico en Odisea, a autora entende que o vocábulo ethnos, a despeito da amplitude de grupos que tendia a abarcar, estabelece a necessidade de se compreender certa similaridade e convivência temporais. Partido desse pressuposto, observa-se que a Odisseia oferece uma representação particular dos territórios pelos quais seu protagonista transita, convertendo-os em um excelente instrumento de estudo e interpretação como espaços de um relato etnográfico, cuja tipologia discursiva sugere problemáticas ficcionais absolutamente originais. Nesse sentido, o tema dos olhares sobre o estrangeiro é pensado a partir de três espaços-chave, quais sejam, Egito, Fenícia e Creta. A variação das caracterizações sugere uma diversidade ímpar de olhares, envoltos pela atmosfera do exotismo, dos perigos, dos maus hábitos e mesmo de juízos de valor absolutamente estratégicos para pensar a dinâmica das alteridades e da formação das identidades.

Em seguida, Christian Werner igualmente se aproxima da questão das etnografias a partir do exame dos discursos de Menelau e de Homero no canto IV da Odisseia, que mencionam a viagem do herói ao norte da África, e da forma como Homero, de um lado, introduz a narrativa dos feácios (VI) e, de outro, Odisseu, o episódio dos lotófagos e o dos ciclopes (IX). Em Discurso etnográfico e as vozes narrativas na Odisseia, o autor explora nesse poema épico a tradição dos nostoi (“mitos de retorno”) e analisa alguns elementos e funções possíveis do discurso etnográfico, que, colocado de lado na Ilíada, embora não componha a matéria central da Odisseia, tornou-se uma de suas marcas distintivas no processo histórico da recepção do poema.

O sétimo trabalho, intitulado Os Residentes da Via Negativa: os cíclopes de Homero e os Tupinambás, se dedica a um exercício comparativo que relaciona as etnografias antigas e modernas a partir de um traço de semelhança que Ioannis Petropoulos reconhece como marca distintiva de tais discursos: o fato de se desenvolverem a partir da negação e da antítese. Nesse sentido, a monstruosidade dos Cíclopes é entendida como o símbolo de um mundo pré- -civilizado que se mostra reticente em relação aos pressupostos básicos da vida em sociedade, como o comércio, a agricultura, as instituições cívicas e práticas religiosas compartilhadas. Essas formações discursivas a respeito do “outro” pré-civilizado também são discerníveis nas etnografias do século XVI acerca dos nativos do “Novo Mundo”, particularmente os indígenas considerados “canibais” que ocupavam as regiões costeiras do Brasil da época. Petropoulos não apenas reconhece características comuns em discursos distintos, mas busca estabelecer relações e contrastes entre eles.

O episódio de Polifemo representa, no âmbito das epopeias homéricas, o epítome do estranhamento em relação aos costumes cultivados pelas aristocracias que os poetas cantavam. No artigo Viagens e etnicidade em Homero: Odisseu e o Cíclope, de Fábio de Souza Lessa, analisa esse discurso que irrompeu os limites do recitato aédico e foi inúmeras vezes recuperado ao longo da História para discorrer sobre os costumes insólitos dos estrangeiros. O estudo do relato de Odisseu no Canto IX da Odisseia, isto é, da descrição de seu contato com o Cíclope Polifemo, converte-se no fio condutor para a reflexão acerca das construções gregas sobre os nós e os outros. O autor observa que o Ciclope se constituirá em alteridade máxima frente aos helenos. Através do gigante de um único olho na fronte, os helenos revelavam, por oposição, os traços fundamentais de sua cultura.

Decerto que a distinção entre o eu e o outro é um dos fundamentos para a construção das identidades e para a consolidação das fronteiras étnicas, mas ainda que a alteridade represente, tanto por analogia quanto por contraste, um topos privilegiado de observação, é inegável que os poemas homéricos desvelam para os pesquisadores um incrível esforço de reflexão sobre o si mesmo, quiçá apresentando uma profunda dimensão instrutiva, pedagógica, assente na vigilância atenta das condutas esperadas dos membros do grupo. É precisamente essa preocupação que orienta as reflexões que María Cecilia Colombani nos apresenta no artigo Telémaco y la experiencia humana: tomar la palabra en el nombre del padre. Una lectura política del inicio de Odisea. De um ponto de vista antropológico, a autora analisa as transformações subjetivas por que passa o jovem filho de Odisseu e o processo de amadurecimento que experimenta ao longo do épico, em particular em função da ação pedagógica e orientadora de Atena. Desta forma, a formação da identidade de Telêmaco é duplamente assinalada no transcurso de suas relações com os homens e na fronteira que distingue os mortais dos deuses imortais.

O décimo artigo, intitulado O contexto funerário homérico: Aquiles e suas ações más (Kakà Érga), de Bruna Moraes da Silva, também se dedica ao problema da vigilância acerca dos próprios atos e sua relação com a formação das identidades. Nesse caso, porém, o valor paidêutico é pensado a partir dos códigos de conduta de Aquiles, partindo do pressuposto de que Homero não punha em evidência apenas as ações consideradas dignas de um aristoí, mas também exemplos a não serem seguidos, isto é, as transgressões realizadas até mesmo por personagens tidos como grandes heróis. À vista disso, a autora propõe analisar a maneira pela qual os aedos expuseram em suas obras, especialmente na Ilíada, as normas a serem seguidas pelos vivos diante dos mortos, dando destaque à análise das transgressões notáveis a partir da ruptura com as regras estabelecidas em um mesmo meio social.

É preciso agradecer os autores que puderam participar desse projeto e investiram os resultados de sua pesquisa para compor este volume. Acredito que a qualidade inequívoca dos trabalhos fará com que o dossiê seja recebido com entusiasmo por todos aqueles que estudam as controvérsias inúmeras legadas pelo aedo cego de Quios, por quem se interessa pelo tema da etnicidade e da formação das identidades e, num sentido mais amplo, por todos que reconhecem nos gregos antigos um espaço privilegiado para a reflexão de nossa história e vida em sociedade.

Notas

2. HANSEN, M. Polis – an introduction to the ancient greek city-state. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 1.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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A monarquia no cinema brasileiro: Metodologia e análise de filmes históricos | Vitória Azevedo da Fonseca

A monarquia no cinema brasileiro: Metodologia e análise de filmes históricos. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. A monarquia no cinema brasileiro: metodologia e análise de filmes históricos é um livro de autoria da historiadora brasileira Vitória Azevedo da Fonseca. Proveniente de sua dissertação de mestrado desenvolvida pela Universidade de Campinas, se propõe analisar dois filmes que tratam, sob diferentes perspectivas, o período monárquico brasileiro e o processo de independência do país. São eles: Independência ou Morte, de 1972, dirigido por Carlos Coimbra, e Carlota Joaquina, a princesa do Brasil, lançado em 1995, sob a direção de Carla Camurati.

A obra é dividida em quatro capítulos precedidos por uma apresentação assinada por Leandro Karnal, e encerrado com as considerações finais da autora e as referências. Inicialmente, Fonseca apresenta alguns métodos que devem ser levados em consideração ao propor uma análise de filmes históricos, destacando autores como Ismail Xavier, Jacques Aumont, Jean-Claude Bernadet, Marcel Martin, Marc Ferro e Marc Vernet, sem estabelecer um específico para seguir e optando pela mescla de metodologias. Seguindo a ideia proposta por Vanoye, a autora argumenta que a primeira medida a se fazer ao analisar uma película é descompô-la em partes, estabelecendo relações em seguida, para, dessa forma, compreender a estrutura narrativa construída (p. 10). Leia Mais

Nas fronteiras da História: diálogos e alianças interdisciplinares na pesquisa histórica / Aedos / 2009

Em sua quinta edição, a Revista Aedos tem o orgulho de apresentar o dossiê “Nas fronteiras da História: diálogos e alianças interdisciplinares na pesquisa histórica”. Trata-se de três artigos, que abordam as possibilidades oferecidas ao conhecimento histórico pelos contatos com diferentes áreas, em especial, da Literatura, Antropologia e Arqueologia. Renata Dal Sasso Freitas, em seu artigo “José de Alencar e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: apontamentos sobre a concepção do romance As minas de Prata (1862-1865) e a cultura histórica brasileira nos oitocentos”, apresenta uma abordagem que analisa a relação interdisciplinar entre a História e a Literatura, na segunda metade do século XIX. Com uma proposta no mesmo sentido, o artigo “História e Antropologia: possíveis diálogos”, de Marcos Felipe Vicente, aborda as aproximações da História com as Ciências Sociais, em especial com a Antropologia, através das considerações de alguns intelectuais destes dois campos, focando a análise em suas propostas para a aproximação entre as duas disciplinas. O terceiro artigo, de Carolina Kesser Barcellos Dias, intitulado “Colonização grega e contato cultural na Magna Grécia: o testemunho dos vasos lucânicos”, aborda os registros materiais cerâmicos de uma região colonizada pelos gregos, a Lucânia. Através deste estudo apresenta traços dos movimentos de resistência da população local aos padrões helênicos que estavam sendo introduzidos. Um interessante artigo sobre as formas de re-elaboração e interpretação dos padrões culturais na produção artística, marcando também as permanências da cultura dos artistas nativos.

A seção artigos diversos conta com três colaborações. O artigo “Bizâncio, Pérsia e Ásia Central, pólos de difusão do nestorianismo” analisa o surgimento e expansão da corrente nestoriana, além da sua recepção entre diversos povos do Oriente. É destacada também a importância das trocas comerciais como meio dessa difusão. Fabrício Gomes Alves, em seu artigo “Entre a Cultura Histórica e a Cultura Historiográfica: implicações, problemas e desafios para a historiografia”, tem como foco a noção de cultura histórica, analisando a emergência da categoria, suas características e sua aplicabilidade. Por fim, o artigo de Vicente Neves da Silva Ribeiro, “Populismo radical e processo bolivariano: o conceito de populismo de Ernesto Laclau e as análises da Venezuela contemporânea” retoma a discussão acerca do conceito de populismo, pensando a sua aplicação no caso da Venezuela contemporânea. Para a próxima edição são aguardados comentários críticos sobre o artigo de Vicente Ribeiro, com o objetivo de estimular o debate acadêmico, visando uma discussão franca sobre as contribuições trazidas por este artigo.

Na seção Mesa Redonda desta edição, apresentamos o debate travado em torno do texto de Keila Auxiliadora Carvalho, doutoranda da Universidade Federal Fluminense, “Tempo de Lembrar: as memórias dos portadores de lepra sobre o isolamento compulsório”. O artigo toma como objeto a construção da memória e identidade de ex-internos do leprosário “Colônia Santa Isabel”, localizado em Minas Gerais, sendo que sua metodologia insere-se no campo de estudos da História Oral. Participaram como comentadores a Prof. Dra. Beatriz Teixeira Weber, do Departamento de História da UFSM, a Prof. Dra. Nikelen Acosta Witter, do Departamento de História da UNIFRA, e Juliane Conceição Primon Serres, doutora em História pela Unisinos. Por fim, Keila apresenta sua resposta aos apontamentos produzidos pelos especialistas convidados.

Na seção resenhas, apresentamos as sínteses construídas por Rodrigo Bragio Bonaldo, Gabriel Requia Gabbardo e Fábio Bastos Rufino. Bonaldo apresenta um trabalho inédito em português de Hans Ulrich Gumbrecht, “Production of Presence: what meaning cannot convey”, no qual o pesquisador alemão explora a historicidade das formas de produção de sentido. Gabbardo apresenta a obra “The Fall of Rome and the end of civilization”, na qual Bryan Ward-Perkins traz novas contribuições para a discussão sobre a Antiguidade Tardia e o fim do Império Romano através de suas pesquisas arqueológicas. Rufino, resenhando o livro organizado por Maria Teresa Toríbio Lemos, “América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização”, justifica a pertinência da obra, na medida em que excursa sobre os seus principais temas e ressalta a conjunção de seu carácter controvertido com um tratamento heterodoxo, aberto a novas contribuições.

Finalizando nossa edição, apresentamos a entrevista com o historiador alemão radicado nos EUA, professor da Stanford Universit, Hans Ulrich Gumbrecht. Em uma conversa agradável, iniciada com temas esportivos, Juliano Antoniolli e Vitor Batalhone conversaram com Gumbrecht sobre questões acerca das ideias de verdade e de referência, e sobre as possibilidades de se aprender com a história.

Por fim, nos alegra sobremaneira continuar o excelente trabalho iniciado pelos colegas da gestão anterior, que souberam, através de muito trabalho, comprometimento e diálogo, construir uma revista séria e comprometida. Através desta edição, damos continuidade ao trabalho iniciado, consolidando esta revista como um espaço de diálogo e de divulgação do conhecimento histórico.

Boa Leitura a todos!

Conselho Editorial

Gestão 2009-2010


Conselho Editorial. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v.2, n.5, julho-dezembro, 2009. Acessar publicação original [DR]

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Temporalidades dissidentes: sujeitos LGBT+ e a escrita da história / Aedos / 2019

Quando propomos, no ano de 2018, a organização do presente dossiê temático à revista Aedos, pensávamos nos 40 anos recém completos do movimento homossexual no Brasil – hoje multiplicados seus atores políticos, conhecido como movimento LGBT+ – como potência para refletirmos sobre as experiências históricas dos sujeitos dissidentes da heteronormatividade, bem como o modo como a historiografia brasileira vem tratando destas. Porém, quanto tempo foi percorrido até que a historiografia, ainda tão afeita às “datas redondas”, reconhecesse as pessoas LGBTs+ como objetos possíveis de estudo, como atores sociais no passado e no presente? E mais, enquanto pesquisadores, em suas subjetividades investigando outras experiências.

Também no ano passado completava sua “maioridade” um dos estudos mais importantes sobre a história dos dissidentes sexuais no Brasil, o livro Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, do brasilianista James Green, publicado por aqui pela primeira vez no ano 2000. O livro é um extenso estudo que aborda as relações mantidas entre homens gays e travestis e o Estado brasileiro ao longo do século XX, entre as quais as classificações e intervenções médico-legais nesses sujeitos, a criação de espaços de sociabilidades nas cidades, como praças, praias, cafés, cinemas e saunas a partir de uma apropriação estratégica do espaço público, a visibilidade deles na imprensa no período do carnaval, a emergência de formas de organização de homossexuais desde os anos 1960, e a repressão da ditadura civil-militar brasileira às sociabilidades e movimentos de homossexuais e travestis.

Como já ressaltaram outros estudiosos da temática LGBT+, Além do Carnaval foi um ponto de ruptura no estrondoso silêncio da historiografia brasileira sobre essas experiências (VERAS; PEDRO, 2014), tornando-se até hoje referência necessária nos estudos sobre dissidência sexual no Brasil. Por mais que o livro de Green delimitasse sua análise às cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, ele tornou-se uma referência necessária nos estudos sobre dissidência sexual no Brasil, sobretudo de pesquisas que se dedicam a estudar a construção de sociabilidades homoeróticas no espaço público. Os artigos publicados neste dossiê mostram como ainda é necessário estudar os territórios e formas de sociabilidades criadas por dissidentes sexuais, especialmente aqueles localizados fora do eixo Rio-São Paulo. É o caso, como o leitor poderá ver, no artigo de Luiz Morando ao investigar em jornais e autos judiciais o “Crime do Parque”, ocorrido no Parque Municipal, espaço de homossociabilidade na Belo Horizonte de 1946. Nesse sentido, abordando a homossexualidade masculina nas “vilas de malocas” de Porto Alegre, o estudo de Rodrigo Weimer investiga o viés moralista que existia sobre sexualidade desviante na prefeitura da capital gaúcha nos anos 1950, lhe utilizando como pretexto para expulsões da localidade.

Da mesma forma, as relações que sujeitos LGBTs+ mantém com o Estado e a sociedade civil em tempos de autoritarismo tem sido recorrentemente objeto de análise de historiadorxs. Como vivem esses indivíduos em regimes ditatoriais que buscam eliminá-los? Como resistem cotidianamente e como lidam com suas memórias traumáticas? Como o discursos e as práticas governamentais tentam conformar subjetividades LGBTs+? Essas são algumas perguntas que os textos de Janaína Langaro e Eduardo de Almeida visam explorar em suas pesquisas. Em Langaro, vemos um estudo sobre a perseguição e as demissões sob acusação de “homossexualismo” no Ministério das Relações Exteriores, presentes nas atas da Comissão de Anistia. Também pesquisando o contexto da Ditadura Civil-Militar, está a pesquisa de Almeida, ao discutir a importância do jornal Lampião da Esquina, bem como sua atuação para um nascente Movimento Guei. Pensando as experiências de três homens homossexuais deportados para campos de concentração, bem como o exercício da sexualidade nesse local, vemos o artigo de Karen Pereira, que a partir de conceitos de Michael Pollak investiga essas memórias demonstrando suas diferentes experiências e percepções.

Se hoje, como apontaram Veras e Pedro (2014), já não é mais possível duvidar de uma historiografia LGBT+ no Brasil – ainda que lhe possa resistir – este dossiê contribui também para pensarmos sobre a forma como essas histórias transviadas têm sido escritas. Não seria esta historiografia ainda muito branca e masculina? De que corpos falamos quando nos propomos a escrever uma história dissidência sexual? É possível uma historiografia queer? Os artigos nesse sentido nos convidam a pensar sobre essas questões e a construirmos uma outra história, em diálogo com outros campos e sujeitos. Na pesquisa de Hariagi Nunes, vemos uma reflexão sobre o corpo pós-pornográfico e pornoterrorista, chamando a escrita da História a repensar suas naturalizações e discursos. Analisando essa escrita que concebe uma invenção do passado, está o trabalho de Cassiano Celestino de Jesus, buscando um diálogo entre o discurso historiográfico com as possibilidades das teorias queer.

Refletindo sobre o papel da imprensa na história dessas experiências, temos a pesquisa de Paula Silveira Barbosa, trazendo uma narrativa sobre o conjunto da Imprensa Lésbica brasileira, nos vestígios de sua trajetória entre o período de 1981 e 1995. Leonardo Martinelli, por sua vez, busca uma análise da representação das homossexualidades na revista Veja em 1977, em diálogos com os estudos queer.

Convidamos o / a leitor / a a embarcar por essas narrativas, que comunicam experiências múltiplas, em sujeitos que se apresentam tal as temporalidades que lhe regem – dissidentes – trazendo nesses (des)caminhos de Clio e Eros, incentivos e mesmo provocações para o permanente repensar da disciplina. Na subversão que se torna o ato de diferir da heteronormatividade, podemos assim, conhecer melhor as experiências que compõe esse presente tão urgente que habitamos.

Referências

GREEN, James. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, set. / dez. 2014, p. 90-109.

Guilherme da Silva Cardoso – Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Tiago Vidal Medeiros – Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


CARDOSO, Guilherme da Silva; MEDEIROS, Tiago Vidal. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 24, Ago, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Mulheres: biografias e trajetórias / Aedos / 2019

A história das mulheres surge como campo historiográfico nos anos 1960 na França, denunciando a ausência tanto de personagens e temas femininos na história, bem como na sua escrita. Esse surgimento está diretamente relacionado com os movimentos feministas das décadas de 1960-70 (GONÇALVES, 2006), a chamada “segunda onda do feminismo”, e também com a “história vista de baixo”, em que personagens considerados subalternos e invisíveis passaram a ser objeto de estudos das pesquisas historiográficas. Para Margareth Rago, a valorização da presença da mulher na história também pode ser creditada ao ingresso feminino nas universidades, a partir dos anos 1970, levando com elas um conjunto de temas e problematizações próprios do universo feminino (RAGO, 1998, p. 90).

No entanto, como nos mostra Bonnie Smith (2006), mulheres já escreviam história bem antes, ainda nos séculos XVIII e XIX. Devido ao sexismo reinante, eram consideradas amadoras e suas obras não recebiam a mesma valorização e repercussão dos historiadores homens.

Não só a escrita da história, mas também a das biografias incorreu no mesmo apagamento das mulheres, durante muito tempo. Os autores canônicos da historiografia e da biografia são todos homens, dedicados a pesquisar sobre homens ilustres, aqueles considerados, por muito tempo, como os verdadeiros agentes da história.

A retomada da biografia, nos anos 1980, trouxe uma série de renovações importantes, entre elas a expansão dos sujeitos e sujeitas dignos de terem sua vida registrada (LEVILLAN, 2003; SCHMIDT, 2012). Houve também a expansão dos métodos e fontes, como a história oral, especialmente importante para os estudos biográficos. Além disso, temos que levar em conta os mais recentes desenvolvimentos na história das questões étnicas (história dos negros e negras, história da herança africana, história indígena, migrações, etc.) e das questões de gênero.

Todas essas tendências historiográficas contemporâneas trouxeram importante alargamento de fronteiras para a disciplina, e de alguma forma, os artigos que compõem esta edição transitam por essas perspectivas renovadas. Quando propusemos este dossiê, pensamos em trazer à tona pesquisas que tivessem como foco trajetórias de mulheres, e é muito gratificante perceber que nossa intenção foi transformada em realidade, por meio dos artigos que o compõem. São quinze textos, o que mostra a pujança de trabalhos que vêm sendo empreendidos sobre a temática. Maior ainda é nossa satisfação ao constatar a diversidade temática e a qualidade dessas pesquisas.

Os artigos trazem um amplo conjunto de temas e questões teóricas. Trabalham com história oral, história intelectual, história de diferentes períodos, desde idade média até a história do tempo presente. Tratam de trajetórias de mulheres que tiveram atuações muito ricas e variadas: escritoras, professoras, historiadora, cineasta, religiosas, carnavalescas, militantes que transitaram pelo feminismo, feminismo negro, militância indígena. A grande maioria delas não são (re) conhecidas pelo grande público, sequer do restrito público acadêmico, ou da comunidade das / dos historiadoras / os, não são personagens “representativos”, mas talvez, por isso mesmo, interessantíssimas. Vamos falar brevemente de cada um dos textos.

O texto de abertura do dossiê, No rastro da história das mulheres, de Marília Garcia Boldorini e Roberta Barros Meira, faz um balanço histórico, historiográfico e teórico da escrita biográfica enquanto gênero literário, apontando para a proeminência de protagonistas e autores masculinos, mesmo em pleno século XXI. Com isso, reflete sobre o espaço dado às mulheres e suas condições e aponta para a necessidade de ampliação da representatividade feminina, batalha que pode ser assumida por historiadorxs empenhadxs nessa prática de escrita. Apontando, ainda, para as questões identitárias relacionadas à biografia, incluindo a possibilidade de evidenciar “memórias clandestinas”, nos termos de Michel Pollak, o artigo aposta na escrita biográfica como lócus privilegiados para a compreensão das relações de gênero.

Na sequência, temos artigos que tratam das trajetórias de mulheres intelectuais, brasileiras e estrangeiras. O primeiro deles é A representação da mulher letrada no Brasil oitocentista: a biografia de Beatriz Brandão pelo intelectual Joaquim Norberto, em que Laura Oliveira Motta apresenta uma análise das representações do feminino no espaço letrado do Brasil do oitocentos, através do perfil biográfico da poetisa Beatriz Francisca de Assis Brandão, escrito pelo historiador da literatura Joaquim Norberto de Souza e Silva. No artigo, duas trajetórias intelectuais se cruzam para mostrar as possibilidades e os limites da participação da mulher em instituições intelectuais, destacando o papel do biógrafo no reconhecimento de contribuições femininas para a formação literária nacional, ainda que apelando para o reforço de padrões morais tradicionais.

Em Leituras em voz alta, leituras em silêncio: a produção intelectual de Elena Garro e os estudos de gênero, Mariana Adami nos brinda com uma reflexão acurada sobre a trajetória intelectual da mexicana Elena Garro. Adami procura enfatizar as diversas leituras de suas obras feitas por outros intelectuais e suas apropriações ao longo do tempo, além de evocar a importante discussão sobre uma literatura dita “feminina” e sua ingerência nos estudos históricos. O artigo é um convite para se pensar os silenciamentos impostos a produção literária de algumas mulheres.

Em Zilda Diniz Fontes (1920-1984): uma educadora para além dos muros da escola, Alline Rodrigues Bento procura traçar a trajetória de uma professora e escritora, Zilda Diniz Fontes, muito atuante em uma cidade do interior de Goiás, na segunda metade do século XX. Partindo assim de estudos biográficos a autora procura traçar a trajetória intelectual da personagem bem como relata partes de sua vida privada, ambas interconectadas como se pode perceber na leitura do artigo. Novelista, poetisa, dramaturga, mãe, esposa e professora, sua trajetória de vida merece ser (re)conhecida. Uma mulher que ousou percorrer espaços que, na época, eram (quase) exclusivos para os homens.

Karen Cristina Garbo no seu artigo intitulado Andradina de Oliveira e as ausências de uma crítica literária feminina gaúcha procura fazer o resgate da figura, que no século XIX, teve uma carreira reconhecida como escritora e jornalista. Nesse sentido Garbo destaca, no seu texto, tanto a atuação de Andradina à frente do jornal o Escrínio (1898-1910) quanto como escritora de romances, entre eles destacando O Perdão publicado em 1910. Tal como aponta Karen Garbo a autora analisada tratava de temas tabus na época, tais como o divórcio e adultério, os quais, segundo ela, podem ter sido as molas propulsoras para sua obra ter sido relegada ao esquecimento ao longo dos anos e ter contribuído para um (quase) apagamento da escritora gaúcha.

Uma trajetória feminina em construção, e (auto)reflexão narrativa, é o objeto de Lúcio Geller Júnior, no artigo Anna Savitskaia: ou, como narrar uma vida na União Soviética (1964- 1988). Sua pesquisa em História Oral busca compreender a experiência soviética da tradutora e professora emigrada Anna Savitskaia, radicada em Porto Alegre. Das memórias familiares ao discurso histórico russo produzido na / sobre a Guerra Fria, passando por reminiscências mais pessoais (seus deslocamentos, os estudos, a profissão, o casamento etc.), a depoente elabora sua identidade, contrapondo suas vivências cotidianas no socialismo e no capitalismo, na Europa oriental e no Ocidente periférico, tensionando o relato do pesquisador, num jogo de espelhos que obriga a tematização dos lugares de fala de ambos. Com habilidade, o autor descortina um mundo histórico perdido e um universo de significados em aberto.

Em Beatriz Nascimento e a invisibilidade negra na historiografia brasileira: mecanismos de anulação e silenciamento das práticas acadêmicas e intelectuais, Maria Lígia de Godoy Pinn tem como objetivo apresentar a trajetória intelectual e acadêmica da historiadora Maria Beatriz Nascimento, a partir do processo de invisibilização pelo qual passou no ambiente acadêmico, sobretudo no campo da disciplina História. Pinn insere esse apagamento no processo maior em que a intelectualidade e os espaços acadêmicos são negados às mulheres negras, em que as estruturas sociais discriminatórias definem e perpetuam o lugar das mulheres negras em posições sociais subalternas. A partir da trajetória de Nascimento, o artigo produz uma crítica importante ao eurocentrismo da história como disciplina, levando ao epistemicídio sistêmico de populações negras e indígenas, em especial as mulheres dessas etnias não-brancas.

O texto de Manoela Salvador Frederico, Para que não seja esquecida: o acervo pessoal de Eloísa Felizardo Prestes e suas memórias, a partir dos referenciais da história do tempo presente, enfoca o acervo da irmã de Luis Carlos Prestes, bem como sua militância feminista. Os documentos em seu arquivo privado apontam para um grande interesse em salvaguardar registros de sua época, principalmente sobre as questões femininas, suas lutas e a construção do que a autora chama de cultura política feminina. Ao guardar seus papéis, Eloisa construíase como militante. Seu arquivo revela as experiências vivenciadas, seu campo de atuação política e interesses, e, sendo estudado, contribui para tirar do esquecimento a rica atuação dessa feminista.

Alina dos Santos Nunes, no artigo Arte longa, vida breve: Rita Moreira, feminismo em cena trata da trajetória da cineasta, lésbica e feminista Rita Moreira, usando como fonte uma entrevista realizada com a personagem em 2019. A produção de vídeos feministas de Rita nos anos 1970 é analisada por Nunes como um espaço de articulação política. O meio audiovisual também foi importante no sentido de despertar a consciência política de vários sujeitos e sujeitas, em meio à segunda onda do feminismo. Articulando história oral e história das mulheres, o artigo contribui para trazer à tona uma história a ser escrita, ainda pouco visível, a da produção audiovisual feminina, construída na intersecção das lutas e dos conflitos vivenciados nos movimentos feministas e lésbicos.

Dois textos trabalham a temática feminina e a religiosidade. No artigo de Caio César Rodrigues, Agência e diligência discursiva na trajetória de Catarina de Siena (1347-1380), conhecemos a trajetória da penitente Catarina de Siena, que, no século XIV, construiu uma rede de apoio entre religiosos leigos da Toscana e acabou, inclusive, projetando-se como conselheira do papado. A curta biografia da personagem é investigada à luz do contexto religioso e intelectual do final do medievo, bem como em cotejo com a bibliografia especializada nas relações de gênero e na condição feminina na sociedade européia do período. Recorrendo, como fontes, às hagiografias tradicionais, o autor também apresenta uma releitura da construção discursiva da personagem, entendendo essas narrativas em função do modelo medieval de santidade feminina.

O segundo texto é Arquitetura de uma trajetória: o Templo de Minervina Carolina Corrêa, escrito a seis mãos, por Simone Rassmussen Neutzling, Gabriela Brum Rosselli e Guilherme Pinto de Almeida, apresenta a trajetória de uma mulher, Minervina Carolina Corrêa, e sua luta para edificar uma igreja católica, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, no início do século XX. Uma mulher, que sofreu, na pele, a discriminação da sociedade da época. Simone, Gabriela e Guilherme assim nos trazem uma perspectiva diferente ao darem foco, na sua explanação, para um patrimônio importante da cidade de Jaguarão e, através dele, resgatar a trajetória de Minervina.

Três artigos tratam das trajetórias de três mulheres em contextos distintos: o trabalho no mundo rural, mulheres negras no carnaval baiano e a luta indígena kaingang. O artigo Trajetória de três mulheres rurais: o trabalho como fio condutor das narrativas de vida escrito por Márcia de Fátima de Moraes já deixa claro, no próprio título do seu texto, a sua intenção, ou seja, mostrar como mulheres de uma localidade rural do Rio Grande do Sul relatam suas trajetórias. Através de um estudo de três casos específicos, Márcia de Moraes procura compreender como, no relato dessas mulheres, as memórias relacionadas ao trabalho encontram-se articuladas às questões de gênero e às de identidade feminina, através de uma perspectiva nem sempre percorrida, o viés geracional e de localidade. Um texto instigante por sua atualidade, marcada pelos indicadores de gênero na organização do trabalho rural.

Alberto Bomfim da Silva e Edson Farias, em A construção da autonomia feminina negra nas ousadias da carnavalização, analisam o papel social ocupado pelas mulheres negras no carnaval de Vitória da Conquista (BA) da segunda metade do século XX. As trajetórias de três dessas mulheres – Beta, Arcanja e Dió – ofereceram uma amostra singular desse grupo social, normalmente invisibilizado na história e pela História, mas que tiveram um relevante protagonismo. Os autores se valem das metodologias da história oral em entrevistas e da análise de fotografias relacionadas ao carnaval na cidade pesquisada. A participação feminina no carnaval carrega consigo elementos das religiosidades de matriz africana. Isso é visto pelos autores como constituinte de um quadro social de memória que ancorava componentes de uma identidade para a mulher negra contribuindo, em parte, para a construção de sua autonomia.

As mulheres indígenas são o tema do artigo de Andrea Bazzi, Mulheres Kaingang na frente de batalha: três gerações de lideranças femininas na Terra Indígena Toldo Chimbangue. Da mesma forma que a mulher negra, Bazzi argumenta que ser mulher indígena é diferente de ser mulher não indígena / branca / ocidental, no que se refere a seu apagamento e discriminação. Ou seja, é necessário considerar o lugar de marginalidade histórica em que se encontram as mulheres indígenas para entender que as relações de poder a partir do gênero não podem estar desassociadas de um recorte de classe e de etnia. O texto trata da trajetória de três mulheres kaingang, de gerações diferentes, que ocuparam / ocupam espaços de liderança dentro da comunidade Kaingang Toldo Chimbangue, em momentos políticos e históricos distintos, trazendo à tona agências que compartilham os mesmos princípios e respeito à ancestralidade, à memória e história do povo Kaingang.

O dossiê se encerra com o artigo Biografia de mulheres e Ensino de História – possibilidades metodológicas para a aprendizagem da Ditadura Civil-Militar brasileira. Seu autor, Fernando de Lima Nunes, sintetiza os resultados de seu mestrado em ensino de história, analisando o uso, em sala de aula, de biografias de mulheres mortas e desaparecidas na Ditadura Civil-Militar Brasileira. A partir de documentos e relatos, o professor-pesquisador instigou alunos de 9º ano do Ensino Fundamental e de 3º ano de Ensino Médio a comporem narrativas sobre as vidas das militantes Alceri Maria Gomes da Silva, Ísis Dias de Oliveira e Luiza Augusta Garlippe. O objetivo pedagógico das sequências didáticas era construir “empatia histórica”, segundo conceituação de Peter Lee, fazendo com que os estudantes encontrassem os diferentes pontos de vista dos agentes sociais, especialmente das mulheres desaparecidas e de suas famílias.

Nessa breve apresentação, fica evidente a diversidade e riqueza dos artigos que compõem o dossiê. Esses textos são representativos de como o tema é importante e, mais ainda, da pujança das pesquisas acadêmicas de história. Isso é motivo de grande felicidade para nós como professorxs de história e organizadorxs do dossiê.

Por outro lado, infelizmente, estamos vivendo tempos de negacionismo histórico, de desvalorização do conhecimento científico e, o pior, de cortes de bolsas para a área de ciências humanas, entendidas por quem está no poder como “não prioritária”. Como historiadorxs que não devem se furtar às questões de seu tempo – lembremos nesse sentido, sempre, de Marc Bloch! – não podemos deixar de registrar o nosso repúdio a tal (necro) política em vigor. A história das mulheres está atrelada à militância por um mundo mais justo e igualitário para todas e todos, dessa forma, este dossiê não poderia deixar de se posicionar. Que essas pesquisas inovadoras sobre mulheres tão ímpares nos inspirem nos tempos tenebrosos por que passamos. Este dossiê é uma peça na luta contra o esquecimento de suas trajetórias e também a prova de que a história e as ciências humanas devem ser prioridade, pois falam de, sobre e para nós, de nossas lutas e ações, que é o que dá sentido ao nosso mundo, às nossas identidades (quem somos), às nossas vidas.

Boa leitura! Março de 2020 – Em meio à pandemia de Covid-19

As organizadoras e o organizador.

Referências

GONÇALVES, Andréa Lisly. História e Gênero. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2006.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. IN: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 89-98, 1998.

SCHMIDT, Benito. História e biografia. IN: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

SMITH, Bonnie. Gênero & História: homens, mulheres e a prática histórica. São Paulo: Edusc, 2006.

Elenita Malta Pereira – Doutora em História (UFRGS). Professora de História na UNICENTRO. E-mail: [email protected]

Jocelito Zalla – Doutor em História (UFRJ). Professor do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: [email protected]

Mônica Karawejczyk – Doutora em História (UFRGS). Pós-doutoranda (PNPD-CAPES) na PUCRS. Professora Colaboradora do PPGHistória PUCRS. E-mail: [email protected]


PEREIRA, Elenita Malta; ZALLA, Jocelito; KARAWEJCZYK, Mônica. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 25, Dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI / Albuquerque: Revista de História / 2019

A alteridade como patologia: os discursos médicos e seus usos políticos

O dossiê Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI chega aos leitores, num momento em que vivemos uma pandemia que já causou milhares de mortes e que tem agravado, não só uma crise econômica mundial, mas também, a desigualdade social em diversos países, inclusive no Brasil. O isolamento social, medida preventiva adotada, traz consigo uma série de questões sobre a desigualdade social que, há muito, vem sendo silenciadas e negligenciadas. Ações simples, que são verbalizadas e repetidas (quase) como palavras de ordem nos diversos veículos de comunicação e redes sociais, #LaveAsMãos e #FiqueEmCasa, revelam que aspectos básicos, como a moradia e o acesso à rede de saneamento básico, ainda são um privilégio a que muitos não têm acesso. Em que pese a relevância das discussões que podem surgir desse evento e seus desdobramentos, é importante salientar sua importância para compreender melhor a sociedade em que vivemos e os debates aqui propostos.

Ao investigar histórica e historiograficamente as relações de poder que perpassam o adoecer e o curar, não se pode deixar de pensar qual é o papel social da Medicina, seja no início do século passado ou deste, com suas transformações e permanências. De outra parte, cabe também a pergunta: como o Estado lidou (e tem lidado) com as diversas demandas da área da saúde pública? Embora a comunidade médica tenha feito parte de um projeto civilizador para o Brasil – tornando patológicos comportamentos socialmente “indesejáveis” – baseado em mecanismos de normatização e disciplinarização dos indivíduos, nem sempre houve as condições necessárias para combater e debelar as epidemias. Quanto às instituições responsáveis por implementar as medidas profiláticas, o improviso foi, muitas vezes, o único recurso disponível para lidar com o despreparo das equipes auxiliares, a escassez de recursos, mas também com os “alienados”, os doentes e os mais pobres. O que não quer dizer, que a população não protestasse contra as medidas implementadas, muitas vezes, de forma impositiva e violenta, como no caso (emblemático) da Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1904.

Nota-se, então, como o discurso médico e das instituições sanitárias e de saúde foi empregado em diversas ocasiões (e epidemias), pelo Estado, para justificar o controle sobre os indivíduos. Roberto Machado, ao publicar A Danação da Norma, constrói uma trajetória das políticas de saúde no Brasil e pontua que é no século XIX que o saber médico investiu sobre as cidades e as dinâmicas sociais ali presentes. O século XX representa, por sua vez, o momento em que o saber médico institucionalizado, com o aval do Estado, passa a alcançar diversos espaços sociais, dialogando com discursos provenientes de outras áreas do conhecimento, tais como a Educação, a Engenharia, a Arquitetura, o campo do Direito, por exemplo. Com isso, os discursos sobre o estar doente ganharam sentidos políticos que auxiliaram na elaboração e execução desses projetos. Também ajudaram a transformar o saber médico e consolidar sua relevância em diversos grupos sociais.

Nas primeiras décadas do século XX, por exemplo, o Estado autoritário brasileiro, alicerçado em uma política coronelística, utilizou a medicina para estabelecer uma divisão social entre os que, teoricamente, conseguiam compreender as políticas de saúde e os que não teriam condições para isso. Os elementos que sustentaram esse discurso médico-político, que culminou em projetos sanitaristas violentos, foram baseados na Antropologia Criminal de Cesare Lombroso, que auxiliou na consolidação dos discursos racistas durante a primeira metade do século. Com base em suas teorias, foi possível judicializar uma série de grupos que, não por acaso, eram formados por negros e mestiços, justificando assim, um projeto de branqueamento da população (muito mais mestiça e negra do que com traços europeus) que estava em curso desde o final do século XIX. Houve, também, uma brutal medicalização dos indivíduos fora dos padrões de normalidade pretendidos, bem como dos espaços frequentados por eles.

Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, as relações entre as ciências e o discurso político se estreitam, ganhando uma nova dimensão com a Marcha para o Oeste. O projeto político de “civilizar” o sertão teve como intuito a mudança cultural de diversos indivíduos, legitimado por discursos excludentes por parte do Estado. No entanto, havia outras ações previstas dentro dessa agenda política. É neste contexto que se inserem as discussões apresentadas por Diego Moraes, no artigo O discurso eugenista como instrumento político na transição das Repúblicas: a institucionalização do “Perigo Amarelo” no âmbito da Constituinte de 1934. O autor discute como, naquele momento, houve não somente a medicalização da diferença, mas também o uso do discurso médico e científico como argumento jurídico para desqualificar imigrantes asiáticos. Alcir Lenharo, em A Sacralização da Política, reforça a existência dessa mentalidade ao afirmar que medicina, engenharia e educação foram as bases do processo político varguista. Ao longo de quinze anos de um governo autoritário, foi possível trazer à luz projetos de sanitarização que funcionaram muito mais como controle do que benefício para as populações.

Nos anos 50, tendo em vista o segundo governo de Getúlio Vargas e seu projeto de modernidade para o país, houve a continuidade do discurso baseado na necessidade de uma pátria saudável para alcançar o progresso tão desejado. Para tanto, era preciso unir a nação por meio de uma sociedade com saúde, disciplinada ou medicalizada. Parte desse debate está presente no artigo O desenvolvimento das Instituições Psiquiátricas no Rio Grande do Sul até 1950 – O que sabemos pelas pesquisas historiográficas, no qual Lisiane Ribas Cruz situa o estado da arte sobre o tema naquele período. Trata-se de uma contribuição relevante, uma vez que articula esse projeto nacional e seus mecanismos, ao contexto regional.

Na década de 1960, durante o regime militar, surgiram novas discussões sobre o papel dos profissionais de saúde, sinalizando algumas mudanças. No entanto, a invisibilidade social que algumas doenças provocavam, como no caso da tuberculose ou da lepra (cujo nome fora mudado para hanseníase, na década de 1960, por causa do estigma ligado a ela) e, mais recentemente, da AIDS, indicam algumas permanências. Um exemplo disso são as discussões em torno do isolamento de soropositivos, nos anos 80; os inúmeros hospitais psiquiátricos que recolheram milhares de pessoas, mesmo que em graus menos severos, escondendo-os da sociedade. Neste grupo, também se enquadram as relações entre crime, violência e loucura, em uma sociedade violenta e que precisa lidar com sujeitos duplamente marginalizados: são infratores e loucos. Essas reflexões estão presentes no artigo Condenados da Margem: Luta Antimanicomial e o Louco Infrator em Goiás, de Éder Mendes de Paula.

Em Os povos alto-xinguanos e o modelo assistencial em saúde operacionalizado em contextos de intermedicalidade: encontros de saberes, negociações e conflitos, Reginaldo Silva de Araújo apresenta novos elementos, ampliando essa discussão, do ponto de vista temático. Ao mesmo tempo, atualiza sua temporalidade: os anos 2000. Do ponto de vista metodológico, o artigo evidencia as aproximações entre as ciências humanas e o fazer historiográfico, de modo a contribuir para o enriquecimento das reflexões propostas neste dossiê. Além das questões ligadas à posse de terras, que tem resultado em conflitos violentos e genocidas, as comunidades indígenas sofrem com a falta de médicos, recursos físicos e de equipamentos para assistência médica. Principalmente, com a falta de preparo das equipes para lidar com as especificidades culturais dessas comunidades.

Mais recentemente, também tem sido discutida a eficácia do isolamento compulsório para usuários de drogas ilícitas, mas também de pessoas cujos comportamentos são socialmente “indesejáveis” e que, por isso, também são considerados patológicos. Assim, ainda hoje, buscase homogeneizar (por meio de um mecanismo que é perpassado pelo discurso médico, jurídico, geopolítico, entre outros), uma população que é, por princípio, constituída por comunidades tão diversas em suas características, sociabilidades, sistema de crenças e práticas. Em tempos de pandemia, de divulgação em massa de informações falsas e da reiterada desvalorização do conhecimento científico, inclusive das recomendações da Organização Mundial de Saúde, corre-se o risco de pensar que a história se repete, o que, sabemos, é uma armadilha. No entanto, cabe a nós observar como esse mecanismo discursivo se manifesta hoje, e qual seu papel dentro do projeto político neste início de século. Boa leitura!

Referências

LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. Campinas: Papirus, 1986.

MACHADO, Roberto. A Danação da Norma. Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1978.

Carla Lisboa Porto (Centro Universitário Sagrado Coração)

Éder Mendes de Paula (Universidade Federal de Jataí)

Organizadores


PORTO, Carla Lisboa; PAULA, Éder Mendes de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.22, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Travestis: carne, tinta e papel – VERAS (AN)

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Editora Prismas, 2019. Resenha de: MACHADO, José Wellington de Oliveira. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019504 – 2019.

Com a maquiagem de Thyago Nogueira e os adereços de Helena Vieira, juntamente com os brincos de Luma Andrade e os colares brilhantes de Durval1, a Travesti não binária, que transita entre a História, a Literatura, o Jornalismo, a Arte e a Filosofia, volta a se vestir de glamour. Os recortes mudaram de canto e de tamanho, o corpo desmontou-se e refez-se, a carne, a tinta e o papel entraram, mais uma vez, em trânsito. Depois de anos montando, desmontando e remontando o corpo, ela tinha a sensação de devir cumprido.

Não tem como separar esse corpo dos corpos dos arquivos e dos corpos das interlocutoras; dos corpos da UFSC e da Universidade de Barcelona; dos corpos da TV, das revistas e dos jornais; dos corpos de Michel Foucault, de Judith Butler, de Paul Preciado e, principalmente, de Joana Maria Pedro2. Ele é resultado de todos os lugares por onde Elias passou, das pessoas que conheceu, das histórias que viveu, das dores e das alegrias que experimentou, das músicas que ouviu, dos gostos, dos cheiros e das carícias que sentiu.

Ao olhar para esse corpo de letras e de imagens enxergamos três marcas, ou capítulos, que ajudam a entender como se construiu a imagem das travestis. A primeira3 é resultado do contato com Gilmar de Carvalho, que ajudou a preservar a literatura de Amorim/Samorim, tornando possível fazer uma conexão entre os/as protagonistas dos seus livros com as personagens das revis­tas, dos palcos e da TV.

O que essa cicatriz nos mostra é a emergência do sujeito travesti entre as décadas de 1970 e 1980. Mas, antes de falar sobre essa inflexão, que causou o surgimento de novas subjetividades, precisamos falar dos encontros antropofágicos de Elias Veras, é apenas a partir do momento que ele coloca Foucault e Preciado na sua mesa (ou na sua cama), como corpos a serem comidos, que essa ideia ganha corpo. Ela nasce através dos encontros e da antropofagia (ROLNIK, 1989).

Através das lentes foucaultianas, ou das lentes de Elias lendo Foucault, aprendemos a olhar para o sujeito travesti como resultado de uma rede de ações e de discursos, como algo que emerge através de uma trama. Ao cruzar Foucault, Preciado e (S)Amorim ele localiza a emergência desses sujeitos dentro da sociedade fármaco-pornográfica. O que existiria antes seria a arte de “fazer tra­vesti”, uma atividade passageira e circunstancial. É “A Passagem do Tempo das Perucas ao Tempo dos Hormônios”.

De um lado, as histórias das personagens de (S)Amorim e de Bianca, relatos de encontros de “bichas e bonecas” que performatizavam o feminino através das Misses e das atrizes do cinema americano. São memórias das festas do Edifício Jalcy, dos concursos de beleza ou de fantasia e dos bailes de carnaval, onde as feminilidades efêmeras podiam se transformar em heterotopias. Do outro lado, temos o tempo dos hormônios e do silicone, resultado de transformações que afetaram “a intimidade, o corpo, o gênero e a sexualidade”. Todas essas mudanças são analisadas através da Revista Manchete que acompanhava as atividades anuais do carnaval, publicando as fotorrepor­tagens do “baile dos enxutos” e, posteriormente, do “Gala Gay”, mostrando o contraste entre as antigas e as “novas tecnologias corporais”.

Esse novo sujeito é resultado do cruzamento da ciência com a mídia, das novas próteses estéticas, cirúrgicas e hormonais que transformaram os corpos, que a partir da década de 1980 aparecem siliconados nas revistas, na TV, nos teatros e nas boates. É o tempo de Rogéria e dos grandes espetáculos que percorriam o Brasil e o Mundo. Ela é filha da arte, da ciência e dos meios de comunicação. Mas, também é o tempo de Rogéria e de Thina, duas travestis de Fortaleza que se construíram através das revistas e das imagens dos carnavais do Rio de Janeiro, das representações de Rogéria e de outras travestis famosas, do imaginário em torno dos teatros e das boates brasileiras e do cinema e da música norte-americana.

A segunda marca4 nasce do encontro com Roberta Close, com todos os textos e imagens que transformam ela em outra personagem paradigmática. Assim como Rogéria, ela encarna a sociedade farmacopornográfica. Estamos diante de um novo paradigma que surge a partir do momento que ela se encontra com a Playboy. O corpo transgênero agora estava nu, ela exibia a sua feminilidade numa revista masculina de projeção nacional, sem figurinos, maquiagens ou adereços, o que as pessoas queriam ver era a produção do feminino na carne. O debate agora não gira apenas em torno da “travesti de verdade”, é sobre a “mulher de verdade”.

Enquanto ela tirava a roupa, o seu corpo era coberto de significados, não se tratava apenas de um corpo individual, ela encarnava o corpo de uma época. Os gays, as transformistas e as travestis estavam nos programas de humor, de auditório ou de entrevista, faziam parte das matérias de jornais e de revistas, alimentando esse imaginário de fascínio ou estigma que ajudou a construir a identidade das travestis. Mas, não representava apenas a existência de um novo modelo de subje­tividade, o que ela mostrava era a coexistência de vários paradigmas.  De um lado, temos Roberta Close “nas capas das revistas, nas telas das tevês”, “nos jornais”, nas mentes e nas bocas do povo”. Ela era uma brecha por onde as pessoas podiam ver (bem ou mal) as “sexualidades disparatadas”.

De outro lado, temos os conservadores, eles estavam nos jornais e nas revistas, usando a ascensão das indústrias “eletrônicas, de informática e de comunicação para criar um contra-discurso. Era uma reação diante da presença das travestis nas ruas de Fortaleza, das pesquisas sobre sexualidade, dos novos medicamentos, do aumento de saunas, boates e cinemas pornôs, do fenômeno do vídeo cassete, do surgimento dos novos movimentos sociais, da expansão das mídias e da indústria pornográfica.

A terceira marca5 nasceu através do encontro com os Jornais de Fortaleza, dos enquadramentos da polícia e dos meios de comunicação. A orgia, dessa vez, aconteceu com A Vida dos homens infa­mes e A História da Sexualidade, de onde surgiu o “Dispositivo do estigma”. O que vemos é uma rede, que liga vários elementos, produzindo uma imagem das travestis nos campos de prostituição e nas organizações criminosas. Os corpos de Rogéria, de Roberta Close, de Thina, de Erdmann, de Foucault, juntamente com os corpos d’O Povo e Diário do Nordeste, movimentam o ponto de encontro, alimentando essa zona de visibilidade e dizibilidade.

Elas são classificadas, através de um pré-julgamento, como causadoras da desordem, dos escândalos, da violência e dos assassinatos. As forças policiais e a imprensa legitimaram a regu­lação e o encarceramento, os discursos médicos e religiosos criaram a imagem da “peste gay” ou do “câncer gay”. Mas, essa não é uma história apenas de luto e de agouro. Os Estados Nacionais criaram Políticas Públicas de Assistência Social, de produção e distribuição de medicamentos, transformando as travestis em portadoras de direitos. Estamos diante de duas formas de visibilidade, a primeira foi construída através do estigma, é resultado do encontro dessas vidas infames com o poder. A segundo é uma visibilidade de resistência, construída através do Movimento Nacional e Internacional de Travestis.

Esse mesmo exercício, de perceber os contra-discursos, poderia ter sido feito também no primeiro capítulo, quando as “agulhas da beleza” ganharam um status de glamour. Diante da realidade social de carência e das imagens do que seria uma “travesti (ou uma transexual) de ver­dade”, os procedimentos ilegais aparecem como a única possibilidade de beleza. Não se trata apenas da emergência de um sujeito, é do apagamento de todas as travestilidades e transexualidades que não cabem nessas fôrmas. Essa é uma das dimensões que o autor pode analisar melhor em outra ocasião, o lado cruel desse processo de subjetivação. O perigo das travestis não estava apenas na polícia, nos jornais e no dispositivo do estigma, estava no próprio conceito de “travesti de verdade”, a estigmatização não é fruto apenas das páginas policiais, é resultado dessa hierarquia entre “tra­vestis de verdade” e travestis de mentira.

Se olharmos esse dispositivo como se fosse uma receita, uma gramática ou um mapa, podemos pensar as travestis como sujeitas da vida cotidiana, que burlam essas normas e constroem táticas de resistência, como fizeram com a polícia. O sujeito, nesse caso, não é apenas o sujeito coletivo das normas, é uma pessoa, ou um grupo, que burla os códigos (CERTEAU, 2008, p. 116). Se Foucault não se resume apenas às relações de poder ou aos dispositivos de poder, como podemos falar sobre a resistência das travestis diante da emergência desse lugar de sujeito? De que maneira essas práticas que existiam, com o nome de travestismo ou com outros nomes, podem ser estudadas?

Não se trata do mesmo tipo de sujeito, ou do mesmo conceito de sujeito, parte das pesquisas sobre travestis surgiram no momento da emergência do sujeito travesti da sociedade farmacopor­nográfica, generalizando o conceito de maneira anacrônica para o passado. Precisamos ir, através da História, além da antropologia e da sociologia, sem negar a importância dessas pesquisas. Há quem diga que esse livro impossibilita a construção de uma história das transições de gênero que aconteciam de maneira permanente e duradoura antes da década de 1970. Que existiram outras travestilidades que não cabem nos conceitos que foram apresentados. Mas, ao invés de pensar através 4 de 5  dessa dualidade, eu prefiro fazer o cruzamento, a pesquisa que foi apresentada é um convite para pensar as transições de gênero em outros períodos da história. O que foi feito através desse recorte e dessa trama serve como exemplo para pensar outros recortes e outras tramas.

Não podemos exigir que ele fizesse o que não se propôs a fazer, a sua pesquisa é sobre a emer­gência do sujeito travesti na sociedade farmacopornográfica, existe uma metodologia e um recorte de tempo e de espaço, ele estar falando da segunda metade do século XX através de Fortaleza, embora, em alguns momentos, possa ampliar para o Brasil. A pesquisa parte de uma problemática e de alguns objetivos, não podemos exigir que ele escrevesse, na época, uma história sincrônica e diacrônica do conceito de travesti, que fizesse uma cartografia de outras travestilidades ou que apresentasse todas as possibilidades interseccionais. Mas, poderia ter feito pelo menos um exercício nesse sentido.

Essa é uma visão de quem olha de fora, de quem imagina que esse corpo poderia ter sido construído de outra maneira. É preciso fazer, também, o exercício contrário, tentando perceber como esse corpo se construiu e qual a sua importância para os historiadores e as historiadoras que pesquisam sobre Travestis. Essa é uma das grandes contribuições de Elias, ele conseguiu fazer corpo com a tinta e o papel, as letras transformam-se em hormônio, em silicone, em vestimentas, em bolsas, em maquiagens, em manchas de batom e de sangue.

Ao olharmos para o Grupo de Estudo que ele coordena na UFAL, para as reportagens que escreveu no Jornal O Povo e para o Simpósio Temático Clio ‘Sai do armário’: Homossexualidades e escrita da História, percebemos a existência de debates sobre a interseccionalidade e o período da Ditadura. O corpo ganha novas cores, aparece com mais ou menos maquiagem, com novas próteses, dependendo do tipo de montagem. Não estou falando apenas das novas edições, o corpo do livro e de Elias podem devir outros corpos, parindo novas travestilidades.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: artes de fazer. 15. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203-222. (Coleção Ditos e Escritos, IV.)

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1988.  PELBART, Peter Pal. A vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1, 2018.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Notas

1 Thyago Nogueira é o criador da capa; Helena Vieira é uma autora transfeminista que escreveu o prefácio da segunda edição; Luma Nogueira de Andrade é uma travesti professora da UNILAB que fez o texto da orelha do livro e Durval Muniz de Albuquerque Júnior é um historiador da UFPE que participou da banca de doutorado e escreveu o prefácio da primeira edição.

2 Orientadora de Elias Veras no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

3 O Nome desse Capítulo é “Do Tempo das Perucas ao tempo dos hormônios” e está dividido em três tópicos: “Tempo das Perucas ou quando não existia o sujeito travesti”, “Entre Perucas e Hormônios, o carnaval como heterotopias de gênero” e “Tempo dos hormônios ou a invenção do sujeito travesti”.

4 O segundo capítulo foi intitulado de “O ‘Fenômeno Roberta Close’ como acontecimento farmacopornográfico” e está dividido em três tópicos: “Tempo fármaco-pornográfico: excitação e controle”, “La Close e a confusão de gênero”, “La Close e as ‘sexualidades periféricas’ no centro da cena público midiática”.

5 O terceiro capítulo foi intitulado “Dispositivo do estigma e os contra-discursos Travestis” e está dividido em três tópicos: “O dispositivo do estigma”, “O dispositivo da prostituição e da AIDS” e “contra-discursos travestis”.

José Wellington de Oliveira Machado Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected].

Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África – PAIVA (AN)

PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017. Resenha de: MACHADO, Carolina Bezerra. A escrita da História da África: Política e Resistência  Anos 90, Por to Alegre, v. 26 – e2019501 – 2019.

Em meio a constantes desafios político-ideológicos, os estudos africanos vêm se firmando como um campo de pesquisa no cenário brasileiro, o que contribui diretamente para o desenvolvimento da escrita da História da África no país. Esse movimento favorece também o rompimento dos estereótipos ainda pertinentes que geram desconhecimento, preconceitos e deturpações acerca da historicidade africana, por anos renegada ou mesmo ocidentalizada. A mudança de perspectiva está amparada em uma historiografia que busca valorizar o africano enquanto sujeito da sua história, colocando-o em primeiro plano para refletirmos sobre os eventos no continente africano, o que não significa renegar a sua relação com o outro, mas desejar compreender os processos históricos a partir do olhar de dentro. Ressalta-se ainda que essa perspectiva traz à tona a riqueza da diversidade presente no continente, que sob o olhar colonial sempre foi visto como homogêneo.  Nesse sentido, o livro Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história da África de Felipe Paiva traz um debate fundamental para repensarmos a escrita historiográfica da África. Resultado de sua pesquisa de mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense e agora publicada pela Eduff, o livro concentra-se em um caloroso debate sobre a ideia de resistência na obra História Geral da África da Unesco. Tomado como principal fonte ao longo da sua pesquisa, o conjunto de oito volumes publicados em diferentes momentos entre a década de 1960 e 1990, de acordo com o autor, apresenta uma “polifonia conceitual”, não só pelas diferentes vozes que compõem os volumes, mas, sobretudo, pela diferença teórica que os acompanham ao abordar o termo resistência.

De acordo com Paiva, essa abordagem deveria vir acompanhada de um debate conceitual em que resistência deveria aparecer como um conceito móvel, considerando o ambiente de tensões, conflitos e disputas políticas que envolvem a história do continente. Ou seja, como conceito deve ser visto dentro de um processo passível de permanências e rupturas e retomado dentro da sua historicidade. Logo, ao escolher como referência a obra publicada no Brasil pela Unesco, deve-se considerar o contexto político-social em que cada volume foi produzido, principalmente ao darmo- -nos conta que foi um período de intensas mudanças no cenário africano a partir da independência dos países, rompendo com o jugo colonial.

Todavia, o livro também não deixa de apontar para trabalhos anteriores de intelectuais que compõem a coletânea, o objetivo é introduzir o leitor ao intenso debate historiográfico em que a HGA foi produzida. As escolhas teóricas que a acompanham já vinham sendo desenvolvidas e fundamentadas em torno de uma perspectiva que elegia o africano como o sujeito da sua história. Além disso, chama a atenção também o tratamento do autor para os autores da obra, vistos não apenas como referências historiográficas, mas como personagens históricos e testemunhas de uma época (PAIVA, 2017, p. 19). Essa posição reconhece o quanto esses intelectuais foram testemunhas de mudanças, atuando no processo de formação de suas nações e, por isso, atores diretos na legiti­mação de um movimento historiográfico que era também, se não, sobretudo, político-ideológico.

A escolha da obra não é fortuita, a sua produção fora marcada por um campo de luta política, que pretendia retomar a perspectiva africana como análise central. Para isso, a escolha dos autores da coletânea foi claramente um ato político, à medida que dois terços eram intelectuais africanos (LIMA, 2012, p. 281). Como afirma o historiador Joseph Ki-Zerbo, um dos grandes nomes e organizadores da obra, a História Geral da África vinha na contramão de uma perspectiva que negava a historicidade do continente. Desse modo, a obra não deve ser encarada apenas dentro do campo historiográfico, mas também a partir do campo político, em que o ato de resistir pode ser encarado como a força motriz da coleção. Por isso, acertadamente, Felipe Paiva retoma o termo resistência, presente entre os volumes, mas não claramente definido no conjunto da obra. A polifo­nia apareceria de imediato a partir dos diferentes usos da palavra, que, para o pesquisador, apenas ganha valor conceitual dentro de um espaço colonial e que, por outro lado, desaparece quando os conflitos são entre africanos. Até o VI volume teríamos um uso apenas vocabular da palavra, sem ser claramente definida, assim sendo apenas a partir do volume VII, quando os autores se voltam para o conceito, visto que a presença colonial passa a ser analisada em sua especificidade.

Como realçamos, a sutileza em abordar determinado conceito ao longo da HGA chama-nos a atenção para os usos políticos da obra. O debate promovido contribui para refletirmos sobre a escrita da história da África em diálogo com uma perspectiva teórica que repensa as relações colo­niais a partir dos agentes internos. É nesse limiar que as contradições e complexidades ausentes em uma análise do continente, até então presa a uma perspectiva eurocentrista, passam a ser evidentes. Dito isto, o título escolhido para o livro propõe apontar para as insubmissões africanas, a partir de suas diferentes vozes ancoradas no conceito polissêmico de resistência. Todavia, notamos que Paiva aponta para a contradição existente na HGA. Pois, embora os autores retratem os movimentos de resistência a partir de um processo homogêneo, construído em oposição ao colonialismo, a sensi­bilidade em analisar os artigos que compõem a coleção apontam para as diferenças existentes entre os intelectuais à medida que os interesses individuais, regionais, políticos, culturais, religiosos e, até mesmo, de gênero, vão aparecendo na escrita. Nesse sentido, o uso da palavra resistência deve ser problematizado, por mais que no conjunto da obra seja possível identificarmos que a palavra tenha sido forjada contra o colonizador.

Dividido entre o prefácio de Marcelo Bittencourt, seu orientador ao longo da pesquisa, que destaca o valor da obra a partir da sua contribuição teórica; uma apresentação, que aponta para os objetivos que pretende, as hipóteses que levanta, assim como o porquê de algumas de suas escolhas teórico-metodológicas e mais três capítulos com subdivisões, o livro de Felipe Paiva vem preencher uma lacuna importante para a escrita da história do continente africano, que dentro da realidade acadêmica brasileira também se traduz em resistência.

O primeiro capítulo volta-se, sobretudo, para um debate teórico e historiográfico o qual se destaca um intelectual: Joseph Ki-Zerbo. A análise pormenorizada de suas pesquisas anteriores, estas que dialogam com a escrita da obra referencial, permite acompanhar alguns dos objetivos desenvolvidos na HGA, comprometida historiograficamente com um contexto histórico de valo­rização do continente africano e de afirmação dos movimentos nacionalistas e independentistas que ganhavam força naqueles anos. Nesse ínterim, podemos notar o quanto a escrita de Ki-Zerbo se encontra sensível à perspectiva pan-africanista, traduzida para o “grau de família” que Paiva chama a atenção. A ideia de “família africana”, ou mesmo da África enquanto pátria, é observada a partir dos “intercâmbios positivos que ligariam os povos africanos nos planos biológico, tecno­lógico, cultural, religioso e sociopolítico” (PAIVA, 2017, p. 25). Tal abordagem, de acordo com o autor, merece cuidado, pois por vezes pode negar as contradições existentes entre os intelectuais que contribuíram para a obra, conforme fora apontado acima.

Por isso, ao retomar a ideia de resistência na obra durante o período que antecedeu a presença colonial, esse é visto por Felipe Paiva apenas em sentido vocabular, sem uma definição concreta. O sentido conceitual só aparece em oposição a um outro, estrangeiro, nunca em referência aos combates internos, produzindo uma falsa ideia de harmonia entre os africanos, que a análise do conjunto da própria obra é capaz de negar, como nos mostra seu livro. Desse modo, o primeiro capítulo volta-se para os interesses teóricos e políticos da obra, enfatizando uma leitura que vê a escrita historiográfica do continente dentro de uma perspectiva de tomada de consciência do africano, em um claro processo chamado de “(re)africanização da África”. Somos, nesse sentido, a partir da leitura de Felipe Paiva, direcionados aos cuidados que devemos ter ao nos aprofundarmos sobre os debates acalorados que cercam os interesses que levaram à escrita da obra.

Quanto ao segundo capítulo, a abordagem volta-se, especificamente, para o volume VII da HGA, em que para o autor o conceito de resistência passa a ser propriamente construído e apresentado junto a preocupações epistemológicas antes ausentes. Ao abordar esse momento da coletânea, Paiva ressalta a construção de uma África como personagem, que sofre um trauma e, de maneira coesa, se constrói em roupagem de resistência contra o colonizador. É a partir dessa narrativa que resistência enquanto conceito se desenvolve e dirige-se exclusivamente em oposição ao colonialismo. Temos aí a construção de uma ideia de África pautada a partir da experiência colonial, que embora retomasse a história dos africanos a partir de um novo enfoque, ainda guar­dava uma visão harmônica do continente. A presença europeia seria vista como um choque que rompeu com o passado africano.

Devemos destacar, ainda nesse capítulo, as interpretações sobre o conceito de resistência pertinentes para o historiador. Para ele, podemos apontar para duas abordagens entre os autores da HGA: a tradicionalista e a marxista. A primeira refere-se a um passado pré-colonial permeado 4 de 5  por uma suposta coesão entre o passado, anterior ao colonialismo e retratado como grandioso e estático, e o presente, interessante a partir de uma concepção nacionalista, em que as lutas anti­coloniais do século XIX estariam plenamente em diálogo com os movimentos independentistas que irromperam em meados do século XX. Assim, esses movimentos eram vistos dentro de uma tradição de valorização de uma África resistente e una, que por vezes se utilizou da concepção racial para formatar suas ideias. Há, em diálogo com essa perspectiva, grande ênfase nas autoridades tradicionais retratadas como defensoras de um modelo de vida ligado à tradição africana, posta em oposição à modernidade, interpretada como uma imposição colonial.

Por outro lado, mas com o mesmo objetivo de destacar a tradição de resistência dos africanos, a abordagem marxista é assim denominada a partir do “uso de noções e categorias advindas da historiografia marxista ou que lhe são próximas” (PAIVA, 2017, p. 94). Ou seja, não necessaria­mente esses autores se colocam como marxistas mas retratam o conceito de resistência, sobretudo, em reação ao capitalismo. Por isso, a ênfase na luta de classes, formada na esteira das relações de produção advindas com o colonialismo e impostas aos africanos.

Esses dois aportes teóricos, de acordo com Felipe Paiva, servem para repensarmos sobre um tema fundamental na ideia de resistência na África: a sua temporalidade. Ou seja, como podemos captar quando inicia o processo de resistência em África? Pois, por mais que ocorra uma continuidade entre as variadas formas de oposição africana no período colonial e as lutas independentistas, temos que considerar que elas não são um movimento homogêneo que se estruturou necessariamente para desembocar nas independências, afirmando um caráter progressivo (PAIVA, 2017, p. 114). Cabe, então, apontar para as complexidades que cercam essa relação, visto que a defesa central da pesquisa reside em considerar resistência enquanto processo, passível de permanências e rupturas.

O debate sob esse ponto de vista inicia no final do capítulo 2, a partir de uma série de análises dos autores que compõem a HGA, e levam ao capítulo 3. Voltado, sobretudo, para o VIII volume da coleção, o capítulo problematiza a ideia contida nesse volume de que a libertação nacional seria herdeira de uma tradição de resistência presente na África. Para um aprofundamento da questão, Paiva lança mão de estudos anteriores do organizador do volume, o queniano Ali Mazrui, ressal­tando as diferenças construídas pelo intelectual entre protesto, interpretado como fenômeno do Estado-nação, e resistência, vista como conceito herdeiro direto desse movimento. Desenvolve-se um grande debate teórico que tem por objetivo problematizar o modo como resistência é encarada dentro de um ambiente de valorização nacionalista com grande influência do pan-africanismo.

A partir dos debates travados e construídos com argumentações que extrapolam os objetivos iniciais do livro, pois nos levam para questões como nacionalismo, pan-africanismo, colonialismo, entre outros temas pertinentes à África, ressaltada dentro de sua complexidade, a leitura de Indômita Babel é uma importante oportunidade para conhecermos um pouco mais a História da África, sobretudo, a partir da sua escrita historiográfica, cercada de tensões e desafios. O diálogo com a História Geral da África, referência primordial para os estudos africanos, enriquece e solidifica a discussão proposta por Felipe Paiva, que continua a tecer em sua trajetória acadêmica um debate político-ideológico a partir dos intelectuais africanos Kwame Nkrumah e Gamal Abdel Nasser, tema da sua pesquisa de doutorado, que vem sendo desenvolvida desde 2015 no programa de história da Universidade Federal Fluminense.

Referências

LIMA, Mônica. A África tem uma história. Afro-Ásia, Salvador, n. 46, p. 279-288, 2012.  PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017.

Carolina Bezerra Machado – Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected].

Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019

Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019

A revelação da experiência estética não precisa de uma formulação utópica, porque as obras de arte alcançadas não prometem a satisfação de um requisito absoluto de significado, mas nosso enriquecimento cognitivo em um sentido amplo. Trata-se de experimentar esteticamente o presente precário de nossa liberdade finita, não seu futuro ilusório. Quem quer liberdade também deve querer as decepções da experiência. Portanto, o conhecimento estético não substitui o pensamento conceitual fracassado. As virtualidades da experiência estética são as de uma crítica à experiência curta, omitida, escassa, reprimida.

– Daniel Innerarity

O dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas tem como propositura debater acerca das dimensões estéticas entre o século XIX e o século XX, especialmente a partir das expressões produzidas pelas linguagens artísticas (literatura, cinema e música) e suas respectivas performances.

Consideramos a estética como uma modalidade cognitiva legítima capaz de acessar a realidade a partir de verbos criativos como o sentir, querer e pensar, o que caracterizaria o processo compreensivo da realidade proposto por Dilthey em Vida Y Poesia (1945). A estética, como remonta Susan Buck-Morss (2012, p. 157), em sua etimologia carrega consigo a dimensão corpórea, sinestésica – trata-se da percepção pela via sensorial – não restrita somente a arte, beleza e verdade, como os modernos quiseram, mas na captação da realidade em sua natureza material e corpórea, enquanto uma forma de cognição da vida.

Assim, nesse dossiê, nós organizadores, quisemos angariar textos que trouxessem à tona o potencial político de captação compreensiva da experiência social e política da cultura, a partir de aspectos caros a estética como profundidade, aparência, forma, conteúdo e, sobretudo, as mediações elaboradas pelos efeitos teóricos e práticos da relação entre arte, cultura e sociedade. Especialmente em um contexto em que a arte e a cultura tem sido alvo de ataques políticos e a estética é apropriada pela política, o que tem proporcionado, para setores conservadores, um efeito de satisfação artística no campo político e, por conseguinte, fazendo com que a arte busque empreender a politização de suas performances para enfrentar esses efeitos autoritários.

Esse “cogito” foi bem localizado por Walter Benjamin, no século XX, acerca dessas inserções da estética entre as práticas políticas do fascismo e os anseios do comunismo diante da obra de arte e sua reprodutibilidade técnica. Talvez, a esperança de Benjamin, em tal constatação, estivesse na relação ética entre arte e política, o que configura uma tarefa árdua para a estética na contemporaneidade que, segundo Buck-Morss, consiste em

desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais humanos em prol da autopreservação da humanidade, e fazê-lo não evitando as novas tecnologias, mas perpassando-as. (BUCK-MORSS, 2012, p. 156).

Dessa feita, o nosso desejo se faz quase apologético acerca da estética, no sentido de que devemos pensar esteticamente e, sobretudo, investigar as produções culturais enquanto calcadas e atravessadas pela realidade, não como “elucubrações supralunares”. No que se refere a dimensão estética da arte, concordamos com os pressupostos de Jauss e a estética da recepção, apontados por Daniel Innerarity, em que a “estética acentua de maneira particular a historicidade e o caráter público da arte, ao situar em sua centralidade o sujeito que percebe e o contexto em que elas são recebidas” (INNERARITY, 2002, p. 09). Interessa-nos aqui os processos históricos de significação, de atribuição de sentido e, como a estética trata do ordenamento cognitivo das possibilidades de estranhamento das formas de perceber a vida, bem como “daquelas que já foram vivas em alguma vez, ordenando-as de novo” (LUCKÁCS apud MACHADO, 2004, p. 12). Trata-se de pensar a forma (a vida dotada de sentido ético e estético), enquanto “absoluto em relação à caótica vida cotidiana” (MACHADO, 2004, p. 19).

As experiências estéticas são um campo aberto de experimentações de liberdade e fracassos capazes de, historicamente, renovarem e produzirem diversos sentidos às nossas formas de perceber a realidade em suas múltiplas interfaces. Nesse sentido, como aponta Daniel Innerarity, na introdução de Pequena apologia de la experiência estética, de Jauss:

A obra de arte alcançada oferece, aqui e agora, possibilidades de um encontro libertador com a própria experiência. Essa experiência reflexiva transgride as convenções da ação cotidiana, mas não para negar, em princípio, seu escopo e suas limitações, mas medir-se de forma modificável com as possibilidades e limites dessa prática. (INNERARITY, 2002, p. 24)

Diante desse propósito de pensar as experiências estéticas enquanto possibilidades abertas de atribuição e transformação de sentido ao longo do tempo, o presente dossiê é formado por seis artigos de pesquisadores que, de alguma maneira, lidam com objetos estéticos em sua dimensão histórica. O primeiro bloco se destina a experimentar análises acerca da relação entre estética e literatura, lidando com proposições estéticas em obras de Paul Celan, Charles Baudelaire, Francisco Candido Xavier e Nelson Rodrigues. O segundo bloco se incumbe de investigar as relações estéticas entre a crítica, história e cinema. O terceiro bloco se encarrega de pensar a estética musical.

Em A Neve das Palavras, texto que abre o dossiê e seu respectivo primeiro bloco, Maria João Cantinho trata da vida do poeta, romeno radicado na França, Paul Celan e, por conseguinte, analisa como os protocolos e referenciais de leitura dele desenvolveram uma “simultaneidade” estética entre política e literatura que, de certa forma, reverberaram em sua poesia. Para Celan, o poema, em sua dimensão estética encarnada na linguagem, é a forma em que as possibilidades “são um caminho: encaminham-se para um destino para um lugar aberto, para um tu intocável” (CELAN, 1996, p. 34). Nessa esteira da poesia, Marcos Antonio de Menezes, em Dandy: Uma criação das Metrópoles novecentistas, se acerca de compreender como se constrói a figura do Dândi, como aquele que desnuda e experimenta a vida parisiense em seus ápices de modernidade, no século XIX, sob as letras da escrita de Charles Baudelaire.

Ainda sobre os aspectos da literatura, mas sob a égide dos processos de recepção e circulação, Ana Lorym Soares, em Circulação E Recepção Da Literatura Psicografada A Partir Da Coleção A Vida No Mundo Espiritual (1944-1968), De Chico Xavier, mapeia e interpreta dentro de uma comunidade específica de leitores qual o percurso de significação que os romances psicografados por Chico Xavier e editados pela Federação Espírita Brasileira (FEB), na coleção A vida no mundo espiritual (1944-1968), percorreram historicamente. Isso, a partir das nuances do romance, história e ficção diante de determinado público leitor.

Em O Verdadeiro Casamento Rodriguiano: Apontamentos Sobre Amor E Desejo No Romance O Casamento (1966) De Nelson Rodrigues, Lays da Cruz Capelozi empreende notas analíticas sobre o único romance escrito por Rodrigues, a fim de abordar temas como amor e desejo, a partir da inferência da moral religiosa cristã quanto ao funcionamento do matrimônio. O livro analisado pela autora foi lançado em 1966, e figurava para Nelson Rodrigues como uma defesa ao casamento, mas para os censores tratou-se de uma crítica à família burguesa. Assim, percebe-se que os processos de significações que extrapolam o desejo do autor ao longo do tempo.

O segundo bloco se restringe ao artigo O Clássico E O Moderno: Eisenstein E Orson Welles Na Pena De Paulo Emílio Sales Gomes, de Rafael Morato Zanatto, que trata como as categorias de clássico e moderno são empreendidas pelo crítico e historiador Paulo Emílio Sales Gomes acerca do fenômeno cinematográfico, especialmente a partir de sua profícua atenção às produções estéticas do cineasta russo Serguei Eisenstein e do estadunidense Orson Welles. Nesse ensejo, Zanatto aponta que Paulo Emílio forjou um método próprio, capaz de condensar no âmbito da crítica e da história um procedimento que concilia o estudo da linguagem, do estilo e da expressão social das produções cinematográficas.

O último bloco conta com o texto que encerra o dossiê, Drogas, Festivais E Rock Na Imprensa Brasileira E Portuguesa – 1970 / 1975, de Paulo Gustavo da Encarnação. O autor articula música, eventos musicais – os festivais – e as drogas para compreender como esses elementos se tornaram um fenômeno de escala mundial e, conseguintemente, atraíram a atenção das imprensas brasileira e portuguesa. Dessa maneira, analisa como os veículos de imprensa abordaram, em suas respectivas páginas, a relação entre drogas, festivais e rock no período compreendido entre 1970 a 1975. Não obstante, apresenta a dimensão social, cultural e política dos festivais roqueiros em tempos de ditaduras, tanto em terras brasileiras quanto portuguesas.

Com a publicação do dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas, a albuquerque: revista de história cumpre, mais uma vez, a sua proposta de divulgar os trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo com os mesmos um diálogo de caráter interdisciplinar que configura o propósito do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da UFMS / CPAq que, inclusive, propõe em suas linhas de pesquisa reflexões sobre a estética acerca dos marcadores da diferença, identidade, etc.

Aquidauana, dezembro de 2019

Referências

BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter; SCHÖTTKER, Detlev; BUCK-MORSS, Susan. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

CELAN, Paul. Arte poética: O Meridiano e outros textos. Lisboa: Cotovia, 1996.

DILTHEY, Wilhelm. Vida y poesia. México: Fundo de Cultura Econômica, 1945.

INNERARITY, Daniel. Introdución. In: JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética. Barcelona: Ediciones Paidós, 2002.

MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. As formas e a vida: Estética e ética no jovem Luckács (1910- 1918). São Paulo: Editora UNESP, 2004.

Marcos Antonio de Menezes (UFJ)

Rafael Morato Zanatto (Doutor pela Unesp-Assis)

Robson Pereira da Silva (Doutorando em História pelo PPGHI / UFU)

Organizadores


MENEZES, Marcos Antonio de; ZANATTO, Rafael Morato; SILVA, Robson Pereira da. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.21, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910) – MATTOS (AN)

MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 308. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910). Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019503 – 2019.

Entre experiencias, agencias y resistencias: complejos de interconexiones y la coalición contra el colonialismo en el norte de Mozambique (1842-1910)  Among experiences, agencies, and resistances: the interconnection complex and the coalition against colonialism in northern Mozambique (1842-1910)

O florescimento e a consolidação de uma dinâmica historiografia africanista produzida no Brasil, nos últimos quinze anos, permitiu a ampliação das temáticas, objetos e espaços pesquisados. Uma das nações africanas que mais viu crescer o interesse de estudantes e investigadores brasilei­ros foi justamente a de Moçambique. Sinais dessa vitalidade podem ser encontrados na recente premiação da tese de Gabriela Aparecida dos Santos, vencedora do Prêmio Capes de Teses 2018, que versa sobre a construção e as redes de poder do Reino de Gaza, existente no século XIX entre as atuais fronteiras da África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe e Moçambique. Outros exemplos são os dos sucessivos eventos sobre a África Austral, como o Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, realizado na Unicamp em 2015, ou a II Semana da África: Encontros com Moçambique, ocorrido em 2016, na PUC-Rio, dedicado inteiramente aos estudos sobre Moçambique e sua História. Nessa ocasião, em específico, pude participar da organização  Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a col igação. . .  2 de 9  do evento ao lado das pesquisadoras Carolina Maíra Moraes e Regiane Augusto de Mattos, esta última autora do livro As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910), publicado pela editora Alameda.

Resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2012, na Universidade de São Paulo, sob orientação da professora Leila M. G. Leite Hernandez, o livro é um importante contributo para a História da África. Na obra, as relações políticas africanas no norte de Moçambique, dos diferentes agentes sociais e políticos envolvidos nessas relações e do esforço colonial português no seu desmantelamento, são investigadas a partir da complexidade do conceito de resistência. Nesse sentido, a investigação histórica produzida por Regiane de Mattos emprega esse conceito para refletir sobre as experiências e agências africanas no contexto colonial de promoção e implementação das suas ferramentas de dominação.

A argumentação central presente em As dimensões da resistência em Angoche está no exercício de análise de diferentes grupos sociais africanos como agentes históricos, com objetivos diver­sos, trazendo uma série de questões teóricas e desafios metodológicos que vão sendo encarados na medida em que a autora investiga a existência de universos culturais distintos existentes no norte de Moçambique. Para isso, Regiane Mattos lança mão de uma ampla variedade de fontes, localizadas em coleções documentais no Brasil, em Portugal e em Moçambique. O cruzamento das fontes impressas, como os relatos dos militares e governadores gerais, com àquelas localiza­das, especialmente, no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, e no Arquivo Histórico de Moçambique, em Maputo, demonstram a preocupação da autora em conectar seus alinhamentos teóricos e metodológicos com uma História empiricamente embasada. Existe um trabalho empírico primoroso de recolhimento e de cruzamento de fontes não necessariamente inéditas, mas que são colocadas sob novos caminhos interpretativos. O desafio em trabalhar com uma base documen­tal proveniente de diferentes formatos e objetivos é encarado pela autora com o seu desbravar de textos em variadas línguas, como o português e o árabe-suaíli, salientando, sempre que possível, as múltiplas possibilidades de traduções que os portugueses produziram para os escritos existentes na língua local. Com isso, as vozes africanas que emergem dos papeis do passado são investigadas como contínuos sistemas de conversões de significados, elaborados de próprio punho, traduzidos para o vernáculo português ou existentes nas entrelinhas das palavras escritas pelos portugueses.

A ideia de rede de relações sociais, culturais, econômicas e políticas construída a partir das experiências específicas dos grupos africanos analisados no livro é traduzida pela autora a partir do uso da expressão “complexo de interconexões”. É exatamente a partir dessas interações existentes entre os sultanatos do litoral norte moçambicano, sobretudo o de Angoche, o intenso diálogo desses com sultanatos do Índico, especialmente o de Zanzibar, as chefaturas macua-imbamelas do interior e a presença crescente das forças colonizadoras portuguesas na região, que a autora utiliza para explicar a formação de uma coligação de resistência. Constituída no final do século XIX por um aglomerado plural de chefaturas africanas, que possuíam uma vasta gama de imbricadas relações, organizaram-se com o objetivo concreto de oporem-se à presença colonizadora portuguesa na região.

Ao elencar variados grupos sociais africanos para o centro da interpretação, a autora iden­tifica uma necessária análise das conjunturas sociais, culturais, políticas e econômicas específicas pelas quais foram construídas as alianças entre distintos atores políticos e militares no norte de Moçambique. Essa guinada analítica denota, por um lado, uma constante, por vezes cansativa, mas importante contextualização das formações sócio-políticas africanas. Por outro lado, demonstra   uma capacidade refinada de leitura crítica das entrelinhas de suas variadas fontes, apresentando uma não linearidade da expansão colonial de Portugal sobre o território. O que quero dizer com isso é que Regiane de Mattos consegue, ao longo de sua obra, apresentar a ação colonial como um processo histórico composto por agentes sociais que tiveram que lidar com as debilidades de seus poderes e as rápidas mudanças promovidas pelos conflitos perpetrados pelos portugueses na sua busca por uma efetivação de sua dominação.

Ao promover uma análise das ações desses sujeitos sociais a partir de suas próprias confi­gurações e contextos sociais, culturais e políticos, a noção de resistência que emerge em sua obra se desvincula do exercício de buscar uma linearidade explicativa entre as ações contrárias ao colonialismo. Nesse sentido, o diálogo estabelecido ao longo do livro com a historiografia que se debruçou sobre o sultanato de Angoche está centrada na maneira pela qual essa empregou o conceito de resistência. Chamando a atenção para o pequeno número de pesquisas existentes sobre o norte de Moçambique para o período estudado, Regiane de Mattos apresenta ao leitor um panorama sobre a bibliografia produzida a partir da década de 1970 sobre as respostas africanas nessa região à expansão colonial portuguesa. Diferentemente do posicionamento de Malyn Newit, Nacy Hafkin, René Pélissier, Aurélio Rocha e Liazzat Bonate, autores elencados por Mattos como aqueles que dedicaram especial atenção à temática de sua pesquisa, As dimensões da resistência em Angoche pretende contrapor-se à noção de que a resistência à dominação colonial perpetrada pelas chefaturas islamizadas do norte de Moçambique tiveram como principal e, por vezes, exclusivo objetivo a manutenção de privilégios obtidos com o comércio de escravizados.

Segundo Mattos, essa bibliografia trouxe importantes contributos. Porém, ao problematizar a coligação estabelecida pelos agentes africanos contra os intuitos externos europeus de controle a partir da primazia econômica do desejo de continuidade da produção baseada na escravatura, teriam estabelecido análises anacrônicas ou moralizantes. Pélissier, por exemplo, os interesses econômicos da continuação do comércio de escravos foram o principal fator unificador na região, pois seria inexistente qualquer “consciência étnica”, sobretudo entre os macuas. Numa linha semelhante, Aurélio Rocha diminui a importância da presença do Islã como forma de estabelecimento de laços que fossem para além das elites e, consequentemente, capazes de produzir redes amplas de interesses. Ao mesmo tempo, pressupõe uma correlação causal de efeito entre as razões das revol­tas do sultanato de Angoche contra os portugueses e as ações europeias contrárias ao tráfico de escravos e, com isso, a impossibilidade do uso do termo resistência. Afinal, no sentido empregado por Rocha e Nacy Hafkin, como o mesmo conceito usado para explicar as lutas nacionalistas de oposição ao sistema colonial e que denotava um sentido de libertação poderia ser empregado para compreender ações africanas “até mesmo no sentido contrário ao do nacionalismo”1?

Questionando a existência de conexões lineares entre as ações africanas, de meados do século XIX e início do século XX, contrárias ao colonialismo e as lutas nacionalistas dos anos 1960, consequentemente posicionando-se nos debates sobre o emprego da noção de resistências na histo­riografia africanista, a autora lança novas luzes aos estudos sobre o norte de Moçambique durante o contexto de rápido desmantelamento das sociedades existentes naquela região. A multiplicidade de fontes empregadas, não necessariamente inéditas, é encarada de maneira singular a partir de procedimentos teóricos e metodológicos que lançam novas luzes sobre a formação da coligação de resistência como resultado da própria constituição e fortalecimento do sultanato de Angoche ao longo do século XIX. Regiane de Mattos presenteia-nos com uma consistente defesa da vitalidade 4 de 9  do conceito de resistência para interpretar as ações africanas, sem reduzi-las às dicotomias entre aqueles que colaboraram ou combateram a presença colonial.

Mattos estabelece um diálogo privilegiado com obras clássicas da historiografia africanista especializadas na temática da resistência, como as de Terence Ranger, Allen Isaacman e Barbara Isaacman, e com outras mais recentes que a problematizam, como os questionamentos de Frederick Cooper sobre a vitalidade do conceito ou o repensar da noção de insurgência apresentado na cole­tânea organizada por Jon Abbink, Mirjam Bruijn e Klass van Walraven. Seu intuito, com isso, é o de lançar seu olhar sobre as fontes e a bibliografia especializada para realizar “uma abordagem mais matizada da resistência” (MATTOS, 2015, p. 26). Aproximando-se de uma perspectiva recorrente do uso do conceito pela historiografia brasileira que dedicou especial atenção à história da escravi­dão, do negro e do pós-abolição nas Américas e no Atlântico, resistência é compreendida no livro como “o conjunto de ações, sem elas individuais ou organizadas em nome de diferentes grupos, elitistas ou não, não necessariamente incluindo violência física, como respostas às interferências políticas, econômicas e/ou culturais impostas por agentes externos e consideradas, de alguma maneira, ilegítimas pelos indivíduos que a elas foram submetidos” (MATTOS, 2015, p. 26).

Infelizmente, a autora não aponta para a íntima vinculação existente entre a historiografia sobre o passado africano produzida no Brasil e a noção que emprega ao longo do seu livro sobre a resistência, relação vital para a sua capacidade analítica singular das dinâmicas redes entre os grupos sociais africanos do norte de Moçambique. Dada a centralidade do conceito para a obra e a trajetória da autora, teria sido importante que a Regiane de Mattos indicasse como o crescimento significativo da historiografia africanista produzida no Brasil no século XXI e o seu uso relativa­mente distinto do conceito de resistência em comparação às perspectivas africanistas desenvolvidas em cenários acadêmicos africanos ou europeus deve-se, dentre muitos fatores externos ao meio acadêmico, à proliferação das investigações de trabalhos pioneiros sobre essas temáticas no meio historiográfico brasileiro dos anos 1980 e 1990. As transformações pelas quais os trabalhos de historiadoras e historiadores passaram nesse contexto promoveram uma interpretação de classes, grupos ou indivíduos a partir de perspectivas da História Social que privilegiavam suas perspec­tivas, experiências e ações, em detrimento de análises estruturantes.  Muitos desses trabalhos foram inspirados pelas variadas perspectivas da micro-história ita­liana,2 pelas obras de E. P. Thompson,3 e por uma bibliografia norte-americana sobre as experiên­cias afro-americanas.4 O balanço historiográfico lançado em 1977 por Allen Isaacman e Barbara Isaacman, Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920, citado por Mattos como crítico ao emprego do termo resistência, estabelece paralelos que poderiam ser interessantes de serem explorados entre a virada historiográfica brasileira citada anteriormente. Ao analisar as complexas abordagens existentes no campo da História da África a respeito do tema da resistência africana ao colonialismo europeu, Allen e Barbara Issacman apontam para uma percepção sobre o conceito de resistência para analisar as ações diárias de insatisfação dos africanos durante a vigência da dominação colonial europeia, como cabível de ser influenciada justamente por pesquisas reali­zadas nos anos 1970 sobre as ações escravas nos EUA. Citando Eugene Genovese e o livro A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, livro lançado em 1974 e de grande alcance no Brasil, comparam as ações dos africanos colonizados com as dos escravizados na América:

Like the slaves in the American South, many oppressed workers covertly retaliated against the colonial economic system. Because both groups lacked any significant power, direct 5 de 9  confrontation was not often a viable strategy. Instead, the African peasants and workers expressed their hostility through tax evasion, work slowdowns, and destruction of European property. The dominant European population, as in the United States, perceived these forms of day-to-day resistance as prima facie evidence of the docility and ignorance of their subor­dinates rather than as expressions of discontent.5

No entanto, o que parece ser relevante para a crítica bibliográfica do conceito de resistência para a análise das ações africanas no passado colonial está relacionado aos processos de construção dos Estados independentes no período pós-colonial. As fundamentais críticas ao eurocentrismo elaborada nos contextos das descolonizações verteram para análises que reduziam as possibilida­des dos africanos de participarem ativamente da confecção de suas histórias a partir de zonas de identificações contextuais que fossem variantes ao longo do tempo e do espaço. Ao mesmo tempo, muitos dos grupos que assumiram para si os desafios de promoção dos Estados africanos após suas independências justificaram posturas autoritárias a partir de narrativas que usavam um suposto passado de resistência ao colonialismo como forma de corroboração das privações de liberdade contemporâneas e formas de repressões a grupos sociais questionadores dos rumos que estavam sendo tomados no período pós-colonial.6

Nesse sentido, diferentemente da historiografia brasileira, a historiografia africanista, sobre­tudo anglófona, dos anos 1990, foi marcada por uma crítica à validade do termo resistência como conceito e como categoria empírica de análise. Seu emprego em interpretações que reduziam o colonialismo a um sistema de dominação promovedor de uma sociedade binária dividida exclu­sivamente entre colonizados e colonizadores ou como limitador das motivações e possibilidades das ações africanas para com as relações de poder instituídas, renegaram-no a uma visão de sua suposta incapacidade explicativa.

Não cabe aqui produzir uma interpretação sobre o itinerário ou a genealogia do emprego do conceito de resistência. Quero apenas destacar que as leituras distintas e, porém, tangenciais, sobre o uso e a validade do conceito são, em determinados círculos acadêmicos, entendidas como um impeditivo de sua aplicabilidade. O consenso atual parece estar na necessidade de evitar análises que retratem de forma monolítica aqueles que dominaram e, principalmente, aqueles que foram dominados. Isso não quer dizer que inexiste um valor da resistência como conceito ou como fenô­meno histórico. Como conceito e como prática, analisar a ação dos “de baixo” a partir da ideia de resistência continua sendo fundamental para promover interessantes e inovadoras análises das experiências de sujeitos, aos quais lhes eram negados terem vozes durante suas vidas, ao mesmo tempo em que movimenta pautas contemporâneas de movimentos em prol de igualdades e da dignidade humana. Seguindo essa perspectiva, Regiane de Mattos privilegia a ação africana a partir de suas interfaces relacionais baseadas em laços de lealdade, parentesco, doações de terras, pelo comércio e pela religião islâmica como pontos focais de sua análise. É na totalidade dessas teias de relações que a autora constitui sua noção de complexo de interconexões. Consequentemente, aproxima-se de uma perspectiva de uma história total sobre as interações entre sociedades africanas e produções de regimes coloniais que orientam sua visão na leitura das fontes selecionadas. Como a autora recorrentemente chama atenção na sua obra, a procura por

[…] elementos de caráter nacionalista na coligação de resistência no norte de Moçambique pode ter provocado uma simplificação da análise dos fatores desencadeadores da resistência 6 de 9  e das formas de mobilização das diferentes sociedades envolvidas, ressaltando-se apenas o caráter econômico dos objetivos dessa coligação. Também pode ter influenciado um tipo de análise mais restrita, que não considera a dinâmica da resistência em seus diversos aspectos e dimensões (MATTOS, 2015, p. 30).

Ao reorientar o olhar analítico sobre a coligação da resistência, Regiane de Mattos distancia- -se das interpretações historiográficas predominantes que a compreendem por meio da primazia econômica como justificativa da configuração dessa associação para promover a oposição política e militar ao colonialismo português. A autora não deixa de lado a importância, ao longo do século XIX, do comércio de escravos para a formação e expansão do poder de Angoche. Porém, graças a sua abordagem teórico-metodológica, identifica nesse aspecto mercantil uma das muitas justifi­cativas para a união das elites locais contra o avançar colonial português e não àquela primordial. Sua leitura detalhada dos documentos, combinada com os campos bibliográficos que cita, também faz com que não seja promovida uma interpretação que entenda a resistência constituída no norte de Moçambique a presença colonial como cabível de uma avaliação moralizante que precisa ser feita sobre uma possível natureza menos nobre existente na coligação. Evitando embaraços con­temporâneos de um passado indigno de ser definido como resistente ao colonialismo, a escravidão e o comércio de escravos são entendidos como elementos constitutivos daquela sociedade que se encontravam em rápida transformação.  Como resposta à prerrogativa econômica de manutenção da escravidão e do comércio de escravos que direcionou as interpretações existentes, o que temos em As dimensões da resistência em Angoche é o estudo primoroso da complexidade das relações sociais e políticas que vão para além do desejo de manutenção, pelos membros das elites africanas, dessa forma de exploração humana. Regiane de Mattos consegue, sobretudo nos três primeiros capítulos de sua obra, quando mergulha sua análise nas relações familiares, de poder e religiosas, apontar para a diversidade de fatores que sustentaram o apoio entre as sociedades macuas do interior e suaílis do litoral.

A necessidade de compreender as dinâmicas específicas dos contextos históricos advogada por Regiane de Mattos pode ser percebida, por exemplo, no seu exame do papel da etnia e de sua incapacidade explicativa das experiências e ações dos africanos do norte de Moçambique. A cate­gorização dessas populações em grupos étnicos estanques, promovida pelo colonialismo, é pouco eficaz para compreendermos as dinâmicas interconexões que terminaram por promover respostas individuais ao colonialismo ou à organização supra étnica da coligação de resistência. A autora identifica os etnômios descritos nas fontes portuguesas como produtos da modernidade. Ou seja, como fenômenos constitutivos e constituintes do final do século XIX e início do XX precisam ser analisados a partir de uma perspectiva histórica não essencializada. Nesse sentido, a construção das características dos macuas e das sociedades suaílis tem sido percebida como a construção de realidades móveis contextuais. Por um lado, o exercício interpretativo existente em As dimensões da resistência em Angoche desconstrói historicamente o objeto étnico promovido pelo poder colonial que, desconhecendo e negando a história, apressado em classificar, nomear e hierarquizar para estabelecer a distinção e a justificativa da dominação, construiu, promoveu e engessou etiquetas étnicas. Por outro lado, de maneira semelhante ao esforço em afastar-se das noções de resistência existentes no período das independências nacionais, a obra de Mattos termina por contrapor-se à apropriação dos clichês da etnologia colonial que foram acomodados pelos Estados independentes africanos, muitas vezes como forma de justificar novas práticas de dominação. Ao historicizar as 7 de 9  etnias do norte de Moçambique, especialmente a macua, Mattos não nega a validade da categoria etnia ou dos etnômios para analisar a maneira pela qual os sujeitos sociais africanos organizavam suas vidas antes e durante a colonização. O que a autora faz é uma abordagem que privilegia uma interpretação das etnias como capaz de auxiliarmos na reflexão sobre as sociedades africanas como inter-relacionais, compostas por sobreposições e entrecruzamentos.

Ao destrinchar a impossibilidade de compreensão plena da resistência em Angoche e no norte de Moçambique como parte de planos para a perpetuação do comércio de escravos e de solidariedades étnicas, outros aspectos tornam-se relevantes para constituírem o que Regiane de Mattos chama de “dimensões da resistência”. A ideia de dimensões presente no livro aparece no sentido de variados fatores que convergiam para uma posição contrária à presença portuguesa, como as relações familiares, sobretudo as baseadas na matrilinearidade, as doações de terras que consolidavam alianças estratégicas e o Islã como aglutinador de práticas e perspectivas. A ação de resistir, portanto, deve ser entendida como uma defesa de uma autonomia política, principalmente no que tange às linhas sucessórias de poder, e, comercial, por meio do controle das trocas econô­micas contra a crescente interferência colonial portuguesa.

Unir-se contra a ameaça da perda de autonomia política e econômica estaria baseado numa leitura africana das conjunturas futuras que se desenhavam naquele presente conflituoso. Ou seja, as ações dos sujeitos e grupos sociais são compreendidas em As dimensões da resistência em Angoche dentro da complexidade do jogo de forças quando da construção do colonialismo português na região. É exatamente ao explorar o processo de edificação das relações de parentesco, da expansão do Islã na região pelas elites e pelas bases daquelas sociedades, das trocas comerciais, ou seja, de toda uma vasta gama de fios que se entrecruzavam para compor uma dinâmica social, operacionalizadas de acordo com as demandas das circunstâncias, que Regiane de Mattos consegue caminhar na contramão da historiografia sobre o norte de Moçambique para esse período histórico. O que a autora consegue evidenciar em sua obra é que a coligação de resistência foi feita com base em um passado de trocas que solidificaram relações que foram acionadas na medida em que o colonia­lismo se projetou como um sistema de dominação. Sua análise da coligação da resistência como uma luta pela preservação daquilo que se encontrava ameaçado pelos “mecanismos de exploração impostos pelo governo português, como o controle do comércio e da produção de gêneros agrícolas e de exportação, a cobrança de impostos e o trabalho compulsório” (MATTOS, 2015, p. 269), características primordiais da dominação colonial portuguesa, é solidamente percebida como base para as redes de lealdade construídas ao longo do século XIX, que culminaram na possibilidade de uma mobilização e formação coletiva contra os avanços dominadores portugueses.  No entanto, uma característica escorregadia existente no conceito de resistência, em deter­minados momentos, escapa da análise existente em As dimensões da resistência em Angoche. As imbricadas relações políticas que ocasionavam conflitos entre as chefaturas africanas, nesse caso, em específico contra a expansão do poderio do sultanato de Angoche, apontam para as diversas direções que o conceito pode trazer consigo. Como a própria autora assinala, a contenda entre a pia-mwene Mazia e o xeque da Quitangonha é emblemática dos conflitos na região. A primeira foi acusada de mandar matar o segundo, em 1875, pois este estaria lhe devendo o pagamento da venda de escravos e impedindo a realização desse comércio. Para a autora, a atitude da pia-mwene deve ser lida pelo prisma da resistência à interferência portuguesa sobre os processos sucessórios de poder e como símbolo da luta pela manutenção da autonomia política. Essa é uma interpretação 8 de 9  sustentada com maestria ao longo do livro, já que o mando do assassinato também teria ocorrido, como é argumentado de maneira sólida, porque o xeque estava buscando ampliar seu poder por meio do apoio dos portugueses. Esse apoio não é compreendido como uma força totalizante capaz de controlar na sua plenitude todas as possibilidades de ações africanas existentes naquele cenário político ou como um plano predeterminado pelo poder metropolitano português que foi sendo implementado, na medida em que a dominação europeia na região superou as resistências locais. Como é apresentado ao longo do livro, os portugueses no norte de Moçambique, pelo menos até a última quinzena do século XIX, possuíam diminuta capacidade de implantar qualquer projeto efetivo de dominação, recorrendo a arriscadas parcerias que desestabilizavam as linhas sucessórias predominantes. Isso não quer dizer que os portugueses atuassem apenas como mais uma força dentro daquele contexto político. A ação portuguesa, em prol do que veio a se constituir numa dominação colonial a partir do século XX, é compreendida e explicitada como um processo que, como tal, precisou lidar com encontros e desencontros decorrentes de uma aplicabilidade prática. No entanto, o que cabe questionar é o porquê de o conceito de resistência ser apenas empregado na relação ou entre as chefias ou populações africanas e o poder colonial português. Afinal, se a agência africana é elevada para o centro da análise, não poderíamos supor que o xeque, que viria a ser assassinado, estava usando o apoio português para resistir ao poder reinante materializado na figura da pia-mwene, que havia sido consolidado pelas relações matrilineares de parentesco entre macuas do interior e suaílis do litoral?

As dimensões da resistência em Angoche é uma obra que solidifica o trabalho de uma pes­quisadora rigorosa, com hipóteses inovadoras e que acrescenta importantes contributos para o debate sobre o conceito de resistência no contexto de dominação colonial europeia na África. Uma característica importante que deve ser salientada e que demonstra a vitalidade da obra de Regiane de Mattos se encontra nas portas que a mesma abre para pesquisas futuras. Ao criticar a bibliografia que entende a resistência do sultanato ao colonialismo como uma “resistência opres­sora” que deve ser renegada por não visar uma ideia específica de liberdade, como a existente na resistência nacionalista da segunda metade do século XX, a autora permite extrapolarmos suas interpretações para buscarmos a compreensão de como outros grupos sociais daquelas sociedades africanas, especialmente grupos excluídos ou marginalizados que não chegaram a ser analisados, como, por exemplo, os escravizados, interpretaram, experimentaram, agiram e engajaram-se no contexto de transformação das estruturas sociais do mundo que viviam, levadas a cabo pelas (in)gerências promovidas pela implementação do colonialismo português na região.

O livro é também o pontapé dado por Regiane de Mattos para o enfrentamento de hipóte­ses históricas que poderão ser estudadas em um futuro que espero não esteja muito distante. A própria autora possui um papel pioneiro e central para que esse desejo se concretize o mais rápido possível, já que, conjuntamente com o seu livro, fomos premiados com a disponibilização online do fantástico Acervo Digital Suaíli,7 um trabalho coletivo de parceria entre Brasil e Moçambique que disponibiliza fontes e bibliografias sobre a costa oriental africana. Projetos como esse tornam possível a continuidade de uma rica produção historiográfica brasileira sobre o passado africano que tomou forma nos últimos quinze anos.9 de 9

Notas  

1 ROCHA, Aurélio. O caso dos suaílis, 1850-1913. In: REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE ÁFRICA: RELAÇÃO EUROPA-ÁFRICA NO 3º QUARTEL DO SÉCULO XIX, 1., 1989, Lisboa. Anais… Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1989. p. 606 apud MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 23.

2 Um balanço sobre a micro-história italiana pode ser encontrado em LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

3 É fundamental perceber a influência que E. P. Thompson promoveu em variados campos historiográficos ao criticar as interpretações das sociedades em categorias derivadas de modelos estanques que não levavam em consideração contextos específicos a partir das maneiras pelas quais os próprios sujeitos históricos interpretaram e agiram de acordo com suas experiências. Ver: THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: THOMPSON, E. P. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. Ou, THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981. p. 17.

4 Dentre muitas obras influenciadoras dessas perspectivas para o meio historiográfico brasileiro, ver: GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; FONER, Eric. O significado da liverdade. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 9-36, 1988; LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas Atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 7-46, 1983; LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

5 ISAACMAN, Allen; ISAACMAN, Barbara. Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920. The International Journal of African Studies, v. 10, n. 1, p. 48, 1977.

6 Para uma reflexão sistemática sobre a história da produção historiográfica sobre a África e uma análise crítica da relação entre os movimentos nacionalistas, a construção dos Estados independentes e a produção do passado africano, ver: MILLER, Joseph C. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v. 104, n. 1, p. 1-32, fev. 1999; RANGER, Terence. Nationalist Historiography, Patriotic History and the History of the Nation: the struggle over the past in Zimbabwe. Journal of Southern African Studies, v. 30, n. 2, p. 215-234, jun. 2004.

7 O projeto pode ser acessado pelo seguinte link: http://acervodigitalsuaili.com.br.

Matheus Serva Pereira – Doutor em História e Pós-Doutorando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected].

Guide to Byzantine Historical Writing | L. Neville

Leonora Neville2 (2004; 2012; 2016) é uma bizantinista norte-americana já conhecida por trabalhos anteriores dedicados à sociedade provincial bizantina e a dois historiadores do período intermediário: a princesa Ana Comnena (1083-1153) e seu esposo, o kaisar Nicéforo Briênio (1062-1137). Sendo um nome cada vez mais presente no campo, Neville vem realizando empreendimentos notáveis. O recente Guide to Byzantine Historical Writing é um deles e oferece uma importante contribuição por servir como um guia prático de referência à historiografia bizantina e a tudo de essencial relacionado a ela. O ponto forte da obra, preparada por Neville com o auxílio dos estudantes de pós-graduação David Harrisville, Irina Tamarkina e Charlotte Whatley, é seu grande apanhado bibliográfico multilíngue.

Segundo Neville, seu guia “[…] visa tornar as riquezas das histórias medievais escritas em grego facilmente acessíveis a todos que possam estar interessados” (NEVILLE, 2018, p. 1, tradução nossa). Embora a autora seja modesta ao dizer que seu livro “[…] não contém nenhuma informação que um bizantinista diligente não pudesse rastrear com o tempo […]” (NEVILLE, 2018, p. 1, tradução nossa), o mérito desse seu trabalho reside justamente em seu potencial de servir como um guia prático e acessível a essas fontes, especialmente quando consideramos que o Império Bizantino não costuma ser a primeira escolha daqueles que adentram as pesquisas sobre o período medieval, seja pelas especificidades necessárias para seu estudo, que são distintas daquelas para o Ocidente latino, seja por questões de outra natureza. A obra de Neville pode assim fomentar o interesse de públicos acadêmicos não tradicionais, como o brasileiro, onde esses estudos ainda são bastante escassos e periféricos, facilitando a busca por fontes primárias e proporcionando uma base bibliográfica como ponto de partida.

Embora não há de se negar que seu público seja os bizantinistas, aqueles que se faz questão de dizer, um gesto de boas-vindas aos classicistas, aos medievalistas e aos estudantes de modo geral. Com certeza, além de facilitar a pesquisa daqueles que já atuam no campo e dos que estão começando, esse livro tem o potencial de sanar a curiosidade de classicistas interessados pela produção historiográfica em língua grega após a Antiguidade e de ajudar os demais medievalistas, especialmente aqueles com pesquisas voltadas para os contatos interculturais no mediterrâneo medieval, onde é impossível ignorar a presença bizantina. debruçam sobre as fontes primárias dessa civilização, o livro também é, como Neville

O guia de fontes de Neville abarca exclusivamente textos historiográficos escritos entre 600 e 1490 d.C. Esse recorte singular pula o período inicial da periodização tradicional, uma vez que a autora prefere não disputar o chamado de Early Byzantium com o consagrado Late Antiquity, e estende a produção historiográfica bizantina para além da queda formal do império em 1453. Neville justifica que outras obras de natureza similar já abarcaram o período inicial ao lidarem com fontes tardo-antigas e que a queda de Constantinopla é somente um dos eventos que gradualmente alteraram o horizonte intelectual e cultural daquele mundo. O ponto realmente positivo desse recorte foi ter considerado autores que escreveram naquele mundo pós-bizantino, uma vez que eles testemunharam o crepúsculo final do Império Romano e a ascensão do poder otomano, um processo que a longo prazo causou profundas transformações na região. Por ironia do destino, considera-se que a historiografia medieval em língua grega acaba com o ateniense Laônico Calcondilas (c. 1430-1470), que escreveu dentro dos moldes daquele considerado o primeiro historiador grego, Heródoto de Halicarnasso (c. 484-c. 425 a.C.).

O capítulo introdutório apresenta algumas questões essenciais, como o debate em torno das terminologias história e crônica, a natureza do ofício do historiador em Bizâncio, a questão da imitação dos clássicos e da inovação, o sistema de datação presente nas fontes, a terminologia classicizante empregada pelos autores, a língua grega medieval e seus registros e as problemáticas transliterações empregadas pelos bizantinistas. Além disso, a autora trata sobre as principais publicações e séries de fontes e explica o que ela quer dizer por manuscrito, texto e edição ao longo do livro. Por fim, é oferecida uma pequena, mas importante bibliografia para aprofundamento, seguida por uma geral e mais abrangente.

Além da parte dedicada aos agradecimentos, da introdução e dos apêndices finais, o guia conta ao todo com cinquenta e dois capítulos que levam os nomes dos historiadores ou das obras cujos autores desconhecemos, de Teofilato Simocata (séc. VII) ao já mencionado Laônico Calcondilas (séc. XV). Os capítulos recebem geralmente as seguintes entradas: uma breve biografia do autor com alguma descrição de seus trabalhos historiográficos, uma menção aos manuscritos que chegaram até nós (ou a indicação de uma publicação que adentre isso), uma lista de edições modernas disponíveis, uma breve história de sua publicação, uma lista de estudos fundamentais para se ter como ponto de partida, uma lista das traduções realizadas até o momento e, por fim, uma lista bibliográfica mais vasta com temas relacionados ao autor e sua obra. Após esses capítulos, seguem-se dois apêndices: um gráfico indicando o período de tempo coberto pelas produções e outro indicando o período de vida dos autores.

Neville afirma tomar uma abordagem mais cética (embora isso não pareça diferente de dizer neutra) em relação às reconstruções das fontes e da vida dos autores. Ela demarca, assim, a primeira diferença de seu trabalho em relação ao de Warren Treadgold (2007; 2013), autor de duas obras sobre os historiadores bizantinos do período inicial e intermediário (a terceira, sobre o período tardio, está por vir) e mais recheada de suposições e hipóteses. Em nossa opinião, embora seja compreensível os motivos que podem ter levado a autora a seguir por esse caminho, uma vez que tomar parte em debates é adentrar em possíveis flutuações acadêmicas que podem prejudicar a obra como um guia de referência, datando-a a médio prazo, esse acaba sendo um ponto um tanto obscuro do livro, primeiro pela autora não mencionar essas diferentes interpretações (ela poderia tê-lo feito sem que as endossasse), privando seu leitor de algo fundamental; segundo por não ser um critério muito compreensível (ao menos da forma como colocada) para as posições que ela toma ao longo dos capítulos do livro.

Neville também demarca a diferença essencial de seu livro para os de Treadgold a partir do que está sendo enfocado: enquanto seu trabalho está preocupado com o texto, o de seu colega norte-americano está preocupado com os autores. Para a autora, como na maioria dos casos as informações que sabemos sobre os autores vem de seus próprios textos, deveríamos focar nossa análise no texto, dando pouca ênfase à biografia como determinante para entender a obra. Para Neville, abordar o texto ao invés dos indivíduos está na ordem do dia, como propuseram nas últimas décadas os teóricos pós-modernos da linguistic turn. Embora ela possa ter razão, os exemplos dados para justificar isso são no mínimo problemáticos.

A discussão se devemos confiar em Jorge, o monge e pecador (séc. IX) é pouco relevante; Neville acha que por ter se chamado pecador, uma notória prática monástica de humildade, coisa não enfatizada pela autora, esse autor estava provavelmente mentindo com o propósito de justificar o conteúdo moralizante de sua obra, pois, nesse contexto, chamar-se humilde seria um ato de orgulho. Assim, para Neville, esse não poderia ser um dado biográfico para se ter como ponto de partida, fazendo mais sentido adentrar diretamente no estudo do texto pelo texto. Ela continua com outro exemplo: ao dizer que escreveu em reclusão, João Zonaras (séc. XII) poderia estar se utilizando de um truque retórico para aparentar que escreveu sua obra longe de forças que poderiam influenciá-lo em sua escrita. Neville considera que os historiadores perderam tempo tentando encaixar esse dado em sua biografia e questiona se Zonaras estava recluso da mesma forma que Jorge era pecador. Nesse exemplo, ela aparenta estar sendo puramente especulativa e nada justifica o porquê não considerar realmente a hipótese da reclusão. Além disso, o exemplo de Jorge não é exatamente comparável ao de Zonaras se considerarmos o costume monástico. O problema aqui talvez não seja sua perspectiva teórica, mas uma má seleção de exemplos para sustentá-la.

Embora esse não seja o foco de seu guia, podemos contextualizar a produção intelectual de Neville entre autores que estão resgatando a ideia de uma romanidade bizantina, acabando assim com a separação imposta por historiadores no passado entre Roma e Bizâncio.3 Isso fica evidente quando a autora afirma que “A história bizantina é a história do Império Romano na Idade Média” (NEVILLE, 2018, p. 5, tradução nossa). Como tem sido apontado, a imposição dessa separação tem raízes muito antigas no universo intelectual e cultural ocidental, regressando a finais do século VIII e às disputas políticas e identitárias entre bizantinos e ocidentais, posteriormente reforçada pela especialização acadêmica e a invenção de termos técnicos e delimitações artificiais como Império Bizantino e Bizâncio.4 Neville se coloca nessa discussão ao apontar a necessidade de levarmos a sério a autoidentificação dos bizantinos enquanto romanos, coisa que os estudiosos a todo momento ignoraram, preferindo desenvolver explicações sobre quem eles de fato eram por trás do que diziam. “Em nenhum outro campo os historiadores rotineiramente tratam os sujeitos de sua investigação como tendo uma compreensão incorreta de quem eles eram” (NEVILLE, 2018, p. 5, tradução nossa).

Os comentários oferecidos por Neville sobre essa questão não são um aspecto superficial de seu trabalho, mas funcionam estrategicamente, pela natureza de seu livro, como um manifesto aos pesquisadores e àqueles adentrando o campo dos Estudos Bizantinos para que não ignorem esse duradouro problema. Neville alavanca algumas questões que ela acredita que precisam ser superadas para que enxerguemos definitivamente isso, como a importância exagerada dada à ascensão do cristianismo como o divisor de águas central na história da humanidade, o que teria feito com que os estudiosos entendessem que o Império Romano havia deixado de ser o verdadeiro existia na mente de seus habitantes, e os resíduos das narrativas da Renascença e do Iluminismo, que propunham uma total ruptura entre a Antiguidade e uma Idade das Trevas. Como afirma a autora, “Resistir aos efeitos posteriores desses paradigmas permite que os estudiosos levem a sério a compreensão e a autoapresentação dos cidadãos do Império Romano medieval (NEVILLE, 2018, p. 6, tradução nossa). Império Romano quando se tornou cristão, criando uma ruptura ilusória que não

Acreditamos que o bizantinista e o estudante diligentes pecarão gravemente se não tiverem esse guia ao lado de outras obras de referência já consagradas. Ademais, tendo em mente a escassez de pesquisas sobre essa civilização romana oriental, helefóna e cristã ortodoxa no Brasil, algo que se reflete também na inexistência de traduções, desde as mais básicas a trabalhos importantes publicadas nos últimos anos, consideramos que esse trabalho pode oferecer uma aproximação às fontes historiográficas bizantinas e a um grande apanhado de referências que trarão aos pesquisadores mais confiança para darem o primeiro passo na preparação de seus projetos, ajudando, portanto, a superar parte do que poderia ser uma dificuldade inicial.

Notas

2. Leonora Neville é atualmente John W. and Jeanne M. Rowe Professor of Byzantine History e Vilas Distin-guished Achievement Professor na University of Wincosin-Madison, nos Estados Unidos.

3. Cf., por exemplo, KALDELLIS, 2007, 2019 (o principal revisionista quanto a essa questão); PAGE, 2008; STOURAITIS, 2014; 2017. Diversos autores tem partido dessa perspectiva, incluindo NEVILLE, 2012. As implicâncias de se assumir uma identidade romana para os “bizantinos” e as dimensões da mesma ainda é uma questão em debate, envolven-do não somente perspectivas teóricas, mas interpretações distintas.

4. Para uma boa exposição quanto a esse problema, cf. KALDELLIS, 2019, p. 3-37.

Referências

Obra completa

KALDELLIS, A. Hellenism in Byzantium: The Transformations of Greek Identity and the Reception of the Classical Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

______. Romanland: Ethnicity and Empire in Byzantium. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2019.

TREADGOLD, W. The Early Byzantine Historians. New York: Palgrave Macmillan, 2007.

______. The Middle Byzantine Historians. New York: Palgrave Macmillan, 2013.

NEVILLE, L. Authority in Byzantine Provincial Society, 950–1100. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

______. Anna Komnene: The Life and Work of a Medieval Historian. Oxford: Oxford University Press, 2016.

______. Guide to Byzantine Historical Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.

______. Heroes and Romans in Twelfth-Century Byzantium: The Material for History of Nikephoros Bryennios. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

PAGE, G. Being Byzantine: Greek Identity Before the Ottomans. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

Artigos

STOURAITIS, I. Roman identity in Byzantium: a critical approach. Byzantinische Zeitschrift, [s.l.], v. 107, n. 1, p. 175-220, 2014.

______. Reinventing Roman Ethnicity in High and Late Medieval Byzantium. Medieval Worlds, Vienna, v. 5, p. 70-94, 2017.

Guilherme Welte Bernardo –

Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (PPGH/Unifesp), onde realiza pesquisa intitulada “Entre a integração e a barbarização: romanos e ocidentais na historiogra-fia bizantina dos séculos XI e XII” sob orientação do Prof. Dr. Fabiano Fernandes. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos Bizantinos e Conexões Mediterrânicas (NEB) e ao Laboratório de Estudos Medievais (Leme/Unifesp). E-mail para contato: [email protected].


NEVILLE, L. Guide to Byzantine Historical Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. Resenha de: BERNARDO, Guilherme Welte. A escrita da História numa outra Idade Média: Descobrindo a Historiografia Bizantina (600-1490). Revista Ágora. Vitória, n.30, p.210-215, 2019. Acessar publicação original [IF].

Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos | Adriana P. Campos, Kátia S. da Motta, Geisa L. Ribeiro e Karulliny S. Siqueira

Organizado por Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro, Karulliny Silverol Siqueira e Kátia Sausen da Motta, a obra “Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos”1 traz consigo um relevante debate acerca da multiplicidade de relações existentes no Brasil oitocentista. A contribuição de dez autores para a realização do livro, objetivou diversificar a história política do Império, por meio da inclusão de províncias e atores políticos variados. Assim, trazendo novo sentido ao contexto imperial. O livro é resultado de debates entre pesquisadores que participaram do III Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO), ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2018.

Ao nos debruçarmos sobre a obra, percebemos a multiplicidade de relações políticas contidas no Brasil Império que formavam um todo na trajetória contextual.

Retirar a lupa somente dos denominados “grandes acontecimentos” e dos principais atores políticos comumente ressaltados na historiografia é também traçar uma história política diversa em estrutura e significados. Neste sentido, a obra analisada percorre entre províncias distintas e personagens políticos ressignificados, promovendo assim, diversas participações para os acontecimentos do período, para além da Corte ou dos “grandes homens”.

Em primeiro momento, a obra contempla a temática “Biografias e trajetórias políticas” expressando a história de personagens políticos do Império que transcendem a historiografia tradicional. Vale ressaltar, a necessidade de colocar em evidência novos personagens políticos, enriquecendo o debate historiográfico com a criação de novos esquemas a serem analisados. Assim, Cecília Siqueira Cordeiro traz a análise do personagem político Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, propondo um novo olhar sob as decisões políticas do liberal que é comumente recordado pela historiografia como o defensor do Brasil na causa da Independência. Rememorando, através da análise de um opúsculo, que num primeiro momento Antônio Carlos defendeu a união de Brasil e Portugal no contexto da emancipação, evidenciando uma mudança de comportamento da figura em momento posterior. Deste modo, a autora não encontra um desarranjo na trajetória política do personagem, todavia, um indivíduo alinhado a cultura política da sua época. Ademais, Cecília Cordeiro traça a trajetória historiográfica da figura deste Andrada, e a timidez de sua relevância diante de seus irmãos José Bonifácio e Martim Francisco.

A autora Adriana Pereira Campos, conduz em sua pesquisa a trajetória política de Marcelino Duarte, um padre, redator e natural da Província do Espírito Santo que foi uma das vozes exaltadas que entoaram na Corte. A análise da historiadora revela a carreira de um padre exaltado cujo pensamento político se distinguia da cultura política de sua província natal. Assim, o estudo de Campos contribui para o debate acerca do pluralismo de opiniões que circulavam nas províncias do Império e a relação que esses indivíduos possuíam com o Rio de Janeiro.

Na segunda parte da obra, intitulada “Disputas políticas e partidárias”, contemplam-se as efervescências política na Corte e nas províncias. Logo, Rafael Cupello Peixoto, debruçado sob o tema da construção da identidade nacional brasileira, investiga a Carta de Barbacena, representada no passado como símbolo da nacionalidade brasileira, ou seu valor profético acerca do resultado da conjuntura política do Primeiro Reinado.

Indicando aspectos do jogo político no entorno da Corte Palaciana de Pedro I, a análise da fonte indicou ao autor duas tendências da direita conservadora dentro dos áulicos: os tradicionalistas e os conservadores. Ademais, Peixoto expõe cada vertente e o jogo político da época.

Ampliando a escala para o Maranhão, Roni César de Araújo dedica-se ao estudo da construção da identidade brasileira naquela província, compreende, através da análise de periódicos, que o “novo espírito”2 do Brasil chegou naquela localidade em momento posterior à Corte. Neste sentido, Araújo expõe que o antilusitanismo alcançou a imprensa da província em 1825, sendo precedido pela fidelidade ao governo português. Além disso, explica as relações de conveniências expressas na região.

A terceira parte da obra abarca o “Sistema representativo e práticas políticas”, destacando a dinâmica das eleições no Império, pondo em relevância a pluralidade existente no período, no momento em que destaca a realidade do processo eleitoral em algumas províncias. Assim, Rodrigo Marzano Munari salienta a participação popular no sistema representativo em São Paulo. O autor questiona a visão de passividade da população menos abastada da sociedade imperial. Estes indivíduos, em sua perspectiva, se configuravam como atores políticos envolvidos por vontades próprias, interferindo e agindo no processo eleitoral. Ademais, Munari chama atenção para um outro olhar que a sociedade possuía acerca do sistema representativo, pois, além do voto, participavam do processo por meio de petições, queixas ou até mesmo se armando contra a vontade dos poderosos.

Ana Paula Freitas traz em sua investigação o papel da província de Minas Gerais na estruturação do Estado Nacional, considerando a importância da participação dos deputados mineiros na Reforma Eleitoral de 1855. Deste modo, a autora destaca a importância do parlamento brasileiro no sistema representativo, ressaltando a trajetória do tema até sua aprovação. Assim, analisando os resultados da reforma no ano posterior a sua aprovação, Freitas conclui que a Lei de Círculos resultou na pluralidade do parlamento e ampliou a sua representatividade.

Trazendo o debate acerca da representação no Império brasileiro, Kátia Sausen da Motta expõe de que maneira se configurava o período pré-eleitoral e as relações entre votantes e aspirantes aos cargos políticos na Província do Espírito Santo. Revelando aspectos eleitorais da época e a particularização da localidade, a autora demonstra o empenho dos candidatos e suas estratégias para garantir a vitória no pleito. Neste sentido, salienta a utilização de chapinhas nos jornais da província com o intuito de divulgar as candidaturas.

Aproximando a escala para o Nordeste, Williams Andrade de Souza constrói a sua análise através da eleição de vereadores na Câmara Municipal de Recife na primeira metade do século XIX. O autor expõe o perfil dos candidatos e votantes, suas filiações e a representatividade emanada no município. Assim, Souza apresenta o processo eleitoral para além da manutenção das elites, manifestando as peculiaridades e os desvios do processo, propondo uma complexidade de compreensão ao tema, revelando a participação de cidadãos comuns de forma ativa no movimento. Além disso, evidencia o processo da ampliação de votantes no período e a heterogeneidade presente nos pretendentes aos cargos.

A quarta parte da coletânea se intitula “Linguagens e ideias políticas”, abordando especificamente os momentos finais do Império, debatendo a linguagem da propaganda republicana na Província do Espírito Santo e as discussões acerca da escravidão na localidade, por meio da imprensa local. Deste modo, Karulliny Silverol Siqueira traça a trajetória do republicanismo no século XIX, explicando seus diversos significados, sua heterogeneidade em práticas e de recursos linguísticos. Dessa maneira, a autora traz a especificidade da província do Espírito Santo, onde o radicalismo dificilmente aflorava, trazendo o significado do republicanismo primeiramente ao municipalismo, onde os redatores de Cachoeiro de Itapemirim reclamavam a centralidade dos monarquistas na capital da localidade.

Por fim, Geisa Lourenço Ribeiro esboça a linguagem da abolição no periódico O Constitucional, pertencente ao Partido Conservador na província. A autora propõe a revisão da retórica do jornal, pois, embora o discurso de benevolência ao fim da escravidão, a trajetória linguística do O Constitucional revelaria o contrário, expondo um abolicionismo de última hora, por conveniência. Assim, o estudo da fonte indicou uma trajetória escravista no idioma da folha, e que no fim buscou trazer para o Partido Conservador o advento da emancipação. Ademais, expõe a especificidade do abolicionismo na província do Espírito Santo, permeada por uma linguagem imbuída de moderação.

Ao analisarmos a peculiaridade da pesquisa de cada autor, não encontramos uma unidade de relações no Império, entretanto, a multiplicidade de significados políticos no território brasileiro. Esse tipo de historiografia concorda com o aspecto de Max Weber na qual a análise consiste em uma História no sentido variável, onde o indivíduo possui a direção das relações sociais no momento em que configura sua relação com o outro (DIAS; MAESTRO FILHO; MORAES; 2003). Assim, consideramos o estudo das particularidades como o estudo da criticidade sobre as macroestruturas, onde as individualidades, ao se afastarem da realidade como um todo, promoverão, uma compreensão das redes existentes para a formação dessa totalidade.

Neste sentido, consideramos obra de extrema relevância para o debate da cultura política do Império brasileiro. A análise das distintas províncias e os diversos personagens políticos promovem um entendimento dos conflitos existentes para a formação da realidade do território. Essa diversidade de conexões não confunde ou empobrece a História do Brasil Império, todavia promove uma amplitude no debate enriquecendo-o e instigando a possibilidade cada vez mais abrangente de estudo.

referências CAMPOS, Adriana Pereira; MOTTA, Kátia Sausen da; RIBEIRO, Geisa Lourenço; SIQUEIRA, Karulliny Silverol (Org.). Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos. Vitória: Editora Milfontes, 2019.

DIAS, Devanir Vieira; MAESTRO FILHO, Antônio Del; MORAES, Lúcio Flávio R. O paradigma weberiano da ação social: um ensaio sobre a compreensão do sentido, a criação de tipos ideais e suas aplicações na Teoria Organizacional. Revista de Administração Contemporânea. v.7 n.2, p. 57-71, Abr/Jun. 2003.

LUSTOSA, Isabel. O debate sobre os direitos do cidadão na imprensa da Independência.

In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone (Org.).

Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda, 2010.

Notas 1 O livro é resultado de debates entre pesquisadores que analisam o século XIX, cujo objetivo é transitar entre as esferas locais e o nacional. É também o desfecho das discussões ocorridas em outubro de 2018 durante o III Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO), ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2 O autor elucida que o termo destacado foi estudado por Isabel Lustosa, quando esta tratava do tema na imprensa fluminense, cujo significado expressava às “expectativas sobre a nova Ordem”. Cf. LUSTOSA, 2010.

Drlely Neves Coutinho – Graduada em História pela Faculdade Saberes. Aluna Especial de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:[email protected].


CAMPOS, Adriana Pereira; MOTTA, Kátia Sausen da; RIBEIRO, Geisa Lourenço; SIQUEIRA, Karulliny Silverol (Org.). Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos. Vitória: Editora Milfontes, 2019. Resenha de: COUTINHO, Drlely Neves. As províncias formam um Império: a pluralidade das relações políticas no Brasil oitocentistas. Revista Ágora. Vitória, v.31, n.1, 2019. Acessar publicação original [IF].

 

Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos | Marcos Napolitano

Os estudos mais recentes do historiador Marcos Napolitano, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo (USP), têm se tornado indispensáveis para aqueles que pretendem alçar voo em pesquisas sobre o processo de militarização da ditadura brasileira. Nos últimos anos, o autor vem se dedicando a um balanço histórico do regime militar no Brasil e aprofundando o debate sobre os deslocamentos de sentido das diferentes memórias produzidas e cultivadas sobre o período autoritário.[2] Tal esforço ficou evidente com o livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro, lançado em 2014, exatamente 50 anos após o golpe de 1964.[3]

No entanto, Coração Civil vem coroar anos do trabalho que o autor vem realizando, pelo menos desde o doutorado, no campo da cultura de oposição à ditadura por meio da MPB, do cinema e do teatro. Nesse sentido, o livro retoma questões levantadas pelo próprio Napolitano na sua tese, publicada em livro em 2001,[4] e se une ao Brasilidade Revolucionária do sociólogo Marcelo Ridenti,[5] no intento de elaborar reflexões relevantes para a compreensão da resistência cultural no Brasil.

Logo de início, Napolitano busca reposicionar a cultura no campo de oposição e resistência ao regime militar brasileiro, principalmente após o AI-5, quando ela parece simplesmente ser colocada para escanteio. Assim, o autor se propõe a identificar o quanto os dilemas vividos no seio das diferentes oposições culturais traduziam as contradições e desafios da própria resistência política. Para isso, são apresentados quatro grandes grupos de atores na arena político-cultural: os liberais, os comunistas do PCB, os grupos contraculturais e a “nova esquerda”, surgida nos anos 1970. A partir da separação didática desses quatro grupos, Napolitano procura apontar convergências e divergências, que ajudem a explicar porque prevaleceu na memória social uma imagem de resistência cultural de consenso entre as mais diferentes tendências artísticas, sob uma percepção pouco aberta às clivagens da vida cultural que pulsava no coração civil das oposições ao regime.

Valendo-se das tipificações apresentadas por Roderick Kedward[6] para caracterizar as ações e movimentos de resistência, Napolitano procura entender quais valores marcaram a resistência ao regime militar brasileiro, qual o papel dos mediadores e das instituições na afirmação das resistências ao regime e quais os resultados, sobretudo no plano cultural e estético, do culto à inversão de valores defendidos pela direita militar encastelada no Estado pós1964. (p. 32)

Com esse aporte teórico, o autor procura complexificar o debate sobre as dinâmicas de apoio e resistência à ditadura, que nos últimos anos acabaram gastando muita tinta com um binarismo, que por vezes, não serve à análise histórica. Desta forma, a organização dos capítulos segue uma lógica cronológica, mas também teórica, que pretende dar conta das várias facetas da vida cultural sob a tutela autoritária, assumindo um caráter ensaístico com vistas a suscitar menos conclusões e mais reflexões.

O livro está dividido em nove capítulos: o primeiro apresenta os diferentes atores culturais e suas estratégias elaboradas ao longo do regime; o segundo detalha as ações e debates artístico-culturais da oposição, especialmente o campo teatral, formuladas entre o golpe e o AI-5; o terceiro aponta os impasses de cada grande grupo de oposição no baile das cinco artes (com destaque para o cinema, a música popular e o teatro); o quarto discute as lutas culturais entre os comunistas e os contraculturais a partir da ideia de vazio cultural que surge no início dos anos 1970; o quinto problematiza as políticas culturais de oposição assimiladas pelo Estado e o jogo de acomodações costurado pelos comunistas no contexto de abertura do regime; o sexto analisa o debate sobre as “patrulhas ideológicas” que ganhou capas e manchetes de jornais, revendo o papel do artista-intelectual e esgaçando qualquer possibilidade de aproximação entre a velha e a nova esquerda já no contexto da luta pela anistia e da “invenção de honras e futuros”;[7] o sétimo se debruça sobre as novas perspectivas culturais e políticas propostas pela “nova esquerda” sintetizada na proposta de criação do Partido dos Trabalhadores, ao final dos anos 1970; o oitavo faz um balanço dos diferentes caminhos que a cultura segue durante o processo de redemocratização e por fim, o nono dedica um precioso espaço de reflexão para as “batalhas de memória” no seio da resistência cultural.

Para a historiografia da cultura brasileira que tem se estabelecido nos últimos dez anos, talvez os três primeiros capítulos não suscitem grandes questões, embora o exame do conceito de resistência seja fundamental para o início de qualquer debate no campo das oposições ao regime militar brasileiro. Ainda assim, a análise dos diferentes níveis de consciência em torno da ideia de resistência político-cultural, desde posições ideológicas estratégicas e doutrinárias até posições táticas e conjunturais, continuam tendo o seu valor na discussão a respeito da complexidade de ações e posições assumidas pelos resistentes. As lutas culturais entre comunistas e contraculturais, analisadas no quarto capítulo, ganha ainda mais corpo com o questionamento da cultura nacional-popular pela vanguarda e pela cultura popular da “nova esquerda”, demonstrando o quanto o processo de esfacelamento do nacional-popular se confunde com a própria história da resistência cultural no Brasil.

Por outro lado, os grandes problemas se situam a partir do quinto capítulo quando o debate a respeito das tensões e negociações do regime e o campo cultural, envolve o Estado, o mercado e os produtores culturais de esquerda, juntos em nome da necessidade da defesa de uma “cultura nacional” e da valorização do “produto brasileiro” (p. 234). Nesse campo minado para o debate em que os extremos (controle e cooptação) aparecem como os atalhos muito tentadores, Napolitano, mais uma vez, opta por conferir maior complexidade a esse debate indagando por que a pretensa “hegemonia” da cultura de oposição nos segmentos sociais mais influentes (setores da burguesia e da classe média) não se traduziu numa organização social e política eficaz para “derrubar a ditadura”. (p. 235)

Questões como essa não são fáceis de serem respondidas e, nem mesmo o próprio autor busca respondê-las de forma definitiva, mas aponta caminhos interessantes para se pensar saídas para esses problemas ao analisar com mais vagar os interesses de cada grupo e os seus impasses, sem perder de vista o fato de que, apesar da especificidade das relações do regime brasileiro e a cultura de oposição, ainda se vivia sob o arbítrio e o terrorismo de Estado.

O quadro de confusão sintetizado pela polêmica das “patrulhas ideológicas” abordada no sexto capítulo, lança luzes sobre o quanto o campo cultural ainda estava associado ao campo político no contexto de abertura e de crise profunda da arte engajada e do frentismo como estratégia de oposição ao regime. Enquanto apontavam-se patrulheiros e assumiam-se patrulhados, o mercado ganhava cada vez mais força, tanto à direita quanto à esquerda. Talvez a reflexão mais instigante – e necessária – de todo o livro esteja exatamente na identificação das políticas culturais da “nova esquerda”. Muitas lacunas permanecem. Napolitano consegue traçar em linhas gerais as diferenças entre a proposta de cultura popular da “nova esquerda” e a velha estratégia de frentismo cultural da “velha esquerda” e as disputas entre os intelectuais que acabam migrando do PCB para o PT nascente. No entanto, existe a necessidade de reflexões mais aprofundadas sobre o processo de formulação da chamada cultura popular da  “nova esquerda”, que não se inicia nos anos 1970, mas já corre nas margens do cotidiano antes mesmo do golpe de 1964.

Por fim, o debate sobre a memória da resistência cultural ainda muito impregnado de certa hegemonia aliancista, aglutinando liberais e comunistas sob uma mesma resistência democrática, continua a suscitar reflexões sobre a real existência de uma hegemonia cultural de esquerda, bem como os seus limites e seus legados. Se não responde essas questões diretamente, Marcos Napolitano oferece um importante ponto de partida para quem deseja entrar no campo de batalha das memórias de resistência cultural, a partir da desmistificação de algumas percepções cristalizadas na memória social do período.

Napolitano questiona a ideia de que a arte engajada tinha uma hegemonia limitada a pequenos grupos de consumo, restrita a classe média brasileira, historicamente conservadora. O autor não entende que a dimensão quantitativa seja suficiente para pensar o alcance da cultura de esquerda e rejeita certa concepção que parece confundir maioria com hegemonia, sem atentar para o fato de que as bases sociais radicalmente democráticas não permitiram que a revolução cantada nas músicas ganhasse as ruas.

O autor também rejeita a ideia de que a massificação da cultura, via mercado, seja responsável por um suposto esvaziamento da crítica ao regime e que os artistas de esquerda possam a ser enquadrados em meros produtos de entretenimento a partir dos anos 1970. Napolitano prefere apostar nas complexas interações entre a produção cultural de esquerda, mercado e militância para evitar que se esqueça da dinâmica dos militares em busca de uma classe média crítica ao regime e o maniqueísmo que resiste em considerar a televisão, por exemplo, como espaço exclusivo de alienação e transmissão de lixo cultural.

Napolitano também relativiza a ideia de que o regime autoritário brasileiro tenha sido capaz de interromper os batimentos do coração civil da vida cultural. Em que pese a força do tripé repressivo, o Estado militarizado também buscou desenvolver uma política cultural proativa, aproximando-se e afastando-se dos artistas de esquerda. O autor, principalmente no quinto capítulo, demonstra como o mecenato oficial e a repressão conviveram de maneira tensa e contraditória, mobilizando diferentes grupos e interesses dos militares, dos empresários liberais e dos artistas de esquerda.

Enfim, Napolitano procura reconciliar uma dicotomia, há muito difundida e adotada ainda nos debates historiográficos, que opõe o nacional-popular e a vanguarda cosmopolita como inimigos eternos. O autor consegue demarcar de forma brilhante um campo comum de debate entre as duas correntes, para além das visões opostas sobre o papel do intelectual e da arte. Napolitano conclama os historiadores a adentrarem por um portal de mistérios ainda desconhecido das relações entre o nacional-popular e a vanguarda brasileira, deixando de lado  as acusações mútuas e as simplificações elaboradas por ambas as correntes, há, sem dúvida, um tesouro perdido a ser encontrado.

Porém, ainda há mais um tesouro por encontrar. A memória da nova esquerda ainda carece de um mapa mais detalhado que aponte para a origem das suas derrotas. Talvez o processo que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 sirva como um bom estímulo ao evidenciar as consequências das estratégias de acomodação adotadas pelos governos petistas e a combinação explosiva entre uma crise econômica, a ascensão rápida e marcante das direitas, a campanha anticorrupção da Operação Lava-jato, o declínio do projeto petista/lulista, abandonado pelas elites econômicas que o haviam apoiado, além da manipulação das informações orquestrada pela grande mídia.[8] Por ora, devemos celebrar a importância do trabalho de Marcos Napolitano ao pavimentar caminhos já percorridos até aqui e apontar belíssimos horizontes de pesquisa. Coração Civil preenche com maestria a necessidade de um grande trabalho sobre a resistência cultural ao regime militar brasileiro. Cabe aos próximos estudos, trabalhar para que esse coração continue batendo.

Notas

2. Cf. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

3. NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

4. NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp. 2001.

5. RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

6. KEDWARD, Roderik. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”. In: GUILLON, Jean Marie et LABORIE, Pierre (eds.). Memoire et Historie: La Résistance. Toulouse: Éditions Privat, 1995, pp. 109-120.

7. ROLLEMBERG, Denise. “História, memória e verdade: em busca do universo dos homens”. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson Luís de Almeida; TELES, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Hucitec, 2009. p. 7.

8. Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O lulismo e os governos do PT: ascensão e queda. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília A.N.. (Org.). O Brasil Republicano 5. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, v., p. 415-445.

Mathews Nunes Mathias1 –  Graduando em Licenciatura em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]


NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos. São Paulo: Intermeios, 2017. Resenha de: MATHIAS, Mathews Nunes. Resistência cultural sob arbítrio: a busca por um tesouro perdido? Cantareira. Niterói, n.30, p.145-149, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

Culturas Populares, Gênero e Diversidade Sexual: interfaces, tensões e subjetividades / Caminhos da História / 2019

Nos últimos anos, é notório o crescente interesse pelos estudos sobre as artes e culturas populares. Multiplicam-se os trabalhos acadêmicos, artigos e livros dedicados ao tema, assim como o número de agências não governamentais e privadas interessadas na execução de projetos na área. As abordagens mais recorrentes focam questões como as tensões entre a dimensão tradicional e mecanismos de (re)invenção, processos de espetacularização, as dimensões performativas e processos de patrimonialização, dentre outros temas. Também é notória a consolidação, no Brasil, do campo dos estudos de gênero, assim como daquele sobre a diversidade sexual, ao longo das últimas quatro décadas com temas diversos e abordagens múltiplas. Mas, o que falar da relação entre as culturas populares, as perspectivas de gênero e as experiências da diversidade sexual?

Com o intuito de reunir subsídios para responder a essa pergunta, coordenamos um grupo de trabalho na terceira edição do Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizada em Campina Grande, em 2017, evento organizado por Jussara Carneiro Costa, na Universidade Estadual da Paraíba. O grupo de trabalho procurou reunir, assim, pesquisadores / as interessados / as em um território ainda pouco explorado em ambos as áreas de pesquisas, a saber, as interfaces entre as artes e culturas populares e as questões relativas às expressões de gênero e da diversidade sexual. O que se sabia sobre gênero e / ou sexualidade nos contextos de produção cultural, situações ritualizadas, festividades ou processos de patrimonialização? Quais as expressões de gênero e da diversidade sexual nas artes e culturas populares? Que conflitos, tensões, silenciamentos e resistências perpassam esses campos em suas interações? O que este olhar pode nos oferecer como possibilidades de visualizar formas de produção de sujeitos no mundo contemporâneo? Estas são algumas das questões levantadas pelo grupo e que os textos reunidos aqui tentam, de alguma maneira, responder. Uma parte desses textos é oriunda do grupo de trabalho, outra parte foi acrescentada em seguida ao evento com a continuidade de nossos diálogos sobre o tema.

Os saberes populares se materializam na vida social frequentemente por meio de situações ritualizadas. Os rituais são aqueles espaços-tempo em que são formuladas e reformuladas culturalmente, negociadas e renegociadas socialmente, editadas e reeditadas simbolicamente e tensionadas politicamente as múltiplas formas de pertencimento e as mais variadas demonstrações identitárias, entrecruzando os eixos da identidade (indivíduo versus coletividade) e da alteridade (mesmo versus outros). A maneira como tais saberes são performados, portanto, não são apenas um mecanismo de reprodução da vida social por meio da repetição, mas são sobretudo um conjunto de dispositivos acionados para produzir reflexões críticas acerca dos arbitrários culturais sobre os quais se assenta a ordem social e, assim, denunciar, de forma quase sempre lúdica, os efeitos de poder instituídos nos saberes, discursos e práticas sociais. Num aparente paradoxo, no âmbito das culturas populares a liminaridade dos rituais parece contribuir para a naturalização do status quo hegemônico, no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual, representado por um regime de verdade médico-científico e jurídico-moral instaurador do binarismo de gênero, do dimorfismo sexual e da heterossexualidade compulsória, ao mesmo tempo em que subvencionam potentes críticas a essa naturalização, ao promover, ainda que momentaneamente, a subversão, a transversão, a reversão ou a inversão da ordem – ou, pelo menos, a ponderação sobre a sua versão oficial e a possibilidade de sua instabilização.

Além disso, podemos notar também que o impacto das discussões sobre identidade, gênero e sexualidade resultaram na pressão crescente para o reconhecimento e a abertura de novos espaços, dentro de tais manifestações antes ocupados majoritariamente a partir de uma lógica heteronormativa. Tais reivindicações possibilitaram a emergência de novos agentes e narrativas bem como tornando visíveis aquelas até então silenciadas. Assim, à potência das ambiguidades do espaço da liminaridade ritual somou-se também o da reivindicação e luta política.

Os resultados das pesquisas que compõem esse dossiê, de alguma maneira, tratam da tensão entre discursividades hegemônicas naturalizadas / naturalizadoras e possibilidades culturais / existenciais alternativas no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual (e outros marcadores sociais da diferença, em alguns textos). Em certos casos aqui relatados, essa tensão é mediada (ou neutralizada?) pelas manifestações das culturas populares diretamente, como nos artigos de Hayesca Costa Barroso, de Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, de Thayanne Tavares Freitas e de Camila Maria Gomes Pinheiro; em outros, como no artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, a mediação se dá através de situações ritualizadas representadas, por exemplo, pela participação em programas especiais de promoção da cidadania e de valorização da vida, como o Programa ViraVira, que funciona como uma espécie de rito de passagem para pessoas transexuais e travestis. Os processos de patrimonialização abordados diretamente por Laura C. Vieira e indiretamente por Daniel Oliveira da Silva poderiam ser vistos também como meios daquela mediação através de situações ritualizadas.

O artigo de Hayesca Costa Barroso, intitulado “A Produção do Gênero na / da Cultura Popular: problematizando um habitus de gênero junino”, mostra como, apesar de baseadas numa estrutura simbólica heteronormativa e binária, as grandiosas festas juninas cearenses, marcadas pelas apresentações das quadrilhas, têm-se tornado um espaço importante de visibilização de pessoas homossexuais (gays e transexuais, principalmente) e de questionamento – ou reelaboração – da fixidez dos papeis de gênero tradicionais, produzindo, desse modo, uma reflexão sobre o que a autora chamou, baseada na obra de Pierre Boudieu, de “habitus de gênero da cultura popular junina”. Já o artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, intitulado “Como ser Transexual e / ou Travesti num Universo Simbólico Heterossocial? A “Carreira Bicha” na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro” é baseado numa pesquisa de campo realizada junto ao Programa ViraVida, desenvolvido naquela favela carioca com o intuito de promover a cidadania de pessoas transexuais e travestis. Os autores analisam o que designam como “carreira bicha”, um conjunto de atividades e instrumentos que ilustram a passagem da “identidade gay” para a “identidade trans”, numa espécie de rito de passagem instituidor de uma posição política dissidente em relação à heteronormatividade hegemônica. Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, no artigo intitulado “Maracatu Nação em Pernambuco: raça, etnia e estratégias de enfrentamento ao racismo”, estudam os rituais de maracatu dos carnavais recifenses a partir de uma minuciosa análise das indumentárias utilizadas pelos / as participantes e apresentam uma instigante reflexão sobre as interseções de raça e gênero nos processos de etnização em vigor nessas manifestações culturais.

A cena dos grafismos murais conhecidos como graffitis na cidade de Belém, capital paraense, foi o objeto de estudo de Thayanne Tavares Freitas. No artigo, Thayanne apresenta os principais resultados de uma pesquisa etnográfica refinada realizada junto a um coletivo feminino de grafiteiras belenenses (que inclui mulheres e um homem transexual). A autora partiu do questionamento do processo que apagou ou excluiu as mulheres dessa cena e, no final de sua pesquisa, acabou revelando a maneira como, nos últimos tempos, o protagonismo feminino vem despontando (com muita negociação) nessas manifestações culturais, não só em Belém, mas também alhures. Por sua vez, Camila Maria Gomes Pinheiro, em seu artigo intitulado “„Mulher na Roda Não é pra Enfeitar‟! A Ginga Feminista e as Mudanças na Tradição da Capoeira Angola”, após perceber que os estudos sobre as culturas populares pouco se interessam pelas desigualdades sociais e as diversas formas de discriminação, utiliza-se também da etnografia para verificar o lugar ocupado pelas mulheres na prática da capoeira angola e, principalmente, para mostrar o modo como essa manifestação cultural vem se transformando a partir do momento em que elas passam a ocupar os espaços de poder antes exclusivamente masculinos e se tornam lideranças na organização de grupos, num movimento demonstrativo daquilo que é definido pela autora como feminismo angoleiro.

Laura C. Vieira, em “As Mulheres Erveiras do Ver-o-Peso e os Olhares Patrimoniais” apresenta os resultados de uma pesquisa etnográfica e histórica realizada junto a mulheres feirantes do maior complexo comercial atacadista e varejista do Norte do Brasil, em Belém, sobre os seus costumes, saberes e práticas relacionados à biodiversidade amazônica e a qualidade patrimonial que lhes é aferida. A autora alerta para os cuidados que o processo de patrimonialização em voga tem que ter para evitar objetificar, exotizar e essencializar as práticas culturais no Ver-o-Peso e, em particular, aquelas protagonizadas pelas erveiras – mulheres que comercializam principalmente ervas e produtos fitoterápicos originários da floresta e propiciam atendimentos mágico-espirituais –, gerando estigmas e retirando-lhes a agência enquanto cidadãs, comerciantes e conhecedoras das coisas amazônicas. Ainda no registro dos processos de patrimonialização, Daniel Oliveira da Silva nos oferece um texto intimista e comprometido, intitulado “Comida, Memória e o Encontro de Gerações: um estudo de caso sobre o resgate de uma receita de família”, que trata da importância da oralidade na rememoração de receitas culinárias tidas como “receitas de família”. O autor traz as histórias contadas pelas mulheres de sua família oriunda do interior do Piauí para construir uma narrativa sobre o mirrado, um bolinho feito à base de goma de mandioca. A narrativa assim constituída por essas mulheres nos ensina que as receitas condensam informações sobre trânsitos culturais passados, catalisam relações sociais presentes e se atualizam como matrizes de pensamento para a existência futura, confirmando o que Lévi-Strauss já dizia: os alimentos não são apenas comidos, mas são também bons à penser.

Já Paula Zanardi e Jorgete Lago nos oferecem uma reflexão sobre a invisibilidade das mulheres nas manifestações culturais, a partir da categoria “mestra”, com um olhar a partir do Pará. Se a primeira parte de sua experiencia enquanto gestora do patrimônio e nos provoca a pensar nas representações de genero nas culturas populares no ambito dos grupos e da formulaçao de políticas de cultura, Lago investe na abordagem de temas sobre classe, gênero e raça sob a ótica da etnomusicologia e a reflexão entre a sua subjetividade e seu papel enquanto acadêmica, mulher e cidadã.

Convidamos todas / os, através da leitura dos artigos desse dossiê, a se apropriarem das reflexões propostas pelas / os autoras / es que, de uma forma ou de outra, convidam-nos a pensar em formas de promover um mundo melhor.

Daniel Reis – Doutor em Antropologia pela UFRJ. Pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (IPHANDF). Professor do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural-IPHAN. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-2366-0285

Fabiano Gontijo – Professor Titular vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e à Faculdade de Ciências Sociais (FACS) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA). É Doutor em Antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, França. [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0003-4153-3914


REIS, Daniel; GONTIJO, Fabiano. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 24, n.1, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Ingesta | USP | 2019

Ingesta Pós-abolição

A Revista Ingesta (São Paulo, 2019-) é uma publicação eletrônica de periodicidade semestral, editada por alunos de pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, membros do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e Alimentação (LEHDA), fundado em 2016 na mesma instituição.

Nosso objetivo é publicar artigos, resenhas e dossiês temáticos (em português, inglês ou espanhol) produzidos por pós-graduandos e pesquisadores pós-graduados, que possam contribuir com o desenvolvimento dos estudos históricos sobre alimentação e drogas, em seus amplos aspectos.

Textos relacionados ao campo da História serão privilegiados, mas aqueles que abordarem a temática e estiverem relacionados a disciplinas afins, como a Antropologia, a Sociologia, a Arqueologia, entre outras, também serão considerados para avaliação do Conselho Editorial e do Conselho Científico da revista.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre

ISSN 2596-3147

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História, tempo e espaço / Caminhos da História / 2019

Prezadas (os) leitoras (es),

O dossiê desta edição da Revista Caminhos da História, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG), propõe analisar a temática “História, tempo e espaço”. Trata-se de um dossiê organizado pelos geógrafos Dr. Emerson Costa de Melo (Doutor em Geografia pela UERJ) e Dra. Aline da Fonseca Sá e Silveira (Doutora em Geografia pela UERJ e Professora do CEFET-RJ).

Os artigos do dossiê abordam temáticas caras à relação interdisciplinar entre os campos da Geografia e da História, principalmente quando se aproximam o espaço geográfico e o tempo histórico em abordagens e perspectivas que tornam centrais temas como região, territórios, margens e fronteiras, por exemplo. Neste sentido, os artigos aqui selecionados analisam os territórios e revisões de propriedade na práxis de colonização da Companhia de Jesus na Província do Paraguai entre os séculos XVII-XVIII; a economia de abastecimento e pequeno escravista do Vale do Macacu no século XVIII; a geografia social da morte nas práticas de sepultamento na cidade de São João Del-Rei, no século XIX. Questões de ordem técnica, teórica e metodológica também são enfatizadas em discussões sobre modelos metodológicos de espacialização dos registros paroquiais de terras e na relação entre a circularidade cultural e os agenciamentos territoriais.

Esta edição conta, também, com sua seção de artigos em fluxo contínuo. Apresentamos, de tal modo, estudos que apontam a relação “cor da pele / cidadania” nas Constituições da Venezuela (1811) e do Brasil (1824), reflexões sobre a figura do Pe. Diogo Antônio Feijó e o catolicismo como religião civil e, por último, as vivências entre boiadeiros e boiadas no Noroeste paulista.

A imagem que ilustra a capa da edição é uma pintura produzida pelo ítalo-brasileiro Alfredo Volpi (1896-1988), intitulada Paisagem com carro de boi, pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Esperamos que todxs tenham uma excelente leitura!

Atenciosamente,

Ester Liberato Pereira,

Rafael Dias de Castro,

e Comissão Editorial


PEREIRA, Ester Liberato; CASTRO, Rafael Dias de. Editorial. Caminhos da História, Montes Claros, v. 24, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Velha direita e nova direita: Brasil e mundo / Ágora / 2019

O dossiê da presente edição da Revista Ágora intitula-se “Velha direita e nova direita: Brasil e mundo”, e tem por objetivo tratar das múltiplas temáticas em torno dos movimentos sociais, dos intelectuais, dos partidos políticos e demais organizações congêneres, que, no curso da história, estiveram apoiados no estoque de ideias, percepções da realidade, justificativas, bem como em diferentes visões de mundo localizadas à direita do espectro político. O Dossiê procurou contemplar o acolhimento de artigos que tenham como foco as diferentes crises da democracia representativa e as instabilidades sociais que acabam levando ao recrudescimento da crítica e ao aprofundamento das desconfianças sobre o sistema democrático, ceticismo este que é significativamente incrementado quando a política, produzindo impactos sobre a economia, abre espaços para propostas de cunho conservador e/ou autoritário, que redundam na ascensão de personalidades e/ou governos de corte populistas, que, através de propaganda financiada por suspeitos interesses econômicos, acaba por angariar importantes apoios nas classes médias e populares insatisfeitas e receosas com os rumos da sociedade em que vivem.

Considerando esse amplo espectro de possibilidades, o dossiê reuniu nove artigos, organizados em ordem cronológica, que procura problematizar tais possibilidades. No primeiro, Ruth Cavalcante analisa pensamento e obra de José de la Riva-Agüero, grande intelectual peruano, que viveu na passagem do século XIX para o século XX. Analisa como esse intelectual pensou a questão da inclusão dos indígenas à nacionalidade, ao mesmo tempo em que primou pela manutenção da ordem social hieráquica naquele país. O artigo conclui que Riva-Agüero teve como intento resgatar os valores da tradicionalidade hispânica, vista como uma cultura “superior”, ao passo que alimentou uma série de preconceitos e estereótipos em relação aos povos indígenas.

No segundo artigo, Diego Stanger analisa a formação e trajetória da Ação Integralista Brasileira (AIB) no estado do Espírito Santo. Nele, o autor desvela a estrutura organizacional que possibilitou o desenvolvimento do partido em solo capixaba, discorre sobre seus principais líderes, bem como expõe as principais características do movimento Integralista com a intenção de compreender motivações que levaram indivíduos dos mais diversos segmentos sociais a se vincularem à organização no Brasil e no estado.

Em seguida, no terceiro artigo, Camila Pinheiro Rizo aborda quatro visões acerca da modernização institucional brasileira. Procura problematizar acerca de pensadores de diferentes linhagens ideológicas e de que maneira procuraram tratar, em seus pensamentos, da natureza das instituições políticas nacionais, e que ao mesmo tempo procuraram apontar caminhos para a superação do atraso brasileiro. No artigo são apresentadas duas perspectivas, uma autoritária, representada por Oliveira Viana e Azevedo Amaral; e outra democrática, defendida por Sérgio Buarque de Holanda e Nestor Duarte. Ao final, a autora conclui que, mesmo com duas concepções distintas, os autores relacionam a persistência do privado acima do interesse público como o grande empecilho à modernização institucional.

O quarto texto do dossiê é de autoria de Ueber José de Oliveira e Maria Alayde Alcântara Salim, que se debruçam sobre uma marca do ensino de história encontrado no presente, mais precisamente um material paradidático escolar produzido e distribuído pelo Ministério da Educação e Cultura no ano de 1972. A partir dessa fonte, analisam o ensino de história e de educação Moral e Cívica, que esteve vigente até o ano de 1993, mas que na atual onda conservadora vivenciada no Brasil, tem sido novamente proposta por diferentes atores, incluindo o atual presidente da República, que, como é de conhecimento, lidera um governo de extrema-direita. A conclusão é a de que, apesar da renovação em relação às concepções e as práticas que marcam o ensino de história, observamos algumas permanências e mesmo retrocessos na realidade vivenciada na prática desse ensino na educação básica.

No quinto artigo, o autor Geraldo Homero do Couto Neto trata da chamada “Nova Direita” e o amplo uso dos meios de comunicação de massa para propagandear e alavancar sua visão de mundo, focando, no presente trabalho, na utilização da ferramenta You Tube. Se concentra na utilização dessa mídia e a importância que ela assume para a negação da Ditadura militar brasileira, entre os anos de 2013 e 2018, na esfera pública. Segundo o autor, o estudo possibilita refletir acerca do papel que o historiador deve tomar frente a essas novas mídias, tendo em vista o seu grande poder de alcance de público.

O sexto artigo, escrito pelo Prof. Jair Miranda Paiva, também traz um tema atual e da maior importância: o programa Escola Viva. Nele, procura tratar do referido programa como um movimento de reafirmação do conservadorismo em educação. Procura analisar, também, referido movimento como uma nova roupagem da reação às lutas progressistas e conquistas políticas das últimas décadas, e conclui que urge uma crítica necessária a suas teses, bem como a suas articulações a outros âmbitos do conservadorismo.

No sétimo artigo do dossiê, Amarildo Lemos procura refletir acerca de alguns conceitos recorrentes no atual debate político brasileiro, especialmente a partir das chamas Jornadas de Junho de 2013, momento de grande efervescência política no país, marcado também pela ascensão de setores da direita e extrema-direita. Ademais, o trabalho procura refletir acerca de determinados pressupostos filosóficos subjacentes à corrente liberal-conservadora, que, desde as “jornadas de junho de 2013”, se apresenta como a corrente doutrinária mais adequada a eliminar a corrupção e dar mais eficiência aos serviços públicos no Brasil, em detrimento da classe política e do Estado, vistos como corrupta por excelência.

Por fim, devemos destacar que o conjunto de textos reunidos neste dossiê não tem a intenção de propor conclusões definitivas acerca dos problemas contemporâneos quanto ao soerguimento das direitas em suas novas e diferentes configurações. Ao contrário disso, a finalidade é, modestamente, abrir novos flancos de pesquisas, e provocar novas abordagens.

Ueber José de Oliveira

Leandro do Carmo Quintão

Os Organizadores

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Auctoritas e potestas no Ocidente Tardo Antigo e Medieval / Ágora / 2019

O presente dossiê pretende homenagear a prof. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães Taconni, da USP que tem sido uma referência nos estudos medievais no Brasil (v. texto homenagem redigido pelo Dr. Ruy de Oliveira Andrade (UNESP) e uma espécie de mentora e esteio de nosso modesto grupo de pesquisa, o LETAMIS).

Deixemos ao querido Ruy, a missão agradável de homenagear a ‘Aninha’, como a chamamos, e passemos ao conteúdo do dossiê. Encontram-se nele artigos que começam no período final do Império Romano e se estendem pelo medievo todo. Os primeiros artigos se localizam na Antiguidade Tardia e, de certa forma, no final do Império Romano e no período das invasões germânicas.

José Mário Gonçalves, egresso do Letamis/PPGHIS, inicia esta série com um trabalho sobre o bispo Agostinho de Hipona e seu epistolário, que mostra como eram ‘cordiais’ as relações entre católicos e donatistas, apesar da retórica dos sermões, mostrando uma faceta diferente de um conflito diante de uma convivência. Usa o cotidiano como referência e apresenta uma face mais amena da disputa religiosa.

Geraldo Rosolen Junior nos traz uma interessante polêmica que analisa visões de dois clérigos sobre os invasores vândalos, que acabaram por tornar-se um adjetivo pejorativo, quando sabemos que godo se tornou símbolo de nobreza na península Ibérica. Ambos os povos saquearam Roma (godos em 410; vândalos em 455), mas o segundo é um termo pejorativo e o primeiro é de nobreza. A percepção dos dois conflita muito quando os autores percebem os invasores vândalos de forma muito estigmatizada.

Kelly Cristina da Costa Bezerra de Menezes Mamedes nos oferece uma análise das urdiduras da corte de Justiniano, um imperador oriental (reinou entre 527-565) que articulou uma reconquista do império ocidental, conseguindo certo sucesso. A questão destacada são as relações de corte, as políticas dentro do palácio imperial e não as guerras travadas. Os mecanismos de resistência do monarca diante dos riscos de golpe.

Diego Carvalho estabelece uma conexão entre as concepções de Agostinho de Hipona e sua influência nos conceitos de atividade política na Cidade de Deus sob um foco filosófico e político, através do olhar de teóricos como Hannah Arendt, Koselleck, Weber e outros. Numa ampla e bem articulada reflexão, lança questões e análises que enriquecem o tema. A influência do bispo de Hipona no medievo é de longa duração.

Passemos ao recorte cronológico que a historiografia já define como período medieval.

Abre o grupo nosso recém doutorando Jordano Viçose, que nos traz a questão da auctoritas episcopal do arcebispo de Compostela Diego Gelmirez, que deve articular sua presença de governante efetivo e exercer a justiça num contexto de conflitos urbanos e contestação de sua potestas por elementos urbanos diversos. Gelmirez é um dos responsáveis pelo brilho que Compostela adquire no medievo.

Segue o nosso egresso, hoje prof. Doutor Luciano Vianna (Universidade Federal de Pernambuco) que nos oferece um trabalho sobre história escandinava. Recortamos um trecho de seu resumo. Eis: “A Saga dos Ynglingos (c. 1225), de Snorri Sturluson (c. 1179-1241), apresenta a linhagem dos Ynglingos abordando aspectos originários, mitológicos, literários e históricos sobre os antigos povos escandinavos. O objetivo deste artigo é analisar a relação entre a recuperação da memória da linhagem ynglinga e a proposta educacional política”.

O terceiro deste grupo é um trabalho de Sara Bittencourt, que analisa o medo do feminino em construção no século XV. Aparentemente se trata de um momento, perto da era moderna, mas é o contexto que virá a gestar o ‘manual de caça às bruxas’ ou Malleus maleficarum que é um marco da misoginia e o prenúncio das queimas de ‘bruxas’ na Alemanha, Inglaterra e nas colônias norte americanas. Um tema que está no nosso cotidiano e sempre gera interesse.

O quarto artigo focado no medievo, é de Edilson Alves de Menezes Junior, que enfoca através de uma análise socioeconômica o processo dialético dos conflitos sociais do sistema feudal na França, no âmbito do período de 1180-1226. Trata-se de uma análise das relações, ora tensas, ora harmônicas, entre nobreza, clero e camponeses, numa sociedade estratificada e estruturada em três estamentos. O crescimento urbano e comercial ainda não afetou as relações sociais entre os estamentos e o feudalismo está entre o auge e o início lento de uma crise, mais visível no período da guerra dos cem anos.

A questão das relações entre a auctoritas e a potestas nas universidades medievais é o tema do artigo de Cícera Leyllyany F. L. F. Müller. Enfocando a escolástica e seus pensadores principais, a autora discorre sobre como os conflitos entre imperador e papa se introduzem nos espaços universitários, que acabam sendo palcos de polêmicas de cunho teológico-político.

O penúltimo artigo do período medieval é de autoria de uma dupla. Regilene Amaral compõe com Sergio Feldman uma análise da polêmica cristã judaica em dois focos: Feldman faz um ‘longo’ trajeto de quase mil anos, olhando as origens remotas dos debates e dos conflitos teológicos entre as duas religiões. Já Regilene Amaral foca em sua pesquisa de mestrado, olhando só e apenas para o século XIII, os Debates de Paris e, especialmente, Barcelona.

Fechando o dossiê temos um artigo da homenageada, que não sabia antes da publicação do dossiê que ela nos daria sua preciosa colaboração e receberia a homenagem. Um texto ensaístico ousado, denso e bem embasado que faz múltiplas comparações entre o império medieval e as noções de identidade política e cultural que antecedem e consolidam o império germânico gestado por Bismarck (1871). A historiografia e o nacionalismo alemães do século XIX, buscando suas ‘raízes’ no Sacro Império Romano Germânico. Um tema que tem muita transcendência e supera os limites do medievo, trazendo reflexões para nossa realidade.

Desfrutem do dossiê.

Sergio Alberto Feldman

Ludmila Noeme Santos Portela

Roni Tomazelli

Editores do dossiê e da edição da Revista Ágora

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Fronteiras, trabalho e etnicidade / Canoa do Tempo / 2019

A revista Canoa do Tempo traz a público o dossiê Fronteiras, Trabalho e Etnicidade, com artigos que denotam a complexidade da discussão sobre a ideia de fronteira. Para além do entendimento sumário da categoria, usualmente articulada como linha divisória, há o indicativo do peso dos mundos do trabalho no estabelecimento de suas problemáticas. A Amazônia aparece como espacialidade privilegiada para a articulação de estudos desta natureza, ambientados entre o imaginário da opulência e as agruras de formas coercitivas da lida cotidiana. Ao longo do tempo, a floresta foi atravessada por diversos tipos de deslocamentos de fronteiras, cujos desdobramentos socioeconômicos e demográficos deixaram marcas indeléveis no tecido social de suas cidades, aldeias e rios.

Não por acaso, a floresta por tempos pensada no terreno do fantástico perdeu força discursiva sob a sombra do colonialismo interno, quase sempre jungido a interesses capitalistas internacionais. O ethos das mulheres guerreiras que (re)batizou o vale ao gosto do imaginário europeu, teve seus sentidos transformados com as sucessivas devassas e esquadrinhamentos do espaço em busca de riquezas. As fronteiras do paraíso terreal tiveram de ser redimensionadas, restando apenas o invólucro da mensagem edênica, que traduziu a Amazônia como terreno inabitado, disponível e à margem da História.

O artigo que abre a dossiê, assinado por Maria Clara Carneiro Sampaio, aponta referências sobre interesses estrangeiros na reciclagem das referidas imagens paradisíacas voltadas ao território amazônico nos oitocentos. A autora analisa os escritos do militar norteamericano Matthew Fontaine Maury, que redigiu um folheto largamente publicado em periódicos, pregando a viabilidade do deslocamento dos empreendimentos escravistas do Sul dos Estados Unidos em direção ao Brasil. Nesse contexto, a floresta era enxergada como fronteira para o avanço e sobrevivência da escravidão nas Américas, área que supostamente possuía clima e natureza “adequadas” para a população negra oriunda das grandes lavouras algodoeiras que marcavam as paisagens sulistas de Maury nos idos dos anos 1850. O projeto reabilitava a visão paradisíaca colonial, classificando a Amazônia como área prenhe de possibilidades, rica, mas mal aproveitada economicamente. O éden intocado ganhava novas camadas de sentido, visto como paraíso do trabalho compulsório e da escravidão.

O cerne da relação entre ideários edênicos, deslocamento de fronteiras e escravidão, continua no texto de Jéssyka Samya Ladislau Pereira Costa, que apresenta notas de pesquisa sobre a presença negra e indígena nos mundos do trabalho dos rios Purus e Madeira entre 1850 e 1889. O artigo aponta reflexões sobre a historicidade dos Altos Rios à época da sedimentação da Província do Amazonas, marcada por suas paisagens ameríndias, natureza opulenta e diversas zonas de contato. O cruzamento entre populações indígenas e negras é problematizado pela autora, que discute o alcance da sociedade escravocrata e as agencias das populações que enfrentavam interesses senhoriais na floresta. Os rios Purus e Madeira aparecem como recortes espaciais principais, destacados como importantes cursos fluviais na interiorização dos interesses econômicos da província, à época capitaneados pelo extrativismo da borracha.

O tema da escravidão também aparece no artigo de Paulo Roberto Staudt Moreira, que articula reflexões sobre os significados da liberdade e da escravidão na fronteira meridional do Império brasileiro no século XIX. Através de fontes judiciárias, o autor põe em causa a polissemia do conceito de fronteira, incluindo os limites e aproximações entre experiências da liberdade e do cativeiro. O recorte espacial do texto de Moreira enfatiza a Vila de Canguçu, localizada na província de São Pedro do Rio Grande do Sul nas proximidades de nações platinas circunvizinhas. O autor conduz os leitores em terreno atravessado por conflitos que marcaram a época Imperial no Sul do Brasil, área estratégica e de significativa importância econômica conectada aos fluxos da pecuária e agricultura.

Dando continuidade ao debate sobre as polissemias da categoria fronteira, apresentar-se-á o artigo de Fernando Roque Fernandes, que discute territorialidades coloniais do “delta amazônico” no século XVII. O autor problematiza a circulação de agentes coloniais na região da foz do Amazonas, evidenciando o papel desses personagens na conformação de fronteiras e disputas que caracterizaram territorialidades seiscentistas. Conectado ao contexto em tela, Fernandes dispõe aos leitores e leitoras um interessante panorama conceitual sobre as ideias de lugar, espaço e território, considerando suas complexas implicações étnicas e identitárias. O artigo destaca ainda a densidade geopolítica da época, ligada ao estabelecimento do Estado do Maranhão e as movimentações do aparato colonial para o controle do território amazônico.

A tônica dos deslocamentos associada com questões transfronteiriças aparece também no artigo assinado por Eduardo Gomes da Silva Filho e Júlia Maria Corrêa, que destacam outras facetas do debate, explorando a densidade de fluxos migratórios contemporâneos. Os autores colocam em causa a mobilidade humana e os mundos do trabalho entremeados entre as cidades de Bonfim, no estado de Roraima, e Lethem, na República Cooperativista da Guiana. Com base em dados e outras fontes obtidas em trabalho de campo, Silva Filho e Corrêa discorrem sobre questões relacionadas as atividades laborais, redes de comércio e serviços que vem conectando as duas cidades. A discussão sobre o panorama relacional entre Lethem e Bonfim pode servir de janela comparativa para outras realidades urbanas e transfronteiriças na Amazônia.

Após as reflexões sobre Brasil e Guiana, o dossiê encaminhará a debate para outras rugosidades da ideia de fronteira. Será apresentado um interessante artigo sobre um relato de viagem de autoria de George Kennan, que publicou em 1870 a obra Tent life in Siberia. Fechando a presente edição da Canoa do Tempo, convidamos à leitura do texto de Nykollas Gabryel Oroczko Nunes, que aborda a expedição telegráfica narrada por Kennan, ocorrida no nordeste da Rússia e carregada com os usuais recursos narrativos ligados à valorização de ideários da masculinidade, aventura e do enfrentamento da natureza selvagem. O artigo destaca as tensões discursivas da obra, estabelecidas entre desafios de alteridade, visualizados nos intercursos das ideias de civilização e barbárie numa área considerada distante e inóspita.

A diversidade de abordagens e aparatos teóricos aqui propostos demonstram a as possibilidades dos temas que abalizam o dossiê. Em tempos monocromáticos, refletir sobre a complexidade do conceito de fronteira vai na contramão de pensamentos que simplificam a realidade. Com isso, objetivamos fomentar ainda mais discussões que levem em conta o caráter movediço e múltiplo das experiências humanas no espaço e no tempo.

Boa leitura!

Antônio Alexandre Isidio Cardoso – Professor Doutor (UFMA).

Eurípedes Antônio Funes – Professor Doutor (UFC).

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História de mulheres negras no pós-abolição / Canoa do Tempo / 2019

O dossiê que ora abrimos apresenta diálogos e reflexões sobre gênero e sentidos históricos atribuídos a/por mulheres negras no campo do pós-abolição como um problema histórico, evidentemente seguindo os passos trilhados anteriormente no texto homônimo de autoria de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos (2004)1. Se naquele momento os balanços e perspectivas incidiam especialmente nas experiências de homens escravizados e seus descendentes, hoje as pesquisas têm se debruçado por vezes até exclusivamente sobre a compreensão das experiências de mulheres negras, enquanto sujeitas que viveram as emancipações e as décadas imediatas à abolição, mas também aquelas que se depararam com os significados de ser negra em décadas posteriores e no tempo presente, pois, ao que os estudos indicam, o pós-abolição ainda alcança nossos dias. Não obstante, chamamos atenção para dois outros pontos. A pluralidade dos espaços geográficos das pesquisas aqui apresentadas, nos permitindo melhor acessar conhecimentos sobre a Amazônia e a região norte de uma forma geral, sem deixar de lado novas pesquisas sobre espaços que já figuravam no cenário, como a região sudeste. Entendemos que essa pluralidade vem para mostrar as potências das discussões, ainda mais quando ampliamos o mapa e nos permitimos também fazer imersões além fronteiras, em um movimento de ida e vinda, como tão bem nos aponta a entrevista do dossiê com a historiadora Juliana Barreto Farias.

Como o dossiê evidencia, as pesquisas que trazem em seu centro gênero e feminino negro dialogam ainda com as noções que extrapolam a raça, incluindo as intersecções de classe e geração, principalmente. Assim, fazem imersões que nos permitem acompanhar experiências, projetos, trajetórias e atuações em áreas já bem conhecidas das historiadoras e historiadores do campo, como o associativismo e a educação. Mas também naquelas cujas investidas de pesquisas sistemáticas são mais recentes, como sobre esportes, artistas e poetas.

Neste sentido, em seu artigo, Júlio Claudio da Silva percorre o caminho trilhado pela atriz Léa Garcia, desde o ingresso no Teatro Experimental do Negro até sua estreia no cinema brasileiro. Seu objetivo é compreender por meio de entrevistas e matérias publicadas em periódicos, como a carreira dessa atriz – marcada pelos estereótipos raciais e de gênero atribuídos pela crítica especializada à mulher negra – pode fornecer uma abordagem inovadora para observarmos as estratégias de resistências e alianças protagonizadas por Léa Garcia, e não apenas pelas lideranças masculinas do movimento negro, na luta contra o racismo, bem como na abertura e ampliação para espaços e temáticas negras nos palcos e nas telas do cinema brasileiro.

Já o artigo de Luara dos Santos Silva analisa a história de vida da professora e escritora negra, de classe média, Coema Hemetério, discutindo seus limites e “possibilidades de fala” na tentativa de driblar as hierarquizações raciais e de gênero no espaço público, impostas por crenças pretensamente científicas, que destacavam a inferioridade de negros e mulheres, no alvorecer do século XX.

Abordando ainda a temática da educação, Jucimar Cerqueira dos Santos e Mayara Priscilla de Jesus dos Santos analisam o alcance de inúmeras medidas e iniciativas femininas de criação de escolas noturnas para mulheres na Bahia, como alternativas para o enfrentamento dos preconceitos machistas e racistas da época, destacando a trajetória de Maria Odília, “a primeira mulher negra a se formar na FAMEB (Faculdade de Medicina da Bahia) em 1909”.

Cláudia Maria de Farias discorre sobre ao processo de inserção, permanência e ampliação da participação das mulheres negras no campo esportivo brasileiro, nas décadas de 1940 e 1950. A análise dos relatos orais das atletas olímpicas negras Melânia Luz e Deise Jurdelina de Castro revelam as intersecções do gênero, classe, raça/etnia e geração e o protagonismo de mulheres negras no pós-abolição.

O cotejo dos estatutos de clubes, periódicos, processos crimes, possibilitou a Juliana da Conceição Pereira analisar o comportamento moral e as regras de conduta adotadas nos bailes dos clubes dançantes cariocas entre as décadas de 1880 e 1920. As fontes pesquisadas revelam como as variáveis de raça, classe e gênero foram selecionadas pelos articulistas em seus artigos para justificar os crimes perpetrados contra as frequentadoras dos bailes.

Geilza da Silva Santos enfrenta o desafio de tentar localizar o lugar da mulher negra no pós-abolição. Para desenvolver tal tarefa debruçou-se sobre as transformações pelas quais passou a história das mulheres, suas contribuições e o legado do feminismo negro. Uma análise sobre as mulheres negras da comunidade quilombola Senhor do Bonfim, no munícipio de Areia, Estado da Paraíba, foi tecida a partir dos censos do munícipio, do relatório antropológico produzido pelo INCRA, bem como das memórias de duas moradoras do lugar no tempo presente.

João Marinho da Rocha apresenta uma vigorosa história das emergências das identidades étnicas e do movimento social quilombola do Rio Andirá, Estado do Amazonas. Seu trabalho reúne relatos orais das mulheres quilombolas, diretamente envolvidas no processo de luta pelo reconhecimento de direitos e lança luz sobre a presença negra e suas lutas no pós-abolição da Amazônia.

Encerrando este número da revista, Marina Vieira de Carvalho nos brinda com uma abordagem envolvente e bastante inovadora. Ao analisar o imaginário pornô-erótico sobre a mulher negra no pós-abolição carioca, a autora compara os discursos e conflitos produzidos sobre o corpo feminino nas narrativas ficcionais normativas e colonizadas do periódico Rio Nu (1898-1916) e naquelas criadas pela poesia erótica transgressora de Gilka Machado, mulher afrodescendente e pobre. Assim, a autora reconstrói um aspecto pouco explorado na história do pós-abolição, evidenciando o “novo feminino” da escrita de Gilka, que dá voz sobretudo às mulheres das camadas populares, recusando o aprisionamento e a “natureza maldita do corpo feminino negro”.

Em tempos tão difíceis, de inúmeros retrocessos e perdas de direitos duramente conquistados, as pesquisas aqui apresentadas sobre a história das mulheres negras demonstram a vivacidade e os avanços da escrita da história do pós-abolição, além de apontar outras tantas possibilidades abertas pela Lei 10.639, de 2003 que, voltada à educação antirracista, instituiu a obrigatoriedade do ensino da História da África e da cultura Afro-brasileira, reconhecendo a importância das lutas dos africanos e africanas, bem como de seus descentes, na formação da sociedade brasileira.

Nota

1 RIOS, Ana Maria; MATTOS, Hebe Maria. “O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas”. TOPOI, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, pp. 170-198

 

Cláudia Maria de Farias

Fernanda Oliveira da Silva

Júlio Cláudio da Silva

As organizadoras e o organizador

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Brasil – China / Boletim do Tempo Presente / 2019

Apresentação

As relações entre Brasil e China vem se desenvolvendo a passos largos na última década. Com o intuito de divulgar a língua e a cultura chinesa, o governo chinês desenvolver parcerias com universidades ao redor do mundo para a criação de Institutos Confúcio.

Em Recife, a Universidade de Pernambuco desenvolveu uma próspera parceria ao longo de mais de 6 anos com o Instituto Confúcio e com a CUFE (Universidade Central de Finanças e Economia), tendo um Seminário Internacional que conta com a participação de diversos pesquisadores dos dois países.

Nesta edição especial, são publicados parte dos artigos apresentados no evento, dando destaque aos da área de economia e de tecnologia.

Ademir Macedo Nascimento

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Autoavaliação institucional / Boletim do Tempo Presente / 2019

Apresentação

A autoavaliação institucional é um pre-requisito básico para a melhoria contínua das instituições de ensino superior.

Neste sentido, as faculdades e universidades de Pernambuco, desenvolvem a 7 anos um fórum para troca de experiências e de divulgação de boas práticas.

Nesta edição, são publicados os melhores artigos apresentados neste evento [VII Fórum das CPAs de Pernambuco], além de outros artigos do II Seminário Internacional Sino-Brasileiro.

Prof. Dr. Ademir Macedo Nascimento

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China / Boletim do Tempo Presente / 2019

Apresentação

A aproximação entre a Universidade de Pernambuco e a CUFE (Universidade Central de Finaças e Economia da China) vem trazendo grandes resultados para o meio acadêmico, em especial na área de Administração.

Tal aproximação só foi possível devido ao trabalho do Instituto Confúcio da UPE, que atua em Pernambuco há mais de 6 anos e já permitiu que diversos alunos dos cursos de línguas e cultura pudessem conhecer a China.

Essa rica oportunidade culminou na realização de dois Seminários Internacionais com pesquisadores brasileiros e chineses apresentando suas pesquisas e realizando um intercâmbio de conhecimento. Para ambos os lados, essa é uma parceria proveitosa, pois permite que se conheça mais sobre o mercado de cada região e como parcerias econômicas vem sendo desenvolvidas pelos dois países.

Nesta edição apresentamos artigos sobre a China focados nos diversos aspectos que as pesquisas vem focando recentemente.

Ademir Macedo Nascimento

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História Marítima e Portuária / Almanack / 2019

História Marítima e Portuária, temas propostos para este dossiê de Almanack, são ao mesmo tempo clássicos e pouco explorados. As perspectivas abertas pelos textos aqui reunidos indicam um longo caminho a percorrer a fim de adensar as temáticas e suas muitas abordagens possíveis.

A rigor, portos seriam os lugares modernos de movimentação de gentes e mercadorias, aparelhados com equipamentos mais sofisticados do que os simples atracadouros. Porém, tendo em vista que gentes e mercadorias circulavam desde antes de uma definição contemporânea calcada no desenvolvimento capitalista, acostumamo-nos a chamar de portos os lugares onde navios de diferentes tamanhos e procedências atracavam. Em torno dos portos desenvolveram-se especificidades urbanas, culturais e econômicas, fazendo com que as cidades portuárias tivessem e, ainda hoje, tenham características quase sempre resultantes de sua condição de elo de comunicação com sua hinterland, com lugares mais ou menos próximos, ou então com as rotas de longo curso que as ligavam ao mundo todo.

Ofícios, culturas profissionais, formas de organização, trânsito intenso, paisagens diversificadas, línguas e etnias diversas em convívio: tudo isso aproxima a história dos portos e das cidades portuárias. Fenômeno similar pode ser observado a bordo: também os navios são lugares sociais da diversidade e do movimento, embora o isolamento e as constantes tentativas de impor a disciplina em pleno mar tenham feito com que historiadores observassem a vida dos embarcados como um fenômeno semelhante ao que ocorria nos ambientes da prisão ou da fábrica.

Por isso, o diálogo entre História Portuária e História Marítima[5] é estimulante. Se a História Portuária vincula-se à terra firme, à economia e à sociedade, a História Marítima é seu espelho. Os homens não habitam o mar, ainda que tripulantes passassem boa parte de suas existências a bordo. A chegada em terra, para cumprir seus destinos e obrigações, sempre se dava em portos e impactava a sociedade local: os navios traziam mercadorias, demandavam abastecimento, portavam informações escritas e orais, introduziam epidemias, carregavam passageiros, podiam ser meios de fuga da justiça, de contrabando de bens, de invasão militar e de resistência.

Ao dizermos “homens”, estamos nos referindo à humanidade e também ao gênero masculino. Os trabalhos marítimos e portuários eram masculinos por excelência, muito embora as mulheres não estivessem totalmente afastadas do ambiente dos navios. Todavia, sua incorporação era, quase sempre, na condição de passageiras ou, no caso portuário, de familiares daqueles que embarcam e que viviam à espera. Portanto, a História Portuária e a História Marítima também comportam análises nas quais o gênero é uma categoria relevante, à espera do interesse dos historiadores.

Se a História Portuária dialoga mais fortemente com as histórias nacionais, a História Marítima pode distanciar-se dessa perspectiva. Na verdade, alguns autores têm proposto a superação das histórias imperiais e nacionais nos estudos de História Atlântica – e podemos ampliar suas preocupações para oceanos, mares e cursos d’água diversos. Os oceanos são espaços geográficos e ao mesmo tempo uma categoria. Com os Estados, os oceanos compartilham essas e outras características: ambos têm fronteiras definidas e seus sujeitos constroem lealdades políticas entre si e em relação aos poderes institucionais. Ao mesmo tempo em que sugere isso, David Armitage observa, nos Estados, fronteiras mutantes e “conjunções imperfeitas entre lealdades políticas e limites geográficos”. Os oceanos são obras da natureza, mas o uso desses espaços é histórico e sobre eles podemos nos debruçar como sobre qualquer outro objeto. O autor ainda indica uma cronologia para a História Atlântica, de Colombo à era das revoluções. Com espaço e tempo próprios, a História Marítima pode transcender a abordagem estrita (e eventualmente estreita) dos Estados nacionais para não ser reduzida a uma forma palatável de estudar os impérios marítimos. Em sintonia com Armitage, Bernard Bailyn pontua que uma história das gentes do / no mar não pode se traduzir na somatória das histórias dos povos que habita(va)m suas margens, se quisermos ir além do caráter imperial e nacional. É importante acrescentar que, se não é uma somatória, essa abordagem também não pode simplesmente deixar de lado a história dos povos da Europa, África e América, como eventualmente ocorre.

Muitas abordagens poderiam surgir a partir da conjunção entre História Portuária e História Marítima, inclusive uma visão integrada. Neste dossiê, os textos e seus autores compõe um inventário em andamento, que está a merecer uma ampliação e um fortalecimento do campo.

Os textos do dossiê lidam com o arco temporal situado entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XX. Todos eles referem-se ao Atlântico Médio e Sul – espaços que, no âmbito de uma historiografia atlântica, têm tido muito menos destaque. Historiadores do Brasil, da Argentina e da Espanha, reunidos na empreitada proposta pelos organizadores, falam, leem e escrevem em português e espanhol. As fontes produzidas nesses idiomas são nossa força para intervir no debate que, visivelmente, tem privilegiado o Atlântico Norte anglófono e francófono, transformado no parâmetro para estudos mais abrangentes.

Todo sumário é um pouco arbitrário, e nesta apresentação isso também pode ocorrer. Observamos, entre outras possibilidades de arranjo, três abordagens exemplificadas pelos textos do dossiê. A primeira, focada em historiografia e fontes da História Portuária e Marítima, está representada nos artigos de Cezar Honorato e Jaime Rodrigues. O primeiro nos brinda com sua ampla experiência ao construir um balanço sobre a historiografia de portos e cidades portuárias, com maior densidade para o caso emblemático do Rio de Janeiro, mas sem descuidar da produção sobre outros lugares do Brasil. Além de apontar as grandes linhas gerais pelas quais a historiografia dos portos vem se desenvolvendo há décadas, Honorato tem um amplo domínio dos estudos e dos núcleos mais ativos e relevantes de produção historiográfica sobre a temática portuária. Seu domínio do tema provém da longa experiência docente e da coordenação, em conjunto com Miguel Suarez Bosa, da Universidade de Las Palmas, do projeto “Puertos y Ciudades del Mundo Atlántico”, do qual participam pesquisadores de diversas partes do mundo. Por sua vez, Jaime Rodrigues explora preliminarmente o potencial dos registros de matrículas como fontes para a História Marítima na perspectiva da História Social e dos homens comuns que foram, eles também, construtores do império. Além de permitir um vislumbre da circulação das gentes livres e pobres entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas de século XIX, as fontes viabilizam estudos sobre cargos e funções a bordo; tempo de experiência e faixa etária dos embarcados; as eventuais possibilidades de ascensão profissional; a relação entre os tipos de navios, rotas marítimas e o tamanho das tripulações; e a variedade de lugares de origem, condição social e treinamento profissional dos marinheiros e oficiais.

A segunda abordagem contida nos textos do dossiê remete aos estudos de casos de portos. Alejandro González Morales e Antonio Ramón Ojeda trabalham com um espaço mais amplo – a chamada Macaronésia, composta pelos arquipélagos atlânticos incorporados ao território de suas antigas metrópoles, a saber: Açores, Madeira e Canárias. Sua condição insular é determinante para a existência de tantos portos e de tantas escalas feitas por embarcações de diferentes tipos em seus portos. A natureza como condicionamento é o ponto de partida do estudo que os autores nos apresentam sobre o desenvolvimento portuário desses arquipélagos, considerados em perspectiva comparativa.

Demografia e sociedade na região portuária do Rio de Janeiro são o objeto de Thiago Mantuano. Seu olhar para a cidade no século XIX se constrói desde as freguesias portuárias, sua dinâmica e evolução urbana. Com foco em espaços exíguos e de alta densidade demográfica, o autor os insere na região, no Brasil e no mundo por meio do porto carioca e de seu movimento. A riqueza que por ali circulou nos tempos em que a cidade era a capital do Império não impediu que a região portuária do Rio fosse, no decorrer no tempo, uma área de concentração da pobreza.

Mas não são apenas grandes volumes o sustentáculo dos portos. Flávio Gonçalves dos Santos vem, há anos, dedicando-se ao estudo de Ilhéus, na Bahia, e do impacto de seu porto na vida da cidade. O autor lida com temas como composição social e ocupações profissionais sendo transformadas em razão da atividade portuária. Todos os indícios interessam ao historiador e Santos deixa isso claro ao lidar, com desenvoltura, com fontes seriais e literatura de ficção para compor uma abordagem demográfica que não descuida da sociedade em processo de transformação.

Laila Brichta atravessa o Atlântico para focar um espaço colonial ainda pouco estudado entre nós: Moçâmedes no século XIX. O local vai ganhando importância entre os domínios portugueses na medida em que ali se viabilizam atividades comerciais com outros portos africanos e com a metrópole portuguesa. Diferentemente do que previam os planos de colonização, será na pesca e no comércio dos produtos dela derivados que se construirá a relevância dessa região ao sul de Angola.

Por fim, o dossiê traz uma perspectiva inescapável: a construção de circuitos atlânticos por meio da circulação de pessoas, da vigilância, da repressão e das ideias que, não fossem por esse caminho, não teriam se disseminado tão amplamente entre fins do XIX e início do XX. Três artigos foram dedicados a esse exame. Martín Albornoz e Diego Antonio Galeano dividem a autoria do estudo sobre anarquistas em pleno movimento pelo Atlântico Sul, sobretudo na rota que ligava o Rio de Janeiro a Montevidéu e Buenos Aires. Policiais, diplomatas e outros agentes da repressão ao anarquismo na América do Sul deixam claro que as fronteiras nacionais são, por vezes, limites que os historiadores criam para seu próprio conforto. Diante das estratégias internacionais de controle dos movimentos espaciais, os anarquistas foram capazes de construir suas próprias estratégias de proteção e escape por mar e nos portos do continente.

Álvaro Pereira do Nascimento revisita a história de João Cândido como personagem emblemática da vida marítima em um momento de transformações muito pronunciadas. O esforço não é simplesmente biográfico, mas sim o de entender Cândido como o guia para uma análise do impacto tecnológico na nova realidade, na qual a Armada continuava a recrutar um contingente amplo de homens negros e egressos da escravidão recém-extinta no Brasil. Cor, tecnologia, relações de trabalho e disputas ideológicas no novo regime são questões que Nascimento mobiliza e às quais dá um tratamento que raramente se vê em abordagens que não a da História Social por ele praticada.O dossiê encerra-se com o texto de Rodrigo Faustinoni Bonciani, que analisa um conto do brasileiro Machado de Assis e um romance do estadunidense James Weldon Johnson, expoente da Renascença do Harlem. Ambos os literatos são oriundos de sociedades escravistas e viveram o pós-abolição, expressando na literatura as repercussões da diáspora africana nas relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos. Bonciani concentra-se na virada dos séculos XIX e XX para interpretar diferentes abordagens existentes nos estudos sobre o Atlântico negro.

Poderia haver muito mais. O dossiê deixa claro que o campo é amplo e pode ser aumentado. Trouxemos para este número de Almanack abordagens diferentes que poucas vezes dialogam entre si. Evidenciamos possibilidades de estudos considerando fontes conhecidas e outras nem tanto. Analisamos os portos e o mar em diferentes períodos e perspectivas. Trouxemos para o palco a História Econômica, a História Social e os Estudos Culturais. Tudo isso ainda é pouco, o que não nos desanima: portos e mares são objetos sedutores e continuarão a sê-lo para as gerações de estudiosos que virão.

Nota

5. LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. Revista Brasileira de História,6: 7-46, set. 1983.

Referências

LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. Revista Brasileira de História, 6: 7-46, set.1983. [ Links ]

Jaime Rodrigues – Professor na Unifesp e doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). http: / / orcid.org / 0000-0002-9893-7365

Flávio Gonçalves dos Santos – Professor na Uesc e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). http: / / orcid.org / 0000-0003-4241-8870


RODRIGUES, Jaime; SANTOS, Flávio Gonçalves dos. História marítima e portuária em revista. Almanack, Guarulhos, n.21, jan / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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História das Doenças e das práticas de curar no Oitocentos / Almanack / 2019

As últimas décadas têm sido marcadas por uma ampliação significativa no campo de pesquisa da história das doenças e das práticas de curar no Oitocentos. Dentre as características presentes nesses estudos, podemos ressaltar a intercessão e diálogo entre diferentes especialidades científicas, destacadamente os diálogos entre a história e a antropologia e a história e a linguística e a teoria literária; a multiplicidade de opções teórico-metodológicas adotadas – que transitam, mais comumente, entre a história social, a (nova) história política, a história cultura e a história das ciências – e de fontes utilizadas. Aliás, parte desse alargamento de fontes e olhares nos tem permitido, cada vez mais, captar as percepções em torno das doenças e das possibilidades de curas de certos estratos sociais antes desconsiderados em narrativas da história da medicina (em âmbito geral, apenas de uma medicina douta) eivadas de triunfalismos e percepções “presentistas”. [7]Cada vez mais sabemos dos achaques e de suas explicações e terapêuticas engendradas por escravos, libertos e demais elementos oriundos das camadas subalternas, num tipo de olhar que Roy Porter (1985), tão bem nomeou “visão dos pacientes / sofredores”.

Outro aspecto que merece menção é o alargamento dos temas de investigação: representações e caracterizações de doenças; passagem sempre temida de epidemias; diferentes medicinas que coexistiam e, não raro, se confrontavam em diferentes arenas; institucionalização da medicina douta; práticas de curar e doenças dos cativos, entre outros assuntos. Não sendo aqui o lugar para arriscarmos uma revisão dessa extensa bibliografia[8].

No rastro dessas possibilidades de ampliarmos o campo de análise em torno dessa área de pesquisa em franca expansão e fomentar o diálogo entre parte de seus autores e estudos, que apresentamos o presente dossiê temático História das Doenças e das práticas de curar no Oitocentos, na Revista Almanack. Acreditamos que o dossiê possa contribuir para que seus leitores – especialistas ou não especialistas – tenham diante de si textos que uma pertinente amostragem dessas novas leituras, fontes e métodos de estudo em torno dos temas da saúde e da doença no século XIX, com ênfase à realidade do Brasil imperial.

Assim, o artigo de Jean L. N. Abreu, “Discípulos de Asclépio: as teses médicas e a medicina acadêmica no oitocentos (1836-1897)”, analisa, a partir da organização das primeiras faculdades de medicina no Brasil, na década de 1830, até fins do século XIX, de que maneiras a produção de final de curso desses “facultativos” – como se dizia à época – espelha a institucionalização dos saberes médicos no Brasil. Nesse sentido, o autor, usando como corpus documental o banco de teses existente no Arquivo Público Mineiro, percebe as leituras, teorias e controvérsias que formavam os médicos nas faculdades de medicina do Império, ainda em vias de afirmação e legitimação de seus discursos e práticas.

Ainda acerca do processo de institucionalização dos saberes e práticas médicas oficiais no Brasil, mas, nesse caso, com base em um objeto mais específico de interpretação, qual seja as “nevroses” e demais “doenças mentais”, temos o texto de Simone de Almeida Silva, “Impugnação analítica: uma semiologia das doenças nervosas em defesa da medicina douta no período joanino”. A autora analisa os diagnósticos produzidos em torno dos êxtases da beata irmã Germana (1782-1853), na região do Caeté (Minas Gerais). Assim, diferentes saberes médicos oscilaram entre a percepção de que a beata era vítima de fenômenos sobrenaturais, argumento defendido por dois cirurgiões, e sua recusa, tecida em obra publicada pela Imprensa Régia em 1814, pelo médico mineiro diplomado na Europa, Antônio Gonçalves Gomide. Tais diferenças de olhares, teorias e conceitos acionados por esses diferentes discípulos de Hipócrates, revelam a rivalidade entre cirurgiões e médicos, além das influências de autores como Philipe Pinel e outros alienistas nessa publicação que a autora considera uma das primeiras obras sobre o tema do alienismo no Brasil.

O artigo de Tânia Pimenta, intitulado “Médicos e cirurgiões nas primeiras décadas do século XIX no Brasil”, com base na documentação da Fisicatura-mor (1808-1828), nos permite tomar conhecimento das diferentes “artes de curar” e perfis sociais daqueles que recorreram ao Órgão para oficializarem suas terapêuticas a partir da aquisição de licenças para curar. Assim, Pimenta dá conta das amplas e profícuas possibilidades analíticas dessa rica documentação, a exemplo da relação – em geral conflituosa – entre médicos e cirurgiões, os conhecimentos médicos exigidoa para a aquisição das licenças expedidas pelo Fisicatura, seu raio de ação em diferentes espaços geográficos, os custos arcados pelos indivíduos que queriam curar sem caírem nas raias da repressão e da ilegalidade, entre outros aspectos.

Os outros quatro artigos que compõem o presente dossiê revelam uma temática em franca expansão na historiografia das doenças e das artes de curar (como se dizia de modo corrente no oitocentos): a saúde dos escravos[9].

Assim em, “tráfico e escravidão: cuidar da saúde e da doença dos africanos escravizados”, de Jorge Prata, encontramos aproximações metodológicas e conceituais entre a História da Escravidão e a História das Ciências para o entendimento das formas de cuidados dos escravizados e das classificações e percepções dos achaques que sofriam. O autor, usando variada documentação, como testamentos e inventários, fontes da Santa Casa de Misericórdia, assentos de óbitos, defende a existência de um “sistema de saúde do escravo”, com especificidades e formas de identificação das doenças e, sobremaneira, tipos de tratamento que possuíam características próprias.

A fértil documentação da Santa Casa de Misericórdia (desta vez, a da Bahia) reaparece em “Decrépitos, anêmicos, tuberculosos: africanos na Santa Cada de Misericórdia da Bahia (1867-1872)”, de Gabriela Sampaio que, valendo-se de fontes inéditas, analisa as doenças dos escravos que viviam em Salvador na década de 1870. A autora busca, a partir desses registros, “chegar mais perto de quem eram e como viviam” esses indivíduos africanos, muitos deles cativos, uma vez que são revelados pela documentação do Hospital dados como a idade, o estado civil, a profissão, sua “nação”, entre outros dados. Além disso, a partir da produção médica da época, a autora igualmente busca compreender o discurso médico oficial tecido acerca das doenças que acometiam essa população e suas causas.

O corpo e a doença escrava como objetos de análise do saber médico oficial no século XIX também é analisado por Sílvio Lima, com base na obra do renomado médico Cruz Jobim. Assim, o autor sublinha de que maneiras, nas primeiras décadas do século XIX, o entendimento das enfermidades e a produção do conhecimento médico se processavam a partir da observação direta dos pacientes em hospitais que cada vez mais se configuravam com importantes espaços pedagógicos e de produção de textos médicos, a exemplo de teses, manuais e periódicos especializados. Para o autor, nesse processo de produção de saberes médicos, os corpos dos escravizados internados na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, seriam de fundamental valia para a construção das teorias etiológicas que tão fortemente influenciaram a medicina brasileira em recentes vias de institucionalização.

Como há tempos sabemos, os escravizados e seus descendentes não apenas adoeciam, mas também curavam. Nesse sentido, o artigo produzido por Sebastião Pimentel Franco e André Nogueira, interpreta as ações de dois curandeiros ilegais que atuaram na província do Espírito Santo na segunda metade do século XIX, sendo um deles, decerto filho de uma cativa. O processo-crime, tipo fonte já consagrada na produção de abordagens sociais em torno do universo do cativeiro, é aqui usado para percebermos que tipo de indivíduo recorreu aos curandeiros, quais achaques curavam e de que tipo de terapêutica e recursos sobrenaturais se valeram para a realização de suas curas. Assim, o caso de “O Trem” e Olegário dos Santos, nos remete ao pregnante universo da crença no feitiço e de práticas de curar que flertavam com o catolicismo e com matrizes culturais centro-africanas.

Aproveitamos para externar nossos agradecimentos à equipe da Revista Almanack pela eficaz parceria e auxílio em todas as etapas da edificação desse volume. Agradecemos, igualmente, aos colaboradores, cujos estudos aqui publicados nos permite um panorama dos mais atuais em torno da produção acadêmica da história das doenças e das práticas de curar no oitocentos. Enfim, desejamos que as leituras que seguem contribuam para o fomento do diálogo nesta seara de produção e possibilite novas incursões no universo fascinante e vário das doenças e suas curas no século XIX.

Saudações e boa leitura!

Notas

7. Para uma discussão sobre essa temática, ver, entre outros, Edler (1998) e Luiz Antônio Teixeira et. al. (2018, pp. 9-26).

8. Para um apanhado mais geral dessas tendências e texto concernentes à história das doenças e das práticas de curar no oitocentos, conferir Acosta (2005), além dos textos – muitos se propondo a um “estado da arte” publicados na coletânea organizada por Teixeira e Pimenta (2018).

9. Para uma abordagem mais ampla e que sugira ao escopo dessa apresentação sobre a produção historiográfica sobre a saúde dos escravos, ver, entre outros Figueiredo (2006, pp. 252-273) e Barbosa e Gomes (2016, pp. 273-305).

Referências

GOMES, Flávio e BARBOSA, Keith de Olivreira. Doenças, morte e escravidão africana: perspectivas historiográficas. PIMENTA, Tânia Salgado e GOMES, Flávio (org.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras / CNPQ, 2016. [ Links ]

EDLER, Flávio. A medicina brasileira no século XIX: um balanço historiográfico. InAsclépio. V. L-2, 1998. [ Links ]

FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. As doenças dos escravos: um campo de estudo para a história das ciências da saúde. NASCIMENTO, Dilene Raimundo do, Diana Maul de; MARQUES, Rita de Cássia (org.). Uma história brasileira das doenças, v. 2. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. [ Links ]

PORTER, Roy. The patient’s view: doing Medical history from below. Theory and Society, v.14, n.2, Mar1985, pp. 175-198. [ Links ]

TEIXEIRA, Luiz A; PIMENTA, Tânia S. HOCHMANe Gilberto (org.). História da Saúde no Brasil. 1ed.São Paulo: Hucitec, 2018. [ Links ]

WITTER, Nikelen A. Curar como arte e ofício: contribuições para um debate historiográfico sobre saúde, doença e cura. In: Tempo. Revista do departamento de História da UFF. V.10, 2005. Disponível em:http: / / www.scielo.br / pdf / tem / v10n19 / v10n19a02.pdf. [ Links ]

André Luís Lima Nogueira – Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Atualmente está no Programa de Pós-doutorado Nota 10 da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, na mesma instituição (FAPERJ / FIOCRUZ). Autor de Entre Cirurgiões, Tambores e Ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em ação nas Minas Gerais (século XVIII) (Garamond, 2016), além de artigos e capítulos em livros. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-2160-4279

Lorelai Brilhante Kury – Doutora em História pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS. Atualmente é professora do PPGHCS da Casa de Oswaldo Cruz (onde atua também como pesquisadora titular) e do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autora de Usos e circulação das plantas no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2013; Iluminismo e Império na Brasil: O Patriota (1813-1814). 1. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz / Biblioteca Nacional, 2007. Entre outros livros, artigos e capítulos de livros. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-5231-5720

SEBASTIÃO PIMENTEL FRANCO – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Professor Titular e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de O Terribilíssimo Mal do Oriente:o cólera da província do Espírito Santo (1855-1856) (EDUFES, 2015), e da organização, com a colaboração de outros pesquisadores, da coletânea Uma História Brasileira das Doenças, vols. 4, 5, 6 e 7. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-3593-1724


NOGUEIRA, André Luís Lima; KURY, Lorelai Brilhante; FRANCO, Sebastião Pimentel. O oitocentos visto a partir de suas doenças e artes de curar. Almanack, Guarulhos, n.22, maio / agosto, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Escritas do Tempo | Unifesspa | 2019

ESCRITAS DO TEMPO Pós-abolição

Transformar as experiências de homens e mulheres no tempo em “matéria histórica” requer inscreve-las em diferentes narrativas. Para representa-las – e domesticar o próprio tempo, por extensão -, homens e mulheres precisam contá-las e transformá-las em relatos, pois as experiências, assim como o tempo, tornam-se efetivamente humanas e sobrevivem à ação “amnésica do tempo”, apenas quando narradas.

É com esta missão de narrar e interpretar as experiências humanas no tempo em diferentes perspectivas de análise, através de distintas interrogações, reflexões, temas e temáticas de estudo, por diferentes ângulos teóricos e metodológicos, que a Revista Escritas do Tempo ([Marabá], 2019-) nasce com uma das primeiras ações do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST) da Unifesspa.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre.

ISSN 2674-7758

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História e Patrimônio: questões teóricas e metodológicas / Anos 90 / 2018

O presente dossiê pretende contribuir para os debates recentes acerca das interfaces entre história e patrimônio. Para tanto, agrega artigos que enfocam questões teóricas e metodológicas referentes a três possibilidades de interface entre história e patrimônio. A primeira delas trata das investigações acadêmicas sobre os processos de patrimonializacão e usos do passado, cuja acolhida não se estabeleceu apenas em programas de pós-graduação stricto sensu em História, mas em uma miríade de programas interdisciplinares criados no Brasil nas últimas décadas. A segunda possibilidade envolve a atuação do profissional historiador em um campo de disputas, onde estão em jogo os embates em torno de práticas e representações sobre os bens culturais e sobre o passado. Finalmente, a terceira interface está relacionada ao ensino de história e envolve especialmente as políticas educacionais que, no Brasil, tem colocado o patrimônio como eixo de abordagens transversais no currículo escolar. Em qualquer destes lugares de produção histórica sobre o patrimônio, o aprofundamento teórico e metodológico constitui-se em prerrogativa para o avanço da reflexão sobre a especificidade das contribuições do conhecimento histórico para a questão, bem como para o compartilhamento e debate interdisciplinar com outras áreas envolvidas. Desse modo, o Dossiê História e Patrimônio agrega reflexões de ordem teórica e metodológica relacionadas às possibilidades de interface acima elencadas, discutindo autores e conceitos utilizados, bem como metodologias postas em ação para elucidação de problemas.

A ideia da proposição desse dossiê partiu de debates acerca da importância das questões teórico-metodológicas desenvolvidos no GT História e Patrimônio Cultural da ANPUH e foi aprovada pela Comissão Editorial da Anos 90 no primeiro semestre de 2017. Foi feita uma chamada ampla no dia 31 de julho de 2017 para que todos os doutores que investigam acerca dessa temática interessados em publicar artigos no dossiê fizessem as submissões. O prazo para submissão estendeu-se até o dia 30 de abril de 2018, quando iniciou a busca por outros doutores especialistas no tema para que fizessem gratuitamente a avaliação dos artigos submetidos, conforme as normas da revista. Agradecemos a esses avaliadores anônimos que muito contribuíram para a seleção e qualidade dos textos aqui publicados.

Ao final do processo de avaliação, foram aprovados os artigos que seguem:

“O lugar do patrimônio na operação historiográfica e o lugar da história no campo do patrimônio”, de Zita Rosane Possamai, mapeia a história do patrimônio no Brasil a partir da contribuição dos museus e destaca a presença da produção historiográfica nesses espaços. Problematiza as aproximações e distanciamentos desse saber nesse campo e finaliza com a análise de dados recentes sobre a produção em nível de pós-graduação sobre patrimônio em diversas áreas, com ênfase na história.

“Patrimônio cultural na contemporaneidade: discussões e interlocuções sobre os campos desse saber”, de Elis Regina Barbosa Angelo e Euler David de Siqueira, discute, a partir dos aportes conceituais da História e da Antropologia, as relações entre o patrimônio, como elemento de diálogo com o passado, e os processos vinculados à memória, à identidade, ao tempo e à cultura. Situa a configuração do patrimônio associado ao Estado-nação e problematiza os movimentos identitários mais recentes, presentes em diversas regiões do mundo, que reivindicam a valorização dos patrimônios locais no contexto da globalização.

“Memórias e identidades: a Patrimonialização e os usos do passado”, de autoria de Sandra C. A. Pelegrini, busca mostrar os “perigos” aos quais estão sujeitos os profissionais de diversas áreas atuantes em comissões ou conselhos ligados à preservação dos bens culturais. O estudo de caso do processo de tombamento e de registro de bens patrimoniais, na Estância Balneária de São Vicente (São Paulo), permitiu à autora relacionar aportes teóricos e metodológicos na abordagem da questão.

“Patrimônio cultural e turismo: tensões contemporâneas”, de Fernando Cesar Sossai e Ilanil Coelho, enfrenta os tensionamentos decorrentes da relação entre patrimônio e turismo, ao ter como foco a cidade de Barcelona, Espanha. Os autores mostram como bens culturais ativados como patrimônios mundiais constituíram-se como suportes para contestações contra a presença dos turistas na cidade e contra a expansão desenfreada do turismo internacional na região. Através das imagens fotográficas chega-se a vozes / imagens dissonantes produzidas por sujeitos individuais ou coletivos, contrários à presença desses visitantes na cidade.

“Patrimônio e performance cultural: experiência e territorialidade na conquista do espaço”, de Eloísa Pereira Barros, através dos conceitos de território, performance cultural e sua relação com o patrimônio, propõe refletir sobre as ideias de memória, performance, cultura e identidade. Considera o patrimônio cultural como prática social que performa o movimento realizado pelos grupos sociais ao materializar os aspectos simbólicos e codificados da cultura nos espaços sociais, seja ele material ou imaterial.

“O registro do Cordel como patrimônio imaterial e as políticas de preservação da cultura popular no Brasil”, de Antonio Gilberto Ramos Nogueira, aborda os desafios da preservação dos aspectos culturais intangíveis e percorre as mudanças conceituais e metodológicas nas políticas públicas sobre essa problemática. Trata do processo de construção dos sentidos de patrimônio cultural imaterial e da patrimonialização do Cordel no Brasil. Através da trajetória da Literatura de Cordel, o autor mapeia os deslocamentos de sentidos, indo do folclore ao patrimônio imaterial, nas políticas públicas no que se refere à noção de cultura popular.

“A patrimonialização e suas contradições: o patrimônio prisional na França do tempo presente”, de Viviane Trindade Borges, aborda os embates em torno das práticas de patrimonialização de espaços prisionais na França, tendo como foco o caso da Prison de La Santé. A autora analisa os destinos contraditórios desses patrimônios monumentais, obsoletos na atualidade, e problematiza a atuação de intelectuais franceses nesse processo, entre os quais alguns historiadores, que debatem a emergência do conceito de patrimônio carcerário ou patrimônio prisional.

“Entre a sala de aula e o gabinete do museu: as primeiras coleções do Museu Histórico de Londrina / PR na gestão do Padre e Professor Carlos Weiss (1970-1976)”, de Cláudia Eliane P. Marques Martinez e Angelita Marques Visalli, analisa o processo de constituição das primeiras coleções no Museu Histórico de Londrina, a partir das iniciativas de seu primeiro diretor, Pe. Carlos Weiss (1970 a 1976). A atuação desse diretor determinou a escolha e prioridade dada a alguns objetos específicos, sobretudo artefatos arqueológicos e etnográficos. A quantificação do acervo por meio de um banco de dados com os registros do Primeiro Livro de Registro do Museu Histórico de Londrina permitiu analisar a recorrência nessas coleções de artefatos arqueológicos e etnográficos, provenientes da região.

Finalmente, “Goiânia: dinâmicas do patrimônio e da memória entre a instituição da cidade-monumento e a cidade-praticada”, de Edmar Aparecido de Barra e Lopes, aborda a discussão acerca dos usos sociais do passado e suas relações com a dinâmica da patrimonialização a partir da análise de narrativas dominantes sobre o urbano e a cidade de Goiânia / GO.

Essa variedade de problemas, objetos e casos empíricos apresentados demonstra, por um lado, a fertilidade das investigações sobre o patrimônio desenvolvidas no âmbito dos estudos históricos. Por outro lado, essas pesquisas demonstram a necessidade de diálogo com outras áreas de conhecimento e como essas permitem apreender a complexidade dessas questões. Finalmente, apontam para a problematização e legitimação da atuação do profissional de história e de outras áreas nesse campo. Sem exaurir as possibilidades, certamente inesgotáveis, desejamos que esse dossiê venha a contribuir para a reflexão e inspiração para novas pesquisas. E, especialmente nesse momento em que o patrimônio brasileiro sofreu uma perda inestimável com o incêndio do Museu Nacional, renove nossas esperanças em seguir agindo na defesa da preservação dos traços de nossas memórias e dos nossos passados.

Zita Possamai – Professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da UFRGS. Doutora em História com pós-doutoramento na Universidade Paris 3 Sorbonne Nouvelle (França). Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: [email protected] , http: / / orcid.org / 0000-0003-4014-5389

Alessander Kerber – Professor associado do Departamento de História e do PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em História com pós-doutoramentos na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidad Nacional de Cuyo (UNCUYO, Argentina). E-mail: [email protected] , https: / / orcid.org / 0000-0002-7604-7484


POSSAMAI, Zita; KERBER, Alessander. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 48, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV | Thiago H. Alvarado

Sustentar uma aparência foi, durante alguns séculos no Ocidente, um meio de pertencer a determinado estado social e fazer valer algumas regras que lhes eram próprias. Dessa maneira, as normas de conduta que circularam na Castela dos séculos XIV e XV expunham as preocupações de homens e mulheres cristãos que desejavam, por meio da razão natural, manter a ordem no reino. Entretanto, ainda que os letrados castelhanos tenham concedido maior espaço em seus escritos para aplicar correções nos trajes e nos desvios das mulheres, as mudanças na forma das vestimentas e de que maneira as práticas dos súditos e fiéis mudavam conjuntamente não deixaram de fazer parte de suas prédicas, conselhos ou leis. À vista disso, debruçar-se sobre essas transformações e sobre os modos com os quais os homens daquela época descreveram seus contemporâneos torna-se fundamental para a compreensão da composição social, ou seja, o lugar e o direito que cada estado dispunha dentro dessa sociedade.

Os homens de saber da Castela dos séculos XIV e XV procuraram narrar a postura que os súditos do reino deveriam manter dentro e fora de suas casas. De modo geral, malgrado a preocupação que tinham as famílias de assegurar seus estados e proteger seus bens, o regramento sobre os panos, toucas e sapatos difundiam saberes sobre os pecados em que poderiam cair todos aqueles que se vestissem ou se afeitassem de modo errado. Dessa maneira, se durante os séculos XVI e XVII os legisladores se apoiariam sobre a ideia de que as vestes expunham primeiramente o direito ou o ofício – como propôs, em alguma medida, Norbert Elias em A sociedade de corte 2 ao observar os comportamentos e a mentalidade que ordenavam a sociedade do Antigo Regime e ao considerar as roupas como parte dessa estrutura –, até o século XV as vestimentas e a aparência deveriam, acima de tudo, demonstrar a verdade e a honestidade que a alma carregava. Assim, lançando mão de tratos canônicos, cadernos de cortes, ordenamentos, leis e outros documentos de cunho normativo e moralizante, um passo em direção a essas reflexões é o que dá Thiago Henrique Alvarado em seu livro lançado em 2017, Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV.[ 3]

Alinhando-se a trabalhos recentes da historiografia que abordam costumes e regras na península Ibérica, Thiago Alvarado busca, entre outros objetivos, mostrar como uma ordem estamental pôde ser afirmada a partir do regramento e cuidado com o vestir-se. Ainda que muitos estudos atuais versem principalmente sobre as diferenciações sociais e a intenção da coroa e da Igreja em manter o equilíbrio entre os estados, [4 ]Alvarado concede igual importância para as descrições das condutas morais e dos conselhos para uma vida virtuosa. Como ilustrativo dessa ideia, o autor lança mão, entre outros documentos, do Tratado provechoso que demmuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados, [5]escrito pelo frei da Ordem de São Jerônimo, Hernando de Talavera, durante o século XV. Mais que observar a maneira como Talavera definia e normatizava os estados e seus lugares sociais, o autor aponta que os prelados e os regedores daquela época deveriam ordenar os trajes dos súditos para que os povos fossem justos, virtuosos e bons.[6]

Descritas como necessárias “para a salvação dos homens” ou como um “meio de salvaguardar os corpos” das intempéries e da natureza, as vestes que os homens e mulheres carregavam e com as quais cobriam suas vergonhas ganham, aos olhos dos reis e clérigos, dimensões teológicas. Preocupado com tais narrativas, que em determinados momentos divergem uma das outras, Alvarado se pauta pelos escritos que reconheceram os panos como proteção indispensável para todos aqueles que necessitavam cobrir suas fragilidades. Se por um lado o destaque à vestimenta é feito quando os castelhanos tratavam do momento da “queda do homem”, quando ele se descobre nu e tem vergonha de suas partes; por outro, também é dado o destaque para a função que assumia quando expunha no homem a “formosura e pureza da alma”.[7] Dessa forma, as vestes assumem, na voz de Talavera, um caráter transitório, pois, a graça da qual o homem se despiu ao desobedecer a Deus no paraíso seria retomada no Juízo Final, quando, em um ato de reconciliação com Ele, o homem seria revestido pela graça divina uma vez mais. O vestir-se e o cobrir-se ganham, mais que um significado literal, um sentido metafórico. Durante a vida, enquanto os homens transitavam do pecado original ao Juízo Final, o corpo deveria ser coberto pela castidade, penitência e mortificação da carne.

De outra maneira, Alvarado salienta principalmente duas ideias de vestimenta não necessariamente distintas: aquela que cobre o corpo, esconde as vergonhas e protege os homens das ações naturais; e outra que recobre a alma, garante a pureza e a limpeza do espírito. É fundamental, sob o olhar de Thiago Alvarado, que ambas as características das vestes fossem prescritas e assimiladas corretamente por cada estado, pois, tanto as regras morais, quanto as recomendações de proteção eram difundidas entre as mulheres de baixa linhagem, as damas e a rainha. Dando voz a letrados que tiveram grande importância no período – entre outros Afonso de Madrigal e Frei Martin de Córdoba – o autor parte de regras gerais à vestimenta e das funções que essa tinha no cotidiano de cada súdito do reino e acaba por clarificar o papel que as vestes assumiam na vida de mulheres de diferentes estados.

É por meio da mulher e de seu papel na família que o autor observa as condições financeiras e hierárquicas dos grupos dos séculos XIV e XV. Lançando mão de um período em que o reino castelhano passava por uma crise financeira e lidava com os mouros e os judeus, Alvarado mostra que a importância das mulheres é percebida quando os documentos prescrevem diversas regras para que, quando fossem se adornar e se vestir, os fizessem correta e virtuosamente. Enquanto o homem era descrito como vinculado a um ofício, as mulheres carregavam as marcas do estado e de seu vínculo familiar, ou seja, por meio delas, Thiago Alvarado pôde dar a conhecer a condição dos estados nos reinos e as organizações jurídicas sobre eles. Em relação aos outros povos que se instalaram no reino, partindo das leis dos reis Afonso X e Afonso XI, o autor procura debater a importância das cristãs se diferenciarem das hereges e das fiéis de outros credos e priorizarem transparecer, acima de tudo, a honestidade e a lealdade ao reino e à Igreja.

O estudo de Thiago Henrique Alvarado ganha mais destaque pelo mapeamento que se propõe a fazer. As funções que as vestes assumem nos séculos XIV e XV e a maneira das mulheres castelhanas se cobrirem e se adornarem são expostos ao leitor por meio de uma série de documentos legados por tratadistas, cronistas, prelados, teólogos e outros moralistas. Podese observar que para compreender a situação no reino e a produção de leis a todos os estados, Alvarado elenca, entre outras obras, Las Siete Partidas de Afonso X,[8] e o livro dos ordenamentos das cortes de Castela e Leão, Cortes de los antigos reinos de Castela y León.[9] Para observar os padrões morais cristãos que eram cobrados a todos os estados, o autor lança mão da obra de Ludolfo de Sajonia, Vita cristi…;[10] de Jacopo de Varazze, Legenda áurea; [11] além dos tratados e escritos de Afonso Madrigal, Martín Pérez, Clemente Sanchez de Vercial, Hernando de Talavera, e dos concílios de Valladolid e Toledo. Ainda que muitos desses documentos não abordassem unicamente um assunto, mas buscassem compilar os saberes necessários para que os homens e mulheres vivessem sob as regras divinas e reais, o autor ainda destaca alguns que tratavam propriamente das vestes e dos estados, são eles: Virtuosas e claras mugeres,[12] de Alvaro de Luna; La reina Doña Isabel la Católica…¸[13] da rainha Isabel; Carro de las donas,[14] de Francesc Eiximenis; entre outras obras que traziam regramentos sobre a castidade e a pureza das mulheres.

É, portanto, por meio desses escritos e de outros da época que Thiago Henrique Alvarado procura descrever certas práticas do período em questão que foram expostas nas prescrições de autoridades eclesiásticas e laicas. Tendo como objetivo principal mapear os hábitos e costumes e descrever as práticas associadas aos trajes, o autor perpassa por três questões fundamentais. No primeiro capítulo, trata das queixas que as autoridades faziam a respeito da vestimenta e como transgredir as regras sobre a roupagem afetava a organização dos estados presentes no reino. No segundo, Alvarado procura debater sobre os valores morais que permeavam as normativas. Também aqui é de interesse do autor entender de que modo as leis foram criadas, com a finalidade de ordenar o cotidiano de mulheres e homens castelhanos.

Por fim, o terceiro capítulo debruça-se sobre as características “tidas por naturais” de cada vestimenta. Na visão do autor é fundamental entender, juntamente com as regras e os valores morais, como as mulheres foram aconselhadas em práticas virtuosas e alertadas sobre as pecaminosas ao vestirem-se e afeitarem-se. Por meio desse mapeamento e dos debates levantados por Alvarado, o trabalho monta um panorama de alguns principais costumes presentes no reino de Castela nos séculos XIV e XV.

Ao final do trabalho, conclui-se que as mulheres deveriam afastar-se da imagem de Eva, primeira pecadora e que instigou ao pecado também o homem, e aproximar-se do exemplo de Maria, virgem, comedida e fiel a Deus. As vestes seriam, então, uma importante ferramenta para observar se as mulheres seguiam os conselhos e se tornavam a imagem de pureza e castidade, ou se fugiam das regras e vestiam-se de forma desvirtuosa e com excessos de enfeites e chamativos. A fim de mostrar tanto as peculiaridades das vestes das mulheres, como a maneira com que a sociedade castelhana foi ordenada e descrita, Thiago Alvarado questiona: havia lugar para formosura e afeites nos hábitos das mulheres? De que modo as autoridades daquele período buscaram ordenar os costumes por meio das mulheres e suas vestimentas? Vale ressaltar que tanto nas palavras de Alvarado, como pelo suporte historiográfico que apresenta, a ordenação dos costumes não era uma forma de imposição de classes ou uma maneira de controle, ao contrário, observar as regras que circularam e ordenaram o cotidiano das mulheres e homens nos séculos XIV e XV é tido por Alvarado como uma forma de compreender os valores que aqueles mesmos homens descreveram como indispensáveis para a época.

Notas

1. Mestre em História (2018) pelo Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca. Atualmente, doutorando em História vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca.

2. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

3. ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017.

4. ALVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, Antonio. Rango y apariencia. El decoro y la quiebra de la distinción en Castilla (SS. XVI-XVIII). Revista de historia moderna, n.17 (1998-1999); pp. 263-278, 1999. p. 264-265

5. TALAVERA, Hernando de. Tratado provechoso que demuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados. In: CASTRO, Teresa de. El tratado sobre el vestir, calzar y comer del arzobispo Hernando de Talavera, Espacio, Tiempo, Forma, Serie III, Historia Medieval, n.14, 2001.

6. ALVARADO, Thiago Henrique. op. cit., p.17-18

7. ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017, p.80.

8. LAS Siete Partidas del Rey Don Alfonso el Sabio…. Madrid: Imprenta Real, 1807, 3 tomos.

9. CORTES de los antiguos Reinos de León y de Castilla. Madrid: Imprenta y Estereotipia de Rivadeneyra, 1863

10. LUDOLFO DE SAJONIA. Vita cristi cartuxano romãçado por fray Ambrosio. Alcalá de Henares: Lançalao Polono, 1502-1503, 4 vols.

11. DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

12. LUNA, Álvaro de. Virtuosas e claras mugeres (1446). Edición, introducción y notas de Lola Pons Rodríguez. Segovia: Fundación Instituto Castellano y Leonés de la Lengua, 2008

13. LA Reina Doña Isabel la Católica. Á su confesor, don fray Hernando de Talavera. In: EPISTOLARIO Español. Tomo 2. Madrid: M. Rivadeneyra, 1870

14. EIXIMENIS, Francesc. Carro de las Donas. Valladolid, 1542. Estudio y edición de Carmen Clausell Nácher. Madrid: Fundación Universitaria Española/ Universidad Pontificia de Salamanca, 2007, 2. vols.

Referências

ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017.

ALVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, Antonio. Rango y apariencia. El decoro y la quiebra de la distinción en Castilla (SS. XVI-XVIII). Revista de historia moderna, n.17 (1998-1999), pp. 263-278, 1999.

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DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

EIXIMENIS, Francesc. Carro de las Donas. Valladolid, 1542. Estudio y edición de Carmen Clausell Nácher. Madrid: Fundación Universitaria Española/ Universidad Pontificia de Salamanca, 2007, 2. vols.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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LUDOLFO DE SAJONIA. Vita cristi cartuxano romãçado por fray Ambrosio. Alcalá de Henares: Lançalao Polono, 1502-1503, 4 vols.

LUNA, Álvaro de. Virtuosas e claras mugeres (1446). Edición, introducción y notas de Lola Pons Rodríguez. Segovia: Fundación Instituto Castellano y Leonés de la Lengua, 2008.

TALAVERA, Hernando de. Tratado provechoso que demuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados. In: CASTRO, Teresa de. El tratado sobre el vestir, calzar y comer del arzobispo Hernando de Talavera, Espacio, Tiempo, Forma, Serie III, Historia Medieval, n.14, 2001.

Rodolfo Nogueira da Cruz – Mestre em História (2018) pelo Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca. Atualmente, doutorando em História vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca.


ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017. Resenha de: CRUZ, Rodolfo Nogueira da. Lei e costume na Castela dos séculos XIV e XV: Vestidas e afeitas para serem virtuosas. Aedos. Porto Alegre, v.10, n.23, p.374-379, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário – SCHMIDT (AN)

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucionário. Porto Alegre: Libretos, 2017. Resenha de: LAPUENTE, Rafael Saraiva. Traços de uma biografia “revolucionária”: Flávio Koutzii por Benito Schmidt. Anos 90,  Porto Alegre, v. 25, n. 48, p. 411-418, dez. 2018.

Caminhos, contextos e trajetórias: Flávio Koutzii como um “revolucionário” na América Latina

Há por parte da bibliografia vinculada à Ciência Política a alegação de que o PT é a agremiação mais estudada da área (SAN­TIN, 2005; AMARAL, 2013), haja vista possuir uma quantidade numérica significativa de estudos com diferentes abordagens.1 Mas, se isso é relativamente consistente por parte da Ciência Política, é bem verdade que sua “irmã” – a História Política – ainda caminha com vagar sobre a história política e partidária do Brasil pós-democratização e, mais especificamente, sobre o PT e as demais agremiações.  Ainda que os historiadores frequentemente fracassem na tarefa de prever o futuro (HOBSBAWM, 2013), penso que esse contexto é temporário. E ponto chave para isso é buscar entender a trajetória daqueles que vieram a fundar e dar sustentação ao Partido dos Trabalhadores, por meio de sua militância anterior ao Colégio Sion, onde o PT foi oficialmente fundado.

Ainda que Benito Schmidt não se dedique à tarefa de enten­der os anos de Flávio Koutzii como membro do PT e ativo na política institucional, a biografia que o autor traça sobre uma das principais figuras da esquerda gaúcha nos ajuda a conhecer um dos membros mais ilustres da sigla no Rio Grande do Sul.2 Para isso, Benito Schmidt dividiu o trabalho em cinco capítulos, encerrando sua biografia quando o personagem estudado retorna ao Brasil em 1984. E somente entre 1943 e 1984 resultou em um extenso trabalho de 543 páginas, fruto de sete anos de pesquisas. O autor, contudo, convoca desde o início outros pesquisadores a se debru­çarem sobre o recorte posterior, chamando a atenção para o fato de que o período “em branco” do trabalho possui particularidades relevantes a serem analisadas por novos pesquisadores. Isto é, que a opção por não incluir esse período não está no fato de este ser, supostamente, menos relevante do que o estudado.

A introdução do livro chama a atenção para esse ponto, destacando que o pós-1984 “trata-se de um período riquíssimo” (SCHMIDT, 2017, p. 14), bem como dos bastidores em que chegou ao biografado e os conflitos em torno de “convencê-lo” ao recorte temporal. A introdução, sem dúvidas, é a parte do livro onde o autor provoca uma série de curiosidades e inquietudes, fazendo com que o leitor se sinta instigado a prosseguir a obra. Fugindo, assim, das introduções “burocráticas” que, por vezes, possuem os trabalhos acadêmicos.

Ter o biografado vivo, o que é pouco usual, é peça chave nisso, haja vista que a introdução vai narrando parte dos “basti­dores” dos sete anos de pesquisa, em especial sobre a relação entre pesquisador e pesquisado. Ao longo do livro, Schmidt vai deixando claro, direta ou indiretamente, que Koutzii teve papel fundamental no desenvolvimento da pesquisa não apenas como entrevistado, mas sendo partícipe em todo o processo do trabalho, indicando, cedendo fontes e intermediando entrevistas. E também divergindo de Schmidt, embora o autor assinale poucas vezes no decorrer do livro os momentos em que isso ocorreu.

Essa participação de Koutzii, mais “direta”, aliada com a explícita identificação do autor com as bandeiras defendidas pelo biografado, evidentemente que deixam o leitor, como se diz popu­larmente, com o “pé atrás” em relação ao trabalho. Mas no decorrer do texto, à medida que Schmidt vai analisando a trajetória e, em especial, os contextos políticos nos quais Koutzii estava inserido, fica claro que não se trata de um texto chapa branca ou heroificante, comumente observado pelas biografias ditas “comerciais”.3.

Chama a a Chama a atenção no livro também o vasto material consultado pelo autor. Schmidt, para “seguir os passos” de Koutzii, frequentou dez arquivos diferentes, localizados em Porto Alegre, Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo, assim como o acervo pessoal de Koutzii. Apesar disso, o que predomina durante o livro são as entrevistas orais. Schmidt realizou 48 delas, algumas na França, Argentina e Alemanha, com figuras que estiveram próximas de Koutzii ao longo da trajetória analisada, sendo obviamente a maioria delas com o próprio biografado. Essas entrevistas deixaram o livro com uma narrativa estimulante. Elas, aliadas com a boa escrita do autor, transformaram as densas 543 páginas em uma leitura fluida. É fácil constatar que a biografia foi escrita pensando em atingir um público maior do que aquele que possui interesses acadêmicos.4t

Naquilo que concerne à organização do livro, ele foi dividido em cinco capítulos, cada um abordando uma fase diferente da vida de Koutzii. No primeiro, Benito Schmidt busca conhecer Koutzii antes de Koutzii, traçando o contexto de sua infância e adolescência no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, bem como a estrutura familiar do biografado. Nesta, dando especial atenção a Jacob Koutzii, pai de Flávio e cuja trajetória estava vinculada ao PCB, ao judaísmo e à crítica de cinema. Nesse ponto em particular, Schmidt utilizou amplamente o livro A Tela Branca, escrito por Jacob Koutzii. A trajetória de Flávio Koutzii nesse capítulo também contempla sua vida escolar no Instituto de Educação General Flores da Cunha e no Colégio de Aplicação, dando ênfase especial às consequências de sua posição enquanto judeu e comunista quando estudava no primeiro; no segundo, Schmidt busca analisar a influência daquele ambiente para a formação política do biografado.

Como durante toda a biografia, Schmidt não se ateve apenas às atividades políticas. Esteve atento às relações pessoais de Koutzii, tanto com a família como também amorosas. Nesse capítulo, em particular, abre um fio que só terá desfecho no final do livro: o encontro entre Koutzii e Sônia Pilla, que, entre tantas idas e vindas, seria marcado por um reencontro em 1984, união que se mantém, destacando que as relações afetivas e familiares se misturavam com a ação militante em todo o período estudado.

Essas relações pessoais também por vezes trouxeram, no decor­rer do livro, tanto a distensão como a angústia. No capítulo dois, o leitor pode dar boas gargalhadas quando o autor questiona, “com alguma maldade”, se “‘o Flávio jogava [futebol] bem?’. Ele respondeu o que eu pressentia: ‘não’” (SCHMIDT, 2017, p. 145). Por outro lado, quando o autor se debruça sobre a prisão na Argentina, é necessária muita frieza e abstração para não se colocar no lugar de Clara Koutzii nos dias de cárcere do filho, principalmente no momento em que ela tem que optar entre visitar Flávio ou ir ao enterro do marido Jacob. O livro também possui o mérito de ressaltar por diversas passagens que, apesar das muitas dificuldades, medos, angústias e incertezas, o biografado e seus pares também abriam brechas para brincadeiras e descontrações mesmo nos momentos mais aflitos de suas respectivas trajetórias.

Depois de Benito Schmidt buscar compreender as “raízes” de Koutzii, no capítulo seguinte estuda o início da militância do biografado em Porto Alegre no PCB. Abordando o período de retorno a Porto Alegre depois de uma malsucedida tentativa de estudar em São Paulo, Schmidt destaca o papel da UFRGS na atuação política de Koutzii: “perguntei-lhe: ‘e na Universidade, o que é que vocês faziam concretamente?’, ao que ele respondeu sem pestanejar: ‘política! [risos]. Política o tempo todo’” (SCHMIDT, 2017, p. 99-100), destacando sua atuação dentro do Movimento Estudantil da UFRGS. Um dos pontos para o qual Schmidt cha­mou a atenção foi a vitória de Koutzii como presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Característica importante desse capítulo, que estará presente nos demais, é o fato de o autor dar ênfase especial ao contexto em que está inserido o seu personagem. Isto é, por meio da busca dos passos de Koutzii, Benito Schmidt vai traçando sempre um importante paralelo contextual, transformando o livro em uma ferramenta para compreender o Brasil dos anos 1960 – e os impactos da Ditadura Militar no Movimento Estudantil – nesse capítulo, e também as ditaduras latino-americanas pelas quais Koutzii passou em função do exílio nos capítulos seguintes. A dedicação do autor aos contextos explica o porquê de a biografia ter ficado extensa, mas garante uma leitura mais rica do que só “seguir os passos” de Koutzii, ressaltando as decisões tomadas pelo biografado dentro do que é chamado de campo de possibilidades.

Finaliza o capítulo 2 com a Geração de 1968 e a decisão tomada por Flávio Koutzii e membros do Partido Operário Comunista de sair do Brasil para a França clandestinamente antes que fossem presos. Assim ele sintetiza o biografado no período abordado, dizendo que “[…] Flávio vivenciou com intensidade os acontecimentos políticos do seu tempo: o movimento estudantil, o golpe de 64, os debates que sacudiram e reconfiguraram a esquerda brasileira nos primeiros anos da ditadura, a luta armada”. Para Schmidt, “[…] a política, aliás, parece ter se tornado a partir de então o eixo central de sua existência, abarcando inclusive suas relações que normal­mente chamaríamos de privadas, como as amizades e os amores”. Por isso, compreende sua atuação política “no sentido de agir para transformar a sociedade e tomar o poder” (SCHMIDT, 2017, p. 186).  O Capítulo argentino é o título do capítulo três. Ainda que a parte mais “pesada” da biografia fosse dedicada ao capítulo seguinte e também ocorresse na Argentina, é compreensível a divisão do autor para uma parte destinada à militância de Koutzii na Argen­tina e, no quarto capítulo, destinando-se aos pedaços da morte no coração. Dessa forma, denota-se que existe um antes e depois na vida de Koutzii com a prisão e tortura durante a ditadura militar argentina, destacando ainda o fato de as organizações de esquerda também terem sido perseguidas nos governos de Peron e Isabelita. Embora, há de se ressaltar que o capítulo argentino abranja a atuação de Koutzii no Chile e na França.

É possível perceber, por meio do capítulo três, os artifícios dos militantes de esquerda para driblar as ditaduras latino-americanas, como a utilização de passaportes e identidades falsos, traçando, por exemplo, o trabalhoso processo empreendido por Flávio Koutzii para ir ao Uruguai e, de Montevidéu, ir de barca a Buenos Aires e, da capital argentina, se deslocar de ônibus a Santiago, para o Chile de Allende (SCHMIDT, 2017, p. 194-197). Ponto interessante do trabalho é poder observar a militância internacionalizada de Koutzii, identificando a atuação do personagem em múltiplos contextos, por vezes também ilustrando os choques provocados por essas diferenças.

Além disso, o livro explora a aproximação de Flávio Koutzii com a IV Internacional ainda na França e, na Argentina, sua mili­tância no Partido Revolucionário dos Trabalhadores, na Fracción Roja, uma dissidência que teve no biografado uma das principais lideranças dos rojos, e na Liga Comunista Revolucionária.

Se o capítulo três muito lembra um “filme de ação”, haja vista as estratégias lançadas pela esquerda para confrontar e burlar as ditaduras latino-americanas, em especial a argentina, no capítulo quatro, No ‘coração das trevas’, o autor prenuncia o que virá em um depoimento pessoal: “certas vezes, depois de realizar as entre­vistas, tive que caminhar pelo parque, tomar um sorvete, ver um filme alegre a fim de recuperar certa confiança na humanidade” (SCHMIDT, 2017, p. 312). Nesse capítulo a prisão de Koutzii é analisada, tanto por meio de entrevista oral como pelo jornal La Razón, que definia o biografado como “o responsável pelos grupos armados na América Latina da IV Internacional” (SCHMIDT, 2017, p. 315). Junto a isso, há a análise do contexto de desaparecimentos e sequestros de membros da esquerda naquele país, ilustrando a tensão da apreensão de Koutzii nesse cenário.

As práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas ScAs práticas de tortura são pouco analisadas em si, mas Schmidt busca compreendê-las mais como um ato organizado, estruturado e articulado do Estado argentino visando à destruição física, mas principalmente psicológica dos presos políticos. Não é à toa que o maior capítulo é o mais tenso, embora Schmidt consiga “quebrar” essa narrativa ressaltando eventuais momentos de lazer e resistências simbólicas contra o sistema prisional argentino pelos presos políticos.

O capítulo finaliza com a extensa campanha em defesa da liberdade de Flávio Koutzii, cuja presença intensa de sua mãe possui localidade central, bem como a mobilização de figuras políticas, como o deputado federal Airton Soares, intermediando sua soltura, a campanha realizada pelo Comitê Brasileiro pela Anistia e o abai­xo-assinado internacional com importantes adesões da esquerda. Também foi muito destacado pelo autor o apelo embasado nas condições de saúde de Koutzii, com problemas cardíacos e a perda de 25 quilos no cárcere. Schmidt, para isso, usou ampla gama de materiais primários, com a cobertura que a campanha pela libertação de Flávio Koutzii possuiu, em especial na imprensa.

Para mim Paris não foi uma festa. O título do último capítulo, trecho de uma fala de Koutzii, induz o leitor a imaginar que os dramas vividos na Argentina iriam persistir na França. Mas não é o que acontece. Nesse momento, quando o biografado retorna à França, Schmidt aborda quatro fases naquele novo contexto: os pri­meiros contatos de Koutzii, sua relação com a psicanálise para lidar com os traumas que passou na Argentina, seu trabalho intelectual na École des Hautes Études en Sciences Sociales que resultou no livro Pedaços da morte no coração, analisando o sistema carcerário argentino e seu ingresso gradual no debate político brasileiro, posi­cionando-se pelo PT e participando de sua construção em Paris. Para essa fase, Schmidt foi à França entrevistar alguns integrantes da IV Internacional. Assim, buscou conhecer o período em que Koutzii esteve no país. Além dessas, Schmidt entrevistou seu psicanalista na França, que também havia saído do Brasil por motivos políticos.

A biografia termina destacando a participação, ainda que indireta, de Koutzii na fundação do PT e seu retorno em 1984. Ela é, portanto, uma biografia que estuda a atuação de Koutzii como um militante revolucionário no sentido literal da palavra. A finalização do livro conta com dois curtos textos que não são de Schmidt. O primeiro, de Guilherme Cassel, busca fazer uma breve síntese da atuação política de Koutzii como vereador e deputado estadual. Cassel, é importante destacar, foi assessor de Flávio Koutzii5, uma informação ausente do livro, mas de suma importância para aquele que não é familiarizado com a história recente da esquerda gaúcha. Uma síntese que carrega traços dessa aproximação, cujo formato é mais de um testemunho do que de uma análise, como a de Benito Schmidt.

O breve texto de Koutzii é uma síntese sobre sua vida, a experiência de participar de uma biografia em vida e um chamado. Chamado de esperança, para a reversão dos tempos sombrios decor­rentes do golpe de estado de 2016. Chamado que é carregado de simbolismo, como a biografia explicita.

Notas

1 Embora, pessoalmente, eu venha defendendo que existe uma lacuna muito grande sobre os “PTs regionais”, bem como das demais siglas que não possuem praticamente maiores estudos com recortes geográficos menores.

2 Há de se ressaltar, entretanto, que Benito Schmidt chegou a redigir um livro chamado História e memórias do PT gaúcho (1978-1988), onde aborda esse pro­cesso inicial do PT. A obra, contudo, nunca foi publicada. O autor desta resenha teve acesso ao “borrão” do livro, cedida por Schmidt, ao qual agradeço por isso.

3 Refiro-me a biografias escritas normalmente por pesquisadores “independentes” e jornalistas, cujo apelo comercial descompromissa de maior aprofundamento e de rigores teóricos e metodológicos inerentes à pesquisa acadêmica.

4 De fácil constatação foi a positiva recepção da obra por parte de diversos mili­tantes do PT e da esquerda do Rio Grande do Sul, observando-se que, no dia do lançamento do livro, boa parte dela esteve reunida. No local do lançamento, ocorrido no Santander Cultural, um número considerável do público ficou do lado de fora da sala, impedido de assistir à fala de Koutzii, pela superlotação.

5 Koutzii, inclusive, atribuiu, em entrevista, a sua atuação parlamentar destacada pela escolha de sua equipe. Perguntado sobre ela, disse: “Era o Guilherme Cassel e o Paulo Muzell, esses dois praticamente como os caras que ajudavam a pensar e a escrever essas coisas”. Entrevista de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https://www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1D pcfdN9KZVtc0E0ya?n=421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.

Referências

AMARAL, Oswaldo E. do. As transformações nas organizações internas do Partido dos Trabalhadores (1995-2010). São Paulo: Alameda, 2013.

ENTREVISTA de Flávio Koutzii para César Filomena. Disponível em: <https:// www.dropbox.com/sh/3cfi97dfs93zfic/AADGZ5A1DpcfdN9KZVtc0E0ya?n =421284457&oref=e>. Acesso em: 16 nov. 2017.  HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

SANTIN, Ricardo. Construção de um partido político: a trajetória e a estabili­dade política do PP gaúcho. Porto Alegre: Editora Berthier, 2005.

SCHMIDT, Benito Bisso. Flávio Koutzii: biografia de um militante revolucio­nário. Porto Alegre: Libretos, 2017.

Rafael Saraiva Lapuente –  Doutorando em História pela PUC-RS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Governança dos Arquivos: desafios para a Gestão e para a Memória / Revista do Arquivo / 2018

Governança Arquivística: um território a ser explorado

A teoria e a prática arquivísticas ganharam novas dinâmicas nas últimas três décadas. Esse processo, diverso na sua intensidade e complexidade, é mais evidente em algumas realidades sociais do que em outras. Porém, perpassa várias “tradições arquivísticas” com impactos na gestão de instituições e serviços arquivísticos, na produção científica em Arquivologia e na formação e perfil do arquivista.

Esses redesenhos na Arquivologia ocorrem sob forte influência das tecnologias da informação, da emergência de novos modelos organizacionais, dos princípios do governo aberto e das crescentes demandas sociais pelo direito à informação, à memória e à privacidade.

Diversas interpretações apontam para uma ideia de Arquivologia como ciência ou disciplina científica calcada em princípios e técnicas voltados à produção, avaliação, aquisição, classificação, descrição, preservação e difusão dos arquivos. Cada uma dessas funções abordadas por Couture e Rousseau (1998) requer várias ações por parte do arquivista. Subjacente a todas elas, podemos reconhecer um ato incontornável à sua viabilidade: a gestão.

A gestão é um processo inerente ao fazer arquivístico. A gestão arquivística pode ser visualizada como o conjunto de aspectos teórico-operacionais mobilizados pelo arquivista e outros profissionais que atuam em um serviço ou uma instituição arquivística com vistas à eficiência e eficácia dessas organizações. Pressupõe um diálogo frequente com uma Ciência que é fundamental para a Arquivologia: a Administração.

O planejamento, execução e avaliação das diversas funções arquivísticas requer, em variados graus, métodos e técnicas da Ciência da Administração. Apesar de a Administração perpassar aspectos macro e microarquivísticos, a Arquivologia parece atualmente dialogar menos com essa área do que com outras que também lhe são próximas. Talvez a dimensão gerencial tão visceralmente presente na prática arquivística tenha, por isso mesmo, se tornado um pouco “naturalizada” na cultura profissional de grande parte dos arquivistas.

A literatura de Arquivologia, dentro e fora do Brasil, apresenta várias lacunas quando o tema é a gestão arquivística. A área carece, de modo geral, de um conjunto de noções consistentes e sistematizadas que sustentem – amparadas em métodos e técnicas da Administração – as práticas da gestão arquivística.

Reside aí uma certa contradição já que o arquivista é inevitavelmente um gestor de um determinado tipo de recurso vital às organizações: as informações registradas nos documentos que derivam das suas ações. A gestão desses recursos arquivísticos transcende a uma concepção redutora de organização dos arquivos, seja qual for o seu momento no ciclo documental. Gerenciar serviços e instituições arquivísticos é também administrar pessoas, tecnologias da informação, infraestrutura física, legislação, orçamento, ademais de requerer um grande conhecimento do contexto contemporâneo das organizações e suas alterações ao longo do tempo.

Gerenciar implica gestos de poder. A gestão arquivística, o “governo dos arquivos”, insere-se no exercício da autoridade do serviço ou da instituição arquivística para o cumprimento da sua missão. A autoridade arquivística legal, se não legitimada por uma adequada gestão arquivística, tende a ser fragilizada.

Em termos de administração pública, serviço e instituição arquivísticos podem ser visualizadas mediante o que apresentam de comum assim como as suas singularidades.

“consideram-se instituições arquivísticas públicas aquelas organizações cuja atividade-fim é a gestão, recolhimento, preservação e acesso de documentos produzidos por uma dada esfera governamental … diferenciam-se dos serviços arquivísticos governamentais… que se referem às unidades administrativas incumbidas de funções arquivísticas nos diversos órgãos da administração pública, no âmbito dos quais se configuram como atividades-meio …” Jardim (2012, p.403),

A noção de Governança é historicamente recente. Data do início dos anos de 1990, impulsionada pelo Banco Mundial, sob a perspectiva de novas formas de exercício da capacidade dos governos para produzir, implementar e avaliar políticas públicas. Nas três últimas décadas ganhou mais contornos teóricos, sendo aplicada em diversos cenários organizacionais, tanto da administração pública quanto no setor privado. Como tal, é frequente encontramos termos como Governança Corporativa, Governança de Tecnologia da Informação, Governança informacional, Governança ambiental, Governança Fiscal e Tributária etc.

Conforme Gonçalves (2006, p.14), Governança “diz respeito aos meios e processos que são utilizados para produzir resultados eficazes” e tem um amplo espectro:

Pode englobar dimensões presentes na governabilidade, mas vai além. Veja-se, por exemplo, a definição de Melo (apud Santos, 1997, p. 341): “refere-se ao modus operandi das políticas governamentais – que inclui, dentre outras, questões ligadas ao formato político-institucional do processo decisório, à definição do mix apropriado de financiamento de políticas e ao alcance geral dos programas”. Como bem salienta Santos (1997, p. 341) “o conceito (de governança) não se restringe, contudo, aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado, tampouco ao funcionamento eficaz do aparelho de Estado” (Gonçalves, 2006, p.3).

Além dos avanços no setor privado, a Governança ganha cada vez mais espaço em várias instâncias do setor público. Uma das instituições públicas com grande comprometimento com o tema é o Tribunal de Contas da União (TCU). Ao fundamentar o seu “Referencial Básico de Governança”, o TCU distingue e correlaciona duas categorias intrinsecamente relacionadas: Gestão e Governança.

Enquanto a gestão é inerente e integrada aos processos organizacionais, sendo responsável pelo planejamento, execução, controle, ação, enfim, pelo manejo dos recursos e poderes colocados à disposição de órgãos e entidades para a consecução de seus objetivos, a governança provê direcionamento, monitora, supervisiona e avalia a atuação da gestão, com vistas ao atendimento das necessidades e expectativas dos cidadãos e demais partes interessadas. (2014, p.32)

Apesar de ganhar mais densidade teórica e muitos relatos de “boas práticas” que sustentam sua pertinência teórica, Governança é uma categoria analítica e um conjunto de métodos a ser mais aprofundado em diversas áreas de conhecimento. Porém, essas limitações não impedem a busca por modelos de governança aplicáveis a instituições e serviços arquivísticos.

Da mesma forma que Gestão Arquivística, Governança Arquivística não é um tema contemplado frequentemente na literatura da área. No entanto, vem sendo objeto de interesse recente. Predominam as abordagens sobre a gestão de documentos como instrumento de apoio à governança. Não são, porém, muito evidentes os estudos sobre a governança como referência teórica e operacional para a gestão arquivística.

As possibilidades de construção de modelos de Governança Arquivística requerem pesquisas e maior conhecimento de “boas práticas” nos diversos lócus do fazer arquivístico.

No cenário macroarquivístico, especialmente das políticas públicas, a noção de Governança pode favorecer novos modos de concepção e implementação por parte das instituições arquivísticas e outros atores.

Os atuais cenários arquivísticos e organizacionais são muitos distintos, por exemplo, daqueles formulados nos anos de 1970. Naquele período, a UNESCO patrocinou o modelo de Sistemas Nacionais de Arquivos que foi experimentado em diversas realidades sem alcançar, de maneira geral, o sucesso pretendido. Não por acaso, após os anos de 1980, a ênfase se deslocou, inclusive nos textos da UNESCO, da ideia de sistemas nacionais de informação para a noção de políticas públicas de informação. Políticas arquivísticas e seus recursos de instrumentalização como os sistemas e redes merecem ser (re)discutidos à luz dos desafios arquivísticos atuais. A perspectivas sugeridas pela noção de Governança podem favorecer essas discussões e promover inovações nos balizamentos teóricos e desdobramentos operacionais de políticas e sistemas / redes arquivísticos.

A noção de Governança Arquivística, no contexto das instituições arquivísticas, envolve um conjunto de diálogos, processos e produtos relacionados a vários atores e agências no Estado e da sociedade. Inclui não apenas aqueles segmentos diretamente relacionados a dimensões especificamente arquivísticas, mas também os atores, cujas ações perpassam, direta ou indiretamente, as políticas e práticas dos serviços e instituições arquivísticos. É o caso, entre outros, de políticas e ações relacionadas a Governo Aberto, Dados Abertos, Proteção de Dados Pessoais, Programas de Digitalização das Administrações Públicas, Patrimônio Cultural, Ciência e Tecnologia, Acesso à Informação Governamental, Controle Social, Educação, Bibliotecas, Museus etc. A interação entre esses atores e suas interfaces com políticas arquivísticas não se plasmam exclusivamente no marco da burocracia hierárquica tradicional ou nos limites da autoridade arquivística legalmente conferida às instituições arquivísticas. Tampouco poderiam ter lugar sob a lógica dos lineares desenhos sistêmicos tão frequentes nas concepções de sistemas nacional e estaduais de arquivos.

A Governança Arquivística sugere a formulação de estratégias e o desenvolvimento de um um conjunto de acões em rede e de forma colaborativa. Ultrapassa, portanto, o tradicional “governo do arquivos”. Não substitui a Gestão Arquivística. Ao contrário, reforça o seu papel e sugere inovações que podem torná-la mais consistente. Um modelo de Governança Arquivística não se sustenta sem as “boas práticas” inerentes à Gestão Arquivística.

A construção de modelos de Governança Arquivística requer um maior conhecimento e debate sobre o tema por parte dos arquivistas em geral, além de análises aprofundadas de experiências nacionais e internacionais de gestão de serviços e instituições arquivísticas.

Gestão e Governança Arquivística merecem ser contempladas nas agendas de pesquisa e inovação em Arquivologia, devidamente enfatizadas na formação de graduação e pós-graduação de arquivistas e outros profissionais que atuam na área.

Referências

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública. Brasília: TCU, Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, 2014.

GONÇALVES, Arlindo. O conceito de governança. Disponível em; . Acesso em: 12.08.2017

JARDIM, José Maria. Em torno de uma política nacional de arquivos: os arquivos estaduais brasileiros na ordem democrática (1988-2011). In: MARIZ, Anna Carla Almeida; JARDIM, José Maria; SILVA, Sérgio Conde de Albite (org.). Novas dimensões da pesquisa e do ensino da arquivologia no Brasil. Rio de Janeiro: Móbile; Associação dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro, 2012.

ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998

José Maria Jardim – Doutor em Ciência da Informação. Professor Titular do Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).


JARDIM, José Maria. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano IV, n.7, outubro, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História das mulheres e das relações de gênero / Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s) / 2018

É com enorme satisfação que anunciamos o décimo terceiro número da “Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s)”. Esse periódico é resultado da iniciativa e do trabalho conjunto de discentes da graduação em História e do Mestrado Acadêmico em História (MAHIS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE), além de doutorandos / as egressos / as desta mesma instituição, que agora atuam em outros Programas de Pós-Graduação do país. O décimo terceiro número, volume 6, foi composto por 19 textos enviados para o Dossiê Temático História das Mulheres e das Relações de Gênero e mais 3 textos na secção Artigos livres, totalizando o número de 22 trabalhos inéditos nesta publicação.

Ratificamos aqui a satisfação em lançar um Dossiê que versa sobre as complexas relações de gênero e seu papel estruturante das relações sociais, e consequentemente dos processos históricos, em um contexto de esfacelamento da democracia brasileira, do crescimento do autoritarismo do Estado, das tentativas de implantação do famigerado projeto Escola Sem Partido, do ataque aos direitos humanos, da necessidade de autoexílio de congressistas e militantes dos Direitos Humanos, feministas, militantes LGBTI+, bem como da acentuada violência contra as mulheres, LGBTI+, povo negro, indígena e do campo. Leia Mais

IHGB: 180 anos / Revista do IHGB / 2018

Este número da Revista propõe, em especial, uma homenagem aos 180 anos de fundação do IHGB. Considerado por seu primeiro presidente, o Visconde de São Leopoldo, como um representante das ideias da Ilustração, o que significava associá-lo à civilização, à ciência, à filosofia da história e à polidez, o Instituto aparece, nas palavras de seu atual presidente Arno Wehling, como símbolo intelectual dos novos tempos da independência. E, passados quase 200 anos, os valores que marcaram sua fundação permanecem. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro continua em sua missão de produzir conhecimentos mantendo a guarda de uma “casa da memória” constituída não só de acervos, mas que pensa e interpreta o Brasil; uma instituição de preservação do patrimônio cultural do país, fiel aos valores de sua fundação, mas que se mantém aberta às novidades, a fim de compreender o presente para informar o julgamento sobre a realidade com as quais está por vir. Daí resulta um de seus principais objetivos: combinar história e memória.

Nessa direção, os três primeiros textos deste número voltam-se para o próprio IHGB. Sem constituírem artigos de louvação, referem-se à importância desta instituição enquanto centro de conhecimento. O primeiro, de Isadora Tavares Maleval, pretende destacar o tratamento que seus integrantes deram a alguns acontecimentos do seu tempo, ou seja, o Segundo Reinado, usando números da R.IHGB como fontes. Beatriz Piva Momesso, por sua vez, examina os resultados e as possibilidades da escrita da História Política do Segundo Reinado a partir do arquivo do Senador Nabuco de Araújo (1813-1878), doado ao IHGB em 2001. Por fim, Arno Wehling, em texto curto, destinado a marcar os 180 anos, salienta o papel de Pedro II na história do IHGB.

Em seguida, Antonio Celso Alves Pereira discute a situação política e militar de Portugal no início do reinado de D. João IV, tomando como fonte principal o Sermão de Santo Antônio, que Antônio Vieira pregou em Lisboa, na Igreja das Chagas, em 1642. Os últimos três textos da seção “Artigos e ensaios” tratam de temática da atualidade, embora situados em distintas conjunturas históricas. Érica Sarmiento discute a historiografia e a utilização de fontes para a temática da imigração, relacionada, em particular, ao associativismo, a partir da análise comparada da imigração galega ocorrida em duas cidades receptoras de fluxos migratórios ibéricos no período da Grande Imigração (1880-1930), Rio de Janeiro e Buenos Aires. Luís Fernando Cardoso e Cardoso, Petrônio Medeiros Lima Filho e Flávio Leonel Abreu da Silveira evidenciam as memórias de resistência do grupo quilombola de Bacabal (localizado no município de Salvaterra, na ilha do Marajó, PA), que vive há mais de três séculos em território reivindicado por particulares. Para tal, analisam as táticas criadas por essa população para manter-se diante do poder político e econômico exercido por fazendeiros e pelo agronegócio representado por empresas nacionais e internacionais. Por fim, o estudo de Bruno Rotta Almeida parte de propostas do século XVIII, a fim de ressaltar o debate em torno da humanização da prisão e mostrar, em seguida, o surgimento dessa discussão no Brasil e o desenvolvimento das práticas punitivas durante o século XIX, como também o papel insuficiente exercido nos séculos XX e XXI pelos instrumentos normativos nacionais e internacionais de proteção à dignidade humana.

Na seção “Comunicações”, há o trabalho do filólogo e membro da Academia Brasileira de Letras Evanildo Bechara sobre Antônio de Moraes Silva, o grande dicionarista brasileiro na virada do século XVIII para o XIX.

Na parte “Documentos”, encontra-se o trabalho da professora e sócia honorária do IHGB, Vera Lucia Cabana de Queiroz Andrade, que, utilizando a riqueza dos arquivos da instituição, propõe interpretar o legado cultural da Viscondessa de Cavalcanti, representado pelos estudos históricos que realizou, com destaque para a contribuição que deu à numismática.

Para finalizar o número, a resenha de Marcia Maria Cruz trata do livro Contribuições para a história do IHGB: entrevistas concedidas a Rogério Faria Tavares, que reúne 36 entrevistas de 36 sócios do IHGB, contando sua vida e sua obra e que hoje integram o acervo do projeto “Memória dos sócios”. Trabalho de fôlego, mais que apropriado para celebrar os 180 anos de uma instituição, que se afirma como Casa da Memória.

Aproveitem!

Lucia Maria Bastos P. Neves – Diretora da Revista.


NEVES, Lucia Maria Bastos P. Carta ao leitor. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.179, n.478, p.11-13, set./dez., 2018. Acesso apenas pelo link original [DR].

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Political ecology – food regimes and food sovereignty: crisis – resistance and resilience | Mark Tilzey

In 1998, Giovanni Arrighi wrote an article with a curious subtitle: “Rethinking the non-debates of the 1970’s”. [3] He was referring to the “non-debates” between Immanuel Wallerstein, Robert Brenner, Fernand Braudel and Theda Skocpol, that remained undeveloped. These “non-debates” of the 70’s, especially the one between Wallerstein (with his world-system perspective) and Brenner (with his “Political Marxism” stance), now reemerge in Tilzey’s book, with Tilzey in the role of the “political Marxist” challenging the conceptions of Jason W. Moore and the proposals of his “world-ecology”, as well as Philip McMichael and Harriett Friedman’s conceptions of “food regime” (both developments of Wallerstein’s “world-system” perspective). [4] This is not simply a repetition, to be sure: the return to thematic and methodological questions derives from the rise and intensification of problems and questions in the present, specifically, how to treat ecology/nature and crisis in our historical and theoretical concepts of capitalism in the Anthropocene/Capitalocene era, characterized by repeated economic crashes. These new questions and problems motivate Tilzey’s timely effort. Nevertheless, many “non-debates” remain undebated, including Arrighi’s intervention in them.

The first chapters of Tilzey’s book condense his ontological and methodological premises. Tilzey tries to build an ontology on which his propositions on political ecology and food regimes would be based. In chapter 2, he criticizes Jason W. Moore’s “world-ecology”, claiming that his notion of “double internality” of society and nature is a “flat ontology”. Tilzey opposed a four-level stratification of ontological relations to this: a non-hybrid, extra-human reality, nature (level 1); a hybrid, socio-natural level of trans-historical use-values (level 2); an “allocative” hybrid level, related to class-mediated distribution and historically-specific technologies (level 3); a non-hybrid “authoritative” level, the underlying political dimension in class dynamics in which to seek “structural causality” (level 4) (p. 28). Tilzey claims that the ontology he proposes is better equipped to deal with class relations and the “authoritative dimension” than Moore’s is. This ontology sets the tone of the rest of the book. Despite his critique of Moore’s general approach, Tilzey recognizes his contributions related to the capital’s dependency on “cheap natures” and commodity frontiers.

It is worth it then to make some critical observations on this foundational first chapter. Tilzey’s assertion that Moore proposes a “flat ontology” is problematic. For starters, Moore denies it explicitly.[5] Moore also asserts the differentiation of humans in that “humans relate to nature as a whole from within, not from the outside. Undoubtedly, humans are an especially powerful environment-making species. But this hardly exempts human activity from the rest of nature”.[6] Finally, Moore distances himself from a “flat ontology” by qualifying Nature and Society as “real abstractions”, the “real historical power of ontologic and epistemic dualisms” that are in contradiction with the co-production of humans and nature.[7] Tilzey’s argument on the “flat ontology” of Moore could have been more convincing if he had addressed and criticized these elements of Moore’s work, but they are left untouched, and so his critique appears to be one-sided. Moore uses “value as method”, in which capital, class and nature conflate in a peculiar, historically-specific way, operating in the formation of classes and concomitant organization of historical natures. Sharply separating or hierarchizing them would be a “violent abstraction”, according to this perspective.[8]

Additionally, Tilzey’s conception of dialectics is not very clear. Both Lucio Colletti and Levins and Lewontin are known to support his position (p. 19-29), references that are at opposite ends regarding the methodological and historical statute of dialectics. For Levins and Lewontin, dialectics is trans-historical and imputed to nature itself (like in Engels’ “dialectics of nature”), while for Colletti it is historically-specific to capitalist modernity, including relations with nature but not extended to nature itself and neither to history as such.9 The assertion that Tilzey’s ontology entails “principles that are not specific to capitalism but to all social systems” (p. 24) clearly indicates the adherence to a trans-historical conception of dialectics, though it is not clear whether it is extended to nature as such or not.

In the next chapter, Tilzey uses his proposed ontology to discuss the origins of agrarian capitalism, “combined and uneven development” and the first agricultural revolution in Britain. Regarding the origins of agrarian capitalism, Tilzey defends a Brennerian position of a British origin of capitalism with specific “social-property relations” (with fully commodified land and labor), contrasting with the world-system perspective which proposes a West European (and American) origin based on for-profit production of commodities under different labor regimes in a world market, the “commodification of everything”.[10] The presentation of world-systemic perspectives on the origins of capitalism is oversimplified as the “Braudel-Wallerstein-Arrighi school”, when actually there are significant differences between these three authors’ view on the transition from feudalism to capitalism (p. 48-9). A discussion of these differences would have been important, especially because Arrighi claims to have incorporated Brenner’s critique of Wallerstein in his version of the theory of transition.[11] Though Tilzey rejects the world-systemic conception of core-periphery relations, he recognizes the crucial importance of cotton plantations in the American South for the Industrial Revolution (or, more generally, the interaction between English capitalism and the “external arena”). To conciliate both positions, he uses a theory of “combined and uneven development” based on Trotsky and more specifically on Anievas and Niasanciglu. It should be noted that what Anievas and Niasanciglu propose as “combined and uneven development” is a trans-historical ontology that is projected back to the time of hunter-gatherers.[12]

The combination of the reference to Levins and Lewontin when referring to dialectics and Anievas and Niasanciglu in relation to uneven and combined development indicate that there seems to be a tension in Tilzey’s theoretical framework: on the one hand, an attempt to specify capitalism in such a way that only England would initially comply; on the other, the use of analytical methods that lack historical specificity to deal with “nature” and the “external”, non-capitalist world. Contrasting with this trans-historical methodological choices, for example, Moishe Postone and Lucio Colletti would argue that dialectics and the dialectical method are historically-specific to capitalist modernity; and in the world-system perspective, core-periphery relations are historically-specific to a capitalist world-economy (which is not necessarily coincident with the whole globe, but comprises the states that are integrated in a single, large-scale market) that arose in the sixteenth century and will become extinct in the future. This world-economy would constitute an integrated market comprised of several states, with a scale and level of integration that characterize it as qualitatively very different from any exchange that might have occurred between groups of hunter-gatherers [13].

One passage reveals this difficulty in using a combination of historically-specific and trans-historical categories: “through the institution of slave plantation in the colonies, capitalists were able to reduce significantly the costs of constant capital in the form of raw materials” (p. 71, emphasis mine). The reader should note that while “constant capital” is a historically-specific category, “raw materials” is trans-historic; the historically-specific category would be “circulating capital”. There is no difficulty here for the world-system perspective, especially if considering Dale Tomich’s concept of “second slavery”. [14] But for the “social-property relations” approach, characterizing slave-produced cotton as “circulating capital” might be inconsistent, as that would mean that slave production was already subsumed under the law of value and the dynamics of the organic composition of capital. But if it was not produced as circulating capital from the beginning (which is difficult to accept, as the relation between Mississippi Valley plantations and English factories was systematic, instead of contingent) then we remain with the difficult question of defining where, between the plantation in the American South and the factory in Britain, this trans-historical “raw material” was converted into a historically-specific “circulating capital”, thus mediating the organic composition of capital and counteracting the profit rate’s falling tendency (a mediation that Tilzey correctly admits as being key for the Industrial Revolution). The problem does not seem to be solved by attributing this “raw material” to level 3 in Tilzey’s ontology, as “class” is still a historically indeterminate category (contrary to value).

The rest of the book is an “application” of the ontological premises presented in the first two chapters. Chapters 4 to 6 are dedicated to the discussion of food regimes. Tilzey characterizes them as the first or British liberal regime (1840-1870), the second or imperial regime (1870-1930), the third or “political productivist” regime (1930-1980) and the neoliberal regime. Tilzey proposed the first regime as a complement to the others that were previously proposed by Friedmann and McMichael. Here, in accordance with his proposed ontology, the emphasis is on class politics, class fractions and how they shape what he calls the “capital-State nexus”. For Tilzey, the “Polanyian” approach of Friedmann and McMichael regarding the State (the “double movement”) obliterates the “state as comprising the condensation of the balance of class forces in society” (p. 113). One of the best moments of the book is the explanation of the different interests of American corn, cotton and wheat famers and how this class-fractional struggle shaped state policies and food regimes (ch. 5).

In Part 2 (chapters 7 and 8), Tilzey discusses “crisis and resistance”. Tilzey’s previously defined ontology implies that crises are always “political” or legitimacy crises; an objective crisis of capitalism is out of question a priori (as well as the possible transition to a less democratic social order). In this respect, he distances himself from other authors for whom alienation plays a central role in crisis theory and that do consider the possibility of some kind of “regressive” transition, such as Moishe Postone or Robert Kurz, and is at least in this regard (crisis necessarily as crisis of legitimacy) in agreement with a non-Marxist scholar like Wolfgang Streeck.[15] In his exposition in chapter 7, Tilzey identifies as contradictions of neoliberalism the general falling rate of profit due to the rising organic composition of capital and the rising cost of raw materials. It should be noted that he characterizes the falling rate of profit with the “power of capital over labor” (p. 200), in line with the posited priority of the “authoritative” level of his ontology. But here, perhaps this ontology produces another one-sided result. The falling rate of profit is the result of mechanization not only in a struggle of capitalists against workers but also in a struggle among capitalists (competition for efficiency); besides, the tendency itself is an objectified outcome that is not “authoritatively” planned. This is part of a dialectic of subjectivity and objectivity peculiar to capitalism that seems to be obliterated by Tilzey’s ontology. In relation to the food regime in particular, Tilzey develops the idea that food and financial crises are different manifestations of the neoliberal social disarticulation, which combines a crisis of under-consumption (level 4 of the ontology) with increasing costs of raw materials (levels 3 and 4).

Again following his ontologies of class and combined and uneven development, Tilzey analyzes peasant “resistance” movements as assuming three different forms: what he calls “sub-hegemonic” (reformist), “alter-hegemonic” (progressive) and “counter-hegemonic” (radical). The sub-hegemonic movement is represented by the “Pink Tide” in South America and its focus on the combination of extractivism and social policies, with peasants appealing to indigenous identities. Alter-hegemonic movements are represented by small commercial farmers, mostly in core countries, that demand regulation and protection against the market. Peasant movements, mostly those in the “global South” and among subaltern classes whose demands include the socialization of means of production (land), are counter hegemonic. It can be seen that the existence of, or potential for, reactionary movements is overlooked, as the ontology does not seem to be equipped with the necessary analytical tools.[16]

Part 3 (chapters 9-13) is dedicated to country case studies, which includes Bolivia, Ecuador, Nepal and China, in which the author tries to trace the commonalities and differences between them (Brazil is not included). Some of the best moments of the book appear here, such as when Tilzey explains the difference between recent peasant movements in Bolivia and Ecuador, on the one hand, and their weakness in Chile and Peru, on the other, based on their different class structures and histories. The last chapter is political-normative, advocating a “food sovereignty” based on peasant communal production using a “resilient” food production system grounded on agroecological methods.

It is clear throughout the book that Tilzey makes great effort to be consistent with his proposed ontology of “Political Marxism”. Nevertheless, the one-sidedness of this ontology (despite the inclusion of “ecology” in lower hierarchical levels), which one could characterize as an extreme form of politicism (or a “violent abstraction”), might produce one-sided analyses, like a critique of Moore that ignores his use of “real abstractions” and a theory of crises that overlooks objectified tendencies (or is inconsistent by taking them into account). Additionally, the trans-historical elements of the ontology used to conciliate the supposed exceptionality of Britain and the intense relations with the “external arena” might generate problems of consistency and historical specification. But the approach can also produce useful sociological and class dynamics analyses and insights. The reader’s evaluation of this ontology will ultimately shape his or her broad evaluation of the book. Hopefully Tilzey’s book will be only the first of many to address the many “non-debates” that are still untouched, some of them barely scratched in this review and that include vitally important questions such as the concept of capitalism, its historical origins and its future demise.

Notas

3. ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the modern world-system: rethinking the non-debates of the 1970s. Review, 21, n. 1, 113-29, 1998.

4. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system I: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Berkeley: University of California Press, 2011 [1974]; BRENNER, Robert. The origins of capitalist development: a critique of neo-Smithean Marxism. New Left Review, I, 104, p. 25-92, July-August 1977; MOORE, Jason W. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. New York: Verso, 2015; FRIEDMANN, Harriet; MCMICHAEL, Philip. Agriculture and the state system. Sociologia Ruralis, XXIX, no. 2, p. 93-117, 1989.

5. MOORE, Jason W. op. cit, p. 39.

6. Ibid., p. 46. Emphasis mine.

7. Ibid., p. 47.

8. Ibid., ch. 2. SAYER, Dereck. The violence of abstraction: the analytical foundations of historical materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987.

9. LEVINS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Harvard: Harvard UP, 1985. COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel. Trans. R. Garner. New York: Verso, 1973.

10. WALLERSTEIN, Immanuel. Historical capitalism. New York: Verso, 2011.

11. Inspired by Braudel, Arrighi proposes an interstitial transition based on Italian city-states, which would include competition for mobile capital, thus addressing Brenner’s critique that competition was not a part of Wallerstein’s model. See ARRIGHI, op. cit.

12. ANIEVAS, Alexander; NISANCIOGLU, Kerem. How the West came to rule: the geopolitical origins of capitalism. London: Pluto Press, 2015, p. 46-7.

13. COLLETTI, op. cit. POSTONE, Moishe and REINICKE, Helmut. On Nicholaus’ “Introduction” to the Grundrisse. Telos, 22, 130-148. WALLERSTEIN, Immanuel. Op. cit.

14. On “second slavery”, see TOMICH, Dale W. Through the prism of slavery: labor, capital and world-economy. Lanham: Roman & Littlefield, 2004.

15. POSTONE, Moishe. The current crisis and the anachronism of value: a Marxian reading. Continental Thought and Theory, 1, no. 4, p. 38-54, 2017. KURZ, Robert. The crisis of exchange value: science as productivity, productive labor and capitalist reproduction. In Marxism and the critique of value, ed. N. Larsen et al, p. 17-76. Chicago: MCM’, 2014 {1986}; STREECK, Wolfgang. How will capitalism end? New Left Review 87, p. 35-64, May-June, 2014.

16. Critical Theory could be helpful, but it seems to be far from Tilzey’s theoretical commitments

Referências

TILZEY, Mark. Political ecology, food regimes, and food sovereignty: crisis, resistance, and resilience. Cham: Palgrave MacMillan, 2018. 394 pp.

ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the modern world-system: rethinking the non-debates of the 1970’s. Review, 21, n. 1, 113-29, 1998.

WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system I: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Berkeley: University of California Press, 2011{1974}; BRENNER, Robert. The origins of capitalist development: a critique of neo-Smithean Marxism. New Left Review, I, 104, p. 25-92, July-August 1977; MOORE, Jason W. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. New York: Verso, 2015; FRIEDMANN, Harriet; MCMICHAEL, Philip. Agriculture and the state system. Sociologia Ruralis, XXIX, no. 2, p. 93-117, 1989.SAYER, Dereck. The violence of abstraction: the analytical foundations of historical materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987.

LEVINS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Harvard: Harvard UP, 1985. COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel. Trans. R. Garner. New York: Verso, 1973.

WALLERSTEIN, Immanuel. Historical capitalism. New York: Verso, 2011.

ANIEVAS, Alexander; NISANCIOGLU, Kerem. How the West came to rule: the geopolitical origins of capitalism. London: Pluto Press, 2015, p. 46-7.

COLLETTI, op. cit. POSTONE, Moisheand REINICKE, Helmut. On Nicholaus’ “Introduction” to the Grundrisse. Telos, 22, 130-148. WALLERSTEIN, Immanuel. Op. cit.

TOMICH, Dale W. Through the prism of slavery: labor, capital and world-economy. Lanham: Roman & Littlefield, 2004.

POSTONE, Moishe. The current crisis and the anachronism of value: a Marxian reading. Continental Thought and Theory, 1, no. 4, p. 38-54, 2017. KURZ, Robert. The crisis of exchange value: science as productivity, productive labor and capitalist reproduction. In Marxism and the critique of value, ed. N. Larsen et al, p. 17-76. Chicago: MCM’, 2014 [1986]; STREECK, Wolfgang. How will capitalism end? New Left Review 87, p. 35-64, May-June, 2014.

Daniel Cunha – Binghamton University. Binghamton – New York – United States of America. PhD candidate in Sociology under the supervision of Jason Moore, in Sociology, Binghamton University. Email: [email protected]


TILZEY, Mark. Political ecology, food regimes, and food sovereignty: crisis, resistance, and resilience. Cham: Palgrave MacMillan, 2018. Resenha de: CUNHA, Daniel. Nature, Food, Crisis: New Problems, Old Debates. Almanack, Guarulhos, n.20, p. 282-286, set./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito | Marco Morel

O livro, como todos eles, tem um itinerário que extrapola em muito o tempo consumido em sua escrita. Marco Morel começou a pensar na temática ainda muito jovem, em 1989, quando apresentou um trabalho nas comemorações do bicentenário da Revolução Francesa organizadas por Michel Vovelle na Sorbonne. Naquela oportunidade, o historiador expôs uma hipótese original, a de que a revolução Haitiana tinha influenciado mais o Brasil que a própria Revolução Francesa. Vinte e sete anos depois, Morel permite que o público conheça os desdobramentos daquela primeira inquietação.

A Revolução do Haiti e o Brasil escravista se inscreve em um conjunto maior de publicações que aborda os “rumores”, influências, conexões e ecos da Revolução de Saint-Domingue no espaço do Caribe ou do continente americano. Revolução que se desenvolveu entre 1791 e 1804, quando finalmente foi declarada a independência, e a porção ocidental da ilha, que tinha sido chamada por Cristóvão Colombo de “La Española”, tomou o nome de Haiti [3]. Embora balizada entre esses dois anos, os desdobramentos da Revolução e do abolicionismo se estenderam por muitos mais. O livro propõe uma dupla temporalidade: a de 1791-1825 para o Haiti e a de 1791-1840 para o Império do Brasil. No primeiro caso, o período se delimita entre o início da Revolução no território insular e o reconhecimento francês da independência. No segundo, entre o mesmo início e o fim do período regencial.

Apesar de a perspectiva da conexão Haiti-Brasil ter uma longa tradição na história do pensamento social brasileiro, o viés “positivado” da Revolução foi muito menos explorado que o do temor senhorial ou administrativo ao chamado haitianismo [4]. O próprio vocábulo, neologismo do século XIX, surgiu carregado de negatividade, como sinônimo de anarquia, subversão (inversão da ordem), “governo dos negros”.

Morel inscreve seu livro na perspectiva do acolhimento dos acontecimentos caribenhos, mas o ponto de vista é o da história do Brasil.

A admissão/adoção do ideário haitiano no Brasil como modelo social (igualitarismo racial, abolicionismo, direitos de cidadania, redistribuição da terra) ultrapassa, segundo o autor, o âmbito da escravidão, incluindo sectores letrados e não letrados livres. Como se propõe a tratar da recepção da Revolução de Saint-Domingue, principalmente de sua aceitação, já não no formato de artigos, como tinha feito antes, mas numa obra de maior fôlego, o autor estrutura o livro em três capítulos: “A Revolução do Haiti – breve apresentação”, “Entre batinas e revoluções” e “Os fios de uma teia”.

No primeiro, é-nos advertida sua necessidade. Apesar de não ser um livro sobre o Haiti, considera o autor que uma introdução à Revolução é fundamental como protocolo ou pré-requisito de leitura, para o qual adota uma morfologia pouco frequente em livros acadêmicos: uma cronologia de 16 páginas exposta em forma de tabela; breves biografias das lideranças revolucionárias; um apanhado do vocabulário de época; uma descrição de ocupação e exploração da parte ocidental da ilha; a análise de um projeto de classificação racial do fazendeiro e escritor colonial Médéric Louis Élie Moreau de Saint Méry publicado em 1796, comparando-o com o do maranhense Raimundo José de Souza Gayoso, que em seu Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão propunha uma classificação adotando a de Saint Méry; e, por último, uma tabela comparando as diferentes constituições desde 1801 – ainda como colônia autônoma – até 1816.

Um primeiro capítulo tão heterodoxo em sua composição nos lembra o romance de Daniel Maximin, L’Isolé soleil, analisado por Laurent Dubois. A personagem Marie Gabriel tenta escrever a história da ilha, Guadalupe, para a qual utiliza o diário de Jonathan, peça elaborada e abandonada por um antepassado seu – o texto não é um diário propriamente dito, mas um álbum de recortes de distintas fontes [5]. Para escrever a história dessa outra ilha, Haiti, Morel recorre a esse gênero constituído por recortes, fragmentos que são necessários para a recomposição do todo.

O segundo capítulo busca tecer as relações entre a França revolucionária, Saint- Domingue e o Brasil a partir dos escritos de três abades: Raynal, Grégoire e de Pradt. Nas páginas do livro, vemos surgir um Raynal idealizado: antiescravista, anticolonialista. As predições do abade sobre o futuro da escravidão africana podem ser interpretadas mais como advertência do que como condenação. Ou, nas palavras de Trouillot, como um “projeto de administração colonial. De fato [o pensamento de Raynal] incluía a abolição da escravidão, mas a longo prazo e como parte de um processo que aspirava a um melhor controle das colônias” [6]. O mesmo pode ser dito da apresentação do abade Grégoire. De qualquer forma, os três funcionam como mediadores letrados das revoluções atlânticas. Os três mantêm algum tipo de relação com o Brasil, presente em seus escritos sobre a escravidão/situação colonial. A busca de Grégoire por um escritor negro em língua portuguesa para sua obra De la Littérature des nègres (1808) o levou a estabelecer contatos no Brasil com Monsenhor Miranda, com quem manteve relação epistolar. A segunda parte do capítulo reconstitui certa formalização de ideias sobre o Haiti e sobre a Revolução do ponto de vista de letrados brasileiros. Afora os três abades, um punhado de escritos locais serve ao autor para evidenciar as conexões revolucionárias atlânticas, sobretudo no nível das ideias.

É no final deste capítulo e a partir da fala do terceiro abade, de Pradt, que Morel nos introduz no subtítulo do livro: “o que não deve ser dito”. Morel atribui a de Pradt a autoria sobre as estratégias comunicativas a respeito da Revolução do Haiti assentadas sobre dois eixos: “a rejeição dos horrores de São Domingos e a ocultação da densidade e das múltiplas possibilidades de seu exemplo histórico” [7]. Para Morel, esses dois eixos podem ser sintetizados como “o maldito e o não dito”.

Embora os silêncios e as ausências tenham nas ciências sociais uma base sólida de conceitualização e análise, foi o antropólogo Michel-Rolph Trouillot quem lhe deu a forma mais acabada em relação ao Haiti com seu livro Silencing the past: “a revolução era impensável no Ocidente embora tampouco fosse verbalizada entre os próprios escravos”, em grande medida porque as reivindicações seriam radicais demais para se expressar em palavras: abolição, expropriação, distribuição da propriedade etc. Esses princípios “só poderiam reivindicar-se quando impostos pelos fatos”. Nesse sentido, diz, “a revolução estava realmente nos limites do concebível” [8]. Mas Trouillot consegue romper o silêncio e encher o livro de alocuções.

O terceiro capítulo começa com a instigante frase: “Poucos personagens encarnam no Brasil a proximidade com o exemplo da Revolução do Haiti como Emiliano Felipe Benício Mundurucu”. O documento principal para apresentar Mundurucu é o texto autobiográfico breve que o brasileiro publicara em Caracas em 1826, mas, para certa decepção de Morel, Mundurucu não fala nada sobre o que seria uma pauta haitiana, senão da pauta do momento nas repúblicas americanas: republicanismo, liberdade, antidespotismo. Utiliza metáforas como “algemas do despotismo” para referir-se aos presos de 1817. Com isso, ele não foi mais longe do que a filosofia política ocidental. Disse Susan Buck-Morss que, no século XVIII, a escravidão havia se tornado a metáfora fundamental da filosofia política ocidental, enquanto a liberdade era considerada o valor político fundamental [9].

Mundurucu foi major do batalhão de pardos durante a Confederação do Equador. Como o autor diz, seu nome se apresenta em fugazes registros na historiografia, vinculado a uns versos sediciosos naquele contexto da revolta:

Marinheiros e caiados

Todos devem se acabar

Porque só pardos e pretos

O país hão de habitar

{…}

Qual eu imito Cristóvão

Esse Imortal haitiano

Eia! Imitai o seu povo

Oh meu povo soberano.

O capítulo traz outra trajetória singular, a do pastor negro, protestante, Agostinho José Pereira, “que alfabetizava negros e pregava contra o catolicismo na década de 1840” e, nessa tarefa, introduzia algumas ideias favoráveis ao Haiti. Nesse caso, como no anterior, trata-se de um haitianismo (no sentido positivo) difuso, próximo daquele que assumia o republicanismo hispano-americano. Um caráter difuso análogo ao da enunciação “mata caiados” para lembrar (timidamente) dos milhares de espanhóis mortos pelo Padre Hidalgo e seus seguidores na sua jornada. É provável que Mundurucu tenha refinado ainda mais sua pauta haitiana em sua estadia na Venezuela, onde o “haitianimo” teve forte influência desde o final do século XVIII.

Como evidencia Morel na última parte do livro, no século XIX fica difícil pensar num único Haiti. As divisões internas entre o Reino de Henri Christophe (1807-1820) ao norte e a República mulata de Alexandre Pétion (1807-1818) ao sul, posteriormente liderada por Jean-Pierre Boyer, deixam patente a complexidade de ecoar, refletir ou se conectar com uma realidade haitiana, sem falar na pertinência de se referir a um único haitianismo.

Escrito de maneira didática e clara, o livro é leitura obrigatória para os alunos de graduação em história que queiram ter uma primeira aproximação à Revolução do Haiti e suas conexões com o Brasil do século XIX.

Notas

3. FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, Guarulhos, n. 3, p. 37-53, jan./jun. 2012; GÓMEZ, Alejandro. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le 17 février 2006, Disponível em: <http://journals.openedition.org/nuevomundo/211>. Acesso em: 7 nov. 2018; GONZÁLEZ-RIPOLL, María Dolores Navarro et al. El rumor de Haití en Cuba: Temor, raza y rebeldía (1789-1844). Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004, entre outros.

4. SILVA, Luiz Gerardo. El impacto de la revolución de Saint-Domingue y los afrodescendientes libres de Brasil. Esclavitud, libertad, configuración social y perspectiva atlántica (1780-1825). Historia, Santiago, v. 49, n. 1, p. 209-233, jun. 2016. NASCIMENTO, Washington Santos. São Domingos, o grande São Domingos: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista. Dimensões, Vitória, v. 21, p. 125-142, 2008; SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio. Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: outras margens do atlântico negro. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 63, p. 131-144, jul. 2002; REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 28, p. 14-39, dez./fev. 1995/1996.

5. DUBOIS, Laurent. Los cimarrones en los archivos: los usos del pasado en el Caribe Francés. JBLA, [S.l.], v. 46, n. 5. p. 60-82, 2009.

6. TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciado el pasado. El poder y la producción de la história, Granada: Comares, 2017, p. 68

7. MOREL, Marco. Op. cit., p. 160.

8. TROUILLOT, Michel-Rolph. Op. cit., p. 74.

9. BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 90, p. 131, jul. 2011.

Referências

BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 90, p. 131, jul. 2011.

DUBOIS, Laurent. Los cimarrones en los archivos: los usos del pasado en el Caribe Francés. JBLA, {S.l.}, v. 46, n.5. p. 60-82, 2009.

FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, Guarulhos, n. 3, p. 37-53, jan./jun. 2012.

GÓMEZ, Alejandro. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana. Nuevo Mundo Mundos Nuevos {En ligne}, Débats, mis en ligne le 17 février 2006, Disponível em:<Disponível em:http://journals.openedition.org/nuevomundo/211 >. Acesso em:7 nov. 2018.

GONZÁLEZ-RIPOLL, María Dolores Navarro et al. El rumor de Haití en Cuba: Temor, raza y rebeldía (1789-1844). Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004.

MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí: Paco, 2017.

NASCIMENTO, Washington Santos. São Domingos, o grande São Domingos: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista. Dimensões, Vitória, v. 21, p. 125-142, 2008.

REIS, João José, Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, (28), 14-39, dez. fev.1995/1996.

SILVA, Luiz Gerardo. El impacto de la revolución de Saint-Domingue y los afrodescendientes libres de Brasil. Esclavitud, libertad, configuración social y perspectiva atlántica (1780-1825). Historia, Santiago, v. 49, n. 1, p. 209-233, jun. 2016.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio. Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: outras margens do atlântico negro. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 63, p. 131-144, jul. 2002.

TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciado el pasado. El poder y la producción de la história, Granada: Comares, 2017.

María Verónica Secreto – Universidade Federal Fluminense. Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Possui graduação em História – Universidad Nacional de Mar Del Plata – Argentina (1991), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1995) e doutorado em Ciência Econômica/História Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Foi professora efetiva na Universidade Federal do Ceará (2002-2004) e na Federal Rural do Rio de Janeiro (2004-2008), atuando nessa última no programa de pós-graduação em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade. Atualmente é professora Associada da Universidade Federal Fluminense, atuando na graduação em História da América e no Programa de Pós-graduação.


MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí: Paco, 2017. Resenha de: SECRETO, María Verónica. A Revolução de Saint-Domingue e sua conexão continental: de Toussaint a Mundurucu. Almanack, Guarulhos, n.20, p. 287-290, set./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

Modernização Conservadora no Brasil (XIX-XXI) / Cantareira / 2018

No primeiro semestre de 2017, as manchetes de todos os jornais de grande circulação do país insistiram na afirmação de que a Reforma Trabalhista traria facilidades aos patrões e aos trabalhadores, pois permitiria a geração de emprego e renda a partir de uma “legislação moderna”. Entretanto, a lei 13.467 / 2017, aprovada em julho, trouxe como consequência o inverso dos objetivos anunciados: desemprego, rebaixamento de salários e precarização das relações laborais. O patronato, por sua vez, foi agraciado com novos instrumentos de pressão que proporcionaram o enfraquecimento dos sindicatos e a ampliação da vulnerabilidade tanto dos trabalhadores legalmente empregados, quanto daqueles que recorrem à informalidade como alternativa de sobrevivência.

Introduzimos este dossiê com um exemplo claro do que os artigos aqui reunidos defendem: os processos modernizantes brasileiros foram, via de regra, conservadores. Isto é, serviram para reforçar a estrutura social e seu apartamento de classes, mesmo nos momentos em que esteve em mutação dirigida. A isto chamamos de Modernização Conservadora.

A matriz do conceito de Barrington Moore Junior3 se mantém em nossa apropriação: a associação de diferentes frações de classe para a construção de uma sociedade capitalista, a partir de sua dominância e articulação no Estado Nacional e tecendo um pacto entre os interesses das tradicionais castas de proprietários rurais, negociantes e financistas. Entretanto, procuramos sofisticar o conceito para que sua potência explicativa dê conta da complexidade social brasileira.

Em nossa elaboração, procuramos deixar claro três dimensões fundamentais que esclarecem os processos de Modernização Conservadora no Brasil: 1- o pacto entre as frações da classe dominante compunha interesses internos e externos, assim como operava dentro e fora do Estado Nacional. De forma que a situação de direção entre as frações da classe dominante obedecia não só a lenta mutação estrutural brasileira, como às conjunturas externas. Entretanto, o que se observa desses processos é que a divisão entre dominantes e dominados não só era mantida nas mais diferentes formas de exploração, como poderia ser aperfeiçoada com a conjugação de interesses distintos; 2- o alvo dessa modernização não se tolhe à industrialização, como preconiza Moore Junior para os casos alemão e japonês. Pensamos Modernização Conservadora no Brasil como aquelas transformações infraestruturais, passíveis em todos os setores da economia, e superestruturais, que modificam a política e a sociedade; 3- não é possível ver uma dualidade entre “atrasado” e “moderno” nos processos de Modernização Conservadora no Brasil, já que os dois campos supostamente duais se retroalimentam e sustentam-se politicamente de forma recíproca.

Alguns autores como Jessé de Souza4 tem atentado para o engano da “panaceia da modernização”, que aplacaria a todos os males de nossa sociedade. Entretanto, grande parte da tradição sociológica brasileira tem trabalhado com a hipótese de que as modernizações efetuadas no Brasil não só mantiveram as desigualdades estruturais de nossa sociedade, como as garantiram, aprofundaram e formaram consenso em torno das mesmas.

Para tanto, as formulações mais definitivas, nesse sentido, são de José de Souza Martins5 (1994) e Francisco de Oliveira6 (2003). Trabalhando primacialmente com a questão da concentração fundiária como ponto fundamental para produção do pacto conservador e modernizante, Martins deixa claro:

[…] a constatação é uma só: as grandes mudanças sociais e econômicas do Brasil contemporâneo não estão relacionadas com o surgimento de novos protagonistas sociais e políticos, portadores de um novo e radical projeto político e econômico. As mesmas elites responsáveis pelo patamar de atraso em que se situavam numa situação histórica anterior, protagonizavam as transformações sociais7.

Demonstrando como a dualidade entre “atrasado” e “moderno” não só é inexistente no caso brasileiro, como sua integração dialética moldou o caráter geral de nosso capitalismo, Chico de Oliveira esclarece:

[…] as formas irresolutas da questão da terra e do estatuto da força de trabalho, a subordinação da nova classe social urbana, o proletariado, ao Estado, e o “transformismo” brasileiro, forma da modernização conservadora, ou de uma revolução produtiva sem revolução burguesa. Ao rejeitar o dualismo cepalino, acentuava-se que o específico da revolução produtiva sem revolução burguesa era o caráter “produtivo” do atraso como condômino da expansão capitalista8.

Sobre o próprio tema da industrialização brasileira, Otávio Ianni9 demonstrou como a indústria brasileira tem características do capitalismo dependente, assim como se deu devido ao alto grau de internacionalização da economia e da classe burguesa brasileira, estando longe de representar algum processo de emancipação econômica ou de disputa acirrada entre uma nova postulante à classe dominante e os antigos proprietários de terras e escravos.

Ao longo do século XIX, diferentes frações da classe dominante construíram um pacto cujo os objetivos eram a formação de um Estado Nacional e sua subsequente integração à Divisão Internacional do Trabalho. O intenso aperfeiçoamento das infraestruturas de transportes, comunicações, comércio, financeiras e produtivas, bem como a transformação de boa parte do arcabouço jurídico-político do Império e da República, renovaram os instrumentos de dominação que viabilizaram a manutenção das classes dominantes enquanto tais. Estes diversos processos de modernização pelos quais as formações sociais do Brasil passaram contribuíram decisivamente para uma industrialização e surgimento da classe burguesa industrial que não ameaçaram a ordem político-social vigente. Os privilégios das tradicionais classes dominantes do país foram mantidos.

Os séculos XX e XXI testemunharam a mesma dinâmica, por mais que os condicionantes estruturais e conjunturais tivessem modificado as intensidades da mesma. A organização e resistência de massas de escravizados e trabalhadores livres foi, por diversas vezes, duro revés nos intuitos de implementar novos projetos modernizantes e conservadores. Assim mesmo, boa parte dos processos que reconhecemos como Modernização Conservadora são ataques às conquistas históricas dos dominados. Ou seja, lidamos com repetidos exemplos de processos supostamente modernizantes que intentam verdadeiros retrocessos civilizacionais.

Neste sentido, entendemos que a Revolução Burguesa no Brasil é permanentemente pactuada com os segmentos latifundiários, não se mostrando capaz de abrir mão totalmente da estrutura escravista e dependente que a sustenta. Ou seja, essa Sociedade Ornintorrinco, em que o “progresso” e o “atraso” se retroalimentam dialeticamente, busca aprimorar a dominação de classe tanto no espaço urbano, quanto no rural. Modernização Conservadora no Brasil se define, portanto, não como conceito explicativo apenas de nossa industrialização, mas como uma chave explicativa para o entendimento de diversos processos históricos de mudança em nossa sociedade.

Pensado no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas Eulália & Bárbara, esse dossiê congrega esforços de pesquisadores que se debruçaram sobre a longa tradição brasileira de mudanças cuja finalidade última é tão somente a manutenção e / ou aprofundamento do status quo.

O artigo de Álvaro Saluan da Cunha e de Raphael Braga de Oliveira demonstra como o processo de modernização brasileira era retratado nas pinturas de Edoardo de Martino e de Victor Meirelles, durante a Guerra do Paraguai.

Já o artigo de Amanda Marinho aborda uma questão tão interessante, quando ainda pouco estudada: o desenvolvimento da legislação de patentes no Brasil oitocentista e os seus efeitos para a industrialização brasileira.

Um excelente estudo de caso é o de Bruna Dourado sobre a Companhia Pernambucana de Navegação Costeira a Vapor. Explorando a história da empresa, a autora oferece rica comprovação empírica do processo de modernização na navegação costeira e o correlaciona com a marcante presença dos capitais estrangeiros, nomeadamente ingleses.

Célio Diniz oferece um olhar privilegiado para a política internacional do Império, demonstrando como os diplomatas literatos retratavam as mudanças nas estruturas sociais, políticas e econômicas de seu tempo.

Glauber Florindo colaborou com um estudo sobre o rearranjo entre poderes local e monárquico no bojo da discussão da Assembleia Constituinte de 1823.

Guilherme Barreto, em grande esforço de síntese histórica, demonstra como se desenvolveu o setor de transformação brasileiro ao longo do século XIX. O autor correlaciona os processos de industrialização de Rio de Janeiro e São Paulo, utilizando de documentação censitária para chegar a conclusões sobre a relevância do setor agroexportador e do Estado neste processo.

O artigo de Hiolly Batista aborda o complexo processo de modernização da agricultura durante a ditadura militar, na região oeste do Paraná. A peculiaridade do recorte espacial se justifica, pois esse processo é truncado com a construção da Usina Hidrelétrica Binacional de Itaipu.

Processo fundamental para entender o conceito de Modernização Conservadora no Brasil, o fim do tráfico transatlântico de escravos é abordado de forma inovadora por João Marcos Mesquita de forma a associar pressões externas e resistências senhoriais internas para o entendimento da forma como foi levado a cabo.

O texto de Juliana Valpasso de Andrade oferece uma mirada original sobre as mudanças na política externa brasileira, no século XXI, através do conflito entre a revista Veja e o governo Lula.

Marcos Marinho instiga uma nova leitura sobre a produção açucareira no Norte Fluminense, oferecendo relevante comprovação empírica sobre a transformação tecnológica dos engenhos de Campos dos Goytacazes e seu significativo impacto na produção, na segunda metade do oitocentos.

Natânia Silva Ferreira e Fernando Henrique do Vale contribuem com artigo que compara as urbanizações de Varginha e Pouso Alegre, ao sul de Minas Gerais, no alvorecer do século XX.

O fundamental texto de Pedro Sousa esclarece um pouco mais sobre a construção da Avenida Presidente Vargas, durante o Estado Novo, apontando para as empresas beneficiadas com a execução das obras.

Ricardo Alves contribui para um dos processos mais afins ao conceito de Modernização Conservadora no Brasil. A chamada “transição do trabalho escravo ao trabalho livre” é demonstrada pelo autor, com recorte espacial em Alagoas, levando em conta as rupturas e permanências neste processo.

O artigo de Silvana Andrade demonstra com clareza como do intercâmbio entre duas instituições do nascente Estado Imperial surgiu um conjunto de medidas sobre a atividade industrial, com regulação e promoção modernizadas já na década de 1830.

Thaiz Barbosa Freitas nos surpreende com uma pesquisa impactante sobre o teor modernizante e conservador do Estado português na Capitania de Minas Gerais, considerando especialmente as mudanças nas políticas e práticas fiscais, ainda no século XVIII. O artigo nos instiga questionar como este fenômeno luso pode ter influenciado na formação do Estado Nacional Brasileiro, no que concerne ao que definimos como Modernização Conservadora como conceito explicativo de parte de sua história.

Thiago Reis publica importante artigo sobre como a economia brasileira se abateu e modificou perante às complicações impostas pela crise de 1929.

Em importante diálogo com o artigo de João Marcos Mesquita, Victor Romero de Azevedo explora o processo contíguo à cessação do tráfico transatlântico de escravos, em 1831, enfocando nas reações políticas de defesa do tráfico negreiro.

O artigo de Yasmin Vianna Bragança oferece um recorte de gênero sobre o processo de modernização que afetava a vida das famílias durante o Estado Novo, o que representava um novo papel para as mulheres na sociedade e, concomitantemente, a produção de novas políticas públicas visando a “senhora do lar proletário”.

Boa Leitura!

Notas

  1. MOORE JUNIOR, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
  2. SOUZA, Jessé de. A Elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
  3. MARTINS, José de Souza. O Poder do Atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.
  4. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
  5. MARTINS, op.cit., p.58.
  6. OLIVEIRA, op.cit., p.151.
  7. IANNI, Otávio. Industrialização e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

Thiago Alvagenga de Oliveira – Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (2009-2013). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (2013-2016). Atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (2016-atual). Membro do grupo de pesquisa História Econômica Quantitativa e Social (HEQUS) da Universidade Federal Fluminense. Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Eulália e Bárbara (GEPEB). E- mail: [email protected]

Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca – Doutorando no curso de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense, por onde também é graduado em História (2014) e mestre em História Social (2017). É membro do grupo de pesquisa Portos e Cidades no Mundo Atlântico (CNPq), do laboratório POLIS – História Econômico-Social (UFF), do grupo de investigação internacional La Governanza de los Puertos Atlánticos (UNED – ESP) e sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, além de membro fundador do Grupo de Estudos e Pesquisas Eulália & Bárbara, também é colaborador do Foro Internacional de Ciudades Portuarias (IDEHES / CONICET – ARG) e do laboratório HEQUS – História Econômica, Quantitativa e Social (UFF). E-mail: [email protected]


OLIVEIRA, Thiago Alvagenga de; FONSECA, Thiago Vinicius Mantuano da. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.29, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo / Anos 90 / 2018

Se fosse preciso definir com três conceitos-chave a conjuntura deste primeiro quarto de século XXI, os organizadores deste dossiê acreditam que a maioria dos questionados conviria em utilizar, pelo menos, alguma das palavras que propomos como título. A ideia, então, de organizar um volume sobre a temática da guerra, da violência e da migração no mundo antigo nasce, simplesmente, de nossa observação da realidade contemporânea. Impotentes como historiadores, professores e / ou seres humanos, assistimos à eclosão de conflitos militares de rara violência na região do Oriente Próximo que atingem o planeta inteiro. A guerra na Síria, a ofensiva do autointitulado Estado Islâmico, a invasão do Iraque pela chamada “coalizão internacional”, liderada pelos EUA, trouxeram enorme instabilidade política e, mais importante, uma tragédia humanitária sem precedentes na história recente. Não podemos esquecer a outra face das guerras, tão dramática quanto a primeira, que representa as migrações forçadas de milhares de pessoas. Tudo isso, associado à destruição, ao espólio e ao saque do patrimônio cultural da humanidade presente nesses territórios, teve um efeito provocador a nós, historiadores da antiguidade.

Nosso dever de ofício aceita como tarefa primordial, então, o fato de tentarmos entender o mundo que hoje nos cerca estabelecendo um diálogo entre passado e presente, se quisermos construir o melhor futuro possível. Eis aí, para nós, a pedra fundamental do conhecimento e do estudo da antiguidade. Mais do que nunca, faz- -se necessário propor o debate, instigar a pesquisa, incitar a reflexão construtiva como nossa contribuição para a sociedade. E assim, algumas indagações nortearam nossa proposição. É possível tirar lições do passado? Somos capazes de compreender o conflito como fato e suas diversas dimensões na antiguidade e na atualidade, para estabelecermos paralelismos válidos e evitá-los, no futuro?

A partir dessas questões, formulamos a proposta do dossiê Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo, com o objetivo de refletir sobre temas urgentes e atuais a partir do estudo das sociedades antigas. Sabemos que as práticas de violência legitimadas pelas guerras, tendo como consequência a migração massiva de populações, têm uma longa historicidade, pois essas diversas experiências históricas foram preservadas e deixaram inúmeros indícios nos textos, nas imagens e na cultura material. Assim, entendemos que investigar essa temática na antiguidade pode contribuir para a compreensão dos recentes acontecimentos que atingem o mundo, especialmente o Mediterrâneo, a Europa e os EUA.

O enunciado deste dossiê abraça, entretanto, diversos outros enfoques, tais como questões relacionadas à tecnologia da guerra, à retórica da violência, à situação das mulheres e crianças nos conflitos, às agressões sexuais, à migração e ao fenômeno de transculturação, entre outros. Como afirma Magnoli (2006, p. 14): “A guerra é um fenômeno total, uma expressão condensada das formas de pensar, produzir e consumir das sociedades, o espelho de um tempo e um lugar”.

Foram vários os autores que atenderam ao nosso chamado. Eles provêm de distintos horizontes de pesquisa, alguns atuando no Brasil e outros no exterior. Vários são especialistas no Mundo Clássico, enquanto outros se interessam pelo Oriente, mas todos aportam uma reflexão original e uma boa dose de erudição.

O dossiê abre com a contribuição de Pedro Paulo A. Funari, intitulada “Migration flows from a long-term perspective”, que traz um estudo de longa duração sobre o fenômeno das migrações na história da humanidade. O autor discute os fluxos migratórios desde o processo de hominização até o período pós-segunda guerra mundial, incluindo a história brasileira, e argumenta que as migrações são um grande desafio tanto para as sociedades como para os intelectuais que refletem sobre elas.

A professora Katia Maria Paim Pozzer contribui com “Guerra, violência e memória cultural nas imagens assírias”, artigo no qual faz partir sua reflexão dos baixos-relevos em pedra resgatados dos palácios assírios de Nínive, analisando alguns elementos estéticos da antiguidade que o mundo contemporâneo tem reutilizado, levando a cabo um interessante paralelismo multisecular.

Com “The power of a powerless woman: examining the impact of violence on a Biblical nation”, Elizabeth Tracy nos conduz pelos caminhos da concubina levita, ou Pilegesh, analisando os últimos capítulos do bíblico Livro dos Juízes, cruel em algumas das suas imagens de violência contra a mulher e tão atual, lamentavelmente.

Viajamos depois para a Bretanha na pena da Dra. Tais Pagoto Bélo, com “Britannia: violência, poder e contato”, que propõe uma reflexão contemporaneamente válida através da cultura material representada por epitáfios da província da Britannia.

A professora Lorena Lopes da Costa contribui com “Troianas, de Eurípides (415 a. C.): a guerra injusta e o fim da linhagem dos heróis”, no qual traça um paralelismo da história de Atenas, dos crimes e excessos da guerra, com a tragédia euripidiana.

Estefanía Bernabé-Sánchez trata o tema da violência sexual em “El mito de Inanna y Šukaletuda: violencia sexual en Sumer”, mito no qual a deusa Inanna é estuprada pelo mau jardineiro Šukaletuda. A autora estabelece um paralelismo entre o crime sexual cometido contra a deusa suméria e aqueles que estão sendo, hoje, moeda comum nos conflitos armados do Oriente Médio, especialmente na Síria.

Finalmente, encerra este dossiê o trabalho do professor Fábio Vergara Cerqueira, “‘Melodia sangrenta’ (Anth.Pal. VI.159): a trombeta e a guerra na Grécia Antiga”, em que ele analisa o instrumento de vento chamado salpinx (σάλπιγξ) na iconografia e nos textos relacionados com a guerra na Grécia antiga, particularmente em Atenas, estabelecendo paralelismos entre as funções militares e os simbolismos.

O intuito deste volume que apresentamos, então, nos convida à reflexão crítica sobre a nossa realidade, partindo do conhecimento da remota antiguidade, de seus personagens e suas histórias, assim como da ideia de que guerra e violência, entendidas em todas as suas manifestações, são nefastas e não atendem aos pressupostos em que a humanidade deve enxergar a evolução e o desenvolvimento.

Frente àqueles que esquecem o passado e, por conseguinte, descuidam do presente enquanto olham para o futuro, anotemos aqui a definição que Sêneca nos deixou em De brevitate vitae (Sobre a brevidade da vida): sábio é aquele que lembra o passado, sabe aproveitar o presente e dispõe do futuro.

Que isso seja como uma de nossas bússolas.

Referência

MAGNOLI, Demétrio (Org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006.

Estefanía Bernabé-Sánchez – Professora da Pontificia Universidad Católica del Peru – PUCP. E-mail: [email protected] ´

Katia Maria Paim Pozzer – Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

Pedro Paulo A. Funari – Professor da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. E-mail: [email protected]


BERNABÉ-SÁNCHEZ, Estefanía; FUNARI, Pedro Paulo A.; POZZER, Katia Maria Paim. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, jul., 2018 .Acessar publicação original [DR]

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Antologia del Pensamiento Crítico Caribeño Contemporáneo (West Indies, Antillas Francesas y Antillas Holandesas) | Félix Valdés Garcia

O Caribe se constitui num imenso mosaico multidimensional (cultural, político, intelectual) marcado por uma ampla diversidade de dominações, colonizações, influências, resistências e reelaborações, que estão explicitadas em suas diversas denominações. Desta forma, uma parte da região, o Caribe hispânico é chamado de ‘El Caribe’, nas ilhas anglófonas é denominado de ‘West Indies ou The Caribbean’, na zona francesa é apontado como ‘Les Antilles’ ou ‘La Caraíbes’ e na área holandesa é designado como ‘Dansk Vestindien’.

Estas diferentes denominações demonstram o caráter uno e diverso da região, combinados dialeticamente, que explicitam, de uma ou outra forma, toda sua diversidade e potencialidade.

Desta forma, apesar de partilharmos com o Caribe uma história comum, que antecede a colonização européia, e dos laços históricos, econômicos e culturais desenvolvidos há séculos tal região e, principalmente, o pensamento crítico caribenho seguem ignorados ou apontados (ainda) pelo exotismo, já que a centralidade intelectual dos países do norte, principalmente em sua vertente anglo-saxã, continua condicionando nosso olhar e nossa reflexão sobre uma região tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante.

Sendo assim, pode-se afirmar que, apesar de alguns avanços, a maior parte da produção intelectual caribenha, e de seu pensamento crítico, segue desconhecida, com raras exceções, e a elaboração, as temáticas e concepções desenvolvidas por intelectuais caribenhos ainda se constitui num vasto campo a ser explorado e divulgado.

Neste sentido, esta obra se constitui num trabalho fundamental, e muito instigante, para o (re) conhecimento do pensamento crítico caribenho e seus laços com a realidade brasileira, principalmente das populações originárias e dos afrodescendentes, e a construção de alternativas para uma sociedade mais justa e equitativa.

A obra é parte integrante da série ‘Países’ da coleção de Antologías del Pensamiento Social Latinoamericano y Caribeño, publicada pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO)2, na qual já foram divulgadas a produção crítica contemporânea de Uruguai, Panamá, El Salvador, Nicarágua, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, México, República Dominicana, Peru, Paraguai e Venezuela, sendo que, em breve, novos volumes sobre outros países devem ser lançados.

A coleção é composta por cinco séries: Trayectorias, Países, Pensamientos Silenciados, Miradas Lejanas e CLACSO/SIGLO XXI (publicação conjunta), cujos textos podem ser considerados essenciais para conhecer e compreender o pensamento social latino-americano e caribenho, clássico e contemporâneo.

Desde o seu surgimento, CLACSO se tornou um espaço de reflexão autônoma das questões latino-americanas, de desenvolvimento do pensamento social e crítico e do compromisso com a superação da pobreza e desigualdade, através da construção de um caminho alternativo próprio. Neste sentido, as coleções produzidas realçam a importância desta para a construção e difusão do pensamento latino-americano3, procurando incentivar a produção própria, a compreensão autônoma e a construção de um caminho latino-americano para o desenvolvimento das ciências e, principalmente, das sociedades latino-americanas.

Este trabalho foi organizado pelo professor cubano Félix Valdés Garcia, membro da Cátedra sobre o Caribe da Universidade de Havana, da Associação de Estudos do Caribe (AEC) e do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO).

Esta obra, como a região retratada, é marcada pela diversidade de temáticas e perspectivas e se insere na dinâmica da coleção, procurando retratar uma ampla gama de autores e abordagens que possuem como fio condutor um pensamento crítico, alicerçado nas condições e desafios que a região enfrenta desde a colonização, apresentando tanto autores clássicos do pensamento caribenho como Frantz Fannon, Aimé Césaire, Eric Willians, Cyril Lionel Robert James, Edward Kamau Brathwaite e Maurice Bishop, como autores contemporâneos como Sir William Arthur Lewis, Kari Polanyi Levitt y Lloyd A. Best, Sylvia Wynter, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant.

Desta forma, o livro adquire uma coerência e uma relativa unidade, mesmo na diversidade, pois os autores apresentados conseguem demonstrar a profunda relação entre suas análises e a dinâmica social, política e econômica de seus países e região, produzindo um pensamento que procura contribuir para a transformação social, em suas diversas formas e movimentos, superando os colonialismos, em todas as suas manifestações e atualizações.

Além disto, o trabalho está marcado por uma abordagem multidisciplinar e pelo diálogo frutífero de um conjunto de correntes, relacionadas ao pensamento crítico, no qual se destacam três tradições. Primeiro, o pensamento marxista, utilizado de forma criativa e distanciado de dogmatismo e esquematismo, associado ao marxismo ocidental e, principalmente, ao impulso renovador e originário intentado pela Revolução Cubana e pelas releituras marxistas desenvolvidas na África e na América Latina ao longo das últimas décadas. Além dele, se destaca o pensamento negro, originário da diáspora africana, e sua releitura da colonização e da escravidão, bem como da condição dos negros no mundo contemporâneo, procurando resgatar suas raízes, originalidade e relevância para a superação da condição subalterna e subdesenvolvida.

Por fim, emergem os trabalhos que, mantendo um diálogo com as perspectivas anteriores, incorporam as contribuições do pensamento decolonial, anti-colonial ou póscolonial, procurando descontruir a modernidade eurocêntrica, suas lógicas e determinações, resgatando os diversos elementos (culturais, políticos, sociais, econômicos, religiosos, …) associados a negritude, as populações originárias e as mulheres, dentre outras, que nos permitem repensar a condição colonial e, principalmente, a dependência e o desenvolvimento (econômico e social) da região.

Neste sentido, podemos apontar que a obra pode ser analisada a partir de cinco eixos fundamentais, que se entrecruzam e se desdobram em inúmeras reflexões.

O primeiro eixo, que perpassa toda a obra, está associado a temática do colonialismo, tanto em sua dimensão temporal como nos efeitos políticos, econômicos e culturais, ao promover um quadro de dominação econômica, política e cultural, associado a colonialidade do saber e do poder nesta região e em toda a América Latina. Neste sentido, se destacam as análises, que podem ser consideradas clássicas, de Frantz Fanon (“Los condenados de la tierra”- fragmentos) e de Aimé Césaire (“Discurso sobre el colonialismo”) e o trabalho, mais recente, de Sylvia Winter (“1492: Una nueva visión del mundo”), embora os demais textos do livro possam ser considerados um desdobramento deste eixo primordial e continuem, a seu modo, discutindo tal temática.

O segundo eixo é caracterizado pelo debate sobre a dependência e a condição periférica dos estados caribenhos, além dos desafios para a criação de uma dinâmica efetiva de desenvolvimento econômico e social. Neste sentido, são apresentados os trabalhos de Eric Willians (“Capitalismo y esclavitud” y “El futuro del Caribe”), Kari Polanyi Levitt y Lloyd A.

Best (“Un enfoque histórico e institucional del desarrollo económico caribeño” y “Bosquejo de una teoría general de la economía del Caribe” e Sir William Arthur Lewis (“La agonía de las ocho”- Teoría para el desarrollo económico y social del Caribe), dentre outros.

O terceiro eixo, presente em boa parte dos trabalhos, é relacionado a questão da negritude e da condição ‘criolla’, discutidas em múltiplas dimensões, em que se destacam os elementos culturais e políticos. No primeiro caso, estão presentes trabalhos que revisam o tema da escravidão, em sua implicação social e cultural, analisam a emergência da noção de negritude, em sua relação com o pan-africanismo, e, mais recentemente, da noção de ‘creolidad’, destacando-se os trabalhos de Edward Kamau Brathwaite (“La criollización en las Antillas de lengua inglesa”), de George Lamming (“Los placeres del exilio”) e de Jean Bernabé, Patrick chamoiseau y Raphaël confiant (“Elogio de la creolidad”- fragmentos).

No plano político e social, destacam-se trabalhos que discutem a emergência do movimento negro e de uma consciência e mobilização social regional como os trabalhos de Édouard Glissant (“El discurso antillano”), de Walter Rodney (“El Black Power. Su relevancia en el Caribe”) ou de Brian Meeks (Radical Caribbean: From Black Power to Abu Baker/ Caribe radical. Del Black Power a Abu Bakr), dentre outros.

O quarto eixo relaciona-se ao impacto das Revoluções, passadas e presentes, na constituição e desenvolvimento de um pensamento revolucionário e libertário, que incorpora as tradições culturais, africanas e ameríndias presentes na região, e procura desenvolver um projeto político-cultural que combine justiça social e valorização destas tradições subalternizadas ao longo da história caribenha. Neste sentido, diversos trabalhos promovem um contato e um diálogo com o impulso libertário da Revolução Cubana e dos processos de descolonização e independência na África, a partir dos anos 60, dos quais podemos destacar os textos de Cyril Lionel Robert James (“De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”, extraído de ‘Os jacobinos negros’), de Maurice Bishop (“¡Siempre adelante! Contra el imperialismo y hacia la independencia nacional legítima y el poder del pueblo”) e de Lloyd A. Best (“Pensamiento independiente y libertad caribeña”), dentre outros.

O último eixo se relaciona a temáticas emergentes, dentre as quais se destacam as questões culturais e de gênero, que procuram, a partir da condição caribenha, redefinir o papel e a organização destas sociedades e, no segundo caso, revisar a condição subalterna das mulheres no mundo ocidental e contribuir para a superação desta condição e do empoderamento feminino. Neste sentido, se destacam os trabalhos de Elsa Goveia (“Estudio de la historiografía de las Antillas inglesas hasta finales del siglo XIX”), de Terry Agerkop (“Las culturas tradicionales y la identidad cultural en Surinam”) e, principalmente, de Alissa Trotz (“Género, generación y memorias: tener presente un Caribe futuro”).

Além dos aspectos já mencionados, outros elementos emergem da leitura desta obra. Como demonstram os textos, os diversos autores conseguem captar, com acerto, a dicotomia entre a unidade e a diversidade que caracterizam o Caribe, principalmente, ao destacar suas diversas tradições, mas que convergem para uma história e destinos comuns, além de revelar a dinâmica política e social das pequenas nações. Além disto, demonstram que tais autores procuram associar compromisso e sensibilidade social com rigor intelectual, tornando-se relevantes para o desenvolvimento de um pensamento próprio, caribenho e latino-americano, fundamentado tanto na realidade particular de cada ilha como nos desafios comuns que marcam a região e, de certa forma, toda a América Latina.

Neste sentido, também pode ser destacado que os textos são marcados pela convergência frutífera entre uma abordagem multidisciplinar, com destaque para história, economia, as ciências sociais e os estudos culturais e a utilização de múltiplos enfoques metodológicos e culturais, enriquecendo e ampliando o escopo analítico. Finalmente, vale mencionar que a obra contribui para o desenvolvimento de estudos comparados, produzindo um panorama (político, cultural, social e econômico) que consegue combinar o global e o regional, o regional e o local e uma análise multidimensional da conjuntura para compreender as sociedades caribenhas, seu passado e presente, com suas heranças estruturais e desafios atuais.

Entretanto, como toda coletânea, resultado de opções do organizador e dos limites da publicação, embora possua inúmeros méritos e tratar-se de um trabalho muito importante, possui limitações relacionadas, principalmente, a ausência de alguns pensadores e de algumas temáticas, como a análise das instituições e da dinâmica contemporânea da Integração Regional caribenha, as relações recentes com a herança e o continente africano, o agravamento de problemas sociais e ambientais, a emergência de novas formas de organização cultural e política e o papel das novas gerações na construção de um pensamento crítico caribenho, dentre outras.

Apesar disto, é possível apontar que a obra, assim como toda a coleção de CLACSO, ao apresentar as trajetórias fundamentais do pensamento latino-americano contemporâneo, é fundamental para o conhecimento da América Latina e do Caribe, em sua unidade e diversidade, dos problemas recorrentes e seculares que afetam a região (desigualdade, dominação, submissão, silenciamentos,…) e das possibilidades de construção de alternativas, alicerçadas na construção de direitos efetivos, de respeito as culturas e povos originários, de desenvolvimento económico e social, de democracia participativa e inclusiva e justiça social.

Neste sentido, conforme aponta o organizador Félix Valdés Garcia: Así, más allá de la obra de Jamaica, Trinidad y Tobago, Martinica o Barbados, los textos reunidos expresan el cuestionamiento de una totalidad mayor, dada con mayor frecuencia en las lenguas de Próspero que en creole, papiamento o sranang tongo, pero tan agudo como la plaga roja que Caliban pronunciara a Próspero. Ella expresa la unidad de lo diverso, de lo individual y lo universal de una experiencia, de islas que se repiten una y otra vez, sin ser iguales ni siquiera consigo mismas, más allá de la proximidad física, la fragilidad, la continuidad fáctica que la historia puso a merced de antojos imperiales y de experimentos sociales y culturales más impensados de la civilización occidental. Sirva la presente selección para rebasar las divisiones, el desconocimiento de pueblos que comparten una misma suerte, semejantes herencias y un mismo sol insular y de Nuestra América (GARCIA, 2017, p. 34).

À todos, boa leitura!!!

Notas

2. O Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) é uma instituição não-governamental, criada em 1967 e associada a UNESCO, que reúne cerca de 394 centros de pesquisa, programas de pós-graduação ou instituições em ciências humanas e sociais de 26 países da América Latina. Além deste, também são filiadas diversas instituições de EUA, Europa, África e Ásia que se dedicam ao estudo de temas latino-americanos. Para conhecer a entidade pode-se acessar: http://www.clacso.org.ar 3 O Brasil possui, até o momento, cerca de 51 instituições, programas de pós-graduação ou centros de pesquisa filiados.

Marcos Antonio da Silva – Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil.

 

VALDÉS GARCIA, Félix (org.). “Antologia del Pensamiento Crítico Caribeño Contemporáneo (West Indies, Antillas Francesas y Antillas Holandesas)”. Buenos Aires: CLACSO, 2017. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20170707025855/AntologiaDePensamientoCriticoCaribeno.pdf. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio da. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.37, p.149-153, jul./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF].

Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos – JUNQUEIRA (AN)

JUNQUEIRA, Mary Anne. Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos. São Paulo: Intermeios, 2015.  Resenha de: SANTOS JÚNIOR, Valdir Donizete dos. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, p. 369-375, jul. 2018.

Em tempos de globalização, quando, com raríssimas exceções, as mais diversas partes do mundo, das mais cosmopolitas às mais recônditas, se veem conectadas e interligadas pelas tecnologias de ponta nas comunicações e nos transportes, a primeira metade do século XIX apresenta-se como uma época ambígua: tão distante e, ao mesmo tempo, tão próxima de nós, de nossas vivências, do que somos e do que pensamos.

Distante, pois a correspondência epistolar, os diários manus­critos e as longas viagens a vapor parecem estar há anos-luz das comunicações informatizadas, dos aparelhos eletrônicos de última geração e das rápidas viagens aéreas que cortam os céus e mobilizam pessoas em todos os continentes. Próxima, uma vez que o período entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do século XIX marca o advento de um momento histórico do qual ainda, de certa forma, fazemos parte. Durante esses anos, as então recentes inovações da indústria, especialmente o advento da energia a vapor, facilitaram o trânsito em águas até então desconhecidas pelo Oci­dente e encurtaram as distâncias entre as várias partes do planeta.

A tais transformações técnicas somava-se o racionalismo ilustrado tão exaltado pelo liberalismo do século XIX, que buscou esqua-drinhar, classificar e catalogar tudo o que de novo fosse encontrado pelas potências ocidentais, construindo um conjunto de saberes que ditava hierarquias e incitava desejos imperiais. Tratava-se de um novo capítulo – um dos mais importantes – do processo de interligação de toda a superfície do globo terrestre, que se iniciara com as navegações ibéricas do século XV e que no século XIX vivenciava seu auge.

É sobre esse contexto de intensas transformações econô-micas, sociais, culturais, políticas e tecnológicas que evidenciavam o avanço do capitalismo e da modernidade, ainda marcadamente ocidentais e, em grande medida europeus, que se debruça Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842), a viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos, o instigante e fundamental trabalho da historiadora brasileira Mary Anne Junqueira. Resultado de sua Tese de Livre-Docência em História dos Estados Unidos, defendida em 2012, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, esse livro apresenta ao público brasileiro, alicerçando-se em sólida pesquisa acadêmica, a U.S. Exploring Expedition, primeira viagem científica de circum- -navegação do globo promovida pelos Estados Unidos. Executada pela Marinha norte-americana (U.S. Navy) entre 1838 e 1842, a missão foi comandada pelo genioso e polêmico capitão Charles Wilkes (1798-1877), autor dos cinco volumes da narrativa de viagem que serve como fio condutor do trabalho.

Trilhando as intersecções entre o mundo das viagens, a dis­cussão científica e os interesses geopolíticos em jogo na primeira metade do Oitocentos, Velas ao mar apresenta, de início, uma dupla importância ao pesquisador dedicado à História das Américas, espe­cialmente aos que se debruçam sobre o século XIX, qual seja, sua densa reflexão teórico-metodológica e sua originalidade temática.

Acerca do primeiro aspecto, Junqueira, estudiosa de temáticas e autores da chamada teoria pós-colonial, dialoga com referências importantes dessa seara, como Dipesh Chacrabarty, Mary Louise Pratt e o fundamental Edward Said. Discute com Chacrabarty, por exemplo, a necessidade de tirar a Europa do “centro” das análises   acadêmicas; com Pratt, a existência de trocas, mesmo que assimé­tricas, entre colonizadores e colonizados nas chamadas “zonas de contato”; e com Said, a construção de saberes e conhecimentos como fatores de afirmação e dominação imperial. Merece destaque especial sua leitura do historiador argentino radicado nos Estados Unidos, também interlocutor da teoria pós-colonial, Ricardo Salvatore, referência básica que se evidencia nas linhas e entrelinhas dos três primeiros capítulos de Velas ao mar. Discutindo a constituição de “lugares de saber”, Junqueira defende, acompanhando Salvatore, a existência de uma tensão latente entre a circulação transnacional de conhecimentos científicos, intelectuais ou técnicos e o processo de afirmação dos Estados nacionais no século XIX. Dito de outra maneira, a perspectiva transnacional, atualmente em voga na histo-riografia, nem sempre supera, mas frequentemente convive com o paradigma nacional.

Ainda em termos teórico-metodológicos, a autora reserva o quarto capítulo de seu trabalho exclusivamente a uma reflexão sobre a utilização dos relatos de viagem como fonte para o historiador. Para além de um mero balanço historiográfico, Junqueira aponta para a variedade desses textos e alerta para os cuidados que o pesqui-sador deve ter ao trabalhar com esse material. De acordo com a estudiosa, é preciso estar atento ao local de onde fala o viajante, ao seu universo cultural, ao período em que escreveu seu texto em relação ao período em que o publicou, à forma que escolheu para elaborá-lo (narrativa, carta, memória, diário etc.) e ao público que buscou cativar. Além dessas indicações metodológicas, a autora trava diálogo com a crítica literária, concebendo uma instigante reflexão sobre os relatos de viagem como um “gênero híbrido”. Partindo dessa premissa, entende esse documento como sendo essencialmente múltiplo, capaz de ser lido de distintas maneiras por pessoas e em tempos diversos, e cujas vozes, estilos e formas evidenciam grande polissemia.

A respeito de sua originalidade temática, Velas ao mar des­taca-se em alguns aspectos. Primeiramente, a U.S. Exploring Expe­dition, curiosamente, não é, como destaca a autora, a despeito de sua importância na História dos Estados Unidos, uma expedição que tenha sido alvo de maciços estudos, especialmente de pesquisas acadêmicas de fôlego. Velas ao mar é, portanto, o primeiro trabalho sobre essa desconhecida empreitada nos marcos da investigação historiográfica brasileira1.

Em termos estruturais, o livro de Mary Anne Junqueira é composto por duas partes. Os três capítulos que formam a primeira seção do trabalho (“Em nome da ciência: para compreender a U.S. Exploring Expedition”) preparam o terreno para a análise propria­mente dita da fonte. Inicialmente, insere a expedição comandada por Charles Wilkes em um contexto mais amplo das viagens de circum-navegação levadas a cabo por diversos países entre as décadas finais do século XVIII e as iniciais do XIX. Com o aprimoramento das técnicas de navegação e a crescente importância do Oceano Pacífico e dos grandes contingentes populacionais asiáticos para o comércio internacional, conhecer e mapear os mares era de suma importância para a obtenção de vantagens econômicas e geopolíticas. Nesse sentido, os Estados Unidos colocavam-se, ao se lançarem nessa empresa, em compasso e, ao mesmo tempo, em competição com países como a Inglaterra, a França e a também emergente Rússia, como pretendentes ao poder que o conhecimento sobre o mundo poderia propiciar.  Junqueira discute ainda, nos dois capítulos seguintes, dialo­gando com a História das Ciências e dos saberes científicos, como a expedição se circunscreveu em um quadro mais geral de definição de padrões internacionais acerca da navegação no globo terrestre. Nesse sentido, a autora nos mostra, seguindo Salvatore, que, na ten­são entre a circulação transnacional e os interesses especificamente nacionais, uma vasta gama de conhecimentos, como as longitudes da Terra, as coordenadas geográficas e o mapeamento náutico, entendidos atualmente por muitos como dados puramente técnicos, foram fruto de intensa disputa geopolítica, da qual os norte-ameri­canos se mostravam bastante propensos a participar. Constituiu-se, dessa maneira, nos marcos da primeira metade do século XIX, um quadro em que os Estados Unidos – que buscavam seu lugar no mundo – estabeleceram uma relação ambígua em relação à Europa, oscilando entre a admiração e a concorrência.

A seção final do trabalho (Cultura imperial: as Américas na narrativa de viagem de U.S. Exploring Expedition), composta por quatro capítulos, debruça-se mais especificamente sobre o mundo dos relatos de viagem: refletindo teórica e metodologicamente sobre esse tipo de fonte (capítulo 4), analisando de maneira mais detida a narrativa escrita pelo capitão da U.S. Exploring Expedition, Charles Wilkes, (capítulos 5 e 6) e cotejando, ao lado deste, relatos deixados por dois outros membros da tripulação da expedição, o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds (capítulo 7).

Sobre os cinco volumes da narrativa de Wilkes, a historiadora destaca sua inserção em um conjunto maior de textos que formam o relato oficial da viagem, composto originalmente por vinte e três tomos que versam sobre assuntos diversos, como etnologia, filologia, meteorologia, botânica, hidrografia, os aspectos mais diversos da zoologia e a temática das “raças do homem”. Junqueira ressalta os embates e as tensões expostas no processo de escrita desse docu­mento oficial, já que por seu caráter polêmico e por ter sido acusado de cometer diversos excessos ao longo da viagem, Charles Wilkes não era considerado por muitos a pessoa mais indicada para esse encargo. Como se evidencia pela leitura do trabalho, não somente o capitão foi o autor da descrição da viagem, como também a usou para se defender de seus críticos.

Velas ao mar reserva um de seus capítulos para uma análise sobre como Wilkes descreveu as Américas. Para tanto, a autora realiza um instigante debate sobre a questão da raça no relato e principalmente sobre a maneira como o capitão norte-americano concebia a ideia de “raça anglo-saxônica”. Inserida em uma reflexão alicerçada em uma bibliografia em língua inglesa especializada no tema, Junqueira discute a construção de uma retórica que concebe a superioridade civilizacional desse grupo formado por britânicos e norte-americanos em relação aos demais povos do planeta. Balizado por esse discurso, Wilkes afirmava a inferioridade dos povos que na América haviam sido colonizados por espanhóis e portugueses. O capitão não se utilizava para se referir a estes últimos, como era de se esperar, de expressões relacionadas à ideia de “latinidade”, como América Latina ou raças latinas, pois se o “anglo-saxonismo” da América do Norte já estava consolidado na época da expedição, o mesmo não se pode dizer da reinvindicação da “latinidade” por parte dos ibero-americanos, que somente iria se estabelecer de fato na retórica do continente a partir da década de 1850.  Mary Anne Junqueira encerra seu trabalho analisando, ao lado das narrativas de Wilkes, outros dois relatos produzidos por membros da expedição do U.S. Exploring Expedition: o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds. Para além de considerações sobre as relações pessoais e hierárquicas, bem como os costumes e as práticas cotidianas de tais viagens, é possível afirmar que a principal contribuição desse capítulo para o conjunto do trabalho seja a constatação de que a cultura imperial presente nas ideias norte-americanas já na primeira metade do século XIX não era privilégio de suas elites, mas era compartilhada pelas diversas classes sociais. A despeito das desavenças que esses dois outros personagens pudessem ter tido com Wilkes durante a viagem, não divergiam de seu capitão em um aspecto: a concepção da superioridade dos anglo-saxões em relação aos demais povos do continente americano.

Finalmente, é preciso mais uma vez destacar que Velas ao mar representa uma importante contribuição não somente para aqueles que estudam os relatos de viagem e a história das Américas no século XIX, mas para todos que desejam ter acesso a um trabalho de pesquisa sólida e reflexão acadêmica densa. Enfim, Mary Anne Junqueira oferece novamente elementos para o conhecimento da História dos Estados Unidos no Brasil, demonstrando que, já em seu processo de formação nacional na primeira metade do Oitocentos, os norte-americanos ambicionavam um lugar de destaque entre as nações mais poderosas do mundo e enunciavam precocemente uma retórica imperial que, como se sabe, tem justificado, desde meados do século XIX, a presença dos Estados Unidos em diversas regiões do globo, não necessariamente de modo cordial e pacífico.374  Valdir Donizete dos Santos Junior .

Valdir Donizete dos Santos Junior  – Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (Campus Jacareí) e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: [email protected].

A Sociedade dos Amigos dos Negros: a Revolução Francesa e a Escravidão (1788-1802) | Laurent de Saez

A obra “A Sociedade dos Amigos dos Negros”, escrita pelo historiador Laurent de Saes, traz o debate sobre a escravidão nas relações entre a França do período revolucionário e as colônias francesas da América, sobretudo, de Saint Domingue. Dentro dessa limitação espaço-tempo, o autor apresenta a primeira sociedade antiescravista francesa, designada como a Sociedade dos Amigos dos Negros, como um grupo criado e liderado, incialmente, por Jacques-Pierre Brissot de Warville, Étienne Claviére e Mirabeau e, posteriormente, com a adesão de outros ativistas, na França, em 1788, que realizava uma campanha em favor do abolicionismo e uma transformação gradual do sistema colonial, sob os auspícios da nova ordem, jurídica e ideológica, do período pós Revolução Francesa.

O livro traz um panorama da escravidão e suas contradições internas, dentro da relação metrópole-colônias, mostrando o impacto da Revolução Francesa e de seus ideais sobre a questão do abolicionismo e da relação entre metrópole-colônia. A defesa da liberdade, igualdade e fraternidade, princípios revolucionários liberais, foram incapazes de levar a abolição às colônias, ao contrário, por conta disso, fomentaram lutas de classe e revoltas violentas de escravos, ansiosos por independência e a emancipação. Para tanto, o estudo é estruturado em 03 (três) partes, compreendendo o período de 1788 a 1802, lapso temporal a partir da fundação da Sociedade dos Amigos dos Negros, passando pelo abolicionismo, pelas revoltas coloniais, até o restabelecimento da escravidão.

A primeira parte, intitulada “A revolução francesa diante da escravidão negra”, aborda as bases do pensamento da Sociedade dos Amigos dos Negros que defendia a tese, em seu programa inicial, da abolição do tráfico negreiro, a abolição gradual da escravidão, melhora das formas de tratamento dados aos escravos e um novo projeto colonial. Destaca-se o entendimento à época que a emancipação gradual da mão-de-obra escrava e inserção dos negros no sistema de trabalho assalariado seriam benéficos, tanto aos próprios escravos, em face da liberdade a ser obtida e melhores condições de vida, quanto aos próprios comerciantes coloniais e plantadores que obteriam uma maior produtividade e qualidade superior do trabalho. Os ideais da Revolução Francesa foram a base jurídica para argumentação abolicionista, contudo, a extensão de seus efeitos às colônias e os colonos e comerciantes franceses mostram-se barreiras de difícil transposição, visto que o sistema colonial do comércio e das plantations ainda eram consideradas as bases da economia.

A segunda parte do livro descreve como ocorreu a abolição da escravatura nas colônias francesas e seus principais fatores, favorecidas, principalmente, pela insurreição escrava nas colônias. A ascensão do abolicionismo radial, nascido a partir do levante em Saint Domingue, se inspirava no movimento da metrópole pela liberdade e igualdade, num mesmo momento que havia uma retomada da guerra entre França e Grã-Bretanha (1793), inclusive com a invasão inglesa das ilhas do caribe. Dentro desse contexto, a França foi pressionada a abolição da escravidão, sob o risco de perda das colônias.

A terceira e última parte nada mais traz do que a reação política ao movimento abolicionista, restabelecendo, paulatinamente, ao status quo. A ascensão do regime Consular, guiado por Napoleão Bonaparte, pautado pelos interesses da burguesia mercantil, trouxe uma política restauracionista e expansionista das relações coloniais, por conseguinte, o movimento abolicionista não conseguiu superar a forte atuação dos interesses do Estado nacional, na defesa dos seus interesses políticos e comerciais, culminado, inclusive, criando uma ordem constitucional segregada, em face a extinção do princípio da assimilação (1799).

Dentro desse arquétipo, pode-se notar que a obra foi desenvolvida a partir da concepção do materialismo histórico de Karl Marx e Friedrich Engels, uma vez que o autor traz, à fundamentação para sua tese, diversos documentos, manuscritos e impressos, a fim de consolidar e embasar o seu modo de pensar. Sendo assim, o texto se desenrola dentro de um processo progressivo e histórico, em que os conflitos de classe e as contradições internas se mostram latentes e no entro do debate. Trazemos, à questão que muito bem alicerça a adoção dessa opção metodológica, o paradoxo que era a tentativa de abolição da escravatura, sem, contudo, defender o fim modo de produção colonial como base da economia1. Ao contrário, a França, no período revolucionário ainda era pouco industrializada e extremamente dependente do modelo colonial. Inobstante isso, as contradições de classes também se faziam presentes, visto que, embora silenciada no período consular, a elite abolicionista e os movimentos populares e antiescravistas não deixaram de fomentar o embate interno contra a elite aristocrática e da burguesia mercantil, tanto que desaguaram nas Revoluções de 1830 e 1848 [2].

Nota-se que o autor apresenta causas múltiplas para esses acontecimentos, desde as contradições inerentes entre classes sociais, construídas dentro de um modelo das relações da escravidão e do pacto colonial, até as revoltas violentas dos escravos, o surgimento de um movimento, de cunho popular e abolicionista, na metrópole e as guerras revolucionárias. Portanto, devemos destacar as contradições mostram-se um tema fulcral ao debate, uma vez que a liberdade, um dos pilares da Constituição francesa, não atingiu as colônias, nos mesmos termos. A Constituição francesa declarou a abolição da escravatura, extensível às colônias [3], contudo, não foi aplicado, no ímpeto de impor ordem e controle colonial pela metrópole até que houve a reformulação do sistema, adotando uma dualidade constitucional [4]. Os grilhões do modo colonial impediam a liberdade do trabalho nas plantations, sob o argumento que impunha risco de fuga e escassez da mão de obra. Para equacionar o problema, adotou-se um regime híbrido que unia o trabalho compulsório e assalariado [5], mas não foi suficiente, tendo que chegar ao ápice a restauração da escravidão. Conforme podemos observar nos casos suscitados, à guisa de exemplos, os conflitos de classes e o modo de produção são características intrínsecas a obra e que impactam diretamente sobre a escravidão.

As discussões postas no estudo partem de uma extensa bibliografia francesa que rompia o silêncio da Revolução Haitiana, no período de descolonização no pós II Guerra Mundial. Cabe destacar que o debate historiográfico que emerge a obra do autor Laurent de Saes está situado na questão da continuidade ou não da escravidão do período revolucionário. Trazendo as ideias de Seymor Drescher [6], que defende que há uma temporalidade única e linear, ainda que separados em dois ciclos distintos, da escravidão no século XIX, tal qual o autor descreve na obra em questão. Portanto, nos dois grandes períodos abolicionistas seriam considerados como uma unidade histórica, dentro de “um mesmo processo histórico de aproximadamente cem anos” [7].

A outra interpretação sobre a escravidão, trazemos o autor Dale Tomich [8] para contrapor a visão acima exposta. Esse autor defende que há uma descontinuidade espaço-tempo entre o escravismo colonial e a escravidão do século XIX. Foi no período revolucionário, compreendido entre 1790 a 1820 que foram criadas as diversas condições para inaugurar a segunda escravidão, integrada ao desenvolvimento do capitalismo industrial e do mercado [9], uma vez que os espaços colônias ainda não estariam integrados plenamente na econômica capitalista mundial. Portanto, as revoluções europeias do longo século XIX significaram uma aceleração, tanto do tempo quanto do espaço, que permitiram modelar a escravidão, a partir da massificação de novos padrões de consumo e da mecanização do processo industrial, impostos pela Revolução Industrial.

Merece o devido comentário acerca de outro debate historiográfico em que as análises estruturais, mais amplas, foram deixadas de lado ao longo do tempo. Os estudos sobre a escravidão passaram o seu foco de investigações para casos mais circunstanciais, sob a visão dos subalternos. Embora não tenha sido totalmente abandonada a visão mais angular, foi somente na primeira década do século XXI que apareceram estudos mais alargados, seja através das diversificação dos países, das heterogeneidades culturais e eventuais conexões com o sistema-mundo, ainda que para estudar de forma comparativa as colônias unidas por um sistema de exploração colonial, mas separadas por um oceano [10].

A partir dessa percepção historiográfica, utilizando para tanto o pensamento de Eric Wiliams [11], que estabelece a conexão da escravidão com o colonialismo e com a Revolução Industrial. A partir desse enlace, o referido autor defende a tese que o escravismo caribenho como fomentador do acumulo de capital inglês e como este ultimo contribuiu para a extinção do escravismo, a partir da Revolução Industrial. Nota-se, portanto, que o papel da Inglaterra para o escravismo foi de suma importância, principalmente no mundo atlântico.

Partindo da premissa acima da importância do papel da Inglaterra na história da escravidão e do olhar mais abrangente da história da escravidão, devemos trazer a crítica à obra, o porquê o autor não trouxe o tema ao debate, uma vez que ele cita, por exemplo, que a sociedade dos Amigos dos Negros foi apresentada como uma filial da sociedade abolicionista inglesa [12], cita, também, o papel da Inglaterra nas Guerras Revolucionárias [13] e a ocupação britânica de ilhas caribenhas Guadalupe e Martinica) [14], sem, contudo, citar os efeitos da Revolução Industrial na França e as Colônias. Se pensarmos o objetivo da obra como o estudo sobre a escravidão nas relações entre a França do período revolucionário e as colônias da América, sobretudo, de Saint Domingue, ficaria difícil de não estabelecer elos mais aprofundados com a Inglaterra, quando o assunto fosse a escravidão.

Portanto, a obra “A Sociedade dos Amigos dos Negros” muito bem atinge o seu objetivo, permitindo analisar a escravidão dentro de uma relação dialética, mais abrangente e algumas das vezes contraditória, entre a França e as Colônias, sobretudo, Saint Domingue. O período, a partir da Revolução Francesa até o período consular, restou caracterizado pela atuação moderada da organização abolicionista, por meio de uma abolição do tráfico de escravos e da abolição de forma moderada, a permitir a absorção da mão de obra negra no mercado livre de trabalho, sem, contudo, romper com o sistema colonial. Todavia, ao deixar de analisar o papel da Inglaterra, dentro da percepção mais abrangente do autor, peca, visto que ele mesmo ressalta a participação inglesa na escravidão e nas relações, ainda que conflituosa, com a França e suas colônias.

Notas

1. SAES, Laurent de. A Sociedade dos Amigos dos Negros: a revolução francesa e a escravidão (1788-1802). Curitiba: Prismas, 2016, p.681.

2. Ibidem, p.684/688.

3. Ibidem, p.461.

4. Ibidem, p.542.

5. Ibidem, p.513.

6. DRESCHER, Seymour. Abolition: A History of Slavery and Antislavery. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

7. YOUSSEF, Alain El. Nem só de flores, votos e balas: abolicionismo, economia global e tempo histórico no Império do Brasil. Almanack no.13, Guarulhos May/Aug. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332016000200205 , acessado 04-12-17.

8. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011.

9. SALLES, Ricardo. A segunda escravidão. Revista Tempo (Niterói, online). Vol. 19, n. 35. p. 249-254, jul-dez., 2013.

10. SECRETO, María Veronica. Novas perspectivas na história da escravidão. Revista Tempo (Niterói, online). Vol. 22 n. 41. p.442-450, set-dez., 2016.

11. WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. Rio de Janeiro: Americana, 1975.

12. SAES, op. cit., p.85 e 87.

13. Ibidem, p.649,655.

14. Ibidem, p.502.

Marcus Castro Nunes Maia – Aluno de graduação – História (UFF). E-mail: [email protected]


SAEZ, Laurent de. A Sociedade dos Amigos dos Negros: a Revolução Francesa e a Escravidão (1788-1802). Curitiba: Prismas, 2016. Resenha de: MAIA, Marcus Castro Nunes. A escravidão no Império Francês no período Revolucionário. Cantareira. Niterói, n.29, p. 282- 285, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

Formação colonial e decolonialismo: Polifonia de vozes no Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2018

Neste último número de 2018, a Revista Brasileira do Caribe (RBC) oferece aos leitores um dossiê temático intitulado “Formação colonial e decolonialismo: polifonia de vozes no Caribe” composto por um total de oito artigos e uma resenha.

O dossiê se abre com o artigo “Entre a espada e a cruz: Bartolomeu de Las Casas em defesa do modo pacífico de evangelização dos indígenas na América Espanhola” de Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira que, pelo método denominado contextualismo linguístico do historiador Skinner, analisa a defesa da evangelização pacífica defendida pelo frade dominicano espanhol Bartolomeu de Las Casas. E para maior compreensão a autora o compara com o pensamento de seu contemporâneo o frade franciscano Motolinía.

Em seguida, Javier García Fernández, em “O prelúdio à conquista do Caribe e da América: a formação da Andaluzia moderna como paradigma do sistema mundo moderno colonial. Olhares descoloniais a partir do sul da Europa”, trabalha historicamente a conquista espanhola do Al Andalus e a formação da Andaluzia moderna. O autor defende que “a desapropriação das terras das populações andaluzas, as expulsões forçadas, a racialização dos mouros e a subordinação da Andaluzia às estruturas políticas de Castela seriam o prelúdio mais importante para o desenvolvimento do que viria a ser chamado de sistema mundo moderno colonial”.

O artigo “La praxis afroensayística de Manuel Zapata Olivella”, de Rodrigo Vasconcelos Machado, analisa a obra ensaística do colombiano Zapata Olivella com base nos postulados teóricos de Frantz Fanon e também os compara com outras produções ensaísticas iberoamericanas.

Os três artigos seguintes tratam do Haiti contemporâneo. O primeiro deles se intitula “Da queda do duvalierismo à transição inacabada: A crise haitiana dos anos 1980”, de Everaldo de Oliveira Andrade. Esse artigo trata da conjuntura geral de desestabilização econômica vivida pela América Latina na década de 1980 e, em particular, no Haiti. O autor questiona baseado em conceitos como “estado frágil” ou “estado falido” para caracterizar as instituições políticas do Haiti, confrontando-os “a hipóteses explicativas relacionadas aos processos de mobilização política popular que construíam novos caminhos e possibilidades de institucionalização da vida política nacional, mas também com as diferentes ações e interesses externos que agiram para preservar o regime pós-ditatorial e, portanto, impedir uma via alternativa e nacional de construção democrática”.

Já no segundo artigo intitulado “Relações históricas entre Brasil e o Caribe: o caso dos imigrantes haitianos”, de Katia Cilene do Couto, as relações históricas entre a Amazônia e o Caribe são discutidas, tendo como ponto de análise o fluxo imigratório dos haitianos para a região amazônica, iniciado em 2010 após a ocorrência de um terremoto que dizimou mais de duzentas mil pessoas. A autora analisa diversos aspectos das trajetórias migratórias que unem o Caribe e a grande Amazônia, que são pouco recorrentes na historiografia.

No último artigo sobre o Haiti intitulado “Mulheres haitianas no espaço público de 1930 a 1950: o olhar sobre as primeiras ações feministas da Liga feminina da ação social”, André Yves Pierre propõe estudar o núcleo de mulheres da classe alta e intelectual que organizou a Liga Feminina de Ação Social (LFAS) e o protagonismo das mulheres na luta para mudar as imagens estereotipadas sobre a mulher e refundar a base sociojurídica.

Em “Alzar la voz, perder el miedo: Universitarias entre la desigualdad y el acoso sexual” os autores María Leticia Briseño Maas e Iván Israel Juárez López tratam um tema pouco explorado que é o assédio sexual nos espaços universitários da América Latina e do Caribe. O artigo trata da violência de gênero naturalizada em nossas sociedades e no interior dos espaços universitários. Os autores utilizam um estudo realizado em uma universidade do sudeste mexicano para revelar que o assédio sexual se manifesta nos espaços universitários públicos, inseridos em contextos de violência, mas também de uma acentuada desigualdade social, na qual as mulheres, em condições de pobreza, ocupam o último elo de uma cadeia ampla de exclusões e injustiças.

O último artigo, de Allysson Fernandes Garcia, intitula-se “Pa’ que tú no sabe lo que es ser guapo. A procura do ‘homem novo’ no rap cubano”. O artigo em questão interpreta as narrativas ficcionais de masculinidade presentes na música rap na cultura musical cubana.

Segundo o autor, “essas narrativas possibilitam uma aproximação do imaginário da geração jovem que chegava à maioridade durante o “período especial”. Tais narrativas possibilitam identificar aproximações e distanciamentos dos valores morais, atributos e qualidades masculinas expressadas na música rap com aqueles anunciados e defendidos por Che Guevara ao cunhar a ideia de “homem novo”.

A resenha intitulada “O Caliban Afro e Indígena e o Pensamento Decolonial: o Caribe na “Antologia del Pensamiento Crítico Caribeño Contemporáneo (West Indies, Antillas Francesas y Antillas Holandesas)”, de Marcos Antônio da Silva, por fim, fecha o dossiê.

Agradecemos a todos aqueles que viabilizaram o lançamento deste novo número da Revista Brasileira do Caribe, especialmente, a Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão, a Editora e Gráfica da Universidade Federal do Maranhão e a todos os pareceristas que participaram com o seu trabalho e generosidade na avaliação dos artigos recebidos. Convidamos a todos os leitores a percorrer as páginas desta nova edição da Revista Brasileira do Caribe que nos apresenta diversos pontos de vista da produção historiográfica sobre o Caribe.

Isabel Ibarra Cabrera – Editora da Revista Brasileira do Caribe.


CABRERA, Isabel Ibarra. Formação colonial e decolonialismo: Polifonia de vozes no Caribe. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.37, p.4-6, jul./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF].

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Africanidades Transatlânticas | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2018

Africanidades Transatlânticas Cultura, história e memórias afro-brasileiras a partir do Espírito Santo

O presente número da Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo é uma edição especial que tem por objetivo lançar o projeto de pesquisa “Africanidades Transatlânticas: cultura, história e memórias afro-brasileiras a partir do Espírito Santo”, a ser desenvolvido entre agosto de 2018 e dezembro de 2019. Este é um projeto institucional envolvendo parcerias entre a Secretaria de Estado da Cultura (Secult), o própro Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES) e a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Ele está sob a minha coordenação e tem como principal equipe o antropólogo Sandro José da Silva e o historiador Flávio Gomes. Leia Mais

Diálogos sobre a Modernidade | Vitória, n.1, 2018.

I Ciclo de Palestras do Grupo de Estudos Modernidade Ibérica

  • Patrícia Maria da Silva Merlo, Lucas Onorato Braga |  PDF

Artigos

Publicado: 2018-05-06

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) | Alain El Youssef

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) é resultado da dissertação de mestrado de Alain El Youssef, defendida em 2010, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. Na obra, o autor analisa como a temática do tráfico negreiro foi abordada nos periódicos do Rio de Janeiro desde o ano de 1822, marco da proclamação da independência do Brasil, até a década de 1850, quando houve a aprovação da Lei Eusébio de Queirós e o tráfico no Império brasileiro foi legalmente abolido. Ao eleger o tráfico negreiro e a escravidão nos periódicos como seu objeto de estudo, Youssef se contrapõe a autores da historiografia brasileira que postularam a ausência de debates relativos a esses temas na imprensa do Rio de Janeiro até a década de 1870 [1]. A obra é, portanto, historiograficamente, uma afirmação desta presença.

Além de constatar essa existência, o autor procura demonstrar como diferentes grupos políticos se utilizaram da imprensa, desde o Primeiro Reinado, como estratégia e instrumento para a formação de uma “opinião pública” sobre questões, entre outras matérias, relativas ao fim do tráfico negreiro para o Império do Brasil. Segundo Youssef, essa estratégia tinha como intuito “preparar o terreno” para a discussão pública de determinados temas que estavam ou entrariam em voga no parlamento imperial. Por outro lado, o autor busca evidenciar como esses mesmos grupos políticos recorriam ao argumento da “opinião pública” para legitimar suas pautas.

Neste sentido, são importantes para a construção do argumento de Youssef as categorias de espaço público e opinião pública, adotadas a partir das perspectivas de François-Xavier Guerra [2] e Marco Morel [3]. Aqui, a imprensa é vista como um espaço público na medida em que se constituía como um lugar no qual ocorriam interações de diversas naturezas entre agentes históricos. Por sua vez, a opinião pública é “tratada como um conceito que os coevos dos séculos XVIII e XIX utilizavam para legitimar suas práticas políticas, principalmente aquelas que visavam influir a administração pública” (p. 30).

Embora a imprensa não seja apresentada na obra enquanto uma espécie de partido propriamente dito, menos ainda nos termos empregados no século XXI, Youssef procura chamar a atenção dos leitores para a importância que os periódicos, muito dos quais explicitamente partidários, tiveram na propagação dos ideais de moderados, exaltados e restauradores, luzias e saquaremas, liberais e conservadores, na complexa conjuntura política imperial. No que se refere ao tráfico negreiro em específico, o autor procura demonstrar como a imprensa teve um papel de suma importância na consolidação da política do contrabando negreiro no Brasil, empreendida pelos conservadores.

Segundo o autor, com o avanço do regresso, os conservadores passaram a fazer uma intensa campanha de defesa da reabertura do comércio negreiro em periódicos, tanto apresentando as vantagens econômicas da continuidade do negócio como publicizando as propostas de reabertura do tráfico transatlântico apresentadas ao parlamento brasileiro. Assim, para Youssef, a imprensa funcionou como uma espécie de elo de comunicação entre os políticos e proprietários de escravos interessados na continuidade do comércio negreiro, dando uma poderosa contribuição ao fortalecimento do contrabando e, consequentemente, ao aumento das cifras relacionadas a essa atividade.

Sobre a política do contrabando negreiro, é explícito o diálogo de Alain El Youssef com a leitura feita sobre o fim do tráfico por Tâmis Parron em suas produções recentes. Em certa medida, o livro de Youssef é complementar à dissertação de mestrado de Parron, reformulada em livro com o título A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865) [4] em 2011. Ambos buscam analisar o fim do contrabando negreiro através da história política, a partir das perspectivas de segunda escravidão de Dale Tomich [5], e de economia-mundo/sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein [6], e procuram entender como os debates e interesses político-econômicos em torno da (des)continuidade do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil estavam inseridos dentro de um contexto maior de transformações socioeconômicas mundiais no período. Partindo de tantos pontos em comum, é principalmente nas fontes que Youssef e Parron tomam caminhos diferentes. Enquanto os discursos parlamentares são os principais documentos históricos empregados na análise da narrativa de Parron, Youssef constrói sua narrativa a partir dos periódicos cariocas – o que confere complementaridade às duas obras.

Por pensar seu objeto a partir de uma perspectiva ampliada, Youssef procura entender a imprensa (assim como o tráfico negreiro) dentro das transformações ocorridas no mercado e na sociedade mundial no período. Dessa maneira, o autor busca demonstrar como a expansão do capitalismo, a queda de monarquias absolutistas, as revoluções de independência no Novo Mundo e a reconfiguração das áreas fornecedoras de importantes commodities para o mercado mundial, entre outros fatores, também contribuíram para a difusão de novas (ou modernas) formas de sociabilidades, que passam a conviver com as do Antigo Regime. No caso da imprensa, essas transformações teriam oportunizado a proliferação de impressos, a abolição/diminuição da censura, o surgimento de espaços de leitura e sociabilização das ideias presentes nestes impressos, e, como consequência, possibilitado a emissão de julgamentos por parte do público aos acontecimentos a ele contemporâneos.

Em termos de leitura histórica, outra produção historiográfica cuja influência sobre o livro de Youssef é notável é O Tempo Saquarema, de Ilmar Mattos [7]. Obra de referência sobre a história do Brasil Império, publicada pela primeira vez em fins da década de 1980, O Tempo Saquarema aborda elementos centrais contidos no livro de Youssef, como a relação entre expansão cafeeira, formação de projeto político imperial centralizador, continuidade do tráfico negreiro e o papel político-econômico britânico neste contexto. No entanto, Youssef distancia-se de Mattos em dois aspectos centrais do seu trabalho, a imprensa e a pressão inglesa. Enquanto Mattos, na perspectiva gramsciana, entende como secundário o papel da imprensa e das organizações civis consideradas privadas na construção da coalização entre proprietários do centro-sul e o grupo conservador na política imperial, Youssef apresenta a imprensa como tendo um papel central neste processo. Segundo o autor, a imprensa foi uma das principais responsáveis para que essa aliança, assim como a política do contrabando negreiro, tenha alcançado êxito.

Sobre o papel britânico nesse contexto, enquanto para Mattos os interesses internos da classe dirigente são vistos como predominantes, embora a pressão externa não seja ignorada, Youssef atribui protagonismo à pressão externa sobre as decisões relativas ao tráfico negreiro adotadas pelo governo imperial. Para o autor, a intensificação da pressão britânica pelo fim do comércio negreiro para o Brasil em meados da década de 1840 – e, inclusive, a iminência de um conflito armado entre as duas nações – por exemplo, não deixou alternativas aos Saquaremas senão a defesa do fim do contrabando. O grupo retornaria aos periódicos para preparar o terreno, desta vez para a abolição do tráfico.

A respeito disso, observa-se que Youssef também se distancia de recentes produções historiográficas brasileiras sobre o fim do tráfico negreiro que, embora não desprezem a importância que a pressão britânica teve sobre os rumos tomados por esta atividade, têm repensado como outros fatores influenciaram o fim do comércio proibido de escravos [8]. O autor procura demonstrar que fatores como o haitianismo, para citar um dos aspectos apontados recentemente pela historiografia, que também é mencionado pelo autor, não teve grande peso sobre o fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil. Youssef avalia que o haitianismo foi utilizado na imprensa do Rio de Janeiro muito mais como argumento retórico do que como um temor real.

Na obra de Alain El Youssef, a imprensa é, ao mesmo tempo, fonte e objeto histórico, informações que o autor deixa explícitas já no princípio da obra. Sobre isso, nota-se que, ao adotar a imprensa também como objeto, o autor consegue ir além do texto publicado. Investigando, por exemplo, as vinculações partidárias dos editores dos periódicos que consultou, é capaz de acessar alguns dos interesses existentes por trás das notícias veiculadas. Assim, o autor não deixa de chamar atenção para o modo como parte da historiografia brasileira tem utilizado a imprensa. Ao analisar os periódicos pontualmente, muitas vezes sem levar em consideração as vinculações das publicações, a historiografia acaba por reproduzir um discurso enviesado. Neste sentido, chama a atenção para a necessidade de se observar o enviesamento existente nas publicações.

Ao fazer a leitura deste livro no ano de 2018, período indubitavelmente conturbado da política brasileira, não poderia deixar de mencionar a atualidade da obra. Através do livro de Youssef verificamos como o argumento político da “opinião pública” e a construção politicamente enviesada da “opinião pública” pela imprensa têm sido empregados ao longo do tempo para conformar os rumos da história do Brasil.

Notas

1. Cf. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SOUZA, Christiane Laidler de. Mentalidade escravista e abolicionismo entre os letrados da Corte (1808-1850). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.

2. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992.

3. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.

4. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

5. Cf. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

6. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world system: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Nova York: Academic Press, 1974. vol. 1. Idem. The capitalist world-economy. Nova York: Cambridge University Press, 1979. Idem. The modern world-system: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. Nova York: Academic Press, 1980. vol. 2.

7. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987.

8. Dentre as produções que repensaram o papel da pressão britânica destacamos os estudos de Sidney Chalhoub, Flávio Gomes, João José Reis, Jaime Rodrigues e Robert Slenes. Cf.: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, ed. rev. e ampl., 1ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 2000. SLENES, Robert. “Malungu, Ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, 1992.

Referências

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992.

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WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world system: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Nova York: Academic Press, 1974. vol. 1.

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WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. Nova York: Academic Press, 1980. vol. 2.

YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeiros; Fapesp, 2016.

Silvana Andrade dos Santos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Doutoranda, PPGH-UFF, bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]


YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2016. Resenha de: SANTOS, Silvana Andrade dos. Imprensa como partido: “opinião pública” e tráfico negreiro em periódicos cariocas. Almanack, Guarulhos, n.19, p. 331-337, maio/ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

The reinvention of Atlantic slavery: technology – labor – race and capitalism in the Greater Caribbean | Daniel B. Rood

There has been a revival of the capitalism in the United States since the great recession of 2008. The New Historians of Capitalism (NHC) have created new academic programs and departments at Harvard, Cornell, Brown and the New School for Social Research. This is welcome relief from the “linguistic turn”, returning historical inquiry to the systematic investigation of social and economic structures. However, the New Historians insist that in order to reinvent the study of capitalism, they must abandon any attempt to specify what they mean by capitalism [3]. However, as Althusser argued – “silences are not innocent” -, the New Historians do have an implicit conceptualization of capitalism. Essentially, they adapt Adam Smith’s notion of “commercial society” [4], where capitalism is any economy geared toward profit maximization through productive specialization and market exchange. They also include among capitalism’s features as warfare, finance and legal-physical coercion in the appropriation of surplus labor. Put another way, the New History of Capitalism identifies capitalism with social processes like trade, finance and violence, which have existed for most of the last eight to ten thousand years.

This implicit understanding of capitalism contrasts with most Marxian accounts which view capitalism as a distinctive set of social property relations (social relations of production) with specific rules of reproduction (laws of motion) [5]. From this perspective, capitalism is the first form of social labor in which both non-producers (capitalists) and producers (workers) reproduce themselves through market competition. Capitalists are thus compelled to specialize output, continually introduce labor-saving technology, and accumulate capital in order to reduce costs and maximize profits in a competitive “war of all against all.”

Not surprisingly, the New History of Capitalism has radically altered the study of new world plantation slavery. Walter Johnson, Edward Baptist and Sven Beckert [6] argue that new world slavery was not some atavistic throwback to pre-capitalist societies, but a thoroughly capitalist form that was the foundation to the development of industrial capitalism in both Britain and the United States in the late eighteenth and early nineteenth century. Despite their commonalities, there is considerable debate among these historians about the respective role of physical coercion and technological innovation in the increases in productivity of slave labor, in particular in the harvesting of cotton in the antebellum United States [7]. Daniel Rood’s The reinvention of Atlantic slavery clearly situates itself in the emerging cannon of the New History of Capitalism on plantation slavery, while coming down clearly on the side of those who argue that the master-slave relation was no obstacle to the introduction of labor-saving technology during the “second slavery” of the nineteenth century.

The “second slavery” refers to the revival of plantation slavery in the nineteenth century, after the “colonial slavery” of the seventeenth and eighteenth centuries ended with the Haitian Revolution, the British attempt to suppress the Atlantic slave trade, and the gradual emancipation of slaves in the Jamaica and other British colonies. Most studies of the “second slavery” focus on the US slave produced cotton providing the raw material for British industrialization [8] and Cuban and Louisiana plantations providing the sugar that began to substitute for other, more nutritious and expensive foods in the diets of British workers [9] Rood broadens this discussion by incorporating the “Great Caribbean” nexus between Cuba, Brazil and the upper US South, in particular Virginia.

Faced with sharpening competition from European beat sugar producers and US and British tariffs, Cuban cane sugar planters “responded by adapting European industrial technologies, combining planting with finance, taking control of modern transport infrastructure, and vanquishing small landholders to grab a larger share of the market” (p. 2). The transformation of Cuban slavery forged new connections with the upper US South, which provided extensive engineering and technical expertise to build mills and railways and slave cultivated wheat to feed the island. Simultaneously, the shift in Brazilian slavery from declining sugar plantations in the northeast to more dynamic coffee cultivation in the southeast created new ties with Virginia wheat planters and railway engineers. Throughout this “Great Caribbean” nexus, new labor-saving technology was applied to both production and transportation, and the “race management” of labor was transformed as African slaves’ practical knowledge was appropriated to “creolize” new machinery, and planters began to use new forms of coerced labor, in particular Chinese indentured servants.

Rood begins by retelling the now familiar story of the transformation of the Cuban sugar refining mills and the construction of railroads during the 1830s and 1840s [10]. Faced with increased global competition, Cuban sugar planters built railroads to quickly transport cut cane to the mills from their ever expanding plantations before it spoiled, introduced steam powered crushing of the cane, and replaced the labor-intensive Jamaica train with the vacuum pan in the refining of white sugar. Rood breaks new ground with his investigation of innovations in the preservation of white sugar, where racially ‘tinged” science that assigned manual labor to “darker” people is linked to the struggle to preserve the “purity” of sugar for the US and European markets. His discussion of the transformation of the port of Havana is especially insightful. Havana had experienced a shift from the dominance of middling merchants, whose profits depended upon storage fees, and sales commissions, to a “new generation of Spanish-born elite merchant-planters” whose income came “from buying and selling sugar on the world market, financing illegal slaving voyages, and underwriting sugar-mill operations” (p. 67). To facilitate their new role in the global sugar trade, these merchant planters rebuilt the ports in Havana, introducing railway depots, constructing new warehouses and mechanizing the ports in order to keep “sugar in gentle but unceasing movement” (p. 67). While profiting from the increased speed of circulation, the merchants also remade the port work force replacing black (free and slave) workers with Europeans and Chinese laborers.

Railroad construction in both Cuba and Brazil in the mid-nineteenth century created new connections with the upper South. Rood details how Virginia construction engineers and their slaves were essential to the construction and operation of railroads in new, tropical terrains in the “Great Caribbean”. Skilled slaves were crucial, in the upper US South, Cuba and Brazil in constructing rail lines and operating them – despite widespread planter and merchant fear of relying upon these bonded, racialized workers. The spread of railways also created a new, modern iron industry in the upper South. The Tredgar Iron Mills in Richmond, Virginia was one of the largest and most technologically advanced iron producers in the US, relying on the labor of slaves leased by the mill owners from their owners.

The mid-nineteenth century also saw the shift in the center of Brazilian slavery from the increasingly uncompetitive sugar plantations in the northeast to the highly profitable coffee plantations in the southeast, the hinterland of Rio de Janeiro. Again, railroad construction, often by US trained engineers, was central to the expansion of the coffee frontier. As the population of Rio grew, and more and more lands were shifted from the production of foodstuffs for domestic consumption to the cultivation of coffee for export, a new market emerged for the fine white flour produced in Virginia. In the early nineteenth century, Virginia planters began to shift from tobacco to wheat, breaking up their plantations and selling off excess slaves to the booming cotton frontier of the US southwest. By the 1840s and 1850s, the growing Brazilian demand for high quality white flour transformed both flour-milling technology and the preservation and storage of white flour in the Richmond area. The Richmond mills continued to rely on water-power but were relatively capital-intensive and utilized the labor of skilled, leased slaves.

The deepening Virginia-Rio nexus also transformed the harvesting of wheat in Virginia. Rood reveals how the expanding wheat farms of the Shenandoah Valley were the incubator for Cyrus McCormick development of his mechanized grain reaper in the 1830s and 1840s. Ripened wheat has an especially short window before it spoils, placing tremendous pressure on wheat producers to harvest and thresh the wheat as quickly as possible. Rood outlines how McCormick relied on the labor of skilled slave black smiths, wheat cradlers, and carpenters in the development of the harvesting machine that would radically transform US small grain agriculture in the mid-nineteenth century.

Rood’s book bring important new insights to the history of the “second slavery” by broadening its scope beyond the US cotton-Cuban sugar-British textile industry node, to include the “Great Caribbean” nexus of Cuban sugar-upper South technical expertise, iron and wheat-Brazilian coffee. His accounts of the transformation of the port of Havana, and of wheat cultivation and processing in Virginia are important additions to our historical knowledge. However, the book suffers from a number of conceptual and historical problems.

First, Rood uses the term “creolization” to discuss the adaptation of technologies to specific production processes in specific geographic-ecological locations. While Rood reestablishes the role of slaves in the adaptation of existing techniques in railroad construction, flour milling and farm implement construction, he sometimes implies that there is something unique about the pragmatic sharing of experimental information on technology among agricultural and industrial producers. This was actually quite typical of technical innovation before the late nineteenth century, when miners, skilled artisans and midwives were often the most important figures in the development and application of scientific knowledge [11]. It was only during the second industrial revolution (steel, chemicals, electrical power-machinery) of the 1890s, that capital took control of scientific research with the proliferation of “research and development” departments in major corporations.

Rood’s use of “race management” is also problematic. As developed by David Roediger and Elizabeth Esch [12], race management referred to the pragmatic way in which the ideological notion of race (the division of humanity into groups with distinct and unchangeable characteristics) is used to classify and distribute workers into various positions in the production of commodities. These categories were highly flexible in light of the ever-changing demands of the market-driven production of commodities. Rood tends to emphasize the racial anxieties experienced by slave owners as technology changed labor-requirements, but has little to say about how they adapted their “racial theories” to meet the new requirements of production. This often goes hand in hand with important errors in analyzing the impact of new techniques on labor requirements. Specifically, Rood reiterates Moreno Fraginals’ claim that the introduction of the vacuum pan raised the level of skill and knowledge required in the refining of sugar, creating a crisis of “racial management.” As Dale Tomich points out [13], it was the earlier technology – the Jamaica Train – that relied heavily on the intelligence and experience of skilled slaves. The vacuum pan, by automating the process of sugar refining, actually deskilled labor in that phase of sugar production.

The greatest problems with Rood’s analysis flow from his uncritical acceptance of the New Historians’ common sense that slavery was a capitalist form of production. There is no question that slave-owners in the US were, for the most part, subject to “market compulsion.” Slave holders throughout the new world had to borrow capital to purchase their basic means of production – land and slaves. In the British colonies and most of the southern United States faced the loss of land and slaves if they failed to pay these debts. Put in another way, they were subject to what John Clegg has called “credit market discipline” [14] – they had to successfully compete in the global market in order to preserve (no less expand) their ownership of land and slaves. Rood never makes the case that Cuban planters faced these constraints, or whether, like French colonial planters, they were exempt from the loss of land and slaves for the failure to pay debts [15] Clearly, those planters subject to “credit market discipline” sought to cut costs in order to remain competitive – they sought to adapt the most up to date innovations in crop varieties, fertilizers, tools and methods.

The master-slave social property relation, however, prevented the planters from continually adapting the latest, labor-saving tools and methods [16]. The obstacle to the continuous adaptation of labor-saving techniques was not any lack of motivation or skill on the part of their bonded laborers. Instead, it was the reality that slave-holders did not purchase the labor-power of the slaves (their ability to work for a set period of time), but the laborers as “means of production in human form”. Put in another way, the slave was a form of fixed capital – a constant element of the production process that could not easily be expelled from production in order to facilitate the relatively continuous introduction of techniques that improved labor productivity. So, if planters introduced cost-cutting techniques that saved labor, they would not be able, like their capitalist counterparts, to simply lay that labor off. They would be stuck with continuing ownership of the laborer(s), having to keep them around until they could find purchasers for their surplus slaves.

It is true that, like other non-capitalist forms of social labor, slavery did bring about episodic improvements in productivity. However, unlike under capitalism, which tends to spur more or less ongoing technical change, innovation under slavery had a “once and for all” character [17]. Thus, the introduction of labor-saving techniques in Cuban sugar production and shipping, or in Virginia wheat cultivation did not set off a process of continuous technical innovation. Like other technical innovations under slavery, they corresponded to the introduction of new products or the movement of production to a new frontier. Once established, these new labor-processes remained relatively unchanged until new products were introduced, new geographic regions were brought under production, or slavery as a form of social labor was abolished. Those industries where there was continuous technical innovation, Virginia’s iron works and Rio’s bakeries, utilized leased slaves. Leased slaves were, like indentured servants, a form of legally coerced wage labor. Those who leased slaves essentially purchased their labor-power for a set period of time, and could easily expel that labor when new, more productive tools and methods became available.

The limitations the master-slave social property relation on continuous technical innovation is most evident in the case of the mechanized reaper. While Rood’s discussion of how McCormick’s initial motivation was to revolutionize Virginia’s wheat harvests is quite insightful, he never poses the question of why McCormick abandoned Virginia for Chicago when he turned to mass producing his mechanical reaper. Rood recognizes that there were serious obstacles to the diffusion and generalized adaptation of the reaper in Virginia’s slave based agriculture. Rood acknowledges that two large wheat planters who adapted the reaper found themselves “burdened by the presence of too many workers” (p. 189). Unlike wage laborers who could easily be laid-off when they were no longer needed, slave owners had to maintain their slaves in order to preserve their value as “means of production in human form”. While the wheat producers of Virginia were a relatively narrow market for the mechanical reaper, the petty-capitalist family farmers of north were an ever expanding market for the reaper and other labor-saving tools and machinery18. Not surprisingly, despite his personal sympathy for slavery, McCormick relocated his factory to be closer to his customers in the dynamic capitalist north.

Referência

ROOD, Daniel B. The reinvention of Atlantic slavery: technology, labor, race and capitalism in the Greater Caribbean. New York: Oxford University Press, 2017

Notas

3. ROCKHMAN, Seth. What makes the history of capitalism newsworthy? Journal of the Early Republic, n. 34, p. 442, Fall 2014. Similar arguments are made by most of the participants, including BECKERT, Sven. Interchange: the history of capitalism. Journal of American History, 101, n. 2, p. 503-36, September 2014.

4. SMITH, Adam An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. New York: Modern Library, 1937 [1776].

5. The concepts of social-property relations and rules of reproduction are derived from the work of BRENNER, Robert. Property and progress: where Adam Smith went wrong. In: WICKHAM, Chris (ed.). Marxist history-writing for the twenty-first century. London: British Academy/Oxford University Press, 2007. p. 49-111. Brenner’s work, of course, is rooted in Marx’s mature work in the three volumes of Capital.

6. JOHNSON, Walter. River of dark dreams: slavery and empire in the cotton kingdom. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2013; BAPTIST, Edward. The half has never been told: slavery and the making of American capitalism. New York: Basic Books, 2014; BECKERT, Sven Empire of cotton: a global history. New York: Alfred A. Knopf, 2014. For a lengthy discussion of the strengths and weaknesses of these works, see POST, Charles. Slavery and the New History of Capitalism. Catalyst, 1, n. 1, p. 173-192, Spring 2017.

7. Baptist (2014) is the most articulate exponent of the physical coercion/torture thesis, while Alan J. Olmstead and Paul W. Rhode make a convincing case for the role of technical innovation in raising the productivity of slave labor in cotton harvests, in OLMSTEAD, Alan J.; RHODE, Paul W. Biological innovation and productivity growth in the antebellum cotton south. Journal of Economic History, 68, n. 4, p. 1123–71, 2008.

8. Beckert (2014) summarizes this literature.

9. MINTZ, Sidney. Sweetness and power: the place of sugar in modern history. Harmondsworth: Penguin Books, 1985.

10. FRAGINAL, Manuel Moreno. The sugarmill: the socioeconomic complex of sugar in Cuba, 1760- 1860. New York: Monthly Review Press, 1976.

11. CONNOR, Clifford D. A people’s history of science: miners, midwives, and low mechanicks. New York: Nation Books, 2005.

12. ROEDIGER, David; ESCH, Elizabeth. The production of difference: race and the management of labor in U.S. history. New York: Oxford University Press, 2012.

13. TOMICH, Dale. Slavery in the circuit of sugar: Martinique in the world economy, 1830-1848. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990. p. 199-201, 221-225.

14. CLEGG, John J. Credit market discipline and capitalist slavery in antebellum south Carolina. Social Science History 42, n. 2, p. 343-376, 2018. As it will become clear, I do not believe that market dependence made slaveholders capitalists.

15. BLACKBURN, Robin. The making of new world slavery: from the baroque to the modern. London: Verso, 1997. p. 282-83, 444-45.

16. The following is a summary of my argument in POST, Charles. The American road to capitalism: studies in class structure, economic development and political conflict, 1620-1877. Chicago: Haymarket Books, 2012. Chapter 2.

17. BRENNER, Robert P. The origins of capitalist development: a critique of neo-smithian Marxism. New Left Review 104, p. 36-37, July–August 1977.

18. POST, Charles, 2012. p. 94-97.

Charles Post – University of New York – New York – United States of America. Professor, Sociology, borough of Manhattan Community College and the Graduate Center-City University of New York. E-mail: [email protected]


ROOD, Daniel B. The reinvention of Atlantic slavery: technology, labor, race and capitalism in the Greater Caribbean. New York: Oxford University Press, 2017. Resenha de: POST, Charles. Capitalist slavery in the great Caribbean? Almanack, Guarulhos, n.19, p. 321-330, maio/ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Teoria da História e História da Historiografia na América Latina e no Caribe / História da Historiografia / 2018

La constitución de la historia como disciplina en América Latina y el Caribe durante los siglos XIX y XX coincidió con el proceso de emergencia y consolidación de los Estados nacionales a los que proveyó de relatos e interpretaciones sobre sus orígenes, su evolución, sus rasgos particulares y su identidad. De ese modo, las narrativas históricas tomaron a la nación como principal escala de análisis y, mucho más importante aún, como sujeto protagónico de los procesos históricos.

Hasta mediados del siglo XX, y aunque con importantes diferencias regionales, la historiografía de los países latinoamericanos se desarrolló en buena medida por fuera de los sistemas universitarios. Los historiadores eran en general políticos, funcionarios, escritores, médicos o abogados, que podían estar ligados o no a instituciones como las academias de historia, los institutos históricos o las sociedades de estudios históricos. Después de la Segunda Guerra Mundial, y sobre todo a partir de la década de 1960, las universidades comenzaron a concentrar la producción de conocimiento histórico. Tributaria de una tradición local de ensayismo crítico, y enriquecida por el contacto con la historia social marxista y annaliste -contacto que en parte se debió al exilio provocado por las dictaduras militares-, la historiografía latinoamericana fue entonces objeto de una notable renovación teórico-metodológica que promovió la incorporación de nuevos temas, problemas y abordajes. En ese sentido se destaca la consideración de América Latina y el Caribe como un espacio con una historia común que era pensada con categorías como dependencia, desarrollo, modernización o formación económico-social. Sin embargo, y a diferencia de lo sucedido con otras disciplinas como la filosofía, la sociología o la economía, esta caracterización no fue una condición suficiente para que la historiografía produjera interpretaciones y narraciones de conjunto capaces de trascender la suma de casos nacionales. Leia Mais

Tecnologia da Informação aplicada aos arquivos / Revista do Arquivo / 2018

Há, com frequência, uma dose de narcisismo da geração em como as novas mídias e as tecnologias de comunicação são avaliadas por contemporâneos; em outras palavras, há uma forte tendência de pensar que nossa geração é aquela que tem o tipo certo de tecnologias que fará tudo mudar[1].
Marko Ampuja

Os arquivos mais organizados, em geral, apropriam-se de técnicas e tecnologias para fins de exercício de suas funções. Os afazeres em arquivos estão vinculados às esferas da comunicação; da movimentação, acondicionamento e guarda de grandes volumes (em geral, documentos e caixas de documentos); e também de tudo o que diz respeito à localização, transporte e disponibilização de documento. Há, ainda, conhecimentos aplicados à preservação de diversos tipos de suportes documentais. Lembremos dos enormes mecanismos de geração de cópias por meio de equipamentos fotoelétricos, de fitas magnéticas, das técnicas para empreender desinfestações ou mesmos dos robôs usados para localizarem e disponibilizarem documentos em grandes depósitos “inteligentes”.

Entretanto, nenhum dos avanços tecnológicos impactou de forma tão decisiva na formação dos profissionais de arquivo quanto aqueles ligados à chamada tecnologia da informação. Na mal chamada “era da informação”, esperar-se-ia que os arquivos recebessem o reconhecimento de sua função estratégica. Afinal, o saber-fazer dos arquivistas não é senão o tratar as informações (e seus suportes) para que estas estejam preservadas e acessíveis a todos.

Mas, não é bem assim o que ocorre. Se, desde a década de 1980, a área dos arquivos parece florescer na prática e na teorização sobre os mesmos, é no âmago dessa chamada “era da informação” que se percebe aqui e ali o desprestígio ou mesmo possibilidades de retrocesso de políticas de arquivos no Brasil. É do alto de sua reconhecida competência técnica que Vanderlei dos Santos conclui em seu artigo, que as instituições vêm repetindo o comportamento dicotômico de afirmar que as informações são recursos estratégicos e, ao mesmo tempo, não investir em programas de gestão de documentos e informações, quer sejam ou não digitais.

De fato, assistir ao desempenho de um autômato ou um sistema automatizado operando costuma causar-nos espanto, sensação de estranhamento e de vulnerabilidade, ou de encantamento. Porém, isso está na base da fetichização da tecnologia no mundo atual. É necessário, no entanto, o esforço para enxergar que por detrás de todo o mecanismo há a imprescindível ação da inteligência e da mão humanas. De elaboradores e de operadores. É o que nos alerta o mesmo Vanderlei Santos: “o certo é que o fator humano é um dos principais responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso de qualquer mudança institucional em que precise ser considerado e, sobremaneira, na execução de políticas de gestão de documentos arquivísticos”

Tecnologia é a expressão permanente e acabada da relação do ser humano com o seu ambiente e se vincula à incessante busca pelo fim do sofrimento causado pelo esforço penoso do trabalho. Entretanto, a evidência é historicamente comprovada: a tecnologia aprisionada para atender aos interesses de uma minoria que a controla e a explora significará a aniquilação humana e não a sua libertação como muitos apregoam.

Por outro lado, a visão equivocada fundada no determinismo tecnológico obscurece o papel estruturante daqueles que detêm o poder de decisão, inclusive sobre as escolhas de equipamentos a serem usados. Conforme afirma José Carlos Vaz, em vídeo disponível nesta edição, a tecnologia é também uma construção social.

Encerro este singelo editorial com as certeiras palavras de Alicia Barnard Amozorrutia:

Para lidar com o imensurável número de dados que se encontram nos servidores das instituições, cujas características, como unicidade, suporte de uma ação ou atividade, a inter-relação com outros documentos e o valor probatório que cumprem ou o qualificam como um documento de arquivo digital, requer profissionais da arquivística, e estes ainda não têm preparo para lidar com esse ambiente, pois é fato que apenas esses profissionais sabem tratar de contextos, conhecem planos de classificação e de temporalidade documental, fatores imprescindíveis para a produção, gestão e preservação de documentos de arquivos digitais. Essa falta leva a consequências desastrosas, tanto para a prestação de contas, quanto para a transparência ou preservação desses materiais a longo prazo.[2] [tradução livre minha].

Boa leitura!

Notas

1. Marko Ampuja, A Sociedade em rede, o Cosmopolitismo e o “Sublime Digital”: reflexões sobre como a História tem sido esquecida na Teoria Social Contemporânea. Disponível em: http: / / revistaseletronicas.fiamfaam.br / index.php / recicofi / article / view / 295 / 311

2. Trecho extraído da apresentação do livro Archivos electrónicos: textos y contexto II. 1ed. Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2013, v. 1, p. 111-133. Serie Formación Archivística, organizado por Alicia Barnard Amozorrutia.

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano III, n.6, abril, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História do tempo no Brasil | Revista Hydra | 2018

Apontamentos para uma história do tempo no Brasil

“Ciência dos homens, no tempo”: eis a célebre definição de história oferecida há mais de sete décadas por Marc Bloch [1], e cuja primeira palavra permite maior discordância do que as demais. Pois se é controversa a condição científica da história, é unânime que seu foco deva estar em seres humanos e no tempo. Esta última palavra, aliás, também pode nos remeter a um fenômeno social: partindo-se de uma história de homens no tempo, é possível tomar o tempo como objeto da história [2]. Um objeto qualquer, como tantos outros? Não exatamente, na medida em que este apresenta potencial singular de requalificar uma reflexão teórica inescapável: o problema da dívida tanto da realidade social como de seu conhecimento para com aquilo que aquela palavra revela (ou encobre).

Com o avanço desse duplo tratamento de tempo – como condição da história, como objeto da história – logo o simples singular deve ensejar um singular coletivo. Afinal não há, a rigor, um único tempo da história, de uma época ou de uma sociedade. Sempre, como nos ensina Braudel, toda e qualquer história é sempre constituída por uma pluralidade de tempos simultâneos: uns mais lentos e longos, outros mais rápidos e curtos; mas todos dinâmicos, configurados pelas dimensões concretas da realidade social – estas transformadas segundo seus ritmos próprios – e ensejando entre eles relações: tensões, amálgamas, hierarquias e definições recíprocas [3]. Pode-se entender, a partir daí, tempo histórico ou tempo social como a síntese dessas relações, a criarem certas permanências que, segundo Koselleck, resultam em estruturas temporais, também elas presentes em toda e qualquer sociedade [4]. Leia Mais

Nas Teias do Império: Poder e Propriedades no Brasil Oitocentista / Cantareira / 2018

Depois de um longo período de descrédito, os estudos em História Política voltaram ao centro dos debates historiográficos. Graças a um importante movimento de renovação ocorrido nas últimas décadas – como a descoberta e utilização de novas fontes e objetos de estudo, assim como de novas abordagens teórico-metodológicas–, pesquisas políticas antes consideradas esgotadas ganharam um novo fôlego. Um exemplo disso são os diversos trabalhos que propõem um novo olhar sobre o processo de construção do Estado e da Nação brasileira ao longo de todo o século XIX, nos mostrando que, apesar de clássico, o tema em questão é ainda um terreno fértil.

Profundamente relacionado ao contexto econômico-social em suas múltiplas facetas, o tradicional estudo das ideias, do pensamento e das práticas políticas foi revolucionado. Tanto as doutrinas – o liberalismo e o conservadorismo –, quanto as disputas partidárias que as materializavam em projetos de governo ganharam novas dimensões ao serem vinculadas às manifestações culturais e religiosas; aos diversos movimentos sociais que demandavam direitos; aos interesses ligados ao escravismo, a posse de terras e a modernização econômica; a preocupação de forjar uma história nacional no qual o progresso e a civilidade fossem possíveis; e a uma ação diplomática que lutava pela manutenção da unidade e das fronteiras políticas brasileiras.

Nesta perspectiva, cremos que os elementos supracitados orbitam em duas grandes temáticas que particularizam o século XIX: a liberdade e a propriedade. Como sabemos, essa centúria foi marcada pela disputa entre duas linguagens políticas – uma ligada ao Antigo Regime e a outra ao Iluminismo. Este embate marcou a construção de uma nova concepção de mundo, a Modernidade, que estava completamente entrelaçada ao surgimento do liberalismo. Impulsionadas por essas novas ideias, várias regiões do mundo iniciaram um processo de transformação de suas estruturas políticas, econômicas e sociais, o que gerou impactos, interpretações e usos variados.

Não à toa, é justamente no decorrer desse mesmo século que a maior parte das ex-colônias americanas iniciaram seu processo de emancipação política e, consequentemente, a construção dos seus Estados e de suas Nações. Segundo Hespanha, alguns elementos aproximam estes diferentes processos, como o surgimento de grandes Estados bem como de suas gestões, que envolviam a administração de grandes territórios, a implantação de uma nova soberania e de uma nova organização da vida política baseada nas ideias de cidadania e de direitos3.

No caso brasileiro não foi diferente. A independência do Brasil e a posterior formação de suas instituições políticas e de seus cidadãos conciliaram as ideias liberais modernas com a persistência de antigas práticas do Antigo Regime. Nesse sentido, apesar do liberalismo ser central em todo este processo, ele foi apropriado e transformado para adaptar-se às características sociais brasileiras, cujas bases eram a escravidão, o patriarcalismo e o clientelismo.

Se tais questões de âmbito político e social demarcaram – e seguem a demarcar – diversos estudos acerca do oitocentos no Brasil, não diferente foram aqueles que alçaram a propriedade como fio-condutor. Terras, escravos e direitos são algumas das assertivas que norteiam as diversas leituras sobre as dimensões da propriedade no país.

Como produto histórico, a propriedade é marcada por diversas percepções e distintas análises, muito embora seja vista, ainda hoje, como algo natural e, consequentemente, a-histórico. Na contramão dessa interpretação estão autores nacionais e estrangeiros que defendem uma acepção mais plural para o conceito e para as experiências históricas a ela vinculadas, consagrando o que pode ser definido como uma História Social das Propriedades.

No exterior, destacam-se as clássicas obras de E. P. Thompson [4] que, atualmente, se somam às ilações de Rui Santos e Rosa Congost [5], como também as da economista Elionor Ostrom [6]. Em relação ao Brasil, verificamos uma gama de historiadores e cientistas sociais que se debruçaram – e debruçam – sobre o tema.

Em O Rural à la gauche, a historiadora Márcia Motta resgatou as principais interpretações da esquerda sobre o mundo rural brasileiro na segunda metade do século XX. De Nelson Werneck Sodré à Maria Yedda Linhares, Motta apresentou quais eram as concepções sobre o campesinato e os latifúndios para os autores e, de forma particular, demonstrou as razões que levaram à criação da linha de História Agrária no país, como também as novas marcas interpretativas que surgiram a partir dela [7].

Estruturado em três grandes blocos, a 28ª. edição da Revista Cantareira é resultado de um conjunto de investigações recebidas de diversas partes do Brasil e do exterior. No dossiê temático, composto por dez artigos, são propostas reflexões sobre o poder e as propriedades no oitocentos, com enfoque nas relações de dominação e de conflito que demarcam este momento da história nacional. Na seção de artigos livres encontramos uma série de trabalhos originais de graduandos e pós-graduandos de diversas instituições do país, complementadas com as transcrições e resenhas submetidas e aprovadas. A entrevista desta edição foi realizada com a Prof.ª. Dr.ª. Márcia Motta, considerada a maior especialista sobre propriedades no Brasil e que coordena, atualmente, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia História Social das Propriedades e Direitos de Acesso.

O dossiê temático é iniciado pela discussão do artigo, Ânderson Schmitt. Em “Se não cuidarmos em conservar as estâncias, donde e como teremos o necessário para sustentar a guerra?”: as propriedades embargadas durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), o autor analisou o tratamento dado às propriedades rurais durante a Guerra dos Farrapos, entre os anos de 1835 e 1845 no Rio Grande do Sul. Desnudou, a partir da documentação contemporânea ao conflito, a ação dos grupos revoltosos em um contexto de ação restrita. Ainda em relação à atual região do Sul do país escreveu Vinícius de Assis. Baseado em inventários post-mortem e outras fontes, seu artigo intitulado Do porto às casas de sobrado: cultura material e riqueza nos inventários de negociantes (Paranaguá / PR, século XIX) descortinou a materialidade presente no cotidiano dos comerciantes de grosso trato e fazendeiros do Paranaguá.

A freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bananal foi a região investigada por Jessica Alves. Em Donas e Foreiras: Senhoras proprietárias de escravos e terras na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bananal de Itaguaí em meados do século XIX, a pesquisadora resgatou a atuação de mulheres proprietárias de terras e escravos nesta localidade, ao demarcar suas estratégias para manutenção ou ampliação de seus patrimônios.

As relações de poder são resgatadas no trabalho de Flávia Darossi. Em “Benefícios reais da Lei de Terras”: uma releitura política com base na experiência do termo de Lages em Santa Catarina, a investigadora esmiuçou a forma como o Estado Imperial adequou o seu projeto centralizador em correspondência com as elites regionais e locais a partir da Lei de Terras. Como forma de sustentar sua hipótese, tomou como objeto de estudo a municipalidade de Lages, Santa Catarina. Eder de Carvalho e Carlos Gileno também desnudam debates característicos do período de consolidação do Estado brasileiro em Poder Moderador e a responsabilidade jurídica e política: polêmica constitucional da segunda metade do século XIX, mas a partir de outra questão chave: a polêmica constitucional que envolvia o Poder Moderador.

Mirian de Cristo, autora de A Elite Imperial do Porto das Caixas: Saquaremas no poder, se preocupou em relatar a influência política e econômica da família Rodrigues Torres na Freguesia de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas, como também no que concerne ao Império brasileiro. Thomaz Leite, posteriormente, sintetizou suas ilações em “Resta só o Brasil; resta o Brasil só!”: A primeira proposta de emancipação do ventre escravo, sua recepção e discussão no Conselho de Estado Imperial (1866-1868). Em seu texto discutiu a liberdade de ventre a partir do projeto escrito pelo conselheiro de Estado Pimenta Bueno e resgatou as querelas que constituíram os debates abolicionistas.

À luz dos embates periodísticos escreveu Ana Elisa Arêdes o artigo Liberdade e acesso à terra: debates acerca da colônia de libertos de Cantagallo, Paraíba do Sul (1882- 1888). Fundamentada na percepção da imprensa como uma ferramenta de luta política, a pesquisadora recuperou o caso da colônia de libertos de Cantagallo, Paraíba do Sul, para destrinchar as diferentes percepções sobre a abolição, manutenção da escravidão e trabalho nas lavouras.

Para finalizar o dossiê contamos com as instigantes contribuições de Pedro Parga e Rachel Lima. Em A experimentação literária de Machado de Assis e o tema da propriedade da terra no XIX, Pedro Parga refletiu sobre a presença temática do conflito de terras e da crítica à visão senhorial sobre a propriedade territorial em duas obras machadianas. Rachel Lima em Senhores, possuidores e outras coisas mais: As múltiplas funções dos proprietários do rural carioca no oitocentos, se preocupou em discutir as diversas funções dos proprietários de terras do rural carioca, especificamente da freguesia de Inhaúma, para demarcar a posição privilegiada que lhes eram outorgadas em virtude dessa variedade de atribuições.

Em conclusão, esperamos que o leitor se beneficie dos diálogos propostos neste dossiê, ao adensar cada dia mais as reflexões que norteiam a questão do poder e das propriedades no oitocentos.

Boa Leitura!

Notas

  1. HESPANHA, Antônio Manuel. “Pequenas repúblicas, grandes estados. Problemas de organização política entre antigo regime e liberalismo” In.: JANCSÓN, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: UCITEC; Jundiaí: FAPESP, 2003.
  2. THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia da Letras, 1998; THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  3. CONGOST Rosa, Selman, Jorge & Santos, Rui.”Property Rights in Land: institutional innovations, social appropriations, And path dependence. Keynote” in: Presented at the XVIth World Economic History Congress, 9-13 July 2012, Stellenbosch University,South Africa.
  4. OSTROM, Elinor, HESS, Charlotte. “Private and common property rights” In: BOUCKAERT, Boudewijn (ed). Property Law and Economics. Cheltenham, UK / Northampton, MA, USA: NATIONAL BUREAU OF ECONOMIC RESEARCH, 2010; OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. Cambridge University Press, 1990.
  5. MOTTA, Márcia. O Rural à la gauche: campesinato e latifúndio nas interpretações de esquerda (1955-1996). Niterói: EdUFF, 2014. Mais recentemente, no âmbito do INCT-Proprietas, reúnem-se pesquisadores de múltiplas áreas do conhecimento com o objetivo de analisar criticamente a propriedade enquanto instituição social.

Alan Dutra Cardoso – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social na Universidade Federal Fluminense e graduado (bacharelado e licenciado) pela mesma instituição. Desenvolve projeto de pesquisa sob orientação da Profª. Drª. Márcia Maria Menendes Motta, atuando principalmente nos seguintes temas: História Social das Propriedades, Fronteiras Políticas, Segundo Reinado do Brasil Império, República de Nova Granada / República de Colômbia (séc. XIX), Patrimônio material e Educação. Foi intercambista na Universidad del Rosario, Colômbia, sendo contemplado com o Edital Mobilidade para América Latina UFF / DRI 18 / 2013. Integra a Rede Proprietas, hoje INCT – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, projeto internacional: História Social das Propriedades e Direitos de Acesso (Disponível em: www.proprietas.com.br). É membro da comissão editorial da Revista Cantareira (www.historia.uff.br / cantareira) e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

Luaia da Silva Rodrigues – Doutoranda e bolsista Capes pelo programa de Pós-Graduação de História da UFF. Possui graduação e mestrado pela mesma universidade. Especialista em História do Brasil Império, com ênfase nos seguintes temas: regências, Regresso, conservadorismo, liberalismo, Bernardo Pereira de Vasconcelos, identidades e partidos políticos. Atualmente é pesquisadora vinculada aos seguintes laboratórios de pesquisa: CEO, NEMIC e Primeiro reinado em Revisão e professora do pré vestibular social do Estado do Rio de Janeiro (PVS). E-mail: [email protected]


CARDOSO, Alan Dutra; RODRIGUES, Luaia da Silva. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.28, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]

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AbeÁfrica | ABEA | 2018

Abe Africa Pós-abolição

A AbeÁfrica: revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos (Rio de Janeiro, 2018-), publicação semestral da Associação Brasileira de Estudos Africanos publica trabalhos inéditos desenvolvidos em torno dos Estudos Africanos em perspectiva interdisciplinar, envolvendo campos do conhecimento tais como a Antropologia, Ciência Política, Educação, Geografia, História, Literatura e Crítica Literária, Relações Internacionais, Sociologia e outros.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2596-0873

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História do Brasil | UFRB | 2018

Nordestina de Historia do Brasil Pós-abolição

Revista Nordestina de História do Brasil  (São Paulo, 2018-) tem como objetivo publicar artigos, entrevistas, traduções e resenhas (de livros e artigos científicos) de pesquisadores especialistas em história do Brasil a partir de uma perspectiva local, regional e transnacional. As publicações ocorrem no modelo de Publicação Contínua (PC), conforme os Guias da SciElo, que orientam a publicação nesta modalidade.

Seus objetivos são: a) divulgar o conhecimento científico produzido pelos grupos e projetos de pesquisa vinculados aos Departamentos de História (DHs) e áreas afins das diversas Instituições de Ensino Superior (IES) do país e do exterior; b) criar uma rede de sociabilidade entre os pesquisadores de História do Brasil, especialmente aqueles que partem do recorte espacial supracitado para pensar nas diversas particularidades e diversidades do país; e c) fomentar uma rede de divulgação dos estudos oriundos das investigações realizadas na pós-graduação brasileira e nos outros países.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2596-0334 (Impresso)

ISSN 2674-7332 (Online)

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As reduções da Companhia de Jesus na América Colonial: diálogos de realidades missionárias e debates intelectuais sobre a ação jesuística / Antíteses / 2018

Las reducciones de la Compañía de Jesús: una introdución

Las poblaciones indígenas de América, desde los comienzos de la empresa de Conquista, se constituyeron como un escollo para el avance de las principales potencias imperiales. Un impedimento que movilizó todo el aparato conceptual y jurídico del Viejo Mundo con el claro fin de la dominación y control de los nuevos y forzados súbditos. Para alcanzar estos objetivos España y Portugal dispusieron sobre el territorio de América del Sur una serie de dispositivos de poder con el claro fin de sujetar los ánimos de los nativos. Las reducciones jesuíticas fueron una de las herramientas tecno-bio-políticas desde las que se impulsó un proceso de aculturación, inacabado por cierto, que tenía como objetivo modificar prácticas y usos culturales propios de las poblaciones nativas. Sobre todo lo que se pretendía era controlar los inconstantes ánimos de indígenas que ralentizaban, cuando no impedían, el avance colonizador por medio de estrategias políticas que mostraban un alto grado de dinamismo político y cultural de su parte.

La Compañía de Jesús, desde sus comienzos misionales en América y desde la experiencia recabada mediante su actuación en los Andes y en las costas del Brasil, como dos centros desde dónde la Orden iniciaría su andar por el continente, proponía al misionero como el baluarte de un modo civilizatorio en dónde prácticas aglutinantes nativas, como las borracheras, la hechicería y las guerras no deberían de tener lugar dado que las mismas, según la justificativa construida por los ignacianos, hacían posible que los indígenas dieran rienda suelta a pasiones carnales que desembocaban en una indolencia idolátrica contraria al ideal de Humanidad al que se debería de arribar por medio de la reducción como práctica instrumental civilizatoria.

Las tan afamadas borracheras y las consecuentes prácticas asociadas a una expresión corporal orgíastica en donde sensualidad y violencia se conjugaban para un horror jesuítico que justificaba desde ese lugar su combate contra el demonio y por ende su presencia en tierras americanas en dónde el martirio podría acontecer sin más; la hechicería con sus formas y el rol protagónico que muchas mujeres detentaban en aquella práctica así como hombres especializados en la comunicación y tratamiento de lo divino y lo cosmopolítico disputando el rol de líder religioso de los sacerdotes y, la práctica de la guerra con una ceremonialidad, simbología y temporalidad propias –por momentos intencionalmente comprendidas de modo reduccionista pero descriptas con una sutileza notable- se conformaron como la contraparte de la tríada nominal que identificaba a los pueblos americanos considerados como ‘Sin Fe, Sin Ley y Sin Rey’.

Para alcanzar la civitas cristiana, entonces, había que evangelizar y eso suponía una transformación que generara una sociedad nativa de nuevo cuño. Un modelo de orden social que no eliminaba las jerarquías y distinciones sociales propias de la indianidad, si no que partía de dichas diferencias para proponer un nuevo ordenamiento que, bajo la tutela de los sacerdotes y su esquema de control administrativo, generaría una geografía social en donde aquellas prácticas, que parecen identificar y englobar a priori a la totalidad de los pueblos nativos americanos, perderían significado estético y las performances que las mismas estructuraban mudarían de sentido hasta desaparecer como tales. Quizás por ello la atención misional, manifiesta de modo condicionado en las instrucciones y crónicas redactadas durante la experiencia reduccional así como ya en el Exilio, fue puesta sobre los niños y en las mujeres; paradójicamente, los ‘ausentes’ en algunas lecturas e interpretaciones de las mismas crónicas ignacianas desde donde se obtiene la información necesaria para construir una historia de aquellos por medio de la exégesis de un reflejo indirecto de una sociedad que es descripta mayoritariamente desde la potencialidad heurística que detenta la guerra en la trama argumental de las etnografías culturales de marras.

La escritura jesuítica es un rasgo distintivo de la Orden, tanto por las normas que rigen aquella ‘escritura para mostrar’3 así como por las interpretaciones que se construyeron desde, incluso, los comienzos mismos de la Compañía. Si bien la Compañía de Jesús no fue la única orden que ha legado escritos4 que dan cuenta de un número importante de rasgos de los avatares sociales y políticos que experimentaron las colonias españolas y portuguesas, entre los que debemos de contar a las poblaciones indígenas y su relación con los dispositivos de poder coloniales, sí el empeño jesuítico por la necesidad de informar a sus Superiores parece ser el que más producción escrituraria ha legado y de lo que mayormente se han apropiado los investigadores preocupados por el pasado colonial.

El estado actual de las investigaciones que indagan sobre la Compañía de Jesús y su accionar misional reduccional, tan solo en América, exigiría una revisión que desbordaría en sí misma la propuesta de esta presentación así como los límites previstos para la misma por las nomas editoriales que las publicaciones académicas fijan. A pesar de ello y para brindar un marco mínimo de referencia sobre los aspectos abordados por la historiografía especializada, se impone mencionar, circunscribiéndonos a las obras publicadas recientemente así como de aquellas que ya poseen algunos años pero que aún resultan instigantes por sus resultados de investigación así como por las propuestas analíticas que impulsaron, las que dan cuenta de la expansión global de la Compañía de Jesús por el Orbe (FABRE; VINCENT, 2007) y cómo desde esa globalización se produjo una prolífica difusión y circulación de saberes locales que contribuyeron a la conformación y sostén de la globalidad como pretensión misma de la Orden(CASTELNAU-L’ESTOILE et al., 2011). Una circulación que, para un mejor contralor y funcionamiento de los miembros de la Compañía de Jesús, había dispuesto una serie de normas sobre las formas de la escritura5 así como el modo en que debía de circular esa información redireccionando toda la correspondencia hacia un centro prefijado: Roma(MORALES, 2005). Una centralización política que pretendía articular ideas y personas que conformaban los distintos Imperios de Ultramar (COELLO; JAVIER; MORENO, 2012).

Junto a todo ese arsenal de formas y normas para el control de las reducciones extraeuropeas se desplegó una notable actividad científica (FABRE; VINCENT, 2005), desarrollada por sus miembros, a los fines de alcanzar la sujeción de los nativos. Labor que se pone de manifiesto mediante un cúmulo de conocimientos obtenidos por medio de mecanismos científicos sistematizados y compartidos, en gran medida, por el mundo intelectual de aquella época (PRIETO, 2011). Una de estas labores científicas es la labor médico-botánica (FLECK, 2014, 2015) que tenía como fin brindar soluciones para el tratamiento de las dolencias que afectaban los cuerpos de nativos y europeos. Formas y modos de definición y ejercicio de la bio-política que antecede notablemente a la formulación foucaultiana. Para ponderar ampliamente el carácter de la presencia reduccional jesuítica se torna imperioso señalar que la misma se construyó a partir de un diálogo con las sociedades americanas; conversación en dónde éstas mostraron dinámica creadora y vitalidad a la hora de enfrentar sosiegos que colocaron las estructuras sociales nativas en un marco de tensión posible de ser superado, precisamente, por la vivacidad que caracteriza a la ontología amerindia.

El diálogo establecido entre miembros de la Compañía de Jesús y algunos sujetos de las comunidades indígenas americanas es posible de ser recreado mediante una exégesis de las normas y formas jesuíticas sobre la escritura, ya sea esta etnológica o de cualquier otro tipo. Si bien el registro de la interacción entre nativos y sacerdotes se muestra de modo dispar, inclinando el fiel de la balanza hacia el lado de la labor ignaciana, no podemos desestimar la presencia nativa en la toma de decisiones implementada por los jesuitas. Allí dos instancias necesitan ser revisitadas. Una de ellas, las fiestas y celebraciones indígenas (MARTINS, 2006) y, la escritura que cobró forma bajo la Letra de Índios (NEUMANN, 2015).

Es bien conocido ya que la escritura, como práctica institucionalizada, es a la Compañía de Jesús cuasi un fin en sí mismo así como se impone al investigador la labor de desentrañar los ribetes de un pacto etnográfico (KOPENAWA; ALBERT, 2015) que no parece, por momentos, desarrollarse sin que la intencionalidad propedéutica y epidíctica de la Compañía de Jesús intenten aminorar aquello que hoy consideramos como la capacidad de agencia de las poblaciones nativas. Cuestión que se sucede por la necesidad de captar voluntades nuevas en Colegios y establecimientos educativos de la Orden así como porque el modo en que fue pensado el registro de las actividades sociales imponía a los sacerdotes un modo de concebir el comportamiento indígena desde parámetros de pretensión inmovilista que circunscribían qué era considerado propio de bárbaros. En este sentido, desde los comienzos de las labores reduccionales y hasta los escritos producidos ya en el Exilio, los nativos son expuestos como sujetos que actúan en función de acciones y reacciones que, de desentrañar los impulsos que generaron aquellas, hacen posible al investigador construir explicaciones sobre el devenir de las comunidades indígenas así como indagar, crecientemente, en cómo la escritura jesuítica se presenta como un campo de estudio en sí mismo pero que no debe de replegarse constantemente sobre sí.

Durante el siglo XVIII, y a medida que nos acercamos al momento de la expulsión de los dominios americanos de España (1767) y Portugal (1759), la escritura, y por ende la profusión de documentación con la que contamos para nuestras investigaciones, parece, por un lado, alcanzar velocidades de circulación que refuerzan la idea de una empresa planetaria y, por otro, muestran una gama de conocimientos y matices sobre las sociedades americanas que señala una clara distinción con, por ejemplo, la escritura del siglo XVII. Así es como, entonces, contamos con un mayor caudal de investigaciones que reflejan lo acontecido durante el siglo XVIII. No obstante ello es necesario formular un llamado para la reflexión sobre cuántos tópicos propios del siglo XVII se hacen presentes durante el tiempo venidero y en qué medida los problemas de aquel tiempo se constituyen en sí mismo como barreras de contención que encauzan el registro ignaciano quitando entonces vivacidad al registro de lo acontecido. Siendo necesario, por lo tanto, descentrar nuestra mirada de aquellas cuestiones propiamente significativas para la Orden en la escritura que la misma realiza de sí misma y prestar mayor atención a la dinámica propia del mundo indígena latinoamericano en su convivencia con los distintos sectores de la sociedad colonial; incluso con otras Órdenes que significaban para la Compañía de Jesús un panóptico necesario de ser incorporado en los análisis de la escritura en sí misma. La escritura, no debemos de olvidar, poseía una clara intencionalidad que refleja, de modo indiciario, las disputas académicas y políticas en las que los black robes estaban insertos.

Si bien la escritura jesuítica es portadora de un cúmulo notable de reflexiones sobre el accionar misional reduccional, con sus indicaciones pragmáticas y sus disquisiciones teológicas, no todo el accionar reduccional debe de reducirse a la escritura jesuítica. De suceder aquella cuestión corremos el enorme riesgo de reducir una experiencia por demás vasta a una práctica institucionalizada dejando de lado la capacidad creadora de las sociedades nativas americanas. Por ello es que los artículos que aquí presentamos intentan dar cuenta, de forma somera por cierto, de aquellos asuntos y, lejos de agotar la problemática, esperamos que sean para el lector una instancia de generación de conocimientos así como, quizás, puntal inicial de nuevas investigaciones.

Bartomeu Melià abre la sección con una reflexión analítica profunda sobre la Escuela Ibérica de la Paz. Movimiento intelectual que debatía uno de los grandes problemas que planteó la Conquista: la libertad y el servicio personal de los indios. Allí el caso guaraní se constituye como un caso testigo, luego convertido en nodo argumental de la práctica reduccional, desde dónde se ensayaron mecanismos para que los indígenas no quedaran expuestos a la ambición de los conquistadores. Melià, para construir este análisis, formula un recorrido por aquellas autoridades intelectuales que se manifestaron para impedir la esclavitud indígena; confluyendo estos pensamientos en la Provincia del Paraguay, generando que las reducciones de guaranies se vincularan con algunas ‘extrañas y externas utopías’. Incluso, incidiendo en el devenir historiográfico así como en el imaginario social construido para con los jesuitas como custodios de la bondad nativa.

Natalia Aguerre discute, desde un enfoque propio de las Ciencias de la Comunicación, cómo algunos escritos realizados por la Compañía de Jesús, como por ejemplo las Cartas Annuas así como la Predicación del Evangelio en las Indias, fueron instrumentos estratégicos para la producción de conocimientos necesarios para la acción evangelizadora. En esa trama cobra centralidad la figura de Joseph de Acosta, SJ., quién fue el artífice del diagnóstico necesario para impulsar la evangelización indígena en un área como los Andes que se constituyó como la antesala sin la cual, sin lugar a dudas, las intervenciones realizadas entre los guarani, así como sobre otras poblaciones americanas, hubieran tenido un tenor distinto de aquel que conocemos. Aguerre propone entonces reflexionar sobre algunos de los tópicos que se encuentran en un documento imposible de no ser consultado por cualquier estudio que tenga a las poblaciones indígenas como centro de una investigación; esto último si es que es posible indagar a la Orden sin confrontar las políticas ensayadas por los nativos en el curso de la presencia ignaciana en suelo americano.

La utilidad estratégica y performativa de la escritura producida por la Compañía de Jesús hemos de encontrarla, una vez más, en el artículo de Carlos Page. El autor se detiene a indagar en el proceso de re-construcción de la vida de dos jesuitas, Pedro Correia y João de Sousa, y cómo es que su muerte, en condiciones que la califican como martirio, fue narrada en una primera instancia por José de Anchieta al mismo Loyola por medio de una carta. En este estudio lo que el lector encontrará es una erudita reconstrucción de las trayectorias individuales y de la apropiación edificante que la Compañía de Jesús hace de ellos. Un artículo tan bien documentado como necesario para cuestionar las relaciones sociales constituidas con distintos grupos nativos con los cuales se tenían vínculos de carácter inestable y que necesitaban, por ende, de una mayor conversación. El martirio, desde su utilidad pedagógica, atraía nuevas voluntades para la Compañía, por la vía de la lectura edificante que se realizaba en los establecimientos educativos de la Compañía, al mismo tiempo que ayudaba a consolidar imágenes estáticas sobre los comportamientos nativos. Los cuales podemos confrontar por medio de exégesis que briden claves para comprender los mecanismos argumentales de aquellos escritos.

La práctica catequética fue el instrumento por antonomasia desde dónde se intentó deculturar a los indígenas para que depusieran aquellas actitudes hostiles que costaban la vida de insignes soldados de Loyola. Por ello la importancia de los catecismos redactados para diversos grupos étnicos como se observa por ejemplo, durante la porción central del siglo XVIII, en aquel destinado para la evangelización de grupos kiriri que habitaban porciones de los actuales estados de Bahia y Serpige en Brasil. Prospectar formas, modos y expresiones del lenguaje siempre es por demás útil a la hora de conocer algunas de las percepciones de los misioneros sobre los grupos indígenas y cómo es que estos vivían en sus estados de ‘gentilidad’. Silva Mecenas parte desde este planteo inicial para brindar explicaciones sobre cómo fueron abordadas ciertas prácticas nativas que debían dejarse de lado para alcanzar réditos en aquellas porciones de la cristiandad; práctcias que pujaban por mantenerse en actividad y desafiando la autoridad del misionero.

Protagonismo guaraní, de Cristo, Laroque y Machado, vuelve a colocar a aquellos indígenas en el centro de los análisis históricos, interpelando a los mismos desde una perspectiva etnohistórica; la misma que anima y dinamiza la mayoría de los debates historiográficos a los que hemos hecho referencia a lo largo de esta presentación. El Protagonismo, aquí, se hace presente desde un ingenioso abordaje sobre el ‘modo de ser guarani’ para adentrarse en conflictos propios de la sociedad nativa. Las disputas entre líderes nativos especializados, unos, en la administración de las relaciones sociales que podemos llamar, de modo reduccionista por cierto, como política y, otros, sindicados como aquellos encargados de la vida espiritual de la comunidad indígena, son expuestas claramente en la Carta Annua de 1635. Desde allí entonces los autores, sugestivamente, retoman cómo esta conflictividad incide y se manifiesta en la capacidad de formular alianzas con distintos sectores de la sociedad colonial. Dinamizando de este modo la política guaraní y ajustando la misma a intereses particulares de un determinado sector. Aspecto siempre necesario de ser tomado en cuenta al momento de reflexionar sobre el contexto que expone la documentación jesuítica.

La salud de las poblaciones indígenas coloniales, así como de los pobladores del continente, fue una preocupación constante de la Orden; problema que se resolvió, de modo local, mediante la elaboración y circulación de obras referidas a la materia médica, como en el caso del Libro de Medicina recuperado desde el acervo documental de un Convento franciscano en la actual Catamarca (Argentina) y, estudiado por Deckmann Fleck y Obermeier. Un libro de medicina, como demuestran los investigadores por medio de una notable y sutil erudición, es un modo de acceder no sólo a los problemas de salud de las poblaciones para las cuáles fue pensado si no que permite hacer cuestionamientos sobre un problema de investigación que cada día reclama mayor atención y espacio: el cuerpo; considerando a este no sólo como un medio físico de expresión, negociación y control si no como una clave analítica para indagar sobre quién lo describe y quién aporta las informaciones sobre el mismo. Generando entonces un cruce de miradas –la del informante y de quién redacta- sobre qué aspectos son relevantes y necesarios de ser cuestionados, posibilitando además ponderar al cuerpo como una producción textual dado el peso que se puso en la descripción del mismo mediante estrictas descripciones de síntomas, patologías y conformaciones del mismo. Incluso del de las mujeres haciendo notar los autores sobre la necesidad de indagar más sobre ellas en la vida reduccional –aunque, como señalamos, no contamos aún con demasiados trabajos al respecto.

Da Silva y Lourenço, por su parte, analizan el periódico Mensageiro do Coração de Jesus; publicación utilizada como tribuna para formular críticas contundentes a la sociedad laica y sobre todo al modelo de Estado laico que Brasil poseía. Desde aquella publicación los jesuitas llamaban la atención sobre la relación conflictiva que existía entre religión y política, lo cual se había manifestado por medio de una turbulenta convivencia entre distintas expresiones confesionales hasta la conformación del Estado republicano. Cuestión que señala, claramente, cómo la Compañía de Jesús, a su regreso a Brasil, durante la segunda mitad del siglo XIX, fue un actor que detentó una fuerte impronta modernizadora al indicar cuáles aspectos conflictivos necesitaban corregirse, desde su criterio, para alcanzar el desarrollo y modernización del país. Esta ingerencia en la discusión sobre la convivencia de múltiples expresiones religiosas, sin lugar a dudas, es por demás importante de ser considerada no sólo como un aspecto del pasado sino como una clave analítica para proponer salidas a problemas que se encuentran presentes en la actualidad de nuestros países. Los mismos que cobran materialidad cuando algunas voces alzan críticas sobre el accionar de la Iglesia Católica y desde algunos sectores de la sociedad se quiere acallar formas de expresar dichas críticas impidiendo, en buena medida, una convivencia fundada en la multiplicidad de aquellas expresiones religiosas que conviven bajo el paraguas de la forma de Estado-Nación actual.

Cierra este Dossier una Entrevista realizada vía Skype a nuestro amigo y colega Prof. Dr. Alexandre Coello de la Rosa; Profesor Agregado en el Departamento de Humanidades en la Universidad Pompeu Fabra, de Barcelona (España). Autor de reconocidas investigaciones sobre el accionar de la Compañía de Jesús en Perú, Manila, Filipinas así como sobre Antropología Histórica y temas tan controversiales como actuales y polémicos: la corrupción. En esta oportunidad podemos acceder a algunas reflexiones de tan prestigioso y egregio investigador sobre el quehacer historiográfico vinculado a la Orden así como nos aporta prolíficas sugerencias para el trabajo a futuro tanto sobre el devenir de las investigaciones sobre la Compañía de Jesús así como sobre los mundos indígenas americanos. Por eso es que invitamos a leerla con el mismo placer que para nosotros significó realizarla. Contar con miradas de especialistas que colocan su interés sobre porciones del territorio consideradas marginales, en su tiempo, por la Compañía de Jesús, hace posible poner a prueba la idea de globalidad y circulación de saberes que anima la discusión historiográfica más reciente.

Notas

3. MORALES, Martín María. A mis manos han llegado. Cartas de los PP. Generales a la antigua Provincia del Paraguay (1608- 1639). Monumenta Historica Societatis Iesu. Nova Series, vol. I, Universidad Pontificia Comillas, Institutum Historicum Societatis Iesu, Madrid-Roma, 2005. La idea de una ‘escritura para mostrar’, hace referencia a una de las Instrucciones que Polanco, SJ, en 1547, exponía en sus Reglas acerca del Escribir para los de la Compañía. Allí se hace referencia a que el contenido de la documentación general remitida por los miembros de la Orden a sus superiores debía de manifestar el registro de acciones edificantes, o algunos avatares propios de la experiencia reduccional, que no comprometieran a la Compañía de Jesús ante alguna autoridad que pudiera sentirse cuestionada por los juicios de los ignacianos. Toda aquella información crítica hacia alguna persona o política implementada a contramano de los intereses jesuíticos debía de hacerse circular mediante hijuelas. Escritos que debían de remitirse por separado de la correspondencia ordinaria. Por ello no debe de olvidarse que la escritura institucional de la Compañía de Jesús es sólo un registro sesgado de los acontecimientos que narra.

4. Sobre este aspecto particular sugerimos consultar Palomo (2016).

5. Fernando Torres-Londoño nos recuerda que la Compañía de Jesús “nasceu e se estendeu no século XVI a quatro continentes sob o dominio da escrita” (TORRES LONDOÑO, 2002, p. 13). El propio fundador de la Compañía de Jesús, en las Constituciones, llamaba la atención sobre el hecho de que la “unión de los ánimos” se vería favorecida por medio de la escritura así como la uniformidad de vida y doctrina. Juan Alfonso de Polanco, secretario de Loyola, quién escribía en su nombre, instruyó a los jesuitas a que mantuviesen una práctica epistolar entre sí y con las autoridades de la Orden; entendiendo a la práctica epistolar como un medio de edificación y mutua consolación.

Referências

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MORALES, Martín María. A mis manos han llegado: cartas de los PP. Generales a la antigua Provincia del Paraguay (1608-1639). Madrid: Universidad Pontificia Comillas, Institutum Historicum Societatis Iesu, 2005. (Monumenta Historica Societatis Iesu, Nova Series, v. 1).

NEUMANN, Eduardo. Letra de índios: cultura escrita, comunicação e memória indígena nas Reduções do Paraguai. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2015.

PALOMO, Federico. Written empires: franciscans, texts, and the making of early modern iberian empires. Culture & History Digital Journal, Madrid, v. 5, n. 2, Dec. 2016. Disponível em: . Acceso el: 15 mar. 2018.

PRIETO, Andrés. Missionary scientists: jesuit science in spanish south america, 1570-1810. Nashville: Vanderilt University Press, 2011.

TORRES LONDOÑO, Fernando. Escrevendo cartas: jesuítas, escrita e missão no século XVI. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 43, p. 11-32, 2002.

Maria Cristina Bohn Martins – Professora Doutora. UNISINOS. E-mail: [email protected]

Carlos Daniel Paz – Professor Doutor. FCH-UNCPBA. E-mail: [email protected]  e [email protected]

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Temas sociais controversos e aprendizagem histórica: desafios contemporâneos / Antíteses / 2018

As pessoas tentam, mas a história difícil não é facilmente descartada: o lugar dos temas controversos no ensino de história

A eficácia da formação social e cívica da História tem sido indicada como um dos objetivos mais desafiadores em debates recentes de historiadores do mundo inteiro, como atestam, por exemplo, os trabalhos de Mattozzi (1998). Analisando a realidade italiana, o autor dedica particular atenção ao que ele chama de uma “cultura manualística”, incorporada pelos professores, a qual tem sido responsável pela falência do ensino de história, em que pese as diferentes propostas de reformulações curriculares com indicações e sugestões de caráter inovador. No Brasil, a “cultura manualística” tem adotado uma estrutura narrativa que reproduz uma fragmentação histórica a partir de determinadas leituras dos textos historiográficos e reprodução de documentos, dificultando uma contextualização articulada do conhecimento da história, a organização de um sistema de pensamento histórico e a tomada de consciência da disponibilidade de diferentes interpretações sobre o passado.

Permanece ainda, e com algum vigor, um ensino de História centrado em perspectivas canônicas, que foram sendo legitimadas como verdadeiras, por meio de propostas e diretrizes curriculares e seu correlato, o manual didático de história. Em pesquisa sobre cadernos de história de alunos do ensino fundamental, Grendel (2009), observou esta relação, presente em conteúdos trabalhados por uma professora de história durante um ano letivo: Decadência, divisão e declínio do Império Romano; Como surgiu a Sociedade Feudal; A vida cotidiana na Europa Medieval; O fim da Idade Média; O tratado de Tordesilhas; O Renascimento; A questão das indulgências; A Reforma Luterana: Católicos e Protestantes (séc.XVI); Contrareforma; Mercantilismo; Sistema Colonial; A primeira riqueza a ser explorada no Brasil; O início da colonização do Brasil; As Capitanias Hereditárias (GRENDEL, 2009, p. 138). Esses conteúdos canônicos da história têm sido didatizados a partir de objetivos prédeterminados, indicativos do desenvolvimento de habilidades cognitivas universais.

Em conferência proferida no XI Seminário Internacional de Educação Histórica, realizado em Curitiba, em novembro de 2018, o historiador Ivo Mattozzi considera que a maneira como a História Geral tem sido abordada em propostas curriculares e manuais didáticos, a partir de visões canônicas que excluem temas contemporâneos e articulações com a história local, contribuiu para torná-la um dos temas da “história difícil” do ensino e aprendizagem histórica dos jovens alunos. Uma das principais razões apontada é a exclusão de temas significativos da história mundial, nacional e local, relacionados com a história traumática dos diferentes grupos.

No trabalho publicado em 2011, o pesquisador alemão Bodo von Borries, sistematiza entrevistas realizadas com jovens estrangeiros que viviam em Berlim. Uma das respostas destacada pelo autor, diz respeito à história da Alemanha nazista. Um jovem responde: “Hitler é problema de vocês, não é nosso”! Ao mesmo tempo, uma jovem, um dia após assistir um filme sobre o holocausto, comentou

Aquele dia não suportava falar com ninguém. Apenas conseguia olhar para os professores, no dia seguinte me custava muito olhar para as pessoas na rua, sentia vontade de vomitar. Me afetou muito. Me alegrava não ser um deles, estava contente de ser turca. Tenho medo de que, como muçulmana, possa ocorrer o mesmo que aconteceu com os alemães judeus (BORRIES, 2011, p. 66).

Como reagem os jovens frente aos temas difíceis da história geral e nacional? Será que o fator emocional interfere na maneira como eles constroem relações com o passado? Até que ponto? As dificuldades, principalmente de natureza ética, seriam empecilhos para a aprendizagem de temas considerados difíceis da História? Como definir o que seria “história difícil”?

Caminhando em direção a uma definição do que é a “burdening history – “história pesada” – Bodo von Borries (2011) afirma que esta perspectiva inclui o sentimento de culpa, responsabilidade, vergonha e luto, mas que estas questões necessitam ser apreendidas, levando-se em conta determinados problemas.

No que diz respeito ao sentimento de culpa, este não pode ser considerado como algo que envolva punição individual ou coletiva, mas um dar-se conta em relação a determinados feitos do passado, sem que ocorra uma transferência de culpa e envolvimento de pessoas ou gerações futuras, pois isto pode ser considerado algo ilógico e arcaico. Com relação ao sentimento de responsabilidade, isto não significa que membros de gerações posteriores, que nasceram em países onde foram cometidos crimes contra a humanidade, estejam desconectados de alguma especial relação com o passado, ou não estejam envolvidos, diferentemente de outras pessoas no mundo. Para o autor, mesmo que ninguém possa herdar a culpa por um crime, ele ou ela podem herdar as consequências, os custos do crime. Isto pode ser chamado de responsabilidade.

A vergonha é um sentimento muito forte e desconfortável e a tentação de escapar da vergonha é também forte e isto inclui aproximações e distanciamentos, ao mesmo tempo, na relação presente e passado. Outro sentimento decisivo, no caso da história carregada ou pesada, é o luto e há que se perguntar que elementos constituem o sentimento do luto, no caso da história. O autor cita o exemplo do Holocausto, a quem os jovens alemães contemporâneos lamentam e estão de luto. Inclui temas como o assassinato de judeus e escravos – ou a honra, a auto- imagem, o território dos seus antepassados, perdidos. Uma das importantes perguntas a ser feita é -O que e quem é lamentado? (BORRIES, 2011).

Segundo Bodo von Borries, aprender história não é um processo cognitivo solitário, mas também envolve emoções e julgamentos morais. Assim, interligar e conectar certas peças do passado pode ser importante, mas não é suficiente. A questão é como construir uma narrativa convincente e válida e como manusear seus efeitos para o presente e, neste caso, o ato mental de assimilar, digerir e superar histórias pesadas é decisivo.

A contemporaneidade do debate acerca da “burdening history” ou história pesada pode ser avaliada pela sua adoção como temática do congresso organizado pela American Educational Research Association (AERA) – Research on Teaching and Learning Difficult Histories: Global Concepts and Contexts, realizado em 2015, na HUNTER, City University of New York. As organizadoras do evento, Terrie Epstein e Carla Peck optaram pelo conceito de”histórias difíceis”

[…] queremos dizer narrativas históricas e outras formas (padrões, estruturas curriculares, memórias históricas de aprendizagem) que incorporam dolorosos, traumáticos e / ou violentos eventos nas narrativas regionais, nacionais e globais do passado. Ensino e aprendizagem de histórias difíceis estão entre as questões mais sensíveis no ensino de ciências humanas, ainda necessárias para a reconciliação e judiciosa participação cívica. Pesquisas acerca do ensino e aprendizagemde histórias difíceis não só podem ajudar a entendimentos históricos contemporâneos mais alargados e aprofundados dos jovens. Elas também podem realçar suas identidades cívicas, como eles aprendem a compreender, refletir e agir sobre as complexidades do mundo de hoje cada vez mais interdependentes (EPSTEIN; PECK, 2015, p. 112).

Se para Bodo von Borries, a preocupação com a formação cívica não está presente nos pressupostos e fundamentos da “burdening history”, para as autoras esta é uma temática importante, bem como as relações entre estes debates e a formação das identidades. A proposta dos trabalhos apresentados no evento de 2015 envolve uma pluralidade de temáticas acerca do que foi chamado de “história dificil”. Entre os temas contemplados pelas  investigações, pode ser citado, entre outros,o trabalho de Goldberg (2015), “On Whose side are you?”. O autor faz uma análise do contexto do ensino de história em Israel e conclui que o tema do Holocausto é abordado com grande entusiasmo, enquanto que o sofrimento dos Palestinos provoca reações de defensiva.

Como se pode observar em vários países do mundo, temas relacionados à chamada história dificil têm sido objetos de debates e discussões políticas. Na França, por exemplo, na década de 1990, após a unificação européia, uma matéria sobre o ensino de História, publicada no Brasil, pelo jornal Gazeta Mercantil, afirmava que

[…] as crianças francesas aprendem agora na escola que o sobrinho de Carlos Magno, Orlando, foi emboscado nos Pirineus pelos bascos, e não, como aprendiam antes, pelos mouros. Reconhece-se a existência de outros países e culturas, mas as crianças não são suficientemente estimuladas a pensar sobre como os mesmos fatos podem ter significados diferentes para pessoas diferentes (GAZETA MERCANTIL, 1997, p. 4).

Uma das questões mais polêmicas do ensino de História, na Argentina, diz respeito ao tema da Guerra das Malvinas. Em entrevista publicada no Suplemento Mais, do jornal Folha de São Paulo, em 2004, o historiador argentinoJosé Luis Romero, evoca a complexidade deste tema na consciência histórica dos argentinos

É uma questão deixada entre parênteses por causa de nossa história política recente. A democracia argentina nasceu graças à derrota nas Malvinas. Com ela, o Exército derrubou a si mesmo. E a pergunta que deveríamos ter feito, mas não fizemos para que não existisse divisão de opiniões, é o que desaprovamos naação do Exército? Desaprovamos o fato de terido à guerra ou de tê-la perdido? Ninguém quis discutir isso porque era importante manter uma unidade de forças sociais contra os militares, e essa pergunta dividiria opiniões. Precisamos saber se seguimos acreditando que as Malfinas são nossas por razões históricas. É muito inquietante dar-se conta de que não falamos sobre isso. Assim, não se pode descartar que um general louco em algum momento volte a reivindicar as ilhas e nos arraste a um novo conflito (ROMERO, 2004, p. 17).

O tema Guerra do Paraguai tem preocupado, não somente pesquisadores e professores de História, mas também influenciado as relações culturais entre diferentes países e governantes. Em 2015, durante viagem ao Paraguai, o Papa Francisco, no sermão que proferiu no santuário da Virgen de Caacupé, cidade de Caacupé, afirmou que a Guerra do Paraguai foi um conflito “injusto”, devido à dizimação de mais da metade da população do país. Ademais, disse o papa, é graças ao valor e abnegação, principalmente das mulheres paraguaias, que foi possível levantar o país derrotado, porque– Vocês têm a memória e a genética dos que reconstruíram a vida, a fé e a dignidadedo seu povo (Disponível em: www1.folha.uol.com.br / mundo / 2015 / 07 / 1654559. Acesso em: 11 jul. 2015).

Nesse particular, concorda-se com o historiador Bodo Von Borries, para quem o problema do ensino de História na contemporaneidade deve levar em conta, principalmente, a construção de formas de se pensar historicamente diferentes contextos, que envolvem questões de raça, língua, idade, sexo, religião, cultura, região, classe, poder, riqueza, profissão, consumo, estilo de vida e mentalidade.

No Brasil, temos assistido uma luta histórica e polêmica em torno de propostas para a inclusão de temas controversos no ensino de História. Na década de 1980, no contexto da reconstrução democrática do país, tornou-se público o chamado Projeto CENP – Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, que introduzia o ensino da história a partir de temas como trabalho e terra. A reação conservadora manifestou-se pela chamada grande imprensa, como atesta uma das manchetes publicadas no mês de julho, no jornal Folha de São Paulo, na qual se afirmava que, com a proposta curricular da Cenp, “A história será reduzida a dominação e resistência”, e isto substituiria o conhecimento pela pura ideologia (HISTÓRIA…, 1987). Um velho discurso hoje revisado pelos movimentos conservadores, à época, já recebia crítica de historiadores como Carlos Guilherme Mota, da USP, que opinava, no mesmo jornal

Este pode ser um ponto de partida para que a Universidade ajude a instaurar a verdadeira revolução cultural, ajudando a meditar sobreas questões de formação histórica desta sociedade que, queiramos ou não, está no Terceiro Mundo. Toda reforma curricular voltada para, por exemplo, História da América Latina, da África e da Ásia, ainda em detrimento de temas mais distantes, como a História do Egito, pode ser até positiva (MOTA, 1987, p. A17).

No entanto, ao que consta, o termo “história difícil” foi utilizado publicamente no Brasil na entrevista concedida pela historiadora Lilia M. Scharcz e pela antropóloga Heloisa M. Starling, autoras do livro Brasil, uma biografia, editado em 2015. Em entrevista à revista TRIP as autoras apontam o que consideram alguns momentos tensos e de vergonha na história do Brasil.(As setes maiores vergonhas do Brasil, 10 / 07 / 2015). Os episódios selecionados pelas autoras foram: 1. Genocídio das populações indígenas; 2. O sistema escravocrata; 3. A Guerra do Paraguai; 4. Canudos; 5. Política do Governo Vargas; 6. Centros clandestinos de violação dos direitos humanos; 7. Massacre do Carandiru. A partir de outros critérios, poderse-ia selecionar episódios como os conflitos de terra e os ataques contra minorias homossexuais que têm se espalhado pelo Brasil. Ademais, a história da discriminação racial seria um tema a ser incluído na história difícil do país.

Assim como no Brasil, em vários países do mundo, na segunda década do século XXI, o ensino de História tem enfrentado, de forma sistemática, pressões e intervenções oriundas do fortalecimento da agenda conservadora. Isto inclui, entre outros, formas de censura à presença e ao tratamento de temas controversos na educação histórica das crianças e jovens. Assumir o desafio de agir em consonância com a nossa responsabilidade face à função social da História, em direção à formação para a cidadania e democracia e à construção de uma sociedade mais justa, significa também contribuir para tornar público esse debate. Portanto, e utilizando uma espécie de figura de linguagem – é “difícil” descartar a inclusão da história “difícil” como conteúdo a ser trabalhado no ensino de história. Se, alguns tentam descartá-los, a contribuição dos trabalhos, apresentados no presente dossiê, é fortalecer o debate e a luta pela sua inclusão.

No artigo que abre o dossiê, algumas formas e a natureza das pressões que visam descartar certo tipo de conteúdo no ensino de História em nível internacional são apresentadas pelo pesquisador Christoph Kohl, do Instituto Georg Eckert para a pesquisa internacional de livros didáticos (GEI), da Alemanha. No artigo Populismo, mídia educacional e escolas em tempos de crise e utilizando a perspectiva descritiva / analítica, explicita algumas relações entre a popularidade crescente dos partidos e movimentos políticos populistas, tanto na Europa como em outros países, e as interferências na educação, particularmente no setor de manuais didáticos. Segundo afirma, “gostaríamos de discutir como os discursos hegemônicos são contestados pelos populistas, caso e em que medida eles tentam influenciar e reconstruir a identidade e a história, e as estruturas do escolar, através da educação, contra as tradições anteriores ou prevalecentes e como eles – para esse propósito – influenciam a produção de mídia educacional.

Dentro das discussões mundiais em que o mundo tanto vinca o que nos distingue, o que nos diferencia, num quadro que reflita mais acerca do que nos une a historiadora, Marilia Gago professora da Universidade do Minho e Investigadora do CITCEM , Faculdade de Letras da Universidade do Porto ambas em Portugal, no artigo intitulado Ser Professor de História em tempos difíceis início de um processo formativo” destaca partir de uma pesquisa realizada com futuros professores de História a relevância de se compreender como um processo de formação pode contribuir para o desenvolvimento profissional e pensamento histórico, a partir da necessidade de um novo olhar acerca do ser humano e da concepção da História. Segundo a pesquisadora na investigação emergiram ideias que se pautam por uma lógica de profissionalismo gerencialista e perspectivam a História como o campo que forma cidadãos, ideias que sugerem estar em rota com demandas externas veiculadas por entidades e agendas políticas

Na esteira das discussões encetadas por Ivo Mattozzi, acerca do que chama de “cultura manualística”, está o artigo História, Livro Didático e Formação Docente: Produção, Limites e Possibilidades, do historiador Erinaldo Cavalcanti, do PPGHIST, da Faculdade de História  e do mestrado interdisciplinar da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Ele apresenta resultados de pesquisa sobre como o livro didático é problematizado no decorrer do processo de formação inicial de professores, nos cursos de licenciatura de universidades do Norte e Nordeste do Brasil e, um dos resultados que aponta é que “as matrizes curriculares têm praticamente ignorado as reflexões sobre os livros didáticos como principal instrumento de trabalho do professor de História.

Dois pesquisadores da Universidade Estadual do Centro-Oeste- Unicentro-PR, os doutores Danilo Ferreira da Fonseca e Geyso Dongley Germinari, assumiram o desafio de incluir um tema da “burdening history” como objeto de pesquisa e reflexões. Em seu artigo História difícil e etnocentrismo: o ensino de história e o genocídio de Ruanda na web eles abordaram, corajosamente, não somente um tema contemporâneo traumático – o genocídio de Ruanda, mas também a sua articulação com um dos mais desejados meios de informação dos jovens alunos, a rede mundial de computadores (web).

A pesquisadora Rita de Cássia Gonçalves, da Universidade Tuiuti do Paraná, aborda a mesma problemática, desta feita tomando aspectos de um passado recente da história do Brasil, o período da Ditadura Militar, no artigo O passado e a história difícil para o ensino e aprendizagem da História. O objetivo da autora foi tecer considerações sobre o ensino da História e mostrar como “a aprendizagem histórica pode superar um tipo de pensamento maniqueísta, implantado durante os governos militares, que ainda se encontra presente, e necessita de espaço para que seja superado no ambiente escolar e abra possibilidade para a discussão e debates que possibilitem o desenvolvimento de argumentações sobre temas controversos”.

A partir de um recorte específico, não apenas levando em conta o tema da história difícil, mas, especialmente, o período da Ditadura Militar, em que se tornou “difícil” ensinar e aprender História nas escolas, a pesquisadora Dra. Elisiane Soares, do PPFHIS / UCS e PPGEDU / UCS, juntamente com a mestranda Eliana Rela, analisam as influências do pensamento norte-americano na constituição da proposta de Estudos Sociais, que substituiu, parcialmente, o ensino de História no Brasil, no artigo Estudos sociais para crianças numa democracia: prescrições didáticas para o ensino de história sob o prisma norte-americano.

Por meio de original pesquisa de cunho longitudinal, utilizando intervenções em diferentes momentos, as pesquisadoras Doutora Maria da Conceição Silva, da Universidade Federal de Goiás e a mestranda Enelice MiIlhomem Jacobina Teixeira, professora de História da rede municipal de ensino de Goiânia, apresentam o artigo Charlie Hebdo: Consciência histórica sobre intolerância religiosa de estudantes de Goiânia. A originalidade reside, não somente na metodologia de investigação adotada, mas também na temática, a qual diz respeito a um acontecimento da história do presente, articulada à intolerância religiosa, analisado a partir da utilização de charges.

Dentro do mesmo contexto da relação com a prática de sala de aula, está o artigo Professores pesquisadores e o desafio de trabalhar com a história difícil: uma experiência de estágio supervisionado produzido pelas pesquisadoras doutora Adriane de Quadros Sobanski, do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica, da UFPR e professora de história da rede estadual de ensino do Paraná, junto com a estagiária Camila Quadros, do curso de História da mesma universidade. Trata-se de uma pesquisa-ação, em que o trabalho desenvolvido em sala de aula com temas da história difícil, permitiu, segundo as autoras, ressignificar a função dos professores de História como pesquisadores e produtores de conhecimento nas escolas.

O artigo A banda desenhada histórica como um recurso pedagógico no ensino da História do pesquisador Tiago Cardoso, mestre pela Universidade do Minho, e da pesquisadora doutora Glória Solé, professora da mesma universidade, apresenta elementos importantes para a utilização da “banda desenhada” (ou história em quadrinhos em português do Brasil) no ensino e aprendizagem da história de temas controversos. Nas palavras dos autores, “A análise dos dados recolhidos permitiu-nos concluir que a utilização de Banda Desenhada Histórica contribuiu para o desenvolvimento da compreensão histórica nos alunos e promoveu o desenvolvimento de várias competências específicas em História, como a leitura e interpretação de fontes diversas e com mensagens divergentes, bem como competências transversais, ao nível da comunicação (área do Português e das Expressões).”

Os diferentes artigos que compõem o presente dossiê são indiciários da importância da aprendizagem da história difícil. Ademais, indicam que a aprendizagem dessa história não é apenas um processo cognitivo de aquisição de conteúdo, mas envolve um trabalho de autoconhecimento matizado por emoções, percepções estéticas e julgamentos morais. Isto porque as relações entre a cultura histórica de cada época e o ensino de História trazem consequências que envolvem questões decisivas em relação às dimensões políticas, cruciais para os processos de seleção e do agir humano. Assim, mesmo que pessoas conservadoras tentem descartar a história difícil, isto não é uma tarefa fácil. Vale conferir o que dizem os autores do presente dossiê.

Referências

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Maria Auxiliadora Schmidt – Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná; coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica-LAPEDUH / PPGE / UFPR; pesquisadora Cnpq. ORCID 0000-0003-4820-59 E-mail: [email protected]

Marlene Cainelli – 2 Professora e Pesquisadora dos programas de pós-Graduação em História e Educação da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

Pedro Miralles – Professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade de Murcia, Espanha. ORCID: 0000-0002-9143-2145. Email: [email protected]

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