No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850) | Sirleia Maria Arantes

No rendilhado do cotidiano Família dos libertos
No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850) – Detalhe de capa

A perspectiva da micro-história e das redes sociais vem colaborando de forma categórica na historiografia brasileira sobre a família e ampliando o escopo de conceitos, interpretações e metodologias. Publicado em 2020, o livro No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850), de Sirleia Maria Arantes, representa mais um esforço nessa direção. Em diálogo com a historiografia da família negra no período escravista, Arantes desenvolveu uma complexa análise que conjuga microanálise à demografia histórica, contribuindo para a literatura que discute a experiência de vida familiar de libertos e escravizados em Minas Gerais na virada do século XVIII para o XIX.

A preocupação em ampliar o estudo sobre a experiência familiar negra no contexto escravista, não é recente. Desde a década de 1970, estudiosos caminharam no sentido de repensar a forma que a família escrava aparecia na historiografia brasileira, se atentando a problematizar a visão de relações sociais instáveis dentro e fora do cativeiro e o conceito de patriarcalismo. Nesse sentido, os trabalhos do historiador Robert W. Slenes – especialmente o célebre Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – teve um papel relevante na renovação das interpretações sobre a família escrava no Brasil, na perspectiva de tomar a família como uma importante estratégia de sobrevivência e preservação das heranças culturais. Pesquisas recentes também avançaram no estudo das estratégias familiares dos escravizados e libertos, colocando ao centro o protagonismo destes atores sociais, se valendo das contribuições da demografia histórica e da micro-história. Os estudos de Cacilda Machado para São José dos Pinhais, Paraná (2008), de Roberto Guedes para Porto Feliz, São Paulo (2008) e de Tarcísio R. Botelho, para Minas Gerais (2007) são apenas alguns dos esforços recentes, além das dissertações e teses não publicadas – como a tese de Isabel Cristina Ferreira dos Reis para a Bahia, no século XIX. Leia Mais

A carta da Condessa: família, mulheres e educação no Brasil do século XIX | Samuel Albuquerque

Certas obras voltadas para o campo histórico comumente utilizam fontes epistolares como suporte para a pesquisa de biografias e trajetórias de vida de determinadas personagens. Avançando sobre esta proposta, o livro A carta da Condessa, escrito por Samuel Albuquerque1, amplia as perspectivas de análise histórica da fonte epistolar, uma vez que ela permite conhecer melhor os agentes históricos que se correspondem, mas também contribui na compreensão da conjuntura e do cotidiano na qual a carta e seus autores estavam inseridos.

Tomando esse caminho, o autor consegue compor um livro rico em detalhes por envolver a atuação de mulheres como preceptoras no Brasil durante o século XIX, e sensível aos olhares do leitor que é levado ao deleite do cotidiano feminino Oitocentista, bem como seus desafios, (des)afetos e deslocamentos pelo Atlântico. Leia Mais

Ascensão e queda do paraíso tropical | História – Questões e Debates | 2021

Ascencao e queda do paraiso tropical 2 Família dos libertos
Montagem sobre o cartaz de “Ascensão & queda do paraíso tropical“.

A imagem do Brasil como “paraíso tropical” tem uma longa história, como mostram os conhecidos estudos dos prestigiados intelectuais Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda e, posteriormente, os trabalhos de Ronaldo Vainfas, de Ronald Raminelli e de Richard Parker, entre outros.[1] Desde os inícios da colonização, apontam esses autores, os europeus perceberam os povos nativos como indolentes e preguiçosos, desrespeitando suas tradições e negando violentamente seus modos de existência. Não foi muito diferente a imagem que construíram dos negros e das negras africanos, aqui trazidos pelo tráfico negreiro para substituir o trabalho indígena, segundo a triste e nefasta imaginação cristã dos colonizadores europeus. Leia Mais

Before the Flood: The Itaipu Dam and the Visibility of Rural Brazil | Jacob Blanc

BLANC Jacob Família dos libertos
Jacob Blanc | Foto: Everipedia

BLANC Before the flood Família dos libertosO livro Before the Flood: The Itaipu Dam and the Visibility of Rural Brazil é sobre a visibilidade do Brasil rural a partir da experiência de grupos sociais que habitavam na região que seria inundada pelo lago de Itaipu (Oeste do Paraná). Nesta resenha, além de apresentar o livro, pretende-se apontar duas contribuições ao campo da História. Uma para a História do Paraná e outra para a área dos Latin American Studies, especialmente um possível novo campo de estudos históricos sobre a região da Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai).

Ao contrário do que a combinação do título (Before the Flood) e da imagem da capa (uma foto da usina de Itaipu) pode sugerir, o livro do historiador Jacob Blanc não é prioritariamente uma história do que há quase 50 anos era propagandeado como o “projeto do século” (Itaipu Binacional). Trata-se de uma história social centrada na narrativa de três grupos-chave (pequenos proprietários de terras, trabalhadores rurais sem a posse da terra e indígenas Avá-Guaranis) que lutaram contra o significado essencial da construção do reservatório de águas da usina: a perda do lugar onde habitavam. De acordo com o autor, cerca de 40 mil pessoas foram removidas para dar lugar ao maior lago artificial do mundo, com mais de 1300 quilômetros quadrados (p. 3; 122). Leia Mais

Os Barões do Charque e suas fortunas. Um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, século XIX) | Jonas Vargas

Jonas Vargas3 Família dos libertos
Jonas Vargas | Imagem: Fronteiras do Tempo

VARGAS Os baroes Família dos libertos“As principais famílias charqueadoras do período escravista foram capazes de criar um mundo próprio e fizeram da cidade de Pelotas o seu palco particular. Neste cenário, o acesso às artes, à educação superior e à liderança política coube a elas e a algumas outras famílias da elite local” (Vargas, 2016, p.317) O cantor e compositor Vitor Ramil, certa feita, disse ter “convicção que o Rio Grande do Sul não estava à margem do centro do Brasil, mas sim no centro de uma outra história”. Ramil, que é pelotense, certamente formulou essa opinião tendo como inspiração a sua amada cidade natal, que a retrata de modo idealista, ou realista, como Satolep. Pois essa Pelotas centro de uma outra história é a encontrada no profundo trabalho escrito pelo historiador e professor do curso de História da UFPel, Jonas Vargas.

O livro “Os Barões do Charque e suas fortunas. Um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, século XIX)”, é uma adaptação da sua tese de doutoramento em História, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2013. Nesta obra, Vargas faz um exaustivo estudo sobre a elite pelotense, e demonstra que Ramil está correto em sua reflexão estética: Pelotas é o centro de uma outra história. Leia Mais

Diretório dos Índios: políticas indígenas e indigenistas na América portuguesa | SÆCULUM – Revista de História | 2021

Diretorio dos Indios Família dos libertos

O protagonismo dos povos indígenas no Brasil demorou a entrar na agenda da historiografia acerca da América Portuguesa, especialmente como indivíduos ou coletividades capazes de práticas políticas que poderiam decidir os seus destinos nos processos pós-contatos e diante da legislação indigenista. Incontáveis páginas foram escritas sobre o regime colonial nos trópicos sem que as suas agencias fossem mencionadas e até mesmo prevaleceram negações implícitas e explícitas sobre sua capacidade de ação, em estudos que tratam da política e da administração colonial portuguesa. As razões que procuram justificar operações historiográficas desse gênero têm sido de diferentes ordens. As mais frequentes são a alegação sobre a falta de fontes para inseri-los na historiografia, seu rápido e precoce “desaparecimento” das regiões conquistadas e colonizadas e a crença na desolação e na anomia dos indígenas, supostamente “incapacitados” de protagonismo histórico-social depois que foram conquistados e colonizados.

Não obstante, pesquisas históricas e antropológicas têm revisado esses argumentos. A publicação de guias e catálogos de fontes para a história indígena, como os organizados por John Monteiro na década de 1990 ou mais recentemente o dirigido por Juciene Ricarte Cardoso (2016), demostram que não é por falta de fontes que se explicará a ausência e/ou marginalização dos povos originários na tessitura da história colonial. Afinal, existem registros históricos importantes sobre as legislações indigenistas coloniais e muito material acerca das dinâmicas, contradições, práticas e vivências interétnicas na América Portuguesa [1]. Leia Mais

Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição | Revista Maracanan | 2021

Maconha Família dos libertos
Maconha | Foto: Notícias Chapecó

Durante as últimas duas décadas tem crescido o interesse historiográfico por temas como saúde, doença e ciência e, em especial, a saúde da população negra. A ampliação do debate sobre as múltiplas intersecções entre esses campos de análise e sociedade é de extrema relevância para reflexões acerca do Pensamento Social Brasileiro. Além disso, tem contribuído para a construção de novos campos de estudo, trazendo à tona pesquisas inovadoras tanto para o campo da História das Ciências e da Saúde como para a História do Negro no Brasil.

A Revista Maracanan publica o Dossiê Temático “Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição” em um momento crucial para os estudos em Saúde no Brasil e, também, para a História do Brasil. A relação entre saúde, doença e ciência tem sido posta em evidência, por exemplo, com pesquisas que apontam que a população negra tem sido a mais afetada pela pandemia da Covid-19 no Brasil, tanto em número de mortos como também em termos socioeconômicos.[1] Leia Mais

Ensino de História em tempos de pandemia | Fronteiras – Revista catarinense de História | 2021

Em junho de 2021 enquanto trabalhávamos no referido dossiê, o Brasil ultrapassou a devastadora marca de 540 mil pessoas mortas em decorrência da Covid 19. Um cenário desolador, marcado por ações de uma necropolítica, que causaram sentimentos de muita dor e revolta. A soma dessas mortes evidencia um contexto assustador iniciado em março de 2020, quando os primeiros casos de contaminação pelo novo coronavírus começaram a ser contabilizados no país. De lá pra cá temos somados perdas e indignação, seja pelo negacionismo que pautou a política do governo federal em relação às medidas protetivas ou pela demora na compra das vacinas.

Entre as muitas ausências que temos enfrentado é preciso relacionar aquelas relativas à educação. Esse novo contexto causou mudanças profundas no complexo cenário educacional, trazendo claramente prejuízos, principalmente no que tange a prática docente e a vida do estudante, sejam pelas abruptas condições nas quais a grande parcela de professores e professoras foram lançados, com aulas no formato remoto, com horários síncronas e assíncronas, precisando se adequar a plataformas digitais, alterando as rotinas e experiências docentes e discentes, acarretando adversidades na aprendizagem.

Diante do novo panorama a partir da conjuntura pandêmica, diversas áreas das ciências humanas buscam interpretar o momento vivido pela sociedade através de produções acadêmicas, em especial a História. Nesse sentido, historicizar essa experiência, como o que pretendemos neste dossiê, é registrar os momentos vividos, ouvir os sujeitos que dela participam, sendo um compromisso social e importante. Assim, temos aqui na Fronteiras: Revista Catarinense de História, um espaço que se articula a função social da História e dos historiadores e historiadoras.

O presente número da Revista Fronteiras é composto por 12 artigos, 1 entrevista, 2 resenhas, 1 relato e 1 texto complementar. O dossiê número 37, intitulado Ensino de História em tempos de pandemia é composto por 7 artigos, uma entrevista e um texto complementar. A seguir trazemos algumas reflexões empreendidas por alguns historiadores e historiadoras desse denominado novo “normal”, que foge de qualquer referência à normalidade pré-pandemia vivenciada por gerações, que a partir das suas vivências diárias, em sociedade, diante dos novos formatos das salas de aulas explicitam desejos, visibilizam preconceitos existentes, reforçam a importância dos direitos conquistados, marcam as suas impressões a partir do seu lugar de fala: O ser professor(e) (a).

O artigo que abre o dossiê é assinado por Flávia Eloisa Caimi, Letícia Mistura, Pedro Alcides Trindade de Mello e tem como título uma questão fundamental: Aprendizagem histórica em contexto de pandemia: o que pode ser e conter uma aula de História? A discussão parte do contexto de suspensão das atividades presenciais em instituições educativas e consequente instalação do ensino remoto para problematizar os impactos no processo de construção e realização da aula de História.

E eu, professor?! O ensino remoto de história e o cenário de inclusão deficitária em áreas rurais e periféricas do Estado do Pará é assinado por Catarina da Silva Moreira. O artigo traz os resultados de uma pesquisa qualitativa desenvolvida na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Pádua Costa, em Santa Bárbara do Pará e onde se buscava dados para a percepção da experiência de ensino de História no referido contexto.

Derick Douglas Domiciano, Ilisabet Pradi Krames, Sabrina Silva Campos, Marcel Oliveira de Souza trazem a questão do negacionismo e do revisionismo no texto O ensino de História diante dos discursos negacionistas e revisionistas no contexto da pandemia: desafios e possibilidades. O texto traz reflexões sobre as implicações que os discursos negacionistas e revisionistas trazem para o processo de ensino de História. Os autores abordam a polarização presente nos discursos negacionistas e revisionistas considerando que os mesmos têm grande impacto na formação de jovens estudantes. E defendem que o ensino de História seja espaço para construção de mais sensibilidade e alteridade, sentimentos esses necessários para a sedimentação de uma sociedade mais humanizada.

O sujeito histórico negro para além do epistemicídio é de autoria de Luiz Gustavo Mendel Souza e apresenta os resultados de uma pesquisa que buscou investigar livros didáticos da rede municipal de Campos dos Goytacazes/RJ e sua abordagem sobre a Lei nº 10.639/03. Pautando nos pressupostos da literatura decolonial o autor faz uma pergunta chave: a História da África e da cultura afro-brasileira seria retratada apenas pela ótica da escravidão nas páginas dos livros didáticos?

A ausência do ‘olho no olho’, do abraço espontâneo e das brincadeiras: Desafios dos professores de História em tempos de pandemia no Espírito Santo é o artigo assinado por Esdra Erlacher, Bruna Mozini Subtil, Brunna Terra Marcelino, Miriã Lúcia Luiz. Neste artigo são analisados os dados de uma pesquisa que buscou a experiência de 33 professores atuando em ensino remoto durante a pandemia de Covid-19. Os dados da pesquisa levam a discussão sobre temas como a precarização do trabalho docente e o adoecimento dos profissionais.

Ainda partindo da experiência escolar, Silvia Vitorassi apresenta o texto Experiência pandêmica em um ano histórico. A autora apresenta um relato onde tem espaço para seus questionamentos e angústias frente ao trabalho remoto desenvolvido a partir do momento de estabelecimento das medidas de isolamento por conta da pandemia. A narrativa aborda questões relevantes tais como: a romantização do papel docente, os abusos cometidos pelo governo ao não estruturar um planejamento mínimo para as condições de trabalho frente à pandemia e os limites estabelecidos entre pessoa e profissional.

O texto de Odair Souza e Patrícia de Freitas Ensino de História e temas sensíveis em tempos de pandemia traz questões resultantes de uma pesquisa realizada com estudantes da educação básica e ensino médio da Escola de Educação Básica Prof.ª Maria do Carmo de Souza localizada em Palhoça/SC. A pesquisa em questão buscou conhecer a situação desses estudantes frente ao ensino de História em situação de aulas remotas. E além disso priorizou também conhecer os limites do processo de aprendizagem frente aos chamados temas sensíveis.

Na Entrevista com o professor Fernando de Araujo Penna observamos de uma forma ampla o pensar do professor sobre diversos temas presentes da contemporaneidade, principalmente os articulados à profissão do Historiador e da Historiadora, reforçando ainda qual o papel dos professores na sala de aula. Destaca a partir das suas impressões sua trajetória na luta pelo ensino de história na educação básica e na formação de professores de História. Além disso, reflete sobre as funções sociais e éticas dos profissionais de História na sociedade. Recentemente Fernando Penna vem participando da comissão de compromissos éticos do exercício da docência no ensino história da ABEH. Concluindo, aborda os impactos da pandemia na formação inicial dos futuros professores de História.

Para encerrar os textos que compõem o dossiê temos um texto complementar, de autoria de nosso entrevistado: Fernando de Araujo Penna. O texto denominado “Escola Sem Partido” como ameaça à Educação Democrática: fabricando o ódio aos professores e destruindo o potencial educacional da escola, foi publicado anteriormente, em 2017, na obra “Golpes na História e na Escola: o Brasil e a América Latina nos séculos XX e XXI”1. O texto serve como uma contextualização da entrevista – que é inédita, por analisar a sua concepção de escolarização no Brasil. No texto, são apresentadas as representações de alunos e de professor, assim como as finalidades da escola, apresentadas nos discursos dos líderes e defensores da Escola Sem Partido. Mostrando como tais lideranças são desprendidas do contexto escolar e trazem discursos modulados pelo ódio ao professor.

Na atual edição contamos também com 5 artigos, 1 relato e 2 resenhas. Escrita da História e sexualidade: Cassandra Rios, ausência e invisibilidade, por sua vez, é a discussão proposta por Flávia Mantovani. A autora traz à cena a importância de uma escrita da História que aborda questões relativas à História das Mulheres. No caso, a discussão apresentada se volta para a produção literária de Cassandra Rios (1932-2002), conhecida como “a escritora mais proibida do Brasil”. A pesquisa desenvolvida pela autora permite perceber nos escritos da referida autora a possibilidade de uma escrita da História que dê visibilidade a outros sujeitos e suas sexualidades.

As narrativas da cinematografia soviética do período pós-guerra e início da Guerra Fria tornaram-se objeto de reflexão do artigo de Gelise Cristine Ponce Martins e Moisés Wagner Franciscon intitulado Os Estados Unidos e a Inglaterra vistos pelo cinema soviético do stalinismo tardio: a Guerra da Crimeia e os mares, no qual tanto o texto quanto as imagens permitem aos leitores olhares de como o investimento na guerra de narrativas a respeito das versões das histórias e de suas mensagens de união nacional soviética objetivou disseminar a circulação da narrativa do inimigo externo.

No texto de autoria de Wagner Cavalheiro, Roberta Barros Meira e Mariluci Neis Carelli, nomeado de A cristalização do açúcar e da ciência na segunda metade do século XIX: o engenho da fazenda Pirabeiraba e a racionalização da agricultura, realizaram uma operação historiográfica interdisciplinar com uso combinado teórico-metodológico da geografia e da história enfocando o humano habitante da paisagem para escreverem um artigo da história agrária. Os pesquisadores lançaram luz às mudanças do campo científico no século XIX para compreender alguns grupos joinvilenses em relação ao trabalho e à produção rural vinculada ao Engenho.

Cacique Orides: um retrato da resistência indígena no oeste de Santa Catarina escrito por Angelo José Franciosi de Souza, Jaisson Teixeira Lino, Fábio Araújo e Gustavo Andre Glienke Feyh denotou a força da resistência indígena em se apropriar dos dispositivos de poder da cultura política não indígena. Generoso artigo enfoca em que medida a atuação do cacique Kaingang Orides Belino Correia da Silva na posição de vice-prefeito e prefeito de Ipuaçu-SC implementou melhorias para a comunidade nativa da região.

Horizontes do ensino de história na América Latina escrito por Felipe Ziotti Narita realiza conexões teóricas com recortes temáticos levando em consideração outras demandas pelo conhecimento histórico. Artigo denso ao abordar três aspectos do ensino de história em escala decolonial da América latina, quais sejam, primeiro sobre a “produção das identidades latino-americanas”; o segundo “as relações entre ensino de história e as funções do conhecimento histórico”; por fim, a dimensão de digitalização do ensino de história com seus públicos. Problemáticas de como realizar o ensino não eurocêntrico em países latinos ao trazer o fontes e reflexões pertinentes do Chile, Argentina, Brasil, Venezuela, México e Colômbia. Vale a leitura.

O relato O Programa de Pós-Graduação em História da UFFS: algumas Memórias, de Antonio Marcos Myskiw, conta a trajetória do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó/SC, que completou 5 anos de efetivo funcionamento neste mês. O texto vem para celebrar a data de fundação do PPGH/UFFS, narrando as lutas e o ensejo para sua aprovação enquanto curso reconhecido pela CAPES. O relato compartilha algumas experiências vivenciadas no PPGH/UFFS, assim como, faz conexões com o cenário da Pós-graduação no Brasil.

A resenha de Wellen Pereira Augusto atuando no campo jurídico ofereceu o título sugestivo desta, qual seja: A história do Brasil é brasileira? Duelo entre presente e passado, no qual destaca as múltiplas dimensões da obra reflexiva da antropóloga Lilian Moritz Schwarcz. O tema sobre o autoritarismo brasileiro não é novo no cenário historiográfico, todavia é uma obra necessária para leitores preocupados com os rumos do Brasil e dos brasileiros, sobretudo em situação de vulnerabilidade.

A resenha A Canção Latino-Americana em Questão, de Igor Lemos Moreira, analisa a obra Do folclore à Militância: A canção latino-americana no século XX, da historiadora Tânia da Costa Garcia. O autor mostra o texto resenhado é uma referência fundamental a todos/as historiadores/as que decidam se envolver não somente no campo da música latino-americana, mas apresenta uma possibilidade metodológica ímpar aos estudos da História da Canção em perspectiva comparada.

Assim, mesmo com as incertezas de tempos pandêmicos, esperamos levar para os leitores textos provocativos e densos, ou pelo menos, que possamos através deles, dividir nossas angústias e desafios. Desejamos uma boa leitura!

Nota

1 MACHADO, André Roberto de A.; TOLEDO, Maria Rita de Almeida (Orgs.). Golpes na História e na Escola: Brasil e a América Latina nos séculos XX e XXI. São Paulo: Cortez Editora: ANPUH SP, 2017.


Organizadores

Cintia Régia Rodrigues

Nucia Alexandra Silva De Oliveira

Yomara Feitosa Caetano de Oliveira Fagionato


Referências desta apresentação

RODRIGUES, Cintia Régia; DE OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva; FAGIONATO, Yomara Feitosa Caetano de Oliveira; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras – Revista catarinense de História, n. 37, p. 3-8, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

A autora é conhecida por diversas obras que visam a análise antropológica e histórica da formação do Brasil, com foco nos perfis escravocratas e nos mitos desencadeados pela absorção acrítica de um ideal de brasilidade. Na obra resenhada não foi diferente, pois a autora delineia aspectos centrais da desigualdade racial existente no tempo presente, com justificativas do passado, a partir da memória de um Brasil sobejamente renegado na História oficial.

Alguns elementos da referida obra já haviam sido apontados no livro de Marilena Chauí na ocasião da publicação da obra Brasil: mito fundador e sociedade autoritária (2000), em que aborda a “cultura senhorial”, isto é, a relação mando-obediência nas relações públicas e privadas; as estruturas históricas fundadoras de desigualdade; a acumulação de capital e a privatização do público. Na contramão das comemorações em alusão aos 500 anos de Brasil, Marilena Chauí afirmava com propriedade, que nada, de fato, havia de se comemorar em função da persistência do autoritarismo mesmo sob regime democrático: “temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.” (CHAUÍ, 2000. p. 110). Leia Mais

Entre Sertões e Representações: Ensaios e Estudos | Antônio Fernando de Araújo Sá

SA FERNANDO 2 Família dos libertos
Antônio Fernando de Araújo Sá | Foto: Acervo pessoal

SA F Entre sertoes Família dos libertosA primeira resenha de livro que produzi foi em 2007, um comentário crítico da obra de Terry Eagleton, “Depois da Teoria: Um olhar sobre os Estudos Culturais e o Pós-Modernismo”. Na ocasião, fui convidado pelo Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá a proferir palestra sobre esse livro em um Curso de Extensão promovido pelo Grupo de Pesquisa “História Popular do Nordeste”, na Universidade Federal de Sergipe. Livro complexo, que me exigiu um bom esforço intelectual para criticá-lo.

O desafio agora recai sobre um livro escrito pelo próprio Professor Antônio Fernando de Araújo Sá e lançado ano passado. O empenho exigido nesta resenha não foi inferior ao dedicado ao livro produzido pelo filósofo e crítico literário britânico. Leia Mais

Doenças e práticas de cura na História brasileira | Revista Ágora | 2021

O campo da História da Medicina e da Saúde tem crescido especialmente desde a década de 1950 e início da década de 1960, graças aos estudos pioneiros dos historiadores Louis Chevalier e Asa Briggs, que se debruçaram sobre os estudos sobre as epidemias e suas relações com a sociedade. Com o historiador inglês Charles Evans as doenças e as epidemias passaram a ser estudadas de forma mais ampla e intensa, ao serem analisadas como um fenômeno social.

No Brasil, as passagens do psicólogo Michael Foucault, entre 1965 e 1976, também contribuíram para colocar a temática da História das Doenças no foco dos historiadores, ainda que os primeiros trabalhos sob influência de suas proposições tenham sido um empreendimento realizado por psiquiatras, como Roberto Machado, organizador de “A danação da norma: a medicina social e a constituição da psiquiatria”, e Jurandir Sebastião Freire Costa, autor de “Ordem médica, norma familiar”. Essas obras focalizaram a afirmação da Medicina e a crescente ampliação de suas normas e prescrições na sociedade brasileira, especialmente no contexto da construção do Estado-nação imperial, com ênfase em conceitos como “medicalização da sociedade”, “biopoder” e no binômio coercitivo “saber/poder”. Leia Mais

A constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil | David F. L. Gomes

GOMES D Família dos libertos
David Gomes | Foto: ComoEuEscrevo.com

GOMES D A Constituicao Família dos libertosDavid F. L. Gomes é professor efetivo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e possui longa trajetória de pesquisa nas áreas de Teoria da Constituição, Teoria do Estado, Sociologia e História do Direito.

Fruto de sua tese de doutorado, o livro A Constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil foi lançado em 2019, pela editora D’Plácido. Na obra, utilizando-se de um diálogo crítico entre as teorias de Jürgen Habermas (1929-) e Karl Marx (1818-1883), o autor busca reconstruir o conceito moderno de Constituição à luz da perspectiva materialista, a partir da história da Constituição Brasileira de 1824 [1]. Leia Mais

Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831 | Keith Valéria de Oliveira Barbosa

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Keith Barbosa | Foto: ufam.edu.br/notícias

BARBOSA K Doenca e catieiro Família dos libertosO livro de Keith Valéria de Oliveira Barbosa, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Amazonas, é fruto de sua pesquisa desenvolvida no seu mestrado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

A obra é dividia em quatro capítulos, no primeiro, “Escravidão e doenças: historiografia, fontes e métodos”, a autora buscou analisar como a mortalidade escrava não estava ligada apenas ao contato entre pessoas de diferentes continentes e, portanto, que o tráfico atlântico em si não dá conta de explicar a mortalidade escrava. Em outras palavras, embora o contato entre indivíduos de espaços geográficos distantes inevitavelmente tenha colocado patógenos em condições de causar doenças que eram desconhecidas para os africanos, a questão não pode ser analisada apenas por esse prisma.

As condições de vida da população cativa propiciavam “ambientes” para que enfermidades matassem muito. A falta de alimentos, os maus tratos, a insalubridade do trabalho, as condições higiênicas inadequadas das senzalas, entre outros aspectos, faziam com que a vida de escravo fosse abreviada muitas vezes pela morte. Leia Mais

As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 | Carlos Henrique Antunes da Silva

Muito se discute atualmente sobre o papel do Poder Judiciário no Brasil. Em fins do século XIX, permearam as instâncias e as decisões judiciais ações cíveis cujo objeto era a liberdade de escravos. Sem os meios de comunicação de que hoje dispomos, ainda assim parte da sociedade estava atenta ao assunto. Para além da opinião pública e dos movimentos sociais de então, o trabalho que temos em mãos tem como ponto de partida um elemento bastante presente nas fontes utilizadas para o estudo da escravidão, mas nem sempre em evidência nas investigações relacionadas ao tema: o Estado. De que modo os agentes atuantes na estrutura judiciária do Império lidaram com os processos impetrados pela liberdade de homens e mulheres na condição de escravos? Que instrumental advogados e desembargadores operaram em suas argumentações e decisões?

O livro que nos coloca essas e outras questões é resultado de uma pesquisa de mestrado em História defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2015. Seu autor, Carlos Henrique Antunes da Silva, é formado em Direito, História e Filosofia, adentrando também a Sociologia do Direito neste estudo. O referencial teórico adotado por ele está na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, em sua reflexão sobre as representações e relações simbólicas de poder. A noção “campo jurídico”, particularmente, busca dar a ver o movimento de definição do Poder Judiciário durante o Brasil Império, sem deixar de lado as especificidades da época, como a vigência da escravidão de africanos e descendentes. Leia Mais

O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na Primeira República | Gladys Sabina Ribeiro

Elaborei esse texto com o objetivo de discutir e analisar algumas questões presentes no livro O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na primeira república, de autoria de Gladys Sabina Ribeiro, historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora de longa data, o currículo de Gladys é extenso, possui graduação em história pela UFRJ (1979), especialização (1984) e mestrado (1987) pela UFF e doutorado pela UNICAMP (1997). Grande parte da sua produção é voltada para temas relacionados ao antilusitanismo, cidadania, direito, nação e identidade nacional, com ênfase na história do Brasil Império e Primeira República.

Quando avistamos um livro, a primeira coisa que nos chama atenção é a capa. A foto escolhida para a capa do livro analisado é de autoria do fotógrafo Augusto Malta e datada de 1920. A imagem nos remete ao Rio de Janeiro urbano. Na fotografia percebemos seis homens ao redor de um quiosque, alguns encarando a câmera e outros distraídos. A imagem tem uma linguagem que fala por si só, ao segurar o livro logo nos remetemos ao Rio de Janeiro da Primeira República, quando a modernidade buscava apagar e mascarar alguns hábitos tidos como indesejáveis pela elite dominante (como é o caso dos tragos de paraty e as cusparadas que compunham o ambiente dos quiosques). Já o título “O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas” nos remete à um outro ambiente e quem julga o livro pelo título pode entender que a obra aborda o aspecto cultural que permeia a música portuguesa e os costumes portugueses, mas não é essa a proposta da autora. Em nenhum momento do texto é abordada a questão das festas portuguesas ou mesmo da música e creio que a palavra “Fado” só é citada no título do livro, bem como “Minhoto” e “Alfacinha”. No entanto, o subtítulo é muito preciso “o antilusitanismo na primeira república”. A obra trata disso. Leia Mais

Nova História das Mulheres no Paraná | Georgiane Garabely Heil Vázquez

Em um contexto de negação dos direitos das minorias, de aumento da violência contra mulheres, bem como de discursos que procuram negar as relações de gênero existentes na sociedade, ganha ainda mais importância e surge como sinônimo de coragem a obra coletiva Nova História das Mulheres no Paraná, organizada pela professora Georgiane Garabely Heil Vázquez. O livro, composto por 8 capítulos, foi escrito por pesquisadoras ligadas a diferentes instituições. O que estabelece a unidade da obra é a discussão da mulher a partir das discussões teóricas de gênero nas mais variadas perspectivas, bem como recortes temporais distintos e em diversos municípios do Paraná.

A publicação é voltada principalmente para as pessoas que se dedicam à pesquisa histórica. No entanto, não apenas historiadores e historiadoras poderão utilizar o livro como referência quando estiver em pauta a História das Mulheres ou discussões teóricas e metodológicas a respeito dos Estudos de Gênero. Pesquisadores (as) de áreas como Psicologia, Ciências Sociais, Direito, entre outras, que constantemente dialogam com a História e que discutem as implicações de gênero na sociedade, terão no livro uma contribuição importante. Leia Mais

State violence, torture, and political prisoners: on the role played by Amnesty International in Brazil during the dictatorship (1964-1985) | Renata Meirelles

MEIRELES Renata4 Família dos libertos
Renata Meireles | Fotomontagem: RC/coldwarbrazil.fflch.usp.br

MEIRELES R State Violence Família dos libertosEm 2010, Samuel Moyn publicou aquele que seria seu principal livro sobre os direitos humanos: The last utopia: human rights in history. Nas palavras do historiador, se “os direitos do homem tinham relação com a reunião de um povo em torno de um Estado, e não com estrangeiros que podiam criticar outro Estado por suas violações” (Moyn, 2010, p. 26 [tradução do autor]), a primeira definição não mais se aplicaria ao mesmo conceito um século e meio depois de sua invenção nos Estados Unidos e na França revolucionários.

A grande mudança aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, e mais intensamente ao longo da Guerra Fria, quando, nos anos 1970, a política internacional transformou-se em disputa pelo que então se queria entender por emancipação humana, ou por conquista de novas liberdades, quer no sentido anticolonial, quer no sentido da democracia repensada, restaurada, ampliada. A novidade do conceito de direitos humanos estava no ato de se acreditar que era mesmo possível agir-se para a elevação política e moral da humanidade, sem as limitações das fronteiras nacionais, se intervindo nos Estados de forma que seus governos, criticados externamente, respondessem por seus atos e promovessem mudanças positivas. Leia Mais

O Auge da História. História do curso de História da Universidade Federal do Paraná | Bruno Flávio Lontra Fagundes

Faculdade de Filosofia UFPR Família dos libertos
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná na década de 1940. Foto: Divisão de Documentação Paranaense/Exatas.ufpr.br

LONTRA B O auge da Historia Família dos libertosNota-se, nas últimas duas décadas, um adensamento nos esforços em prol da historicização dos cursos de História no Brasil. Constituem sua forma mais visível e direta os estudos de caso, em que se combinam, de maneiras variadas, histórias institucionais e políticas, bem como análises de programas e estudos populacionais (em particular, de docentes).[1] Não menos significativas, contudo, são as investigações de aspectos outros, indiretos, que reverberam na compreensão da história dos cursos. Seja analisando trajetórias de indivíduos ou grupos[2], seja apostando na etnografia de práticas que acompanham a criação de tais espaços[3], esse segundo conjunto de trabalhos ajuda a dimensionar com maior precisão a complexidade de objetos de estudo que nos são, ao mesmo tempo, próximos e caros.

É no cruzamento dessas duas sendas que vem se situar O Auge da História, livro escrito por Bruno Flávio Lontra Fagundes e dedicado ao estudo do curso de História da atual Universidade Federal do Paraná (doravante UFPR). Trata-se de mais uma inflexão na versátil e multidisciplinar trajetória de seu autor, que explorou, antes, o “livro-arquivo” de José Pedro Xavier da Veiga (2014a), ou então as representações do Brasil e de sua história na literatura contemporânea (2010 e 2011). Professor da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) desde 2015, Fagundes apresenta nele as conclusões de um estágio pós-doutoral realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em alguma medida prefiguradas em artigos científicos já conhecidos na área (2014b e 2017). Leia Mais

Clichês baratos: sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX | Cristiana Schettini

SCHETTINI C Família dos libertos
Cristiana Schettini | Foto: cafehistoria.com

SCHETTINI C Cliches baratos Família dos libertosEm busca de diversão noturna, homens que viviam no Rio de Janeiro do início do século XX encontravam inúmeras opções de entretenimento no centro da cidade. Teatros, cinematógrafos, casas de chope e jardins são apenas alguns exemplos, dentre tantos outros locais de sociabilidade masculina. Não raro, nesses espaços, elementos relacionados ao sexo e ao humor eram mobilizados para atrair e satisfazer os anseios de uma ampla e diversificada clientela. “Estrangeiros no tempo”, leitoras e leitores de Clichês Baratos: sexo e humor na imprensa carioca do início do século XX, novo livro de Cristiana Schettini, iniciam seu percurso por esse mundo com um passeio que reproduz roteiros disponíveis a muitos consumidores desse lazer repleto de apelos eróticos. As perspectivas masculinas, porém, estão longe de serem as únicas, tampouco as mais enfatizadas pela historiadora.

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a autora fez uma tese sobre a prostituição carioca no início do período republicano. Esse trabalho foi premiado pelo Arquivo Nacional e deu origem ao livro “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas, publicado em 2006. Desde então, ela tem se dedicado a pesquisas sobre o tema e sobre imigração no Brasil e na Argentina, com ênfase na perspectiva de gênero. Publicou inúmeros artigos e organizou coletâneas, sendo a mais recente em parceria com Juan Suriano, intitulada Historias Cruzadas: diálogos historiográficos sobre el mundo del trabajo en Argentina y Brasil (2019). Atualmente, leciona no Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidade Nacional de General San Martín (USAM) e é pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Leia Mais

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

Petronio Domingues Família dos libertos
Petrônio Domingues | Foto: INFONET/Acervo pessoal

Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos (Carolina Maria de Jesus, 1960).

O historiador Petrônio Domingues (Universidade Federal de Sergipe) tornou-se documentalista de um campo de estudos que ajudou a formatar: o Pós-Abolição. Escolhido um determinado tema da República brasileira, sempre com recorte racial, não há acervo, fonte e documento que não acabe sendo visitado, folheado e interpretado pelo pesquisador, ávido por novas fontes e documentos nunca dantes arrolados. Nem todo historiador exercita a qualidade do documentalista, uma vez que não é incomum, na instituição historiadora, aquele vício soberbo que arrebata boa parte de nós, para a glória acadêmica e de currículos “serventes da erudição”. Imerso nos arquivos, o professor Domingues entra e sai de lá para escrever, à moda thompsoniana, “contra o peso das ortodoxias predominantes” (Thompson, 1987, p. 12). Leia Mais

Regalismo no Brasil Colonial: a coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808 | Leandro Ferreira Lima da Silva

Praca XV RJ Família dos libertos
Palace Square, Rio de Janeiro. Ao fundo, a Igreja do Carmo (esquerda) e a Igreja da Ordem Terceira do Carmo (direita) | Imagem: Richard Bate, 1808

SILVA l Regalismo no Brasil Família dos libertosO regalismo pombalino e o processo de submissão da Igreja ao Estado no império português foram amplamente reconhecidos pela historiografia luso-brasileira. Entretanto, apenas nas últimas décadas houve tentativas de análise que ultrapassassem as interpretações clássicas que compreendiam a ação regalista da monarquia portuguesa como uma política exclusivamente antijesuítica[2]. As transformações no campo historiográfico e a ampliação da noção de documento (Rousso, 1996), sobretudo após o advento da Nova História Cultural, resultaram em pesquisas inovadoras sobre o período pombalino e, sobretudo, problematizadoras da primazia inaciana. Esta, apesar de ser central na construção da política pombalina, não é suficiente para a compreensão das múltiplas dimensões das ações estatais direcionadas aos religiosos, e das ações do episcopado e de agentes civis em sua aplicação no Reino e no ultramar. Aqui reside a originalidade da obra de Leandro Ferreira Lima da Silva, Regalismo no Brasil Colonial, resultante da sua dissertação de mestrado e vencedora do prêmio de História Social (2013-2014) pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo.

Graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo, Leandro Ferreira Lima da Silva possui uma trajetória de pesquisa sólida e em ascensão no campo de estudos sobre o regalismo pombalino. Além da obra resenhada, o autor escreveu “À sombra da “última ruína”: regalismo e gestão material na província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro” (Silva, 2013). Atualmente, Silva é doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, no qual continua os estudos sobre os impactos da reforma regalista sobre o clero regular. Leia Mais

O Estado Interventor no Brasil e seus reflexos no direito administrativo e constitucional (1930-1964): Themistocles Cavalcanti e sua contribuição doutrinária | Mauricio Mesurini da Costa

O direito administrativo brasileiro é um objeto ainda por ser historiado.

A despeito do já consagrado campo da história da administração pública, que tem em Arno Wehling (1986, 2003) o seu representante mais próximo da história do direito, a história específica da sua ordenação jurídica é ainda dependente de estudos pontuais e de escopo temporal limitado3 – como os trabalhos pioneiros de Airton Seelaender sobre a polícia e a modernização do direito administrativo brasileiro (2003, 2006, 2010, 2020, 2021), as pesquisas de Walter Guandalini Junior sobre a gênese do saber jurídico-administrativo no Brasil Imperial (2015, 2016, 2019a, 2019b, 2019c) e os nossos estudos conjuntos sobre a transição da disciplina nas primeiras décadas do século XX (Teixeira e Guandalini, 2019; Guandalini e Teixeira, 2021; Teixeira, 2021). Revisões panorâmicas de caráter dogmático-cronológico, como as realizadas por Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006) e Fernando Dias Menezes de Almeida (2015), apesar da boa vontade e esforço dos autores em consultar as fontes primárias, não são suficientes; falta-lhes o método historiográfico, a contextualização necessária ao desvio das armadilhas do anacronismo e à compreensão das funções e significados específicos atribuídos à disciplina em cada momento de sua história.

Nessas circunstâncias, o livro de Maurício Mesurini da Costa (2021) sobre a contribuição doutrinária de Themistocles Cavalcanti à constituição jurídico-administrativa do Estado interventor preenche uma importante lacuna na historiografia do direito administrativo brasileiro. Redigido a partir das pesquisas que realizou para a sua tese de doutorado (Costa, 2016), o livro aborda um período crucial ao desenvolvimento da doutrina brasileira sobre o direito administrativo, e ainda pouco estudado pelos historiadores da matéria: os 34 anos de instituição e consolidação do Estado Administrativo brasileiro, no período que vai de 1930 a 1964. Leia Mais

Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro | Camillia Cowling

A edição brasileira do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling, professora de história da América Latina da Universidade de Warwick, foi lançada em 2018 pela editora da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. O livro é uma tradução do original intitulado Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro, lançado em 2013 pela University of North Carolina Press e, desde 2010, partes da obra já vinham sendo divulgadas em publicações internacionais pela autora.

Cowling trouxe para o centro desta narrativa as histórias de vida (ou pelo menos parte das histórias) de duas mulheres libertas: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. Elas transcorrem por toda a obra, desde a introdução, quando a autora nos transporta para os respectivos dias em que estas mulheres, a primeira em Havana, a segunda no Rio de Janeiro, entraram com pedido de custódia de seus filhos nas instâncias judiciais máximas de cada uma destas cidades: Ramona no Gobierno General em Havana em busca de libertar seus quatro filhos María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves, e Josepha no tribunal local de primeira instância e depois no Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, um tribunal de apelação, em busca de liberta sua filha Maria. Ramona teve que enfrentar “um dia escaldante do verão caribenho de 1883” e Josepha, diferentemente da cubana, “provavelmente sentiu arrepios de frio […] enquanto caminhava pelas ruas da cidade [do Rio de Janeiro]”, em agosto de 1884, quando é inverno na cidade. (COWLING, 2018, p. 23) Leia Mais

Ganhadores. A greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

Alguns livros, se me permitem a analogia, são como os melhores vinhos maturados em barris de carvalho. Isto é, requerem tempo, bem como se beneficiam da experiência de pesquisa e dos conhecimentos acumulados ao longo dos anos por parte do autor, no caso da obra aqui resenhada autor-pesquisador, melhor esclarecendo: historiador. Para mim são os melhores livros, inclusive permitindo aos leitores descobrir numa passagem qualquer do texto ou, principalmente, nas notas de rodapé, o decorrer do tempo na “fermentação” e “decantação” da pesquisa, agregando leituras, fontes e dívidas ou trocas intelectuais. Há quase trinta anos atrás, em 1993, nas páginas da Revista USP (Dossiê Brasil/África), João Reis já havia nos apresentado em alguma medida o tema de sua investigação no artigo: “A greve negra de 1857 na Bahia”.2 Ainda recordo a sensação quando li este artigo: fiquei maravilhado. Até porque já havia iniciado minhas investigações sobre a escravidão na Amazônia oitocentista, particularmente no ambiente urbano de Belém, justamente compreendendo os escravizados como parte da classe trabalhadora, como parte da história social do trabalho. Lia, então, a história de uma greve feita por libertos, portanto ex-escravizados, e também por escravos, basicamente africanos (nagôs). “Que história fantástica!”, pensei, com a sensação de querer saber mais, me indagando se dali não podia sair mais coisa, quem sabe um livro. Em 2019, veio o livro: Ganhadores. Obra, portanto, que, no seu conjunto, se beneficiou da experiência historiográfica do autor no campo de investigação da escravidão, particularmente em Salvador (Bahia), quando, por exemplo, discute no livro os cantos de trabalhos dos africanos, quer libertos ou escravos, algo que já havia tratado alhures tal como em seu artigo “De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição”, publicado em 2000, na prestigiada revista acadêmica Afro-Ásia. 3 Leia Mais

Argentina e Brasil: entre a canção romântica e o rock dos anos 80-90 | ArtCultura | 2021

Mesmo com todo o emblema

Todo o problema

Todo o sistema

Toda Ipanema

A gente vai levando […]

Mesmo com o todavia

Com todo dia

Com todo ia Todo não ia […]

A gente vai levando essa guia

(Chico Buarque e Caetano Veloso)1

Em tempos de terraplanistas, de ecocidas e de negacionistas em que se movem ataques sem tréguas contra a produção científica, a gente vai levando a ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte, driblando as dificuldades dispostas pelo meio do caminho. Nesta edição, em particular, sobressaem as contribuições que transitam pela “ponte da amizade” intelectual entre o Brasil, a Argentina e o Chile, com especial destaque para a presença de nada menos do que cinco pesquisadores argentinos. Leia Mais

Escravidão e liberdade no Brasil setentrional | Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará | 2021

Criado em 2013, o Grupo de Estudos e Pesquisas da Escravidão e Abolicionismo na Amazônia (GEPEAM), registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Pesquisa (CNPQ), reúne, desde então, professores, pesquisadores, alunos de graduação e de pós-graduação de diferentes instituições brasileiras das regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, atuando em diferentes níveis de ensino, interessados na pesquisa sobre a escravidão e o abolicionismo no Brasil Setentrional.

O GEPEAM, em parceria com a prestigiada Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), a segunda mais antiga da Amazônia em funcionamento, juntou esforços para dar corpo ao Dossiê “Escravidão e Liberdade no Brasil Setentrional”, organizado por dois de seus membros: Bárbara da Fonseca Palha e José Maia Bezerra Neto, igualmente membro como sócio efetivo do IHGP. Assim, no presente dossiê se congregou resultados de pesquisas de vários membros do grupo, bem como se contou com a participação de textos de outros pesquisadores ou historiadores, no caso: Anaíza Vergolino e Silva, Jonas Monteiro Arraes, Rafael Chambouleyron e Oscar de la Torre. Havendo também duas resenhas: uma do mais recente livro do historiador João José Reis, “Os Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia” (2019) e outra do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling (2018). Mas, destrinchemos com mais vagar o presente dossiê. Leia Mais

Simpósio Nacional sobre o Rural e o Urbano no Brasil – VI SINARUB | Rural e Urbano | 2021

Agricultura Familiar Agencia Senado Família dos libertos
Agricultura Familiar | Foto: Divulgação/Agência Senado

Editorial

A Revista Rural & Urbano V6. N. 1 2021 apresenta uma coletânea de artigos sobre o rural e o urbano, suas inter-relações e especificidades, como resultado de discussões realizada por pesquisadores que participaram da sexta edição do Simpósio Nacional sobre o Rural e o Urbano no Brasil – SINARUB, coordenado pela Profa. Dra. Cristina Maria Macêdo de Alencar, da Universidade Católica de Salvador. Todos os artigos aqui apresentados foram revisados pela equipe editorial e pareceristas da Revista Rural & Urbano. Fazemos o convite à leitura, visto que todos são de grande contribuição para a temática central de nossa revista, e possibilitando múltiplas abordagens referente ao Rural, Urbano, Campo e Cidade, desde uma perspectiva epistemológica, como também estudo de caso que contribuem para a leitura da realidade

Profa. Dra. Edvânia Torres Aguiar Gomes

Profa. Dra. Maria Rita Ivo de Melo Machado

Profa. Dra. Mariana Zerbone Alves de Albuquerque

Por uma pauta de visibilidade do rural e do urbano: planejamento e desenvolvimento

A sexta (VI) edição do Simpósio Nacional sobre o Rural e o Urbano no Brasil – SINARUB, evento que nasceu da relação entre Programas de Pós-graduação em Geografia, reuniu-se à quinta (V) edição Seminário Nacional Planejamento e Desenvolvimento, evento promovido pelos Programas de Pós-graduação em Planejamento Urbano, Regional e Demografia – PURD e tematizaram a invisibilidade do rural e do urbano, em interação, nas pesquisas e ações de planejamento do desenvolvimento e dinâmicas do desenvolvimento, evidenciando que existem pautas relevantes a serem visibilizadas. É dessa comunidade científica ao  discutir modos de vida rural e urbano, diretrizes de desenvolvimento rural e urbano, relações entre ciências, sociedade e natureza no mundo rural e no urbano, que emergem os artigos que compõem este dossiê da Revista Rural & Urbano. Leia Mais

Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica | Jairo Carvalho Nascimento

Vera Fischer2 Pornochanchada Família dos libertos
Acima, Vera Fischer em “Super fêmea boca do lixo (1972). Abaixo, Jairo Carvalho do Nascimento | Fotos: Veja – Reprodução / Uneb

Erotismo no cinema Família dos libertos Resultado parcial da tese de doutorado defendida no Programa de História Social da UFBA, em 2015, o livro Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica investiga as “origens”, a “consolidação” e “decadência” do gênero pornochanchada no contexto da história do cinema brasileiro. No decorrer do livro, Jairo Carvalho Nascimento indaga uma ampla variedade de evidências históricas, tais como revistas, matérias de jornais, entrevistas, pareceres de censura, dados estatísticos, filmes, vídeos, documentários, programas de televisão, releases e roteiros de filmes. Além disso, ampara-se em extensa bibliografia – sobretudo estrangeira nos dois primeiros capítulos. O resultado é uma sólida contribuição para compreender a trajetória histórica da pornochanchada, um importante, mas pouco valorizado momento da história do cinema brasileiro. Nascimento arquiteta seu livro em torno de quatro capítulos onde aborda: 1) o erotismo no cinema; 2) a formação e expansão da comédia erótica na Itália e sua repercussão em outros países; 3) as origens, características e consolidação da pornochanchada; e, por fim, 4) a decadência da pornochanchada e a transição para os filmes de sexo explícito, entre fins da década de 1970 e início da seguinte.

Jairo Nascimento Família dos libertosNo capítulo 1, ao fazer um panorama do erotismo no cinema, o autor observa que o “erotismo acompanhou a trajetória da história do cinema, desde as primeiras décadas” (p. 20). Ao dialogar com Foucault e Giddens, Nascimento observa que a sexualidade se apresenta como “um dos principais aspectos do comportamento humano que mudou no século XX, com novas formas de prazer” (p.13-14). E expõe o “debate teórico” sobre “erotismo versus pornografia” (p.15). Curiosa e provocativa é a definição elaborada em entrevista de 1982 por Ody Fraga, diretor e roteirista da Boca do Lixo: “[…] a pornografia é o sexo sem vergonha de si. Já o erotismo é complexado, exige véus” (p. 14). Nascimento observa que os “limites de definição entre o que é erótico e o que é pornográfico não são tão precisos” (p. 16). Por fim, observa que a noção de moral é construída historicamente: “as concepções morais mudam com o tempo.” (p. 19). Leia Mais

História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de História e formação docente | Erinaldo CAvalcanti, Geovanni G. Cabral, Margarida M. D. Oliveira e Raimundo I. S. Araújo

Erinaldo Margarida Família dos libertos
Erinaldo Cavalganti (esquerda), Maria Margarida Dias de Oliveira e Geovanni Gomes Cabral (direita) | Fotos: Correio Carajás / Portal UFRN e Acervo do autor

CAVALCANTI E Historia demandas e desafios Família dos libertosO livro História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de História e formação docente – constitui material escrito a muitas mãos. Mãos de pesquisadores/as e professores/as com vínculo em diferentes Universidades, que tingiram em seus textos a problemática do pensar a Ciência Histórica coadunada às práticas que tangenciam a atividade do ensino de História na modalidade da Educação Básica no agora. Organizada por Erinaldo Cavalcanti (professor Adjunto da Faculdade de História da Unifesspa), Geovanni Gomes Cabral (professor Adjunto da Faculdade de História da Unifesspa), Margarida Maria Dias de Oliveira (professora adjunta da UPE, Campus Nazaré da Mata) e Raimundo Inácio Souza Araújo (professor da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Maranhão – COLUN-UFMA), a obra marca também as intensões do Núcleo de Pesquisa Interpretação do Tempo: ensino, memória, narrativa e política (iTemnpo), associado à Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), do qual emanou a escrita dessa coletânea.

O contexto de produção da obra está tensionado pela conjuntura política educacional prescrita pela Reforma do Ensino Médio, que torna a matéria História optativa no currículo escolar, segundo a Lei nº 13.415, de fevereiro de 2017. Assim, na apresentação, os/a organizadores/a (também autores/a) registram a importância e a funcionalidade da História em tempos de cólera. Nos textos não encontramos resoluções acabadas, mas reflexões para um repensar de práticas que possam ser transgressoras ao universo acadêmico e às “velhas” formas de narrar a História. Fazer circular outras narrativas e outras experiências de pesquisa, segundo as proposições abordadas na obra, pode/deve contribuir para a formação de professores/as no chão da sala de aula. Leia Mais

Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica | Jairo Carvalho do Nascimento

Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica (2013), publicado pela Editora CRV, é de autoria do Prof. Dr., em História Social, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Jairo Carvalho do Nascimento – o historiador também possui outros livros, como: José Calasans e Canudos: a história reconstruída (2008) [resultado de sua dissertação de Mestrado Acadêmico, defendida no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH), da UFBA, sob orientação da Profª. Drª. Lina Maria Brandão Aras, em 2004] -, sendo fruto, parcial, de sua tese de doutoramento, Erotismo e relações raciais no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica, defendida em 2015, sob orientação do Prof. Dr. Milton Araújo Moura, no PPGH/FFCH/UFBA.

O exercício proposto para esta resenha crítica é questionar qual é a possível tese arquitetada no livro; e, para isso, acredito que o primeiro aspecto a ser avaliado por nós, leitor, é: o que implica, estruturalmente, o termo “relações raciais” não estar presente no título da publicação? Leia Mais

Nazareno Confaloni: arte & modernidade como experiência religiosa | Jacqueline Vigário

É preciso aproximar o artista da realidade vivida pelo povo, caso contrário, o artista viverá desambientado e incompreendido.

Frei Nazareno Confaloni

As produções acadêmicas pela lente da História Cultural têm muitos exemplos interessantes de reflexões historiográficas a partir das imagens, e a obra Nazareno Confaloni. Arte & Modernidade como experiência religiosa é um dos mais recentes deles. Vencedora do prêmio Sandra Jatahy Pesavento do ano de 2018, trata-se da tese de doutorado de Jacqueline Siqueira Vigário, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás em 2017, que acaba de ser publicada pela Edições Verona e discute a modernidade em Goiás a partir da vida e da obra do frei dominicano e artista plástico italiano, Nazareno Confaloni.

Ao longo de seu texto, Vigário nos leva pelos meandros da construção da modernidade em Goiás ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, a partir das bases, especialmente, da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), na esteira da transferência da capital goiana da cidade de Goiás para Goiânia por Pedro Ludovico Teixeira na década de 1940, sob as bênçãos do Estado Novo. As reformulações culturais do regime de Vargas são a base para o IHGG, que legitima culturalmente o Estado de Goiás em relação ao resto do Brasil, constituindo-se, segundo a autora, em uma instituição legítima no exercício de promoção dos projetos políticos de modernização e construção do imaginário de modernidade para Goiás (VIGÁRIO, 2021, p. 278). Leia Mais

Memórias de professores nordestinos de História: docência no contexto da pandemia de Covid-19 | Joaquim Tavares Conceição e Paulo Heimar Souto

O livro dos professores Joaquim Tavares da Conceição e Paulo Heimar Souto é uma reunião de textos acadêmicos resultantes de trabalhos finais da disciplina “Tópico Especial em Ensino de História. História, memória, identidade e a aprendizagem histórica”, ministrada no Programa de Pós-graduação em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe. Seus capítulos, em forma de artigos, são redigidos pelos mestrandos do programa, sobre orientação dos referidos professores.

A obra é estruturada em cinco capítulos que debatem as dificuldades e desafios enfrentados pelos professores de História durante o período de isolamento social provocado pela pandemia de COVID-19. Amparados pela metodologia da História Oral, os autores discutem o ensino remoto e o uso das tecnologias digitais pelos professores entrevistados, chamados de colaboradores. Algumas das experiências dos professores que serviram de base amostral são relacionadas e interpretadas junto aos conceitos de memória do teórico Michael Pollak e aos conceitos da história oral de José Meihy e Leandro Seawright. Leia Mais

Cartografia da promessa. Potosi e o Brasil num continente chamado Peruana

1 Certos livros, passadas décadas de sua publicação, continuam seminais. Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, é um desses casos. O texto de titularidade do historiador é denso, erudito, com uma tese instigante que continua a movimentar a leitura e o debate mesmo 60 e poucos anos depois de seu surgimento.

2 Em Visão, Sérgio Buarque afirma que lhe interessava fazer a “biografia de uma ideia”, de como se forjou uma visão do Brasil como terra edênica. No longo e sinuoso percurso para construir seu argumento, ele advoga que os portugueses, no Brasil, deixaram a maravilha de lado em nome da experiência, da concretude de uma terra sem os achados de riqueza dos vizinhos espanhóis. Por antítese, os espanhóis, pródigos em minas de ouro e prata, abraçaram o discurso do maravilhoso. Ademais, ele constatou que, nos mapas portugueses, o Brasil aparece não como uma separata, mas como um complemento à montanha de prata de Potosí. Leia Mais

Jesuítas e Modernidade | Antíteses | 2021

Além da missionação, aspecto que, por muito tempo, mais atenção recebeu da historiografia – para exaltar as atividades dos religiosos, numa primeira vertente, e para rever os resultados dos encontros e tensões culturais entre eles e os “nativos” ou povos originários, num outro movimento –, os jesuítas se envolveram em discussões teológicas, com a manutenção de fazendas, de hospitais e de enfermarias, com a investigação e utilização da natureza, com o sistema escravista (sua justificação e sua participação), com a sistematização de línguas até então desconhecidas dos europeus, com a instrução formal, básica e universitária (de indígenas, de colonos e de reinóis), com a política em seus mais diferentes níveis – vide, por exemplo, as querelas com Marquês de Pombal que desencadearam na expulsão desses religiosos dos domínios lusos –, enfim, com uma gama ampla de camadas que envolviam o cotidiano moderno, muito além da atribuição primeva de zelar pelas almas. É sobre essa múltipla atuação da Companhia de Jesus, uma das ordens religiosas mais presentes – senão a mais – no Brasil ao longo do chamado período colonial, nas então colônias da Coroa espanhola na América e em diversos territórios à leste, como em Macau e Goa, além da própria Península Ibérica, que os estudos aqui reunidos se debruçam. Leia Mais

As narrativas dos mestres e uma história social da capoeira em Teresina/PI: do pé do berimbau aos espaços escolares | Robson Carlos da Silva

Se você é leigo nos estudos da capoeira e está buscando aprimorar seus estudos sobre esse esporte considerado “genuinamente nacional”, você deve antes de tudo entender que a capoeira não é simplesmente baiana em sua constituição. A capoeira institucionalizada com Mestre Bimba e Mestre Pastinha na Bahia nos anos de 1920, era só uma parcela da prática que já havia sido registrada em outros estados, principalmente no Rio de Janeiro, como as pesquisas de (SOARES, 1999; 2002) nos mostram.

Entretanto desde o início do século XXI, inúmeras pesquisas surgiram e ampliaram nossos encontros com a história da capoeira em outros estados. Foram ampliados os estudos de capoeira na Bahia com a dissertação de (OLIVEIRA, 2004) e a historiografia da capoeira passa a construir uma lógica de prática regional, consolidada sobretudo nos estudos do século XX, presente nos trabalhos de (LEAL,2002) com a história da capoeira no Pará republicano, recentemente com a história da capoeira no Maranhão por (PEREIRA, 2019) e com as dissertações de (CUNHA, 2012) e (AMADO, 2019) traçando a prática da capoeira no estado de São Paulo, desde a monarquia até a república. E ainda pouco divulgado temos a história da capoeira no Piauí, escrita pelo Mestre Bobby2 e objeto de reflexões dessa resenha. Leia Mais

Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

A narrativa sobre a circulação e experiências de homens negros livres, letrados, pensadores ativos na vida social no Rio de Janeiro e em São Paulo nas últimas décadas de vigência da escravidão é o tema predominante nessa obra, que teve sua origem no trabalho de pesquisa para o doutorado da autora, defendido na Universidade de Campinas em 2014. Agora vertida em livro e compondo o 46º volume da coleção Várias Histórias.

Marcada por um trabalho procedimental baseado na micro-história, a pesquisa é fartamente ancorada em um trabalho diligente e preciso sobre a documentação escolhida, explorada sob a autoridade de quem oportuniza ao leitor superar a visão, dominante em certa historiografia, de que se tratava de homens únicos e/ou isolados em sua geração e sociedade. Oferece-nos a autora desse livro a oportunidade de acessar, em sua proposta narrativa, uma prosopografia de negros brasileiros em atividade política e conexões urbanas, nas últimas décadas do século XIX, marcada pela “politização da raça a partir de escritos de liberdade (p.24). Leia Mais

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

A pesquisa em história social do pós-abolição ampliou-se consideravelmente no país nos últimos anos. Expoente dessa historiografia são os trabalhos do autor resenhado. Petrônio Domingues aborda diversos temas ligados ao estudo do pós-abolição, como o associativismo e a imprensa negra, os projetos educacionais da Frente Negra brasileira, além de diversas biografias e trajetórias (coletivas e individuais) de sujeitos que lutaram, resistiram e escreveram a história negra desse Brasil. Apesar do país continuar racista, os sujeitos revelados pela escrita do historiador Domingues ganham vida ao saírem dos documentos investigados e trazem à tona a pluralidade de personagens históricos: homens e mulheres negros que participaram de diversos e distintos movimentos políticos na sociedade brasileira. Este é o ponto auge da obra de Petrônio Domingues em Estilo Avatar, na qual aborda de maneira relevante a trajetória do ativista afro-brasileiro Nestor Macedo, conhecido como o “Rei do Baile” e fundador da Ala Negra Progressista. Também atuante como cabo eleitoral de Adhemar de Barros, um populista da nossa República democrática nos anos 50 e 60. É crível que Domingues aborde de maneira muito competente e articulada a história dos afro-brasileiros na sociedade pós treze de maio com o tema sobre o populismo. Pode soar estranho aos leitores essa simbiose, mas não o é, pois Petrônio Domingues tem um trabalho expressivo de cruzamento de fontes, tais como: documentos policiais, jornais e atas do clube negro, evocando a participação dos negros na construção da democracia brasileira no período político marcado pela tônica populista. Leia Mais

A casaca do Arlequim: Belo Horizonte – uma capital eclética do século XIX | Heliana Angotti-Salgueiro

ANGOTTI SALGEUIRO Heliana Família dos libertos
ANTOTTI H A casaca do Arlequim Família dos libertosHeliana Angotti-Salgueiro | Foto: TV Unesp 2019

Heliana Angotti-Salgueiro | Foto: TV Unesp 2019O livro A casaca do Arlequim: Belo Horizonte – uma capital eclética do século XIX foi publicado primeiro em francês há muitos anos [1], e agora sai em português – ele é o resultado da reelaboração de uma tese de doutoramento apresentada em 1992 na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales por Heliana Angotti-Salgueiro – trata-se de um livro que tem uma história, e uma história importante.

1. Parto do título, pois na minha opinião é um título belíssimo – quão bela é a “Casaca do Arlequim”! – eis um título particularmente apropriado, capaz de despertar curiosidade, tanto em francês, como em português, e sobretudo atualmente, uma vez que todos nós precisamos de cores e mesmo de alegria (ou pelo menos de serenidade) nesse momento. Faz alusão ao fato de que a veste do Arlequim é composta de pedaços de tecido costurados, podendo se referir à fragmentação da cidade. A expressão é de Paul Planat (como explicou Heliana na sua “Apresentação” à edição brasileira do livro), remetendo-a a um texto deste arquiteto francês em volume sobre habitações privadas de 1890 [2] – mas esse título também pode nos remeter à inevitável multiplicidade de perspectivas dos diferentes atores que intervêm no processo constitutivo de uma nova cidade, que neste caso é a nova capital (Belo Horizonte) de um estado brasileiro (Minas Gerais). Leia Mais

Entre o impossível e o necessário: esperança e rebeldia nos trajetos de mulheres sem-terra no Ceará | Paula Godinho, Adeaide Gonçalves e Lourdes Vicente

Como mensurar o interesse e a utilidade de um livro? Não somente de um texto, de um relato ou de uma história, mas do todo que constitui o objeto? Um caminho certamente é pensar naquilo que tal encontro desperta nos sentidos e traz como potencial de transformação ou elaboração. No quanto está em sincronia com as questões do próprio tempo, mas vai além e, por vezes intuitivamente, destila o que permanece, oferece o que não se esvai. Ou mesmo se traz mais do que seria suposto, não apenas porque se renova a cada leitura, mas pelo intangível que não controla, nem prevê, mas no qual seu todo participa. Seja por que caminho for, essas são balizas que podem guiar a leitura de Entre o impossível e o necessário: esperança e rebeldia nos trajetos de mulheres sem-terra no Ceará, lançado pela editora Expressão Popular no denso e tenso ano de 2020.

Composto por estudos e relatos correlacionados, mas que mantém independência entre si, tem a qualidade de que cada parte é mais do que se propõe a ser. Isto é, não seria incorreto dizer que o livro se centra em 15 relatos vida de 16 mulheres sem terra do Estado do Ceará, Nordeste do Brasil, a partir de entrevistas realizadas pela antropóloga portuguesa Paula Godinho, autora da introdução e do epílogo. É também organizado pela historiadora brasileira Adelaide Gonçalves e a pedagoga Lourdes Vicente, ambas professoras e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que também assinam o estudo “Essencial é a travessia”, como em Guimarães Rosa, à guisa de prefácio. Mas, depois de lido, dizer isso torna-se insuficiente ou inexato. Leia Mais

As ciências na história das relações Brasil-EUA | Mgali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá e André Felipe Silva

Organizado pelos pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz Magali Sá, Domichi Sá e André Silva, As ciências na história das relações Brasil-EUA reúne textos que analisam as conexões estabelecidas entre esses dois países tendo como ponto de partida projetos e redes de pesquisa que sinalizam como a diplomacia cultural foi, muitas vezes, também científica. Interesses econômicos e políticos não estão apartados nessas narrativas, sinalizadoras das múltiplas convergências que marcaram essas relações ao longo do século XX. Os 17 capítulos que integram o livro compõem esse recorte temporal amplo, assim como os campos de investigação que são eleitos para análise: agronomia, medicina, física, genética, antropologia, ciências sociais, biologia, entre outros.

Desse modo, o primeiro capítulo trabalha com uma perspectiva de aproximação dos EUA a partir da retórica do pan-americanismo, tomando como objeto as narrativas do Boletim da União Pan-americana do começo do século XX, enquanto o segundo analisa a expedição Roosevelt-Rondon (1913-1914). Já o último capítulo examina a constituição e a institucionalização do campo da biologia da conservação e os projetos a ele relacionados durante a segunda metade do século XX. As diferenças temporal e disciplinar se refletem no modo como os vocabulários pelos quais essas relações se estabeleceram também foram mudando de significado. Assim a “natureza” dos boletins da União Pan-Americana ou da viagem de um Roosevelt “aventureiro” e “caçador” (Sá, Sá, Silva, 2020, p.59) não é a mesma dos projetos de conservação desenvolvidos em parceria pelos ambientalistas, brasileiros e estrangeiros. Entre uma natureza e outra, cabe ao leitor estabelecer uma linha por vezes impossível de ser definida, porque heterogênea em suas associações. O mesmo pode ser dito se tomarmos a Amazônia como elemento aglutinador de alguns dos capítulos. Leia Mais

História Ambiental do Brasil Republicano: políticas ambientais, historiografias e mundo natural | Faces da História | 2021

Em 1989, diante de uma plateia estarrecida, a jovem indígena Tuíra Kayapó apontava um facão para o pescoço do então chefe da Eletronorte. O público era formado por diversos profissionais, populações tradicionais, políticos, jornalistas e outros, e estavam ali para o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Na ocasião, discutiam-se os diversos impactos na vida da população ocasionados pela construção de uma usina hidrelétrica no rio Xingu. O chefe da Eletronorte tentava convencer da necessidade da obra, Tuíra procurava, ao seu jeito, mostrar o contrário. Três décadas depois, a Usina de Hidrelétrica de Belo Monte ocupa a paisagem outrora marcada pela floresta, rio, ocas e animais de muitas espécies (COLACIOS, 2015). A cena é simbólica. Símbolo da situação do meio ambiente no Brasil, das leis, políticas públicas, dos povos indígenas, da justiça ambiental e das desigualdades sociais de vários tipos.

Anos antes dessa cena, em 1981, enquanto ainda perdurava a ditadura civil-militar brasileira, a política ambiental do país ganhava novos contornos. Foi instituída a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n.º 6.983), com um peso significativo na perspectiva desenvolvimentista, nada diferente das ações na área ambiental promovidas até então pelo governo militar, tal como a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), de 1973, que por sua inação deu o tom da década do suposto milagre econômico brasileiro e todas as suas consequências ambientais. No entanto, essa nova política abriu um leque de instrumentos legais que tencionava, dentre outras questões, a avaliação dos impactos ambientais e estabelecia padrões de qualidade ambiental. Leia Mais

Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil | Beatriz Mamigonian

A historiografia brasileira vem há décadas tendo a escravidão e o tráfico como um dos seus principais temas. Novas interpretações e análises surgiram nos últimos anos para demonstrar que ainda se trata de um tema muito atual para a escrita da história nacional. Entre as novas reflexões desenvolvidas nos últimos anos, está a obra Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil, da historiadora Beatriz Mamigonian, publicado em 2017 pela Editora Companhia das Letras.

O livro se divide em introdução, epílogo e mais dez capítulos. Como o próprio prefácio, escrito brilhantemente por João José Reis, “este é um livro há muito esperado”. A historiadora amplia uma pesquisa, originalmente desenvolvida no doutorado, através da inserção de novas fontes e análises. Sua linha de raciocínio se debruça nas questões dos escravizados ilegalmente. Vale constar que a historiadora, ao longo da obra, mostra o papel dos sujeitos históricos, no caso aqui os africanos livres, dentro das dinâmicas políticas, sociais, culturais e jurídicas do Brasil oitocentista. Leia Mais

História Ancestral do Brasil | Revista Nordestina de História do Brasil | 2020

HISTÓRIA ANCESTRAL E O PASSADO MAIS ANTIGO DO BRASIL

Quando fomos convidados pela Revista Nordestina de História do Brasil para coordenar e prefaciar o número temático História Ancestral do Brasil, não deixamos de nos perguntar, como arqueólogos e historiadores, o que se entenderia por ancestral no contexto epistemológico. De início, pensamos em temas relativos à pré-história, termo consagrado mundialmente desde o século XIX, quando Sir Daniel Wilson a utiliza pela primeira (Prehistoric Annals of Scotland, 1851, e Prehistoric man, 1862) e por Sir John Lubbock, na sua valorizada obra Pre-historic Times (1865). O termo não seria substituído com êxito por nenhuma outra expressão, mas, seria ele suficiente dentro do espírito da Revista que é primordialmente de História do Brasil? Até onde chegaria essa ancestralidade? Vemos, pelos diversos significados da palavra, que ancestral pode ser tudo o que seja anterior a nossa contemporaneidade, embora com o suficiente peso ou significado histórico para haver influído na formação do nosso futuro.

O estudo da pré-história do Brasil nos seus fundamentos básicos pretende conhecer as origens do povoamento, as tradições culturais dos caçadores-coletores e dos agricultores, as estratégias de sobrevivência dos diferentes grupos que povoaram a região desde o fim do pleistoceno e a sua evolução para o estágio agrícola e sedentário até o contato com o europeu1.

A integração das populações indígenas na história colonial assinala também o final da pré-história, independentemente do fator cronológico, mas a ancestralidade dos novos brasileiros não será apenas europeia, pois ficará também atrelada ao elemento indígena a partir do contato. No primeiro documento oficial da história do Brasil, o cronista da expedição de Cabral fez um retrato ameno dos indígenas avistados, num relato quase bucólico do que infelizmente seria o prelúdio da tragédia anunciada, que para os povos indígenas foi a Conquista. A visão reducionista e eurocêntrica fez dos indígenas americanos seres homogêneos desde o ponto de vista cultural sob a dominação genérica de índios, mas a realidade era completamente diferente, uma vez que o elemento indígena nos tempos da Colonização compreendia a maior densidade de línguas diferentes do mundo e os grupos étnicos apresentavam categorias socioculturais que abrangiam desde bandos de caçadores nômades a Estados teocráticos2.

O que se pode entender por História Ancestral? Se buscarmos em um buscador, como o Google, fica claro que o termo se refere a questões biológicas. Se nos voltamos para o adjetivo ancestral, em particular, ainda prevalece os sentidos biológicos. Nas humanidades e ciências sociais, usa-se para terra ancestral3 ou patrimônio, em referência a comunidades indígenas ou aborígenes. Ancestrais são usados para designar objetos culturais, como as máscaras dos ancestrais na antiguidade romana, de maneira a alcançar não só nativos, mas diversos povos do passado. O termo ancestral é muito produtivo, desde sua origem: ―ir antes‖, ―precedente‖, do latim antecedere (vir antes), com o prefixo ante- e o infinitivo cedere (ceder, ir). Refere-se aos que vieram antes, como em Shakespeare (Júlio César, I, 3, 506-510; fala de Cássio):

Pouco importa quem seja. Hoje ainda, são dotados os romanos de músculos e membros como os de seus ancestrais; mas, ai que tempo!; bem morto está o espírito de nossos pais, governa-nos o espírito de nossas mães. Nosso jugo e sofrimento mostram-nos efeminados. (Tradução dos autores).

Ancestral significa ―em relação aos predecessores, pessoas e lugares (Fernando Pessoa):

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral e mudo,

Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

[Fernando Pessoa, Lisbon Revisited (1923), Lisboa revisitada].

Este é o contexto para entender o uso, aqui, de História Ancestral. Refere-se a todos os humanos que viveram antes de nós e são, por isso, parte de nós, não só em termos genéticos, mas também como cultura. Este é um conceito abrangente, na medida em que todos são considerados de igual relevância, em qualquer época ou lugar. Todos que estudam nossos ancestrais mais antigos partilham a atenção e reconhecimento que os caçadores-coletores são dignos de interesse como quais outros seres humanos. No caso do Brasil, estudos genéticos indicam que:

Em conclusão, nosso estudo de mtDNA de uma mostra ao acaso de brasileiros brancos revelaram uma surpreendente alta contribuição matrilinear de ameríndios e africanos. Os brasileiros atuais, assim, carregam a marca genética da colonização mais antiga: a população pioneira colonial tinha, em geral, ancestralidade ameríndia e, depois de algumas gerações, com maior presença africana, sempre do lado materno. Mas, com ancestralidade portuguesa na linha paterna (como refletido por marcadores do cromossoma Y).4 (Tradução dos autores).

Frequência

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul

Ameríndios 33 54 22 33 22

Africanos 28 15 44 34 12

Europeus 39 31 34 31 66

Os genes dos ameríndios são, pois, bem difundidos5, mas talvez o mais importante seja a onipresença de sua contribuição cultural, da língua à culinária e muito mais6 . Entretanto, a História do Brasil é ainda considerada, mesmo em departamentos de História, como tendo início com a chegada dos portugueses, em 1500. Tanto assim, que pré-historiadores são ainda raros nos departamentos de História, com a resultante ausência de formação dos futuros professores de História, nas licenciaturas, quanto à História Ancestral. A Pré-História está bem representada em graduações e pós-graduação em Arqueologia, mas os arqueólogos não são formados em licenciaturas, mas em bacharelado, pelo que não podem ser professores no ensino fundamental e médio.

Há, ainda, um amplo espaço para a Pré-História, de modo que os licenciados em História possam aprender, de primeira mão, sobre os milhares de anos de ocupação humana da América do Sul. Este número da Revista busca contribuir para superar alguns desses desafios ao focar na História Ancestral mais antiga, a pré-histórica. Além disso, volta-se para o público mundial, de modo a alcançar um público mais amplo.

Os autores dos artigos que integram o presente número temático são todos pesquisadores experimentados e como não poderia deixar de ser, tiveram total liberdade nas escolhas dos temas apresentados, embora como num acordo não assinado, a linha do tempo foi marcada por trabalhos de cunho pré-histórico e outros nos quais o elemento indígena aparece em contato ou confronto com o português. Por decisão dos editores da Revista, a sequência de autores é alfabética e não segue assim uma ordem cronológica nem temática, mas demonstra a riqueza dos temas ligados ao mundo indígena na visão científica e pessoal dos seus autores.

O primeiro artigo, Archéologie: Du passe au présent, dês paysages au territoire, assinado por Agueda e Denis Vialou, não poderia ser mais oportuno para o início deste número da Revista. Está dedicado às ocupações do final do Pleistoceno e do Holoceno numa região onde nascem as bacias hidrográficas do Amazonas e do Paraguai-Paraná, região de dispersão de grupos étnicos que depois estarão separados por milhares de quilômetros. Roquette-Pinto7 no livro Rondônia, já comentava que quem atravessa o Mato Grosso vê, lado a lado, arroios orientados para o Norte e outros que vão se perder no Paraguai. O parágrafo final do artigo é ilustrativo e resume a importância dos registros rupestres pré-históricos como marcadores de identidades: “Les représentations rupestres reflètent la modernité dessociétés préhistoriques dans leurs irréductibles identités symboliques, confiées à la nature, aucœur de leurs territoires”

Alexandre Navarro, Dayse Marinho e João Costa Gouveia Neto são os autores de um belíssimo texto sob o título O imaginário do mundo das águas: lendas, narrativas e histórias ancestrais sobre a vida dos povos das estearias, no qual, e a partir dos assentamentos lacustres do Maranhão, recolhem as lendas que o imaginário popular teceu ao longo dos anos que se seguiram quando os construtores das estearias já as tinham abandonado há décadas. Cabe destacar, que as estearias do Maranhão significam um mundo intermediário entre as populações do litoral nordestino e as da bacia amazônica.

A longa trajetória do arqueólogo e pesquisador da Bahia Carlos Etchevarne está resumida, em parte, no seu trabalho A história da Bahia antes da colonização portuguesa, com ênfase nas populações sedentárias ou semi-sedentárias de agricultores Aratu e Tupi. A importância dos registros rupestres, tão abundantes na Bahia, é também ressaltada como indicadora da variedade de etnias indígenas que povoaram a região.

Fábio Borges entendeu qual era o espírito do dossiê temático da Revista na sua Proposta para uma abordagem arqueológica da etno-história do Seridó – RN/PB. Pernambucano de Olinda, Fábio Borges é hoje um seridoense por adoção e mérito próprio, pesquisador e professor da UFRN no campus de Caicó, suas pesquisas na Região do Seridó têm contribuído ao entendimento de uma ancestralidade indígena potiguar que se remonta desde milênios AP até o século XVII, através da conjunção dos dados fornecidos pela gloto-linguística, a etno-história e o registro arqueológico.

O artigo apresentado por Michel Justamand, Albérico Nogueira de Queiroz e Gabriel Frechiani de Oliveira, As representações rupestres de biomorfos no Parque Nacional Serra da Capivara – PI: um estudo de caso é, mais uma vez, a demonstração da importância que a interdisciplinaridade tem em Arqueologia. Os três pesquisadores estão ligados às pesquisas sobre arte rupestre, particularmente ao conjunto ímpar do Parque Nacional Serra da Capivara, embora cada um, pela sua formação, tenha um viés metodológico diferente. Dá-se especial evidência neste trabalho às figuras que representariam a transição da forma humana para a animal ou vice-versa. Não podemos deixar de evocar a figura do homem pássaro representada nos sítios rupestres dos sertões nordestinos e mais uma vez refletir sobre as identidades ancestrais que representam os nossos registros rupestres pré-históricos.

Nanci Vieira de Oliveira em Pescadores – Coletores do Litoral Fluminense: Novos olhares, velhos problemas inicia a sua contribuição ao tema básico deste número da Revista com uma reflexão acertada dos conceitos, ultrapassados às vezes, do que se entende por nomadismo e sedentarismo na arqueologia tradicional. Utilizando-se de um neologismo certeiro, – as pesquisas pronapianas – , referindo-se aos pesquisadores que integraram o famoso PRONAPA, põe em tela de juízo os horizontes culturais em que foram divididas as ocupações humanas pré-históricas entre sítios précerâmicos e sítios cerâmicos, sem aparente ligação entre eles. A pesquisadora propõe um novo olhar na procura de identidades étnicas e processos culturais capazes de identificar a atividade humana no médio da massa de materiais e fases arqueológicas que a mascaram. Os novos olhares metodológicos abrem uma nova janela ao entendimento das populações litorânea, as primeiras a serem avistadas e que sofreriam os primeiros impactos da conquista portuguesa. Para finalizar a nossa contribuição, só nos resta parabenizar a feliz iniciativa da RNHB dedicando um número temático às mais antigas origens do povo multiétnico brasileiro.

Notas

1. Cf.: MARTIN, Gabriela. Quando os índios não eram índios: reflexão sobre as origens do homem pré-histórico no Brasil. CLIO Arqueológica, Recife, n. 15, p. 1-27, 2002.

2. TOVAR, Antonio. Catálogo de las lenguas de América del Sur. 2. ed. Madrid: Ed. Gredos, 1984.

3. Cf.: TUMINEZ, Astrid S. This Land is Our Land: Moro Ancestral Domain and Its Implications for Peace and Development in the Southern Philippines. SAIS Review of International Affairs, v. 27 n. 2, p. 77-91, 2007. Project MUSE. DOI: 10.1353/sais.2007.0044; ROTARANGI, S. J. Planted forests on ancestral land: the experiences and resilience of Māori land owners. 2012. Thesis (Doctor of Philosophy) – University of Otago. Retrieved from: http://hdl.handle.net/10523/2221; DI GIMINIANI, P. The becoming of ancestral land: Place and property in Mapuche land claims. American Ethnologist, 42, p. 490-503, 2015. DOI: 10.1111/amet.12143.

4. ALVES-SILVA, J.; SILVA SANTOS, M. Da; GUIMARAES, P. E.; FERREIRA, A. C.; BANDELT, H. J.; PENA, S. D.; PRADO, V. F. The Ancestry of Brazilian mtDNA Lineages. Am J Hum Genet, n. 67, p. 444-461, 2000.

5. PENA, Sérgio D. J.; BORTOLINI, Maria Cátira. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Estud. av., São Paulo, v. 18, n. 50, p. 31-50, apr. 2004. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100004&lng=en&nrm=iso. Access on: 10 jun. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100004.

6. FUNARI, P. P. A.; PINON, A. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto, 2011.

7. ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia: anthropologia-ethnografia. Rio de Janeiro: Coedições ABL, 2005.

Gabriela Martin –  Doutora em História Antiga pela Universitat de València (Espanha) Professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Recife, PE, Brasil. E-mail: [email protected]

Pedro Paulo A. Funari –  Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP) Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Campinas, SP, Brasil. E-mail:  [email protected]  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0183-7622


MARTIN, Gabriela; FUNARI, Pedro Paulo A. Apresentação. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.2, n.4, p.7-12, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê [DR]

 

Maria Antônia, um retrato além da moldura | Fernando Santos da Silva

Perseguir os significados que a Rua Maria Antônia, no distrito da Consolação, adquiriu na vida urbana da cidade de São Paulo desde a sua origem é o principal objetivo do livro Maria Antônia, um retrato além da moldura, de Fernando Santos da Silva (2019). Trata-se de uma produção fruto da pesquisa desenvolvida pelo autor para seu mestrado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e que, transformada em livro, foi publicada em 2019 pela editora Appris.

Já na Introdução, o autor convoca o leitor a pensar sobre a possibilidade de a Rua Maria Antônia ser considerada um lugar de memória. Isso posto, formula a hipótese de que as instituições culturais e educacionais ali implantadas exerceram, em certo sentido, um papel fundamental, transformando-a em uma via urbana que representava a dinâmica da vida intelectual na cidade que se modernizava. Sabe-se que a criação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade de São Paulo (USP) são desdobramentos dessa relação simbiótica entre cultura e cidade que abre novas perspectivas para a leitura do lugar. Para Silva (2019), a história da Rua Maria Antônia está ligada à memória estudantil como um espaço simbólico de referências a essas duas grandes instituições que vêm formando várias gerações de intelectuais do país. Leia Mais

A Batalha dos Livros | Lincoln Secco

Lincoln Secco é docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) desde 2003. Seu leque de temáticas conta com razoável amplitude. No mestrado, pesquisou a recepção de ideias de Antonio Gramsci na realidade brasileira. Investida que resultou no livro Gramsci e o Brasil (2002) – uma espécie de état de l’art das apropriações do pensador italiano no país. No doutorado, operou uma certa mudança de sentido investigativo. De um estudo circunscrito à História das Ideias deslocou-se para uma análise político-social da crise do império colonial português. A empreitada, que se derivou em dois títulos (SECCO, 2004;2005), foi logo suplantada por outros interesses. Desde então, o docente dedica-se principalmente ao marxismo e às esquerdas, tanto em abordagens mais restritas às construções conceituais, quanto em investigações voltadas às expressões dessas correntes políticas como fenômeno social. O último trabalho de Lincoln Secco originou-se exatamente dessa segunda vertente. A obra lançada em 2017, intitulada A Batalha dos Livros, é uma pesquisa sobre a história editorial das esquerdas brasileiras. Em grande medida, trata-se de um intento de esmiuçar os caminhos textuais do processo de circulação de ideias de esquerda no Brasil.

Os cinco capítulos de A Batalha dos Livros de Lincoln Secco organizam-se a partir de um referencial diacrônico-qualitativo. Cada passagem concentra-se em um período no qual o autor identificou a configuração de uma qualidade editorial específica dentro das esquerdas. Todo o estudo é fundado em um prisma histórico que tem como balizas o final do século XIX e o princípio da segunda década do século XXI. A pesquisa possui como foco principal, embora não único, os projetos editorais e as publicações do Partido Comunista Brasileiro (PCB).1 Tal afirmação somente não é válida para o primeiro e o último capítulo, pois esse se dedica ao momento anterior a Revolução Russa; e aquele ao período pós-ditatorial quando as esquerdas encontravam-se hegemonizadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o PCB passava por uma profunda crise. Leia Mais

Acre, Formas de Olhar e de Narrar: Natureza e História nas Ausências | Francisco Bento da Silva

SILVA Francisco Bento da Família dos libertos

SILVA Acre Família dos libertosA proposta da resenha é apresentar a obra “Acre, Formas de Olhar e de Narrar: Natureza e História nas Ausências”, do escritor, professor e pesquisador Francisco Bento da Silva. O livro é o resultado do estágio de pós- doutoramento no curso de Pós- Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi, pensado e produzido entre agosto de 2019 até meados de 2020. No texto, o autor propõe desenvolver debates a respeito da historiografia, da natureza e dos imaginários que permeiam a história do Acre. Utilizando-sePara isso, utiliza-se de fontes documentais como: jornais, relatórios da época e referenciais teóricos dos mais diversos campos do conhecimento. Com isso,, o autor propõe diálogos que buscam novos modos de narrar e de olhar o Acre.

O pesquisador, ao escolher o título, já direciona o leitor a sua posição de questionador e de problematizador no campo das mentalidades. As colocações são bem articuladas, organizadas e cirurgicamente conceituadas para que o leitor, ainda que com pouco contato com a temática, se sinta confortável com a leitura. Francisco Bento da Silva (20200000, p.15 00), já no início do livro, deixa claro que: “não sou poeta”, mostrando sua posição de distanciamento de qualquer “liberdade poética” ou senso comum. Diante disso, o autor se aproxima e se utiliza de um aglomerado de fontes e de referências as quaisque suportaram sua obra. As problematizações que o autor propõe são referentes aos discursos de vazio, de ausência e de inexistência de saberes e viveres amazônicos, e que, na sua visão, contrapõem as realidades múltiplas que foram intencionalmente silenciadas pela historiografia hegemônica. Leia Mais

Aquirianas: mulheres da floresta na história do Acre | Carlos Alberto Alves de Souza

SOUZA Carlos Alberto Alves de Família dos libertos

SOUZA Aquirianas Família dos libertosO livro de Carlos Alberto Alves de Souza, denominado Aquirianas: mulheres da floresta na história do Acre, editorado pelo Instituto de Pesquisa, Ensino e de Estudos da Cultura Amazônicas – ENVIRA, 2010, aborda uma proposta audaciosa – dentro das várias possíveis – de uma escrita da História das Mulheres na Amazônia. O autor é Carlos Alberto Alves de Souza, formado em História pela Universidade Federal do Acre, com Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sendo o primeiro Professor Titular da área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Ufac, foi presidente da Associação Brasileira de História Oral de 2004 a 2006, além de fazer parte da Academia Acreana de Letras, possui obras sobre a História do Acre que se inspiram na História Social Inglesa – notadamente em Thompson e Hobsbawm – e por um diálogo interdisciplinar com os espaços e geografias amazônidas.

O livro busca trazer ao palco cultural as mulheres que, por muito tempo, foram injustiçadas e excluídas de uma sociedade da qual sempre fizeram parte. A obra divide-se em cinco partes. Na primeira parte, o autor mostra como se dá ocupação dos espaços nos seringais, que eram unidade produtoras de extrativismo vegetal assentado no látex da Hevea brasilienses, fazendo inferências sobre a criação destes latifúndios durante aquilo que se caracterizou como a primeira fase de exploração das terras acreanas pelos brasileiros. Na segunda fase da obra, vemos a saga das mulheres seringueiras do Acre, como participante do processo de constituição do modo de vida no seringal, atendendo ao chamado de Scheibe (1998), que afirma: Leia Mais

Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica | Frank Gaudichaud, Jeffrery Webber e Massimo Modonesi

Resenha Destaque post 4 Família dos libertos

MODONESI Los gobiernos progressistas Família dos libertosO livro [II] traz uma reflexão sobre os motivos que fizeram os governos progressistas latino-americanos, que outrora possuíam bastante força política para governar diversos países, a estarem atualmente sucumbindo frente a novas investidas da direita, como a eleição de Bolsonaro no Brasil, após mais de uma década de PT que se inicia em 2003 com Lula e se encerra em 2016 com Dilma. Nesse sentido, o livro realiza uma análise crítica dos governos de esquerda das duas primeiras décadas do século XXI com o objetivo de contribuir para as reflexões sobre essa temática.

O continente cresceu com lutas, rupturas e resistências. Entender o passado histórico nos permitirá compreender os fatos que sucederam a partir do fim da década de 1990 na região. O aspecto insurgente pode ser considerado um catalisador de mudanças que se associam aos governos progressistas.

O livro realiza uma análise crítica em torno desse tema. Podemos encontrar avaliações positivas e negativas dos chamados governos progressistas latino-americanos. Há, neste trabalho, uma narrativa imparcial, que avalia aspectos históricos, sociais e econômicos ocorridos entre o período das décadas de 1990 a 2000. Faz-se necessário destacarmos alguns pontos que se entrelaçam na análise dos três autores na obra, que se divide em três capítulos, o primeiro intitulado “Conflictos, Sangre y Esperanza. Progresismos y movimientos populares en el torbellino de la lucha de clases latinoamericana.” de Frank Gaudichaud [III], o segundo, “Mercado Mundial, Desarrollo desigual y Patrones de acumulación: La política Económica de la Izquerda Latinoamericana” de Jeffery Webber [IV] e o terceiro “El Progresismo Latinoamericano: Un Debate de Época” de Massimo Modonesi [V].

Para melhor compreensão do período do final da década de 1990, é importante considerar anos anteriores. Por isso, Gaudichaud demonstra em seu capítulo dados econômicos e sociais desde a década de 1980. Por exemplo, no período de 1980 a 2003 o desemprego aumentou de 7,2% para 11%. Além disso, no mesmo período, o salário mínimo diminuiu em um em média de 25%, e o trabalho informal teve um aumento de 36% para 46%.[VI]

Além disso, no decorrer da década de 1980, houve a mobilização dos movimentos de esquerda e a formação de um novo ethos militante. Novos movimentos sociais ganharam força, como o feminista, o indígena e o negro. Os desgastes das ditaduras militares, sobretudo pelas crises financeiras que vinham enfrentando, serviram de combustível para esses movimentos conquistarem espaço. Contudo, apesar de a década de 1980 ser considerada favorável às manifestações democráticas, pois encerra-se um estado repressivo, pelo lado econômico, a década de 1980 foi desastrosa, marcada pelos ajustes estruturais propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), tais como as privatizações, restrições salariais e o fim de barreiras aduaneiras [VII].

Portanto, segundo os autores, no final da década de 1990 surgiram diversos debates e críticas sobre o neoliberalismo. Inúmeros movimentos sociais estavam insatisfeitos, na ocasião, com um sistema econômico neoliberal que, na narrativa de partidos políticos e movimentos sociais, sujeitava o Estado ao interesse de empresários e oligarquias.

Dessa forma, a partir dos anos 2000, podemos perceber que essa insatisfação com a hegemonia neoliberal começa a agitar os movimentos populares e de esquerda, que buscavam uma mudança nas estruturas, no Estado, ou seja, de baixo para cima. O cenário era propício para mudanças, as agitações nas calles, os movimentos sociais e a luta contra o imperialismo norte-americano. Portanto, a democracia novamente parecia o caminho para as mudanças, o que estimulou novamente a organização popular através de votos.

À vista disso, os autores apontam que o ciclo dos governos de esquerda, que se inicia em 1999 com Hugo Chávez na Venezuela, tem continuidade durante os anos 2000. Essas experiências têm suas bases nas raízes históricas do continente e surgem com a intenção de refundar a sociedade. Porém, em alguns casos foi necessário romper com mais veemência com antigos poderes na região, como a própria Venezuela com revoltas anti-imperialistas, a mais famosa delas chamada de Caracazo que contou com a maioria da população lutando por mudanças sociais e políticas.

Porém, precisamos destacar que dentro dessa “Onda Rosa” [VIII] houve diferentes formas de governos progressistas. Isto é, existiram experiências mais radicais e outras mais moderadas, ainda que fazendo parte do mesmo movimento. Isso explica-se pelas próprias diferenças entre os países. Dessa maneira, não podemos generalizar as experiências, ou seja, os projetos de governos progressistas tiveram suas particularidades em cada região.

Neste contexto, líderes políticos como Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia) emergem no cenário político com grande apoio popular, tendo como conceitos principais de seus governos o anti-imperialismo e antineoliberalismo. Esses líderes políticos assumiram o embate político com os Estados Unidos como um aspecto central em sua inserção internacional.

Tal postura gerou reações dos Estados Unidos. Como exemplo disso, citamos a interferência norte-americana na Venezuela, que ocorreu com a tentativa de desestabilização à experiência progressista de Hugo Chávez, em abril de 2002. Os EUA utilizaram-se de agências, como a Central Intelligence Agency (CIA), para desestabilizar a gestão de Chávez. No capítulo de Webber, notamos inclusive, exemplos recentes de apoio norte-americano à instabilidade nos países Latino-americanos. Podemos citar o golpe militar de Honduras em 2009 que destituiu o presidente Manuel Zelaya e o golpe parlamentar no Paraguai em 2012.

No caso venezuelano, o ocorrido pode ser explicado pelo fato da Venezuela ter a maior reserva de petróleo do mundo e isso estava no controle norte-americano. O golpe só foi frustrado pelo fato de Chávez ter contado com apoio de grupos da sociedade civil e das Forças Armadas venezuelanas. Como destacam os autores, as estratégias de intervenções imperialistas norte-americanas têm se adaptado para serem feitas através da grande mídia, com ataques constantes à credibilidade de governos de esquerda.

Para além do anti-imperialismo e anti-neoliberalismo que os governos progressistas de esquerda propuseram, podemos ressaltar a forte raiz nacionalista e libertária de Símon Bolívar nestes governos. Essa imagem de Símon aparece mais ainda na “Revolução Bolivariana” que Chávez promoveu na Venezuela. Faz-se isso na tentativa de libertar a América Latina por meio do conhecimento de seu passado histórico de luta e resistência, fazendo uso dos grandes heróis do passado, tal como Símon Bolívar, San Martin, dentre outros.

As diferenças entre as experiências de esquerda residem, por exemplo, no fato de algumas delas terem sido caracterizadas como revolucionárias ou experiências moderadas/reformistas, segundo os autores. Isso está baseado nas reformas econômicas, sociais, políticas que esses governos propõem em relação aos modelos que já estavam implementados. As experiências mais revolucionárias são aquelas que mais promoveram rupturas em uma resposta ao neoliberalismo. Já as mais moderadas/reformistas são as que, ainda que tenham promovido algumas mudanças progressistas, deram continuidade às práticas dessa doutrina.

Durante uma década de governos progressistas na América Latina, podemos concluir que a política de distribuição foi o foco principal. Esses governos buscaram implementar mudanças sociais e econômicas, sobretudo, para as grandes maiorias. Projetos como o “Bolsa família” do PT no Brasil são um exemplo disso. Não somente isso, os governos de esquerda buscaram aumentar o poder de consumo das classes menos favorecidas. Por isso, durante esses governos muitas famílias que outrora não tinham condições, conseguiram conquistar bens como casa própria. Grande parte deve-se ao fato dos governos progressistas terem se aproveitado da alta das commodities, ocorrida em 2003 com a alta demanda industrial que a China promoveu.

Este país foi o principal destino das exportações da região no período de 2002 a 2012. Matérias-primas exportadas, como petróleo, soja, dentre outras, tiveram um aumento de preço, favorecendo a economia latino-americana. Portanto, um dos méritos desses governos é ter aproveitado esse aporte financeiro para investir nos projetos sociais. Isto deu resultado, pois vimos que, durante uma década, um número considerável de pessoas saíram da pobreza. Como aponta Gaudichaud, “Según la CEPAL, 70 millones de personas salieron de la pobreza en una década…” [IX]

Durante os governos de esquerda, também podemos destacar as nacionalizações de empresas que anteriormente haviam sido privatizadas. Esse processo visou combater um “mal” para a economia dos países latino-americanos, pois, em contraponto com o setor privado, o Estado ficava com menos recursos financeiros do que poderia. Ou seja, as empresas estrangeiras repassavam mais capital para seus países de origem, do que ao Estado em que elas estavam sediadas, além disso, é importante ressaltar que as empresas foram nacionalizadas de acordo com as políticas do mercado, isto é, com negociações do Estado com as empresas e com taxas de indenizações.

Alguns exemplos dessas nacionalizações ocorreram na Bolívia e na Venezuela com as empresas de gás, petróleo, água, etc. Na Bolívia, em 2000 e 2005, ocorreram grandes vitórias populares antes mesmo de Evo Morales ser presidente, como as “Guerras da Água” em 2000. Esses episódios terminam com a expulsão de duas multinacionais: a estadunidense Bechtel e a filial de Suez, Aguas del Illimani. Essas vitórias fizeram o governo desmercantilizar a água. Além disso, também houve a vitória popular na questão do gás em 2003. Esse alavancou a imagem de Evo Morales como um líder pelas lutas nacionais. O acordo cancelado com a empresa americana Pacífic LNG tinha como principais justificativas o fato de que afetava a soberania da Bolívia, uma vez que fazia com que ela fizesse negócios com o Chile (recentemente há um histórico de embates entre os dois países). Outra justificativa era que a Bolívia receberia um valor “x” pelo gás, e este seria vendido em solo americano por outro bastante superior.

Já na Venezuela, Chávez recuperou o controle da Petróleos de Venezuela Sociedade Anônima (PDVSA) e multiplicou os contratos com empresas estrangeiras de origens distintas onde entra, por exemplo, a aproximação com a China. As nacionalizações foram essenciais para inversão da política social, saúde e educação que os governos progressistas promoveram durante seu período na América Latina.

O Produto Interno Bruto (PIB) durante os governos progressistas cresceu na América Latina com casos excepcionais como a Bolívia, cujo PIB subiu de $8 bilhões em 2002 a $30 bilhões em 2013, de acordo com Gaudichaud [X]. Isso pode ser explicado pela alta dos preços das matérias-primas (como o petróleo) e investimento no agronegócio, ainda que isso tenha desagradado a setores sociais. Além disso, as experiências nacionais-populares que os governos progressistas implementaram também contribuíram para a economia interna, com o aumento do número de empregos e maior poder de consumo. Isso se fez por políticas redistributivas, assistencialistas e com concessão de créditos.

Como debatido por Massimo Modonesi, essa estratégia, voltada para a democratização do consumo, permitiu às pessoas que saíram da pobreza ou extrema pobreza contribuírem para a economia, gerando mais riqueza. Por outro lado, essa estratégia contribuiu também para que os governos progressistas, no que diz respeito à parte econômica, possam ser analisados como projetos conciliatórios. Haja vista que a democratização do consumo favorecia também a classe dominante, ou seja, segmentos da sociedade que são compostos majoritariamente por empresários, bancários, e, segundo Gaudichaud, isso resultou em consequências negativas para a esquerda pois podemos compreender que politicamente teria sido melhor para a esquerda que a incorporação das classes populares tivesse sido através da politização e não somente através do acesso ao consumo.XI

Portanto, uma das críticas que o livro faz aos governos progressistas deve-se ao fato do grande capital ter tido uma alta lucratividade durante suas gestões. Como aponta Webber, “tales mejoras modestas para las clases populares coexistieron con ganancias netas sin precedentes para el capital privado extranjero y nacional invirtiendo en sectores de recursos” [XII]. O agronegócio foi uma atividade que pode ser citada como exemplo. Os seus membros contaram com incentivos financeiros à produção, diminuição da burocracia e as economias do Estado se mantiveram e se intensificaram dependentes desse setor. O Brasil é um exemplo cuja economia depende de maneira relevante da exportação de soja. Durante o governo de Dilma Rousseff, houve um grande incremento nessas atividades, segundo Jeffery Webber.

Como apontado por Massimo Modonesi, os grupos indígenas merecem destaque como agentes políticos bastante relevantes na luta contra o neoliberalismo e o imperialismo na América Latina, entre as décadas de 1990 e 2000. Ao longo da história do continente, desde as invasões feitas pelos europeus, os indígenas têm sido perseguidos, exterminados e excluídos de um território que lhes pertencia. A mentalidade colonizadora que se faz presente até os dias atuais faz com que esses grupos sejam excluídos da sociedade, acentuando a vulnerabilidade desses povos indígenas. A constante perda de seus espaços, tão essenciais para a vida em comunidade que precisam, afeta diretamente a manutenção da cultura desses povos. Esses fatores geram um apagamento da cultura e identidade desses grupos, o que muitas vezes é legitimado pelo Estado, uma vez que falha em ter políticas que possam proteger esses grupos, suas terras e seu modo de viver.

Como debatido nos capítulos de Gaudichaud e Modonesi, após esse descaso e perseguição ao longo de diversos anos na América Latina, a resistência e a união se tornaram bastante presentes no modo de viver desses grupos indígenas, e por conta disso eles conseguem se mobilizar politicamente para continuar com suas reivindicações aos seus direitos à terra e à defesa da mãe natureza. Fazem ouvir suas vozes e marcham pelas ruas em manifestações agindo o ser político e chamando a atenção para o fato dos indígenas terem espaço em qualquer projeto de Estado na América Latina. Esses grupos estavam articulados, e com consciência política, e durante a época do descontentamento com o neoliberalismo, eles se uniram com outros grupos sociais em torno de um ideal comum, a luta contra o imperialismo.

Como afirma Gaudichaud, podemos destacar os Mapuches no Chile e a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) no Equador. Esses grupos apoiaram os governos de esquerda e obtiveram respeito e respostas quanto a muitas de suas reivindicações. Porém, antes de ser esquerda ou direita esses grupos são primeiramente indígenas, e vimos isso em diversas vezes em que eles também se chocaram com decisões dos governos de esquerda, como ocorreu a partir de 2013 no Equador em manifestações questionando o presidente Rafael Corrêa, principalmente após a decisão de explorar o Parque Nacional Yasúni, abrindo-a a empresas mineiras. Ou seja, Corrêa adotou o discurso de exploração para justificar seu projeto econômico de redistribuição, o que para muitos pode ser entendido como uma política que busca um plano mais amplo para a nação equatoriana, mas que foi visto por esses grupos indígenas como uma traição por afetar diretamente suas matrizes.

Diante do extrativismo e do avanço do setor capitalista do agronegócio sobre os recursos da natureza, diversos grupos resistentes a esses ideais têm se chocado com o capital privado, como os camponeses, que defendem o meio ambiente e, em especial, os indígenas, como apontado no livro. Logo, é correto afirmar, segundo o capítulo de Webber, que esses grupos indígenas possuem uma ação política muito importante e uma voz politicamente ativa [XIII].

Nesse sentido, em alguns países latino-americanos, observamos que a luta de classes é muito recorrente. Como apontado pelos autores, o enfrentamento de grupos com interesses antagônicos se faz presente no continente, como por exemplo os movimentos sociais, indígenas, que discordam de projetos defendidos pelos grandes empresários, bancários, dentre outros. No livro, percebemos um viés marxista na análise dos autores que mostram como a temática da luta de classes é relevante para compreendermos como ocorreu a luta pela terra, por direitos sociais, por um Estado amplo de direitos em diversos países da América Latina como, por exemplo, nas experiências mais notórias dos governos progressistas: Bolívia, Equador e Venezuela.

Notas

II. O livro Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica, 2019 de organização de Franck Gaudichaud, Jeffery Webber, e Massimo Modonesi, fazem uma análise geral dos movimentos de esquerda latino-americanos iniciando em 1999 com Hugo Chávez na Venezuela até 2019 com o golpe a Evo Morales na Bolívia. Esses movimentos se acentuaram nesse período pois havia um descontentamento em diversos países latino-americanos com o projeto de direita: Neoliberalismo. Entretanto, o livro também irá apontar que o continente tem um histórico de revoltas, revoluções, e de lutas, em períodos que antecedem o neoliberalismo.

III. Frank Gaudichaud possui uma linha de pensamento marxistas além disso é francês, o que para esse estudo é bastante relevante pois permite ao mesmo uma análise de fora do objeto de estudo.

IV. Jeffery Webber é estadunidense mas visitou os centros de pesquisas da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) em Quito, Equador, além do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA) e o Centro Boliviano de Estudos Multidisciplinares (CEBEM) em La Paz, Bolívia.

V. Massimo Modonesi pode ser destacado pelos seus estudos de movimentos sócio-políticos em México e América Latina e de conceitos e debates marxistas, além de ser diretor da revista “Memoria del Centro de Estudios del Movimiento Obrero y Socialista (CEMOS) e da revista OSAL de CLASCO (2010-2015).

VI. GAUDICHAUD, Frank. Conflictos, Sangre y Esperanza. Progresismos y movimientos populares en el torbellino de la lucha de clases latinoamericana. In: GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica. UNAM, México. 2019. p. 22

VII. Um reflexo da desastrosa economia da América Latina na década de 1980 pode ser a queda do Produto Interno Bruto (PIB). Em fins do século XX o PIB na América Latina caiu consideravelmente de 3,8% em 1997 para 0,9% em 1998. Ou seja, uma queda brusca que representa quase ¼ em menos de um ano.

VIII. O que nós conhecemos hoje pelo nome governos progressistas foi um giro político impulsionado pela esquerda em diversos países da América Latina. Exemplo de Equador, Bolívia, e Venezuela, que podem ser consideradas como as mais notórias experiências deste “giro a esquerda”. Mas também podemos citar Brasil, Argentina, Uruguai, entre outros. Essas experiências foram apelidadas também como “marea rosa“.

IX. Ibidem, p. 46

X. Ibidem, p. 46

XI. Ibidem, p. 83

XII. WEBBER, Jeffery. Mercado Mundial, Desarrollo desigual y Patrones de acumulación: La política Económica de la Izquerda Latinoamericana. In: GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica. UNAM, México. 2019. p. 114

XIII. Analisamos que em alguns países como Equador, a ruptura de Corrêa com os grupos campesinos, com grupos indígenas como a CONAIE, gerou um desgaste político do então presidente. Ou seja, essa ruptura pode ser entendida como relevante pois antes dela o próprio Rafael Corrêa havia recebido prêmios e grande visibilidade pelo projeto Yasúni, sendo coerente afirmar que este evento foi um ponto chave para sua imagem política.

Referências

GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica. México, UNAM, 2019.

João Carlos Calzavara – Graduando do curso de História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Laboratório de Estudos de Imigração (LABIMI). Bolsista do Projeto de Extensão “Ideias Políticas e História do Tempo Presente da América Latina entre 1998 e 2018: uma comparação entre Bolívia, Equador e Venezuela”. E-mail: [email protected]


GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica. México, UNAM, 2019. Resenha de: CALZAVARA, João Carlos. Boletim Historiar. São Cristóvão, v.2, n.8, abr./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

RESISTÊNCIA: A construção de saberes históricos em tempo de pandemia | Das Amazônias | 2021

Casarao da Rua 20 Goiania Família dos libertos

Iniciamos esta edição com sinceras condolências em respeito a todos os brasileiros e brasileiras que partiram devido à crise sanitária ocasionada pelo novo coronavírus, mas sobretudo pesarosos do contexto ideológico em que o Brasil está inserido. A Revista Discente das Amazônias se irmana no sentimento de tristeza de cada ente querido que sente a dor da saudade, palavra encontrada apenas no português do Brasil (e que faz muito sentido face a falta do avô, da mãe, do irmão, do pai, da tia, do primo, do próximo ou do distante), na ausência da vida. Externamos nossa solidariedade aos que permanecem e lastimamos por aquelas pessoas que se tornaram montante numérico superior a 470.000 mil mortos, vítimas de um genocídio resultante da ignorância, do negacionismo e da pseudociência.

Mas, nos apeguemos aos respingos de esperanças. Paulo Freire, fugindo da norma, já nos convidava a conjugar o substantivo “esperança” – esperançar é preciso. É nesses embalos de incerteza de um viver marcado por lutas, que devemos acreditar na ciência, na educação pública e gratuita e sua fundamental importância e contribuição para à sociedade. Assim, caros(as) leitores e leitoras, lhes convidamos a lerem os trabalhos submetidos à Das Amazônias, Revista Discente de História da Ufac (em seu volume 4, número 1), que compõe o conjunto de periódicos da área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), da Universidade Federal do Acre (Ufac). Leia Mais

Flavio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário – De 1943 a 1984 | Benito Bisso Schmidt

Em Tempos interessantes, Eric Hobsbawm comentou que comumente as biografias “terminam com a morte do biografado, mas as autobiografias não têm esse fim natural”, uma ironia que não se traduz apenas como humor para historiadores envolvidos em empreitadas biográficas (2002, p. 447). Autor proeminente nos estudos sobre esse gênero, Benito Schmidt enfrentou como desafio o que para Hobsbawm era chiste ao biografar o gaúcho Flavio Koutzii, cuja biografia não teve o aludido fim natural: Koutzii não apenas contribuiu imensamente para a produção do livro, como foi um leitor privilegiado antes e depois de sua publicação – e, assim como Hobsbawm, Koutzii é judeu, fez-se comunista e não dispensa a fina ironia.

Após debruçar-se por quase uma década sobre variados registros que a vida de Koutzii lega à pesquisa histórica, Schmidt lançou um livro bastante singular, tanto pela relação que estabeleceu com seu objeto e principal fonte – Koutzii e suas memórias -, quanto pela forma como articulou essa fonte com as demais. Da primeira às últimas páginas nota-se que o livro é a confluência da relação entre biógrafo e biografado – especial singularidade da obra. Leia Mais

Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores | Tuca Vieira

Abrir e folhear o Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores, de Tuca Vieira (1), é como ter um encontro consigo mesmo. Num primeiro momento, algo como um encontro solitário, uma descoberta não esperada. Mas logo o Atlas mostra sua dimensão pública, com um conjunto de imagens que expõe a cidade, oferecendo um reconhecimento que pode ser coletivo e que está agora compartilhado. Ou seja, as 203 fotos do livro são, enfim, um mapeamento de São Paulo, um conjunto que deu conta da sua diversidade, complexidade, imensidão – adjetivos sempre associados à cidade. Deu conta apresentando simultaneamente fragmentos e unidade, um todo que, mesmo para seus habitantes, parece lhes escapar.

Cidade vertical e densa na região central, edifícios industriais nos ainda “vazios urbanos”, antigos edifícios já integrados a um entorno desfigurado e adensado, favelas fotografadas na sua extensão ou na visão do pedestre, regiões de mananciais,  igrejas, muros e grades, caixas d’água, postes, fiações elétricas, habitações formais e informais, pontos de ônibus, bancas de jornais, rios (que hoje são canais), estacionamentos, ruas, avenidas e vielas, edifícios comerciais, bares, padarias, quitandas, estacionamentos… Todos esses programas e situações urbanas que sem as fotos dizem pouco. Leia Mais

O Poder Naval e as disputas pelo território no Brasil Colonial (1500-1808) | Navigator | 2021

O volume 17, número 33, 2021, da Revista Navigator traz para os leitores textos sobre eventos históricos dos séculos XVI e XVII que, em conjunto, integram o dossiê “O Poder Naval e as disputas pelo território no Brasil Colonial (1500-1808)”. O dossiê teve por objetivo trazer contribuições que cobrissem conflitos entre portugueses, espanhóis, franceses e neerlandeses pelo território do Brasil, com foco nos aspectos navais, econômicos e políticos.

A proposta do dossiê surgiu a partir de uma reflexão feita após a leitura de um dos capítulos de “Os holandeses no Brasil”, escrito pelo historiador inglês Charles R. Boxer em 1957. No texto, intitulado “O mar domina o Brasil”, Boxer, assim como em outros escritos de sua autoria, mostrou a centralidade da guerra naval para o desfecho de conflitos entre portugueses, espanhóis e neerlandeses nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil e na sede do governo colonial, Salvador. Parte das lutas entre europeus no Brasil teve origem em fins do século XVI, na sequência da guerra de independência das Províncias Unidas contra o Império Habsburgo e expandiu-se para o ultramar, com grande intensidade, ao longo do século XVII, tendo amplitudes e repercussões locais, regionais, atlânticas e globais. Leia Mais

Experiências coloniais na África: Instituições, Dinâmicas e Sujeitos | Canoa do Tempo | 2021

A compreensão do processo de expansão colonial e dos processos coloniais no continente africano pedem, hoje mais do que nunca, uma abordagem que tenha em conta a sua complexidade histórica, a multiplicidade dos domínios em que se desenvolveram e a dificuldade crescente de operar sob uma visão unívoca desses processos. Logo, pensar esta complexidade convida-nos ao manejo de referenciais teóricos novos ou atualizados que os leitores poderão encontrar neste dossiê intitulado “Experiências coloniais na África: Instituições, Dinâmicas e Sujeitos”.

Os artigos que compõem esta publicação propõem uma reflexão em torno do contexto de expansão colonial e do conceito de “experiências coloniais”, sendo esta última uma ferramenta conceitual que oferece um enquadramento científico que vai além dos domínios estreitos dos “processos coloniais” e, sobretudo, das dicotomias simplistas que frequentemente tolhem as análises acadêmicas. Leia Mais

A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasi | Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling

Difícil imaginar uma época mais propícia do que a que estamos vivendo para o lançamento de um livro sobre uma pandemia. Com A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil (2020), Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling retomam a parceria que produziu Brasil: uma biografia (2015), e apresentam um oportuno estudo sobre um acontecimento de fundamental relevância que evidenciou a profunda desigualdade social brasileira; o negacionismo por parte das autoridades e a falta de organização do Estado no combate à doença. Como se pode notar, são muitos os paralelos que se podem traçar com a tragédia em curso provocada pela covid-19 no Brasil, e obviamente isso não passou desapercebido pelas autoras. Fica claro, portanto, que são recorrentes as vezes em que as duras lições que a História brasileira nos ensina não são aproveitadas.

O livro é dividido em dez capítulos, sendo sete deles dedicados a apresentar um panorama de como as principais capitais brasileiras lidaram com a espanhola. É acompanhado também por diversas imagens que retratam as enfermarias, as autoridades sanitárias, as cidades à época e recortes de jornais com caricaturas, poemas, anúncios de remédios milagrosos e relatos do caos instaurado pela epidemia. Destaca-se que o Brasil era um país acostumado aos surtos epidêmicos, fossem eles ocasionados pela febre amarela, varíola, tuberculose, peste bubônica ou cólera. A então jovem República empreendera um esforço em mitigar tais males, através de expedições científicas nos então pouco desbravados sertões do país. Belisário Pena, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas são nomes preponderantes dessa geração. O saneamento das cidades, que à época era sinônimo de ambiciosas reformas urbanas conforme os padrões europeus, expulsou a população dos centros das cidades para áreas afastadas sem as menores condições sanitárias, num verdadeiro “urbanismo de exclusão”. Além do caso notável do Rio de Janeiro, esse processo ocorreu em capitais como Recife, Salvador, Porto Alegre, Belém e Manaus. Leia Mais

Palavras que resistem: censura e promoção literária na ditatura de Getúlio Vargas | Gabriela de Lima Grecco

A Secretaria de Ordem Pública do Rio de Janeiro, em setembro de 2019, por ordem do então prefeito Marcelo Crivella, realizou uma operação na Bienal do Livro com o objetivo de encontrar “material impróprio para crianças e adolescentes”. O livro em questão, uma HQ voltada ao público infantojuvenil, tinha uma cena de beijo gay. Foi a primeira vez que uma ação desse tipo aconteceu no evento, entretanto não foi a primeira vez que a literatura de diferentes estilos foi alvo de censura. Pinochet, no Chile, mandou queimar livros considerados comunistas, e a ditadura civil-militar no Brasil apreendia livros com temática política. Sendo assim, governos autoritários, ou não, utilizam da instituição do Estado para reprimir e censurar a cultura, e Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, não foi diferente. É essa temática que a historiadora e letrista Gabriela Grecco apresenta em seu livro Palavras que resistem: censura e promoção literária na ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).

Diversas pesquisas sobre o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e a censura realizada durante o Estado Novo estão presentes na historiografia sobre a temática, entretanto a obra em análise vai além disso. Buscando a origem da censura no Brasil, a autora apresenta no seu primeiro capítulo, Censuras antes do Estado Novo, a estruturação da prática ainda no período colonial, assim como salienta que foi entre o período colonial e a emancipação política do Brasil que a liberdade de imprensa surgiu. Contudo, a autora não apresenta somente o período colonial como importante para entender a complexidade da participação da imprensa brasileira. Sob essa perspectiva, passando pelo período Imperial, as Regências, a República, a belle époque, a inauguração da Academia Brasileira de Letras, a política do café com leite, a Assembleia Constituinte de 1933, entre outros momentos significativos para a temática, ela demonstra com uma detalhada pesquisa que a relação entre o Estado e os escritos sempre foi constante. Leia Mais

A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil | Lilia Moritz Shwarcz e Heloisa Murgel Starling

Difícil imaginar uma época mais propícia do que a que estamos vivendo para o lançamento de um livro sobre uma pandemia. Com A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil (2020), Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling retomam a parceria que produziu Brasil: uma biografia (2015), e apresentam um oportuno estudo sobre um acontecimento de fundamental relevância que evidenciou a profunda desigualdade social brasileira; o negacionismo por parte das autoridades e a falta de organização do Estado no combate à doença. Como se pode notar, são muitos os paralelos que se podem traçar com a tragédia em curso provocada pela covid-19 no Brasil, e obviamente isso não passou desapercebido pelas autoras. Fica claro, portanto, que são recorrentes as vezes em que as duras lições que a História brasileira nos ensina não são aproveitadas. Leia Mais

Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo | Roberto da Silva (R)

A obra Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo foi organizada por Roberto da Silva e publicada, em 2018, pela Editora Giostri. Resulta de um processo coletivo de produção de conhecimento, que se iniciou com uma versão experimental de 2017, com tiragem limitada aos profissionais envolvidos – cujo contexto se relaciona a processo formativo desencadeado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) em parceria com a Diretoria Regional de Ensino Centro-Oeste da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.

A obra pauta-se no desafio de elaborar uma proposta metodológica destinada à educação nos espaços de privação de liberdade. É publicada após experimentação em salas de aula de unidades prisionais e de centros de internação de adolescentes em medida socioeducativa, resultando de uma experiência que envolveu cerca de cem profissionais da educação em doze meses de trabalho.

Esse processo iniciou-se no âmbito de um curso de aperfeiçoamento voltado a professores da rede estadual que atuavam em unidades do entorno do Campus Butantã, na capital paulista, onde se situa a FE-USP[1]. Destinou-se a oferecer conteúdos atualizados, bem como promover trocas de experiências e atividades em grupo voltadas à autoria coletiva, que refletissem cada componente teórico e suas didáticas, desdobrando-se em matrizes de aprendizagem.

O autor organizador da obra, cuja trajetória pessoal e profissional é diretamente relacionada à privação de liberdade, com vasta experiência, é doutor em Educação e lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação de Liberdade na FE-USP. Presidiu o referido curso, onde agregou pesquisadores e profissionais da educação básica e superior.

O título do livro, por si, levanta questões que se relacionam a inquietações decorrentes da prática docente e da pesquisa na área, sobretudo a partir da publicação, em 2010, das Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade pelo Conselho Nacional de Educação. Apesar do avanço normativo e da pretensa indução de políticas públicas, há limitantes estruturais e operacionais nesses espaços que incidem na prática educativa, razão pela qual há um desafio permanente que paira sobre o trabalho educacional. Diante disso, a obra aponta caminhos possíveis, com metodologias que incluem formas de se organizar e articular os componentes curriculares nas áreas do conhecimento, considerando-se as experiências prévias dos estudantes, bem como as peculiaridades do contexto.

O livro tem três partes. A primeira contextualiza a proposta pedagógica para docência em regimes de privação de liberdade, o perfil de escolaridade de jovens e adultos em privação de liberdade, além da fundamentação legal sobre o tema. A segunda parte reflete os marcos teóricos e metodológicos da proposta, pautados no universo, na natureza e no ser humano como matrizes de aprendizagem. A partir disso, são elaborados esquemas de análise e interpretação do ser humano e de mapas conceituais por área, em que os componentes teóricos e didáticos são refletidos, culminando nos processos de avaliação de competências e habilidades. Por fim, a terceira parte descreve o processo de criação coletiva, que em uma polifonia de vozes se encerra em relatos de experiências dos profissionais da educação participantes do curso e da elaboração da proposta.

Os fundamentos da proposta pedagógica remontam as categorias ontológicas e biológicas da aprendizagem humana, cuja “didática no cárcere” é pensada em torno da natureza. Referencia-se nos marcos da Pedagogia Social, cuja compreensão do processo educacional, da construção do conhecimento e da educação ao longo da vida é mais relevante que dominar códigos ou técnicas.

Considerando o contexto da privação de liberdade e o perfil das pessoas encarceradas – majoritariamente jovem, negro e com escolaridade básica incompleta – argumenta-se que é possível contribuir para o desenvolvimento das habilidades e competências sociais e socioemocionais, a partir da associação da dinâmica da vida natural e humana. Opta-se por uma abordagem que se traduza em múltiplas alfabetizações e que possibilite ao sujeito compreender a dinâmica da vida em suas variadas manifestações, isto é, exploram-se as leis naturais, as formas de organização e complexificação das plantas, animais e da sociedade. Entende-se que, assim, o sujeito poderá compreender o sentido e a singularidade da vida humana no contexto do mundo em que vive.

Portanto, a proposta parte da própria origem da vida, em que o humano se insere e decorre, para construir as bases matriciais de aprendizagem e fundamentar as competências e habilidades que comporão escolhas metodológicas suficientemente flexíveis, transversais e contextualizadas, dadas as peculiaridades da educação no espaço prisional – por exemplo, a rotatividade de alunos e as restrições de uso de alguns materiais.

A construção das matrizes de aprendizagem, por área do conhecimento, tem início em pressupostos do processo de compreensão do mundo natural. Por exemplo: a ideia de reinos na natureza e do átomo como partícula básica para a organização das moléculas, das quais originam todos os seres e suas diferenciações. São utilizadas palavras-chave das ciências da natureza, das quais decorrem conceitos e estruturas, para delinear as matrizes e se chegar às ciências humanas e sociais, matemática, linguagens e suas tecnologias. Isso explicaria o subtítulo da obra, “entender a natureza para entender o ser humano e seu mundo”.

Ao discutir possibilidades epistemológicas, a obra sinaliza que é possível inferir formas de pensar e agir e apresenta um quadro elucidativo dos esquemas de análise e interpretação do ser humano, composto por forma de pensar (exemplo: marxista), categorias de análise (explorador/explorado), gradiente de comportamentos e atitudes (contestação) e formas de solução (revolução).

Ainda, discutem-se componentes avaliativos que valorizam habilidades e competências sociais, com destaque para os saberes construídos no mundo do trabalho e da vida. Busca-se exaltar as trajetórias singulares de vida e seus percursos (biológicos, cognitivos e sociais), em estreita consonância com a perspectiva da educação ao longo da vida, que implica uma visão ampliada de aprendizagens nos diversos espaços e tempos – escolares e não escolares.

Quanto às contribuições do livro para a área, é preciso considerar que, após a garantia do direito à educação das pessoas em privação de liberdade no Brasil, novas questões emergiram, com ênfase em práticas e pesquisas direcionadas à implementação de políticas pelo Estado e à prática docente. Verifica-se que a maior parte das publicações relaciona-se ao campo das políticas públicas, dos estudos de caso, das experiências das redes de ensino e do estudo de representações de estudantes, docentes e gestores[2]. Apenas mais recentemente, fundamentos epistemológicos e metodológicos têm se apresentado, representando ainda um campo fronteiriço e em crescente discussão na educação[3]. Assim, na ausência de materiais didáticos e de pesquisas sobre metodologias de ensino voltadas aos contextos de privação de liberdade, a prática docente segue, em geral, caminhos entre a adaptação de materiais disponíveis e o planejamento individual.

Demonstra-se, na obra, um esforço em produzir um material que reúna um conhecimento relevante do ponto de vista teórico-metodológico – enfaticamente para e por docentes. Fica evidente o engajamento em agregar diferentes atores ligados à área, com destaque para a construção da obra no âmbito de um curso que indica a salutar complementaridade entre educação básica e superior e a imprescindível polifonia de vozes na educação.

Destarte, sua relevância assenta-se não apenas na apresentação de uma proposta pedagógica específica, mas no processo de elaboração coletiva de metodologias e abordagens avaliativas que levem em conta os sujeitos e o contexto do ensino. Em particular, vale destacar que os esquemas apresentados no livro para a construção de mapas conceituais das áreas do conhecimento, com indicação gráfica de temas e questões pedagógicas de cada área, representam um contributo valoroso à comunicação, à síntese e à reflexão conceitual no âmbito da organização didática.

Notas

1. Trata-se do curso Docência em Regimes de Privação de Liberdade, ofertado em 2017. Disponível em: https://uspdigital.usp.br/apolo/apoObterCurso?cod_curso=480200003&cod_edicao=16001&numseqofeedi=1. Acesso em: 15 mar. 2020.

2. Publicações na área da Educação, após vigência das Diretrizes Nacionais, focam nos desafios e nas perspectivas para a política de educação em prisões. Nesse sentido, os dossiês temáticos publicados pela Revista Em Aberto, do INEP “Educação em Prisões”, em 2012 (disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/485895/Educa%C3%A7%C3%A3o+em+pris%C3%B5es/8b4d6cb0-12db-4ad8-87fc-47e7c52a6153?version=1.3, acesso em: 12 mar. 2020), pela revista Educação e Realidade, da UFRGS, em 2013 (disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/issue/view/2030, acesso em: 20 mar. 2020) e pela revista Cadernos Cedes da UNICAMP “Educação, Escolarização e Trabalho em prisões” em 2016 (disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32622016000100001, acesso em: 02 abr. 2019).

3. Nesse sentido, o artigo “Fundamentos epistemológicos para uma EJA prisional no Brasil”, de Roberto da Silva, na Revista Brasileira de Execução Penal, v. 1, n. 1, 2020. Disponível em: https://rbepdepen.mj.gov.br/index.php/RBEP/article/view/49. Acesso em: 30 abr. 2020.

Referências

SILVA, R. (org.). Didática no cárcere: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo. São Paulo: Giostri, 2017. [ Links ]

SILVA, R. (org.). Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo. São Paulo: Giostri , 2018. [ Links ]

Carolina Bessa Ferreira de Oliveira – Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). E-mail: [email protected]


SILVA, Roberto da. Didática no cárcere II: entender a natureza para entender o ser humano e o seu mundo. São Paulo: Giostri, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Carolina Bessa Ferreira de. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v.26, maio. 2021. Acessar publicação original [IF].

Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil | Marcelo Badaró Mattos

Marcelo Badaró Mattos é professor titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), pelo qual se doutorou. Trata-se de um dos mais importantes historiadores marxistas do país na atualidade, devido principalmente as suas contribuições à História social do trabalho, como o clássico Novos e Velhos Sindicalismos no Rio de Janeiro (1955/1988).2 Não obstante, tem trabalhos relevantes para o entendimento da teoria marxista e da História do tempo presente, campo ao qual pertence o livro Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, publicado em 2020. Nesse mais recente estudo, o pesquisador tem como objetivo analisar fenômeno político da chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República, tentando entender o caráter de seu governo e o seu papel na dinâmica da luta de classes no Brasil de hoje. O seu método consiste na busca de comparações entre o quadro atual e os fascismos históricos, o que o levou também a refletir sobre a nossa trajetória histórica desde o século XX, para o melhor entendimento do processo político brasileiro atual.

Antes de se debruçar especificamente sobre o governo Bolsonaro, autor inicia o primeiro capítulo, intitulado “Fascismos”, com as reflexões realizadas pelos militantes revolucionários que viveram os anos 1920 e 1930 e, portanto, estavam comprometidos com o combate a esses fenômenos políticos. Assim, mostra que Leon Trotsky, Clara Zetkin e Antonio Gramsci apresentaram análises concordantes quanto à existência: de um contexto marcado pela crise política (na dimensão da dominação de classe) e econômica (em nível internacional) que favoreceu a eclosão de tais movimentos; de uma base social de massas composta pela pequena burguesia e por assalariados médios, que contou ainda com a presença de setores do proletariado, apesar de os regimes políticos implantados beneficiarem o grande capital; de um sentido de classe visto também na violência e no terror exercidos contra as organizações dos trabalhadores; de um recuo dessas entidades diante das possibilidades objetivas de revolução, o que estimulou a adesão da pequena burguesia à ação contrarrevolucionária burguesa; e de uma complacência de setores do Estado precedente com os fascistas, notadamente, a polícia e o judiciário. De forma geral, também são coincidentes as recomendações no sentido da adoção de uma linha política de frente única para enfrentar essa ameaça aos operários (p. 12-41). Leia Mais

História do marxismo no Brasil | História & Luta de Classes | 2021

A corrente de ação e pensamento tributária à longa trajetória política e intelectual de Karl Marx e Friedrich Engels, desenvolvida por uma miríade de revolucionárias e revolucionários sob a sua inspiração, incorporada em diferentes organizações e reverberando em teorizações nos mais distintos campos, tem como uma de suas marcas a ampla difusão global. A circulação do marxismo acompanhou o próprio espraiar da sociedade burguesa: ao invadir todos os espaços do globo, não apenas a burguesia cria um mundo à sua imagem e semelhança, mas também desenvolve “um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E isso se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum”1. Neste sentido, não é de estranhar que a ampliação das comunicações e migrações para a América tenha sido acompanhada de uma série de ideias radicais críticas que, enraizando-se no solo local, inspiraram a classe trabalhadora a não apenas pensar a sua inserção e situação em um mundo cada vez mais integrado pelo capital, mas também propor como superá-las.

Objeto assim longevo, a história do marxismo no Brasil não é tema novo na historiografia nacional. Esforços para a sua elaboração remontam às iniciativas de militantes diretamente envolvidos na formação da própria tradição marxista brasileira. É o caso de Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB em 1922, que décadas após, já um experimentado quadro, narraria a trajetória da imprensa operária nos primeiros anos do século2. Discutir imprensa política é discutir esforço de organização a partir da circulação de ideias e da iniciativa de agitação e propaganda. É evidenciar como se trata de dar carne a um corpo de ideias, ou seja, tratar da própria constituição de um marxismo no Brasil e brasileiro. Leia Mais

Formulário médico. Manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba | Heolisa Meireles Gesteira, João Eurípedes Franklin Leal e Maria Claudia Santiago

A interpretação e a materialidade de manuscritos da Época Moderna, conforme a preposição “da” atrás empregada, procura ressaltar que os manuscritos a serem analisados são provenientes do período situado, grosso modo, entre os séculos XVI e XVIII. Não raro esses textos chegam ao presente experimentando autorias diversas, além de intervenções de copistas, proprietários, restauradores e leitores. Portanto, os manuscritos não deveriam ser percebidos hoje como se estivessem simplesmente “na” Época Moderna – eis aí a sutil diferença. A perspectiva vincula-se ao tema da materialidade social, uma apropriação do trabalho de Donald McKenzie sobre a bibliografia entendida como sociologia dos textos (MCKENZIE, 2018). Os textos, enquanto tecidos com textura (conforme a origem latina das palavras), sejam manuscritos ou impressos, possuem uma materialidade a ser estudada. Mas sua matéria é também social e histórica, a ser considerada na análise de um artefato proveniente de outro tempo, que passa por metamorfoses até chegar ao momento atual. Decorre daí a importância de se abordar nas pesquisas o percurso dos documentos – manuscritos ou impressos – em meio a arquivos particulares ou públicos. É fundamental também lidar com as diferentes leituras, por vezes expressas no próprio corpus documental, do objeto, mediante comentários, anotações nas margens etc., ou quando os manuscritos são transcritos, editados e impressos em forma parcial ou integral e passam a ser comentados por leitores vários, assumindo divulgação mais ampla por meio de publicações. Leia Mais

Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

O livro Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia foi lançado em agosto de 2019 e preenche uma importante lacuna da historiografia a respeito das greves promovidas por escravos ou libertos. Como homens e mulheres escravizados viveram o cotidiano da escravidão urbana? O autor, João José Reis (UFBA), especialista em contar como os escravos se revoltavam, nos oferece uma riqueza de detalhes sobre a vida desses homens que resistiram a uma maior exploração dos seus corpos numa grande cidade escrava. O final da história está no título do livro e representa o nome dado a esses homens que ousaram contra a municipalidade soteropolitana: ganhadores, pois também venceram uma batalha que durou 10 dias e que paralisou a cidade de Salvador. Além deles, com esse livro ganharam todos os interessados em discutir a escravidão, o trabalho, a liberdade e a cidadania negra no oitocentos. Leia Mais

Relações militares Brasil-EUA 1939/1943 | Giovanni Latfalla

É difícil imaginar, 75 anos após a vitória aliada na Europa, a vulnerabilidade militar dos Estados Unidos às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial. Entre os anos de 1935 e 1939, por exemplo, o governo americano investiu somente 1,5 bilhão de dólares em suas forças armadas, enquanto o Reino Unido, a União Soviética e a Alemanha investiram, respectivamente, 2,5, 8 e 12 bilhões. Mesmo com o sinal de alerta disparado com a Crise dos Sudetos, em 1938, o Tio Sam demorou a iniciar seus preparativos para um novo conflito mundial iminente (LATFALLA, 2019).

Quando a administração federal do então presidente Franklin Delano Roosevelt (1882–1945) passou a considerar seriamente os Estados Unidos no cenário de uma nova guerra mundial, contudo, a história desse país, assim como das nações latino- -americanas, em especial o Brasil, não foi mais a mesma. Leia Mais

Power in the Village: Social Networks/ Honor and Justice among Immigrant Families from Italy to Brazil | Maíra I. Vendrame

O livro de Maíra Vendrame, agora publicado em inglês, é uma versão reduzida de sua tese de doutoramento em história defendida em 2013 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O estudo tem como fio condutor a trajetória do padre Antônio Sório, imigrante italiano que se instalou no núcleo colonial de Silveira Martins, Rio Grande do Sul, na década de 1880. Quase vinte anos depois, em 1900, o sacerdote faleceu em decorrência de um grave ferimento no “baixo ventre”. A “morte trágica” gerou várias versões explicativas na comunidade, as quais foram utilizadas por Vendrame como motivação para adentrar no universo camponês e investigar os costumes do grupo. Desse modo, a morte de Sório aparece como pretexto para pesquisar temas mais amplos, como a emigração da Itália, questões de honra familiar e práticas de justiça camponesas que podiam ou não se relacionar com a justiça do Estado.

As versões sobre a morte do padre são apresentadas já no primeiro capítulo, intitulado Versions of a tragedy. Na noite em que Sório ficou ferido, ele estava em uma das ruas do núcleo colonial, a cavalo, provavelmente retornando para casa. As explicações que circularam entre a população de Silveira Martins defendiam que o sacerdote teria sofrido uma queda do cavalo ou sido vítima de uma emboscada com motivações políticas ou vingativas. Aqueles que afirmavam que havia ocorrido um crime político, sustentavam como mandante a maçonaria, pois essa se encontrava presente na comunidade e travava um conflito de ideias com Sório, defensor e representante da Igreja Católica. Por outro lado, as pessoas que acreditavam em um crime de vingança, declaravam que o pároco havia desonrado uma jovem do lugar. Como não foi aberto um processo judicial para investigar o ocorrido, que talvez pudesse apontar para uma única explicação, os diferentes relatos registrados em entrevistas orais, publicações periódicas e de padres e imigrantes locais, oferecem um horizonte de possibilidades. Leia Mais

Samba, caneta e pandeiro: cultura e cidadania no sul do Brasil | Karla Rascke Leandro

Construída enquanto ilha turística de Santa Catarina, um pedacinho da Europa e lar de uma açoraneidade, Florianópolis, é desvelada historicamente em Samba, caneta e pandeiro: cultura e cidadania no sul do Brasil através de fragmentos e marcas da presença de africanos e seus descentes. Suas experiências cotidianas, formações associativas, projetos de cidadania e manutenção cultural, são apreendidas frente a uma sociedade racializada e marcada pelos estigmas da escravidão, findada com o regime republicano, pautado nos ideais de progresso e civilização.

Em uma narrativa a contrapelo, menos do ponto de vista dos vencedores e mais pelo lócus das lutas, embates e disputas em torno de um cotidiano citadino, a historiadora Karla Leandro Rascke empreendeu esforços notórios numa pesquisa sobre agremiações organizadas por afrodescendentes na capital catarinente, entre os anos 1920 e 1950. O livro é oriundo da sua tese de doutorado que buscou investigar como diferentes associações de origem africana (clubes recreativos; blocos, cordões, ranchos e escolas de samba; grupos de cacumbi; irmandades religiosas; clubes de futebol; comunidades negras) empreenderam ações e articulações de solidariedade e sociabilidades. Leia Mais

História e visualidade no Brasil | Projeto História | 2021

O número 71 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC/SP é dedicado as complexas relações entre a História e as visualidades no Brasil em diferentes períodos, regiões, grupos étnicos, registros e linguagens. Seguindo Michael Baxandall, interessou-nos uma história “historiadora” da arte, capaz de contemplar o contexto material de cada época, assim como as condições mentais, estéticas e culturais, atentos aos meios institucionais de produção e recepção das artes, em que as interfaces com o Estado e com públicos diversos fossem contemplados. As imagens e as obras de arte possibilitam um caminho de reflexão próprio que contribui para o estabelecimento de narrativas históricas plurais e diversas.

Abrimos o dossiê com o artigo de Elaine Dias e Natália Cristina de Aquino Gomes, intitulado O ateliê como autorretrato do artista: afirmação e tragédia nas artes e nos romances literários brasileiros, analisa as múltiplas facetas da representação do artista no ateliê em diferentes campos, como a arte, a literatura internacional e, ainda, a partir de exemplos brasileiros. Neste estudo, as autoras buscam explorar as intenções e diferenças que se podem verificar na composição dos artistas de suas imagens, mostrando como o local de trabalho dos artistas é também uma maneira de entender seu processo de criativo e modo como o local ocupado pelo artista na divisão social do trabalho é estabelecido. Leia Mais

Atlânticas: encontros entre mulheres africanas e da diáspora negra brasileira | Oficina do historiador | 2021

Oh paz infinita pode fazer elos de ligação numa história fragmentada.

África e América e novamente Europa e Ásia.

Angola, Jagas e os povos de Benin de onde vem minha mãe. Eu sou Atlântica”.

(Beatriz Nascimento)4

Este dossiê parte da referência e reverência à historiadora negra brasileira Maria Beatriz Nascimento (1942–1995). A intelectualidade produzida por Beatriz é ponto de partida para as confluências e conexões buscadas neste dossiê com o continente africano, em cujas terras a historiadora se fez presente corporal e mentalmente e dela produziu uma de suas obras referenciais, o filme Ôrí. Com texto e narração de Beatriz e direção de Raquel Gerber, Ôrí documenta os movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, entre esses, organizações carnavalescas e bailes black, passando pela relação entre Brasil e África, tendo o quilombo como ideia central e apresentando, dentre seus fios condutores, parte da história pessoal de Beatriz, com narrações da mesma (RATTS, 2007, p. 28). É de fundamental importância que, no contexto de uma revista focada no conhecimento científico em História, coloquemos em primeiro plano uma grande teórica do pensamento negro brasileiro e diaspórico, cuja produção foi invisibilizada pelo racismo e pela branquitude acadêmica colonial. Que os textos de além-mares e terras africanas que se encontrarão com os textos da diáspora negra sejam abraçados pelas negras ideias de Beatriz. Façamos através e a partir de nós, cujo pensamento é prática e teoria, Atlânticas. Leia Mais

Migrações Contemporâneas: Reflexões e práticas profissionais | José Sterza Justo e Mary Yoko Okamoto

Movimentos coletivos e deslocamentos individuais voluntários e forçados fazem parte da constituição da humanidade, entretanto, a intensificação do ir e vir no mundo atual tem se ampliado dado as condições sociais possibilitadas pela globalização e pelo avanço tecnológico dos meios de transporte e comunicação. Compreender essas dinâmicas, assim como os fluxos e refluxos, além das mobilidades geográficas e psicossociais, os trânsitos e as formações identitárias, são os objetivos centrais da obra Migrações contemporâneas: reflexões e práticas profissionais organizada pelos psicólogos José Justo e Mary Okamoto. O caráter interdisciplinar desse empreendimento, entretanto, justifica-se pela variedade de temas, enfoques, métodos e profissionais que fazem desta obra que veio à baila em 2019.

O primeiro capítulo, batizado Migrações, multiculturalismo e identidades: revisitando conceitos, produzido pelos psicólogos Marcelo Naputano e José Justo busca a partir de uma abordagem conceitual explicar as transformações e abrangências das concepções de cultura, fronteira e identidade. Leia Mais

Histórias da pobreza no Brasil | Fabiano Quadros Rückert, Jonathan Fachini da Silva, José Carlos da Silva Cardoso e Tiago da Silva Cesar

A deflagração do estado de calamidade pública causado pela pandemia do Covid-19 trouxe à tona a reflexão sobre o complexo e multidimensional fenômeno da pobreza em países como o Brasil. A pandemia emergiu a necessidade de o Estado brasileiro intervir com um programa de assistência social provisório (medida contrariada e segurada até a último fôlego pelo presente Governo) de modo a conter o impacto do desemprego e da retração econômica gerada pela quarentena. Fato curioso é que este cenário instável forçosamente gerou um efeito colateral positivo, embora efêmero: a redução da taxa de extrema pobreza com a distribuição das parcelas do auxílio emergencial, a mais relevante diminuição ocorrida em quatro décadas conforme dados recentes da Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2020). Por outro lado, o término deste auxílio emergencial, previsto para o final deste ano, já indica um retorno absurdo do fenômeno: cerca de 15 milhões de brasileiros serão devolvidos para a miséria, consequentemente devolvendo ao Brasil a trágica alcunha de “epicentro emergente da fome extrema”.

Neste cenário distópico, a leitura do livro “Histórias da Pobreza no Brasil” (Ed. FURG, 2019), volume 6 da Coleção Direito e Justiça Social, se torna praticamente obrigatória. Organizado pelos professores e pesquisadores Fabiano Quadros Rückert, Jonathan Fachini da Silva, José Carlos da Silva Cardozo e Tiago da Silva Cesar, a proposta da publicação foi compor uma obra que contemplasse diferentes escalas de análise sobre a pobreza associadas as particularidades históricas e socioeconômicas desde o Norte ao Sul do Brasil. Leia Mais

Caminhos que levam à cidade. O protagonismo do IAB na politica urbana | Vera França e Leite

Recém-lançado em janeiro de 2021, por ocasião das Comemorações do Centenário do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o livro Caminhos que levam à cidade – o protagonismo do IAB na política urbana brasileira, de autoria da arquiteta urbanista Vera França e Leite, examina com profundidade a trajetória e o empenho do Instituto, dirigido a proporcionar um ambiente urbano seguro, equilibrado, saudável e receptivo aos seus cidadãos e cidadãs.

Baseado originalmente em sua tese de doutoramento, os cinco capítulos e subcapítulos que compõem o livro permitem ao leitor percorrer um largo período da história do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, de 1953 a 1988, mediante uma linguagem de fácil assimilação e compreensão, visivelmente com o propósito de atingir um público que não se limita unicamente à categoria profissional de arquitetos e urbanistas. Com o mesmo objetivo, Vera desenvolve sua narrativa por um fio condutor, comprovando-a em documentos originais do acervo de IAB e outras fontes, onde destaca particularidades e, evidencia a continua persistência do Instituto em se fazer ouvir. Se em alguns momentos, particularmente após o golpe de 1964, essa persistência, pautada por uma atitude permanentemente crítica, porém propositiva, conviveu com difíceis e intrincadas negociações, mais das vezes improdutivas, por outro lado, o ideário construído pelo Instituto, notadamente a partir do III Congresso Brasileiro de Arquitetos – Belo Horizonte, 1953 –, possibilitou que os conceitos e os novos paradigmas formulados, alcançassem o êxito pretendido, no médio e longo prazo. Leia Mais

Zika no Brasil: história recente de uma epidemia | Ilana Löwy

O livro de Ilana Löwy, lançado em 2019 pela coleção Temas em Saúde da Editora Fiocruz, faz um balanço das principais questões de saúde pública envolvendo a epidemia de zika no Brasil a partir de 2015 e a sua relação com os casos de microcefalia. Historiadora das ciências biomédicas e atualmente pesquisadora do Instituto Nacional Científico e de Pesquisa Médica da França (Inserm), Löwy apresenta diferentes ângulos científico-políticos dessa epidemia de forma didática, articulando uma questão fundamental: o que de fato conhecemos sobre a trajetória do vírus da zika no Brasil?

A autora articula as diferentes dimensões em um campo temático com o qual já possui bastante familiaridade. Exemplo disso são seus trabalhos anteriores sobre as práticas científicas e de saúde pública em relação à febre amarela – doença que também é transmitida pelo Aedes aegypti –, (in)visibilidades dos objetos das ciências biomédicas, diagnósticos e direito reprodutivo. Essas abordagens são mobilizadas com naturalidade e fluidez na sua proposta de uma história “recente”, como está no título, ou “do presente” e seus desafios ( Löwy, 2019 , p.13). Leia Mais

José Reis: caixeiro-viajante da ciência | Luisa Massarani, Mariana Burlamaqui e Juliana Passos

Tratar sobre a história da ciência e divulgação científica no Brasil perpassa por importantes colaboradores, entre eles, sem dúvida, José Reis (1907-2002). Com uma atuação ampla e longeva no cenário científico brasileiro, aposentou-se como bacteriologista do Instituo Biológico, foi fundador e secretário-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), integrante do Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Ciências (Ibecc), criador e editor do suplemento “No Mundo da Ciência” e diretor de redação da Folha de S.Paulo , divulgador da ciência em diversos veículos, como nas revistas Chácaras e Quintais, Ciência e Cultura e Anhembi , e no programa “Marcha da Ciência”, da Rádio Excelsior, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), além de um incansável ativista e incentivador pela melhoria do ensino de ciência nas escolas e da formação de futuros cientistas, promovendo o concurso “Cientistas de Amanhã” e feiras e clubes de ciências pelo país. É sobre essa trajetória que os livros José Reis: reflexões sobre a divulgação científica , de Luisa Massarani e Eliane Monteiro de Santana Dias, e José Reis: caixeiro-viajante da ciência , de Luisa Massarani, Mariana Burlamaqui e Juliana Passos, são dedicados.

Em comum, as duas obras são frutos do projeto Acervo José Reis da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), criado para promover a recuperação e preservação de todo acervo pessoal doado pela família Reis à Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz, em 2018, e para fomentar estudos sobre a história da ciência brasileira e da divulgação científica no país. As diferenças em cada obra encontram-se, sobretudo, pelo olhar direcionado pelas autoras ao conteúdo do acervo. Leia Mais

Ditadura/ anistia e transição política no Brasil (1964-1979) | Renato Lemos

Em tempos em que proliferam disputas narrativas e versões negacionistas a respeito da ditadura militar brasileira, a publicação do livro Ditadura, anistia e transição política no Brasil (1964-1979), do historiador Renato Lemos, chega em boa hora. Enquanto parte da população brasileira e políticos têm feito apologia do regime ditatorial, o autor expõe no livro o projeto daqueles que não agem assim por desconhecimento, mas sim por comprometimento com a face mais brutal da dominação burguesa no Brasil, como diz o professor Marcelo Badaró (UFF) no prefácio do livro.

Renato Lemos é professor titular de História do Brasil na Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordena o Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política (LEMP/UFRJ)1. O historiador marxista defende o uso da nomenclatura “ditadura empresarial-militar” para designar o regime de 1964-1985, no lugar de “ditadura militar”, por entender que esta generaliza os militares, ao mesmo tempo em que oculta os vínculos de classe das lideranças civis beneficiadas pelo golpe. Leia Mais

Histórias e conversas de mulher | Mary Del Priore

A historiografia contemporânea tem focado cada vez mais nos estudos acerca da história das mulheres, principalmente pondo-as como sujeito histórico, consciente ou não de sua condição de submissão e passividade ao longo da história, e que hoje já se percebe transitando espaços antes ocupados pelos homens. Nesta seara, a historiadora Mary Del Priore tem se debruçado em arquivos diversos, traçando assim a história do Brasil desde o período colonial aos nossos dias, com foco em questões tidas como tabu, como é a questão da sexualidade e do erotismo; as mulheres na sociedade; enfatizando os acontecimentos com riqueza de detalhes, prendendo assim seu leitor até o final.

A autora é referência em história das mulheres, tendo publicado os clássicos: História das Mulheres no Brasil, Ao Sul do Corpo, Corpo a Corpo com a Mulher, Histórias Íntimas, Histórias e Conversas de Mulher e contribuiu na organização de outras obras sobre a História do Brasil. Leia Mais

Ensino de História na Amazônia: práticas pedagógicas como reflexão para a pesquisa | Mandurarisawa | 2020

O desafio de exercer a carreira de magistério no Brasil não tem sido das mais fáceis, principalmente depois da ascensão da extrema direita no país e no mundo. Este cenário político possibilitou o fortalecimento de ideias de cunho neofascista que trouxe no seu bojo o fortalecimento de racismo, xenofobia, machismo, assim como o negacionismo científico. Este último com intensa repercussão entre os professores de História do ensino básico à pós-graduação. No ensino básico, a disputa de narrativas tende a ser mais prejudicial devido a interferências mais direta no mercado editorial e subtração de temáticas importantes. Os representantes políticos adeptos deste ideário chegaram ao poder em 2018 pelo voto popular.

Com a sociedade convulsionada, temas consensuais nas pesquisas históricas como escravidão negra, golpe militar no Brasil, gênero, entre outros, passaram a ser contestados não a luz de novas pesquisas e sim por atos de vontade de adeptos do novo grupo de poder numa conjuntura política específica cujos acontecimentos e explicações ainda estão se desenrolando. Respostas simplistas a questões complexas fazem parte do rol de explicações por parte dos ideólogos: “a escravidão no Brasil era melhor, pois os negros já eram escravizados em seus antigos territórios”; “em 1964, no Brasil, assumiu o poder os militares através de um regime militar constitucional” e assim por diante. Leia Mais

Celso Furtado, 1920- 2020: diálogos e interdisciplinaridade | História Econômica & História de Empresas | 2021

Próximo de completar seu jubileu de prata, a presente edição da revista História Econômica & História de Empresas deve ser um motivo de dupla celebração para os sócios da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica – ABPHE.

Em primeiro lugar, em 2021 a revista publica seu primeiro dossiê. Com a permanência das outras duas edições anuais no formato original, a História Econômica & História de Empresas passará a contar com três edições, ampliando o número de artigos publicados anualmente, atendendo assim novos parâmetros de indexação. Mas, ainda mais importante, com o novo número, a ABPHE também poderá oferecer números temáticos para a nossa comunidade de historiadores econômicos, voltados para a discussão de tradicionais debates historiográficos, para a disseminação de pesquisas na fronteira de nosso campo ou para a reflexão de temas e problemas que estão na ordem do dia. Acreditamos que essa iniciativa deve ampliar o alcance e visibilidade da revista da ABPHE, que já é o principal periódico de nossa área no país. Agradecemos, assim, aos membros da equipe editorial por essa iniciativa e, especialmente, ao editor Ivan Colangelo Salomão, principal entusiasta deste importante projeto para a nossa revista. Leia Mais

Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil” | Alexandre Macchione

A pandemia que assolou o mundo em 2020 suscitou reflexões acerca dos rumos tomados pela humanidade no último século e das perspectivas de futuro. O ano também foi marcado pelo centenário do nascimento de Celso Furtado, efeméride que flamejou debates sobre desenvolvimento, desigualdade e outras problemáticas socioeconômicas. Foi nesse contexto que Alexandre Macchione Saes e Alexandre de Freitas Barbosa organizaram o livro Celso Furtado e os 60 anos de “Formação Econômica do Brasil”, com relevantes revisitações à magnum opus publicada em 1959, “uma obra que ainda produz preciosas sugestões sobre um projeto social e econômico de Brasil”, segundo os organizadores.

A bem da verdade, o livro em destaque é fruto do evento realizado em 2019 por ocasião dos 60 anos de Formação Econômica do Brasil – organizado pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) e pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ambos da Universidade de São Paulo (USP) –, que foi sediado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Serviço Social do Comércio (SESC). Seus capítulos reúnem parte significativa daquilo que se discutiu com 22 especialistas em nove mesas temáticas, cujos eixos orbitaram na importância histórica da obra consagrada e na persistência de sua proposta inovadora e única para a análise dos problemas brasileiros. Leia Mais

A casaca do Arlequim | Heliana Angotti-Salgueiro

É uma honra e um prazer ter sido convidado para falar hoje por ocasião da publicação da edição brasileira do grande livro de Heliana Angotti-Salgueiro, A casaca do Arlequim. É difícil acreditar que já se passaram quase vinte e quatro anos desde que o livro de Heliana foi publicado na sua versão francesa (1). Vinte e quatro anos é o tempo de uma geração. É obviamente um desafio formidável para uma obra histórica, que tem necessariamente a marca das teorias, obras e debates da época em que foi escrita, reaparecer em um contexto completamente diferente. No longo prefácio que escreveu para a edição brasileira do seu livro, Heliana Angotti-Salgueiro recorda com maestria e profundidade o contexto em que o livro A casaca do Arlequim foi elaborado. Este contexto é antes de tudo o de uma instituição, a École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde brilhantes e diversas personalidades – de Hubert Damisch a Louis Marin e de Marcel Roncayolo a Bernard Lepetit – se cruzavam. Leia Mais

Portugueses no Rio de Janeiro: negócios/trajetórias e cenografias urbanas | Lená Medeiros de Menezes

É certo que a história da imigração no Brasil passa pelo porto do Rio de Janeiro. Tanto na época da Grande Imigração quanto do Pós-Segunda Guerra Mundial. Assim, o Rio de Janeiro foi o palco da chegada de milhares de imigrantes de várias partes do mundo a partir da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX. Esse processo mudou o cotidiano carioca e definiu uma época da cidade, em que o Rio de Janeiro se caracterizou como território de convivência de múltiplas identidades nacionais e étnicas. Em grande medida, pode-se dizer, que essa presença dos imigrantes reforçou a vocação cosmopolita da cidade. Para os habitantes mais velhos do Rio de Janeiro, certamente, a lembrança a presença dos imigrantes na vida urbana deve ser bem viva.

A história do Rio de Janeiro dos imigrantes encontrou agora uma obra de referência obrigatória no livro Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas, de Lená Medeiros de Menezes. Professora emérita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e atual presidente do Instituto Histórico do Rio de Janeiro (IHGRJ), a autora é conhecida especialista no campo da história da imigração e dos imigrantes no Brasil com vários trabalhos publicados. Seu livro Os indesejáveis: desclassificados da modernidade há muito marca os estudos da história da imigração no Brasil, contornando de modo original e provocativo o mito de que a sociedade brasileira foi sempre receptiva aos estrangeiros. O novo livro oferece um panorama abrangente da presença da comunidade de origem portuguesa na cidade do Rio de Janeiro. A relevância da pesquisa empreendida reside no fato de abordar a mais importante das comunidades de imigrantes do Rio de Janeiro e com influência decisiva na história da cidade. A pesquisa tem como marca a dedicação à pesquisa documental para valorizar a descrição de trajetórias de indivíduos, explorando vivências pessoais. Ao acompanhar os itinerários de vida de vários imigrantes, que passam a ser tratados pelo nome, o argumento geral aproxima muito de perto o conhecimento do processo social da experiência histórica, oferecendo ao leitor um quadro vivo e sensível da história. Leia Mais

Passe Livre. As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização | Daniel Santini

Há algum tempo, ouvir o termo passe livre despertava, apesar do ceticismo inicial, certa inquietação, curiosidade e abertura para uma discussão com enorme potencial de abarcar questões fundamentais à vida nas cidades. Para as pessoas da nossa geração, que estiveram nas ruas em 2013 contra o aumento da tarifa de transporte, o passe livre surgia como ferramenta de democratização da sociedade. Na contramão dessa percepção otimista, após a aparente sedimentação das manifestações de 2013, tal debate passou a ser encarado com desconfiança, como questão encerrada e pauta esgotada. O que acontecia neste meio tempo para que algo potencialmente tão transformador fosse deixado de lado? Principalmente pelo campo progressista?

Não é sequer necessário recorrer aos liberais ou aos grupos conservadores que emergiram na esteira – ou no vácuo – dos protestos daquele ano para encontrarmos posições contrárias. Para estes o passe livre desde o início representava um modelo “estatista” e antiliberal de transportes. Antiliberal evidentemente que sim. A própria esquerda, que já se dividia sobre o tema antes de 2013, parece hoje relembrar o assunto como um episódio traumático, com enorme desconfiança, algo irreparável e um erro estratégico de grupos autonomistas que conduziram os protestos em torno do Movimento Passe Livre. Leia Mais

Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras | Kim D. Butler e Petrônio Domingues

Os temas relacionados ao período pós-abolição abarcam um campo de pesquisa que tem se consolidado vigorosamente na historiografia brasileira nas últimas décadas. Em trabalho publicado recentemente, o historiador Petrônio Domingues – um dos principais especialistas – apresentou um importante balanço acerca das novas abordagens, problemas, perspectivas teóricas e metodológicas abrangendo esse ascendente ramo da historiografia. Domingues evidenciou que – nesse amplo e diversificado campo temático – uma das principais tendências é composta pelos estudos das experiências da comunidade negra dentro de uma configuração transnacional. (DOMINGUES, 2019, p.119).

Desse modo, na esteira dessas pesquisas em desenvolvimento, a obra Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras oferece um valioso panorama das novas perspectivas analíticas. Petrônio Domingues e Kim D. Butler começaram a idealizar essa obra em conjunto, por volta de 2012, quando o historiador brasileiro realizou estágios de pós-doutoramento na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (Estados Unidos). A partir dos contatos no Departamento de Estudos Africanos, Domingues e a prestigiada historiadora estadunidense iniciaram uma fecunda interlocução intelectual, ensejando uma colaboração acadêmica que resultaria nessa obra recentemente publicada. Leia Mais

From Revolution to Power in Brazil: How Radical Leftists Embraced Capitalism and Struggled with Leadership. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2019. Resenha de: SOARES, Dayane. Percursos e reflexões da esquerda armada de outrora. Revista de História. São Paulo, n. 180, 2021. Aces | Kenneth P. Serbin

Intensificadas as investidas repressivas do Estado, centenas de brasileiros, cuja maioria ainda na flor da juventude, optou pelas armas na luta contra a ditadura vigente no país (1964-1985). Como não nos é estranho, essa aposta, iniciada com uma série de ações guerrilheiras espaçadas, se seguiria de um punhado de sucessos, mas de uma subsequente onda repressiva e do inevitável desmantelamento dos agrupamentos de esquerda armada poucos anos após o pontapé inicial. Entre as resultantes negativas desse processo, sabe-se que a maior parte de seus quadros vivenciaria a experiência de prisão e o horror das torturas, e uma parcela seria posteriormente listada entre os nomes dos milhares de mortos e “desaparecidos” políticos sob a responsabilidade do Estado brasileiro. Os sobreviventes, porém, reconstituiriam suas vidas tomando cursos distintos. Passadas cinco décadas do massacre lançado à oposição de esquerda2 e mais de trinta anos desde o final do regime, mesmo com uma extensa literatura desenvolvida sobre o campo temático3, é certo que algumas questões ainda pairam no ar, inclusive a que indaga sobre o futuro daquela geração de revolucionários. É nesse sentido que se insere From Revolution to Power in Brazil, o mais recente livro de autoria do historiador Kenneth P. Serbin. Leia Mais

Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de História: 1981-2000 | Ricardo Marques de Mello

Os anos 1980 e 1990 são usualmente considerados momento de inflexão da historiografia em nosso país, com a falência das metanarrativas iluminista e marxista e das teses de longa duração. Ao promover diálogo interdisciplinar com a antropologia e a teoria literária, os historiadores brasileiros teriam propiciado a ascensão da micro história e da história cultural. Muitos se valeriam de novas fontes para meditar sobre representações, e privilegiariam recortes temporais recentes e recortes espaciais em território nacional, regionais ou locais. A mudança de bases teóricas, com inspiração na Nova História e em autores como Michel Foucault, Edward Thompson, Walter Benjamin e Clifford Geertz, alavancaria o enfoque de temas, objetos e sujeitos históricos até então apagados. Todavia, a apropriação superficial desses pensadores, somada à presença tímida, no Brasil, da produção e do conhecimento de obras de teoria, teria favorecido uma prática empirista da escrita da história.

À vista disso, seria possível determinar a validade destes pressupostos nas fontes da história da historiografia do período referido? Se sim, como? Se não, por quê? Poderiam os historiadores empregar estas formulações para definir tendências historiográficas estaticamente? Leia Mais

Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos | Revista Ágora | 2020

No ano do bicentenário da Revolução de 1820, organizamos junto à Revista Ágora o dossiê “Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos”. O decênio de 1820 foi marcado por diversos movimentos revolucionários em Portugal e no Brasil. A Revolução do Porto inaugurou a agenda de sublevações no mundo português, configurando-se acontecimento que influenciaria nos rumos políticos nos dois lados do Atlântico.

Inspirada em princípios liberais, o movimento iniciado na cidade de Porto, em poucas semanas alcançaria Lisboa e não tardaria a ser notícia também no Brasil. Verdadeira guerra literária fora travada na imprensa no Brasil e em Portugal. Periódicos e folhetos difundiam nova pauta política, ressignificando conceitos e divulgando novo vocabulário constitucional. Leia Mais

Estado, sociedade e educação profissional no Brasil: desafios e perspectivas para o século XXI | Eraldo L. Batista, Isaura M. Zanardinie e João C. da Silva

O livro tem por objetivo, segundo seus organizadores, apresentar “resultados de pesquisa focalizando questões teóricas e metodológicas e empíricas, trazendo ainda aspectos histórico-conceituais da Educação Básica, particularmente do ensino profissional” de nível médio (Batista, Zanardini e Silva, 2018, p. 13). Trata-se de coletânea de 13 capítulos, escritos por 19 pesquisadores.

Maria Ciavatta, no Prefácio, já nos indica que “o conjunto de textos, sobre vários aspectos do Estado, sociedade e educação no Brasil, é exemplar sobre a questão educacional da população nos cinco séculos de existência conhecida pelo mundo europeu, a terra brasilis, e na atualidade desta segunda década do século XXI” (p. 9). Leia Mais

Sítio Roberto Burle Marx | Cláudia Storino e Vera Beatriz Siqueira

Maria do Carmo Nabuco, amiga e membro do primeiro Conselho Consultivo instituído por Roberto Burle Marx como corpo auxiliar da gestão de seu Sítio na Barra de Guaratiba, Rio de Janeiro, resumiu numa frase o significado da doação daquele acervo ao Governo Federal do Brasil: “Roberto, você não tem consciência do tamanho da sua generosidade!”

O então Sítio Santo Antônio da Bica, agora Sítio Roberto Burle Marx, foi doado em 1985 ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, à época vinculado ao Ministério da Cultura (1), com tudo que nele se continha! E é aí que cresce de importância a publicação da qual faremos, nas linhas seguintes, uma breve descrição. Leia Mais

Maria Graham: Uma inglesa na independência do Brasil | Denise Porto

Fazer uma resenha é um ato de amor. De crença, de prazer.

É ler um trabalho ou um livro e jogar seus sonhos para um monte de sentimentos, de imagens, boas e ruins.

É imaginar-se em um outro local.

E essa crença me acompanha no trabalho de Denise G. Porto quando nele descreve a inglesa que aqui viveu na cidade colonial, observando e sentindo as ruas com o cotidiano da cidade, conhecendo ricos e pobres, vivendo na floresta ou vivendo no palácio da Quinta da Boa Vista. Um prazer também quando tomamos conhecimento quanto aos documentos oficiais sobre a Guerra da independência no Nordeste, principalmente na Bahia e Maranhão. Leia Mais

O Brasil resiliente: estímulos criativos para sua reconstrução | Manoel José de Miranda Neto

Manoel José de Miranda Neto – membro do Instituto Histórico Brasileiro, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Academia Paraense de Letras e da Academia Paraense de Jornalismo, participante ativo de Congressos e Seminários sobre “Globalização, Cidadania e Qualidade de Vida” e autor de renomados livros de pesquisa histórica, como por exemplo, o conceituado A Utopia Possível: Missões Jesuíticas e seu suporte econômico-ecológico, publicado em Brasília, pela Funag, em 2012 – traz à luz neste ano de 2021 seu último trabalho de fôlego: O Brasil Resiliente. Estímulos criativos para sua reconstrução.

A obra em tela possui 332 páginas, dividida em três partes temáticas: I – Colonização Séculos XVI e XVII; II – Consolidação Séculos XVIII e XIX; III – Globalização Séculos XX e XXI. As seções temáticas são desenvolvidas em treze capítulos cronologicamente contextualizados e enriquecidos com notas explicativas que remetem às referências bibliográficas completas. O autor apresenta, também, os Créditos das Ilustrações e as instituições basilares da documentação pesquisada – Arquivos, Fundações, Institutos Históricos – abrindo caminho epistemológico para futuras pesquisas e orientações para outros pesquisadores. Leia Mais

Cronistas do Rio | Revista IHGRJ | 2021

Na opinião de Machado de Assis, o cronista seria uma espécie de historiador do cotidiano, que transita entre as fronteiras imprecisas da literatura com a história, a registrar acontecimentos corriqueiros que dificilmente renderiam manchetes nos jornais, mas que permitem ao historiador contemporâneo compreender as ideias que circulavam na sociedade durante uma determinada época, além de conhecer suas práticas e costumes1. Pois bem, este número da Revista é aberto pelo dossiê “Cronistas do Rio”, que contempla a obra de três escritores, que perscrutaram, cada qual a seu modo, a “vida ao rés-do-chão”2 da urbe carioca: o flâneur João do Rio (1881-1921), o rebelde Lima Barreto (1881-1922) e o “anjo pornográfico” Nelson Rodrigues (1913-1980), estudados respectivamente por Antonio Edmilson Martins Rodrigues, Luiz Ricardo Leitão e Marco Santos.

Como de costume, além do dossiê, a Revista se organiza em dois segmentos. O primeiro está voltado para contribuições acadêmicas, enquanto o segundo apresenta uma síntese da vida social do IHGRJ, eventos e informações de natureza institucional. Leia Mais

Arte abstrata no Brasil: novas perspectivas | MODOS. Revista de História da Arte | 2021

A arte moderna dos anos 1930 e 1940 e as práticas abstratas dos anos 1950 são comumente tratadas como temas separados. No estudo da arte brasileira de meados do século XX, a disciplina de história da arte e sua dependência de associações teleológicas e já mapeadas, entre estilo e periodização, enfatizaram uma ruptura depois de 1945 e mitigaram a percepção das continuidades e transformações entre arte e a política da ditadura do Estado Novo, bem como as do Brasil da democratização depois da II Guerra Mundial. As colaborações sociais e de ativismo entre grupos de artistas de diferentes vertentes pode já ser observada durante as três edições do Salão de Maio (1937-1939) em São Paulo. Precisamente em sua segunda edição, em 1938, quando o artista Flávio de Carvalho passou a organizar a exposição, as alianças entre estéticas divergentes emergiram, indo de tendências realistas à abstração. Durante sua longa viagem à Europa em 1934, que ele havia iniciado pela Inglaterra, Carvalho entrou em contato com o grupo do artista Ben Nicholson e do crítico Herbert Read. Em seguida, Carvalho os convidou para participarem do salão, e a presença de artistas ligados aos grupos de arte concreta na Inglaterra, França e na Alemanha tornou-se um elemento definidor da mostra. Não houve qualquer reação estética ou crítica a esta tendência naquele momento, mas o papel que esses grupos tiveram em movimentos antifascistas foi bastante comentado1. A manifestação da oposição do meio artístico a formas autoritárias de poder coincidiu, no contexto brasileiro, com a crescente simpatia do Presidente Getúlio Vargas tanto por seus pares nazistas quanto pelos fascistas, bem como a criação de uma comissão especial de concessão de vistos de permanência para imigrantes de origem judaica em 1938, que limitou a emissão de vistos a 20 por ano 2. Leia Mais

Negros de prestígio e poder: ascensão social/estilos de vida e racismo na cidade de Salvador | Ivo de Santana

O livro é resultado da tese de doutorado em Ciências Sociais defendida na Universidade Federal da Bahia, em 2009, com foco nas “trajetórias profissionais de pessoas negras que vivenciaram processos de mobilidade social na administração pública” (p. 35) na capital baiana. A temática não é inédita para Ivo de Santana, já que havia desenvolvido pesquisas nos anos 1990 sobre executivos negros em organizações bancárias, tendo publicado sobre o assunto um artigo na Afro-Ásia, n. 23 (2000). Leia Mais

Protagonismo negro em São Paulo: historiografia e história | Petrônio Domingues

Neste livro iluminador, Petrônio Domingues nos oferece uma introdução compreensiva às pesquisas recentes sobre a história e a cultura negra em São Paulo, muitas delas realizadas por estudiosos afro-brasileiros. Leia Mais

Religiões e religiosidades: dinâmicas institucionais e práticas devocionais (Brasil e Portugal, séculos XVIII e XIX) | Temporalidades | 2021

Basta lermos o jornal ou assistirmos ao noticiário na TV para percebermos que a temática da religião é recorrente em nosso dia a dia. Quem nunca ouviu a expressão bancada evangélica ou escutou que grupos políticos alteraram seus discursos para não desagradar a determinados segmentos religiosos? Quem, nos últimos 20 anos, não se deparou com o conceito de fundamentalismo ou de guerra santa? Não há como negarmos a influência cultural das religiões ainda hoje. Além disso, percebemos uma constante tensão entre diferentes crenças no Brasil. Basta uma busca rápida no Google para localizarmos diversas informações sobre a violência e a intolerância religiosa. O jornal Correio Brasiliense divulgou, no ano de 2019, que as religiões afro-brasileiras são alvos de 59% dos crimes de intolerância no Distrito Federal [1]. O Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015) analisou a crescente violência noticiada na imprensa. Segundo os dados, 53% dos agredidos são de religiões afro-brasileiras [2]. O que explicaria toda essa violência? Por que as religiões afro-brasileiras sãos as que sofrem mais ataques? Não são questões simples de serem respondidas, mas são possíveis de serem analisadas à luz da História das Religiões. Marcelo Massenzio, ao analisar a obra de Angelo Brelich, lembra-nos que os fenômenos que atribuímos ao plano da religião podem ser percebidos em distintas sociedades, mas o conceito religião não. Este é uma construção própria do ocidente cristão (MASSENZIO, 2005, p. 179). Leia Mais

Diretório dos Índios: políticas indígenas e indigenistas na América portuguesa | SÆCULUM – Revista de História | 2021

O protagonismo dos povos indígenas no Brasil demorou a entrar na agenda da historiografia acerca da América Portuguesa, especialmente como indivíduos ou coletividades capazes de práticas políticas que poderiam decidir os seus destinos nos processos pós-contatos e diante da legislação indigenista. Incontáveis páginas foram escritas sobre o regime colonial nos trópicos sem que as suas agencias fossem mencionadas e até mesmo prevaleceram negações implícitas e explícitas sobre sua capacidade de ação, em estudos que tratam da política e da administração colonial portuguesa. As razões que procuram justificar operações historiográficas desse gênero têm sido de diferentes ordens. As mais frequentes são a alegação sobre a falta de fontes para inseri-los na historiografia, seu rápido e precoce “desaparecimento” das regiões conquistadas e colonizadas e a crença na desolação e na anomia dos indígenas, supostamente “incapacitados” de protagonismo histórico-social depois que foram conquistados e colonizados. Leia Mais

A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato | Jessé Souza

Jessé José Freire de Souza, formado em Direito pela Universidade de Brasília (1981), concluiu o mestrado em Sociologia pela mesma instituição em 1986. Em 1991, doutorou-se em Sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg(Alemanha), país onde obteve livre docência nesta mesma disciplina Universität Flensburg em 2006. Também fez pós-doutorado em Filosofia e Psicanálise na New School for Social Research, Nova Iorque, (1994/1995). A partir de 2009, Souza fomentou pesquisa sociológica em todo o país para corroborar a tese de que havia surgido uma “nova classe média” no Brasil. O levantamento feito por ele indicou a configuração de nova nomenclatura, a saber, “ralé”, “batalhadores”, “classe média e “elite”, sendo os dois últimos atores de exploração aos dois iniciais, ou seja, detentores de privilégios históricos. Nesse contexto, Jessé Souza escreveu a obra “A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato”, em 2017 com o intuito de resgatar os precedentes históricos da sociedade brasileira afim de entender a situação atual do país. O autor lançou o livro pra averiguar a trajetória política, econômica e social do Brasil a partir da análise de suas classes sociais. O trabalho de Souza se compromete a tecer críticas ao modelo atual de classes no Brasil, destruindo o paradigma entre “Patrimonialismo” e “Culturalismo racista” que estão enraizadas na sociedade brasileira. Leia Mais

Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867- 1933) | Francis Manzoni

Quem eram os caipiras e quais os significados de ser um, na São Paulo, de fins do século XIX e inícios do século XX? Esse é ponto de partida do historiador Francis Manzoni para a consistente pesquisa de mestrado em História (UNESP) que resultou no livro Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867-1933). Ao nos conduzir por uma São Paulo diferente daquela dos imigrantes estrangeiros que trabalhavam nas lavouras de café, o autor nos apresenta uma gama variada de personagens e costumes que teimavam em resistir aos delírios da burguesia paulista pela (re)construção de uma metrópole moderna e europeizada.

Investigando as relações sociais presentes nos mercados e feiras livres da São Paulo, Manzoni opera na intersecção de campos como a História Social do Trabalho e a História Urbana, dialogando com uma série de estudos que foram realizados nos últimos anos sobre a importância das Praças de Mercado para as principais cidades brasileiras, e que tiveram como preocupação a compreensão das relações, conflitos e tensões sociais que tiveram nas Praças de Mercado o seu núcleo irradiador. Dentre esses estudos temos, por exemplo, o livro publicado por Martins (2010) sobre a Praça de Mercado de Campinas, em que o autor identifica e analisa as múltiplas faces e finalidades dos mercados na cidade do interior paulista, assim como os significados das articulações sociais, econômicas e culturais dos frequentadores daqueles espaços. Outra publicação é o livro de Richard Graham (2010) sobre as relações formadas, e vivenciadas, pelos trabalhadores e trabalhadoras do comércio de gêneros empenhados em alimentar a cidade de São Salvador, na Bahia. Cabe destacar também o livro de Juliana Barreto Farias (2015), sobre a forte presença de africanas nas Minas na Praça de Mercado do Rio de Janeiro, em que a autora iluminou uma série de estratégias de sobrevivências de trabalhadoras escravizadas e livres, assim como as dinâmicas sociais vivenciadas na Praça de Mercado da maior cidade brasileira. Leia Mais

La Guerra del Paraguay y la construcción de la identidad nacional | María Victoria Baratta

La guerra que enfrentó a la Triple Alianza formada por Brasil, Argentina y Uruguay contra Paraguay constituye un problema que despierta cada vez mayor interés en el mundo de los historiadores. Tanto en los países que se enfrentaron en aquella contienda, como en otras partes del globo, asistimos desde la última década a una renovación de temas y enfoques ligados al conflicto. María Victoria Baratta se ha nutrido de ella y, a la vez, ha contribuido a generarla: su libro La Guerra del Paraguay y la construcción de la identidad nacional es una apuesta valiente, sustentada en un análisis crítico y documentado que desarma mitos y teorías conspirativas profundamente arraigadas en la sociedad argentina.

El trabajo recupera los resultados de su tesis doctoral defendida en el año 2013, bajo la dirección de Fabio Wasserman. En aquella ocasión se preocupó por establecer la relación entre la guerra como fenómeno histórico y la construcción de la identidad argentina, a partir del discurso de las elites letradas. En la obra que aquí reseñamos amplía el análisis con la incorporación de las representaciones de la cultura popular. Para cumplir los objetivos de su investigación, se apoyó en un contundente corpus de fuentes: diarios y periódicos de los países implicados en la Guerra del Paraguay (para Argentina toma tanto la prensa porteña como del resto de las provincias) y de Europa; documentos oficiales, institucionales, correspondencia, folletos, testimonios y relatos; Diarios de Sesiones de la Cámara de Diputados y de la Cámara de Senadores en Argentina; relatos de corresponsales de guerra, memorias y cantares populares. Leia Mais

Índios Paneleiros do Planalto da Conquista: do massacre e o (quase) extermínio aos dias atuais | Renata Ferreira de Oliveira

O valor da história nas sociedades se mensura na constatação de qual o peso do passado em nosso presente e nosso futuro. E aqui se não se trata apenas do comum aforisma de que aprender com o passado é caminhar para um futuro melhor. O exercício fundamental do historiador é analisar de que maneira o passado, em discurso ou simbolismo, pesa, por vezes sob a forma de trauma na vida cotidiana dos indivíduos ou de um mal-estar persistente no coletivo social. O valor simbólico da história é se defrontar com a perspectiva da construção – ou da desconstrução – da memória enquanto discursos que se organizaram – e se organizam – em face das hierarquias sociais e das diferenças culturais. Nesses termos, como salienta Michel Pollak (1989), a memória é uma força social ativa, dinâmica, seletiva que se define pelas demandas do presente como instrumento e objeto de poder. Leia Mais

Independência e instrução no Brasil, Chile e nos Estados Unidos da América (XIX E XX) | História da Educação | 2021

Pensar os projetos nacionais associados aos processos das independências tem sido uma temática recorrente na historiografia, no ensino de história, na literatura, no jornalismo, no cinema e nas artes plásticas; dentre outros. As formas de representações deste acontecimento podem ser encontradas em diversas experiências nacionais, com recortes e ênfases mais frequentes na história política, econômica, militar e/ou diplomática. Algumas dimensões dos processos de independência, como a problemática da educação das populações, são frequentemente explicadas como efeito destas políticas do saber histórico, quando não são completamente negligenciadas. Com base nessa percepção, foi organizado o Seminário Internacional Independência e Instrução na América e África – história, memória e formação, realizado entre 11 e 20 de outubro de 2020 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, contando com a participação de pesquisadores da Espanha, Portugal, Moçambique, México, Colômbia, Uruguai, Estados Unidos, Argentina e Chile. O presente dossiê, consiste, pois, em um dos registros escrito desta atividade1 que, em linhas gerais, partiu de um complexo questionário, a saber:

Como se processaram as independências em países da América? Leia Mais

Garibaldi in South America. An exploration | Richard Bourne

Antes de ser conocido por su papel en el Risorgimento italiano, Giuseppe Garibaldi pasó aproximadamente trece años entre Río Grande do Sul y Montevideo. En estas latitudes, el luego llamado Héroe de dos mundos no solo participó en redes políticas locales y de distintas guerras internas, tomando partido por la Revolución Farroupilha y la Defensa de Montevideo, sino que también se casó con su primera esposa, Anita, y formó una familia. Asimismo, el recuerdo de ese paso permanece hasta la actualidad en ambos lugares, al punto que nos encontramos con museos, monumentos, calles y hasta pizzerías con su nombre. En torno a esos dos ejes está centrado el trabajo del investigador y escritor británico Richard Bourne Garibaldi in South America: An Exploration.

En la introducción del libro, Bourne plantea que el tiempo que Garibaldi pasó en el sur de América fue fundamental para sus logros posteriores en Europa. Es decir, durante sus años en la región Garibaldi pasó de ser un aventurero con cierto compromiso con la unificación italiana a un muy hábil y carismático comandante capaz de reunir un gran número de voluntarios poco formados y transformarlos en una importante fuerza militar. Sin embargo, este tema no había sido tenido en cuenta por investigadores desde hacía varias décadas y la gran mayoría de los trabajos al respecto, más allá de su aporte documental, estaban dominados por un tono apologético. Leia Mais

Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível | Helois Helena Meirelles dos Santos

O livro Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível, é fruto da tese de doutorado em Educação da historiadora e pedagoga Heloisa Helena Meirelles dos Santos1 , intitulada Esther Pedreira de Mello: Múltiplas faces de uma mulher (in)visível (1880-1923), defendida em 2014. Publicada em 2017, a presente obra, aqui resenhada, tem como objetivo principal dar visibilidade às múltiplas faces de uma educadora que viveu no final do século XIX e início do XX, fruto de um silenciamento na História, em especial, na historiografia da educação brasileira.

Seu nome, como destacado no título, é Esther Pedreira de Mello. Nascida em Cachoeira, no sertão da Bahia, em 1880, filha de D. Clara Pedreira de Mello e do advogado Dr. Isaias Guedes de Mello, a biografada estudou na Escola Normal, no Rio de Janeiro, em 1897 e exerceu, posteriormente, diversas atividades sociais, tais como: inspetora de ensino (1903), Diretora da Escola Normal (1920), editora de periódicos destinados ao magistério, dentre outras. Dessa maneira, como a educadora pode diferenciar-se das mulheres de seu tempo? Como a personagem narrada teria conseguido ocupar um cargo como inspetora escolar e dirigir a Escola Normal, período em que adentrar a Instrução Pública não era cabido à uma mulher, “tidas como ardilosas, perigosas até, se não demonstrassem subserviência aos homens” (SANTOS, 2017, p. 27)? Leia Mais