Bandoleros Santificados: las devociones a Jesús Malverde y Pancho Villa – JÓNSDÓTTIR (PL)
La investigadora Kristín Guðrún Jónsdóttir de origen finlandés, con estudios de doctorado en Literatura Hispánica y Estudios Latinoamericanos por la Arizona State University, desde 2004, además, profesora invitada en reconocidos centros de investigación y universidades en México, Puerto Rico y España. Públicó en 2014 “Bandoleros Santificados: las devociones a Jesús Malverde y Pancho Villa”, título editado por el Colegio de Michoacán y el Colegio de la Frontera Norte en México.
Este libro que recogió algunos apartados de la tesis doctoral de la autora (2014, p. 231), es un valioso aporte para el estudio del bandolerismo y sus implicaciones en la cultura de los grupos marginados o “subalternos”. La investigadora aborda uno de los fenómenos característicos de la religiosidad popular en el siglo XX, la transformación de antiguos bandoleros en santos populares en el norte de México (JÓNSDÓTTIR, 2014, pp. 11 – 17). Leia Mais
Geografia da escravidão no Vale do Paraíba cafeeiro: Bananal 1850-1888 | Mrco Aurélio dos Santos
Geografia da escravidão no Vale do Paraíba cafeeiro: Bananal, 1850-1888, do historiador Marco Aurélio dos Santos, é mais uma das recentes contribuições para a historiografia brasileira que estuda a escravidão. Originário da tese de doutorado do autor, defendida no ano de 2014 no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, o trabalho revisita temas clássicos do debate acerca do passado escravista brasileiro. Autonomia escrava, roças cultivadas pelos cativos, formação de comunidades solidárias que uniam escravizados na luta contra as agruras do cativeiro e, em sentido mais geral, a oposição entre possibilidades e constrangimentos estruturais para a agência escrava são alguns dos aspectos retomados pelo historiador e que perpassam o texto.
O município de Bananal já foi bastante estudado, visto que se constituiu em um dos principais produtores de café do Brasil das primeiras décadas do século XIX.[1] No decênio de 1850 a localidade passou a ser a maior produtora de café da província de São Paulo, tendo alcançado o ápice de sua produção na década seguinte. A participação dos escravizados na composição total da população da localidade foi a maior entre os principais municípios do Vale do Paraíba Paulista, alcançando percentual de 53% (p. 35-37). Dessa forma, a chegada da rubiácea na região alterou profundamente a demografia da localidade. As relações sociais e políticas, pautadas pelas assimetrias características do escravismo, também sofreram mudanças drásticas em curto espaço de tempo. Isso sem mencionar toda a carga cultural trazida pelas levas de africanos introduzidos abruptamente na região via tráfico internacional ou interno de escravos.
O recorte cronológico privilegiado pelo autor é outro ponto bastante recorrente na historiografia da escravidão, na medida em que suas balizas marcam dois momentos centrais do passado escravista brasileiro. O livro aborda o intervalo temporal compreendido entre o final do tráfico internacional de escravos (1850) e o colapso da escravidão no Brasil (1888).
Se os pontos acima destacados, recortes geográfico e cronológico, não são propriamente inovadores, Marco Aurélio dos Santos agrega ao debate sobre escravidão e resistência cativa o estudo do elemento espaço. Mais precisamente, o autor estuda a espacialidade das fazendas cafeeiras escravistas. Por espacialidade entende a soma da cultura material (espaço material), das relações sociais (espaço social) e das interpretações e apropriações dos espaços (espaço cognitivo). (p. 26-28).
Subsidiado pela concepção acima, o argumento central que o autor sustenta é que, a um só tempo, o espaço agrário das zonas de produção cafeeira constituiu-se tanto em instrumento de dominação senhorial como em estratégia para resistência escrava. No primeiro sentido os senhores escravistas pensaram e utilizaram a espacialidade como mecanismo de imposição e de facilitação da ordem. No segundo viés os espaços foram ressignificados pelos cativos, que fizeram usos alternativos diferentes daqueles para os quais foram projetados. É fundamental para o entendimento do argumento a concepção, explicitada desde a introdução do trabalho e frequentemente retomada pelo autor, de que os espaços não são estáticos nem neutros. Muito pelo contrário, ganham sentido e significado por meio dos usos que os seres humanos fazem deles. Dessa forma, a espacialidade é entendida como somatória dos diversos espaços e como campo de ação. No caso em questão das fazendas de produção cafeeira de Bananal, puderam servir tanto para dominar quanto para resistir, a depender das intencionalidades dos indivíduos que atuaram e que interagiram com os espaços (p.21-28).
Marco Aurélio dos Santos construiu seu objeto de pesquisa proposto – a utilização plural dos espaços agrários de Bananal – primordialmente por via de uma série de processos criminais que envolveram cativos, independentemente da forma como apareceram: réus, vítimas, informantes ou testemunhas. Foram utilizados 146 processos distribuídos de forma desigual pelas décadas contempladas, com prejuízo para o decênio 1850, com apenas 4 processos.[2] Embora tenha trabalhado com documentação criminal, os crimes propriamente ditos não foram o aspecto central objeto da atenção do autor. A leitura e análise das fontes focou a interação dos personagens com a espacialidade: “A criminalidade de escravos e homens livres terá interesse apenas circunstancial. Partindo do par de conceitos controle/resistência, realizou-se uma leitura das fontes documentais que priorizou a análise da ação dos sujeitos no espaço” (p. 24).
Geografia da Escravidão está organizado em 3 capítulos, muito bem demarcados e antecedidos por uma consistente introdução na qual o autor apresenta e discute seus pressupostos teóricos, suas fontes e metodologia, com as ressalvas feitas acima, seus objetivos e argumentos centrais e específicos. Finaliza a introdução um breve histórico da localidade de Bananal no período selecionado, justificando os recortes temporais e espaciais da pesquisa.
No primeiro capítulo Marco Aurélio dos Santos se dedica ao estudo da espacialidade pelo viés dos proprietários escravistas, a geografia senhorial. Toda a constituição da arquitetura das fazendas cafeiculturas fora pensada com o intuito de favorecer o controle, a ordem, a otimização da produção, a fiscalização e a redução da mobilidade dos cativos. O livro traz no capítulo imagens e fotografias que contribuem para a argumentação do autor. Via de regra, as fazendas eram projetadas em quadriláteros funcionais que objetivavam o controle sobre o interior do quadrado. Todos os edifícios (senzalas, casas de vivenda e espaços de armazenamento e beneficiamento da produção) ficavam dispostos em quadra. Os demais espaços que as fazendas continham também seguiam o mesmo propósito de controle e disciplina: a enfermaria sempre trancada e de acesso restrito, o portão da fazenda que delimitava o espaço de mobilidade dos escravizados, o sino que disciplinava o tempo, as roupas que caracterizavam a condição cativa, os investimentos dos senhores sobre o corpo dos escravos (ferros no pescoço, por exemplo) contribuíram para a composição da geografia senhorial. O autor argumenta ainda que nos espaços públicos fora das fazendas, a movimentação e o tempo dos escravos eram disciplinados pelos Códigos de Posturas Municipais. A mecânica do funcionamento de todo este aparato foi percebida nos processos criminais utilizados.
No segundo capítulo, Marco Aurélio dos Santos destaca a noção de vizinhança como espaço social paulatinamente construído e como ação social articulada em espaço mais amplo, para além das fazendas. Importante também a abordagem ampliada sobre as redes de relacionamentos constituídas pelos escravizados. Durante muito tempo vistas pela historiografia como sinônimo de solidariedade, Marco Aurélio dos Santos amplia o olhar sobre as redes de relacionamentos entre os escravos. A solidariedade poderia ser apenas uma das possibilidades. No entanto, não raramente, as redes congregavam elementos contraditórios e foram também potencialmente conflituosas. O autor cita eventos que ilustram as possibilidades de mobilidade dos escravos, algumas consentidas pelos senhores, outras não. Constituíam assim redes de relacionamentos com escravizados de outros plantéis, passavam por caminhos que cruzavam outras fazendas e se relacionavam com homens livres, alforriados, comerciantes e demais personagens do mundo agrário e urbano da localidade de Bananal no período analisado.
No último capítulo de Geografia da Escravidão, Marco Aurélio dos Santos lança mão de forma mais abundante da documentação para estudar a “geografia dos escravos”, composta de usos alternativos dos espaços de plantação e do tempo. São vários os casos relatados de escravos que se apropriaram de uma espacialidade aparentemente hostil para encontrar alternativas para suavizar, resistir e até mesmo questionar a condição servil. Bastante elucidativo é o caso do escravo Constantino, cativo de Braz Barboza da Silva. Constantino foi libertado pelo Fundo de Emancipação em 1883. Porém, o senhor omitiu-lhe a informação. O detalhe interessante é que Constantino tinha mobilidade consentida para fora dos limites da fazenda para realizar tarefas demandas por seu senhor. Em uma dessas andanças ficou sabendo da própria ao entrar em contato com um indivíduo livre. O caso exemplifica uma das formas de lidar com a espacialidade projetada para controle e disciplina. Nas palavras do autor “Malgrado o funcionamento rotineiro da mecânica do poder senhorial, foi possível perceber que os escravos construíram uma geografia própria a partir dos conhecimentos de suas movimentações autorizadas para além do espaço de plantação” (p.30). O capítulo ainda aborda as fugas do cativeiro, definindo-as como o momento mais emblemático dos usos alternativos dos espaços de plantação. Não obstante a eficácia da geografia senhorial por todos os seus aparatos disciplinares, o capítulo demonstra claramente que os recursos para controlar e disciplinar os cativos não foram suficientes para conter movimentações e usos alternativos pelos próprios cativos.
Talvez caibam duas ponderações sobre a forma como Marco Aurélio dos Santos apresenta as fontes selecionadas. A primeira, de ordem metodológica e a segunda, de estética. A documentação utilizada não é alvo de uma apreciação crítica, visto que o autor não discute seus limites e possibilidades. Algumas reflexões seriam pertinentes. Por exemplo: quais os contextos de produção da documentação? Os escravos falam por si mesmo ou têm representantes? Quem eles seriam e quais suas intencionalidades? Em que medida tomar a utilização da espacialidade por meio dos processos criminais é representativo do cenário que o autor buscou retratar? Trazer para o texto essas e outras questões, que muito provavelmente acometeram o autor em algum momento da pesquisa, não invalidariam de forma nenhuma os resultados do trabalho. Somente lançariam luz sobre os limites e as possibilidades que o historiador encontra na relação com o passado e com seu objeto de pesquisa, além de esclarecer os métodos empregados.
Outra ponderação importante diz respeito à organização do trabalho. A forma como Marco Aurélio dos Santos optou por estruturar a narrativa deixa os capítulos compartimentados, talvez excessivamente esquemáticos. As partes acabaram por ser tornar demasiadamente estanques. O primeiro capítulo trata da espacialidade do ponto de vista senhorial, ao passo que o terceiro o faz da perspectiva dos cativos. Caso o autor tivesse feito uma opção mais dialógica, o texto se tornaria mais fluído, dinâmico e, principalmente, mais condizente com a realidade dialética que se propôs abordar, visto que os embates entre a geografia senhorial e a geografia escrava se davam de forma imbricada e emaranhada, não em tempos e formas separadas. Por mais que tenha sido uma opção didática perfeitamente compreensível, a organização do livro torna os capítulos 1 e 3 completamente independentes um do outro.
Um último ponto que causa estranheza no texto de Marco Aurélio dos Santos é a ausência de uma discussão que tem sido bastante recorrente e profícua entre os pesquisadores da escravidão que tomam por base o trabalho de Dale Tomich.[3] Este autor considera que a escravidão e o tráfico atlântico do século XIX não foram meras continuidades dos séculos anteriores. Nos Oitocentos assumiram características diversas, constituindo na verdade uma Segunda Escravidão. O trabalho cativo teria se reconfigurado de modo ainda mais potente, em alinhamento com a nova fase de desenvolvimento da economia mundial, sob égide da hegemonia britânica. Algumas das características apontadas por Tomich nessa nova fase das relações escravistas guardam íntima relação com o objeto de pesquisa proposto em Geografia da Escravidão. Entre outros elementos, a dinâmica peculiar do século XIX foi trazida pela expansão de zonas produtoras de artigos tropicais que tinham elevada e crescente demanda nos países centrais da Europa e nos EUA: o café (com grande participação da produção brasileira), o algodão e o açúcar. Ao negligenciar estranhamente esta discussão, visto que o autor dialoga frequentemente com historiadores que levam em conta as formulações de Tomich [4], o livro deixa de incorporar e conectar seu objeto de pesquisa com dinâmicas mais amplas da política e das relações internacionais, exercício recente e profícuo entre os pesquisadores da escravidão.
No entanto, transcorridas as páginas de Geografia da Escravidão, fica a certeza de que o autor cumpriu muito bem a árdua tarefa de trazer novos e originais elementos para um dos mais ricos debates da historiografia brasileira.
Notas
1. Marco Aurélio dos Santos dialoga com vários trabalhos sobre a localidade. A título de exemplo da produção historiográfica que privilegiou o recorte espacial de Bananal, somente no âmbito da história demográfica dois importantes trabalhos que abordaram a localidade em diferentes momentos do desenvolvimento da lavoura cafeeira foram: MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava no Brasil (1801-1829). São Paulo: Fapesp, Annablume, 1999. MORENO, Breno Aparecido Servidone. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860. Dissertação (Mestrado em História Social) FFLCH/USP, São Paulo, 2013.
2. Conforme mencionado, a série de processos criminais constitui a fonte principal da pesquisa. De forma episódica foram utilizados pelo autor outras fontes: 27 inventários post-mortem, Códigos de Postura da Câmara Municipal de Bananal (1865 e 1886), livro do Fundo para Emancipação de escravos, ofícios diversos, Livro de Casamento de escravos, periódicos, relatos de viajante etc.
3. Embora o autor cite entre suas referências bibliográficas um dos trabalhos de Tomich na versão em língua inglesa e mencione o conceito na página 19 da introdução, a discussão sobre a Segunda Escravidão está ausente do texto, bem como a referência a versão em português do livro do autor. TOMICH, Dale W. Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.
4. Por exemplo: BERBEL, M., MARQUESE, R. B. e PARRON, T. Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011. MARQUESE, R. B.; SALLES, (orgs.). Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
Referências
BERBEL, M., MARQUESE, R. B. e PARRON, T. Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011. MARQUESE, R; B., SALLES, (orgs.). Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
MORENO, Breno Aparecido Servidone. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal,1830-1860. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH/USP, São Paulo, 2013.
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava no Brasil (1801-1829). São Paulo: Fapesp, Annablume, 1999.
TOMICH, Dale W. Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.
Fernando Antonio Alves da Costa – Doutor em História Econômica pelo PPGHE da FFLCH-USP. E-mail: faacosta@usp.br
SANTOS, Marco Aurélio dos. Geografia da escravidão no Vale do Paraíba cafeeiro: Bananal, 1850-1888. São Paulo: Alameda Editorial, 2016. Resenha de: COSTA, Fernando Antonio Alves da. A Resistência escrava revisitada: a espacialidade como elemento central. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 517-524, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]
Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836) | C. E. C. Lynch
Seria possível conciliar um Estado forte e centralizado ao ideário liberal moderno na prática política oitocentista brasileira? A leitura de Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento do Marquês de Caravelas nos revela que sim. Defensor tanto da soberania do rei quanto do constitucionalismo moderno, José Joaquim Carneiro de Campos – o marquês de Caravelas – foi personagem fundamental, de acordo com Christian Lynch, no processo de recepção e aclimatação do discurso liberal durante o estabelecimento do Estado de direitos no Brasil.
Prevalecente na Constituição de 1824, o projeto monárquico e estatizante dos coimbrãos contou com a participação ativa de José Joaquim Carneiro de Campos. Segundo Lynch, Caravelas foi responsável por aperfeiçoar o projeto constitucional dos Andradas, caracterizado pelo bicameralismo, por uma rigorosa centralização política-administrativa e pelo veto quase absoluto do Imperador. Sua principal contribuição foi a criação do Poder Moderador e a institucionalização de alguma descentralização político-administrativa a partir da criação dos conselhos gerais de províncias. Para ele, esse arranjo seria o ideal pois garantia “uma monarquia sem despotismo e uma liberdade sem anarquia”, expressão definidora do seu pensamento político (p. 53).
Lynch relacionou a teoria das formas de governo de Caravelas com a tradição clássica aristotélica. Segundo esta, as formas de governos existentes – monarquia, aristocracia e a democracia – eram instáveis e oscilavam constantemente entre bons e maus governos, a monarquia corrompida se degeneraria em tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em demagogia. No entanto, havia uma maneira de evitar a corrupção e estabilizar esses governos: uma composição mista entre monarquia, aristocracia e democracia. Assim como Aristóteles, Carneiro Campos considerava que a melhor maneira de tornar as instituições políticas brasileiras duráveis seria por meio de um governo misto. Em sua opinião, a forma moderna que permitia o equilíbrio entre os elementos governamentais seria a monarquia constitucional representativa temperada ou limitada. Se o fundamento conceitual de Caravelas estava em Aristóteles, sua sociologia política se apoiava em Montesquieu. Isso porque sua principal preocupação, como mostrou o autor, era conciliar o governo constitucional representativo – necessidade dos tempos modernos – com a preservação da ordem e das hierarquias coloniais por meio da criação de uma legislação que respeitasse as tradições e os costumes do povo brasileiro.
O estudo sobre o pensamento político de homens como Caravelas faz parte de um longo debate historiográfico a respeito do lugar do liberalismo no processo de formação do Brasil independente. Debate longo, mas necessário, foi iniciado por obras clássicas – como a de Roberto Schwarz – que defenderam que as ideias estavam fora do lugar. De lá para cá, muito se avançou no tema. Surgiram diversos trabalhos que discutiram, de perspectivas diferentes, a formação do Brasil independente mostrando que as ideias estavam sim no lugar, a exemplo de Maria Sylvia de Carvalho, Alfredo Bosi, Lúcia Maria B. Pereira das Neves, Maria Emilia Prado, Antonio Carlos Peixoto, entre outros.
A análise instigante empreendida por Lynch nos evidenciou que, embora antigo, este debate está longe de ser esgotado. Interessado na história constitucional brasileira – graças à graduação e ao mestrado na área do Direito – bem como no seu desenvolvimento pela perspectiva daquilo que o historiador alemão Reinhart Koselleck chamou de Sattelzeit, Lynch redimensionou o lugar do conservadorismo no Brasil oitocentista por meio do resgate desse importante personagem político da independência brasileira do limbo em que se encontrava.
Nesse sentido, suas reflexões sobre a composição de um campo conservador no Brasil e sobre as construções historiográficas a esse respeito garantem uma análise provocante do processo de formação das instituições políticas brasileiras. Segundo Lynch, o marquês de Caravelas, ao sustentar um projeto liberal que conciliava a implantação de um governo constitucional representativo com a garantia de um Estado monárquico forte, seria o primeiro de uma linhagem de juristas constitucionais, na qual se entronca o visconde de Uruguai, a defender a construção e o fortalecimento do Estado como instância incubadora adequada da Nação.
Embora a obra escrita por Lynch tenha José Carneiro de Campos como objeto de pesquisa, nunca foi preocupação do autor a descrição e o acompanhamento de seus feitos como fazem diversos trabalhos biográficos. Na realidade, todo seu empenho se concentrou na reconstituição do pensamento teórico e sociológico do marquês de Caravelas e sua aplicação prática ao longo dos seus trabalhos enquanto deputado e relator do projeto constitucional de 1824. Tendo em vista esse objetivo, Lynch estruturou seu livro em duas partes: a primeira destinada a um estudo do pensamento político-constitucional do marquês de Caravelas – dividida ainda em cinco capítulos – e uma segunda reservada para a compilação de seus discursos parlamentares mais importantes, fontes que serviram de base para sua pesquisa.
Os discursos parlamentares do marquês de Caravelas foram analisados com base em duas frentes metodológicas: o contextualismo linguístico de John Pocock e a história dos conceitos de Koselleck. Na primeira frente, estes discursos foram entendidos como “atos de fala” elaborados durante a disputa política visando um espaço de atuação e de poder. Na segunda frente, o autor carioca identificou os conceitos presentes nesses discursos examinando os novos significados assumidos por eles de acordo com as circunstâncias, as necessidades e as contingências do Brasil recém-independente.
É em seu primeiro capítulo – “Os desafios da política constitucional oitocentista na Europa e na América ibérica” – que Lynch conseguiu brilhantemente conciliar essas duas frentes metodológicas, procedendo a uma bela análise relacional de texto e contexto. Infelizmente, nos outros capítulos, principalmente os três últimos, nos quais há uma reflexão sobre os elementos constitutivos do pensamento de Caravelas, a análise se concentrou apenas no texto e nos conceitos presentes nele. Apesar disso, suas reflexões sobre o enquadramento ideológico de Carneiro de Campos presentes no primeiro capítulo e as razões historiográficas responsáveis por seu esquecimento, apresentadas no segundo, são de grande relevância para os pesquisadores na área da história política brasileira.
Se a maioria dos trabalhos historiográficos explicam o processo de construção do nosso Estado a partir do liberalismo moderno, Lynch o faz baseado no conservadorismo. Ele defendeu a conservação como elo indispensável tanto para compreensão do pensamento de Caravelas quanto para o entendimento do desenvolvimento das instituições políticas brasileiras das quais ele fez parte. Ao fazer isso, o autor acabou redimensionando o sentido e o papel desempenhado pelo conservadorismo na América Ibérica.
Até hoje relacionamos o conservadorismo a posicionamentos tradicionais e, portanto, contrários a mudanças. De acordo com Lynch, isso acontece devido a conotação negativa que este conceito possuí no Brasil graças ao legado da tradição marxista de intelectuais do século XX, a exemplo de Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, que relacionaram o conservadorismo a uma visão hierárquica de mundo, defensora de privilégios, contrária à democratização e ao reconhecimento das minorias. Inclusive, o autor associou também o esquecimento historiográfico de Carneiro de Campos, bem como sua associação apressada ao absolutismo, a essa visão negativa dos conservadores.
Depois de realizar uma síntese das principais correntes conservadoras – passando por Hume, Burke e Guizot – Lynch afirmou que elas eram equivalentes no Brasil às reflexões dos conselheiros de Estado de D. Pedro I que, baseados no modelo monarquiano do barão Malouet e de Jean Joseph Mounier, defenderam um projeto de governo constitucional e representativo no qual o rei, não a Assembleia, seria o representante da soberania nacional. A implantação desse sistema permitiu a conciliação entre o ideal modernizador ordeiro do despotismo esclarecido com o estabelecimento de um governo constitucional. Por isso, Lynch afirmou que o conservadorismo é uma espécie de liberalismo de direita, de caráter reformista e antirrevolucionário. Nesse sentido, ao invés de se apresentar em oposição total aos liberais, os conservadores teriam uma postura realista da modernidade, aceitando a inevitabilidade do progresso, embora tentassem guiá-lo de forma prudente e gradual, os adequando a cultura histórica de cada sociedade na tentativa de preservar o tecido social e evitar as rupturas revolucionárias.
No entanto, ao longo de todo o processo de independência, do primeiro reinado e dos anos iniciais das regências, o discurso daqueles que orbitavam em torno de D. Pedro I, a exemplo de Caravelas, foram associados ao absolutismo e ao autoritarismo por seus adversários políticos que desejavam um espaço de atuação e de participação no Estado brasileiro.
Somente com os saquaremas, na segunda metade do século XIX, o termo conservador passa a ser empregado na caracterização de um grupo político, apesar de seus projetos existirem desde a época da independência. De acordo com Lynch, diferentemente do Partido Liberal, que reivindicou o grupo brasiliense como primeiro embrião de seu partido, o mesmo não aconteceu com os conservadores, que preferiram venerar a memória de Bernardo Pereira de Vasconcelos e o Regresso como verdadeiro fundador do partido durante as regências. Logo, a imagem de homens como Caravelas sofreu um desgaste duplo. Ao mesmo tempo em que eram desqualificados pela historiografia luzia que os retratava como absolutistas, não tiveram sua imagem resgatada pela historiografia saquarema e ficaram sem uma posteridade política que os reivindicasse positivamente.
Mais uma vez vemos a influência do historiador inglês J. G. A. Pocock em Monarquia sem despotismo e Liberdade sem anarquia. Baseado em suas ideias, o autor buscou compreender a história como choques de discursos antagônicos. Durante muito tempo, a historiografia brasileira vem comprando a versão de autores saquaremas que localizaram o surgimento do conservadorismo no Brasil no movimento regressista. É importante entender que os saquaremas não queriam ter sua imagem pública associada ao grupo “coimbrão” devido a sua fama negativa ligada ao absolutismo.
Ao longo do livro, Cristian Lynch conseguiu demonstrar que o pensamento político de José Carneiro de Campos não tinha nada de absolutista. Muito pelo contrário, partilhava semelhanças com as doutrinas conservadoras do tempo. Isso implica reconhecer, a despeito das afirmações historiográficas, que o conservadorismo aos moldes regressistas e saquaremas existiam de alguma forma no Brasil muito antes do período regencial, sendo esta ao meu ver a principal contribuição da obra. O resgate do marquês de Caravelas do limbo do esquecimento e sua inserção num campo conservador em formação durante todo o processo de construção do Estado brasileiro nos ajuda a redimensionar a própria concepção do conservadorismo na constituição do Brasil independente.
Referência
Lynch, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
Luaia da Silva Rodrigues – Doutoranda em história pela UFF. E-mail: luaiarodrigues@gmail.com
LYNCH, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. Resenha de: RODRIGUES, Luaia da Silva. O pensamento conservador do marquês de Caravelas e a construção do Estado Brasileiro. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 496-501, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]
Susan Stebbing and the language of common sense – CHAPMAN (Ph)
CHAPMAN, S. Susan Stebbing and the language of common sense. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. Resenha de: GIAROLO, Kariel Antonio. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.161-169, jan./jun, 2018.
Lizzie Susan Stebbing (1885-1943) was an important figure in the beginning of the twentieth century, specially in view of her role in the development of analytic philosophy and particularly because she was the first woman Professor of Philosophy in a British university. In Susan Stebbing and the Language of Common Sense, Siobhan Chapman, Professor of English at the University of Liverpool (UK), brings us a de-tailed historical analysis of Stebbing’s life and of her philo-sophical developments. The book, divided into nine chapters, provides a lot of information on Stebbing’s per-sonal, academic and political life as well as on her philo-sophical ideas and commitments. Given that, for a better analysis of the book it is possible to divide it into three main parts: (i) historical importance of Stebbing; (ii) philo-sophical context of her academic life; and (iii) importance of her philosophical conceptions, mainly, the logical-linguistic.
Stebbing was born in 1885 and she was registered in Barnet, in London. About her young life, Chapman (2013, p.10) says that she was a delicate child, suffering from an illness called Menière’s Disease. Her ill health and periods of enforced inactivity continued into her adult life and many times she was unable to work because of this unstable health. In the first years, because she wasn’t strong enough for full-time schooling, she was educated privately at home and afterwards she went to James Allen’s Girl’s School, in London. After finishing high school, she was admitted at Girton College in Cambridge, and she graduated in 1908. Finishing College in Cambridge, she went to King’s Col-lege, London, to take her MA in Moral Science, until 1912.
As a student, Stebbing was influenced by the works of F. H. Bradley, B. Russell, A. F. Whitehead and, mainly, G. E. Moore. In her first philosophical works she shows a great interest in analytical philosophy, specially the relations be-tween natural language and formal logic. Furthermore, at that time she demonstrated a great interest in debates be-tween idealists and realists, and even in her young life she showed an ambitious personality, trying to identify the mis-takes in the two approaches. Her MA’s thesis was entitled Pragmatism and French Voluntarism and already in this initial work she indicates her commitments with the relations be-tween the notions of action, language and the theory of knowledge. Stebbing argued, as explained by Chapman (p. 28), that action and thought, intellect and will cannot be opposed. This is significant because in her mature books, the relations between natural language, formal logic and the purposes of speech are recurrent and a guide to understand her main philosophical conceptions.
According to Chapman (p. 37) during the decade or so following her MA graduation, Stebbing established herself as an important voice in the philosophical discussions in Cambridge and London. She was engaged in debates with the leading philosophic figures in Britain at that time and her work was read and discussed frequently by them. In 1931 she became president of the Mind Association and a few years later of the Aristotelian Society. Due to the in-crease of her reputation and the quality of her work, in the summer of 1933, Susan Stebbing was honoured with a place at the University of London as Professor of Philoso-phy. However, if today a woman being a Professor in a University stands as a normal fact, at that time it was not trivial: Stebbing was the first woman Professor of Philosophy in a University in Great Britain. Women’s rights in the ninetieth and twenti-eth centuries were limited, including the positions in uni-versities. For this reason, Stebbing can be considered as a milestone in the fight for equal rights between men and women. Chapman, in several instances, particularly in the first chapters, calls attention to this event. In Chapter Four (p. 79) she says: “In its historical and cultural context, Stebbing’s appointment as full Professor of Philosophy real-ly was headline news. Women were by now an established presence, although certainly a minority one, in academia, but their place there was hard-won and still controversial”. Unfortunately, as expect, her appointment did not please everyone.
Anyway, Stebbing remained Professor in London until 1938. During this period, she published several books on logic and language. The most important books are A Mod-ern Introduction to Logic (1930, 1933, the first edition was published before the appointment), Philosophy and The Phys-icists (1937), Thinking to some purpose (1939, the most popu-lar of her books), Ideals and Illusions (1941) and A Modern Elementary Logic (1943). In all these, Stebbing focuses on a logical analysis of the natural language and related issues.
The philosophical context of the beginning of twenti-eth century in Britain was predominantly influenced by an-alytical philosophy. The new developments in logic and language arrived in philosophical discussions and the ana-lytic methodology became the common ground for solving classical problems. Frege, Russell, Moore, Carnap, Wittgen-stein and others were the central figures in that time (in logical and analytical context, of course) and their works changed the way in which philosophical questions were considered. The mathematical logic was a development of traditional Aristotelian syllogistic and one of its main goals was to construct a formal language for science that would be able to avoid the errors and imperfections of natural language. The basic idea was that with a perfect formal lan-guage to express thought it would be possible to solve phil-osophical problems, because many of these problems actually originated in our imperfect ordinary language use.
Susan Stebbing’s academic formation was basically ana-lytical and she read and kept direct contact with some of these figures, in particular, Moore and Russell. In A Modern Introduction to Logic, for instance, Stebbing introduces the recent developments in mathematical logic. According to Chapman (p. 50), “Stebbing proceeds to offer her readers an overview both of traditional Aristotelian logic and of re-cent developments, and also to introduce them to some of the current issues in scientific method, including the prob-lems surrounding deduction and induction”. In this sense, Stebbing is located in a transitional moment in the history of logic: before Frege and Russell, logic was equated with the Aristotelian syllogistic; after them mathematical logic became central. Stebbing, despite her acceptance of math-ematical logic, affords space in her books to the traditional logical analysis as well.
Chapman’s Chapter 4 and, mainly, Chapter 5 present a detailed reconstruction of the philosophical context in which Stebbing worked. Chapter 5, Logical Positivism and Philosophy of Language, is an excellent read for everyone who wants to know more about logical positivism, particularly because Wittgenstein (an “associate” of the Vienna Circle) was of great influence in Stebbing’s conceptions and also because the first time that Carnap went to UK was by invi-tation of Stebbing. The relations between Stebbing and the positivists was closer, but also have several philosophical disagreements. According to Chapman (p. 84) in Logical Positivism and Analysis (1933), she sets out what she sees as the main claims of the logical positivism. For her the most attractive characteristic in Wittgenstein and in the logical positivists was “the insistence on analysis as the philoso-pher’s main tool in searching for clarity and unmasking as simply nonsensical some of the questions that philosophers had traditionally posed themselves”. To the Vienna Circle, the analysis of the sentences can show what sentences have meaning and what sentences haven’t. A sentence is mean-ingful only in one of the three following cases: (i) if it is an-alytic, i.e., if this meaning is determined by the language; (ii) if it is a logical or mathematics sentence; or (iii) if it can be, in principle, verified by observation.
Although Stebbing agreed with some of the positivists ideas, she was a critic of other aspects of their philosophical conceptions, in special the conception of analysis. Accord-ing to her, the way in which the positivists perform analysis is problematic. Positivist approaches fail to observe differ-ent kinds of analysis. They consider that all analysis is nec-essarily linguistic analysis. As Chapman explains (p. 85), “for Stebbing, using language to analyse language involves philosophers in an unproductive and circular activity”. Fur-thermore, the purpose of analysis is to clarify existing be-liefs, not justify them. Another point of disagreement with the members of the Vienna Circle was about metaphysics. For them, all metaphysical sentences haven’t cognitive con-tent: metaphysical sentences are unable to fall in any of the three kinds listed before. They are not analytical, not logical and not observable, in principle, by experience. On the other hand, due the influence of Wittgenstein and Ber-trand Russell, Stebbing sustains an atomistic conception of propositions, namely, that there are basic atomic sentences that constitute the world.
The popularity of Stebbing grew in the 1940’s especially because of Thinking to Some Purpose (1939). In this book, she presents a rich analysis of the way that we think and how we can avoid the illogicalities in the speech of other people and in our own. Written at the beginning of the World War II, the book affords space to discuss some “examples taken from the speeches of politicians and from politically loaded newspaper reports and is explicitly aimed at promot-ing a discerning and critical attitude in the electorate” (p. 120). So, the book, focuses, among other things, also in the political context of England when WWII started.
However, the central idea is that we need to make clear our reasoning and a logical analysis of the ordinary speech could show where the mistakes are. The point is very sim-ple: we talk unclearly, because we think unclearly. Then, to talk in a clear way, we need to consider the way that we think. According to Stebbing (1939, p.22), thinking logical-ly (reflexively) is thinking to some purpose. In her own words, “to pursue an aim without considering what its real-izations would involves is stupid”. In this sense, thinking involves asking questions and trying to find answers to these questions. When we think logically, we think rele-vantly to the purpose that initiated the thinking. The pro-cess of reflective thinking consists in pondering upon a set of facts so as to elicit their connections. This process is known as inferring. The various stages in the process are re-lated to the conclusion as the grounds upon which it is based. Stebbing calls these grounds “premises”. In short, ef-fective thinking is directed to an end. Consequently, there is a teleological commitment in all properly reflexive think-ing.
According to Chapman (p. 183), Stebbing was con-cerned in special with the analysis of language primarily as a window to the process of thinking that it expressed. By the language we can determine if this process is logical or oth-erwise. Books like A Modern Introduction to Logic (1930), Thinking to Some Purpose (1939), Ideals and Illusions (1941) and A Modern Elementary Logic (1943) contains some im-portant ideas which became central in subsequent discus-sions in Ordinary Language Philosophy and in Pragmatics. Stebbing’s philosophical motivations were very similar to those of philosophers of the first generation of ordinary language, like J. Austin, H. P. Grice, and Wittgenstein in the Philosophical Investigations.
In the last chapter of the book, Chapter 9, Stebbing, Phi-losophy and Linguistics, Chapman shows us, in a very clear way, the relations between Stebbing’s work and the follow-ing developments in Philosophy of Language and the dis-cussions of language in general. Throughout her work, it is possible to identify several passages when Stebbing sustains positions that only some years later were systematically con-sidered. As Chapman says “her attentiveness to how words, even the most philosophically loaded ones, are used and understood in everyday life inevitably invites comparisons with ordinary language philosophy. Her insistence that analysis must have real examples of language in use, have resonances with some very recent approaches in linguistics, particularly with critical discourse analysis”. Stebbing’s handbooks on logic, A Modern Introduction to Logic and A Modern Elementary Logic, consider both the analysis of mathematic logic as well the ordinary language, the com-mon sense language.
Susan Stebbing and the Language of Common Sense is a book that deserves attention. It is a very interesting book that brings us important information about the develop-ment of analytical philosophy in the beginning of the twen-tieth century in Britain. Chapman organized the book in a chronologically way that helps the reader to understand the development of Stebbing’s ideas. The language and the way in which the philosophical conceptions are presented are quite clear. In special, in my opinion, this book has as a great worth the capacity to find on a nearly forgotten phi-losopher views that are actual. Although today Stebbing is unfamiliar for most philosophical students, in her works we can find very stimulating analysis and views that remain current. Stebbing contributed to the development of logic and philosophy of language, so her writings cannot be dis-regarded. According to Chapman (p. 186) “Stebbing’s work as a whole is best assessed in relation to the various direc-tions taken in the decades that followed her death by the serious study of human language”. Furthermore, her histor-ical figure is symbolic in the pursuit for equal rights be-tween men and women not only in the universities, but in all fields.
Referências
CHAPMAN, S. Susan Stebbing and the Language of Common Sense. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013.
Kariel Antonio Giarolo – Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: karielgiarolo@gmail.com
Um reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII – FRAGOSO; MONTEIRO (RG)
The Portuguese crown held considerable territory in the early modern period and sought measures to preserve its political power, as in any other extended empire. A strategy based on official communications, particularly letters, was a very important instrument to govern not only the overseas territories, but also those in Europe located far from Lisbon. Understanding the role of these communications, as well as their practical application, is the focus of Um reino e suas repúblicas do Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII (»A kingdom and its republics in the Atlantic: Political Communication between Portugal, Brazil and Angola during the 17th and 18th Centuries«). Applying a transatlantic perspective, João Fragoso and Nuno Gonçalo Monteiro, the editors, generally study the political institutions of the Portuguese Empire, which were founded on a common architecture that included every single village in all territories of the kingdom as well as in America, Africa, and Asia. This particular analysis, however, is restricted to the states of Brazil and Maranhão in America and Angola on the Atlantic coast of Africa. In this context, the official communications played an important role in connecting the central authority to local powers, both by hearing and by commanding when necessary. This is exactly what the book intends to demonstrate.
We can clearly notice a common background, which the sources confirm throughout the book, in all the published texts. First, all of them refer to the cities and villages in the Portuguese Empire as communities with a considerable level of autonomy from the crown, constituting the »republics« mentioned in the title, in an unequivocal reference to the political thought of Aquinas and the scholastics, especially authors like Francisco Suárez. Local communities shaped social life most of the time, but this did not mean that the crown was powerless or irrelevant. As the editors write explicitly, the municipal councils were the heads of political communities endowed with jurisdiction.
On the other hand, all articles prove that intense contact between Lisbon and the »republics« of the kingdom was the key to this model’s success. With its foundation after the Portuguese Restoration in 1640 and at least until the ascension of King Joseph I and the Marquis of Pombal in 1750, the Conselho Ultramarino became the center of political communication with the overseas possessions. Within the relevant Projeto Resgate Barão do Rio Branco, hundreds of thousands of documents of the Arquivo Histórico Ultramarino (where these docu | ments were archived in Portugal) are now available electronically. Many monographs about the colonial institutions, particularly theses and dissertations, published in the last two decades have been based on these documents. Despite the use of the same database, this volume has a different aim, which is not only to understand the nature and features of the documents written in America or Angola and sent to the kingdom, but also to see them as part of imperial governance, which depended on formal instruments, such as consultations answered by the council.
The book is divided into three parts, and the first one, Arquitetura da Monarquia e circulação da comunicação, is divided into three chapters, opening with a study by João Fragoso about »mercies« (i.e. grants of offices and gifts by the crown to vassals and their families) and their relevance for the relations between the center and the periphery in Portugal. According to the author, successful petitions for an office as compensation for vassal services to the commonwealth were clear manifestations of a »sentiment of belonging« to the Portuguese monarchy. People felt they were part of the empire, which is why Fragoso believes that the mercês were a crucial element in maintaining a »pluricontinental« and corporatist monarchy based on a negotiated coexistence of powers. The predominance of the mercês as a subject of correspondence corroborates this view in most of the captaincies analyzed. The two following chapters deal with the institutions involved in communication. Maria Fernanda Bicalho, José Damião Rodrigues, and Pedro Cardim look into the role of cortes (assemblies of states), juntas (boards of municipal councils and the governor of a captaincy) and of the procurators in political communication, noting their objective to pay attention to the local powers. The presence of representatives (procurators) of some overseas municipal councils in the Portuguese cortes after the Restoration and the organization of juntas as local assemblies in America can be seen as a means of managing the interests of cities and villages that reinforced the position of local institutions in guaranteeing royal authority. After that, Maria Fernanda Bicalho and André Costa discuss the Conselho Ultramarino as the institution responsible for overseas affairs, tracking the number of consultations documented in the database over time. This diachronic survey reveals the decrease in importance this Council suffered when the Secretariat of State was created, which centralized most decisions about public affairs in the kingdom in the mid-18th century.
Part two, Temas da comunicação, starts with an impressive article by Pedro Cardim and Miguel Baltazar on the diffusion of Portuguese royal legislation. The authors discuss the complex typology of royal norms and use the database Ius Lusitaniae, which holds 6 574 laws enacted by the Portuguese kings between 1621 and 1808, to analyze the most repetitive themes, the process of publication, and how these norms circulated, were compiled and became mandatory in local juridical spaces, especially in the overseas territories. Carla Almeida, Antonio Carlo Jucá de Sampaio, and André Costa have prepared a chapter about the fiscal issues and how they can be understood from the perspective of political communication. Bearing in mind that the municipal councils also had the power to institute taxes, the authors realized, using the database, that some aspects of fiscal practice, such as the public sale of the right to levy and collect taxes, were usually based on urgent necessities and in agreement with local powers. War and military affairs are discussed by Roberto Guedes Ferreira and Mafalda Soares da Cunha in a chapter that highlights their relevance even during peacetime, when providing military offices according to local requirements was a common theme. Here we can also observe the logic of the mercês. Ending this part, Antonio Carlos Jucá de Sampaio debates issues of economic history, namely currency and commerce, in order to understand the practices of social life in an economy with scarce currency and dependence on exchanges. Such dependence explains why sugar became an important element of credit and sometimes an unofficial (though recognized by the crown) medium of exchange in many areas of Brazil until the development of mining during the 18th century.
Focusing on agents and institutional spaces of communication, part three begins with a chapter by Francisco Cosentino, Mafalda Soares da Cunha, Antônio Castro Nunes, and Ronald Raminelli about the governors and their duty of communicating with the crown. Almost one-fifth of the documents in the database were issued by governors, a general category that included viceroys, governors-general, governors of captaincies and capitães-mores. Therefore, most of them deal with questions of government. Mafalda Soares da Cunha, Maria Fernanda Bicalho, Antônio Castro Nunes, and Isabele Mello look into the administration | of justice in their chapter about the corregedores and ouvidores as agents in political communication. Their description leaves no doubt about how these documents were used juridically: they were not sources to reconstruct the content of lawsuits or procedural details (e.g. producing evidence and decision-making), but a consistent means to grasp some practical questions and the relations between the crown-appointed judge (ouvidores) and the central power. The chapter by Ronald Raminelli concerns the political power of the municipal councils, which their correspondence with Lisbon reveals. The growing amount of documents sent by the cities, according Raminelli, corresponds to their ability to negotiate with the crown, although this changed from 1750 on, when the Secretariat of State started dealing directly and more frequently with the governors. A specific analysis of the Angolan experience, mixing the databases of the Arquivo Histórico Ultramarino and the Biblioteca Municipal de Luanda, appears in the chapter by Roberto Guedes Ferreira about political communication in the municipal councils of Luanda and Benguela and the Governor of Angola, predominantly in the second half of the 18th century. Finally, the chapter by Nuno Gonçalo Monteiro and Francisco Cosentino tackles the petitions from corporative groups in some cities of the kingdom (Évora, Faro, Viana, and Vila Viçosa) and in the most important captaincies of America. These petitions, which were collective requirements from groups of interest (many of them popular economic activities such as tailors, carpenters, and blacksmiths), indicate intense correspondence with the center independent of individual requirements.
All contributions to this volume pay special attention to an important question that has recently been discussed in legal theory1 and in a few works by António Manuel Hespanha.2 This book brings legal history into the very fruitful debate on the role of political communication, particularly the dynamics of power in the relations between the center and the peripheries of the empire, since localities asked for solutions and seemed to behave according to the answers they received. Furthermore, these studies enable a detailed look at the social (and juridical) life in many areas of the empire, even the farthest, and they are all integrated into a logic of belonging to the same political institutions. The crown and its possessions established much more complex relations than the simple reductions traditional historiography describe.
Even without stating it expressly, law is a central concern of this book, and this is why it is extremely relevant for legal historians studying the early modern period. There are some aspects, however, in which the legal-historical approach could go further, such as in conceptualizing law or describing what can be understood as contemporary law and sources of law, which is one of the central, but commonly neglected, issues in analyzing law in Portuguese America.3 Legal historiography mostly identifies law and legal norms with those enacted by the king – a very restrictive concept that is not sufficient to describe other normativities that coexisted in the same juridical space4 and cannot explain coherently, for example, the nature of the answers to consultations of the Conselho Ultramarino. A few problems of legal theory must be solved in order to understand the nature of these sources, but works like this book are a helpful starting point for this research agenda.
Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos | Tâni Bessone, Gladys S. Ribeiro, Monique S. Gonçalves e Beatriz Momesso
O diálogo da historiografia do Brasil Império com a Nova História Cultural costuma produzir bons frutos, e Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos não foge à regra. O propósito do livro é interpretar a consolidação da palavra impressa como parte do processo de formação do Estado nacional no longo século XIX, sugerindo que o desenvolvimento de jornais, revistas e livros possibilitaram a circulação de ideias, o estabelecimento de espaços de sociabilidade e a edificação de trajetórias individuais num movimento de condicionamento recíproco entre história política e história cultural.
Organizado pelas especialistas Tânia Bessone (UERJ) e Gladys Sabina Ribeiro (UFF) – cujos percursos intelectuais privilegiaram respectivamente a história dos livros e a história política do Brasil oitocentista – em conjunto com as pós-doutorandas Monique de Siqueira Gonçalves (UERJ) e Beatriz Momesso (UFF), o livro é o resultado de uma ampla empreitada de trabalho intelectual colaborativo. Com a participação de pesquisadores de diferentes instituições do país, ele amplia a discussão dos projetos de pesquisa desenvolvidos desde 2012 no Centro de Estudos do Oitocentos (CEO-UFF), no Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (REDES-UERJ) e, recentemente, na Sociedade Brasileira de Estudo do Oitocentos (SEO), desdobrando, assim, o debate ensejado por coletânea anterior, O Oitocentos entre livros, livreiros, missivas e bibliotecas (Alameda, 2013).
Dividido em quatro seções temáticas, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos esteia-se na premissa de Robert Darnton e Daniel Roche de reconhecer a palavra impressa como “força ativa na história”, um “ingrediente dos acontecimentos” capaz de desempenhar não só o papel de fonte de informação, mas também o de intermediação da prática política e social oitocentista.
Em sua primeira seção, “Impressos políticos”, o livro apresenta análises sobre o significado do pensamento liberal no reordenamento da cultura política e na construção de identidades sociais. Destaca como distintos projetos políticos para o Brasil circularam em jornais, a exemplo das propostas de revisão do Antigo Regime possibilitadas pela Revolução do Porto nas províncias da Cisplatina e Bahia e o embate discursivo entre republicanos liberais quando da crise da monarquia.
Opondo-se à tese que considera o processo de independência do Uruguai como resultado de um “Estado-tampão”, Murillo Winter (capítulo 1) expõe os distintos movimentos políticos e identitários na região. Explorando a imprensa cisplatina, ressalta a repercussão dos periódicos na politização da população e na mudança da conotação da identidade oriental, inicialmente associada aos anos de guerra civil e ao projeto confederado de José Gervásio Artigas. De igual maneira, salienta as particularidades do discurso político veiculado na Banda Oriental, focalizando a construção da “orientalidade”, elemento de diferenciação que negava tanto o domínio colonial quanto outras formas de sujeição.
Moisés Frutuoso (capítulo 2), em pesquisa sobre a produção jornalística na vila baiana de Rio de Contas, expõe como os periódicos publicados na Bahia e no Rio de Janeiro foram determinantes para a constituição da Junta Temporária de Governo e para o recrudescimento do antilusitanismo na localidade. Demonstra a atuação dos periódicos como veículos de propaganda de projetos políticos, especialmente liberais, e consequentemente como espaço de debate que confrontava distintos grupos da sociedade em torno da edificação do Estado Imperial, o que pôde ser caracterizado com primazia na Guerra dos Mata-marotos (1831), fruto de intensos conflitos que opunham “portugueses americanos” e “portugueses europeus”.
Ainda na primeira seção, o texto de Daiane Lopes Elias (capítulo 3) privilegia o Segundo Reinado e a atividade dos republicanos liberais a partir da publicação do Manifesto de 1870. Analisando sua composição discursiva, esclarece como a prática vencedora fundamentava-se na adaptação de doutrinas estrangeiras (no modelo americano de República) para “encontrar nelas as ferramentas capazes de instrumentalizá-las na ação de deslegitimação das instituições, práticas e valores imperiais” (p.64), e, por conseguinte, na reinvenção da elite política brasileira.
A segunda seção do livro, “Impressos periódicos”, enfoca o debate sobre caminhos políticos e artísticos embasados nas ideias liberais que se formataram no país na crise do Império. Para tanto, reúne estudos que, valendo-se da investigação de dois importantes periódicos publicados nas décadas de 1870 e 1880, analisam críticas ao governo e a específicas esferas da sociedade imperial visando reconhecer os obstáculos à chegada da modernidade ao Brasil.
Alexandre Raicevich de Medeiros (capítulo 4) empenha-se no reconhecimento das redes de sociabilidade proporcionadas pela Casa Arthur Napoleão & Miguez, responsável pela publicação da Revista Musical e de Bellas Artes e pela venda de instrumentos e edição de partituras. Destaca a especificidade do público leitor da revista – o que incidiu em sua curta trajetória – e as distintas temáticas que explorava dentro do campo cultural, como resumos de história da arte, notícias estrangeiras, comentários de obras literárias e de peças de teatro. Igualmente, salienta o tom crítico e de denúncia ensejado em seus textos, como a defesa do Theatro Imperial, cuja situação de penúria era atribuída ao descaso do governo, e o debate sobre a evolução das artes plásticas no Brasil.
Também explorando a crítica e o enfrentamento, desta feita por intermédio do humor engajado a surgir das páginas do caricato O Mosquito, Arnaldo Lucas Pires Junior (capítulo 5) estuda as denúncias das ilustrações veiculadas no periódico à chegada da modernidade ao Brasil. Explica como as caricaturas representavam o imaginário social de uma parcela da elite ilustrada que se identificava com o modo de vida europeu, mas que se via emperrada pelas barreiras da realidade nacional, a exemplo da escravidão, do posicionamento dos políticos e das relações entre Estado e Igreja.
Na terceira seção, “Impressos e trajetórias biográficas”, o livro contempla pesquisas dedicadas a percursos individuais de importantes figuras políticas do Império, demonstrando as possibilidades do fazer biográfico oportunizada pela palavra impressa.
Vislumbrando o reconhecimento de ideias antiescravistas no pensamento do escritor e político liberal Joaquim Manuel de Macedo, Martha Victor Vieira (capítulo 6), analisa a obra As Vítimas-Algozes: quadros da escravidão (1869) para caracterizar o empenho de uma parcela da elite política na superação do trabalho escravo e o consequente receio enunciado pelos senhores escravocratas. Com base nos argumentos evocados por Macedo, que objetivavam convencer o público a alinhar-se com a proposta de abolição gradual, a pesquisadora identifica em seu texto “indícios de um traço comum com outros escritos dos homens de letras da primeira geração do romantismo e do IHGB, os quais concebiam a história como ‘mestra da vida’” (p.137).
Utilizando manuscritos e impressos do final do século XIX e início do XX, Samuel Albuquerque (capítulo 7) dedica-se à figura de Antônio Dias Coelho e Mello, barão da Estância, visando à reconstituição de viagem empreendida pelo político sergipano entre Aracaju e o Rio de Janeiro. Tendo por base esse caso, analisa as distâncias percorridas pelos políticos do Império entre as províncias e a Corte para demonstrar as transformações no modelo familiar, a divulgação do padrão de civilização europeu no seio da elite e os espaços de sociabilidade da alta sociedade na capital do Império, em destaque a rua do Ouvidor.
O texto de Rafael Cupello (capítulo 8) investiga as distintas representações existentes sobre Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, marquês de Barbacena, renomado político do Primeiro Reinado. No intuito de reconhecer quais artifícios foram utilizados na edificação de suas memórias, reconstrói a trajetória social do personagem, bem como suas redes de sociabilidade, esclarecendo, por meio de vasta pesquisa, quais elementos foram privilegiados nas biografias do marquês e como eles instituíram sua identidade histórica.
Na última seção, “Impressos e espaços de sociabilidade: as bibliotecas”, a obra se debruça sobre a circulação de ideias proporcionada pelos “espaços de saber” em diferentes momentos do Oitocentos. Enfatiza o papel das bibliotecas e clubes literários na construção do conhecimento escrito, na consolidação da cultura leitora no Brasil e na manifestação do pensamento político.
Juliana Gesuelli Meirelles (capítulo 9), em estudo sobre a Impressão Régia e a Real Biblioteca do Rio de Janeiro, privilegia as transformações da cidade ao longo do governo joanino. Enfatiza a diversidade de publicações do período – de anúncios a obras de História Natural – e o papel do bibliotecário na circulação dos impressos. Retrata também o processo de edição das publicações, além de sugerir que a implantação da tipografia foi determinante para a firmação da prática de leitura no período, momento em que o espaço público era marcado pela oralidade. De igual maneira, destaca a função desempenhada pela Biblioteca e seu acervo: espaço de saber e status da Idade Moderna.
Karulliny Silverol Siqueira Vianna (capítulo 10), empenha-se em pesquisa sobre a cultura impressa na província do Espírito Santo nos anos de 1880. A autora lança luz sobre a criação de clubes literários e bibliotecas, locais caracterizados não apenas enquanto espaço de leitura, mas também de intenso debate político e científico. Explorando o conteúdo de exemplares de periódicos e de relatórios, Vianna mostra que a construção de redes intelectuais que discutiam e propagavam ideais de novas correntes políticas no Espírito Santo, como no caso da propaganda republicana, ajudou a operar “a exclusão política de alguns grupos na província” (p.216).
Por fim, Carlos André Lopes Silva (capítulo 11) analisa a biblioteca da Academia dos Guardas-Marinha, vinda ao Brasil com a Real Família Portuguesa em 1808. Seu estudo demonstra como a organização de um corpo de livros pode fornecer ao historiador rico instrumento para apreender a sistematização do saber institucional. Privilegiando a atuação de seu organizador, o capitão de fragata José Maria Dantas Pereira, Lopes Silva estuda o papel dos manuscritos e impressos na instrução dos alunos da Academia, atendo-se aos volumes que compunham a biblioteca e à estrutura de funcionamento dela. Em sua análise, é fácil perceber que livros raros de distintas áreas do conhecimento, como matemática, química, botânica e história natural, constituíram referências relevantes para a ciência militar e para divulgação do conhecimento.
Ao abordar de maneira meticulosa as possibilidades da utilização de impressos como fontes ou objetos de pesquisa, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos contribui com o importante debate historiográfico sobre as práticas de leitura e escrita e sua imbricação com a formação nacional, enriquecendo o conjunto de estudos que se dedicam aos aspectos políticos e culturais do Oitocentos. Outrossim, ao compor-se de textos de pesquisadores de diferentes níveis de formação e diversas instituições universitárias do país, indica o importante diálogo aberto pelos grupos de trabalho que se empenham no reconhecimento da palavra impressa como instrumento de manifestação da cultura política escrita no Brasil. Ainda, ao abordar as variadas dimensões do universo da imprensa, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos evidencia como a divulgação de ideias, valores e costumes estava associada à circulação de jornais, revistas e livros, ou ao “fogo do céu” e à “fórmula da nova ideia” (p.7) evocadas por Machado de Assis.
Referência
BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabi-na; GONÇALVES, Monique de Siquei-ra; MOMESSO, Beatriz (Orgs.). Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos. 1.ed. São Paulo: Alameda, 2016.
Eduardo José Neves Santos – Mestrando. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: eduardo-neves@outlook.com.br
BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabina; GONÇALVES, Monique de Siqueira; MOMESSO, Beatriz (Orgs.). Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: SANTOS, Eduardo José Neves. “O fogo do céu” e a “fórmula da nova ideia”: escrita, leitura e impressos no Brasil oitocentista. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 502-507, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]
Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea / William Outhwaite
Willian Outwaite atuou, por 34 anos, como professor de sociologia, coordenador do Programa de Pensamento Político e diretor do Centro de Teoria e Crítica Social na Universidade de Sussex. Autor de extensa obra sobre teoria social, é professor emérito de sociologia na Universidade de Newcastle, desde 2015.
Com o intuito de apresentar uma síntese da teoria social e o quanto essa ciência pode contribuir para a compreensão das grandes questões do mundo contemporâneo, a obra resenhada divide-se em oito capítulos. No primeiro, intitulado Origens, o autor promove uma reflexão sobre as origens das desigualdades sociais e os ideais, tão presentes hoje, que levaram às revoluções. Em Capitalismo, retoma o pensamento de Marx e Engels para analisar essa controversa forma social e econômica que, na atualidade, molda a vida da maior parte dos seres humanos. Em Sociedade, Outhwaite, objetivando examinar o desenvolvimento das sociedades – das formas simples às modernas – recorre a Herbert Spencer e Émile Durkheim. No quarto capítulo, Origens do capitalismo e teorias da ação social, o autor focaliza as precondições e consequências culturais do capitalismo.
Para introduzir o quinto capítulo e responder à pergunta “Como a sociedade é possível?”, o autor recupera o pensamento de Georg Simmel, cujo interesse por fenômenos culturais inspirou e inspira trabalhos em sociologia sobre a teoria “pós-moderna”. Em A descoberta do inconsciente, Outhwaite discorre sobre como a análise da psique de Freud moldou a compreensão da realidade, delineando as implicações desses estudos na cultura contemporânea. No capítulo Teoria social e política, a maneira pela qual alguns teóricos sociais tentaram explicar a política moderna recebe destaque. Por fim, em Questão pendente, temas relevantes na contemporaneidade que, até pouco tempo, eram negligenciados na teoria social são abordados, tais como gênero, relações internacionais e guerra, raça, colonialismo e crise ambiental.
O primeiro capítulo, concentra-se nas questões propostas por Rousseau e Montesquieu, no século XVIII, sobre a origem das desigualdades nas sociedades e a distinção entre moral e crítica social. Recorrendo a exemplos, o autor ilustra como esses temas permearam debates posteriores. Estabelece, desse modo, um paralelo entre as relações de poder, a histórica e crescente desigualdade social e, em se tratando de desigualdade natural, como nas sociedades capitalistas os olhares se voltaram à equidade. Nesse sentido, ressalta-se como as críticas de Rousseau ao excesso e ao luxo ou, nas palavras desse filósofo do iluminismo, a distinção entre a vontade conectada ao bem público e a vontade relacionada aos interesses individuais é extremamente relevante para a compreensão da política moderna.
Ainda sobre a política moderna, o autor retoma o pensamento de Montesquieu que, em O espírito das leis (1748), enfatiza a necessidade de um legislador, tanto quanto um arquiteto, conhecer bem o terreno antes de elaborar projetos, visto que o terreno pode não suportar o peso do que foi planejado. Em outras palavras, regimes políticos encontrarão solo seguro quando adequados à sociedade, não impostos. A aguda percepção de Montesquieu acerca da interação entre eventos acidentais e causas estruturais de longo prazo é, portanto, um bom ponto de partida para estudos que tem por fim compreender a relação entre o papel dos indivíduos e as estruturas mais amplas da história.
O autor finaliza este capítulo retomando a ideia de Montesquieu acerca do “espírito geral” e sinalizando como a mesma, além de encontrar eco no que Durkheim chamou de “consciência coletiva”, se mostra nuclear nos dias atuais para analisar-se as desigualdades, a democracia e os perigos do conformismo ou, numa expressão de Tocqueville, da tirania de uma maioria.
No segundo capítulo, Outhwaite, promove uma incursão na obra de Marx e Engels. De acordo com esse professor de sociologia, as análises realizadas por esses dois teóricos germânicos sobre os antagonismos das classes e as formas de produção são, até hoje, a forma mais consiste para pensar-se a estrutura social e econômica vigente na maior parte do globo terrestre: o capitalismo.
Começando com conceitos presentes em O capital (1867), é-se apresentado ao que Marx chamou de “valor de uso”, valor de troca”, “fator sensação”, “equivalente universal” e “mais valia”. Outhwaite assinala que a exploração do trabalho assalariado é tão intrínseca ao processo capitalista quanto os conflitos entre os que detêm os meios de produção e os que dispõe da força de trabalho. Lembrando que o lucro decorre do fato dos trabalhadores receberem em seus salários um valor bem distante do equivalente à produção por eles realizada, e os conflitos, por sua vez, resultam desse valor recebido mal suprir as necessidades de sobrevivência de quem detém a força de trabalho.
Ainda na atualidade, a ideia de receber o “valor total de seu trabalho” permanece tão incompatível com a manutenção do sistema capitalista que, em 1995, Tony Blair retirou do verso das carteiras dos trabalhadores a famosa clausula quatro do estatuto do Partido Trabalhista, que reconhecia como justo “Assegurar aos trabalhadores braçais ou intelectuais os plenos frutos de sua indústria e a mais equitativa distribuição possível deles, com base na propriedade comum dos meios de produção, distribuição e troca” (OUTHWAITE, 2017, p. 31).
Outra questão que merece destaque é a crítica de Marx à religião, por promover reflexões sobre a estreita relação entre os antagonismos de classes nas sociedades modernas e as ideologias. Para Marx, a insatisfação com as condições políticas e sociais levava o povo a refugiar-se nas ilusões da religião. Sob esse prisma, ao puxar o fio da religião, desmancham-se as bases que legitimam ideologicamente as desigualdades e a exploração.
Antes de encerrar o segundo capítulo, a autor ressalta como pode-se observar, no pensamento de Marx e Engels, a importância de uma relação harmônica entre seres humanos e, indubitavelmente, como essa necessidade de harmonia deve ser estendida a toda a natureza. Esses elementos abrem espaço para argumentar-se que a obra desses dois teóricos da filosofia e da sociologia, implicitamente, oferece bases para reflexões sobre desenvolvimento sustentável nas sociedades humanas. Tanto que, perto do final do século XX, na esteira do pensamento desses revolucionários socialistas, emergem movimentos anticapitalistas combinados a novos movimentos sociais, abordando temas como a desigualdade de gênero, a exploração baseada na etnicidade e a crise ambiental.
Em Sociedade, ao analisar o pensamento de Herbert Spencer – pioneiro da teoria social evolucionista –, o autor ilustra a problemática presente na ideia de “sobrevivência dos mais aptos”. Desta forma, sugere que para realizar-se um exame, por exemplo, do esgotamento do comunismo, tem-se que considerar um feixe de elementos que perpassam por questões econômicas, ideológicas e culturais.
Ao avaliar o contraste entre o que os teóricos marxistas chamam de ideologia e o que Durkheim nomeia como sistemas de valores compartilhados, Outhwaite lembra que Durkheim, no final do século XIX, em sua obra O suicídio (1897), analisou as diferentes taxas de suicídio e promoveu reflexões sobre o valor das crenças compartilhadas, bem como sugeriu a importância dos laços sociais. Esses estudos instigam questionamentos sobre o modelo globalizado e fragmentado da sociedade em que vivemos.
No quarto capítulo, é apresentado o pensamento contido na obra de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05). Destaca-se a análise sobre o modelo da ética econômica protestante e os quatro tipos principais de ação identificadas por Weber: a ação tradicional, a ação guiada pela emoção, a ação irracional em relação aos fins e a ação racional em relação aos valores.
O autor finaliza o quarto capítulo focalizando no trabalho de Georg Lukács, Theodor Adorno e Habermas as conexões entre as formas de ação social, no nível mais básico, e os processos mais amplos de desenvolvimento social e histórico.
Em como a sociedade é possível, Outhwaite descreve ligações entre comportamentos cotidianos e processos estruturais mais amplos, tendo como base o pensamento de Georg Simmel, Erving Goffman, Harold Garfinkel, e a obra de Norbert Elias, O processo civilizador (1939). Nas palavras do autor, em razão do extenso exame que Simmel realiza das precondições e das consequências intelectuais, culturais e psicológicas da economia monetária em A filosofia do dinheiro (1900), essa obra poderia, sem dúvida, ter por título “sociologia do dinheiro”. Para esse sociólogo alemão, individualismo, nervosismo e economia monetária se relacionam estreitamente com a vida urbana, sendo o desgaste compensado pela atitude blasé.
A obra de Goffman, por sua vez, tem como foco a dimensão da representação no desempenho de papeis sociais, ou seja, de acordo com esse sociólogo norte americano, as pessoas se adequam aos papeis prescritos pela sociedade para não serem excluídas. O pensamento de Harold Garfinkel se aproxima da abordagem de Goffman, já que para o primeiro a manutenção da ordem é produto do trabalho interpretativo dos atores sociais.
Após destacar o paralelo estabelecido por Norbert Elias entre as transformações, nos primórdios da Europa moderna, das estruturas de personalidade e dos comportamentos individuais e a origem do Estado moderno, Outhwaite, recorre a Zygmunt Bauman e Luc Boltanski para expor a magnitude dos desafios da sociedade contemporânea.
Partindo da premissa de que a análise que Sigmund Freud fez da psique moldou totalmente a compreensão que tem-se da humanidade e, consequentemente, da cultura e da sociedade, Outhwaite inicia o sexto capítulo ponderando acerca do papel do recalcamento de pulsões conscientes e inconscientes na construção da cultura humana. Para defender sua tese, recorre às teorias de Freud, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Louis Althusser.
Ainda nesse capítulo, o autor estabelece associações entre e as ideias de Freud e as de Marx; entre o modelo de autoridade carismática de Weber e os sentimentos inconscientes – estudados por Freud – de quem segue essa espécie de liderança; e, por fim, entre a ênfase de Freud na regulação e o que Durkheim denominou ausência de normas na sociedade moderna. Destaca-se o impacto da psicanálise na interpretação de textos literários e na análise de produções cinematográficas, em especial, as análises de Hanns Sachs, Gilles Deleuze e Slavoj Žižek.
No capítulo intitulado Teoria social e política, Werner Sombart, Robert Michels e Norbert Elias são referências para o debate sobre o quanto uma concepção do social ou de sociedade pode ter potencial para promover a compreensão de problemas que a abordagem política não consegue alcançar. Outhwaite lembra que esses teóricos sociais propuseram análises significativas da política e, para ilustrar, retoma suas ideias sobre a permanente oposição entre a teoria das elites e a teoria da sociedade de massas; a exposição das massas urbanas às elites demagógicas; a abertura da teoria crítica às questões culturais e à teoria freudiana; a oposição entre as explicações centradas no Estado e centradas na sociedade; bem como sobre as teorias da globalização e suas dimensões econômica, social e cultural.
Sobre as teorias da globalização, finaliza esse capítulo lembrando que essas não podem se deter aos aspectos econômicos, pois envolvem dimensões sociais e culturais mais amplas. Nesse sentido, o autor propõe a reflexão sobre as formas atuais de política democrática em meio a relativa imobilidade das estruturas políticas e os avanços das técnicas de manipulação das massas, destacando o controle exercido pela televisão e ascensão de partidos populistas.
Outhwaite, em Questão pendente, avalia que, apesar da relevância da teoria social, algumas áreas foram tardiamente tratadas pela sociologia, como, por exemplo, as relações internacionais e a guerra. De acordo com pesquisas realizadas por esse autor, a palavra conflito – relacionada à conflito internacional e guerra – pouco aparece nas produções acadêmicas do final do século XX. Além disso, pouca atenção foi dada às noções grosseiras de competição evolutiva aplicadas ao social e aos movimentos “verdes” que, nas palavras do autor, não podem continuar sendo negligenciados pela sociologia.
A teoria pós-colonial tem se mostrado mais forte nos estudos literários que nas ciências sociais e, sobre essa sociologia que emergiu de uma cultura imperialista e desconsiderou o mundo colonizado, o autor afirma ser urgente sua revisão. Considera, também, que os debates em torno da modernidade e pós-modernidade não podem mais ignorar os modos como a democracia foi transformada em algo próximo a um teatro, no qual a política é protagonizada pelos que controlam as finanças e os meios de comunicação.
Para além de proporcionar uma viagem panorâmica pelos tópicos que interessam à teoria social e uma breve abordagem das análises realizadas pelos seus principais pensadores, nesse livro, pode-se avaliar o papel da teoria social e sua possibilidade de iluminar, em conjunto com as ciências sociais e a filosofia, questões latentes no século XXI.
Considera-se que, em um cenário contraditório, de aumento de pobreza, desemprego e exclusão, de violência urbana e de inquestionável expectativa de pertencimento ao mundo, tem-se como escolha a negação de acondicionamento ao existente. Nesse sentido, o conhecimento que advém desse livro pode ser uma excelente contribuição para instigar reflexões sobre e ações direcionadas às possibilidades de construção de, como coloca Gohn e Hamel (2003, p. 118), um “(…) novo modelo civilizatório, em que a cidadania, a ética, a justiça e a igualdade social sejam imperativos, prioritários e inegociáveis”.
Referências
GOHN, Maria da Glória; HAMEL, Pierre. Movimentos sociais e mudanças na democracia. In: ROMÃO, José Eustáquio; SANTOS, José Eduardo de O. Questões do Século XXI, tomo I. São Paulo: Cortez, 2003.
Régia Vidal Santos – Doutoranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE).
OUTHWAITE, William. Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 142p. Resenha de: SANTOS, Régia Vidal. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.32, p.126-131, jan./jul., 2018. Acessar publicação original. [IF].
Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias/compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos/1806-1888) | Victor Santos Gonçalves
Até pouco tempo atrás, escravos que trabalhavam fora das grandes lavouras de cana de açúcar e café, ou em regiões mineiras, mereciam pouca atenção dos historiadores. Ficou, então, possível negar a importância da mão de obra escrava em tais circunstâncias. Nos últimos vinte anos, a historiografia mudou e os pesquisadores começaram a prestar mais atenção às experiências dos cativos do que ao modo de produção e, com esta mudança, os escravizados em zonas de menor porte econômico, ou em lavouras menos conectadas à economia de exportação, começaram a atrair mais interesse. O livro aqui resenhado é uma das mais recentes e benvindas contribuições a esta nova historiografia. Leia Mais
A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas | Wilton Silva
Nas duas últimas décadas, a tradição dos estudos biográficos no Brasil alcançou avanços consideráveis. Dissertações e teses surgiram com todo vigor, problematizando personagens principalmente no campo das letras e da historiografia. Um exemplo desta expansão no campo historiográfico é a publicação do livro “A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas”, do historiador e sociólogo Wilton Silva, fruto de sua tese de livre docência, apresentada em 2013, na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus de Assis, em São Paulo. Publicada em livro em 2016, pela Editora Alameda, a obra traz uma apresentação da antropóloga Suely Kofes (UNICAMP) e o prefácio do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN).
Wilton Silva pretende no livro analisar como se consolidou a memória do jurista cearense Clóvis Beviláqua (1859-1944), problematizando as distintas matrizes narrativas, com especial destaque para as dimensões grupais e institucionais que atuam em processos de afirmações e construções da memória e do esquecimento deste personagem. Para isso, o autor investigou quatro biografias sobre o jurista, publicadas entre as décadas de 1950 e 1990 no Brasil: “Clóvis Beviláqua”, de Lauro Romero (1956); “Clóvis Beviláqua”, de Raimundo Menezes e Ubaldino de Azevedo (1960); “Clóvis Beviláqua na intimidade”, de Noêmia Paes Barreto (1989); e por último “Clóvis Beviláqua: sua vida, sua obra” de Silvio Meira (1990). O autor justifica a escolha pelos méritos historiográficos e aspectos conjunturais em que foram produzidas as biografias ou ainda pelas divulgações que obtiveram em suas respectivas épocas de lançamentos. Leia Mais
A emergência da escola – GONDRA (RBHE)
GONDRA, J. A emergência da escola. São Paulo: Cortez, 2018. Resenha de: COSTA, A. L. J., & SCHUELER, A. F. M. A emergência da escola. Revista Brasileira de História da Educação, 18, 2018.
As reformas instauradas através da ação dirigente do grupo de conservadores que lideravam a construção do Estado Imperial, sob a administração de Luiz Pedreira do Couto Ferraz – (Regulamento das Escolas de Primeiras Letras da Província do Espírito Santo, de 1848, Regulamento da Instrução Primária na Província do Rio de Janeiro, de 1849, e Regulamento do Município da Corte, de fevereiro de 1854) – constituem o ponto de partida de A emergência da escola, que reúne reflexões sobre o governo das escolas, as casas de educação, os espaços, o tempo escolar, os sujeitos governáveis, os limites e a extensão do governo, os saberes disseminados e os modos de ensinar, os professores habilitados, as teias disciplinares do poder estendido através da imposição de um modelo de socialização escolar e as formas de resistência dos professores.
A análise da reforma de 1854 não surge aqui reduzida à interpretação do texto legal, mas desloca a atenção para as várias dimensões da lei como ordenamento jurídico, linguagem, prática social ordenadora das relações sociais e campo de expressão e de construção das relações e lutas sociais. Tratou-se de ‘acontecimentalizar’ a reforma, considerando-a na sua ‘singularidade’. Seguindo as pistas teórico-metodológicas, sugeridas por vasta obra filosófica e histórica de Michel Foucault, o ‘acontecimento’ reforma foi apanhado por meio dos processos múltiplos que o constituem, de maneira a compor um ‘poliedro de inteligibilidade’, cujo número de faces não é previamente definido e nunca pode ser considerado legitimamente concluído. Como argumentam os autores, a ‘instrução reformada’, através da proliferação de regulamentos, normas e leis educacionais no período, contribuiu para gerar uma efetiva ‘cultura da reforma’ no Brasil que, via de regra, operava de acordo com a retórica da ineficácia, insuficiência ou inexistência de iniciativas.
Segundo os autores, períodos de reformas são privilegiados para discussão de projetos de sociedade, quando geralmente os modelos vigentes se encontram em exaustão. Nesse sentido, o projeto de Couto Ferraz evidencia o esforço regulador do Estado, que se quer afirmar como único, envolvendo toda a sociedade em suas malhas. Por esse motivo decreta que nenhuma iniciativa particular poderia se estabelecer sem licença do presidente de província. Porém, a manutenção da liberdade de ensino é um exemplo de como a reforma não se faz por mera imposição, sendo necessária a negociação com interesses privados.
Na primeira parte, é analisado o modo como as ações de governar, moralizar, disciplinar, higienizar e civilizar o povo articulavam-se no projeto de reforma da instrução e da escola como fórmulas que condensavam ambiciosos objetivos de ‘governo das multidões’. A hipótese, então defendida, é a de que a instrução foi uma estratégia civilizatória de governo através da escola, máquina de civilizar, com vistas a constituir um modelo de formação do povo que funcionasse em sintonia com o modelo de sociedade aspirado. Governo que se materializava nos espaços das escolas; na definição dos indivíduos escolarizáveis, o público escolar; no esquadrinhamento de saberes a ensinar; nos métodos e materiais de ensino; nos tempos e horários discriminados; e, ainda, nos processos de formação, certificação, qualificação, seleção e controle do corpo de professores.
O governo dos professores foi analisado a partir da decomposição do processo de profissionalização em níveis ou temporalidades profundamente articulados. Um primeiro nível, o da formação anterior ou inicial (tanto prática, através da aprendizagem do ofício no interior da escola, quanto escolar, através da disseminação do modelo de formação pelas Escolas Normais), enfocou a análise dos requisitos e exigências considerados necessários para a realização do trabalho docente. Um segundo nível, o tempo de ingresso, foi examinado através dos aspectos do processo de seleção de professores. Por fim, o nível do exercício docente, no qual sobressai a investigação das forças que constrangiam o professor quando este já se encontrava em pleno exercício de suas funções. Nas palavras dos autores, esses três níveis de análise, as três temporalidades, dão a ver os dispositivos ativados para assegurar a modelação do ‘bom professor’, como expressão e modelo de virtude.
Formação científica, processos de seleção e regulação do ofício. A emergência da escola possibilita perceber como o modelo escolarizado de formação de professores primários foi legitimado com a criação da Escola Normal representada como dispositivo que asseguraria maior qualificação para esse novo profissional, o que era buscado por meio do conjunto de saberes prescritos, do tempo de dedicação aos estudos, das exigências e do controle pelos exames anuais. Entretanto, apesar da crença de que o modelo escolarizado era o que melhor servia, naquela época, houve continuidades e permanências em relação ao modelo de formação pela prática, pela utilização dos alunos aprendizes (professores adjuntos), no interior da escola, com o sistema de aprendizagem do ofício. O modelo de formação escolar não se impôs de forma linear e sem contradições e/ou contestações, não tendo sido aceito facilmente em todos os espaços sociais. Não por acaso, a convivência e, sobretudo, as disputas entre diversos modelos de formação docente se fazem ecoar, ainda, no presente, apontando para a complexidade das temporalidades históricas, para o peso de ‘tradições inventadas’ que buscam legitimar determinadas representações docentes.
Os professores, ao se apresentarem para os concursos e seleções, ou ainda para solicitar a isenção de provas e o ingresso no magistério pelas vias alternativas abertas pelos regulamentos (nomeações de adjuntos, pedido de vaga, entre outros), produziam representações sobre si, sobre a sua trajetória, seu perfil e sua adequação ao ofício pretendido. A prévia de si, documentada pelos atestados de moralidade, das certidões de batismo e das provas de concursos, contribuiu para a produção de representações sobre a docência, nas quais os candidatos procuravam produzir sua imagem próxima à do tipo ideal considerado ‘desejável’ pelas prescrições e normas então validadas.
A regulação do ofício não se fazia apenas no tempo de ingresso. Em exercício, novos dispositivos de governo dos professores entram em cena. Ao estudar as condições de aparecimento e de funcionamento das Conferências Pedagógicas, evento organizado com o objetivo de reunir professores primários para discussão de assuntos pertinentes à instrução e ao ensino, os autores nos ajudam a compreender aspectos dos projetos e debates relacionados à Instrução Pública, na segunda metade do século XIX, no que se refere à construção e à imposição de um ideal de professor. A hipótese defendida é a de que as conferências pedagógicas funcionavam como uma estratégia do Estado Imperial, para assegurar a homogeneização da classe docente, tendo em vista instaurar um bom modelo de professor, por meio do estabelecimento de um código profissional que deveria ser partilhado pelo conjunto do professorado. Para explicar o funcionamento desse dispositivo, a partir dos estudos de Foucault, os autores sintetizam os objetivos do Estado: conhecer, dominar e utilizar. “Conhecer as práticas e perspectivas do corpo docente. Dominar por meio do que se estabelecia pelas normas, sobretudo, o controle das discussões e encaminhamentos nos limites do que o governo define como ‘necessário e profícuo’, e utilizar o corpo docente para difusão do que era desejado por aqueles que se encontravam em pontos centrais e estratégicos do aparato escolar” (p. 75-76, grifo do autor). A própria prática de recompensar os professores, premiando-os pelos trabalhos apresentados, pôde ser entendida como dispositivo de ajustamento ao modelo de instrução forjado pelo governo.
Os professores, sujeitos governáveis, contudo, não se restringiam a participar das conferências, referendando os modelos impostos. No exame dos trabalhos e dos debates ocorridos em algumas conferências pedagógicas, os autores apontaram contradições, fissuras, brechas, opiniões divergentes, reações, produção de tensões, silenciamentos e censuras. No exame de tais encontros tornou-se possível perceber outros efeitos que as conferências terminaram por engendrar: a promoção de uma reflexão promovida pelos professores acerca do próprio dispositivo, sua organização e funcionamento. Demonstração, segundo os autores, do inesperado da norma, do impensado, de uma arte de superação por intermédio de ações dos sujeitos envolvidos. Assim, assistimos à movimentação dos professores, exercitando um papel bem determinado no próprio processo de configuração da profissionalização docente na Corte Imperial, ao interferirem no andamento das conferências em outros tempos e espaços, discutindo a respeito das políticas voltadas para sua própria formação.
O governo, por meio das escolas, não poderia deixar de fora, é claro, o controle preciso sobre as aulas, os livros, os saberes e os métodos de ensinar. Embora a aula e a cultura escolar possam ser concebidas como espaços de criação, são também lugares submetidos a prescrições, dispositivo de governo para atingir, de um mesmo modo, as pequenas multidões que passam a frequentar as aulas na Corte Imperial. Pela análise dos processos de adoção de livros escolares, especificamente os debates relativos ao compêndio Fábulas, de Justiniano José da Rocha, e, como contraponto, Lições moraes e religiosas, de José Rufino Rodrigues, os autores defendem a hipótese de que “[…] os livros funcionavam (e funcionam) como um dos principais instrumentos para concretização dos projetos educacionais em curso, sendo utilizados pelos professores como uma espécie de ‘guia’ no ensino dos saberes que se pretendia escolarizar, e, por extensão, dar a ver o que se pretendia dos alunos em suas práticas ordinárias” (p. 89, grifo do autor). Os livros escolares constituem, portanto, objetos privilegiados para se tentar compreender o que em determinado momento se pretendeu ensinar, os saberes prescritos, os modelos pedagógicos e os interesses sociais de determinada época.
A prescrição de saberes é objeto de investigação dos autores no que se refere à construção de um modelo elitista de ensino secundário, representado pelo Colégio Imperial Pedro II, cuja referência fundamental foi constituída pelo exemplo e pela influência cultural exercida pelas reformas educacionais e pelas culturas literária e humanística francesa, que circulavam e foram apropriadas e reelaboradas nos trópicos. O ensino secundário no Colégio Imperial Pedro II erigiu-se em espaço exclusivo das elites. Ao criar um modelo de escola graduada, seriada e mais alongada, esta passou a se constituir em um privilégio para poucos, visto que as classes populares não tinham condições de prescindir do tempo de trabalho. Funcionavam, assim, como sinal de distinção entre os mais polidos e os mais rudes, fazendo da escola mais um espaço de afirmação e de produção das hierarquias sociais.
O governo das multidões, das aulas, dos saberes, dos livros, dos professores também suscitou, no que se refere aos professores, movimento significativo, ações, intervenções e tentativas concretas de estabelecer e construir um ‘governo para si’. Ao analisar o conjunto de manifestos redigidos por um grupo de professores primários da Corte, no início da década de 1870, os autores afastam-se da sedução em erguê-los como monumento – embora aqueles professores tenham usado a prática de monumentalizá-los, por meio da reedição, fora do contexto inicial, das reivindicações neles contidas, como forma de promover a construção da categoria. Tais documentos se constituíram em instrumento necessário para a compreensão das formas de participação organizada de professores nos rumos da educação, naquele contexto histórico, em interlocução com o poder público e com a sociedade. Os manifestos, presentes ao longo da história da educação brasileira, são expressões de movimentos mais ou menos organizados, constituidores de identidades, tendo funcionado como articuladores de seus signatários. Como bem argumentam os autores, as práticas de ‘manifestar-se’ não podem ser encaradas como uma invenção exclusivamente republicana.
O estudo dos Manifestos dos Professores Públicos da Corte (1871) amplia o espectro de observação a respeito dos problemas e da situação do ensino na cidade Corte, bem como nos faz compreender as questões que mobilizavam os professores, em torno das quais eles buscavam forjar a organização e a associação do grupo como classe profissional. Tal iniciativa, a prática de manifestar-se, criou condições para o nascimento das primeiras associações profissionais, da imprensa pedagógica e para a construção de um movimento em direção ao associativismo docente, a uma espécie de autogoverno.
Para fechar a obra, um presente para os leitores, estudiosos, curiosos e pesquisadores da educação: as fontes primárias, documentos analisados no decorrer do percurso de pesquisa, foram transcritas, na íntegra, incluindo o regulamento da província do Espírito Santo (1848), o regulamento da província do Rio de Janeiro (1849), o regulamento da Corte (1854), além das preciosidades Cartas ao professor da Roça (1864), do professor primário Manoel Pereira Frazão, e Manifesto dos Professores Públicos (1871), assinado por este e outros dois companheiros de ofício.
A emergência da escola, obra coordenada por José Gondra e produzida em coautoria com a equipe de pesquisadores do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPHE/UERJ), composta por Pedro Paulo Hausmann Tavares, Marina Natsume Uekane, Inára Garcia, Angélica Borges, Giselle Baptista Teixeira, Pollyanna Gomes Pinho e Daniel Cavalcanti de Albuquerque Lemos, vem a público, editada pela Cortez após revisão e atualização feitas pelo autor, revelando a riqueza de um trabalho de pesquisa realizado de forma articulada e integrada, abrindo um vasto campo de possibilidades interpretativas e novos caminhos de investigação.
Leitura indispensável, não apenas para aqueles que desejam compreender os processos históricos de construção da instrução primária e da secundária no Rio de Janeiro oitocentista, mas para todos aqueles que estudam a ‘emergência’ da escola como um problema específico da modernidade – um problema de ‘governo’. Governo de multidões. Governo de professores. Governo de aulas e livros. Governo de indivíduos, tornados ‘alunos’. Governo de si.
Ana Luiza Jesus da Costa – Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2012). Professora de História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo/ FEUSP, onde atua nos cursos de Pedagogia e Licenciaturas e no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação/USP. Integra o Grupo Interdisciplinar de Ensino e Pesquisa em História da Educação (NIEPHE/FEUSP). E-mail: anajcosta@usp.br http://orcid.org/0000-0001-6917-2917
Alessandra Frota Martinez de Schueler – Doutora em Educação (2002) e Mestre em História (1997) pela Universidade Federal Fluminense. Professora de História da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, instituição na qual atua nos cursos de Pedagogia e Licenciaturas. Vice-líder do Grupo de Pesquisa História Social da Educação/FEUFF. Participa também como pesquisadora associada junto ao Grupo de Pesquisa “Gêneros, Sexualidades e Diferenças nos Vários EspaçosTempos da História e dos Cotidianos” – GESDI, coordenado pela Professora Dra. Denize de Aguiar Xavier Sepulveda, no Programa de Pós-Graduação em educação e na Faculdade de Educação da FFP\UERJ. E-mail: alefrotaschueler@gmail.com
Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil | Beatriz G. Mamigonian
A recente tentativa de flexibilização da fiscalização do trabalho escravo no Brasil, defendida por parte do empresariado e encampada pelo atual governo sinaliza uma fragilidade da legislação antiescravista e da cidadania brasileira.1 Muitos não imaginavam que ainda veriam o ataque aberto aos direitos do trabalhador ou a defesa da relativização do conceito de trabalho exaustivo e degradante. Este livro é resultado do esforço de entender historicamente como a questão da mão de obra escrava foi tratada no Brasil. Ele chega, portanto, em momento bem apropriado. Leia Mais
Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) – TRUZZI (FH)
TRUZZI, Oswaldo. Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016, 137p. Resenha de: SUDATTI NETO, Reinaldo. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.349-355, jan./jun., 2018.
Oswaldo Maia Serra Truzzi nasceu em Campinas em 1958 e, atualmente, atua como historiador titular na Universidade Federal de São Carlos, nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Engenharia de Produção. Possui trabalhos na área de Sociologia relacionados ao tema das imigrações, envolvendo a história social das imigrações, não somente a italiana, mas também a síria e libanesa. Além de obras de relevância como Roteiro de fontes sobre a imigração internacional em São Paulo (1850- 1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração.
O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), lançado pela Editora Unesp em 2016, é apontado, no prefácio do historiador Ângelo Trento, como uma obra que procura levantar uma discussão inovadora no meio acadêmico, a saber: a formação de uma identidade étnica, envolvendo os imigrantes italianos no interior paulista, em um período precedente à construção identitária ocorrida na Itália.2 Em tempo, discute as circunstâncias que auxiliaram e prejudicaram essa construção, ocorrida entre os anos de 1880 e 1950.
O livro inicia-se tomando como referência os estudos de Philippe Poutignat (2008) e Jocelyne Streiff-Fenart que abordaram as concepções teóricas acerca do processo de construção das identidades culturais dos povos, quando confrontados com uma nova sociedade. Deve-se, aqui fazer uma ressalva a respeito do conceito de etnia, o qual não deve ser tomado como superioridade racial e, sim, como um conceito que permite refletir sobre o tema da identidade de si mesmo e sua constituição, a partir do contato entre grupos culturais.
Partindo dessa análise, o autor dirige-se ao mote da composição identitária. Para tanto, embasa-se no estudo de Benedict Anderson (2008) sobre as origens das noções de pertencimento no interior de comunidades construídas de forma heterogênea.
Acrescenta-se, ainda, as reflexões de Maurice Halbwalchs (2006) a respeito da ativação das memórias individuais e coletivas e, dos fatores que se cruzam, entre essas lembranças, criando uma noção de identidade cultural. Com isso, o autor busca reforçar sua tese de que houve um sentimento agregador de italianidade e de pertencimento, nascido primeiro no Brasil, e depois na Itália.
Como recurso teórico para analisar a formação da identidade italiana no Brasil, Oswaldo Truzzi se apoia nos estudos de Pierre Bourdieu (1996) e de Paula Beiguelman (2005), que enfatizam a relação de alteridade construída entre grupos culturais distintos.
Essa relação de alteridade teria fomentado o início da formação da identidade entre os imigrantes italianos que passaram a habitar o interior paulista, entre os anos finais do século XIX e o começo do XX.
Com o objetivo de ratificar a sua tese de uma identidade italiana surgida primeiro no Brasil, o historiador faz uso das tabelas contidas nas obras dos pesquisadores Zuleika Alvim (1986), Angelo Trento (1989) e na análise do demógrafo italiano Giorgio Mortara (1950), cujos dados indicam os números de entrada e saída dos imigrantes, grupos envolvidos nessas correntes migratórias e destinos dessas pessoas na nova terra.
Em seguida, Oswaldo Truzzi passa a descrever o contexto da Itália e do Brasil, em fins do século XIX, evidenciando os motivos que levaram à saída dos imigrantes italianos em direção ao Brasil; a partir de suas constatações e com base nos estudos de Nugent (1995), o autor concluiu que haveria uma dificuldade em afirmar uma italianidade trazida pelos imigrantes da sua terra natal, por outro lado, seria possível analisar uma italianidade construída aqui, no Brasil.
Com base nos estudos sobre a construção da identidade italiana, o autor segue para a diferenciação que se estabelecia entre os ambientes rurais e urbanos. Sobre os primeiros, destacou o modo de trabalho vigente nas fazendas, nas quais os imigrantes foram submetidos à mentalidade escravocrata e a impossibilidade de locomoção, bem como aos maus tratos que levavam às revoltas e resistências. Entretanto o autor avaliou as causas do pouco número de resistências e, valendo-se das análises do historiador Cliford Welch (1999), e de autores como Stuart Hall (2008) e Zuleika Alvim, concluiu que o isolamento dos colonos aliado a um baixo nível de educação formal dos imigrantes e de seus filhos foi fundamental para a pouca ocorrência de conflitos. O que não impediu o registro de formas de resistências como a mudança frequente de fazendas ou, até mesmo, a fuga delas, em alguns casos, para centros urbanos.
Outro ponto analisado foram os matrimônios entre pessoas de regiões semelhantes; para tanto, Truzzi se baseou em seus estudos anteriores sobre os casamentos na Cidade de São Carlos, entre 1860-1930, aliando-os aos trabalhos das historiadoras Maria Stella Levi e Julia Scarano (1999) e do pesquisador Angelo Trento.
O autor chega à conclusão que a união entre pessoas de mesma origem, até a Primeira Guerra Mundial, seria algo que facilitaria o retorno à terra natal, pois a estadia no Brasil era vista como temporária. Daí, a questão de tantos casamentos entre pessoas da mesma origem, havendo declínio desse costume após os anos 1930 e 1940, por conta dos desarranjos nas políticas de imigração assim como, o distanciamento dos laços de origem.
Já no meio urbano, o pesquisador faz um contraponto entre os trabalhos do historiador Warren Dean (1977), que apontava uma relação entre a bagagem profissional trazida do país de origem com novas possibilidades de crescimento do imigrante, os estudos da antropóloga Eunice Durham (2004) a respeito da cidade de Descalvado e os estudos da historiadora Flávia Oliveira (2008), na cidade de Jaú, nos quais as autoras ressaltam que a ascensão urbana se dava apenas com algumas famílias, sendo difícil precisar uma única causa.
O movimento associativo é destacado como via de ascensão social, afinal agregava parte da elite de imigrantes. Essas agremiações se constituíram em lugar de comemorações e festas nacionais que lembravam o local de origem, atraindo cada vez mais público. As elites italianas, por sua vez lançavam-se ao trabalho de construir uma unidade cultural e linguística entre os membros da colônia. A discussão sobre os movimentos associativos se amplia com os estudos de Fábio Bertonha (2005), e da socióloga Eunice Durham na cidade de Descalvado, que fazem referência a uma consciência de italianidade que se manifestava na promoção de solidariedade na colônia, na comemoração de datas patrióticas e na organização de atividades assistenciais e recreativas.
Associação de grande importância, a Sociedade Italiana de Beneficência de São Paulo Vitório Emanuel II, fundada na capital paulista, em 1879, é destacada por Truzzi por se constituir no modelo de sociedade para todas as outras que surgiram no Estado (BIONDI, 2011).
Ainda no que tange às associações de imigrantes, são reforçadas as causas que levavam à formação das mesmas (carência e ausência de políticas de amparo aos imigrantes), assim como as questões dos regionalismos trazidos da Itália que ocasionavam certas dificuldades à manutenção dessas agremiações. Tal processo pode ser observado pela visão negativa que os imigrantes do norte e sul da Itália tinham entre si, como exemplo, a tensão entre os vindos da região do Vêneto e da Calábria, ressaltando-se, ainda, o preconceito contra esses últimos por parte do restante dos imigrantes.
Além das rivalidades e diferenças étnicas, que representavam problemas para as associações, Truzzi amparado pelos estudos de Luigi Biondi e Angelo Trento cita outros problemas que levaram as associações a se desestabilizarem. Dentre os motivos estavam os conflitos de agenda dos diretores das associações que precisavam manter os vínculos de identidade dentro da colônia, buscando o reconhecimento da comunidadeMesquita Filho”, UNESP, câmpus de Assis.
de imigrantes da qual faziam parte e, simultaneamente, procuravam vias de integração às elites locais. Essa situação vivenciada pelos dirigentes evidenciava uma ambiguidade entre a cultura interna trazida pelos imigrantes e seus descendentes e a cultura do país de acolhimento, colocando-se como limites a serem extrapolados, segundo os estudos de Robert Foerster (1919).
A questão do fascismo é retratada pelo autor como um meio de ligar novamente a Itália à comunidade de imigrantes. Com base nos estudos de Bertonha sobre a ação fascista junto à comunidade italiana analisa-se a forma como o regime totalitário foi caracterizado no Brasil e como as classes sociais interagiram com ele.
O autor levanta o ponto de vista das elites brasileiras, que viam os recémchegados como pessoas que conheciam seu lugar na sociedade distanciando-se por isso da política e não ameaçando o domínio das elites locais. Visão que se modificou com a Revolução de 1930, e consequente abertura de oportunidades de projeção social e política por meio das associações comerciais, formadas por uma maioria de origem italiana. Por outro lado, o autor observou-se na geração dos filhos de imigrantes um menor pendor a propagandearem a sua filiação étnica, implicando na diminuição da italianidade como critério de legitimação política e social.
Sabemos que o tema sobre o processo imigratório Itália – Brasil é algo muito estudado, parecendo à primeira vista que nada de inovador possa emergir dele. No entanto, lermos o livro citado, podemos verificar como “[…] essa abordagem do tema torna-se a linha mestra de Truzzi”, que pesquisa a formação e construção do sentimento de identidade italiana, no Brasil, antes de ser construído na Itália.
O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) traz, portanto, algo muito inovador e instigante. Essa pesquisa aumenta e revitaliza o entendimento sobre a importância da imigração italiana e identidade cultural, no Brasil, a despeito das diversidades regionais trazidas da Itália, além de permitir a compreensão de como esse processo repercutiu entre seus descendentes, assim como na sociedade de acolhimento, evidenciando a importância das trocas culturais tanto para imigrantes quanto para os brasileiros.
Notas
2 Mesmo após a unificação em 1870, os habitantes da Itália possuíam uma relação de identidade ligada mais ao local de origem do que à nação como um todo, não havendo uma identificação comum, antes e durante a fase que da grande imigração, entre as décadas de 1870 e 1920, período no qual a nação enfrentou instabilidades políticas e sociais, que prejudicaram a construção de uma identidade nacional.
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Reinaldo Sudatti Neto – Mestrando em história pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Campus de Assis.
[IF]História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; AQUIAR (HU)
RODRIGUES, A.F.; AGUIAR, J.O. (org.). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2016. 490 p. (História Diversa, n. 6). Resenha de CABREIRA, Maria Alda Barbosa. Religiões e religiosidades em debate. História Unisinos 22(1):149-152, Janeiro/Abril 2018.
Estudos relacionados a religiões e religiosidades vêm recebendo cada vez mais interessantes contribuições que ajudam a alargar o debate e o reconhecimento de formas diversas de expressar o religioso, notadamente, na sociedade contemporânea.
A problemática dos fenômenos religiosos, e mesmo das maneiras científicas e acadêmicas de como o universo do sagrado, as religiões e as religiosidades foram interpretadas, é resultante de processos históricos e sociais ligados a relações de privilégios e poder.
Como um conjunto de práticas e doutrinas organizadas em uma cosmologia bem definida, a religião e seu estudo permitem entender o universo cotidiano, as relações sociais, as instituições políticas, as ideias e as formas de expressão religiosa que compõem determinados regimes do crer, como práticas, espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado (Arnal, 2000).
Com análise detida destes nuances, a coletânea História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, coordenada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar, faz-se presente no debate que analisa as religiões e seu desenvolvimento e discussões históricas ocorridas em diferentes épocas, nos mais diversos povos e nas suas muitas manifestações.
Reunindo 24 capítulos, o livro apresenta quatro divisões temáticas que convidam o leitor a refletir sobre as diversidades humanas na abordagem dos espaços e discursos dedicados ao religioso, em perspectiva ligada principalmente à história cultural. Aliás, do conjunto, 17 textos dedicam-se ao multifacetado universo religioso brasileiro, dominado pela matriz do cristianismo. Observando- -se os dados do Censo demográfico 2010 sobre religião, divulgados pelo IBGE em 29 de junho de 2012, confirmam-se tendências de transformação do campo religioso brasileiro, aceleradas a partir da década de 1980, quando se iniciou o recrudescimento da queda numérica dos fiéis seguidores da fé católica frente à vertiginosa expansão dos pentecostais e das pessoas que se declaravam sem religião. Os números interessam: entre 1980 e 2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população, queda de 24,6 pontos percentuais; os evangélicos passaram de 6,6% para 22,2% da população, acréscimo de 15,6 pontos percentuais em 30 anos, representando 42,3 milhões de pessoas, sendo a segunda religião com o maior número de adeptos no país. Apesar destes números, o catolicismo ainda se faz predominante, com mais de 123 milhões de pessoas, classificando o Brasil como o maior país católico do mundo em números nominais. No período, o conjunto das outras religiões, incluindo espíritas e cultos afro-brasileiros, também dobrou de tamanho, passando de 2,5% para 5% (Mariano, 2013, p. 119).
De 1980 para cá, a partir dos dados informados, prosperou a diversificação da pertença religiosa e da religiosidade no Brasil, mas se manteve “praticamente intocado seu caráter esmagadoramente cristão” (Mariano, 2013, p. 119).2 As raízes de nossa formação cristã, assim como a análise de aspectos da história religiosa brasileira, vislumbrada naqueles números e nas práticas sagradas católicas, espíritas e protestantes, seguem como eixo articulador dos capítulos relacionados ao universo brasileiro contemporâneo presentes na coletânea.
As manifestações cristãs majoritárias aparecem desde o texto de abertura do livro. Dividida em quatro partes, a obra em sua primeira seção procura reunir reflexões dedicadas aos temas da Antiguidade Clássica ou da recepção de suas produções sociais e históricas em nosso tempo. Sob o título de “Identidades, religiosidades e Antiguidade clássica”, tem-se o capítulo de Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (Universidade Católica de Pernambuco e Faculdade Católica de Fortaleza) sobre as expectativas messiânicas no tempo de Jesus Cristo e a sua relação com a identidade cristã, construída a partir de então.
A seguir, Nelson de Paiva Bondioli (professor visitante no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Espírito Santo) e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) analisam, com base nos escritos da época, a figura dos Príncipes Júlio-Claudianos (governantes Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero) e sua posição dentro da hierarquia política e religiosa romana durante o século I da Era Comum para falarem de tradição e de transgressão na religião romana.
Na sequência, Fernando Mattiolli Vieira (Universidade de Pernambuco) apresenta-nos a interessante história da descoberta dos manuscritos de Qumran e as suas condições de produção e recepção. Os documentos estudados por ele foram encontrados em 1947, entre o deserto da Judeia e a orla do mar Morto e próximo às ruínas de um sítio arqueológico conhecido por khirbet Qumran, e representam a maior conquista da arqueologia do século XX, pois neles foram encontrados 930 manuscritos, sendo que deste total 210 documentos reproduzem livros da Bíblia hebraica (chamada pelos cristãos de Antigo Testamento): Salmos, Deuteronômio e o Gênesis. Essa história e os desdobramentos destes achados para o conhecimento e as comprovações empíricas de fatos narrados nos livros sagrados cristãos estão relatados ali por ele.
O último texto desta parte pertence a Haroldo Dutra Dias (juiz de Direito e palestrante espírita) sobre o surgimento da crítica histórica nos estudos sobre a vida de Jesus Cristo e o constructo de sua figura profético- -apocalíptica, assim como sobre a origem do cristianismo.
A segunda parte do livro, Religiões, recepções e impérios ultramarinos, congrega estudos que marcam a presença do catolicismo em terras brasileiras e africanas, notadamente durante o período colonial. Nesta seção, estão presentes as pesquisas de André Figueiredo Rodrigues (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) sobre as religiosidades e as sociabilidades nas relações entre o clero e a sociedade nas Minas Gerais do século XVIII, mostradas a partir das manifestações religiosas católicas instaladas na região desde a chegada dos primeiros buscadores de ouro. Ainda no cenário das Minas Gerais setecentistas, Jeaneth Xavier de Araújo Dias (Universidade do Estado de Minas Gerais) brinda-nos com as histórias das festas e das celebrações religiosas para analisar os ritos, os ornamentos e as decorações feitas para a realização das procissões celebradas durante o Triunfo Eucarístico em Vila Rica no ano de 1733, quando se comemorou a condução triunfal da imagem do Santíssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar.
Já Lúcia Helena Oliveira Silva (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) narra as estratégias de conversão e os processos de negociação entre bagandas e missionários anglicanos ingleses no reino de Uganda no século XIX.
Na continuidade, Joaci Pereira Furtado (Universidade Federal Fluminense) discute a relação entre catolicismo e paganismo na poesia árcade que vicejou durante a segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX entre Portugal e a América portuguesa, destacando a presença de elementos referenciais clássicos remetentes à mitologia e aos deuses gregos e latinos.
Por sua vez, Gustavo Henrique Tuna (doutor em História pela Universidade de São Paulo) discute o gradiente da fé católica (o sagrado e a descristianização) encontrado na biblioteca do poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, considerada uma das mais relevantes do período colonial, com 1.576 volumes. Ainda no palco das letras coloniais, Renato da Silva Dias (Universidade Estadual de Montes Claros), em instigante texto, analisa a dimensão do político na esfera discursiva religiosa empreendida pelo clérigo secular Manoel Ribeiro Rocha para justificar o tráfico e a escravização dos africanos no Brasil na obra Ethíope resgatado, de 1758. Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa) apresenta os hábitos alimentares e a sua relação com o discurso religioso dos primeiros jesuítas quinhentistas que empreenderam missões catequéticas na América portuguesa.
Passando da literatura para a arquitetura de taipa, Paula Ferreira Vermeersch (Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente) examina o patrimônio histórico e a arte sacra encontrada no interior da Igreja Matriz setecentista barroca de Sant’Ana Mestra do Sacramento, localizada na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso.
Nas duas partes seguintes, os capítulos centram-se em análises do diálogo e da recepção de textos antigos e modernos, tanto do Oriente quanto do Ocidente, no universo religioso contemporâneo. A terceira seção, “Universo católico e problemas de história contemporânea”, inicia-se com o interessante texto de Patrícia Teixeira Santos (Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos) sobre as missões do Papa Paulo VI no contexto do catolicismo social, a partir de experiências no Brasil e em Moçambique. A militância católica se faz presente no capítulo de Milton Carlos Costa (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) ao analisar o pensamento e a trajetória intelectual de Jonathas Serrano, um importante batalhador pelos ideais cristãos durante a República Velha no Brasil.
No decurso da oposição ao Estado autoritário brasileiro (1964-1985), a partir da década de 1960, um de seus mais destacados opositores foi a Igreja Católica. Partindo desse contexto, Jorge Miklos (Universidade Paulista) e Adriano Gonçalves Laranjeira (Universidade Paulista) analisam a atuação da imprensa católica paulistana na defesa dos direitos humanos, por meio do resgate da história do semanário O São Paulo, jornal oficial da Arquidiocese de São Paulo, criado em 1956 com o objetivo de difundir os valores católicos entre os fiéis. Porém, a partir de 1970, quando a Arquidiocese de São Paulo é liderada por dom Paulo Evaristo Arns, o jornal sofre uma mudança na sua linha editorial e passa a atuar como crítico ao Estado autoritário.
Já Francisco Cláudio Alves Marques (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) e Esequiel Gomes da Silva (Universidade Federal do Pará, campus de Marajó- Breves), com habilidade e brilhantismo, brindam-nos com interessante análise, a partir de exemplos cantados no repente e estampados nos folhetos de cordel, das condições históricas e sociais que contribuíram para a representação de negros, adeptos de religiões de ascendência africana e protestantes associada à ideia de demônio, bem como das relações sociais que se estabeleceram no sertão nordestino marcado por práticas e crenças medievais, sobretudo nas primeiras décadas do século XX.
Ainda pelo viés da cultura, Elder Maia Alves (Universidade Federal de Alagoas) e Greciene Lopes dos Santos (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Alagoas) elegem como foco de análise de seu texto as interfaces entre a política do patrimônio imaterial, as festas e celebrações religiosas e o turismo religioso no Brasil, apresentando-nos como exemplo a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, uma das maiores celebrações religiosas do mundo, que ocorre todos os anos no segundo domingo do mês de outubro na cidade de Belém, capital do Estado do Pará.
Por sua vez, Gisella de Amorim Serrano (pós- -doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais) analisa as edições de cunho religioso, para se compreender a correlação entre História e identidade nacional, na importante coleção Reconquista do Brasil, editada numa parceria da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, com a Editora da Universidade de São Paulo, de 1976 a 1984, responsáveis pela impressão de 306 volumes.
Na última parte, “Protestantismo, espiritismo e religiões orientais no presente”, discutem-se assuntos relacionados ao evangelismo, protestantismo e atuação das igrejas reformadas no Brasil. Inicia-se com o capítulo de Iranilson Buriti de Oliveira (Universidade Federal de Campina Grande) e Roseane Alves Britto (mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande) comentando as metáforas de cura no discurso neopentecostal brasileiro. Na sequência, João Marcos Leitão Santos (Universidade Federal de Campina Grande) discorre sobre a crise conceitual sobre o protestantismo na historiografia brasileira.
A história recente do movimento espírita brasileiro aparece analisada nos dois artigos seguintes. O primeiro, de Alexandre Caroli Rocha (doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas), escrutina as repercussões geradas pelo chamado Caso Humberto de Campos, que mostra como um problema que envolvia uma disputa por direitos autorais estava além dos domínios jurídicos. E, depois, José Otávio Aguiar (Universidade Federal de Campina Grande) historia a trajetória do SER, “organização sociorreligiosa espírita recente, ecumênica e dedicada à tradição dos evangelhos em diálogo com a obra psicografada de exegese de Francisco Cândido Xavier” atribuída a diversos espíritos, mas em especial a Emmanuel (p. 10).
Os dois últimos autores dedicam seus escritos aos assuntos relacionados a religiões do Oriente Distante. Maria Lucia Abaurre Gnerre (Universidade Federal da Paraíba) e Gustavo Cesar Ojeda Baez (doutor em História pela Universidade Federal de Campina Grande) abordam em seu capítulo a perspectiva hermenêutica que o historiador das religiões Mircea Eliade desenvolve sobre a tradição do Yoga na Índia enquanto prática de religiosidade. Por último, Deyve Redyson (Universidade Federal da Paraíba) expõe as leituras meditativas do texto budista Sutra do coração e sua relação entre sabedoria e realidade.
Apesar de em seu conjunto os textos apresentarem diversidade temática, eles ilustram no todo a diversificação do campo religioso como fonte de pesquisa e de crença do universo sagrado e religioso multifacetado que se evidencia no dia a dia das pessoas. Tanto assim que, ao surgir da necessidade dos indivíduos se ligarem com o divino, a religião ou a pluralidade religiosa resultante das diversas maneiras de entender e perceber o mundo – e por que também não o homem a si mesmo – se faz presente como eixo articulador da obra, independentemente da época retratada ou das práticas e questões religiosas analisadas.
Os dados religiosos explicitados nos números do Censo 2010 permitem-nos traçar o rico e diverso panorama das “religiões e religiosidade” no Brasil contemporâneo. Guiando-se por essa perspectiva, mas sem esta se fazer explicitamente presente no corpo do livro, conseguimos observar nos capítulos interessantes interpretações da história e dos pressupostos religiosos do catolicismo e das igrejas protestantes – com suas múltiplas diversidades –, do universo espírita, das religiões afro-brasileiras, do sincretismo urdido entre elementos cristãos, afro-brasileiros e indígenas representados na cultura popular, do judaísmo, das religiões orientais e do budismo. Infelizmente faltou o islamismo! No cenário atual, ao propor “novas abordagens e debates sobre religiões”, a obra, plural em todo o seu sentido, revela o quanto assuntos como práticas religiosas e religiosidades desde a “Antiguidade aos recortes contemporâneos” não são temas pacíficos, já que em muitos trechos se evidenciam competições entre religiões, conceituações e personagens. Isto, aliás, permite-nos hoje visualizar a exacerbada quantidade de conflitos, cenas de intolerância e preconceito que se vivenciam na sociedade não só brasileira, mas mundial. No fundo, o livro nos faz refletir sobre a finalidade última das práticas religiosas: propor e transmitir a paz.
Notas
2 Os números do Censo mostram que as religiões no Brasil em 2010 dividiam-se em: Católica Apostólica Romana (123.280.172 = 64,63%), Evangélicas (42.275.440 = 22,16%), Sem religião (15.335.510 = 8,04%), Espírita (3.848.876 = 2,02%), Outras religiosidades cristãs (1.461.495 = 0,77%), Testemunhas de Jeová (1.393.208 = 0,73%), Não determinada e múltiplo pertencimento (643.598 = 0,34%), Umbanda e Candomblé (588.797 = 0,31%), Católica Apostólica Brasileira (560.781 = 0,29%), Budismo (243.966 = 0,13%), Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (226.509 = 0,12%), Não sabe (196.099 = 0,10%), Novas religiões orientais (155.951 = 0,08%), Católica Ortodoxa (131.571 = 0,07%), Judaísmo (107.329 = 0,06%), Tradições esotéricas (74.013 = 0,04%), Tradições indígenas (63.082 = 0,03%), Sem declaração (45.839 = 0,02%), Islamismo (35.167 = 0,02%), Outras religiosidades (11.306 = 0,01%), Hinduísmo (5.675 = 0,00%) (Somain, 2012).
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Maria Alda Barbosa Cabreira – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Assis. Professora da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC), unidade de Garça. Av. Presidente Vargas, 2331, 17400-000, Garça, SP, Brasil. E-mail: mabcabreira@yahoo.com.br.
Descubriendo el Antiguo Oriente. Pioneros y arqueólogos de Mesopotamia y Egipto a finales del S. XIX y principios del S. XX | Rocío da Riva e Jordi Vidal
A fines del siglo XIX y principios del XX, en el contexto de una intensa competencia imperialista –entre un pequeño número de Estados europeos (primero Gran Bretaña y Francia, posteriormente Alemania, Bélgica, Italia, Portugal, España y los Países Bajos) y extraeuroepos (Estados Unidos y Japón)– por la apropiación de gran parte de África y de Asia, la subordinación de sus poblaciones y la constitución de un nuevo orden político y económico, tuvo lugar la progresiva institucionalización formal de los estudios antiguo-orientales dentro de los ámbitos académicos occidentales. En efecto, dicho proceso de constitución tuvo por acontecimientos inaugurales tanto la invasión napoleónica en Egipto en 1798 y de Siria-Palestina en 1799 como las primeras empresas de búsquedas y apropiación de materiales arqueológicos a cargo del cónsul francés Émile Botta y del funcionario inglés Austen Henry Layard en Mosul y Nimrud respectivamente (antiguas capitales asirias). Esas actividades llevaron a intensificar las expediciones y excavaciones de sitios antiguos en Egipto y Medio Oriente. Fue así que individuos procedentes de campos y actividades distintas (soldados, funcionarios, viajeros, mercaderes y eruditos) recorrieron diversos paisajes, mostraron un interés estratégico por las así denominadas “maneras” y “costumbres” de los países islámicos, aprendieron los idiomas de las sociedades que los habitaban, descifraron las lenguas y textos de los pueblos desaparecidos y acumularon innumerables objetos de su cultura material (cerámicas, vasijas, cilindro-sellos, tablillas, relieves, papiros, estelas, frontones, estatuillas y estatuas).
Durante el desenvolvimiento de estas distintas, el saqueo de tumbas y sitios para lucrar con su contenido existió por supuesto, al menos en Egipto, y convivió cómodamente con los intentos más “serios”, organizados y sistemáticos de el imperialismo y la dominación colonial posibilitaron el acceso no sólo a múltiples espacios antes desconocidos o apenas imaginados, sino además a nueva información (proporcionada tanto por los restos arqueológicos como por los informantes locales) a partir de la cual fue posible construir una imagen mucho más aproximada –y sustentada empíricamente– de las antiguas sociedades que poblaron la región. Coetáneo a los nuevos hallazgos y actividades, se produjo la progresiva fragmentación y especialización temática dentro del propio orientalismo antiguo, diferenciándose así ciertas subdisciplinas (Egiptología, Asiriología, Siriología, Anatolística y Estudios Bíblicos), como también dos tareas específicas en la labor investigativa: la del arqueólogo (encargado de organizar las excavaciones y recolectar los nuevos materiales) y la del filólogo (preocupado por desentrañar las lenguas antiguas y sus sistemas de escritura a partir de la traducción del material epigráfico). investigaciones arqueológicas. Aun así, es indudable que las prácticas inauguradas por
Considerando lo anteriormente expuesto, es innegable que esta descripción sintetiza una dinámica mucho más compleja y sinuosa de un campo de estudio que, luego de su afianzamiento, creció y expandió, ampliando horizontes y permitiendo avances investigativos significativos para la posteridad sobre las antiguas culturas y sociedades de Egipto, Mesopotamia, Anatolia y la franja sirio-palestina. El libro que el lector tienen entre sus manos, Descubriendo el Antiguo Oriente. Pioneros y arqueólogos de Mesopotamia y Egipto a finales del S. XIX y principios del S. XX, compilado por Rocío Da Riva y Jordi Vidal, reconocidos profesores españoles y especialistas en arqueología e historia antigua oriental, se ocupa justamente de las historias de algunos de los primeros estudiosos occidentales que trabajaron en la región y que con su multifacética labor contribuyeron al nacimiento de las historiografía y arqueología del Cercano Oriente Antiguo. El volumen compila las intervenciones de la mayoría de los expositores que participaron del workshop llevado a cabo en la Facultad de Geografía e Historia de la Universidad de Barcelona a finales de noviembre de 2013. Dicho evento académico reunió a destacados especialistas en la historia antigua de Egipto y Próximo Oriente y a otros investigadores más preocupados por temas de historiografía con la intención de debatir sobre la formación y evolución de los estudios antiguo-orientales, la definición de subdisciplinas, analizar el accionar de los primeros exploradores y las prácticas científicas de las etapas iniciales con la intención de encontrar afinidades temáticas y establecer futuros proyectos de investigación. El resultado final es una bien lograda compilación de once artículos que más allá de la forma que cada autor escogió para escribirlo y de los enfoques empleados en cada uno de ellos, coinciden en la intención de presentar datos nuevos, informaciones novedosas o revisiones críticas de teorías o ideas ya conocidas.
El libro abre con una acertada introducción sobre el concepto de historiografía y los actuales debates alrededor de esta especialidad a cargo de Jordi Cortadella. Para este autor, el historiador es un profesional que recopila hechos del pasado humano conforme a criterios que suponen una elección de valores y categorías, pero para hacerlo precisa de la intermediación de los testimonios que aquel debe interpretar. En consecuencia, la labor del historiador consiste en la escritura de una Historia no sólo desde su propia perspectiva, sino también a partir de la mirada de otros intérpretes que lo precedieron. Para Cortadella, entonces, la historia de la historiografía se ocupa de definir qué tipos de hechos son los que preocupan a un historiador determinado y cuál es la motivación específica de aquel historiador por estudiar tales hechos en un momento determinado. En otras palabras, se trata de un campo cuya principal premisa pasa por mostrar que cualquier problema histórico posee per se su propia historia. Seguidamente, en una segunda introducción general sobre la historiografía del Próximo Oriente, Jordi Vidal identifica los motivos del escaso interés que han suscitado los estudios de corte historiográfico en el campo del Orientalismo Antiguo así como también algunas tendencias generales que resultan evidentes en los materiales publicados hasta el momento sobre la temática, como por ejemplo la preponderancia de los estudios biográficos, los análisis de casos nacionales y el predominio anglosajón en este tipo de investigaciones. No obstante, el historiador catalán indica que esta última tendencia si bien no puede discutirse, debe ser matizada en la medida que prestigiosos investigadores de otros países –como Alemania, Francia e, incluso, España– han comenzado a incursionar en diversas cuestiones y dimensiones relativas al cultivo y desarrollo de los estudios antiguo-orientales en sus historiografías nacionales.
La sección del libro dedicada a Egipto y Norte de África se inicia con el artículo de Roser Marsal (Universitat Autónoma de Barcelona), el cual expone la historia de los primeros exploradores que recorrieron el Desierto Occidental egipcio a finales del siglo XIX. La historiadora plantea que, en los inicios de las investigaciones egiptológicas, el desierto del Sáhara no constituyó un objeto de interés debido a que las duras condiciones climáticas lo volvían un supuesto terreno inhóspito para el desarrollo de la vida humana. Sin embargo, conforme se iban acumulando nuevas evidencias arqueológicas con cada nueva exploración (como los sedimentos lacustres, algunos restos de cultura material y las pinturas rupestres halladas en Jebel Uweinat, Gilf Kebir, Wadi Sura o la Cueva de los Nadadores), el noreste africano comenzó a suscitar mayor interés entre los estudiosos, ampliando el espectro temporal de sus investigaciones y, consecuentemente, llevándolos a incursionar en las etapas neolíticas. La autora concluye mostrando que tales estudios no sólo gozan de buena salud en la actualidad, sino que también contribuyen a poner de relieve los aportes culturales africanos en la formación de la civilización egipcia. Por su parte, Josep Cervelló (Universitat Autónoma de Barcelona) reconstruye con su estudio las bases de una “historiografía de los orígenes de Egipto” a partir del aporte de Jacques De Morgan, William E. Petrie, James E. Quibell, Frederick W. Green y Émile Amélineau, deteniéndose en las excavaciones que emprendieron en el Alto Egipto a lo largo de la década 1893-1903. A partir de la minuciosa revisión de la labor de estos pioneros de la arqueología egiptológica, Cervelló expone que los materiales exhumados de los sitios de Hieracómpolis, Nagada y Abidos permitieron reconstruir las primeras dinastías faraónicas y sus cementerios, bosquejar un primer panorama histórico y producir una primera cronología de los orígenes prehistóricos de la cultura egipcia.
En su artículo, Juan Carlos Moreno García (CNRS, Université Paris-Sorbonne París IV) analiza la formación y consolidación, en la producción de los egiptólogos de finales del siglo XIX y comienzos del siglo XX, de la imagen de un Egipto antiguo como una civilización “excepcional”, diferente de las otras sociedades del mundo antiguo y transmisora de un importante legado de valores culturales. Se trata de un mito historiográfico que se revelaría sumamente tenaz dentro de los estudios orientales, con prolongaciones hasta nuestros días, cuyas raíces pueden escudriñarse –según el autor– en la crisis de la cultura occidental a finales del siglo XIX. Moreno García señala que el Egipto de los faraones se transformó en una suerte de “paraíso perdido” sobre el cual las distintas burguesías europeas proyectaron sus miedos sociales y ansiedades culturales, agravadas por el auge de los viajes a Oriente, por el desenvolvimiento de una arqueología que oscilaba entre la práctica científica, la aventura romántica y la caza de tesoros y, finalmente, por la creación de una particular versión de la Egiptología por parte de unos profesionales con formación bíblica y unos valores políticos precisos. El estudio de Francisco Gracia Alonso (Universitat de Barcelona) sigue el accionar de algunos de los más destacados representantes de la arqueología británica de la Segunda Guerra Mundial –como Mortimer Wheeler, Leonard Woolley, John Bryan Ward-Parkins y Geoffrey S. Kirk– que, en el marco de los combates entre las tropas del Eje y el Octavo Ejército Británico entre 1940 y 1943, participaron de las tareas de protección del patrimonio arqueológico de Egipto, Libia y Túnez puesto en peligro por las operaciones militares. El autor indica que el servicio que prestó este elenco de arqueólogos, helenistas e historiadores de la Antigüedad en las filas del Ejército Británico durante las campañas del Egeo y el norte de África implicó dos dimensiones: por un lado, la protección y salvamento de los yacimientos arqueológicos y, en segundo lugar, su utilización como arma propagandística de las destrucciones ocasionadas por la guerra.
La sección dedicada a Oriente Próximo se abre con el trabajo de Juan José Ibánez (CSIC) y Jesús Emilio González Urquijo (Universidad de Cantabria) alrededor de la figura del sacerdote cántabro González Echegaray, precursor en los estudios de la etapa neolítica del Cercano Oriente dentro del ámbito ibérico. Los autores examinan las excavaciones del yacimiento de El Khiam (Desierto de Judea, Palestina) que este pionero dirigió en 1962 y resaltan su contribución teórica a la comprensión de la transición hacia el Neolítico en el Levante Mediterráneo a través de la definición del denominado “periodo Khiamiense”. En el segundo trabajo de esta sección, Juan Muñiz y Valentín Álvarez (Misión Arqueológica Española de Jebel Mutawwaq) se ocupan de identificar las primeras referencias a los monumentos megalíticos en Transjordania que aparecían desperdigadas en las páginas de diversas obras, diarios de exploración o trabajo de campo etnográfico de viajeros y eruditos del siglo XIX que se desplazaban a Tierra Santa seducidos por los relatos románticos de peregrinaciones, innumerables ruinas de grandes civilizaciones abandonadas, tesoros ocultos, etc. Seguidamente, Jordi Vidal (Universitat Autónoma de Barcelona) considera la manera tradicional de relatar el hallazgo de la antigua ciudad de Ugarit (actual Ras Shamra). El investigador plantea que dicho relato “canónico” se encuentra atravesado por una perspectiva marcadamente eurocéntrica, manifiesta en la subvaloración u omisión tanto de las contribuciones locales al hallazgo del yacimiento como de la participación otomana en dicho acontecimiento, ocurrida mucho antes del arribo de los arqueólogos franceses al sitio.
En su artículo, María Eugenia Aubet (Universitat Pompeu Fabra de Barcelona) examina el proceso de “redescubrimiento” arqueológico de la cultura fenicia y el papel que la monumental obra de Ernest Renan, Mission de Phénicie (1864-1874), tuvo respecto al respecto. La arqueóloga señala que este particular escrito motivó las primeras exploraciones en las regiones de Libia y Siria luego de la Primera Guerra Mundial con la intención de recuperar un importante cúmulo de artefactos hoy desaparecidos (como esculturas, monumentos funerarios y epígrafes procedentes de Biblos, Saïda y Oum el-Awamid, cerca de Tiro), pero de los que tenemos conocimiento en la actualidad debido a los excelentes grabados y planimetrías que pueblan las páginas del informe que compuso este polémico intelectual francés durante su célebre expedición a Fenicia en 1960 y 1961. A su turno, Rocío Da Riva (Universitat de Barcelona) incursiona en la vida y obra del arqueólogo alemán Robert Koldewey. Enmarcando su trabajo en un estudio del rol de la arqueología en el Imperio Alemán durante el siglo XIX, la investigadora madrileña reseña los diferentes trabajos que el renombrado Koldewey realizó en Babilonia y detalla con minuciosidad sus aportes empíricos e innovaciones metodológicas al campo de la asiriología –aún en formación– y a la arqueología de la arquitectura, así como la incidencia de su labor en la prensa española contemporánea.
Como cierre del libro, Carles Buenacasa (Universitat de Barcelona) nos lega un artículo en el que ensaya un conjunto de argumentos y reflexiones a propósito de los 200 años del “redescubrimiento” de la ciudad de Petra –capital del antiguo pueblo ismaelita (localizada a 80 km al sudeste del mar Muerto)– por el suizo Jean Louis Burckhardt, un profundo conocedor de la lengua árabe y de la religión islámica que, haciéndose pasar por un mercader árabe, viajó por el Oriente Próximo y Nubia. El pormenorizado examen del autor le permite identificar en el relato oficial de este episodio de la arqueología de principios del siglo XX –y su celebración bicentenaria– una suerte de memoria historiográfica del “hallazgo” pensada desde y para Occidente, orientada a remarcar la figura del explorador europeo como único responsable y, en paralelo, a invisibilizar la colaboración que algunos pobladores locales brindaron al explorador europeo, oficiando las veces de guías debido al detallado conocimiento que poseían del terreno. Como pone de manifiesto Buenacasa a lo largo del texto, se trata de una percepción historiográfica eurocéntrica que además desconoce, tanto en el pasado como en el presente, el hecho de que la antigua capital de los nabateos, esa ciudad de época clásica tan original y poco convencional nunca estuvo “extraviada” para los jordanos.
Al finalizar la lectura de los distintos artículos que integran la compilación, el lector habrá comprobado que ha accedido a diversos y singulares modos de configurar enfoques, metodologías e interpretaciones acerca del primer momento historiográfico de los estudios antiguo orientales que con gran éxito han logrado conjugar los compiladores en un solo volumen. No dudamos al aseverar que dicha característica es, quizás, una de las virtudes más significativas del libro. Sin embargo, no queremos dejar de destacar otras dos características sobresalientes. En primer lugar, la compilación muestra que las prácticas “científicas” que marcaron la génesis de los estudios históricos sobre las culturas antiguas del Próximo Oriente no pueden separarse de la situación geopolítica, los intereses económicos y los imaginarios culturales en un mundo integrado (y fragmentado) por el mercado capitalista y la expansión imperialista, en el cual diferentes agentes, motivaciones e intereses recuperan un lugar que la historiografía nacida en el mismo del siglo XIX invisibilizó con las biografías de los grandes precursores y la épica del progreso de la ciencia. Y en segundo lugar, se trata de una obra intrépida, en tanto deja al desnudo que mientras las sociedades antiguas del Cercano Oriente fueron “redescubiertas” y retratadas, desde un tamiz ontológico eurocéntrico, colonialista y racista impuesto por la dominación imperialista, como parte de un pasado exótico, maravilloso y monumental, a los pueblos que habitaban dichas regiones se les reservó el indulgente lugar de la degradación o inexistencia contemporánea.
En efecto, en una época en que las teorías racistas estaban al orden del día, los exploradores y colonizadores europeos no reconocieron a los diversos grupos étnicos con los que entraron en contacto como herederos de las prósperas civilizaciones de Oriente, considerando que se trataba de poblaciones “salvajes” y “bárbaras” sin historia, ajenas a dichas tradiciones culturales, incapaces de imitar en inteligencia y refinamiento a los creadores de antaño y, por tanto, de reconocer la riqueza de los grandes descubrimientos arqueológicos. Ello nos recuerda un dato bastante infeliz: que no sólo infinidad de objetos hicieron un viaje sin retorno a Europa a partir de la idea de que Occidente tenía la misión insoslayable de salvar esos tesoros de la supuesta ignorancia y vandalismo de los beduinos, sino que además esta misión de rescate pasó a justificar las innumerables usurpaciones, saqueos y robos cometidos, el despojo de tierras de los grupos locales, su sumisión, explotación y, en casos extremos, pero demasiado frecuentes, su exterminio; todos actos cometidos en nombre de la conservación de un patrimonio del cual las sociedades occidentales se sentían únicas y legítimas herederas. Se trata de un aspecto que, como latinoamericanos, haríamos mal en subestimar, pues ese mismo tipo de representación específica del pasado –de carácter más mítico y preconcebido antes que histórico y documentado–, que provee los parámetros ontológicos y epistemológicos para la comprensión del mundo desde una matriz occidentocéntrica, es la misma forma de percepción de la cultura histórica que, desde fines del siglo XIX, incidió precisamente en la invención de nuestras tradiciones historiográficas nacionales. Y, en tal dirección, la compilación se presenta como una necesaria y saludable invitación para que, desde nuestras periferias científicas, reflexionemos sobre los agentes, paradigmas y contextos locales que animaron el surgimiento y expansión de los equipos y/o centros de investigación dedicados al estudio de las culturas preclásicas del Cercano Oriente en Brasil, Argentina y otros países de América Latina.
Horacio Miguel Hernán Zapata – Docente-Investigador. Universidad Nacional del Chaco Austral (UNCAus)/Universidad Nacional del Nordeste (UNNE)/Instituto de Investigaciones en Ciencias Sociales (ICSOH)-Consejo de Investigaciones de la Universidad Nacional de Salta (CIUNSa), Argentina. Correo electrónico: horazapatajotinsky@hotmail.com.
DA RIVA, Rocío y VIDAL, Jordi (Eds.). Descubriendo el Antiguo Oriente. Pioneros y arqueólogos de Mesopotamia y Egipto a finales del S. XIX y principios del S. XX. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2015. 318 p. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Egregios, práticas “científicas” y cultura material en la institucionalización de los estúdios de Antiguo Oriente a fines del siglo XIX y princípios del XX. Revista Ágora. Vitória, n.28, p.260-266, 2018. Acessar publicação original [IF].
A emergência da escola | José Gonçalves Gondra
José Gonçalves Gondra é professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com Mestrado e Doutorado em Educação. Pesquisador na área de História da Educação, escreveu “A emergência da escola” como resultado de uma pesquisa realizada no âmbito do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPHE/UERJ), integrado pelos pesquisadores Marina Natsume Uekane, Giselle Baptista Teixeira, Daniel Cavalcanti de Albuquerque Lemos, Pedro Paulo Hausmann Tavares, Pollyanna Gomes Pinho, Inára Garcia e Angélica Borges, citados como coautores do texto.
O livro é dividido em 5 capítulos. O primeiro deles é intitulado “O governo das multidões”; o segundo, “A instrução reformada”; o terceiro trata do “Governo dos professores”; o quarto do “Governo das aulas”; e, por fim, o quinto capítulo que tem como título “Um governo para si”. Cabe ainda destacar a transcrição literal de documentos em anexo, podendo servir para futuras pesquisas na área de História da Educação. Trata-se do Regulamento da Província do Espírito Santo (1848), o Regulamento da Província do Rio de Janeiro (1849), o Regulamento da Corte (1854), Cartas do professor da roça (1864) e Manifesto dos Professores Públicos da Instrução Primária da Corte (1871). Leia Mais
O longo século XIX e as estratégias em economia, política e sociabilidades / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2018
A CLIO: Revista de Pesquisa Histórica tem uma longa tradição na publicação de estudos sobre os oitocentos, e recebemos sempre artigos livres sobre o período. Neste volume, apresentamos aos leitores alguns artigos recebidos que tem em comum o estudo do século XIX, abordando estudos sobre economia e crédito, sobre política liberal e sobre sociabilidades. De uma forma não tão sutil, o leitor verá que os estudos se imbricam em várias questões, como a escravidão e a discussão sobre o trabalho, as estratégias do mercado para conseguir capitais que financiassem atividades econômicas para além da economia de exportação, tudo isso permeado pela discussão política na qual o liberalismo aparece como matriz ideológica, apesar da diversidade de posições que poderia encetar.
Nesse sentido, apresentamos aos leitores o artigo de Andréa Lisly Gonçalves, As “várias Independências”: a contrarrevolução em Portugal e em Pernambuco e os conflitos antilusitanos no período do constitucionalismo (1821-1824), no qual objetiva refletir sobre a complexidade das opções políticas, na província de Pernambuco, tomando como recorte temporal a conjuntura da Independência do Brasil. Andrea argumenta que as ações e debates ocorridos em Pernambuco “não se esgotam com o debate historiográfico sobre o alinhamento com Lisboa (“a outra independência”) ou com o Rio de Janeiro (“a mesma independência”)”, estimulando, assim, os estudos e pesquisas para compreender como os atores políticos definem suas estratégias a partir de conjuntura e interesses específicos e locais.
O artigo de Leonardo Milanez de Lima e Leandro Renato Leite Marcondes, “Capital nativo e estruturação produtiva na praça do Recife: crédito hipotecário entre 1865 e 1914”, tem como ponto de partida a questão sobre como se financiavam as atividadeseconômicas no Recife frente à diminuição do ritmo de crescimento da economia pernambucana, com a perda do mercado consumidor de açúcar e algodão. Ao compulsarem uma vasta documentação sobre contratos de hipoteca registrados em cartórios do Recife, buscam compreender a dinâmica e as características do crédito hipotecário recifense.
O artigo demonstra que o crédito foi disponibilizado majoritariamente a partir de poupanças nativas, que deram suporte à expansão da rede de serviços públicos da cidade, mantiveram o funcionamento do comércio e financiaram indústrias. A mesma questão foi proposta por Vitória Schettini de Andrade, em seu artigo, “A alocação da riqueza na zona da mata mineira. São Paulo do Muriahé, 1846-1888.”. A fim de entender essa região de forma mais complexa, o artigo objetiva analisar a alocação da riqueza produzida em São Paulo do Muriahé, durante meados a finais do século XIX, momento em que a autora constata na documentação consultada, principalmente inventários, um crescimento econômico, baseado, sobretudo na produção de gêneros agrícolas, como milho, cana de açúcar e mais tarde o café. Estes produtos foram fundamentais para o acúmulo de capital e o ingresso de Muriahé numa economia mais dinâmica. O estudo demonstra as estratégias de outras aplicações monetárias que são percebidas ao final da escravidão, o que nos projeta para uma sociedade em franca mudança e crescimento.
As estratégias também são perceptíveis no estudo de Gabriel Navarro de Barros, “Muito além do abandono: infâncias perigosas e a “justiça tutelar em Pernambuco (1888-1892).”. O estudo tem por objetivos analisar a atuação da justiça tutelar diante do universo de meninas e meninos compreendidos pelo Estado como “potencialmente perigosos”, em Pernambuco. Ao analisar as fontes jurídicas e jornais, o autor sugere uma reflexão sobre o conceito de abandono, muitas vezes aplicado de forma estratégica. Nesse sentido, o artigo permite compreender a diversidade de categorias de infantes na época, reconhecidas pela justiça e por instituições assistenciais a fim de identificar uma variedade de meninos e meninas como “riscos sociais”. Uma forma de manter controle sobre a mão de obra? Estratégias também parece ser o conceito que explica o estudo de Ipojucan Dias Campos, no artigo “Divórcio, conjugações acusatórias e laços de solidariedade (Belém, 1895-1900).”. O autor demonstra como laços de solidariedade e de conjugações acusatórias, ao analisar processos de divórcio em Belém, foram estratégias centrais nessas ações. As reflexões concentraram-se em descortinar como pessoas próximas aos divorciandos se posicionavam no seio dos desarranjos conjugais, formando laços de solidariedade e, ao mesmo tempo, corroborando à formação de conjugações acusatórias. Assim sendo, amigos, parentes, vizinhos foram convidados, recorrentemente, a darem suas versões a respeito da vida a dois de seus conhecidos.
Uma pequena amostra da complexidade que perpassa os oitocentos, e que não deixam de instigar novas pesquisas.
Isabel Guillen
Augusto Neves
Isabel Guillen – Editora da Revista. Professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: icmg59@gmail.com
Augusto Neves – Vice-editor da Revista. Professor da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: augustonev@gmail.com
GUILLEN, Isabel; NEVES, Augusto. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.36, n.1, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]
Poder, trabajo y rebelión en el mundo rural del siglo XIX | Claves – Revista de Historia | 2018
En este tema central se propuso reunir colaboraciones que abordaran las relaciones entre las formas de ejercicio del poder y la autoridad en diferentes medios rurales durante el siglo XIX, considerando las transformaciones que se produjeron en las formas de trabajo y las manifestaciones de rebeldía, cuestionamiento e impugnación que se produjeron entre las poblaciones campesinas. Sabíamos que una convocatoria de este tenor implicaba afrontar varios desafíos, sobre todo porque suponía atender a muy distintas perspectivas desarrolladas desde la historia económica, la historia política, la historia de la justicia o la antropología histórica, entre otras. También, porque implicaba reconsiderar desde nuevas miradas y conocimientos algunos problemas clásicos de la historia social.
Sabido es que los estudios históricos de los mundos rurales iberoamericanos pasaron por diversas fases, cada una de las cuales no solo aportó un bagaje creciente de conocimientos, sino que también abrió nuevos interrogantes. Sin embargo, un repaso de la abundante bibliografía de las últimas décadas permite advertir que esos estudios cobraron mayor densidad e incidencia en otros campos del saber histórico cuando convirtieron al análisis local o regional en su primordial escala de observación. Las implicancias de ese cambio de perspectivas analíticas fueron vastas. Entre ellas no puede dejar de mencionarse que los enfoques generales, que uniformaban y simplificaban realidades y transformaciones extremadamente diversas, fueron siendo desplazados para iluminar un variopinto espectro de situaciones y procesos de cambio irreductibles dentro de un esquema interpretativo unidireccional. También, que el foco de atención fue dejando de estar centrado casi exclusivamente en el análisis de las grandes explotaciones agrarias, un capítulo central y decisivo en el desarrollo de la historia agraria durante las décadas de 1960 y 1970.1 Leia Mais
Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932) – GÁRATE (A-EN)
GÁRATE, Miriam. Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017. Resenha de: MORALES, Hernán. América Latina em alguns itinerários e cruzamentos. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.1, jan./apr. 2018.
Yo evito el testimonio real, porque me desagradan los confesionarios y esa objetividad eclesiástica del periodismo acusete. Pero tampoco podría negar mi origen y lo evoco en la escritura, travestido, multiplicado en un tornasol engañador. La verdad no me interesa: es paja estancada y filosófica. Como dice Serrat: la verdad no tiene remedio. (LEMEBEL In: SCHAFFER, 1998, p. 58)
(…) Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rostro de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rostro. (BUARQUE, 1991, p. 7)
Em um artigo publicado sob o título de La crónica, una mirada extrema2, que poderia servir como preâmbulo a esta resenha, Martín Caparrós reflete sobre esse gênero que complexifica não somente a literatura – mas as artes em geral – e em especial a literatura latino-americana, em função de tensões e desencontros da Modernidade. América é crônica, sustenta Caparrós, vinculando seu olhar a tensões assinaladas por Cornejo Polar, Rama, Pizarro e Santiago a propósito de um espaço de definição que alterna a adaptação entre o conhecido e o não-conhecido, evidenciando matrizes conflituosas. A crônica é um exercício recorrente de estranheza que marcou o processo identitário dos habitantes destas latitudes. Por isso as vozes que nela se manifestam “não mostram mas, antes, evocam, refletem, constroem, sugerem”, gerando um estado de crise. Trata-se de textualidades polimorfas que evidenciam as vantagens de recriar modos de contar e formas singulares de perceber o entorno, em um exercício que tem a intenção de “despertar” o leitor. São discursos nos quais o olhar se detém em um objeto configurado como busca, porque a escrita converte-se numa prática dos limites que transcende o foco jornalístico e consegue trazer para o primeiro plano o que normalmente fica oculto, o que não se vê à primeira vista e necessita ser nomeado. Parece tratar-se de uma reinvenção do espaço latino-americano que em alguns narradores contemporâneos (como Alma Gillermopietro, Elena Poniatowska, Juan Villoro, Pedro Lemebel, Carlos Monsiváis, entre outros), torna-se uma obsessão, marcada pelo exercício político que supõe a confrontação entre o sujeito e seu entorno.
Por essa razão, não é estranho que Miriam Gárate recorra ao liminar expresso pela preposição “entre”, com o objetivo de estudar as relações fundadoras do cinematógrafo com a literatura e a imprensa na América Latina, propondo um olhar que se debruça sobre as crônicas que circularam no México, no Chile, no Brasil, no Peru e na Argentina, entre outros países, em finais do século XIX e princípios do XX. Ao longo de mais de 200 páginas, a autora oferece, por meio de uma ensaística impecável, sustentada com grande rigor crítico, uma abordagem das relações imbricadas no discurso de recepção do cinema, que privilegia o gênero crônica no período delimitado pelo título (1896-1932), evidenciando o interesse em revisar o impacto causado pelo novo espetáculo. A partir dessa perspectiva singular, Entre a letra e a tela conecta a literatura, a imprensa e o cinema revisitando o olhar perscrutador dos cronistas, reenviando ao endereçamento do olhar destacado por Caparrós enquanto característica fundamental da crônica por contraposição à notícia.
Através da “retórica do passeio” (RAMOS, 1989), o leitor é convidado a participar de um percurso que, na Introdução, demarca um posicionamento baseado no estudo minucioso da circulação dos modos de percepção do cinematógrafo, expressos em jornais e revistas das áreas geo-culturais recortadas. É um tipo de análise, segundo frisa Miriam Gárate, que toma distância a respeito da aproximação “literatura – cinema” com foco no problema da adaptação, tradicionalmente centrado no jogo entre “fidelidade/infidelidade”. Em vez disso, na viagem proposta, aborda-se um fenômeno que é simultaneamente jornalístico, estético e literário, cifrado pela crônica, esse gênero que, pode-se dizer, está na base do processo de formação cultural das nações americanas.
No primero capítulo, “Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo”, a forma de modelar os materiais se consolida através do substrato: retórica da viagem, por isso a referência a Ramos e o resgate de vozes centrais como as de Manuel González Prada (Peru), José Martí (Cuba), Manuel Gutierrez Nájera (México), Luis Urbina (México-Espanha), Coelho Neto (Brasil), Olavo Bilac (Brasil), Ruben Darío (Nicaragua), Amado Nervo (México), José Juan Tablada (México-EEUU), Enrique Gómez Carillo (Guatemala-França), João do Rio (Brasil), para mencionar somente alguns. Neles, Gárate observa a recriação de uma estilística que evidencia o deslocamento das crônicas do jornalístico para o literário, daí o entre-lugar, fato que também influi no nascimento de um novo profissional que se consolida ao mesmo tempo que os textos que recriam o impacto suscitado pelo cinematógrafo: o repórter. Destaca-se, nesse sentido, algo que já fora assinalado por outros estudiosos: “a cultura moderna foi ‘cinematográfica’ antes do cinema”; e talvez seja por esse motivo que o olhar dos cronistas pôde transitar rapidamente do assombro para a reflexão crítica.
Nas crônicas examinadas no primeiro capítulo, acompanhamos as primeiras viagens. “El cinematógrafo” (1896), de Urbina, e “Moléstia de época” (1906), de Olavo Bilac, descrevem a percepção do fenômeno cinematográfico por meio de construções discursivas que patenteiam o fascínio exercido, através de referências à “máquina milagrosa” ou ao “aparato prodigioso”, deslumbramento que se reitera na crônica do mexicano José Juan Tablada, “México sugestionado: el espectáculo de moda” (1906) e em “En el cine” (1913), de Ramón López Velarde. São essas considerações que desdobram, no segundo capítulo, as reflexões críticas sobre a linguagem cinematográfica, envolvendo relações com outros gêneros como o teatro e o romance.
Em “Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema”, segundo capítulo, Miriam Gárate enfatiza o interesse das primeiras críticas/crônicas pelo cinema narrativo e os diversos modos de lê-lo. Desponta, então, uma questão muito estudada – por isso a recuperação de vários teóricos do cinema, dentre os quais Béla Balázs -, de modo a desvelar como os filmes se constroem e as características da linguagem cinematográfica do período. Como afirma Gárate, “a linguagem cinematográfica transparente (Xavier, 1984) disputa com as outras artes a expressão de uma subjetividade inicialmente reservada [imaginariamente reservada] à palavra” (GÁRATE, 2017, p. 10). As relações com outras práticas artísticas como o teatro são evidencia disso. Em “Da ‘estética da ação’ à estética da subjetivação”, subtítulo de uma das seções do segundo capítulo, delineia-se um percurso que elucida as unidades imbricadas na linguagem em processo de construção e, simultaneamente, a individualização que afasta o cinema das outras artes: o primeiro plano, o enquadramento, a montagem. A autora contrapõe a visão preconceituosa de Urbina, para quem “o cinema jamais nutrirá a cultura nem aperfeiçoará o espírito como o faz o livro”, à perspectiva de Torres Bodet, para quem a câmera em A última gargalhada (1924) de Murnau é um “objeto pensante”, pois “sonha”, ou, nas palavras de Bálaz, dá forma a um “pensamento ótico”. O contraponto põe em cena o debate entre espetáculo/cultura e refrata as tensões descobertas nessa viagem.
O terceiro capítulo, “O retorno do pleito mimético”, recupera as discussões suscitadas a respeito das transformações nas práticas culturais e sociais produzidas pelo cinema. São relembrados aspectos negativos, percebidos pelos cronistas em relação à possível influência dos filmes que encenam crimes. Para alguns deles, “o efeito pernicioso do novo espetáculo reside na vivacidade das peripécias que mostram [ensinam] os meios e modos de delinquir” (GÁRATE, 2017, p. 99). Daí a proibição aos jovens de frequentar filmes que pudessem levá-los a copiar tais atos, defendida em numerosos escritos. As crônicas revelam em seus títulos essa crença arraigada. “Moralidad, criminología… Lo de siempre. La Razón contra el cinematógrafo” (1919). Repercutem, assim, frases dos próprios jornais, como: “Não acreditamos que a fita torne melhores ou piores os criminosos, mas sim acreditamos que lhes forneça lições e os prepare para o delito, dado que a exibição cinematográfica estimula e exalta a imaginação” (La Razón, 1919, apud GÁRATE, 2017, p. 100). Ao mesmo tempo, e com base no mesmo pressuposto mimético, o cinema se torna um meio de instrução através do qual se oferecem uma formação moral, uma escola do bom gosto e uma “educação pelo olhar”, como é possível ler na crônica de Horacio Quiroga, “El cine en la escuela: sus apologistas” (Caras y Caretas, 1920). Um fato que transforma algumas salas, como a Fémina, de Lima, em lugares destinados à instrução de garotas e senhoras, fenômeno referido em crônica recuperada por Ricardo Bedoya, estudioso do cinema peruano, citado por Gárate. Por outro lado, o cinema também se torna o espaço da sedução e das paixões, como atestam alguns escritos de Urbina (“El cine y el delito”, 1916), de Lima Barreto (“Amor, cinema e telefone”, 1920) ou de Francisco Zamora (“El cine y la moralidad”, 1919), todas amostragens dessa dúbia pulsão didática, que se evidencia ainda com mais clareza em “El cine y las costumbres” (1931), do argentino Roberto Arlt, ou nas menções aos “problemas entre os sexos” feitas pelo mexicano Carlos Nogueira Hope em “Vanidad de vanidades” (1919).
No capítulo “Os ‘latinos’ viajam a Hollywood”, a autora aborda a experiência de viagem à cidade cinematográfica por antonomásia como dado significativo que acompanha, entre os anos de 1920-1930, o desenvolvimento da cinematografia estadunidense. Para focar esse aspecto, são escolhidas as narrações “Una aventura de amor” (1918), publicada com o pseudônimo de Boy, “Miss Dorothy Phillips, mi esposa” (1919) de Horacio Quiroga, “Che Ferrati, inventor” (1923) de Carlos Nogueira Hope e “Hollywood: novela da vida real” (1932) de Olympio Guilherme. Sustenta Gárate:
são narrativas que se estruturam ao redor desse motivo [a viagem a Hollywood], assim como una série de outros tópicos comuns: o desvendamento das regras que vigoram nos grandes estúdios bem como de pormenores técnicos e truques de rodagem; o retrato de tipos que se consolidam por esses anos (a flapper, o latino sedutor, o rastaquera); a relação mimética das personagens com modelos propostos pelo cinema (aparência física, atitudes, sentimentos); o enredo amoroso (também ele estreitamente vinculado ao imaginário cinematográfico, o que resulta no entrelaçamento e no revezamento constantes dos registros da ‘vida’ e do ‘filme’); o vínculo afetivo espectador-estrela; o tema do doublê” (GÁRATE, 2017, p. 127).
Nos dois primeiros títulos (“Una aventura de amor” e “Miss Dorothy Phillips) , encena-se uma experiência que propicia o “cancelamento provisório da realidade imediata”, estabelecendo a viagem não apenas como deslocamento à capital hollywoodiana, mas como translação da vida diurna à da fantasia provocada pela escuridão da sala e pela construção da linguagem fílmica. Isso permite estabelecer uma analogia com o par vigília/sonho, desenvolvido pela autora com o auxílio das teorizações de Mauerhofer (1966), Jean-Louis Baudry (1970) e Christian Metz (1979).
As personagens que povoam esse conjunto de relatos cristalizam uma galeria de estereótipos que reenvia ao jogo instaurado entre ficcional e “real”. Nela, exibem-se os latinos que se lançaram à vida cinematográfica estadunidense: o pobre-diabo representado pelo argentino Guilhermo Grant, o mexicano Federico Granados no papel do latino fogoso, etc. Muitos deles são contemplados nesse quarto capítulo do livro, seguindo um percurso no qual a autora mostra como se configuram nas narrativas as operações que fazem parte da linguagem cinematográfica e implicam uma transferência de códigos para o texto escrito: o recurso gráfico à linha de pontos enquanto sucedâneo do corte/montagem invisível na narrativa de Quiroga, a fórmula fade in para intitular as palavras preliminares no romance de Guilherme, etc. Tais procedimentos são examinados ao longo de “Os latinos viajam a Hollywood” por meio de uma análise que evidencia a perspicácia com que Gárate consegue suturar ambas as linguagens.
Por fim, no quinto e último capítulo do livro, intitulado “Documentários de papel/Crônicas de celuloide”, a autora retoma a problemática demarcada inicialmente, com base na hipótese de que durante as últimas décadas do século XIX e princípios do XX, os escritores latino-americanos estabeleceram uma relação estreita e conflituosa com a imprensa tendo na crônica uma de suas manifestações mais significantes. Isso conduz Gárate a enfocar algumas realizações experimentais, entendidas como a cristalização vanguardista das relações exploradas ao longo de seu texto: as crônicas de Antônio de Alcântara Machado reunidas em Pathé-Baby (1926) e o filme de Alberto Cavalcanti, Rien que les heures (1926). A autora recupera, então, o eixo principal de seu percurso: a retórica do passeio, sustentando que a aparição do cinema propiciou uma triangulação entre imprensa, crônica e cinema, dando lugar ao nascimento de expressões híbridas tais como as Atualidades cinematográficas, as Cine-revistas e os Cine-jornais, por um lado, e a adoção de títulos como Kinetoscópio, Cinematógrafo, Vitascópio ou Cinema da vida em colunas cronísticas, por outro. Miriam Gárate também destaca o papel assumido pelo cinema clássico no século XX enquanto “máquina de contar histórias”, espécie de permutação ou troca de funções desempenhadas pela literatura do século XIX e pelo romance-folhetim. A exposição revela o interesse em desentranhar como se processa uma mudança radical nos textos da época, decorrente de deslocamentos nos âmbitos do jornalismo, da crônica, do romance e do cinema, sinalizando uma ruptura de categorias de gênero na qual primam as tensões. Por isso, compreende-se que Gárate se pergunte no final do volume, aludindo à imagem da “vendedora de jornais” estampada na capa do livro, e como um modo de ecoar sua reflexão, tentando descobrir o que está além da lente do olho mágico: “Rien que les heures: uma crônica de celuloide?”
Referências
BUARQUE, Chico. Estorvo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1991. [ Links ]
CAPARRÓS, Martín. La crónica: una mirada extrema. Diario La Nación, setembro de 2007. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/943086-la-cronica-una-mirada-extrema>. [ Links ]
GÁRATE, Miriam. Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017. [ Links ]
RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1989. [ Links ]
SCHAFFER, M. Pedro Lemebel. La yegua silenciada. Revista Hoy, n. 1072, fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.memoriachilena.cl/archivos2/pdfs/MC0044778.pdf>. [ Links ]
Notas
1 Resenha de: GÁRATE, Miriam. Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017.
2 Em: <http://www.lanacion.com.ar/943086-la-cronica-una-mirada-extrema>.
Hernán Morales. Professor na Universidad Nacional de Mar del Plata. Seus temas de pesquisa são a música e a literatura hispano-americana e brasileira, com uma ampla participação em livros e revistas acadêmicas da área. E-mail: hhjjmorales@gmail.com.
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Magistério oitocentista: contribuições da história da educação na problematização de questões de gênero, etnia e protagonismo docente / Revista Brasileira de História da Educação / 2018
Este dossiê é composto por quatro artigos sobre professores oitocentistas com recortes que contemplam diferentes regiões, períodos e questões [1]. O intuito desse conjunto de reflexões consiste em trazer contribuições da história da educação para a problematização de questões de gênero, etnia e protagonismo no exercício do magistério, considerando as singularidades regionais do território, em um período determinado da história brasileira, o Oitocentos.
A docência constitui parte imprescindível dos processos educacionais previstos nos projetos de civilização, progresso e ordenação de sociedades no século XIX, concebidos por agências governamentais ou não. O magistério público, em tais circunstâncias, confere ao ofício a particularidade de atuar em nome do Estado, mas também de ser peculiarmente afetado por ele. Da mesma maneira, atua na sociedade e é afetado por ela e por suas demandas sociais, ainda que algumas sejam configuradas como bandeiras de determinados grupos. Ambas as condições provocam continuamente os professores a se posicionarem com gradações de maior ou menor conformismo ou insubordinação, tornando-se atores de uma agenda que são convocados a cumprir.
Ao longo do Oitocentos, o ofício foi significativamente regulado por leis e por costumes oficiosos marcados pelas diversidades regionais, imperativos e urgências que, somados às experiências docentes (Schueler, 2001; Munhoz, 2012), conferem diferentes matizes aos processos de constituição da profissão. Também sinalizam os problemas e os efeitos do processo de inculcação de valores, de conformação e de adesão da população, via educação, a um projeto de governamentalidade, em que pesem os recorrentes movimentos insurgentes ao longo do Império.
Compreender e analisar tais aspectos permitem desnaturalizar ideias e imagens produzidas em torno do ofício de professor, bem como desconstruir crenças arraigadas e difundidas por muito tempo no próprio meio acadêmico. A persistência do tema da docência na composição dos eixos dos congressos da área como o Congresso Brasileiro de História da Educação e o Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação e o quantitativo expressivo de trabalhos remetem à emergência de novas abordagens, mas também sinalizam que a temática continua sendo importante objeto de estudos da história da educação e do campo da educação.
Os artigos que compõem o dossiê, no que se refere aos recortes temporais, abordam desde experiências iniciadas na década de 1820 avançando até o fim do século XIX. A maior concentração de estudos na segunda metade do século se relaciona com a ampliação da escolarização e da cultura escrita, abertura de escolas, instituições formadoras e criação de periódicos. Este crescimento incrementou a produção de registros que são tomados como fontes das pesquisas. Neste período, algumas medidas governamentais relativas à Instrução Pública, como a lei de 15 de outubro de 1827 e o ato de 1834 (adicional à Constituição de 1824), desencadearam um significativo crescimento da malha escolar e dos docentes. Marcos internos à história da educação – tanto da esfera central como estes citados, quanto provinciais – balizam as periodizações, assim como os eventos da história política das regiões e do Império do Brasil.
Assim, são analisadas trajetórias docentes vividas em regiões com diferentes características, ‘centrais’ e ‘periféricas’, imersas em ritmos sociais e econômicos distintos. São locais centrais – como a Corte – ou mais distantes geograficamente do poder imperial como a província da Parahyba do Norte. A Corte apresentava grande urbanização e era a mais populosa entre as localidades recortadas; São Paulo era uma capital pouca urbanizada, mas estava entre as regiões mais populosas da província. A vila de Cotia, servindo de contraponto, apresenta um contexto cultural caipira de uma região da província de São Paulo.
Fernanda Moraes, no artigo intitulado ‘Professores e professoras públicas de Primeiras Letras em Cotia (SP, 1870-1885): trajetórias docentes e estratégias do oficio de ensinar’, analisou a atuação de docentes de primeiras letras em Cotia – município vizinho à capital paulista, entre os anos de 1870 e 1885. Ao rastrear a vida pública de 14 professores, a autora identificou a presença deles em cargos públicos e / ou em funções diversas, concomitantes ou não ao exercício do magistério. Foram sujeitos que atuaram, sobretudo, no último quartel do século numa localidade periférica – Cotia – geograficamente próxima à capital paulista, mas distante do crescimento econômico que se assistia em outras regiões da província. Enquanto muitas localidades paulistas vivenciavam o desenvolvimento econômico propiciado pela cultura do café e instalação da linha férrea, Cotia vivia um processo de retrocesso justamente por ser um ponto importante do tropeirismo que decaiu com a ferrovia. Fernanda Moraes destacou que, a despeito da estagnação econômica, a escolarização foi ampliada na região e ressaltou a importância da ambiência familiar e das relações entre masculino e femininona configuração do magistério no XIX.
Angélica Borges, no texto intitulado ‘Lugares do magistério na Corte Imperial: o protagonismo do professor Candido Matheus de Faria Pardal’, apresenta uma reflexão acerca da trajetória de um professor que lecionou e circulou por diferentes espaços escolares, mas também por espaços religiosos, recreativos, sociais e políticos, na capital do governo imperial, a localidade mais urbanizada no período. Candido Matheus de Faria Pardal (1818-1888) exerceu o magistério por pelo menos 42 anos – no ensino primário, secundário e profissional – em instituições públicas e particulares, para meninos e meninas. O professor também atuou como examinador e escreveu compêndios. Angélica Borges destacou como Pardal extrapolou os limites da escola em diversas associações de caráter religioso, social, cultural, político e econômico, e em diferentes cargos públicos, estabelecendo uma série de relações a partir da escola com professores, governantes, famílias dos alunos, vizinhança, a cidade e o mundo estrangeiro, em um momento de intensificação do processo de escolarização na sociedade da Corte – por mais de quatro décadas – atravessando três quartéis do XIX. Por meio do recorte da trajetória prolongada de um professor numa localidade central, a autora refletiu sobre as diferentes relações estabelecidas entre magistério, escolarização e cidade.
A partir de um recorte provincial, Surya Aaronovich Pombo de Barros, no artigo intitulado ‘Graciliano Fontino Lordão: um professor ‘de côr’ na Parahyba do Norte’ destaca à luz da história da educação da população negra no Brasil a trajetória do professor Lordão (1844-1906), filho de uma mulher negra de quem se tem poucas informações e de um frei católico, que era professor e detinha relativa proeminência na sociedade local. Surya Barros acompanha a trajetória de escolarização, o exercício do magistério (como professor particular e público de primeiras letras e de latim) e a atuação política de Lordão como deputado provincial / estadual por quatro mandatos, além de dirigente do Partido Liberal. A autora questiona o impacto que a presença de um professor negro pode ter representado para os alunos e a possível relação entre pertencimento racial e algumas de suas práticas docentes como ter um aluno que era filho de uma escrava ou abrir uma aula noturna para adultos. Seu objetivo é destacar a possibilidade de ascensão social que a instrução podia representar para a população negra sem desconsiderar os obstáculos, a exclusão e a precariedade vivida por estes sujeitos.
Fabiana Garcia Munhoz, no artigo intitulado ‘Para além das prendas domésticas: a trajetória da mestra Benedita da Trindade no magistério feminino paulista’, aborda a trajetória da professora pública de primeiras letras pioneira da cidade de São Paulo, Benedita da Trindade do Lado de Christo. A autora interpreta questões que perpassaram o magistério feminino nesta província problematizando a legislação que criou as aulas públicas de primeiras letras para meninas e, a partir da trajetória da mestra Benedita, destaca a questão dos saberes específicos previstos pela lei (as prendas domésticas) retomando estudos anteriores (Hilsdorf, 1997; Rodrigues, 1962) e a interpretação desta historiografia de que a mestra resistia em ensinar as prendas domésticas previstas pela lei. Operando numa perspectiva micro-histórica, Fabiana Munhoz analisa o ingresso no magistério com a novidade representada pelos concursos públicos entre a população feminina; destaca a atuação de professoras como examinadoras das novas candidatas e estabelece algumas relações entre as experiências das mestras e os lugares que ocuparam – ou buscaram ocupar – na instrução feminina e transmissão do magistério entre mulheres na cidade de São Paulo em meados do XIX.
Os artigos do dossiê dão cor à heterogeneidade da docência – e da escolarização – ao longo do Oitocentos. Foram três abordagens com recortes locais e uma provincial. Em um cenário de contexto caipira, como o da vila de Cotia, observamos uma rede de professores em atividade e a ampliação da malha escolar. Acompanhamos os sujeitos professores – homens e mulheres – em suas relações, cooperações e conflitos para efetivar as aulas de primeiras letras numa localidade pouco populosa e urbanizada e com uma economia próxima da subsistência. Quase meio século antes, há alguns quilômetros da pequena vila de Cotia, na capital da província de São Paulo (uma cidade pouco urbanizada no período, mas capital de província), o magistério feminino era inaugurado e exercido por uma professora que conviveu com outras mestras, alunas e famílias, vereadores, inspetores e presidentes de província e lidou com questões relativas ao ingresso, exames, saberes das aulas femininas e transmissão do magistério. À modesta urbanização da província de São Paulo, onde acompanhamos uma experiência feminina, contrapõese o dinâmico cenário da Corte. Além dos contrastes regionais e do espaçamento do tempo, pesa a diferença de gênero nas experiências docentes dos sujeitos investigados.
A diversificada trajetória do professor Pardal atravessa e é atravessada por múltiplos espaços da cidade do Rio de Janeiro. Por ser homem, a vida pública do mestre foi bastante movimentada (e registrada em fontes) em associações de caráter religioso, social, cultural, político e econômico. Sua experiência indicia um caráter urbano do magistério na medida em que professor e seus alunos adentraram e abriram as escolas para estes espaços. No mesmo Império do Brasil, numa província do Norte do Império [2], bastante distante da Corte e com uma economia alicerçada na produção agrícola (açúcar e algodão), pecuária e no trabalho escravo combinado à mão de obra livre, acompanhamos a trajetória de um professor negro e os impactos de sua atuação num país onde a escravidão era legalmente permitida e fonte de produção da riqueza que se concentrava nas mãos de uma minoria da população.
Às diferenças regionais soma-se a diversidade temática das investigações. Como já destacamos, houve uma variedade de objetos – desde a circulação de professores e sua presença em outros espaços da cidade exercendo um protagonismo docente, relações familiares, transmissão do magistério até a questão racial e de gênero. Para subsidiar as análises, foi mobilizado um repertório diversificado de fontes. As interpretações são construídas a partir de cuidadoso trabalho de pesquisa em arquivos e de sistematização. Entre as fontes, destacam-se os documentos manuscritos da Instrução Pública de arquivos estaduais; imprensa oitocentista; relatórios de inspetores da Instrução e de presidentes de província; relatórios oficiais e legislação educacional.
Os artigos do dossiê trazem contribuições da história da educação para as reflexões sobre o magistério oitocentista e evidenciam as diferentes possibilidades de enfoque em torno da docência. Pardal, Lordão, Benedita da Trindade e os diversos professores de Cotia protagonizaram histórias de negociação e conformação diante das condicionantes impostas, e também de resistência, ousadia e luta para inserção e intervenção na sociedade por meio do magistério. Cada qual à sua maneira, a partir das possibilidades, de sua condição regional, de gênero ou de etnia, deixou seu quinhão de contribuição para compreendermos e constituirmos as multifacetadas páginas da docência na história da educação brasileira.
Notas
1. Os artigos que compõem este dossiê foram apresentados no formato de Comunicação Coordenada intitulada ‘Magistério oitocentista: singularidades regionais, de gênero e raça em trajetórias docentes’, no IX Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em 2017, em João Pessoa-PB, no eixo temático ‘Formação e Profissão Docente’.
2. Durante o século XIX, as expressões ‘províncias do norte’ e ‘do sul’ eram utilizadas, mas sem organização oficial. O que se denominava de região Norte dizia respeito aos atuais norte e nordeste (Gregório, 2012).
Referências
GREGÓRIO, V. M. (2012). Dividindo as províncias do Império: a emancipação do Amazonas e do Paraná e o sistema representativo na construção do Estado nacional brasileiro (1826-1854). São Paulo, SP: USP.
HILSDORF, M. L. S. (1997). Mestra Benedita ensina primeiras letras em São Paulo. São Paulo, SP: Plêiade.
MUNHOZ, F. G. (2012). Experiência docente no século XIX: trajetórias de professores de primeiras letras da 5ª comarca da Província de São Paulo e da Província do Paraná (Dissertação de Mestrado em educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.
Rodrigues, L. M. (1962). A instrução feminina em São Paulo. São Paulo, SP: Escolas Profissionais Salesianas.
SCHUELER, A. F. M. de (2001). Culturas escolares e experiências docentes na cidade do Rio de Janeiro (1854-1889) (Tese de Doutorado em educação). Faculdade de Educação da UFF, Niterói.
Fabiana Garcia Munhoz – Historiadora e pedagoga pela Universidade de São Paulo (2002, 2008). Mestra (2012) e doutora (2018) em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Suas investigações na área da História da educação dedicam-se ao estudo sobre o magistério oitocentista com foco na história social do trabalho docente, história social das mulheres e relações de gênero. Participa do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHEFEUSP) desde 2007. É professora de Educação básica da cidade de Rio Claro – SP / BR desde 2013. E-mail: fgmunhoz@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0002-0198-4924
Angélica Borges – Graduada em Pedagogia e mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, 2014). Professora adjunta do Departamento de Ciências e Fundamentos da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Campus Duque de Caxias (FEBF-UERJ), e professora da educação básica na Rede Municipal de Duque de Caxias (RJ). Integrante do grupo de pesquisa EHELO- FEBF (Estudos de História da Educação Local). E-mail: angelicaborgesrj@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0003-0207- 943X
MUNHOZ, Fabiana Garcia; BORGES, Angélica. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR. Maringá, v. 18, 2018. Acessar publicação original [DR]
An Agrarian History of Portugal, 1000-2000: Economic Development on the European Frontier – FREIRE (LH)
FREIRE, Dulce; LAINS, Pedro (Eds). An Agrarian History of Portugal, 1000-2000: Economic Development on the European Frontier. Leiden/Boston: Brill, 2017, 347 pp. Resenha de: RIBEIRO, Ana Sofia. Ler História, v.72, p.227-231, 2018.
1 Dulce Freire e Pedro Lains, investigadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, coordenaram a publicação da primeira síntese da história agrária portuguesa vista a partir de uma perspectiva de longa duração. A obra cobre um vasto período cronológico, desde cerca do ano 1000 até ao ano 2000, ou mais exactamente desde os tempos da reconquista cristã da Península Ibérica e do movimento que viria a resultar na independência de Portugal face ao reino de Leão e Castela até ao século XXI. Esta monografia colectiva de 347 páginas estende-se por nove capítulos, uma introdução e um apêndice muito útil de figuras, que incluem, por exemplo, mapas ou gráficos. Além dos editores, outros nove historiadores participam nesta publicação, sendo a maioria vinculada a universidades de Lisboa. Os editores procuram neste volume participar no que chamam de “renovação da história económica europeia”, propondo a inclusão do caso português no debate sobre os diferentes padrões e ritmos do crescimento económico europeu ao longo do tempo, variáveis em que se sustenta a historiografia corrente para a explicação da divergência do desenvolvimento económico entre o centro e as periferias do continente europeu (p. 1).
2 Partindo da ideia (preestabelecida?) da existência de um atraso português crónico e do seu padrão divergente de desenvolvimento (p. 3), este livro pretende (re)interpretar as características macroeconómicas do crescimento da produtividade e do produto agrícolas portugueses na longa duração, comparando-os com um cenário internacional mais vasto e integrando-os no desenvolvimento de outros sectores de actividade da economia nacional. Para isso, cada um dos nove capítulos analisa seis variáveis: (1) evolução demográfica e urbanização; (2) regimes de exploração e propriedade da terra; (3) padrões de povoamento e fixação à terra e produto agrícola; (4) mercados interno e externo; (5) mudanças tecnológicas; e (6) políticas relacionadas com a economia rural. Os nove capítulos encontram-se distribuídos por três partes, organizadas numa abordagem cronológica tradicional: a Idade Média, a época moderna, e a contemporaneidade, respectivamente. Uma quarta parte é constituída por um capítulo de reflexão e balanço sobre os resultados da actividade agrícola portuguesa no último milénio.
3 Contudo, esta divisão torna-se aqui e ali um pouco artificial, uma vez que os ritmos de evolução agrícola não se compadecem, frequentemente, com os cortes artificiais com que nós, historiadores, recorrentemente nos orientamos. Por exemplo, o corte cronológico feito exactamente em 1500, entre os capítulos 2 e 3 parece algo forçado por dois motivos. O primeiro, prende-se com uma série de continuidades e até de alguma redundância de conteúdos quanto a algumas das características da agricultura portuguesa, sendo a distinção mais relevante a introdução, ainda que limitada, das novas culturas ultramarinas e dos novos mercados facultados pela integração nos circuitos da economia colonial, pós-1500. Em segundo lugar, o próprio capítulo 6, “Gross Agricultural Output: a quantitative, unified perspective, 1500-1850”, revela uma acentuada diminuição no produto interno agrícola durante a década de 1520 (fig. 6.1, p. 187). Na realidade, este pode ser um dos novos dados deste livro e o corte entre capítulos faria mais sentido nesta cronologia. Por outro lado, parece aqui faltar um primeiro capítulo relativo à evolução das estruturas ambientais que suportaram o desenvolvimento da agricultura portuguesa: características climáticas, possibilidades químicas dos solos, recursos orográficos e hidrográficos. Um capítulo interdisciplinar escrito por geógrafos, engenheiros agrónomos, geólogos e especialistas climáticos poderia constituir uma grande mais-valia nesta obra, revendo e actualizando o valioso trabalho de Orlando Ribeiro1 e conferindo uma nova contribuição científica que orientaria o conhecimento histórico em geral e o trabalho deste volume, em particular.
4 É impossível sintetizar o conteúdo de cada capítulo nestas breves linhas. Por isso, esta recensão centrar-se-á nas grandes conclusões e equilíbrios da obra. Este livro é muito mais do que uma síntese do vasto número de monografias sobre o passado agrário português. Alguns capítulos partiram de uma análise mais detalhada da historiografia referente a cada período, mas conferindo uma consistência nacional que faltava, devido ao facto de muitos destes trabalhos se focarem em realidades locais ou regionais. Esta tarefa é bem conseguida no capítulo 2, da autoria de Ana Maria Rodrigues, referente aos impactos da Peste Negra na produtividade agrícola e nos mecanismos de recuperação emergentes após a epidemia. Também Margarida Sobral Neto, no capítulo 4, faz um excelente cenário da agricultura portuguesa desde 1620, debatendo sustentadamente a existência verdadeira de uma crise da agricultura portuguesa no complexo século XVII. Outros capítulos tentam reutilizar anteriores abordagens sub-sectoriais para elaborar séries econométricas mais detalhadas sobre o produto agrícola e a produtividade, assim como sobre o papel e o impacto do sector agrário no contexto geral da economia. Isto torna-se evidentemente possível na época estatística da contemporaneidade, entre 1820 e 2000. Os capítulos 7 e 8, da autoria de Amélia Branco e Ester Gomes da Silva, Luciano Amaral e Dulce Freire, representam mais do que uma abordagem quantitativa, uma vez que explicações qualitativas são necessárias para a compreensão dos cenários apontados. Além de constituírem uma boa ferramenta de trabalho e estudo para um público académico, pela sua proximidade cronológica, estes capítulos são uma boa base de consulta para os que tomam decisões no presente.
5 Mas são dois os capítulos que mais novidades trazem para este campo de investigação histórica. O primeiro, “The Reconquista and its Legacy, 1000-1348” (capítulo 1), de António Castro Henriques, deve-se tornar um capítulo de referência na historiografia medieval portuguesa a curto prazo. Ele não só é essencial para a compreensão do desenvolvimento agrário medieval português, mas também para a percepção do quão determinantes foram as características dos diferentes ritmos da Reconquista, no território que se tornaria Portugal, para a evolução do desenvolvimento agrícola. Eles estabeleceram as distintas estruturas de direitos de propriedade, os diferentes modelos de exploração da terra, os distintos regimes de plantação e de cultura, assim como ajudaram a condicionar as estratégias de diferentes instituições que tiveram a seu cargo a tarefa de povoar e desenvolver o território. Este período marcará indelevelmente as diferenças entre o norte e o sul do país, a forte persistência do regime senhorial de exploração da terra até bastante tarde, as preferências regionais entre monocultura ou policultura, entre as distintas adaptações do sector à agricultura de mercado ou à pecuária ou ainda à agricultura de subsistência, ainda tão presente em algumas regiões do país.
6 O segundo capítulo que saliento é o de Jaime Reis, o acima mencionado capítulo 6. Pela primeira vez, retrata a evolução do produto agrícola bruto em Portugal em época pré-estatística (1500-1850). Ainda que possa haver alguma cautela sobre a modelização desta informação e da representatividade da amostra documental, este é um grande avanço para a historiografia económica moderna portuguesa. Permite destacar um instável século XVI, um mais estável mas mais estagnado século XVII, e um crescimento assinalável no século XVIII, até cerca de 1740. Depois de 1757, o produto agrícola cresce até 1772, começando a decrescer até ao final das Invasões Francesas. Os fenómenos de setecentos estão bem contextualizados no capítulo anterior, de José Vicente Serrão. A queda das remessas do ouro brasileiro, as alterações políticas entre reinados e o envolvimento de Portugal em conflitos internacionais afectaram a produtividade agrícola, assim como condicionaram o acesso aos mercados de exportação tão importantes para o crescimento da primeira metade da centúria. Acredito que a segunda parte da obra, referente ao período moderno, ganharia se esta abordagem quantitativa (cap. 6) surgisse antes dos capítulos mais qualitativos (3, 4 e 5), pois salientaria a sua complementaridade. Estes explicam detalhadamente a evolução apresentada no capítulo 6. Esta é uma experiência que gostaria de sugerir ao leitor.
7 O volume termina com o capítulo 9, “Agriculture and Economic Development on the European Frontier 1000-2000”, da autoria de Pedro Lains, que se afigura muito além de uma súmula das conclusões anteriores. Depois de observar as grandes fases de crescimento da agricultura portuguesa, conclui que, na realidade, esta teve um crescimento lento, mas contínuo, ao longo do segundo milénio. As grandes inovações neste sector, ainda que chegando normalmente atrasadas e entrando com menos intensidade de que em outros países europeus, foram introduzidas, ainda que sem nenhum movimento disruptivo. Lains argumenta que esta evolução “bem sucedida” da agricultura portuguesa foi sobretudo impulsionada pela conjuntura interna de cada período (condicionantes ambientais, demográficas, de capacidade de investimento), embora reconheça que a “globalização e o crescimento das relações económicas internacionais” foram também relevantes na performance da agricultura nacional (p. 307).
8 Está já provado como o império não teve um impacto muito relevante na economia portuguesa,2 e é já conhecimento consolidado como o ouro foi crucial para o desenvolvimento da agricultura de mercado no século XVIII, em Portugal, mas acredito que as contingências históricas internacionais foram determinantes para o aumento das exportações agrícolas portuguesas, modificando mercados, procura e oferta. Falta ainda avaliar o peso das exportações no consumo total de produtos agrícolas portugueses, que estudos recentes já indiciam.3 O autor compara ainda a realidade portuguesa com a de outros espaços europeus, contestando as teorias da “divergência” ou da “pequena divergência”4 entre os ritmos de desenvolvimento agrícolas do norte e do sul da Europa, nomeadamente desde o século XVI. Comparando as taxas de crescimento do produto agrícola, o capítulo prova que Portugal seguiu as mesmas tendências da maioria dos países europeus, e que os casos da Holanda e da Inglaterra são excepcionais. Esta nova abordagem necessita ainda de um maior debate nacional e internacional entre historiadores económicos e também entre os especialistas em história rural. Esta recensão procura difundir estes resultados e promover tal discussão. Por exemplo, são os dados dos diferentes países compatíveis para serem comparados, nomeadamente no que toca ao período pré-estatístico?
9 Ainda que os diferentes autores da obra venham de diferentes escolas historiográficas – uns com formação puramente de história e outros de formação em economia –, e que tenham escolhido abordagens mais ou menos inovadoras, este volume apresenta uma forte consistência e coesão. Por um lado, todos os autores tentaram respeitar uma grelha de inquérito comum composta pelas seis variáveis acima descritas; por outro lado, os autores remeteram frequentemente para outros capítulos da obra, fazendo notar um esforço colectivo e um cuidado de contínuo conhecimento do trabalho simultâneo dos colegas. O livro foi pensado e preparado como um todo e não como uma soma de contribuições individuais, um processo difícil de implementar neste tipo de publicação. A obra é um excelente manual para o estudo do desenvolvimento da agricultura portuguesa para um público académico, não só nacional, mas também internacional. Uma vez que foi publicada em inglês, permite uma futura abordagem comparativa, em que o cenário português pode ser considerado. Ainda que tenha sido orientado para participar nos actuais debates sobre o fenómeno da divergência económica liderada pelo mundo ocidental,5 o livro acrescenta valor à historiografia portuguesa sobre a temática. Partindo de uma síntese, propõe novas interrogações e abordagens, assim como coloca a agricultura portuguesa em perspectiva face a outros espaços europeus, entrando em contradição com a ideia prevalente de um desenvolvimento agrário baseado na tradição e num atraso crónico.
Notas
1 Orlando Ribeiro, Portugal. O Mediterrâneo e o Atlântico: estudo geográfico. Lisboa: Letra Livre, (…)
2 Leonor Freire Costa, Nuno Palma, Jaime Reis, “The great escape? The contribution of the empire to (…)
3 Cristina Moreira, Jari Eloranta, “Importance of «weak» states during conflicts: Portuguese trade (…)
4 Robert Allen, “Economic structure and agricultural productivity in Europe, 1300-1800”. European R (…)5 Kenneth Pomeranz, The Great Divergence. China, Europe, and the Making of the Modern World Economy (…)
Ana Sofia Ribeiro – Universidade de Évora, Portugal. E-mail: asvribeiro@uevora.pt
As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul / Antonio E. A. Barros
A reconstituição progressiva das diferentes estratégias, tramas de competição política e batalhas pela memória da nação sul-africana contemporânea constituídas em torno do legado e da biografia de uma de suas figuras centrais, John Langalibalele Mafukuzela Dube (1871-1946), constituem o objeto principal do mais recente livro do historiador maranhense Antônio Evaldo Almeida Barros. Resultante de sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, em 2012, sob orientação de Lívio Sansone, o livro constitui um convite etnográfico, interdisciplinar e bem documentado para acompanhar o autor na aventura da exploração das artimanhas da nação e da memória no contexto sul-africano, explorando o contínuo, complexo e multifacetado processo de reconstrução biográfica d’As Faces de John Dube.
Por oportuno, tendo em vista o próprio objeto analisado na obra, talvez fosse interessante tecer algumas breves considerações sobre o autor, assim se tornará mais compreensível o esforço intelectual realizado e algumas de suas bases epistemológicas. Podemos começar então pelo denso investimento realizado anteriormente por Antonio Evaldo para a reconstituição de uma história social da cultura popular maranhense na contemporaneidade, cujos resultados só parcialmente começam a ser divulgados2. Desde esse momento, parece-me, os meandros da nação, cultura, memória e identidade constituem eixos centrais de discussão que se prolongam no trabalho ora resenhado. Da mesma forma, do ponto de vista metodológico, percebe-se n’As Faces de John Dube a mesma paixão pela imersão no campo arquivístico, porém, com uma exposição muito mais arguta e envolvente a respeito do processo de construção da pesquisa, com um enredo que nos convida a acompanhar a construção da obra em processo e, paralelamente, do próprio Dube em movimento. Para um observador próximo, torna-se claro também a inscrição dessa pesquisa em um programa de investigação promovido por jovens pesquisadores do Maranhão, que tem como meta incorporar o continente africano em uma pauta de investigações comparativas, constituída em torno de afinidades temáticas e problemas conceituais, e radicada nas redes de discussão epistemológica do eixo sul-sul3.
Com efeito, recorrendo a textos e narrativas desse intelectual sul-africano reconhecido, passando por biografias, artigos, ensaios e livros de natureza diversa sobre Mafukuzela distribuídos por diversos arquivos, e atravessando diferentes configurações temporais, Antônio Evaldo nos convida, então, a uma densa e multissituada exploração das modalidades de gestão coletiva, enquadramento institucional e lutas de memória em torno de Dube. E aqui se encontra, para o parecerista, o aspecto mais interessante da obra, posto que o que se coloca sob análise não é propriamente o sujeito empírico, mas o problema das formas de autoinscrição simbólica e política dessa figura central da narrativa sul-africana em diferentes configurações. São, portanto, as modalidades de patrimonialização da cultura e suas distintas concepções de história, desenvolvimento, raça e cultura que entram em pauta.
Evidentemente, a escolha temática e a pluralidade de fontes e materiais de caráter crítico ou laudatório sobre John Dube têm como suporte a pluralidade de papéis e cargos por ele exercidos e as sucessivas tomadas de posição que adotou no espaço público. Assim, como bem demonstra o autor, em que pese a variedade de visões construídas por biógrafos, documentaristas e comentadores, há relativo consenso de que não se trata de um indivíduo ordinário ou socialmente insignificante, o que ajuda a compreender a profusão de dispositivos empregados para produzir, atualizar ou questionar o legado desse personagem4. Porém, se essas realizações são bem conhecidas por aqueles que têm se interessado por sua vida e obra, é também significativo observar que os discursos e práticas atribuídos a Dube não costumam ser trazidos à tona de modo despropositado; a eles são destinadas ênfases e interpretações de natureza política, acadêmica ou artística, situadas no contexto social e histórico de seus produtores, numa cadeia de interpretações que envolve, além de Dube, homens e mulheres que com ele conviveram ou que, posteriormente, o tomaram como objeto de suas narrativas.
Para recobrar o processo complexo de utilização de Mafukuzela como objeto de diferentes estratégias e tramas de competição política e batalhas pela memória da nação, Antônio Evaldo tenta reconstituir esse trabalho de muitas mãos em três recortes. No primeiro capítulo, intilulado John Dube no seu próprio tempo, o autor narra alguns momentos da vida de John Dube explorando os seus discursos distribuídos por ensaios, livros e outras formas de intervenção social escrita. Neste caso, interessa ao autor descrever simultaneamente o contexto sócio-político e o itinerário de vida de John Dube, ao passo em que são exploradas as suas interpretações sobre a realidade e as narrativas e imagens que projetou sobre si. A hipótese de fundo é que a extraordinariedade do seu trajeto, situado nas fronteiras entre a sua cultura de origem e as fontes da cultura dominante, e o seu esforço por encontrar um sentido e posição no mundo dentro do conjunto de injunções contraditórias aos quais foi submetido delimitam e influem sobre as operações posteriores de revisão do seu legado.
A partir de então a análise descola-se propriamente do indivíduo para nos situar nas grandes tendências interpretativas que, desde o final do século XIX até o início do século XXI, tomam John Dube como objeto ou sujeito de interesse. É assim que, em Dube rememorado em tempos e espaços da África dos Sul segregada (capítulo 2), o autor passa a explorar aqueles que tendem a identificar Mafukuzela como colaborador direto ou indireto do processo de implementação do regime segregacionista sul-africano. A despeito de que essa representação da vida de Dube posa ser encontrada em diferentes momentos e contextos da história da África do Sul contemporânea, fato é que ela se torna claramente dominante nos anos do Apartheid, particularmente entre as décadas de 1940 e 1970. A tônica das publicações diversas que analisou – e com maior detalhe, dois ensaios biográficos e uma biografia – é aquela na qual Dube pode ser visto como fantoche dos brancos, incentivador da solidariedade racial, numa expressão, promotor do apartheid. Em suma, John Dube seria o retrato de como ser fraco e ambíguo diante das forças sociais, políticas e econômicas da história sul-africana, e da luta contra a opressão social e racial.
De outro lado, há aqueles que posicionam John Dube como personagem central das lutas históricas contra a segregação racial, inscrevendo-o, como ocorre atualmente, como uma espécie de herói sul-africano. Também neste caso podem-se observar registros desta tendência em diferentes décadas e situações, como nas representações sobre Dube produzidas por sua família e grupo social nos anos 1970 no âmbito dos izibongos5 que lhe foram dedicados, analisados no final do segundo capítulo. Mas este padrão interpretativo tornar-se-ia claramente dominante na África do Sul pós-Apartheid, particularmente no contexto de invenção da África do Sul como Rainbown Nation.
São justamente esses usos e abusos de John Dube que o autor analisa no terceiro capítulo: John Dube em tempos e espaços da nação arco-íris. Porém, antes de destacarmos o foco do capítulo, interessa enfatizar a digressão feita pelo autor no início dessa última parte do livro, quando somos surpreendidos com uma nova e bem-humorada exploração de sua experiência etnográfica, destacando não apenas as suas percepções subjetivas a respeito das diferenças entre África e Brasil, como também o complexo jogo de permanências e mudanças no jogo de classificações e etiquetagens naquele espaço simbólico. É que o tópico permite ver com clareza que o foco principal da obra não se situa exatamente nas situações e experiências múltiplas, desiguais e diferentes dos sujeitos concretos, mas nas condições sociais de formatação, enquadramento e reconhecimento público de determinadas narrativas e categorias de classificação da realidade.
Em museus e monumentos, nos meios acadêmicos, celebrações e homenagens, na imprensa ou em meios digitais, o autor vai explorando como vai sendo esculpida simbolicamente e objetivado o discurso da Rainbow Nation ao passo em que Dube é reabilitado como sujeito absolutamente envolvido nas lutas pela liberdade, opositor inteligente de ações e movimentos que visavam instituir o Apartheid. Conectada à instalação dessa ruptura, a vida de Mafukuzela passa a ser tomada como exemplo de que nas origens da nação sul-africana moderna haveria formas claras de relações raciais harmônicas entre brancos e negros. John Dube seria, portanto, o retrato de como ser forte diante das forças sociais, políticas e econômicas da história e na luta contra a opressão social e racial; um exemplo heróico para ser seguido numa África do Sul que se pretende como nação caracterizada pela diversidade cultural e étnica.
A guisa de conclusão, gostaria de destacar um último aspecto da obra que retoma os argumentos da conclusão apresentada pelo autor. Ele diz respeito ao valor pedagógico de uma abordagem que tem clareza com relação ao foco principal do trabalho. Sem prender-se a uma visão encantada e celebratória a respeito da construção da Rainbow Nation, e mobilizando uma pluralidade de fontes com precauções teóricas, o livro consegue, antes de qualquer coisa, demonstrar as múltiplas tensões, simbólicas e sociais, por meio das quais a nação é fabricada e representada na contemporaneidade. Porém, a apreensão desse processo de produção da realidade oficial e pública, objeto do trabalho, não faz com que o autor deixe de ponderar o fato de que os processos de visibilização e consagração de determinados patrimônios e atores sociais, como John Dube, recobrem diferentes formas de silenciamento e, por vezes, fazem esquecer realidades não ditas e percebidas nessas narrativas, o que pode se desdobrar ainda em um novo e instigante programa de investigações.
Notas
- Consultar, por exemplo: BARROS, Antonio Evaldo A. Invocando deuses no templo ateniense: (re)inventando tradições e identidades no Maranhão. Outros Tempos, São Luís, v.3, p. 156-182, 2006. Id. O pantheon encantado: culturas e heranças étnicas na formação da identidade maranhense. 2007. 319 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – IFCH, PÓS-AFRO, CEAO, Salvador: UFBA, 2007.
- Desse ângulo, inclusive, este livro pode ser lido como um dos mais belos e pedagógicos exemplares de uma agenda de pesquisas coletivas levada a cabo no bojo do Núcleo de Estudos África e Sul Global (NeÁfrica) – grupo vinculado à Universidade Federal do Maranhão e Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) – o qual tem se traduzido em diferentes publicações, eventos e irrigado diversos projetos de investigação.
- Neste caso, valeria muito à pena atentar para a sugestão de um programa de pesquisas realizada por Livio Sansone no prefácio do livro, quando assinala que “Dube não é somente importante, mas é também exemplar para o estudo das biografias dos pais da pátria que foram a expressão de vários outros países africanos” (p. 15).
- Izibongo refere-se a louvores entoados em honra de uma pessoa, trata-se de um gênero de louvor poético, de poesia oral, comum entre os zulus, uma espécie de poesia ou louvor com características metafóricas, laudatórias, elogiosas e no qual se narram feitos históricos de uma pessoa que já morreu, sobretudo reis e aqueles que são heroificados. Imbongi é a pessoa especializada em proferir o izibongo.
Wheriston Silva Neris – Doutor em Sociologia. Professor do Campus III -UFMA e docente permanente do PPGHIST/UEMA. E-mail: wheristoneris@yahoo.com.br.
BARROS, Antonio Evaldo Almeida. As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul. Curitiba, PR: CRV, 2016. Resenha de: NERIS, Wheriston Silva. As tramas da patrimonialização da cultura: histórias, memórias e narrativas de/sobre John Dube na Rainbow Nation. Outros Tempos, São Luís, v.15, n.25, p.192-196, 2018. Acessar publicação original. [IF].
Historica racialized toys in the United States – BARTON; SOMERRVILLE (RA)
BARTON, C. P.; SOMERVILLE K.. Historica racialized toys in the United States. Walnut Creek, Califórnia: Left Coast Press, 2016. 102p. Resenha de ALVES, Daniela Maria. Revista de Arqueologia, v.31, n.2, 2018. Especial: Arqueologia da Infância.
O livro Historical Racialized Toys in the United States, de Barton e Somerville, recentemente publicado, apresenta uma abordagem multidisciplinar, contemplando um estudo arqueológico, sociológico e antropológico da cultura Vitoriana nos Estados Unidos, a partir do estudo da cultura material. Os autores compilaram 172 brinquedos advindos de dados de colecionadores e antiquários, de catálogos e coleções de museus. Esses brinquedos foram datados entre os anos de 1865 a 1930.
A obra contempla seis capítulos, distribuídos ao longo de 102 páginas. Primeiramente, Barton e Somerville conceituam a ideologia de raça e argumentam sobre a teoria de habitus de Pierre Bourdieu (1997, 1984). O trabalho é um exame de como os brinquedos produzidos em massa geraram visões preconceituosas a respeito de populações asiáticas, irlandesas, negras e nativas americanas. Tais estereótipos funcionaram como método de socialização das crianças entre a última metade do século XIX e início do século XX, em uma visão de mundo racializada e racista. A priori, atenta-se à ideologia de raça, que sugere haver diferenças inatas na espécie humana. Essa categorização é hierárquica e possivelmente conduz à práticas de racismos, isto é, um ou mais grupos raciais recebem privilégios em detrimento da desumanização dos “outros”. Similarmente a qualquer construção social, raça é uma ideologia que tem sua origem fabricada, assim como sua manutenção e reprodução realizadas por meio da socialização da criança.
Os brinquedos não foram os únicos objetos a mostrar representações do “outro”, no entanto talvez sejam os mais chocantes para a sensibilidade moderna, pois são objetos especificamente feitos para crianças. Como explica Bourdieu, os indivíduos não aderem cegamente às estruturas sociais, mas operam dentro de uma “área cinza” que aplica, rejeita e modifica tradições pré-existentes. A habilidade de mediar a estrutura social é baseada sobre a socialização de um indivíduo que cultiva um habitus. O habitus permite e restringe as práticas individuais dentro das situações de mudança social. As práticas individuais diárias causam reações nas relações sociais, um habitus individual é alterado para conformar as situações de mudança e depois transformar a estrutura social. O resultado é uma relação dinâmica na qual as estruturas sociais coletivas influenciam as práticas individuais, e as práticas individuais podem afetar a estrutura social, o que possibilita a continuação e modificação da sociedade através do tempo e do espaço. Desse modo, as relações sociais não são estáticas, mas são constantemente sujeitas à renegociação. Assim, a teoria de Bourdieu possibilita entender as relações entre estrutura, habitus e prática, facilitando o modelo teórico no qual pode-se interpretar a disposição reflexiva e constitutiva da cultura material analisada.
Em seguida, as discussões giram em torno de conceitos como raça, classe e capitalismo na América. Barton e Somerville retomam o conceito de raça, afirmando tratar-se de construção ideológica para promover a hegemonia de classes dominantes por meio da criação falsa de uma percepção entre e dentro dos grupos marginalizados. No século XIX até o início do século XX da era capitalista, a possibilidade de qualquer união solidária entre esses grupos marginalizados era negada. Assim, essas ideologias posicionavam as “raças” como competidoras umas com as outras, ao contrário de desafiar o poder das classes dominantes. Tal poder ideológico da raça sugere que as classes trabalhadoras brancas tinham mais em comum com as elites brancas. Durante o período de institucionalização da escravidão nos Estados Unidos, houve uma associação semiótica direta entre pele negra e percepção biológica e social de inferioridade. A combinação entre escravidão e ideologia racial expandiu-se nas sociedades escravocratas do Sul e depois invadiu todo o país. No nordeste dos Estados Unidos, o medo do crescimento da população negra, entre os séculos XVIII e XIX, resultou em estratégias institucionais e práticas diárias usadas para minar a influência negra na política, na economia e na sociedade. Com o fim da escravidão, o país experienciou uma grande expansão do racismo. Um aspecto marcante da influência suscitada pela ideologia racista, popularizada por volta da década de 1830, era os espetáculos de interpretação, performance e música, denominados de blackface minstrel show. Nessas performances figuravam homens brancos como atores interpretando atitudes e comportamentos tidos como característicos dos negros. Muitos desses atos apresentavam comportamentos infantis ou pessoas negras felizes com a escravidão. Homens afro-americanos eram representados como jovens trapaceiros ou como empregados bem preguiçosos. Tais estereótipos racistas foram cultivados não somente por meio de interações com pessoas negras, mas também pela socialização em uma visão de mundo racista.
O texto também perpassa pela temática da criança e da infância. A infância é descrita como um período prolongado de dependência, durante o qual as crianças tornam-se socializadas e aceitas na sociedade em que nasceram e isso varia de acordo com a cultura, assim como as atividades e comportamentos considerados permitidos. Essas atividades e comportamentos estão relacionados à construção de gênero e encontram-se centradas nas categorias de biologia, sexo e idade. Os adultos costumam usar diferentes estratégias, como leituras, premiação/punição, exposição/restrição a certas experiências, para incutir nas crianças valores e comportamentos considerados culturalmente aceitos.
Em seguida, são expostas definições e reflexões sobre o brinquedo e a brincadeira, além da análise sobre a influência da Era Vitoriana britânica na sociedade americana. Os autores salientam a perspectiva comportamental do brincar como um comportamento orientado e ativo, cuja estrutura é altamente variável, na qual aparentemente não há intenção imediata e há acompanhamento específico de sinais que incluem odores, sons, ausência de submissão, inversão das relações de dominação, mudanças nas atitudes motoras individuais, etc. Na época Vitoriana, os brinquedos tinham uma função utilitária e serviam como instrumento para desenvolver habilidades físicas e mentais, além de incutir valores culturais nas crianças. Enfatizavam diferenças de gênero e refletiam a crença da época de que a infância é um período fundamental para o desenvolvimento da moral e da ordem no ser que futuramente será adulto. O período vitoriano foi sinônimo de capitalismo industrial, rápida industrialização e sistema socioeconômico baseado em classes. Com isso, os brinquedos manufaturados rapidamente se tornaram um grande negócio nos Estados Unidos e na Europa. O desenvolvimento tecnológico facilitou a produção em massa de brinquedos de ferro, lata, de bonecas, livros, jogos de tabuleiro e tornou possível aos pais de todas as classes sociais a compra de brinquedos para seus filhos em diferentes graus de qualidade.
Posteriormente, é apresentada a metodologia, bem como os resultados da análise da cultura material. Os 172 brinquedos foram classificados do seguinte modo: 53 cofres mecânicos (possuíam mecanismos que eram acionados quando ali se colocava uma moeda), 18 cofres não mecânicos, 63 brinquedos de corda, 9 brinquedos de puxar e empurrar, 6 jogos de alvo, 6 pistolas, 12 bonecas/conjunto de bonecas, 3 fantasias e 2 jogos de tabuleiro. Muitos desses brinquedos em sua aparência e nas descrições dos rótulos das embalagens sugerem inferioridade e falta de autocontrole do “outro”, particularmente considerando as representações dos brinquedos afro-americanos. Observa-se a fascinação das pessoas com a novidade, com a inovação e com o desejo de estimular a vida pelo significado mecânico. Os brinquedos automatizados da época representam intrincada convergência da concepção vitoriana do corpo do outro e da performatividade do corpo, que servia para criar e recriar estruturas racializadas e de racismo, além de socializar as crianças nessas estruturas.
Quatro raças não brancas foram representadas nos brinquedos, quais sejam: os nativo-americanos, os asiáticos (japoneses e chineses), os irlandeses e os negros.
Os nativo-americanos foram representados em 10 brinquedos examinados. Dois tipos de estereótipos foram destacados pelos autores: o guerreiro violento e o “nobre selvagem”. O guerreiro violento foi notado nos jogos de tiro ao alvo, cujo objetivo era acertar com espingarda figuras de homens nativo-americanos, juntamente com leões, bisões e tigres. Como exemplificação para o estereótipo do “nobre selvagem”, os autores relatam um cofre mecânico, no qual encontrava-se a figura de Cristóvão Colombo fumando um cachimbo. Além da mensagem de paz, o brinquedo apresenta a posição de subjugados dos indígenas em relação aos europeus.
Os chineses foram representados em 14 brinquedos, enquanto os japoneses foram representados em apenas 4 deles. A partir de 1849 a imigração chinesa nos Estados Unidos cresceu vertiginosamente. Os chineses foram os primeiros a serem empregados no trabalho manual nos campos minados e nas ferrovias do Oeste. Nos brinquedos, os homens chineses eram especialmente associados a uma longa trança. Outra associação perigosa era baseada na religião. No século XIX, qualquer prática religiosa fora da visão protestante era considerada ameaçadora para a sociedade. Os chineses foram vistos como incapazes de boa moral, por causa das práticas religiosas e sociais, e, por fim, acreditava-se que eles poderiam arruinar a seguridade econômica da classe trabalhadora.
Os irlandeses foram representados em 2 brinquedos. Um deles trata-se de um cofre mecânico, no qual um homem irlandês é retratado com testa proeminente, queixo símio, prognatismo facial, pele e cabelos claros. O homem segura um porco entre as pernas. Isso porque a maioria dos imigrantes irlandeses vivia na zona rural e com limitado capital social e econômico. Exerciam trabalhos manuais, eram relegados ao empobrecimento, à vida nos guetos, convivendo com altas taxas de criminalidade e poluição. A aparência e os movimentos do homem que parece lutar com o porco por dinheiro mostra o elemento de classe associado aos irlandeses no século XIX e XX, imigrantes malvestidos realizando qualquer trabalho degradante para conseguir poucos ganhos.
Os afro-americanos foram representados em 142 brinquedos. Um dos mais impressionantes são as bonecas topsy-turvy, uma boneca com cabeça e torso de menina branca atada na cintura à cabeça de uma menina negra, com uma longa e ampla saia separando as duas. Alguns pesquisadores afirmam que as bonecas foram feitas por mulheres escravas como significado de contestação à repressão sexual pelo homem branco; outros sugerem que as bonecas foram utilizadas para socializar garotas negras a fim de entender a dualidade da maternidade e assim ensiná-las a importância do cuidado com suas próprias crianças e com as crianças de seus donos brancos.
Para concluir, Barton e Somerville ressaltam que não havia sistema social à parte das práticas sociais padronizadas. Essas práticas eram criadas e reproduzidas conforme eram postas em ação, como afirma Bourdieu. Os brinquedos do período Vitoriano se preocupavam em ensinar valores e moralidade. Esses valores formavam as bases para o capital social e cultural da classe média e os brinquedos racializados foram os meios pelos quais a classe média gerou capital simbólico. Nesse sentido, esses objetos foram analisados não apenas como produtos para o divertimento, mas também como diálogo e locus frequente de conflito entre adultos e crianças e entre crianças e seus pares. Os brinquedos da era Vitoriana tentavam impor ordem entre garotos e garotas para que eles se tornassem modelos, indivíduos que conhecessem seus papéis tão bem quanto conhecessem o papel e o lugar do outro na sociedade. Os brinquedos racializados de todos os tipos e de todos os períodos de tempo revelam muito mais sobre os adultos que ofereceram os brinquedos às crianças do que sobre as crianças que os receberam.
É certo que o trabalho dos autores é de suma relevância para a temática da criança e da infância. Apesar de se tratarem de objetos desassociados de seu contexto arqueológico, o livro explora as interconexões entre a cultura material e a identidade social da época Vitoriana nos Estados Unidos, tão marcada pelas desigualdades sociais. Os brinquedos reunidos pelos autores contribuem ainda para aclarar sobre tipos de artefatos do período histórico mais recente, além de revelar as crianças como componentes do registro arqueológico e histórico, e como agentes nas relações sociais da época abordada.
Daniela Maria Alves – Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia MAE/USP. E-mail: danymalves@gmail.com.
[IF]Dimensões Transnacionais da Cultura Técnica: Engenheiros, Arquitetos e Construtores na América do Sul, 1860-1945 / Revista Brasileira de História da Ciência / 2018
Os artigos deste número compõem o dossiê temático “Dimensões Transnacionais da Cultura Técnica: Engenheiros, Arquitetos e Construtores na América do Sul, 1860-1945”, cuja motivação primeira foi discutir a constituição de um campo disciplinar tecnológico composto por engenheiros, arquitetos e construtores, tomados, privilegiadamente, a partir de uma perspectiva de interação internacional ou transnacional.
Os marcos temporais tratam do período abrangido pela II Revolução Industrial, época considerada pela historiografia como de grande consolidação dos processos técnicos e que grandes alterações trouxeram aos modos de vida, uma vez que impactaram territórios, da micro à macro- escala.
Estas três categorias profissionais entraram em embates entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, requisitando reconhecimentos sociais e impondo limites de ações, uns sobre os outros, de forma a garantir a constituição de grupos privilegiados, em que o discurso técnico e a cientificização de suas ações alijassem outros grupos, vistos como concorrentes de práxis, em nome de uma certa modernidade.
O leitor verá, neste dossiê, que o empoderamento dessas categorias profissionais no período estudado se deu ao mesmo tempo em que se tratou de modernizar cidades, desenvolvendo linguajar acessível que explicasse ao público em geral enormes mudanças territoriais que esses negócios perpetravam; procurou-se tirar o máximo proveito econômico e simbólico dos empreendimentos, constituindo e reconstituindo novas oligarquias econômicas e familiares; envidou-se alianças locais mas sempre levando em conta interesses internacionais. O internacional mais uma vez não se explica sem uma rede local interessada e vice-versa.
Evidentemente que a visada global que este dossiê apresenta somente foi possível porque vários colegas se dispuseram a reagir a uma chamada de trabalhos sobre o tema por nós organizada, no início de 2018, contribuindo com seus originais. É somente lendo lado a lado esses trabalhos que essas hipóteses se cristalizam.
Agradecendo imensamente àqueles que enviaram seus originais e aos pareceristas que fizeram leituras cuidadosas desses trabalhos, desejamos uma boa leitura a todos que acompanham a Revista Brasileira de História da Ciência.
Rogério Monteiro de Siqueira – Universidade de São Paulo. EACH-USP
Fernando Atique – Universidade Federal de São Paulo. EFLCH-UNIFESP
Rodrigo Booth – Universidad de Chile. FAU-UChile
SIQUEIRA, Rogério Monteiro de; ATIQUE, Fernando; BOOTH, Rodrigo. Apresentação. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]
Diplomacia: acordos e tensões nos séculos XIX e XX / Faces de Clio / 2018
Com grande satisfação a Revista Faces de Clio, periódico discente vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, publica, compondo de dez artigos, a sua 7ª edição, cujo dossiê temático é: Diplomacia: acordos e tensões nos séculos XIX e XX.
O principal objetivo desse dossiê é reunir trabalhos acadêmicos e contribuir para o debate historiográfico a respeito da diplomacia como instrumento da política externa, conduzida pelos Estados em prol de seus interesses. Em diferentes contextos históricos ocorreram acordos e tensões impulsionados pelo desejo de riqueza, força e poder. Torna-se primordial, portanto, pensar nas estratégias que envolveram os assuntos diplomáticos no passado, muitos dos quais significaram importantes transformações mundiais.
Desse modo, colaborando para o debate em torno da diplomacia e com a proposta de pensar as formas de atuação e aplicação das atividades desenvolvidas nessas relações externas, a presente publicação conta com quatro artigos de pesquisadores que trabalham com este tema a partir de lentes e recortes distintos. Dois deles tratam desses contextos no século XIX e os outros dois, tratam do século XX.
Abner Neemias da Cruz, doutorando em História na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho, aborda em seu artigo as negociações e pactos entre o governo de Washington, sob a gestão de James Monroe e John Quincy Adams com o governo de D. Pedro I. Para isso, examina problemas pontuais envolvendo as relações entre Brasil e Estados Unidos entre os anos de 1822 e 1828, quando foi assinado o Tratado de Amizade e Comércio entre os dois países apresentados. Sua intenção é demonstrar um cenário envolvido por jogos diplomáticos complexos e multifacetados.
Neste contexto do Brasil no século XIX, contamos também com o artigo de Luan Mendes de Medeiros Siqueira, mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, cujo objetivo central é realizar uma discussão das possibilidades diplomáticas e estratégias de paz entre o Império do Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata no conflito cisplatino. Para isso, aborda os diferentes discursos diplomáticos encabeçados por cada um dos governos sobre a província Cisplatina sobretudo a região do Rio da Prata, bem como as resoluções de fronteiras, uma das pautas diplomáticas centrais debatidas no desfecho da guerra.
Contribuindo com a compreensão da diplomacia brasileira no século XX, mais especificamente na década de 1920, Filipe Queiroz de Campos, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, analisa as tensões diplomáticas entre o Brasil e os países latino-americanos na Liga das Nações, e explica como essas tensões influenciaram na política externa do governo de Artur Bernardes, cuja estratégia foi defender a candidatura brasileira como membro permanente do Conselho dessa organização internacional.
Ainda sobre o século XX, Augusto Lira, mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco, reconstrói a trajetória do nutricionista escocês John Boyd Orr, a partir do ano de 1942, período em que ele esteve na América por ocasião dos debates acerca da criação do Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). Este artigo se encaixa no dossiê a partir da história deste intelectual, que esclarece os arranjos de uma nova cultura alimentar em foros diplomáticos internacionais, sobretudo, situando a questão da fome, da saúde pública e da agricultura no epicentro de uma reorganização econômica pós-Segunda Guerra Mundial.
A presente edição também é composta de seis trabalhos relevantes que não são concernentes à temática do dossiê e que são classificados como artigos livres. Nessa seção, Valdinar da Silva Oliveira Filho, professor doutor na Universidade Estadual do Piauí (campus Poeta Torquato Neto), discute em seu artigo relações teóricas e metodológicas entre as interfaces da História e da Psicanálise sob a análise da invenção histórica do Nordeste e do nordestino. Analisa em sua narrativa a emergência histórica dos termos “Nordeste” e “nordestino”, da identidade e “cultura nordestina” a partir do encontro de uma identidade regional e uma identidade sexual. Discute, ademais, a masculinidade, a violência e o gênero como elementos constitutivos do que é ser homem dentro e fora da região.
Thársyla Glessa Lacerda da Cunha, doutoranda em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em seu texto, investiga o poder de atuação da imprensa no campo histórico, destacando sua relação na construção dos acontecimentos políticos. Neste caso, através da análise dos jornais Tribuna da Imprensa e Última Hora, durante a crise no segundo governo de Getúlio Vargas, a autora discute de que modo os interesses disseminados na imprensa influenciaram os rumos políticos naquele momento, que teve como desfecho o suicídio do presidente em agosto de 1954.
A doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, Sílvia Correia de Freitas, trata, em seu trabalho, do processo de construção do “arquivo quilombola”. Ela desenvolve sua ideia a partir da noção de que o processo de transformação política das comunidades em remanescentes de quilombos produz um arquivo, o que significa a constituição do arquivo como gesto. Assim, toma o próprio processo de construção do arquivo como objeto a ser interpretado.
“Os moços da areia contra o Barão: conflitos políticos em Itapemirim no século XIX” de Laryssa da Silva Machado, mestranda do Programa da Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santos, aborda os conflitos políticos que aconteciam em Itapemirim, região sul da Província do Espírito Santo, durante a segunda metade do século XIX. Estuda os partidos locais e divergentes, Macucos e Arraias que eram alinhados, respectivamente, aos Conservadores e Liberais, cujos líderes estavam envolvidos em denúncias sobre tráfico de escravos na Corte.
Julia Maria Gonçalves, mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina, em seu artigo, a partir de análises em inventários post mortem, trata dos aspectos referentes às vestimentas e às aparências dos habitantes da Vila de Curitiba durante o século XVIII, buscando perceber a sua importância econômica e simbólica.
Por fim, o artigo intitulado “Estrangeiros no Maranhão: transição do regime de trabalho, a imigração e a tentativa de construção de uma sociedade eugênica em meados do XIX” da mestranda em História pela Universidade Federal de Goiás, Amanda Porto Ribeiro, traz uma nova perspectiva sobre a imigração, a substituição de mão de obra escrava e a “linha de cor”, dando destaque ao colonizado como sujeito ativo no processo de colonização em meados do XIX. Para isso, mostra como se desenvolveu, na esfera nacional e mais especificamente no Maranhão, a entrada de imigrantes estrangeiros e a substituição do trabalho escravo pelo livre, dentro do discurso elitista dominante da época, que enxergava na imigração a solução para a alegada “inaptidão” do nacional ao trabalho livre.
Cumprindo com a nossa função de oportunizar aos pesquisadores espaços para divulgação de trabalhos científicos de relevância para a área, publicamos, com grande honra, a 7º edição da Revista Faces de Clio, composta de artigos de mestrandos, mestres, doutorandos e doutores vinculados a instituições de qualidade de diversas regiões do Brasil. Este dossiê conta com uma pluralidade que nos propicia a diversidade do debate e nos permite propagar pesquisas que estão sendo desenvolvidas pelo país, nos estados de Pernambuco, Piauí, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina.
Agradecemos imensamente aos professores membros do conselho consultivo pela colaboração na avaliação especializada dos artigos, com críticas, sugestões e apontamentos construtivos que nos ajudam a consolidar e elevar a qualidade de nossa revista.
Agradecemos igualmente todo o esforço, dedicação e competência de nossa equipe editorial, que contribuiu para que esta edição fosse publicada. Agradecemos, também, aos autores pelo interesse e pela confiança.
Desejamos a todos uma excelente leitura.
Janeiro de 2018
Daniela de Miranda dos Santos
Flávia Salles Ferro
FERRO, Flavia Salles; SANTOS, Daniela de Miranda dos. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.4, n.7, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]
Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exilio (1880/1891) | Charles Nicholl
Pretendemos neste artigo discutir as possibilidades que tem o historiador de utilizar em suas reflexões a Literatura como fonte histórica. Trata-se de uma relação difícil, mas possível e, sobretudo, prazerosa. A historiografia apela à literatura hoje mais como um registro do real, um instrumento para sua apreensão, ou ainda como sua metáfora epistemológica. O historiador não pode encarar a obra literária apenas como veículo de conteúdo, pois, o valor do texto literário não está propriamente na confrontação que dele se pode fazer com a realidade exterior, mas na maneira como esta realidade é abordada, aprofundada, questionada, recriada. Deve encarar a literatura não como reflexo, mas como refração, como desvio. (ELEUTÉRIO, 1992)
Como produção artística que é, a arte ilustra os valores de uma cultura, e não se presta a fornecer a confirmação de um saber que poderia adquirir de outras formas, por exemplo, por uma pesquisa histórica; ela tem princípios e leis diferentes dos da realidade exterior, já inventariada. Além do mais, o artista está sempre ultrapassando os sistemas de classificação, aos quais uma sociedade confirma suas representações provisórias do mundo. A arte não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, exprimindo o que nela está reprimido ou latente.
A obra literária eficaz, que age sobre seus leitores, é aquela que dramatiza as contradições e exacerba-as, leva-as às últimas consequências, ou seja, representa-as, e oferece assim, um princípio de respostas a perguntas ainda não claramente formuladas. Ela libera possibilidades subjacentes a certas situações, joga com essas possibilidades, dá-lhe vida, e assim, tenta explorar as virtudes inerentes a uma época. As obras literárias que melhor traduzem os movimentos sociais e históricos não são as que retratam de forma escrupulosamente exata os acontecimentos anteriores; são as que exprimem aquilo que falta a um grupo social, e não aquilo que ele possui plenamente.
A literatura fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Pode-se, portanto, pensar numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das ideias não vingadas (SEVCENKO, 1995).
Ocupa-se o historiador, portanto, da realidade, enquanto o escritor é atraído pela possibilidade. Cabe, portanto, ao historiador, captar esse excedente de sentido embutido no romance. O método para Lacapra (1991) é o de se fazer uma fusão entre o texto e o contexto, ou seja, usar a linguagem para se interpretar contextos. Não contexto no sentido positivista, mas como representação de uma experiência histórica. É a tentativa de perceber como se apresentou uma dada realidade.
A história é um caleidoscópio de ações humanas, é um romance verdadeiro, simplifica, seleciona, organiza, reflete e dissemina. Portanto, para Veyne (1995), o que distingue um livro de história de um romance, isto é, a narrativa histórica da narrativa de ficção, é que o primeiro tem seu suporte na realidade exterior, que tem existência concreta e autônoma. Dispensa, portanto, artifícios discursivos e estéticos para ser valorizado. A história é assim, uma narrativa verídica, mesmo levando-se em conta que a verdade sempre é relativa, depende de quem a conta, e os acontecimentos submetem-se ao critério de verificabilidade, ao contrário do discurso ficcional, que é uma questão de verossimilhança.
Ainda nessa comparação, podemos afirmar que a história é um discurso que visa a realidade teórica e científica, não ignorando o caráter de relatividade da verdade histórica, e toda subjetividade que comporta a elaboração desse conhecimento. O texto literário tem como objetivo fundamental a produção da realidade estética, o que não exclui que ele possa ter relações com a realidade objetiva, ou seja, com tudo aquilo que lhe é exterior, e de que certa forma o envolve.
Os romances históricos transmitem
uma verdade histórica através da verossimilhança novelesca, tem o poder de fazer a carne voltar a ser verbo, sem o verbo perder o gosto, ou a cor, ou o cheiro, ou a forma da carne, imagem que nos parece bastante significativa do poder de recriação da obra literária e das suas relações com a realidade que ela representa. (FREYRE, 1961)
Assim, a transformação de elementos não-literários em expressão estética é uma outra maneira de olhar o objeto, uma nova forma de relação com o real. Discurso histórico e narrativa literária, formas distintas de narrativas, apresentam formas de contatos, relacionam-se com a realidade exterior de maneiras diferentes, porém, complementares. Tanto um como o outro, são imagens dessa realidade, que se submetem às exigências do discurso e, podem, portanto, apresentar deformações, fragmentações, ou distorções, formas parciais de conhecimento.
Dessa forma buscamos entender a figura de um poeta do século XIX nascido na França e que se tornou famoso entre seus quinze e dezoito anos. Suas poesias encantavam e disseminavam-se com facilidade pelo universo das cidades europeias que devoravam através de seus leitores o que o jovem escrevia. Falamos de Arthur Rimbaud que foi perfeitamente historicizado no livro escrito por Charles Nicholl onde o autor tem a preocupação de mostrar o poeta abandonando a Literatura e a fama para empreender um novo rumo a sua vida, iniciando uma viagem pela África. Aventureiro? Desilusão? Assumir uma nova identidade? Desejo de conhecer outras paragens? Difícil é responder. Neste artigo onde podemos ser interpretados como descritivos, queremos na realidade mostrar que na primeira parte da vida de Rimbaud a sua literatura poética nos responde, enquanto fonte, ao historiador que percorre a sua produção artística. Como comerciante outras fontes teriam que ser buriladas para que pudéssemos decodificar no conjunto dessas duas identidades, embora um e outro desafiem a vida e enfrentam a própria morte.
No mundo do conhecimento a História sempre manteve um lugar de destaque com forte identidade própria, embora modernamente tenha se moldado o seu desenvolvimento acadêmico enquanto disciplina. O pesquisador Diogo da Silva Roiz do departamento de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul afirma que as pesquisas nos últimos vinte anos estão concentradas em História Cultural, perfazendo um total de 80% de tudo que tem sido produzido nas universidades brasileiras, tornando-se uma temática constante no mundo inteiro.
A História Cultural se tornou, na atual conjuntura, um imenso lucro para o mercado editorial. O interesse pela História Cultural em representações dos desdobramentos das preocupações da História Social com orientação marxista e a Nova História Cultural com a virada linguística e abordagens pós-modernas. As novas tendências historiográficas inspiram-se em uma crítica, em uma releitura dos conceitos fundamentais da História Social.
Se pensarmos nas contribuições dadas por Roger Chartier (2007) dentro de uma relação Cultura/Representação que perpassa por qualquer temática de pesquisa no campo da História, pois o historiador, segundo Raymond Williams (2011) exerce um trabalho de compreensão das representações dos sujeitos sociais. Tanto Chartier quanto Williams estabelecem uma fidelidade da História Cultural com os postulados da História Social. Portanto, o historiador passou a estabelecer diálogos através da História Cultural que foi seguida de forma exemplar por Pesavento (2003) no Brasil, com outras fontes possíveis de conhecimento e relações como História e Literatura. Uma pensa o concreto e a outra a ficção, mas consegue-se interpretar sujeitos, lugares, espaços, cores publicidade, propaganda, conversas, modas e temporalidades distintas e muito mais utilizando a Literatura como fonte.
De autoria de Charles Nicholl o livro Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exílio (1880-1891), impressiona o leitor pela riqueza de detalhes e profundidade de análise. Não se trata de uma obra ficcional, mas do resultado de uma pesquisa de historiador que o autor realmente é. Escreveu nove livros e alguns com prêmios recebidos este é o segundo que leio, sendo o primeiro com o qual tomei contato com a reflexões de Nicholl foi Leonardo Da Vinci, uma de suas produções premiadas.
Interessada em produzir um artigo sobre um literato que tivesse tido contato através de suas narrativas com o cotidiano de uma cidade africana cheguei a essa obra que nos narra o autoexílio de Arthur Rimbaud, o poeta francês que nasceu no lar de uma família de classe média de Charleville em Ardenas na região nordeste da França em 1854. Era o segundo filho de Vitale Cuif e do capitão Fréderic Rimbaud que lutou na Argélia, chegando até a receber o prêmio Legion D’Onneur. Em seguida ao nascimento da quinta filha do casal que faleceu após um mês o casamento chegou ao fim, quando o pai deixou a família.
Tal acontecimento contribuiu negativamente para o jovem que cresceu mais ao lado da mãe. Pelos seus escritos nota-se um desentendimento entre ambos e ele não se senta amado pela mãe. Sempre foi um estudante brilhante, embora calado, inquieto, impaciente e nada travesso. Em torno de quinze anos ganhou prêmios pelos versos que compunha, classificados como originais, sua primeira produção publicada foi Primeira Tarde. Escrevia na sua língua de origem, entremeada por diálogos em latim.
Fugia com frequência de casa e, em 1871, uniu-se à Comuna de Paris, retratada em seu poema A Orgia Parisiense ou Paris Repovoada. Deixou levemente transparecer em Coroação Torturado ter sofrido violências sexuais por soldados embriagados da Comuna. Fato que não chegou a ser comprovado, pois ele sequer abandonou a Comuna. Escrevendo poemas sobre ela que correspondiam aos seus pensamentos e reivindicações.
Transformou-se em um anarquista, começou a beber muito e frequentemente, usava roupas pouco adequadas, deixou os cabelos crescerem, com a nítida intenção de chocar a burguesia parisiense.
Sempre inquieto, deixou Paris e as suas relações para se dedicar a criação de um método para atingir a transcendência poética ou o poder visionário através do “longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos” (As Cartas Videntes).
Retornou a Paris em setembro do mesmo ano, a convite do poeta do Simbolismo Paul Verlaine, depois que Rimbaud lhe enviou uma carta contando o seu método de trabalho. Casado, Verlaine logo se apaixonou pelo adolescente calado de olhos azuis de cabelos castanhoclaros e cumpridos. Tornaram-se amantes e levaram uma vida ociosa regada a absinto e haxixe, escandalizando o círculo literário, sobretudo pelo comportamento de Rimbaud o arquétipo do enfant terrible que escrevia versos notáveis.
Envolvidos por um tempestuoso caso amoroso, viajaram para Londres no ano seguinte. Verlaine abandonou a esposa e o filho que sofriam abusos com as suas iras alcoólicas. Viveram uma vida pobre em Bloomsbury e Camdem Town, desprezando uma vida de ensino e uma pensão da mãe de Verlaine. Rimbaud frequentava o Museu Britânico, onde produzia seus versos, pois calor, luz, penas e tintas eram de graça.
Em junho de 1873, Verlaine retornou a Paris e sofreu muito com a ausência do jovem Rimbaud e em junho o convida para ir a Bruxelas encontra-lo no Hotel Liège. Rimbaud vai e o convívio passou a não ser nada agradável, reclamações mútuas, culminando em uma fúria de bêbado, onde Verlaine disparou dois tiros contra Rimbaud, ferindo o jovem poeta no pulso. Rimbaud não acusou Verlaine que, junto com sua mãe, acompanharam o jovem a uma estação de trem em Bruxelas onde Verlaine se comportou como um louco. Essa atitude assustou Rimbaud que, amedrontado, sem nada dizer, foi embora, mas pede a um policial para prender Verlaine.
Ele foi detido por tentativa de homicídio e submetido a um humilhante exame médico. Suas correspondências foram submetidas a uma leitura policial e somadas às acusações de sua mulher. Chamado a depor, Rimbaud retirou a acusação, mas mesmo assim Verlaine foi condenado a dois anos de prisão.
Rimbaud retornou a sua casa em Charleville e completou um trabalho em prosa, Uma Estação no Inferno, considerada pioneira do Simbolismo moderno, e escreveu Farsa Doméstica, uma narrativa sobre sua vida com Verlaine que ele chamava de lamentável irmão.
Em 1874 retornou a Londres e, depois, para Stuttgart, na Alemanha, onde se encontrou novamente com Verlaine, pela última vez, depois que este saiu da prisão e se converteu ao Catolicismo.
A partir daí Rimbaud tomou uma decisão de mudança de vida. Desistiu de escrever e desejava uma vida fixa, com um trabalho rentável, queria ficar rico e independente para algum dia viver como um poeta despreocupado. Para isso continuou a viajar de forma intensa, a pé, pela Europa. Mantinha vivo ainda, embora mais contido, o seu antigo comportamento selvagem. Em maio de 1876 se alistou como soldado no Exército Colonial Holandês para poder ir livremente para Java, na Indonésia. Foi, mas depois de alguns meses desertou e retornou à França em um navio de forma clandestina.
Continuava inquieto e desejando na realidade uma vida mais tranquila o que, até então, não havia encontrado em todas essas andanças.
Seguindo essa meta, viajou para Chipre e em Lamaca trabalhou como capataz na pedreira em uma empresa de construção onde contraiu uma febre que o leva de volta à França onde foi diagnosticado com febre tifoide.
Em 1880 viajou para Áden, um protetorado britânico, um entreposto, um lugar de passagem de viajantes que seguiam para a África e para a Índia. Foi de navio/vapor, desceu pelo Canal de Suez em busca de qualquer trabalho, sem achar. Atravessou o Estreito Bab al’Mandeb, percorreu o árido litoral do Iêmen, até chegar a Áden
O rosto queimado pelo sol, os trajes de algodão sujos, a mala remendada: é o que tudo indica. Seus olhos podem sugerir outras histórias menos decifráveis. São extraordinários, de um azul pálido hipnótico e inquietante. Décadas mais tarde, um missionário francês que o conheceu na África diria: lembro de seus olhos grandes e claros. Que olhar! (NICHOLL, 2007, p.18)
Finalmente esse coração inquieto adaptou-se em Áden, como empregado na agência de Bardey. Aí teve várias relações com mulheres nativas e por um tempo viveu com uma amante da Etiópia. Ensinou-lhe a ler a falar em francês e mais tarde a abandonou, mandando-a para Obock, do outro lado do Mar Vermelho, com um pouco de dinheiro para que pudesse voltar para casa. Como testemunha Bardey em carta a Berrichon datada de 16 de julho de 1897:
Foi em Áden que aconteceu o relacionamento afetivo com a mulher Abissínia, entre 1884 e 1886. Era uma relação íntima e Rimbaud, que no início morava e fazia suas refeições conosco, alugou uma casa separada onde poderia morar com sua companheira nas horas em que não estava trabalhando em nossa firma. (NICHOLL, 2007, p.258).
O próprio Rimbaud, em uma carta para Augusto Franzoj, escrita por volta de setembro de 1885 e publicada pela primeira vez em 1949 por Enrico Emanuelle na revista literária italiana Inventário.
Caro senhor Fransoj,
Lamento, mas dispensei aquela mulher sem apelação.
Darei a ela alguns táleres e ela tomará o barco
para Obock que agora está em Rasali. De lá, ela seguirá para onde desejar.
Estou farto dessa farsa, não seria tão estúpido a ponto
de trazê-la de Choa, e também não serei para me
encarregar para leva-la de volta.
Cordialmente, Rimbaud (NICHOLL, 2007, p.258).
Em 1884, deixou o trabalho para se tornar um mercador por conta própria em Harar na Etiópia. Vendia café e armas e como teve grande sucesso nesse ramo, tornou-se grande amigo do governador de Harar, pai do futuro imperador da Etiópia Haile Selasse.
Como mercador teve uma vida de andarilho, agitada, conhecendo vários lugares e obtendo grande sucesso na nova profissão.
Foi exatamente com 25 anos que o poeta abandonou para sempre a literatura e a fama na Europa e partiu para a África, onde sobreviveu por onze anos como comerciante e contrabandista, tentando apagar seu histórico de um passado boêmio. Era outro homem, tinha outra identidade, onde só manteve os belos olhos azuis que encantavam as pessoas.
O historiador Charles Nicholl construiu um perfil fascinante dessas duas vidas e dessas duas tão distantes identidades: a do poeta reconhecido e a do aventureiro comerciante que se transformou até morrer: “Um e outro vivendo sempre no limite da existência” (NICHOLL, 2007, p. 84).
Para descortinar esse período, Charles Nicholl pesquisou em documentos históricos inéditos, burilou a vasta correspondência de seu objeto de pesquisa, em cartas enviadas da África, onde ele nunca mais falou em literatura, mas apenas sobre dinheiro, comércio, lucros e rendimentos e, descrevendo suas andanças percorridas entre as regiões da Etiópia e o Egito com altivez, não mais parecido com o jovem poeta que Verlaine tanto admirava.
Apesar de um físico frágil, andava quilômetros, percorrendo em caravanas os lugares mais perigosos do continente africano.
Amigos morreram acompanhados por familiares comandando caravanas nas rotas de Harar e da Abissínia, nas viagens a Hensa e na rota Harar-Zeila. Perigos, medo e, ao mesmo tempo coragem, o jovem Rimbaud passou nessa sua vida de comerciante de caravana. Os nativos, com imensas lanças, assaltavam esses comerciantes e os matavam para roubar, sobretudo armas.
Sente-se sozinho ao perder seus companheiros e com muito temor, mas com uma coragem maior ele seguiu em seus trajetos comerciais obtendo seus lucros, passando a ser um mercador de sucesso.
De tanto caminhar e de tanto carregar as suas mercadorias pelos caminhos vielas e cidades africanas, em péssimas condições climáticas que eram mais ásperas que as da Europa, trouxeram ao jovem literato/comerciante, consequências tristes.
Rimbaud desenvolvei sinovite em seu joelho direito que mais tarde se tornou carcinoma. Seu estado de saúde piorou, sendo obrigado a retornar a França, em maio de 1891. Foi hospitalizado em Marselha e teve sai perna amputada. Passou um rápido e curto período na casa da família para uma recuperação no pós-operatório, mas logo desejou voltar à África para cuidar de seus negócios, mas o seu estado de saúde piorou, pois sua enfermidade se agravou. Voltou para o hospital em Marselha onde sofreu muito e recebia apenas as vistas de sua irmã Isabelle. Em novembro do mesmo ano Rimbaud finalmente descansou. Morreu ainda jovem, com apenas 37 anos e seu corpo foi enterrado no jazigo da família em Charleville.
Rimbaud, que foi para a África e acabou por traficar armas de fogo no norte desse continente, mas por outro lado, tornou-se uma referência para a literatura poética do século seguinte, servindo como argumento para célebres discussões que se processaram sobre a impossibilidade de dissociação do poeta e da poesia.
Assim sendo, deixou seguidores, influenciados pela sua produção e pelo método do Simbolismo, pois sua poesia e sua vida sempre impressionaram literatos, historiadores, músicos e pintores do século XX como Pablo Picasso, Allen Guinsberg, Vladimir Nabokov, Bob Dylan, entre vários outros. Sua vida foi retratada também no cinema, em filmes do cineasta italiano Nelo Rizzi, como Uma Temporada no Inferno, de 1970 e, em 1995 a cineasta polonesa Agnieska Holland dirigiu Eclipse Total de Uma Paixão.
Referências
CHARTIER, Roger. A História ou a Leitura do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes, AVELINO, Yvone Dias (et. Al.). O Bosque Sagrado e o Borrador, In: Revista Projeto História. São Paulo: EDUC, nº 8/9, 1992.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.
LACAPRA, Domonick. História e Romance, In: RH, Revista de História da UNICAMP, nº 2/3. Campinas: UNICAMP, 1991.
NICHOLL, Charles. Rimbaud na África: Os Últimos Anos de um Poeta no Exílio (1880-1891). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
PESAVENTO, Sandra Jutahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. São Paulo: Brasiliense, 1995.
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: UnB, 1995.
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: Na história e na literatura. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.
Yvone Dias Avelino – Professora-titular do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Coordenadora do Núcleo de Estudos e História Social da Cidade (NEHSC-PUC-SP).
NICHOLL, Charles. Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exilio (1880/1891). Trad. Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. Resenha de: AVELINO, Yvone Dias. Rimbaud: Um Poeta perdido na Europa e que se encontrou na África (1880-1891). Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.20, p. 424-439, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]
Seeds of Empire: Cotton, Slavery, and the Transformation of the Texas Borderlands 1800-1850 | Andrew Torget
Three enslaved people – Richard, Tivi, and Marian – fled enslavement in Louisiana in 1819, seeking relief from the brutality of slavery in the United States in the northern borderlands of New Spain. At this time, the Mexican province of Tejas was home to a small population of ethnic Mexicans, known as Tejanos, along with a larger indigenous population, including the powerful Comanche. Less than thirty years later, this area would be the state of Texas within the United States and home to the fastest-growing enslaved population in the slaveholding republic. In his meticulously-researched book, Andrew Torget follows the emergence of an Anglo-Texan society, nation, and, eventually, state. The book takes a firmly political and economic approach to history, which makes for a propulsive and clear narrative, but Richard, Tivi, and Marian aside, keeps that narrative largely the preserve of economically and politically powerful individuals and groups – legislators, empresarios, generals, and merchants. Torget masterfully integrates an intricate explanation of the politics of New Spain and Mexico with a more familiar narrative of the expansion of the United States cotton frontier into Texas. The advancing cotton frontier, however, appears mostly in the form of increasing numbers of cotton bales leaving Texas and the growth of migration of enslavers to the region, bringing with them enslaved people. Seeds of Empire thus occupies an interesting place, both linked to recent scholarship on the connections between slavery and capitalism in the nineteenth-century United States and circum-Caribbean world, like Walter Johnson’s River of Dark Dreams, but also employing different methods and narrative strategies than much of that scholarship.
Seeds of Empire tells the history of the Texas borderlands in three sections, beginning with an introductory chapter on the region “on the eve of Mexican independence,” continuing to a second part on the tension between the extension of the United States’ cotton frontier into Mexico and increasing Mexican antipathy toward slavery in Mexico, and concluding with a section on independent Texas’ attempts to create a successful proslavery cotton republic. It is in discussing the debates surrounding slavery in northern Mexico that Seeds of Empire makes its greatest contribution. Torget lays out an important and, in the historiography of Texas, largely untold narrative of the debates between proslavery Americans and Tejanos and antislavery political forces in Mexico. This section of the book transports readers to debates in Saltillo and shows how important Mexican resistance to slavery would be for Anglo-Texans and enslaved people in Texas.
For Torget, there are three main factors that shape the period of the 1830s and 1840s when Texas seceded from Mexico and pushed to join the United States. He often glosses these three factors as “cotton, slavery and empire,” but his fuller description of each factor is more revealing of the approach of the study. (6) Cotton is really the “rise of the global cotton economy,” slavery is the “battles over slavery that followed,” and empire is “the struggles of competing governments to control the territory” of Texas. (5-6) The brief terms suggest a clear connection to ideas scholars have recently termed “The New History of Capitalism” and “The Second Slavery,” both of which emphasize economic shifts in plantation commodity production under slavery, an increasingly industrial approach to enslavement, and the expansion of plantation complexes to new territory. This scholarship, at its best, connects large shifts in economics, politics, and society to the lived experience of enslaved people. For example, in his River of Dark Dreams, Walter Johnson connects his discussion of the cotton economy to the daily lives of enslaved cotton pickers in Mississippi by tracing the journey of cotton from seed to boll to lint to bale on a Liverpool wharf. (Johnson, 246-279) While both Johnson and Torget use cotton as a way into the world of the Second Slavery, Torget chooses different individual human actors to focus on – largely politicians, empresarios, and powerful cotton planters. While this allows Seeds of Empire an admirably comprehensible and tight narrative of complex and oft-ignored political developments in northern Mexico and, later, Texas, it also means that enslaved people appear largely as subjects of debate, rather than agents of historical change. This is reflected in Torget’s insistence that the aspect of slavery most shaping Texas is national and international debates in Mexico, the United States, and Europe over the future of slavery. This is a result of the political approach the book takes to explaining this period of the history of Texas, but it is still a missed opportunity. Adam Rothman, in writing a history of the advancing cotton frontier that Torget foregrounds, writes a narrative with a central role for politics and warfare, but also foregrounds the active role enslaved people played in shaping the cotton frontier with, for example, the German Coast Uprising.
Torget’s key intervention – that the history of the Texas borderlands can only be understood in terms of the advancing United States cotton frontier – fits naturally into recent scholarship emphasizing capitalism and the Second Slavery, yet Seeds of Empire stands, in terms of its narrative approach, historical actors, and political and economic focus, in stark contrast to much of this work. Historians of the Second Slavery and the New History of Capitalism have largely sought to integrate the testimony of enslaved people, understand historical change as deeply influenced by the actions of enslaved people, and play down the influence of British abolitionism on the daily actions of enslavers in the United States. Torget convincingly argues that Mexican and British abolitionism was central to the history of the Texas borderlands, but is unable to reckon with the ways enslaved peoples actions shaped these borderlands. The book could have offered a fuller explanation of the failure of the Texan proslavery republic by integrating an approach similar to that of Stephanie McCurry’s Confederate Reckoning, which combined an analysis of high politics with an emphasis on political history operating at all levels – showing that, in her case, the Confederacy was crumbling from within outside of its diplomatic and military defeats.
Torget’s book presents an admirably clear and engaging narrative of the competing influences on the borderlands of northern Mexico and the southern United States. Seeds of Empire makes a significant contribution to existing scholarship on the southern United States and northern Mexico by showing how important the antislavery politics of New Spain and Mexico were to the expansion of cotton slavery in the Texan borderlands. While retaining the common emphasis on the importance of the United States cotton and slavery complex, empresarios, and the Comanche in shaping American immigration, the growth of slavery in the borderlands, and the eventual secession of Texas from Mexico, Torget forcefully demonstrates that it is nearly impossible to fully understand this process without a fuller understanding of the politics of Mexico that conditioned the actions of empresarios and free migrants from the United States. In many ways, the narrative shows that it was primarily determined Mexican resistance to slavery in the province of Tejas that prevented enslavers from the United States from migrating in large numbers before the secession of Texas, then the abolitionist politics of Great Britain and threat of Mexican military force that slowed this same migration before the United States annexed the Texan republic. Seeds of Empire is key reading for scholars interested in the history of Texas, the Second Slavery, and the history of the expansion of the United States. Historians of cotton slavery in the United States have recently emphasize the centrality of expansion into Texas to late-stage slavery in South and Torget provides an important step toward exploring and explaining that expansion.
Ian Beamish – Assistant Professor of History of 19th Century US and History of Slavery in the University of Louisiana. E-mail: ian.beamish@louisiana.edu
TORGET, Andrew. Seeds of Empire: Cotton, Slavery, and the Transformation of the Texas Borderlands, 1800-1850. The University of North Carolina Press, 2015. Resenha de: BEAMISH, Ian. Capitalism and Second Slavery in Texas. Almanack, Guarulhos, n.17, p. 460-464, set./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
How the West Came to Rule: the Geopolitical Origins of Capitalism | Alexander Anievas e Kerem Nisancioglu
This ambitious book covers over six hundred years of global history and offers a specifically ‘geo-political’ correction to a Marxist understanding of the emergence of capitalism. The book has extensive chapters on the Mongolian Empires, the clash between Hapsburgs and Ottomans, the impact of the Black Death , the turn to slave plantations of the Americas and the profits of British rule in India. While developing a critique of traditional Marxist accounts, they uphold both Marx’s concept of ‘primitive accumulation’ and what they call the ‘classical’ narratives of successive ‘bourgeois revolutions’ , each helping to confirm a capitalist dynamic and the ‘Rise of the West’. According to the ‘consequentialist’ doctrine they espouse the nature of revolutions is set by their results rather than their agents. The authors structure much of their narrative around a critique of ‘Eurocentrism’, which they see as conferring an unjustified salience and superiority on western institutions and a failure to register the weight of geo-political advantages and handicaps. The authors supply a new narrative that reworks the ‘transition debate’, Trotsky’s theory of ‘uneven and combined development’ and a concept of the ‘international’ derived from International Relations, all of this from an avowedly ‘anti-capitalist’ standpoint.
The book develops a historical materialist approach but does not suppose that human history is an orderly march of successive modes of production, each born out of the contradictions of their predecessors. While their critique is welcome so is their refusal to throw out the baby with the bath water. The elaboration of theoretical models of social relations, and the identification of characteristic tensions within them, is an essential part of making sense of history. The book takes seriously the task of identifying the succession of structures and struggles that enabled capitalism to embody and promote increasingly generalized and pervasive commodification.
The authors argue that early capitalism was a more complex and global affair than is often allowed. Heteroclite labour regimes, and types of rule, gave rise to uneven and combined development in which the new and the old were closely interwoven. The authors often quote Marx’s powerful passage from Capital, volume 1 chapter 31 sketching the successive moments of ‘primitive accumulation’, linked to gold and silver from the Americas, the Atlantic slave trade, slave plantations, trade wars, colonialism and so forth. New forms of plunder and super-exploitation punctuate later decades and centuries, with Western rule casting a long shadow. ‘Primitive accumulation’ was not just a passing phase but was stubbornly recurrent. It supplied would-be capitalists with the capital and labour force they otherwise lacked. The racialization of the enslaved and/or colonized generated an intermediary layer of ‘free workers’ that, if given slightly easier conditions, would become useful allies of the slaveholders, serving in their patrols and militias. Capitalist development, in this account, is invariably linked to racialization and super-exploitation, and is devoid of a progressive dimension.
The book’s subtitle presumably supplies a key element of the answer to the question posed by the main title. The West’s rise to global ascendancy is a team race which is won by Britain around 1763. (p. 272) The British win because their maritime-manufacturing complex is now turbo-charged by capitalism. While we may anticipate this conclusion much of the book’s interest lies in the account it gives of how this point itself was reached.
The authors explain how Europe’s mercantile and proto-capitalist elites exploited the toilers of the ‘East’ but they grant that it can also sometimes be thought of as the global ‘North’ exploiting the global ‘South’. While the East and South were mercilessly plundered they contributed to the rise of the West in other ways too.
Anievas and Nisanancioglu – henceforth AA and KN – urge that in preceding epochs the Mongolian empires created relatively peaceful conditions along the Silk Road and in adjacent areas which were consequently favorable to the revival of Western commerce in the Baltic and Mediterranean. The nomad’s military prowess inspired emulation. They observe: ‘The Mongol Empire also facilitated the diffusion of such key military technologies as navigational techniques and gunpowder from East Asia to Europe all of which were crucial to Europe’s subsequent rise to global pre-eminence…The Mongols would acquire such techniques in one society and then deploy them in another…’ (p. 73). We can agree that these exchanges were highly significant without seeing those involved as capitalists.
The authors urge that the hugely destructive Mongol invasions of China led its rulers to abandon their projects of expansion and to stand down the voyages of Admiral Zheng He’s mighty fleet. As Joseph Needham used to insist, China made an outstanding contribution to the science and material culture of the West. AA and KN remain focused mainly on the geopolitical and do not concern themselves with Needham’s “Grand Titration”.
It is fascinating to consider what would have happened if Chinese sailors and merchants had made contact with the Americas before the Europeans. Admiral Zheng He repeatedly sailed to the Indian Ocean but neglected the Pacific. If he had turned left rather than right, and sailed to the Americas, China might have been able to pre-empt Columbus and Cortes, especially when it is borne in mind that a silver famine was asphyxiating the Chinese economy at this time. A Chinese mercantile colony in Central America would have thrived on the exchange of silk fabrics and porcelain for silver. The Aztec and Inca rulers would, perhaps, have been able to strengthen their defenses with Chinese help (and gunpowder) and repulse Spanish attempts to conquer the ‘American’ mainland. (China did not go in for overseas territorial expansion).
AA and FN confer great importance on the bonanzas of American silver and gold arguing that the differential use made of precious metal plays a key role in explaining the great divergence between West and East. ( p. 248-9) But they and the authorities they quote do not explain how the silver and gold were extracted and refined, processes that fit their mixed labour model because it involved tribute labour and wage labour but fell short of a capitalist dynamic because the indigeneous miners had to spend most of their earnings on buying food and clothing from the royal shops that were kept supplied with these essentials of life in the mountains from the tribute goods which the Spanish overlords secured from the native villages. This closed circle of production and consumption led to output of thousands of tons of silver, with the royal authorities taking the lion’s share but did not promote capitalist accumulation.
In their own accounting for the divergence between East and West they cite the ‘indispensable’ work of Jack Goody (p. 304, footnote 22) but do not take sufficient account of his stress on differences concerning family form and the regulation of kinship. Goody maintained that clans and kin accumulated so much power in the East that they weakened the state’s power to tax and regulate. In Goody’s view this challenge to the power of kinship was a Western European phenomenon and was driven by the material interests of the Catholic Church. (The Development of the Family and Marriage in Europe, 1988). This interesting line of thought has not received the attention it deserves from historical materialist accounts, including How the West Came to Rule. Whether it is right or wrong, it points to a level of analysis of social reproduction that should figure in any materialist account.
AA and KN eschew speculative ‘counter-factuals’, but they do claim a positive role for Asian empires despite the latter’s often-tight mercantilist policies. They have little time for the argument of some global historians that the land-based empires of Asia briefly encouraged trade only to strangle its autonomous momentum by over-regulating and over-taxing it. Ellen Wood has argued in The Empire of Capital (2004) that the geographical fragmentation of Europe allowed for the rise of sea-borne empires whose merchants became more difficult to control. But for AA and KN the empires were already highly diverse and made their own qualitative input to the rise of Western capitalism through a multitude of dispersed influences and contributions.
Thus the rise of the Ottomans issued a powerful check to European expansion and tied them down in the Balkans, the Adriatic, the Levant and North Africa. According to AA and KN this blockage to the East allowed the western Europeans to seize their chance in the Americas and to initiate a new type of global trade: ‘By blocking the most dominant European powers from their customary conduits to Asian markets, the Ottoman’s directly compelled then to pursue alternative routes.’ (p. 115). However this free-floating compulsion was only compelling because of the breakthrough of a new and more intense – now capitalist – consumerism.
The authors do give importance to Dutch and English trading patterns and to what they call ‘company capitalism’, the state chartering of companies to trade with the East and West Indies. They see these companies as dominating the English and Dutch maritime economy of the 17th and 18th century (p. 116). They urge that the Dutch were constrained by the fact that they were reliant on Ottoman sources for cotton and other vital raw materials for their textile manufacturing. (p. 117) The English eventually prevail because they are less exposed to continental warfare than the Dutch.
The geographic advantages conferred by England’s relative ‘isolation’ from the continent enabled it to outflank its rivals. (p. 116). They conclude: ‘English development in the sixteenth century can best be understood as a particular outcome of “combined development” […] Ottoman geopolitical pressure must therefore be seen as a necessary but not sufficient condition for the emergence of agrarian capitalism in England.’ (p. 119) The causality embraced by the authors in these passages is a weak one whether addressing the impetus to trade, England’s ‘isolation’ or the authors’ exaggerated view of ‘company capitalism’. Indeed the turn to the Americas should be seen as a having two distinct waves, firstly the silver surge of the mid and late 16th century while allowed Europe to buy Eastern spices and silks and, secondly, the rise of the sugar and tobacco plantations of the Americas, which really belongs to 17th century and after. It was not until the early 17th century that Dutch and English merchant adventurers turned to setting up plantations to meet the popular demand for sugar and tobacco, discovering that this offered far larger returns than either the Eastern trades or preying on Spanish fleets. At first these plantations were worked by free, European youths but demand was so buoyant that the merchants brought African captives who had greater immunity to tropical diseases and brought valuable agricultural skills. The Dutch West and East India companies played a role in this because they blazed a trail for English and French planters. Once the Dutch had lost Angola, Brazil and New Amsterdam, their operations became a side-show.
How the West Came to Rule pushes the debate about the transition to capitalism into new areas and that is itself salutary. The geo-political perspective yields new insights. But the argument from geo-political necessity to economic novelty moves too rapidly and insists that the emergence of capitalism in England has no primacy in the switch from luxury trades to building slave plantations (this gruesome primacy should be a source of national shame not pride).
As already mentioned, the Eastern trade was largely confined to small quantities of expensive luxuries in the 16th and 17th centuries. The Dutch and English 17th century interlopers and marauders, with their contempt for Spanish mercantilism, pioneered the large scale Atlantic trade in items of popular consumption. Before long the European companies were left far behind and the free-lance slave traders, privateers and smugglers became the champions of laissez faire and free trade, and became thoroughly respectable.
Sugar and tobacco, the new popular pleasures, came to Europe not from Asia but from Brazil, Barbados and Virginia. The surge of plantation development was initiated by ‘New Merchants’ not by the official trading companies. The chartered trading companies played a very modest role because they embodied the backward practices of feudal business, with its royal charters. By contrast the New Merchants favoured a much looser variety of mercantilism that allowed for competition and innovation. Whereas the companies were looted by their own management, the ‘New Merchants’ kept a close eye on their investments. The initiatives of the new merchants stemmed from a surge of commodification and domestic demand, itself the product the spread of capitalist social relations in the English countryside as well as towns. Tenant farmers, improving landlords, lawyers, stewards, and the swelling ranks of wage labourers, had the cash or credit to buy these popular treats and indulgences. Without the forced labour of the plantations, and Hobsbawm’s ‘forced draught’ of consumer cash, these trades would not have kindled the 18th and 19th century blaze of the hybrid Atlantic economies. AA and KN do register the plantation revolution but insist that it would be wrong to see English capitalism and wage labour as a ‘prime mover’.
How the West Came to Rule has a good chapter on the slave plantations and their massive contribution to capitalist accumulation in the long 18th century. But AA and KN do not concede that the plantations were summoned into being by the cash demand generated by the world’s first revolutionary capitalism. They underplay the role of the New Merchants (and their captains and seamen) with their double role as entrepreneurs and political leaders. This was the epoch of the English Civil War and ‘Glorious Revolution’. The classic work on the New Merchants stresses their link to England’s transition to capitalism is Robert Brenner’s Merchants and Revolution (1993). One might have thought that Brenner’s work would be grist to the mill so far as AA and KN are concerned. However the reader of How the West Came to Rule is repeatedly warned not to be misled by Brenner’s account of capitalist origins and development (see especially pp. 22-32, 118-9, 279-81 amongst many others).
AA and FN contest the novelty and centrality that Brenner accords to the spread of capitalism and commodification in 16th and 17th century rural England. They see instead a long chain of ‘value added’ contributions from colonial or semi-colonial Asia, Africa and the Americas, all helping to bring global capitalism into existence. They concede to Brenner ‘the great merit of de-naturalising the emergence of capitalism’ (p. 81) but dispute the idea that this remarkable new twist in human history was the unintended result of a three-way struggle between English landlords, tenant farmers and landless labourers as he argued in his now-classic articles in Past and Present and New Left Review in the 1970s and 1980s. Brenner did not himself always connect his decisive research into the New Merchants with the so-called ‘Brenner thesis’. Nevertheless he identified the crucial break-through, showing that agrarian capitalism developed from landlords who demanded money rents, tenant farmers needed cash to pay rent, and landless rural workers, who had to sell their labour power if their families were to be housed and fed. Farmers who needed or wanted to pay for extra hands had an incentive to seek labour-saving innovations. The wages and fees paid by employers would also helped to swell the domestic market, encouraging commodification. Since agriculture accounted for at least 70% of GDP its transformation had great consequences.
Jan de Vries argues that early modern Europe was gripped by an ‘industrious revolution’ reflecting a more intense labor regime and a proto-capitalist consumerism. A taste for tobacco, sugar, coffee and cotton apparel encouraged many into new habits premised upon the increasing importance of the wages, rents, profits, fees and salaries of an Anglo-Dutch ‘market revolution’ in the years 1550-1650. Shakespeare’s The Tempest (1614) gives us a glimpse of the feasting and rebellions that early modern capitalism, with its visions of plenty, could inspire and of the varieties of enslavement it entailed. By the mid-19th century daily life had been re-shaped by sweetened beverages, jam, confectionary, washable clothes, colourful prints and the chewing or smoking of tobacco.
AA and KN decry what they term the ‘ontological singularity’ of Brenner’s economic logic, urging that it leads to a reductionism that has no space for race or patriarchy. They argue that ‘patriarchy and racism’ are ’not external to capitalism as a mode of production but constitutive of its very ontology.’ (p. 278). It is difficult to see how any account could be more reductionist than one which simply (con)fuses capitalism with racism and patriarchy. Nevertheless there are interesting questions which arise here. Could capitalism survive if deprived of the fruits of gender and racial exploitation? There are certainly feminists and anti-racists who believe that much can be achieved short of the total suppression of capitalism – and there are some who believe that better versions of capitalism could assist in promoting feminist and anti-racist goals. The spectrum here was illuminated by Nancy Fraser’s Fortunes of Feminism (2014).
Back in the day the more radical British and US abolitionists campaigned courageously for racial justice and equality in the name of a ‘free labour’ or forty acres and a mule, demands compatible with capitalism. Socialists might be happy to form alliances for progressive goals to be achieved ‘by any means necessary and appropriate’. If we grant the theoretical possibility that patriarchy and racism could be suppressed but capitalism remains, this outcome might still prove to be undesirable, impractical and unstable. The intimacy of the connections between capitalism, racism and patriarchy suggest that they could share a common fate, though other outcomes are quite possible.
AA and KN endorse the classic claim that the rise of capitalism was given needed extra-momentum by a series of ‘bourgeois revolutions’. Their account of the main revolutions is not detailed but adds the dialectical sweep of their story. AA and KN quote Anatolii Ado to the effect that ‘the popular revolutions of the petty producers ought to be seen as an essential element of the capitalist dynamic’. (p. 212). Slave resistance sometimes took the form of demanding wages while itinerant peddlers happily bought ‘stolen goods’ from the slaves.
While I find AA and KN’s sketch of the bourgeois revolutions makes for a more complex account, there is still a way to go. The American War of Independence led to the destruction of the European colonial empires in the Americas. This was a mighty blow for capitalism in the Atlantic societies and helped to trigger the French Revolution and hence the Haitian revolution. The further impact on Spanish America and Brazil are not discussed. All these events echoed themes of bourgeois revolution and the ‘rights of man’ as re-worked by free people of colour, slave rebels, liberty boys, dockers, sailors and the ‘picaresque proletariat’. The black Jacobins denounced the ‘aristocracy of the skin’. AA and KN could, perhaps, have drawn on their notion of a mixed social formation to consider in more depth the worlds of indios, caboclos, petty producers, runaways, store keepers, itinerant peddlers and the ‘sans culottes of the Americas’. The bourgeois character of these revolutions in the end excluded as many as it aroused.
How the West Came to Rule offers so much that it would not be fair to dwell on its omissions. The American Revolution tests the limits of the model advanced by AA and KN. The North American farmers and merchants have a solid claim to have defied and destroyed mercantilism and colonial subjection. But the planters were not exactly bourgeois and the indigenous peoples and the enslaved Africans found no solace and much suffering and bitterness in the extraordinary rise of the White Man’s Republic. In this as in other cases the initial impact of bourgeois revolution was to stimulate the plantation trades rather than weaken slavery or racialization.
How the West Came to Rule (HWCR) rightly stresses the massive ‘Atlantic’ contribution to the development of capitalism in the 17th, 18th and 19th centuries. Whether it is Britain, France, Spain, or even Portugal and the Netherlands, the volume of trade that was bounded by the Atlantic was very much greater – down to about 1820 – than Europe’s trade with the East. Of course after that date British rule in India, and the sub-continent’s commerce, became far more important for the metropolis, and the same could be said for Indonesia and Dutch rule. Whereas the spice trade to Asia required two or three galleons a year in the 16th century the plantation trade was to require thousands of ships by the mid 19th century. AA and KN maintain that Britain’s early industrialisation was based on Indian inputs (p. 246). In fact England’s 18th century cotton manufacturers looked to the Caribbean and Anatolia for most of their raw material. It was not until the 19th century that India became Britain’s main source of cotton and the captive Indian market a major outlet. AA and KN could have dwelt at greater length on the hugely destructive impact of British rule in India – famines, fiscal exactions, de-industrialization and so forth – but they do explain the Raj’s success in building a locally-financed and recruited Army of India and alliance with the subcontinent’s ‘martial races’. British India troops held down the widening boundaries of the Raj and were deployed to many parts of the empire. They formed part of the British forces that invaded China in 1839-42, 1859-62 and 1900. (p. 263) This was the true apogee of empire. But the rapacious ultra-imperial unity of the Western powers and Japan did not last for long, leading, as it did, to a new epoch of war and revolution.
How the West Came to Rule addresses a large and complex question in interesting new ways and is to be commended for that. It draws on wide reading and demonstrates the continuing relevance of the debates on the transition to capitalism and gives them a geographically and conceptually wider scope. While their account may be open to objection at various levels their choice of topic and the breadth of their approach is timely and welcome.
Robin Blackburn – Teaches at the New School in New York and the University of Essex, UK. He is the author of the The American Crucible (2011). E-mail: roblack@essex.ac.uk
ANIEVAS, Alexander; NISANCIOGLU, Kerem. How the West Came to Rule: the Geopolitical Origins of Capitalism. London: Pluto Press, 2015. Resenha de: BLACKBURN, Robin. Revisiting the Transition to Capitalism Debate. Almanack, Guarulhos, n.17, p. 465-475, set./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil | Beatriz Mamigonian
A publicação de Africanos Livres oferece ao público em geral e, especialmente ao campo historiográfico brasileiro, uma referência incontornável sobre temas como escravidão e abolição do tráfico no Império do Brasil. Desde o doutorado desenvolvido na Universidade de Waterloo, no Canadá, a obra é resultado de mais de vinte anos de pesquisa e da análise de uma vasta documentação. A pesquisa original se referia aos africanos traficados ilegalmente e que tiveram tal condição reconhecida pelo Estado brasileiro, mas a presente obra abarca aqueles escravizados ilegalmente com a conivência das autoridades. Desse modo, Beatriz Mamigonian narra uma história da abolição do tráfico no país a partir da experiência dos africanos contrabandeados entre as décadas de 1820 e 1850.
Ainda na introdução, a autora reitera seu posicionamento entre os historiadores da escravidão enfatizando o papel dos sujeitos históricos, com destaque aqui para os africanos livres. Hegemônica no campo acadêmico desde meados da década 1980, a agenda da agência escrava ofereceu ganhos conceituais e políticos para a compreensão da escravidão e do racismo no Brasil. No entanto, o livro busca incorporar dinâmicas mais amplas da política e das relações internacionais, seguindo o movimento recente de historiadores do campo.[1] Cabe ressaltar que essa história da escravidão “vista de baixo” inspirou-se nos estudos de Edward Thompson sobre as transformações na sociedade inglesa à época da Revolução Industrial. Marxista heterodoxo, Thompson criticava e recusava a imposição de conceitos abstratos às experiências de indivíduos e suas percepções. Contudo, as condicionantes e amarras do capitalismo sempre estiveram presentes em suas análises. Desse modo, a reorientação recente dos estudos brasileiros sobre a escravidão, tal como se vê na pesquisa de Mamigonian, aponta para uma bem-vinda conciliação com seu paradigma original, embora a dinâmica da economia global e os conflitos interestatais ainda permaneçam obliterados na narrativa de Mamigonian.
Os capítulos acompanham as trajetórias dos africanos livres desde o início do século XIX, quando a categoria foi criada em resultado das primeiras leis e tratados que limitavam ou condenavam o tráfico, até a década de 1880, quando a vertente mais radical do movimento abolicionista brasileiro adotou a estratégia de reconhecer todos os africanos escravizados ilegalmente no país como africanos livres. Ordenada cronologicamente, a narrativa parte do caso da Escuna Emília e dos africanos nela contrabandeados ao norte da linha do Equador em 1821, violando os tratados firmados entre a Grã Bretanha e a diplomacia de D. João VI. Os dois primeiros capítulos avançam até a independência de 1822 e o reinado de D. Pedro I, em um encadeamento não linear, mas coerente, entre o projeto antiescravista de José Bonifácio na Assembleia Constituinte, os Tratados firmados com a Grã Bretanha em 1826 e a promulgação da Lei de 7 de novembro de 1831. Conhecida no senso comum como uma “lei para inglês ver”, essa lei foi efetivamente aplicada nos primeiros anos, caindo em conveniente desuso em meados da década de 1830, a partir da convergência entre a campanha dos cafeicultores escravistas e os membros do Partido da Ordem. A política conservadora em prol do tráfico não se concretizou na revogação da lei, mas no aceno a escravistas e traficantes no sentido de que o Estado não adotaria medidas no sentido do combate do contrabando. A narrativa descreve então o acirramento das relações entre Brasil e Grã Bretanha, tanto no cenário que levou à promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, quanto no dos embates entre o governo imperial e o embaixador britânico William Christie, que culminou com a ruptura das relações entre os países na década de 1860. Em ambos os casos, a autora propõe um argumento semelhante, segundo o qual os africanos livres teriam contribuído para o afloramento das tensões entre os países, reivindicando seus direitos na esteira das crises políticas instauradas. A despeito da emancipação definitiva dos africanos livres em 1864, os capítulos finais avançam até a década de 1880, revelando a precariedade da liberdade desses africanos, assim como seu papel nas estratégias do movimento abolicionista durante a crise que levou à derrocada do cativeiro em 1888.
Os sujeitos históricos ilegalmente escravizados são personagens em todos os capítulos. Sob a promessa do retorno à África ou da sua incorporação à sociedade brasileira, os africanos livres foram submetidos a trabalhos compulsórios, fosse em órgãos públicos ou nas casas e fazendas de particulares. Em condições próximas ao cativeiro e convivendo com escravos, viveram sob a insegurança jurídica de sua condição e a falta de clareza sobre os prazos da tutela. Mais do que um eufemismo, sua definição como “livres” carregava um componente ideológico típico do discurso escravista (e posteriormente do racismo) brasileiro. No entanto, a consciência da ambiguidade de sua posição social os tornava potencialmente disruptivos tanto para os governos quanto para a ordem social escravista. Ao acionarem a embaixada britânica, associações abolicionistas e o judiciário, eles constrangiam autoridades do Estado, inclusive diante da comunidade internacional. Por sua vez, a proximidade com os escravos poderia estimular sua resistência, especialmente daqueles contrabandeados e escravizados ilegalmente.
Ao descrever as experiências de indivíduos submetidos ao contrabando, ao cativeiro ilegal e a trabalhos forçados, a obra resgata a memória silenciada de opressões do passado. A despeito da importância política dessa escolha, nem todas as trajetórias correspondem ao papel decisivo que lhes é imputado em cada capítulo. A autora sustenta que o protagonismo dos africanos livres deve ser compreendido a partir de um jogo de escalas que revela novas dinâmicas de três eixos temáticos: as consequências jurídicas da Lei de 1831, a experiência do trabalho no Atlântico oitocentista e a conjuntura que levou à abolição do tráfico. A escala da vivência dos africanos livres de fato materializa e humaniza a experiência da ilegalidade que marcou a formação da sociedade brasileira e do Estado nacional entre as décadas de 1820 e 1840, assim como o cenário de mobilização política das últimas duas décadas da escravidão no país. No entanto, a autora narra a agência dos africanos livres nos primeiros e nos últimos capítulos em paralelo com eventos mais amplos da política nacional e das relações exteriores, como se apenas sugerisse tênues relações de causalidade.
O capítulo sexto, por sua vez, consiste na empreitada mais ambiciosa do referido jogo de escalas, tanto metodologicamente quanto pelas contribuições à historiografia, sendo o ponto mais polêmico do livro. Bem organizado, o capítulo apresenta o cenário que levou à promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, destacando atores institucionais, como o Ministro Britânico Palmerston, o embaixador James Hudson e os membros do gabinete conservador no poder à época. Juntam-se a eles a conspiração de escravos descoberta em 1848, apontada pelo historiador Robert Slenes como influente nos temores que levaram as autoridades a acatarem a agenda da abolição do tráfico.[2] A contribuição de Mamigonian está em apontar a participação de políticos liberais nos conflitos que levaram ao fim do tráfico, com destaque para duas instituições que militavam contra a conivência das autoridades com o contrabando: o periódico “O Philantropo” e a “Sociedade contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e da Civilização dos Indígenas”. O capítulo atinge o clímax nas últimas páginas, quando a historiadora sugere a existência de uma articulação política que interligaria o governo britânico e o embaixador Hudson a políticos do Partido Liberal, que teriam se valido das duas instituições mencionadas e, possivelmente, até mesmo de um estímulo à articulação dos escravos conspirados. Mamigonian caminha no mesmo sentido do estudo recente de Angela Alonso sobre o movimento abolicionista, enfatizando o papel da sociedade civil, da opinião pública e da militância durante o Império.[3] Segundo a autora, o discurso de Eusébio de Queiroz, em 1852, mais do que defender o governo conservador à época da abolição do tráfico, serviu à construção de uma memória seletiva, que apagou a articulação entre abolicionistas ingleses e brasileiros e sua estratégia de incitar escravos e africanos livres como meio para desestabilizar a política em prol do contrabando.
A hipótese demanda mais estudos e dados, especialmente no tocante ao último elo – entre abolicionistas e escravos -, como reconhece a própria autora. A argumentação inevitavelmente abre flancos para críticas. A título de exemplo, a leitura permite uma interpretação equivocada das agendas dos partidos, como se houvesse uma divisão clara entre conservadores-escravistas e liberais-abolicionistas. Em segundo lugar, a argumentação reproduz indiretamente a autoimagem humanitária do abolicionismo britânico, como fazem os estudos do historiador Seymour Drescher, perdendo-se de vista seu caráter ideológico como instrumento imperialista.[4] Em uma breve passagem do quinto capítulo, a historiadora chega a sugerir um enquadramento mais amplo, em que o debate acerca do tráfico e dos africanos livres cumpriria diferentes funções nas duas margens do Atlântico, relacionando-se, de um lado, aos riscos imanentes à sociedade escravista brasileira, e de outro, à ideologia da “missão civilizadora” que permitiria aos britânicos intervirem no território africano. A curta passagem mereceria uma análise mais aprofundada e deixa de repercutir no capítulo sexto. De todo modo, trata-se do melhor exercício do método de escalas proposto pela historiadora, assim como de sua defesa do papel dos sujeitos históricos no processo de abolição do tráfico – embora apresente mais provas da agência dos abolicionistas do que dos africanos livres. A despeito das lacunas, a contribuição para o debate historiográfico atesta a importância da pesquisa e da publicação.
A respeito do enquadramento teórico, o estudo tem o mérito de propor um jogo de escalas que integraria sujeitos às camadas da política e da economia, superando as fronteiras nacionais. No entanto, a narrativa se limita a quatro níveis de análise nem sempre articulados: a exploração e a resistência de africanos livres; instituições da sociedade civil, como associações e veículos da imprensa (essencialmente “O Philantropo” e a “Sociedade contra o Tráfico”, presentes em poucos capítulos); a dinâmica da alta política imperial; e a pressão diplomática britânica. Além disso, as escalas tendem a recair no individualismo metodológico quando se reduzem aos agentes que as compõem, sejam os africanos, os políticos ou os abolicionistas. O estudo se beneficiaria da incorporação de dinâmicas geopolíticas e econômicas globais, ou ao menos atlânticas. No que diz respeito à década de 1830, Mamigonian descreve a guinada política representada pelo Regresso Conservador e sua nova agenda no tocante ao tráfico e aos africanos livres. No entanto, embora mencione o papel da campanha dos produtores do Vale do Paraíba na campanha pela revogação da Lei de 1831 e sua articulação com os políticos do Partido da Ordem, a historiadora não atenta para as demandas econômicas internacionais a partir da abertura dos mercados estadunidenses para o café brasileiro. Mais relevante ainda seria a percepção do cenário atlântico nas décadas de 1850 e 1860, quando ocorreram as emancipações dos africanos livres – primeiramente daqueles concedidos a particulares (1853) e posteriormente daqueles mantidos como prestadores de serviços forçados ao Estado (1864). A primeira emancipação foi associada por Mamigonian à crescente demanda dos africanos livres após a crise política que levou à abolição do tráfico em 1850, devido à consciência de um novo horizonte de oportunidade. Por sua vez, a emancipação definitiva na década de 1860 foi interpretada como resultante da pressão abolicionista de políticos liberais e do embaixador William Christie. No entanto, o horizonte do cativeiro se estreitara naquela década a partir da Guerra Civil nos Estados Unidos, que legou ao Brasil a condição de único Estado nacional escravista das Américas. O mesmo contexto que provocou um racha entre a elite política e o declínio do consenso que sustentava a política da escravidão contribuiu para a percepção dos africanos livres como elementos disruptivos na ordem escravista. O jogo de escalas proposto por Mamigonian perde fôlego para além das fronteiras nacionais, reduzindo-se às pressões britânicas e aos discursos e ações de políticos e abolicionistas e às suas influências unilaterais na política e na sociedade brasileiras.
Sobre a dimensão econômica global de seu jogo de escalas, a historiadora propõe uma reflexão a respeito do mundo do trabalho no século XIX, questionando a falsa antítese entre escravidão e trabalho “livre”. A exploração de africanos livres junto a escravos, prisioneiros e indígenas demonstrou tanto a precariedade da liberdade na era da abolição, quanto a multiplicidade de formas de trabalho compulsório no período. Ao se aproximar do tema do trabalho, Mamigonian abdicou de um debate sobre o capitalismo oitocentista. Na introdução do livro, esboçou tal movimento ao apresentar a dinâmica da escravidão como radicalmente nova, tendo em vista a expansão de zonas produtoras de artigos tropicais para o mercado internacional, em referência aos estudos de Dale Tomich. Mas o diálogo com a agenda de estudos sobre capitalismo e escravidão não encontrou eco nos capítulos seguintes – seria importante fazê-lo inclusive no capítulo sexto. Do mesmo modo, os historiadores que têm levado adiante a perspectiva de Tomich e defendido uma abordagem sistêmica da escravidão no século XIX não figuram nos parágrafos ou notas.[5] O mesmo valeria para o diálogo com a historiografia que cruza dinâmicas mais amplas a partir de biografias.[6] A proposta da metodologia em escalas de Mamigonian poderia se valer da incorporação ou da crítica a outras matrizes teóricas, de modo a esclarecer suas premissas e vantagens. A obra se beneficiaria, especialmente, do diálogo com os estudos recentes de Leonardo Marques e Tâmis Parron, que vêm analisando o tráfico negreiro e a escravidão à luz da dinâmica da economia global no mundo pós Revolução Industrial e da ordem geopolítica sob a hegemonia da Grã Bretanha.[7] Se a autora tivesse optado por dialogar com esses estudos, poderia ter realizado melhor o próprio jogo de escala que propõe no início do livro e nem sempre realiza a contento.
No epílogo, a historiadora apresenta em retrospecto as contribuições da pesquisa, destacando o desafio à memória oficial sobre as leis antitráfico de 1831 e 1850. Na contramão da narrativa construída por Eusébio de Queiroz, a primeira lei não teria sido legada ao esquecimento absoluto, e a segunda não seria o resultado do protagonismo patriótico dos saquaremas contra a Grã-Bretanha. Tampouco haveria uma linha progressiva e gradual entre a abolição do tráfico e a da escravidão. Mamigonian retoma com maior contundência seus argumentos referentes à resistência e articulação entre abolicionistas, africanos livres e escravos, enfatizando a imprevisibilidade de cada contexto e a importância de seu protagonismo. Para além dos ganhos historiográficos, a obra se destaca pelo engajamento político no presente. Acessível ao público em geral, o livro segue a tônica de estudos recentes ao refutar a memória oficial brasileira, marcada por esquecimentos seletivos e interessados, que negam a relevância social dos marginalizados e as estruturas políticas e econômicas que os marginalizaram. Em tempos de precarização das relações de trabalho e de discursos negacionistas do passado e do presente racial brasileiro, a lembrança dos africanos livres incomoda posições de privilégio e de poder ao denunciar o que se convencionou legar ao silêncio.
Notas
1. O mesmo movimento se nota nos estudos de Sidney Chalhoub. Visões da Liberdade (1990) foi um dos marcos da agenda da agência escrava, mas as recentes publicações do historiador apontam para as constrições políticas do cativeiro, como em A Força da Escravidão (2012). A guinada historiográfica, no entanto, é mais evidente nas contribuições de estudos recentes como os mencionados mais adiante, nas notas 6 e 7 desta resenha.
2. Ver SLENES, Robert. “A árvore de Nsanda transplantada: Cultos Kongo de aflição e identidade escrava no sudeste brasileiro (século XIX)” In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia (orgs.) Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Anablume, 2006, pp. 273-314;
3. Ver ALONSO, Angela. Flores, Votos e Balas: O Movimento Abolicionista Brasileiro, 1868-1888. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. O diálogo entre as perspectivas teóricas de ambas as autoras contribuiria para o campo, mas não consta a referência na bibliografia de Mamigonian.
4. Ver DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
5. O diálogo proposto se refere aos estudos de Dale Tomich e o conceito da “Segunda Escravidão”, mas não se estende aos historiadores brasileiros que vem desenvolvendo pesquisas no mesmo sentido nas últimas décadas. Ver TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. Trad. Port. São Paulo: EDUSP, 2011. E sobre a referida omissão ver BLACKBURN, Robin Blackburn, The American Crucible. Slavery, Emancipation and Human Rights, Londres, Verso, 2011; PIQUERAS, José A. (ed.), Trabajo Libre y Coactivo en Sociedades de Plantación, Madri, Siglo XXI, 2009; SCHMIDT-NOWARA, Christopher. Empire and Antislavery: Spain, Cuba and Puerto Rico, 1833 – 1874, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1999; ZEUSKE, Michael. “Comparing or interlinking? Economic comparisons of early nineteenth-century slave systems in the Americas in historical perspective”, In: Enrico dal Lago & Constantina Katsari (eds.), Slave Systems. Ancient and Modern, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 148-183; MARQUESE, R. B.; SALLES, (orgs.). Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016; KAYE, Anthony, “The Second Slavery: Modernity in the Nineteenth-Century South and the Atlantic World”, Jornal of Southern History, vol. 73, n. 3, August 2009, p. 627-50; DAL LAGO, Enrico, American Slavery, Atlantic Slavery, and Beyond. The U.S. “Peculiar Institution” in International Perspective, Boulder, Paradigm Publishers, 2012.
6. Sobre essas abordagens, ver SCOTT, Rebecca; HÉBRARD, Jean. Provas de Liberdade: Uma odisseia atlântica na era da emancipação. São Paulo: Unicamp, 2014. REIS, João; GOMES, Flávio; CARVALHO, Marcus. O Alufá Rufino. Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
7. Ver PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese. Universidade de São Paulo,2015; MARQUES, Leonardo. The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, 1776-1867. New Haven; London: Yale University Press, 2016. O mesmo pode ser dito no tocante à experiência do direito e da escravidão no Atlântico oitocentista com relação ao estudo de, Waldomiro da Silva Junior, Entre a escrita e a prática: direito e escravidão no Brasil e em Cuba, c. 1760-1871. Tese. Universidade de São Paulo em 2015. Por fim, embora se posicione entre os historiadores que defendem a agenda da agência escrava, a pesquisa deixou de dialogar com estudos como o de Maria Helena Machado, O Plano e o Pânico: os movimentos sociais na década da abolição. São Paulo: Edusp, 2010. Seria igualmente relevante a incorporação do estudo sobre a precariedade da liberdade de Henrique Espada Lima, “Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX”. Topoi (Rio de Janeiro), v. 6, n. 11, Julho-dezembro de 2005, pp. 289-326.
Marcelo Ferraro – Formado em Direito (2009) e História (2013) pela Universidade de São Paulo, e possui Mestrado em História (2017) pela mesma instituição. E-mail: marcelo178@gmail.com
MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: FERRARO, Marcelo. Entre cativeiros: africanos livres na formação do Estado imperial e na economia-mundo oitocentista. Almanack, Guarulhos, n.17, p. 476-485, set./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas 1776 – 1867 | Leonardo Marques
O tema do livro de Leonardo Marques é a participação dos Estados Unidos no tráfico atlântico de escravos entre a fundação da nação, em 1776, e o fim efetivo desse tráfico para a colônia espanhola de Cuba, em 1867. O livro origina-se da tese de doutorado defendida pelo autor na Universidade de Emory, em 2013. A participação norte-americana no tráfico se deu, em primeiro lugar, pelo fato, menos notado pela historiografia e pelo senso comum, de que os Estados Unidos foram o maior país consumidor de bens produzidos por escravos do século XIX (p. 9-10). Mas essa participação ocorreu também pelo envolvimento de traficantes, comerciantes, seguradores, financistas, construtores navais, capitães e marinheiros norte-americanos no tráfico para o próprio Estados Unidos, até 1808, para o Brasil, até 1850, e para Cuba, até 1867. Tal envolvimento foi tanto legal e aberto, até a abolição do tráfico para os EUA em 1808, quanto mais nebuloso, indireto e, eventualmente, ilegal após essa data. Marques trata ainda das atitudes e políticas implementadas pelo congresso e pelo governo federal norte-americanos a respeito do assunto ao longo desse período.
Com base em diversas fontes arquivísticas nos Estados Unidos, Brasil, Cuba e Grã-Bretanha, da análise dos dados disponíveis sobre o tráfico de escravos africanos no site Slavevoyages e da discussão com a literatura secundária, Leonardo Marques aborda seu tema em seis capítulos, além da introdução e da conclusão: a participação norte-americana no tráfico na era das revoluções, entre 1776 e 1808; o período de transição entre essa última data, em que comércio internacional de escravos tornou-se ilegal nos Estados Unidos, e 1820, quando a legislação contra o tráfico tornou-se mais rigorosa; a consolidação do comércio de contrabando internacional de escravos, entre 1820 e 1850, data da abolição efetiva do tráfico para o Brasil; a participação norte-americana no contrabando para o Brasil, entre 1831 e 1850. Os dois capítulos finais tratam das relações da república escravista com Cuba, entre 1851 e 1858, e da crise dessas relações e da própria escravidão norte-americana entre 1859 e 1867, data em que, finalmente, o tráfico foi abolido para a colônia espanhola.
O assunto não é novo, mas ainda é pouco explorado pela historiografia e só recentemente vem recebendo maior atenção. De acordo com Marques, as seguidas revisões historiográficas sobre a tese de W. E. B. Du Bois, The Supression of the African Slave Trade to the United States of America, 1638 – 1870, de 1896, que teria inflado os números sobre o comércio internacional de escravos para as Américas em geral e para os Estados Unidos em particular, subestimaram a participação indireta de cidadãos estadunidenses no tráfico. Assim como a tolerância, quando não a defesa, governamental em relação a essa participação (p. 7-10). Só essa “revisão da revisão”, por assim dizer, já recomendariam o livro aqui resenhado, além das novas informações que sua pesquisa traz. Mas, o mais importante é como Leonardo Marques realiza essa revisão, inserindo seu tema nos grandes fluxos e redes mercantis, culturais e políticas em escala mundial que ganharam nova forma e impulso no século XIX. Desse modo, sem que o termo seja empregado, pode-se dizer que se trata de um trabalho de História Global, novo invólucro – com importantes inovações, sem dúvida – para tratar de temas amplos que foram negligenciados pelas correntes historiográficas dominantes nos últimos trinta anos. Além disso, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas adota a perspectiva, primeiramente desenvolvida por Dale Tomich, que considera a escravidão – e o tráfico atlântico – do século XIX como uma Segunda Escravidão. De acordo com essa visão, a escravidão e o tráfico do século XIX não foram uma sobrevivência dos tempos coloniais, mas reconfigurações ainda mais poderosas dessas mesmas instituições, que se desenvolveram em íntima conexão com a nova fase de desenvolvimento da economia e do mercado internacional capitalista e da nova ordem mundial regida pela formação dos Estados Nacionais sob hegemonia britânica.
Essa segunda escravidão nasceu sob impulsos contraditórios. Ela respondeu a um incremento substancial da demanda de determinados produtos – algodão, açúcar e café – ocasionado pelos processos de industrialização, urbanização e intensificação do consumo e do comércio internacional na Grã-Bretanha, em outras regiões da Europa e nos Estados Unidos. Tal incremento da demanda foi um dos fatores que propiciaram o desenvolvimento da escravidão em novas áreas no Sul dos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil, especialmente no Vale do Paraíba. O tráfico de escravos, que, mesmo depois de ter sido declarado ilegal, aumentou seu volume conforme se expandia a demanda por bens produzidos por escravos, inseria-se em circuitos comerciais mais amplos que incluíam até mesmo bens produzidos por potências antiescravistas: mosquetes, tecidos e chumbo da Grã-Bretanha; tecidos e conhaque da França; tecidos, tabaco e rum dos Estados Unidos. O tráfico também estava inserido na estrutura financeira e comercial internacional com suas letras de câmbio, bolsas de valores e companhias por ações (p. 107). Finalmente, o tráfico era peça integrante do contexto mais amplo de relações das regiões escravistas entre si. É conhecida a presença econômica britânica no Brasil, mas os Estados Unidos não ficavam muito atrás. As relações entre Cuba e Estados Unidos eram intensas, ficando atrás apenas da Grã-Bretanha e França. Tudo isso mostra como as elites das três regiões escravistas estavam integradas no mundo do livre comércio (p. 109).
Paradoxalmente, nesse mesmo período, a escravidão e o tráfico passaram a ser globalmente contestados, em resultado dos desdobramentos diretos ou indiretos da campanha britânica pela abolição do tráfico internacional, datada das últimas décadas do século XVIII, da Independência Americana, da Revolução Francesa e da Revolução Haitiana. Nesse contexto, a defesa do livre comércio e o combate ao tráfico internacional de escravos foram pontos fundamentais na imposição da hegemonia britânica na ordem mundial que emergiu após 1815. Portugal, em seguida o Brasil e Espanha, nação soberana sobre a ilha de Cuba, como potências escravistas que dependiam do fluxo de escravos africanos para sua expansão, resistiram o quanto puderam à pressão britânica pela extinção do tráfico. Apesar de aceitarem formalmente a ilegalidade do tráfico africano em 1820 (império espanhol) e 1830 (Império do Brasil), continuaram praticando-o, em escala ainda mais ampliada, até 1850 (Brasil) e 1867 (império espanhol).
E quanto aos Estados Unidos? A partir dos dados levantados e analisados do site Slavevoyages – uma constante no trabalho – Leonardo Marques nos mostra que, entre 1783 e 1807, último ano em que o comércio de escravos africanos foi permitido para o país, traficantes norte-americanos transportaram pouco mais de 165 mil cativos africanos para a América, grande parte deles destinada ao próprio país. Esses traficantes, contudo, não eram provenientes de portos do Sul escravista, mas da região da Nova Inglaterra, especialmente Bristol e Newport (ambas em Rhode Island), evidenciando uma aliança entre o Sul e o Norte. A estrutura desse comércio era eminentemente nacional, em comparação com o esquema altamente internacionalizado que tráfico de contrabando adquiriu a partir da década de 1830 em diante. Traficantes, financiadores, seguradores, capitães, tripulações, praticamente tudo era doméstico. A proibição do tráfico, em 1808, respondeu ao temor do perigo que uma grande massa de africanos poderia representar ao país e atendeu os interesses das áreas escravistas mais antigas, onde a população escrava se reproduzia e crescia naturalmente, que poderiam substituir a oferta externa de cativos para as áreas em expansão (p. 96). Quebrava-se, desse modo, a aliança anterior entre Sul e Norte em torno do tráfico, substituída agora por um novo compromisso entre as duas regiões.
A participação norte-americana no comércio internacional de escravos, contudo, prosseguiu, principalmente através do financiamento do tráfico para Cuba, da venda de navios para traficantes espanhóis, da participação direta de capitães e marinheiros norte-americanos na atividade. Em 1820, uma nova legislação antitráfico foi aprovada, transformando a participação nesse comércio ilícito em crime de pirataria e, portanto, passível de pena de morte. Essa legislação selou o fim da estrutura negreira da Nova Inglaterra que havia florescido entre 1783 e 1808 e que sobrevivera daí em diante alimentando o tráfico para Cuba. A médio prazo, na medida em que o tráfico prosseguiu como contrabando para Cuba e Brasil, a legislação, de acordo com Marques, tornou-se “obstáculo insuperável às possíveis alianças entre as três potências escravistas da América em meados do século XIX” (p. 105)
Na década de 1830, todas as nações atlânticas haviam abolido formalmente o comércio internacional de escravos. Espanha e Brasil, os dois principais Estados nacionais importadores de escravos tinham assinado acordos bilaterais com a Grã-Bretanha que lhe asseguravam o direito de busca e apreensão de navios suspeitos de prática do ilícito comércio. Não é possível saber a dimensão que o tráfico de escravos africanos teria adquirido caso ele não tivesse sido declarado ilegal e esses acordos não tivessem sido firmados. O que sabemos, contudo, é que, mesmo assim, entre 1831 e 1850, data da proibição efetiva do tráfico pelo governo brasileiro, 387.966 africanos escravizados foram desembarcados em Cuba e 903.543 no Brasil (p. 110-11, 112, 123). O tráfico ainda prosseguiu para Cuba até 1867. No todo, entre 1820 e 1860, mais de dois milhões de escravos africanos, 20% do total desembarcado na América entre 1501 e 1867, foram trazidos para o Brasil e Cuba (p. 136).
A participação de cidadãos e companhias norte-americanos nesse tráfico foi significativa. Até 1820, de forma direta, como mencionado acima. A partir dessa data, de maneira mais indireta. Capitães e marinheiros estadunidenses, mas também de outras nacionalidades, inclusive britânicos, participavam do tráfico. Como o governo norte-americano só firmou uma convenção de busca bilateral de navios suspeitos de tráfico com a Grã-Bretanha em 1862, navios com sua bandeira ficavam mais protegidos da fiscalização e da repressão britânicas. Muitos navios norte-americanos transportavam produtos que seriam trocados por escravos até a costa africana. Lá esses produtos eram vendidos a traficantes e os navios voltavam para os portos americanos apenas com lastro. Ou ainda, os navios eram vendidos ou fretados para traficantes, que os utilizavam, com ou sem a bandeira estadunidense, para transportar os cativos para a América. Companhias norte-americanas vendiam e fretavam navios para traficantes, como a firma Maxwell, Wright & Co., principal exportadora de café do porto do Rio de Janeiro, que manteve essa prática até o início da década de 1840, quando foi pressionada, por representantes diplomáticos de seu país junto ao governo imperial, a cessar essa atividade. Traficantes, frequentemente, lançavam mão das bandeiras dos Estados Unidos, mas também de outros países, como França e Sardenha, para encobrir suas atividades. De qualquer modo, a principal contribuição estadunidense para o tráfico internacional de escravos se deu pelo fornecimento da maioria dos navios utilizados nessa atividade, principalmente no período de contrabando. Entre 1831 e 1840, pouco antes do acordo Webster-Ashburton, entre Grã-Bretanha e Estados Unidos, que intensificou o combate ao tráfico por parte do governo deste último país, navios construídos nos Estados Unidos realizaram 1.070, ou 63% de todas as viagens de contrabando de escravos nesse período, e transportaram 422.453 escravos africanos para Brasil e Cuba.
No que diz respeito especificamente ao Brasil, Marques contesta a ideia esposada por muitos historiadores, como Seymour Drescher, de que o transporte de metade dos africanos desembarcados no país entre 1831 e 1850 teria sido feito, por via direta ou indireta, por norte-americanos. Estes historiadores estariam seguindo a avaliação feita nesse sentido pelo representante do governo norte-americano no Brasil em 1850, David Tod. O problema é que nesta avaliação estão desde a venda e a transferência legal de navios para traficantes até a participação direta de capitães no embarque na África. Enquanto essa última forma constituía claramente uma violação das lei antitráfico, as outras formas ocorriam na zona cinzenta que conectava atividades comerciais legítimas com o tráfico. O fato é que, entre 1831 e 1850, 58,2% dos desembarques de contrabando para o país, transportando 429.939 escravos africanos, foram realizadas em navios fabricados nos Estados Unidos. Navios fabricados no Brasil, por sua vez, fizeram 15,4% dessas viagens e transportaram 113.569 cativos. Outros 26,4% das embarcações eram de outras procedências e transportaram 194.600 africanos. Talvez por isso, alguns historiadores tenham considerado, erroneamente, segundo Marques, que os norte-americanos mantiveram-se à frente do tráfico para o Brasil. Na verdade, brasileiros e portugueses controlavam o comércio de contrabando de escravos para o país (p. 141-43). Finalmente, ao considerar esses dados, não se deve perder de vista que os Estados Unidos eram o principal fornecedor de navios para o comércio internacional como um todo. Assim, não seria surpreendente que a maioria das embarcações empregadas no tráfico também tivesse essa mesma proveniência.
Do ponto de vista político, Marques assinala que o governo norte-americano e seus diversos representantes diplomáticos no Brasil entre 1831 e 1850 mostraram-se hesitantes em relação ao tráfico, ora o combatendo com veemência, ora fazendo vistas grossas. Essa hesitação e a resistência do governo estadunidense em assinar uma convenção antitráfico com a Grã-Bretanha não seriam, primordialmente, um sinal da predominância dos interesses escravistas do Sul junto ao governo federal. Respondiam mais a disputas geopolíticas com a Grã-Bretanha e a convicções, relativamente ocasionais, sobre o papel dos Estados Unidos na região em relação ao Império do Brasil e ao tráfico internacional. De qualquer forma, ele conclui que mesmo se uma eventual permissão de revista mútua nos navios suspeitos de tráfico entre Estados Unidos e Grã-Bretanha tivesse ocorrido em 1842, e não em 1862, como de fato aconteceu, isso não teria feito diferença significativa nos números do tráfico de contrabando para o Brasil (p. 183).
Em relação a Cuba, a constatação é inversa. A participação norte-americana no tráfico – e na própria escravidão, com diversos cidadãos sendo donos de plantation na ilha – foi muito maior, principalmente a partir da década de 1850. Um número maior de navios e de capitães estadunidenses participaram do contrabando para a colônia espanhola. A bandeira norte-americana também foi mais empregada na atividade. Navios com bandeira estadunidense, em 20 viagens de 97, transportaram 10.528, ou 20,4% de um total de 51.628 africanos escravizados trazidos para Cuba entre 1851 e 1854. Entre 1855 e 1858, os números quase triplicaram. Embarcações com a bandeira norte-americana trouxeram 33.134, ou 67,45%, dos 49.167 africanos traficados para Cuba, em 61 de um total de 90 viagens. Traficantes portugueses e espanhóis com representações nos Estados Unidos controlavam o tráfico para a colônia espanhola. Mas, o ponto principal da participação norte-americana no tráfico de contrabando para Cuba era de natureza política. O peso norte-americano no tráfico, sua presença em plantations na ilha e a pequena distância entre Cuba e o Sul fizeram com que o governo estadunidense servisse como poderoso anteparo à intervenção britânica na repressão ao tráfico para Cuba. A proximidade geográfica com o Sul dos Estados Unidos, assim como a forte presença de interesses norte-americanos diretamente na colônia espanhola, por sua vez, traziam sempre a ameaça de anexação da ilha à república. Possibilidade que a Grã-Bretanha buscava evitar não minando completamente a autoridade espanhola na colônia. Nessa situação, as autoridades espanholas equilibravam-se em uma corda bamba no jogo geopolítico entre Estados Unidos e Grã-Bretanha (p. 191).
De todo esse panorama, traçado com maestria pelo historiador brasileiro, emerge um quadro complexo que enriquece nosso conhecimento sobre as relações entre escravidão, tráfico e capitalismo no século XIX. Isso não de um ponto de vista teórico, mas a partir das relações concretas entre as classes, elites e governos nacionais que protagonizaram essas relações. Emerge também a constatação do papel central dos Estados Unidos nesse cenário e o significado da Guerra da Secessão como ponto de virada na sorte da escravidão naquele país, mas também em Cuba e no Império do Brasil.
Esperamos que a tradução do livro para o português, imprescindível para o estudioso da escravidão do século XIX, venha logo.
Ricardo Salles – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2011). Publicou diversos livros, entre eles Nostalgia Imperia: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. É professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). E-mail: ricardohsalles@gmail.com
MARQUES, Leonardo. The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, 1776 – 1867. New Haven: London: Yale University Press, 2016. Resenha de: SALLES, Ricardo. Capitalismo, Estados Unidos e o tráfico internacional de escravos no século XIX. Almanack, Guarulhos, n.17, p. 486-493, set./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
Entre a caridade e a ciência: a prática missionária e científica da Companhia de Jesus (América Platina, séculos XVII y XVIII) – FLECK (HU)
FLECK, E.D. Entre a caridade e a ciência: a prática missionária e científica da Companhia de Jesus (América Platina, séculos XVII y XVIII). São Leopoldo: Oikos, 2014. 559 p. Resenha de: AVELLANEDA, Mercedes. Creencias y prácticas en torno a la salud y a la enfermedad en las reducciones jesuitas del Paraguay durante los siglos XVII y XVIII. História Unisinos 21(3):458-460, Setembro/Dezembro 2017.
El libro de Eliane Fleck Entre a caridade e a ciência: a prática missionária e científica da Companhia de Jesús aborda una dimensión muy poco estudiada hasta el presente, el mundo de las emociones y de las sensibilidades que se manifiestan en las cosmovisiones particulares de los mundos culturales, en este caso el indígena y el blanco que se entrecruzan y se transforman por la experiencia vivenciada. Los trabajos reunidos que se van hilvanando a lo largo de la obra representan el recorrido, de más de tres décadas de investigación, desarrollado sobre las misiones jesuíticas del Paraguay desde una perspectiva muy original, la exploración científica de la naturaleza como aliada indispensable para el desarrollo de la medicina y de la evangelización.
La investigación de Eliane nos introduce concretamente en el mundo de las creencias y de las prácticas terapéuticas relacionadas con los temas de salud y enfermedad durante los siglos XVII y XVIII. La originalidad de su abordaje centrado en la cura de las almas y de los cuerpos, dos instancias íntimamente ligadas al proceso de evangelización, da cuenta de la lucha de los jesuitas contra las creencias indígenas sobre el poder de los espíritus, las enfermedades que los acechan y la imperiosa necesidad de construir nuevos significados para consolidar su liderazgo espiritual y humanitario entre los recién reducidos.
Si bien la historia de las Misiones Jesuitas tiene una vasta producción académica que recorre los principales temas en torno a las realizaciones de los religiosos en las distintas esferas de su accionar social, político, económico y religioso, esta obra también se inserta en la corriente de trabajos más recientes, que recuperan el conocimiento de los propios actores sociales tanto guaraníes como jesuitas sobre su entorno, para indagar los fenómenos de transferencia cultural, ligados indefectiblemente a la agencia indígena y a las prácticas de los misioneros, contribuyendo de esa manera a los proce sos de transformación y refinamiento de las visiones historiográficas más actuales.
Toda la obra recorre como se fueron recopilando y elaborando los conocimientos sobre la farmacopea indígena y jesuítica a lo largo de los siglos XVII y XVIII y representa el fruto de sucesivas investigaciones centradas en la medicina que se efectuaba en las reducciones. Dividida en cuatro grandes secciones, la obra abarca la mirada indígena sobre la enfermedad y la muerte, los esfuerzos realizados por los misioneros para desarrollar remedios para la cura, la circulación de ese saber y las diferentes causas de enfermedad y muerte entre guaraníes y misioneros de las reducciones.
En su análisis, Eliane nos introduce, primero, en el imaginario indígena y sus interpretaciones sobre enfermedad y muerte entre guaraníes, rodeados de poderosos espíritus que atraviesan su existencia. Estos los acechaban en la espesura de la selva, imponiendo sus reglas de comportamiento social, y tabúes que hacían peligrar la existencia de todos. Los jesuitas debían librar una batalla permanente para cambiar la cosmovisión indígena y las prácticas de los shamanes que le imprimían a la enfermedad un poder mágico que solo podía ser doblegado por ellos, al ser los únicos capaces de penetrar en el mundo de las fuerzas sobrenaturales, encontrar el remedio y regresar para reestablecer el equilibrio psíquico y emocional de la persona. La importancia de este aspecto hará que los religiosos busquen romper con estas creencias y encontrar, a través del desarrollo de una farmacopea nativa, los remedios necesarios para la cura de las enfermedades.
En la búsqueda de comprender las prácticas impulsadas por los misioneros, la autora analiza la construcción de representaciones elaboradas por los religiosos para entender de qué modo los jesuitas organizan y manifiestan sus preocupaciones y sus propias consideraciones relacionadas con sus experiencias sociales. Esto le permite a Eliane contraponer dos visiones del mundo sobre la enfermedad, la guaraní y la jesuita, que coexisten en el siglo XVII y que no son antagónicas. La autora nos hace ver que los guaraníes, influenciados por los resultados de los religiosos y los nuevos métodos eficaces para combatir las enfermedades, aceptan el nuevo ordenamiento social aunque las fugas dejan entrever asimismo la coexistencia de cierta resistencia.
Al focalizarse en los contextos de epidemias en el que tendrán que accionar los religiosos, la autora pone de relieve la necesidad de los religiosos de elaborar la fabricación de remedios en las mismas reducciones, y para ello desarrollar un conocimiento de las plantas nativas. De ese modo se impulsará la construcción de un saber específico en las reducciones que luego se difundirá en un espacio mayor, a través de las recetas magistrales elaboradas desde las boticas instaladas en los Colegios de Buenos Aires y de Córdoba.
En la reconstrucción de esta inmensa labor de la cual poco se ha investigado, la autora se sirve del análisis de las Cartas Anuas y de las obras de referencia de los misioneros que se dedicaron a la medicina, como la obra Materia Médica del padre Pedro Montenegro. A través de este recorrido la autora reconstruye cómo las reducciones jesuitas del Paraguay fueron un importante laboratorio de investigación y experimentación, donde se exploraron las propiedades terapéuticas de las distintas especies nativas para la cura de enfermedades, contribuyendo al conocimiento científico de su época.
Desde el punto de vista formal, la obra se divide en cuatro partes bien diferenciadas que van dando cuenta ampliamente del camino recorrido por Eliane en su investigación a través de los años, analizando los progresos efectuados al interior de las reducciones, los procesos de reconfiguración del conocimiento médico que se elabora en la práctica y su impacto a la larga para combatir las distintas enfermedades al interior de las misiones.
La primera parte consta de un capítulo que nos introduce en la geografía de las misiones y en las representaciones de los guaraníes y de los religiosos entorno a las concepciones de enfermedad como maleficio y la eficacia de los métodos. Un segundo capítulo nos ofrece las propias imágenes que los misioneros construyeron acerca de esos fenómenos, para poner en valor una sensibilidad que desarrollaron en relación a sus prácticas, donde se van delineando dos cosmovisiones entrelazadas inexorablemente por la situación de contacto, la indígena y la jesuita, que representan el punto de partida y el contexto específico de abordaje de la investigación.
Una segunda parte nos introduce de lleno en la medicina que se practicaba en las misiones, los problemas de salud entre los guaraníes, el desarrollo de una farmacopea experimental, y las prácticas curativas. Seis son los capítulos que van hilvanando este recorrido a través del problema del contacto inicial y la propagación de epidemias en épocas de carestía, junto con las medidas que toman los padres Montoya, Asperger y Montenegro para evitar la propagación de los contagios. De igual modo, adquiere relevancia y se pone de manifiesto el propio conocimiento de los guaraníes a través de los informantes locales que acompañan a los religiosos en la recolección de las plantas, el señalamiento de sus cualidades curativas, como se da la fabricación de algunos jarabes y bálsamos para aliviar los síntomas y la elaboración conjunta de herbarios para resguardar la información.
La tercera parte consta de otros tres capítulos, que ponen de manifiesto como los Colegios de Río de Janeiro, Buenos Aires y Córdoba fueron, en la misma época, importantes centros de propagación de conocimientos médicos por sus boticas y recetas magistrales, ofreciendo un servicio muy útil a la población local desprovista de medicinas. Y como, gracias a las investigaciones realizadas en las misiones, se pudo contribuir y avanzar en el desarrollo de la farmacopea nativa y en su propagación tanto en América como en Europa. Al respecto, se analiza el papel relevante que tuvo el Colegio de Córdoba como centro de formación intelectual de universitarios desde donde se difundían y transmitían esos saberes.
La cuarta y última parte de esta obra se compone de cinco capítulos, que abarcan el tema de la muerte, sus causas y las curas que se dan tanto entre los indígenas reducidos como entre los misioneros que los acompañan.
El análisis de las Cartas Anuas y de los censos de las reducciones permite a la autora explorar los índices de natalidad y mortandad de los guaraníes reducidos y comprender la eficacia de la farmacopea desarrollada en las reducciones, junto con la exploración de las condiciones de salud y el promedio de vida de sus integrantes.
El análisis del trabajo del hermano Pedro de Montenegro es una muestra de lo que sucedía en las misiones con la experimentación de plantas, los conocimientos indígenas, las prácticas de higiene a ser observadas en el trato con los enfermos y los efectos de los remedios elaborados.
De igual modo los dos inventarios de la botica del Colegio de Córdoba que contienen una gran variedad de aguas, aceites, tinturas, ungüentos, vinos, esencias de flores y bálsamos son relevantes para comprender la labor desarrollada por los padres boticarios.
En su recorrido, Eliane logra un abordaje diferente donde se pone en valor la experiencia vivida en las misiones que nos revela entre guaraníes y misioneros un proceso de contacto profundo atravesado por diferentes variables que van a producir inexorablemente transformaciones culturales y cambios profundos tanto en las prácticas cotidianas como en las concepciones más profundas sobre las nociones del cuerpo y su devenir. De ese modo no se trata de resaltar la lógica del contacto y el acomodamiento mutuo de dos culturas, sino avanzar en la comprensión de la larga duración, para visualizar las transformaciones sociales más profundas. Si bien su rico abordaje contempla los aportes de ambas culturas en el avance de la medicina y el conocimiento científico, al mismo tiempo reconoce diferencias en la forma de abordar el mundo sobrenatural.
La perspectiva antropológica le permite calibrar la lógica de los diferentes actores sociales, y recorrer en la experiencia compartida los aciertos de sus intercambios culturales. La autora nos muestra cómo. a través del tiempo, los guaraníes incorporaron las prácticas sobrenaturales de los misioneros, las sumaron a las suyas y la experiencia dio por fruto nuevas cosmovisiones. Sin desconocer los aspectos conflictivos de este proceso, nos muestra como los religiosos también se nutrieron del saber de los indígenas y ampliaron las fronteras del conocimiento científico sobre la flora y fauna americana.
El libro de la Dra. Eliane Fleck, al desplegarse en numerosos temas relacionados con el conocimiento de las prácticas médicas y la farmacopea americana, representa, para todo aquel que se proponga avanzar en esa dirección, una obra de consulta obligada para seguir pensando esos temas. La reconstrucción del contexto, la incorporación de la agencia indígena, las prácticas sociales asociadas a la medicina, el intercambio de cosmovisiones, la complementación jesuita guaraní en la construcción de nuevos conocimientos y los remedios y sus usos terapéuticos, sin duda, son puntos fuertes de esta obra que nos muestran la riqueza de pensar la antropología y la historia como enfoques necesariamente entrelazados para seguir profundizando en los procesos sociales y avanzar en nuevas direcciones de una historiografía renovada.
Mercedes Avellaneda – Docente investigadora del Instituto de Ciencias Antropológicas, Sección Etnohistoria de la Universidad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. Puán 450 oficina 504, Buenos Aires, Argentina. E-mail: bocca@fibertel.com.ar.
Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810, 1910, 2010 | Leticia Reina e Ricardo Pérez-Montfort
Obras escritas com a participação de diversos autores geralmente abordam um determinado tema a partir de múltiplos enfoques, mas este não é o caso do livro Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810, 1910, 2010; nesta obra, organizada por Letícia Reina e Pérez Montfort, 27 autores escreveram sobre três conjunturas históricas relevantes para o México, e o resultado do livro foi uma narrativa marcada pela pluralidade de assuntos e interpretações – uma História no “plural”.
Os textos reunidos no livro de Reina e Péres-Montfort registram o pensamento dos pesquisadores que participaram do seminário de especialização realizado pelo Instituto Nacional de Antropologia e História do México (INAH) e pelo Centro de Investigações e Estudos Superiores de Antropologia Social (CIESAS). A proposta do seminário consistia em promover uma discussão sobre a história do México a partir das comemorações decorrentes do bicentenário da Independência e do primeiro centenário da Revolução Mexicana, ambos completados em 2010. Leia Mais
Lugares e Memória do Século XX / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017
O presente número da Revista Clio se inicia com os textos reunidos no Dossiê “Lugares e Memória da Cultura” organizado pelos Professores Antônio Paulo Rezende (UFPE) e Augusto Neves (UNINABUCO). Seu objetivo é reunir artigos que analisem historicamente as relações culturais, destacando a sua temporalidade e como elas influenciam na construção do poder na sociedade ao longo do século XX.
No primeiro texto, Janaína Cardoso de Mello toma como objeto de estudo as representações do poder régio ilustrado a partir das relações entre arquitetura, mobiliário e história no âmbito da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Na sequência, Luciana Penna-Franca aborda a cena cultural do teatro amador carioca no final do século XIX e início do XX a partir das publicações de “assuntos teatrais” nos periódicos do Rio de Janeiro, observando sua influência na vivências artísticas e no cotidiano da cidade.
O terceiro texto do dossiê foi elaborado por Aldo José Morais Silva a partir dos debates sobre a escolha de um hino para a cidade de Feira de Santana (BA) entre o final do século XIX e o início do XX. O artigo enfoca as razões das escolhas e como elas representavam as expectativas da sociedade local em relação à sua autoimagem. A partir dos escritos de Manuel Quirino e à luz das concepções propostas por Nora, Morse e Spivak, Bruno Pinheiro analisa os lugares de memória na fase do pósabolição em Salvador (BA).
O quinto texto da coletânea especial enfoca a organização sindical dos trabalhadores em São Paulo. Alzira Lobo de Arruda Campos, Marília Gomes Ghizzi Godoy e Rafael Lopes Souza discutem as conexões e antagonismos entre as influências teóricas europeias e as características históricas do Brasil no processo de construção das organizações de luta em defesa dos trabalhadores.
O sexto texto é foi escrito por Márcio Rogério Olivato Pozzer e analisa o papel histórico das políticas públicas de patrimônio cultural para os museus no México ao longo do século XX, mas precisamente a partir da Revolução Mexicana de 1910. O dossiê, neste número, se encerra com o texto de Carolina C. de Souza Martins e Elio de Jesus Pantoja Alves sobre a experiência de pais e mães de santo no Terreiro do Egito, no Maranhão, na busca pela ancestralidade numa região do município de São Luís que desde os anos 1980 vem sendo ameaçada pela expansão do complexo portuário da capital maranhense.
Para além dos artigos que compõem o dossiê, o presente número da Revista Clio veicula também mais cinco artigos livres e duas resenhas. O primeiro artigo livre foi escrito por Anne Karolline Campos Mendonça e se intitula “As mulheres sem nome: o desenvolvimento de argumentos jurídicos baseados no estatuto feminino. Comarca das Alagoas – Capitania de Pernambuco (1716-1765)”. Nele a autora analisa como as elites coloniais faziam valer seus interesses se apropriando do discurso jurídico sobre aqueles que eram considerados inferiores, no caso específico, sobre as mulheres. Avançamos então para o século XIX, com um estudo sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul intitulado “As Companhias Colonizadoras no processo da imigração italiana em territorialidades do Vale do Taquari / Rio Grande do Sul”, apresentado por Janaine Trombini, Luís Fernando da Silva Laroque e Ana Paula Castoldi, com especial atenção para a atuação das firmas Bastos & Companhia, Cia Colonizadora Rio-Grandense e Tchener & Cia, que existiram do final do século XIX até meados da década de 1920.
Gabriela Fernandes de Siqueira é a autora do terceiro artigo livre veiculado neste número e intitulado “A questão da salubridade em Natal nas primeiras décadas do século XX na ótica dos periódicos A República e Diário do Natal”. Para elaborar seu texto, a autora utilizou, além dos periódicos citados, outras fontes tais como mensagens de governadores, leis e decretos municipais e estaduais. O artigo enfoca as contradições do processo de modernização e aplicação de medidas de higiene na capital do Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do século XX. No quarto artigo da série, nos deparamos com a história de um trabalhador tentando fazer valer seus direitos mediante uma ação na Justiça do Trabalho em 1965. Trata-se dos resultados da pesquisa realizada por Márcio Ananias Ferreira Vilela e Marcelo Goés Tavares no acervo de processos trabalhistas conservados na Universidade Federal de Pernambuco. O artigo se intitula “A peleja de João Amaro: um trabalhador rural na luta por direitos (Pernambuco, anos 1960)”. O quinto artigo livre foi escrito por Lourival dos Santos, se intitula “Por uma história do negro no sul do Mato Grosso: história oral de quilombolas de Mato Grosso do Sul e a (re)invenção da tradição africana no cerrado brasileiro”. O texto aborda uma das mais candentes questões da atualidade no Brasil. O autor analisa a oposição surgida entre o Instituto Histórico do Mato Grosso do Sul e a Fundação Palmares sobre a identificação de comunidade quilombolas naquele estado, na primeira década do atual século.
Fechando o presente número, Clio veicula uma resenha, escrita por Wallas Jefferson de Lima e enfoca o livro As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual, escrito por Faramerz Dabhoiwala e publicado no Brasil pela Editora Globo, em 2013, com a tradução de Rafael Mantovani.
A Equipe Editorial da Revista Clio agradece a todos os autores, pareceristas, revisores e colaboradores que contribuíram para a preparação deste número e deseja uma boa leitura.
George Cabral – Editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: georgecabral@yahoo.com
Antônio Paulo Rezende – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: cielo77@uol.com.br
Augusto Neves – Organizador do Dossiê. Professor da Faculdade Uninabuco. E-mail: augustonev@gmail.com
Rômulo Nascimento – Vice- editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: romuloxavier7@hotmail.com
CABRAL, George; REZENDE, Antônio Paulo; NEVES, Augusto; NASCIMENTO, Rômulo. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.2, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]
Temas de História e Cultura Indígena em Sergipe – MONTEIRO; RODRIGUES (PL)
As linhas escritas aqui compõem uma breve resenha do livro Temas de História e Cultura indígena em Sergipe, organizado pelos professores Diogo Francisco Cruz Monteiro e Kléber Rodrigues e publicado em 2016, pela Infographics, Aracaju, Sergipe. A publicação está organizada em três partes, a primeira composta por dois textos, “Ser índio no Brasil contemporâneo: novos rumos para um velho dilema”, da autoria de Clarice Novaes Mota, e “História de grupos indígenas e fontes escritas: o caso de Sergipe”, da autoria de Beatriz Góis Dantas.
A segunda parte da obra também é composta por dois capítulos, “Relação nominal dos índios de Sergipe Del Rey, 1825”, escrito por Luiz Roberto Mott, e “Alienação das terras indígenas em Sergipe no século XIX”, da lavra de Pedro Abelardo de Santana. A terceira parte contém mais dois artigos, “Os desafios pós-demarcatórios da territorialidade Xokó na terra indígena Caiçara / Ilha de São Pedro”, de Avelar Santos Araújo e Guiomar Inez Germani; “As representações sobre os índios no Ensino de História contemporâneo: como a comunidade escolar sergipana observa os indígenas nos livros didáticos”, escrito pelos organizadores, Diogo Francisco Cruz Monteiro e Kléber Rodrigues. Leia Mais
Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner/literatura e a construção da nação sul-africana/1880-1902 | Raquel Gryszczenko Alves Gomes
Quais são os caminhos para o estudo de África para além da lusofonia? Existe espaço para a publicação e pesquisa de temas distantes dos países de língua portuguesa? A pergunta anteriormente enunciada revela não somente o itinerário dos estudos africanos no Brasil, como nos deixam pistas de leitura para o texto da historiadora Raquel Gomes. Leia Mais
Paris: Capital da Modernidade | David Harvey
Conhecido como um dos grandes intérpretes do Marxismo na atualidade, David Harvey revela-se, também, como um dos maiores expoentes da chamada Critical Geography. Formado pela University of Cambridge, onde obteve seu doutorado em 1961, este geógrafo britânico tem especial afeição pelo estudo e pela análise das transformações econômicas, sociais, históricas e culturais do espaço urbano. Professor emérito de antropologia da City University of New York, Harvey explora em suas pesquisas o domínio dos diferentes circuitos do capital e os processos relacionados à intensificação do sistema de crédito e consumismo ostentatório, focando-se no estudo dos atores da produção do espaço. Essas problemáticas atravessam o caleidoscópio de suas análises: em Social Justice and the City, de 1973, ele já demonstrava um fascínio por temas relacionados ao planejamento urbano, à desigualdade de renda entre bairros ricos e pobres e à formação espacial da cidade. Por meio de uma crítica contundente, ele desenvolveu a ideia de que a formulação de uma teoria contrarrevolucionária em Geografia só seria possível via marxismo. Suas investigações têm contribuído para demonstrar como o capitalismo aniquila o espaço, no intuito de garantir sua própria reprodução, como se pode constatar em Condition of Postmodernity, de 1989. Como um dos mais destacados especialistas desse campo, Harvey também produziu reflexões a respeito das crises econômicas do capitalismo (The enigma of Capital, publicado em 2010) e das características atuais do imperialismo (The New Imperialism, publicado em 2003). Publicado originalmente em 2003, Paris: capital da Modernidade revela a preocupação do autor com questões relacionadas ao denominado “direito à cidade” (Henri Lefebvre), elemento constitutivo de sua trajetória. David Harvey esteve no Brasil em junho de 2015, para lançar a versão traduzida dessa obra no Seminário Internacional Cidades Rebeldes, momento em que debateu questões relacionadas às atividades econômicas, aos hábitos sociais, às estruturas de poder e à consolidação da expansão do sistema capitalista. Leia Mais
Storia globale. Un’introduzione – CONRAD (BC)
CONRAD, Sebastian. Storia globale. Un’introduzione. Roma: Carocci, 2015. 210p. Resenha de: PERILLO, Ernesto. Il Bollettino di Clio, n.5, p.55-60, giu., 2017.
Non considerata a rigore tra i segnali paratestuali, l’introduzione assolve a diversi compiti importanti: indicare le ragioni della trattazione del tema in oggetto; presentare il tema, esplicitando, se necessario, questioni, genesi, elementi; ricapitolarne riassuntivamente il contenuto.
Posta sulla soglia del testo, l’introduzione ne costituisce, dunque, la necessaria porta di ingresso: una mappa per la comprensione anticipata del territorio che vogliamo esplorare. In questo caso quello della storia globale: il libro di S.Conrad ci consente di averne una visionecomplessiva e articolata, capace di farci conoscereil tema ancora prima di averlo attraversatoconcretamente e utile proprio per esserne unaguida preventivamente efficace.
Un’introduzione, appunto.
Analizziamo la mappa/introduzione alla storia globale: ci mostra sostanzialmente tre luoghi e consente di rispondere a tre domande: La sua genesi: quando e com’ è nata la storia globale? Definizione e contenuti: che cosa è e di cosa si occupa la storia globale? Gli aspetti critici: quali le controversie e le obiezioni più frequenti? Cominciamo allora l’esplorazione, partendo dalla definizione di storia globale : “A un primo approccio, ancora molto generale, la storia globale definisce una forma di analisi storica nella quale fenomeni, eventi e processi vengono inquadrati in contesti globali. Con ciò non si intende necessariamente che l’indagine venga estesa all’intero globo terrestre; per molti temi i punti di riferimento saranno più limitati. Ciò significa anche che la maggior parte degli approcci di storia globale non cerca di sostituire l’affermato paradigma storico-nazionale con un’ astratta totalità del “mondo”, cioè di scrivere una storia totale del globo. Spesso si tratta più facilmente della storiografia di aree limitate, quindi non “globali”, ma piuttosto con una consapevolezza delle relazioni globali”.1 La storia globale è dunque innanzi tutto una prospettiva2, che pone in primo piano altre dimensioni, altre domande attraverso le quali traguardare il passato. Ma è al tempo stesso un tema specifico del discorso storico: per una contestualizzazione globale è spesso importante rendere conto del grado e del carattere dei collegamenti delle reti globali.3
La genesi
Quando si chiede a uno storico/a una definizione, (di solito) la riposta è il racconto di una storia: la comprensione di un fatto è custodita nella sua genesi; nei contesti e/o nei processi dentro i quali esso si è manifestato.
S.Conrad dedica i capitoli iniziali della suaintroduzione alla storia della storia globale, a partire dall’antichità, per mostrare come i concetti di “mondo” e globalità siano storicamente mutevoli e diversi a seconda dell’epoca e dei luoghi. E mette a fuoco un elemento decisivo:
“ Come qualsiasi altra forma di storiografia, anche la storia globale è sempre plasmata dalle sue condizioni di nascita e dal contesto sociale concreto nel quale viene scritta. Una prospettiva di storia globale è, a questo riguardo, prima di tutto una specifica lettura delle relazioni globali, e non significa affatto che questa visione debba anche essere capita o addirittura accettata ovunque nel mondo. Così come i testi scolastici tedeschi, francesi o polacchi si possono differenziare (nei loro interessi tematici, in ciò che omettono, ma anche nelle interpretazioni degli eventi che trattano), altrettanto le rappresentazioni della storia mondiale possono variare talvolta in maniera sostanziale.
(…) Singoli temi, ad esempio lo schiavismo, mutano il loro significato sociale in maniera basilare, a seconda se esso venga preso in considerazione dalla prospettiva dell’Angola o della Nigeria, del Brasile o di Cuba, ma anche della Francia o dell’ Inghilterra. E anche il concetto di mondo rispettivamente rilevante non è affatto omogeneo in differenti società e nazioni.
Poiché la storia globale non è un soggetto naturalmente dato ma rappresenta una prospettiva, è tanto più importante considerare da dove essa viene osservata.” (p. 45)
Tre sono gli approcci che dagli anni Novanta del secolo scorso caratterizzano la storia globale: -l’analisi di connessioni transnazionali(senza un esplicito riferimento al”mondo”): il riferimento è alla storiacomparata (ma non solo) e all’attenzioneprivilegiata alle macroregioni (OceanoIndiano, Oceano Atlantico, il continenteeuropeo nel suo complesso…); -la storia delle civiltà; -la pluralizzazione della storia globale emondiale: “conviene osservare la storia globale in una prospettiva di storia globale, per assicurarsi della relatività e della posizionalità di ogni lettura del passato globale.”(p. 63)
I contenuti
a.Gli ambiti
S.Conrad individua quattro ambiti didiscussione, all’interno dei quali attualmente gli storici riflettono sulla dinamica del mondo moderno: -la teoria del sistema-mondo: dall’approccioteorico elaborato da I. Wallerstein negli anni Settanta alle critiche successive circa la possibilità del suo utilizzo ancora oggi: superamento della cornice analitica dello Stato nazionale, uso del concetto dell’incorporazione graduale in un contesto dominato dall’Europa, attenzione ai cambiamenti strutturali di natura macrostorica; -i postcolonial studies per una lettura noneurocentrica del mondo moderno. Dopo aver messo in luce alcuni elementi critici della prospettiva postcoloniale, l’autore ne sottolinea tre aspetti ancora significativi: l’esistenza di spazi di ibridazione, acquisizioni locali, negoziazioni in condizioni coloniali accanto alla diffusione e all’adattamento come processi di transfer culturali di storia mondiale; l’attenzione alle dipendenze, interferenze, connessioni, superando l’idea che nazione e civilizzazione siano da considerare unità “naturali” della storia, contro una storiografia mondiale eurocentrica che legge lo sviluppo europeo/occidentale slegato dal resto del mondo; la considerazione che i processi di integrazione globale si realizzano entro rapporti e strutture di dominio; -le analisi delle reti: l’epoca degli Statinazionali, basati sul controllo di territori pensati come superfici in relazione tra di loro, è stata sostituita dall’epoca della connessione (merci, informazioni, uomini e donne); -il concetto di multiple modernities: al centrodell’attenzione la pluralizzazione delle linee di sviluppo della modernità e il ridimensionamento dell’assioma della secolarizzazione che avrebbe accompagnato ovunque i processi di modernizzazione.
Diversi, secondo Conrad, sono gli ambiti storiografici rivisitati in prospettiva di storia globale dalla storia economica a quella sociale, da quella geopolitica alla storia culturale e della vita quotidiana, per citarne alcuni. L’autore indica sei campi nei quali oggi la ricerca è particolarmente attiva: merci globali; storia degli oceani; la migrazione; gli imperi; la nazione; la storia dell’ambiente.
b.Le problematiche di riferimento
Quali le principali questioni della storiaglobale? Conrad le individua a partire dalle seguenti domande: “Come si può scrivere una storia del mondo e delle sue connessioni che non sia eurocentrica e la cui logica non sia prestrutturata attraverso l’uso di concetti occidentali? Da quando si può propriamente parlare di un contesto globale, e di una storia della globalizzazione? Ha corso la storia del mondo sempre verso l’egemonia dell”’Occidente”, come essa si è manifestata nel XIX e XX secolo, e quali erano le cause di questa divergenza tra Europa e Asia? Infine, c’è stato un potenziale di modernizzazione anche al di fuori dell”’Occidente”, e quale significato hanno avuto le rispettive risorse culturali di società premoderne per la transizione a un mondo moderno globalizzato? “ (p. 95) Sono questioni importanti: potrebbero (dovrebbero?) essere domande guida anche per la storia generale insegnata. Vediamole nel dettaglio: Eurocentrismo Per molto tempo nella storiografia mondiale l’Europa (e la master narrative eurocentrica) era vista come l’unico soggetto attivo.
Nell’assunzione critica dell’eurocentrismo si tratta di trovare un equilibrio tra il superamento di questa impostazione e la non marginalizzazione dell’Europa, distinguendo tra eurocentrismo come dinamica del processo storico (incomprensibile senza il riferimento all’egemonia dell’Europa occidentale e più tardi degli Stati Uniti, in un processo che non fu lineare e che ebbe inizio solo nel XIX secolo) ed eurocentrismo come prospettiva: presunti concetti analitici come nazione, rivoluzione, società o progresso trasformarono un’esperienza parziale, quella europea, in una lingua teorica universalistica, che prestruttura già l’interpretazione dei rispettivi passati locali.
Periodizzazione
Anche qui ha senso distinguere in modo euristico tra globalizzazione come processo e globalizzazione come prospettiva. In merito al primo punto: la maggior parte degli storici pone l’inizio di una connessione globale al principio del XVI secolo. La seconda possibile cesura di questa storia cade nel XIX secolo: fino ad allora il mondo era ancora un mondo delle regioni, strettamente unito da molteplici reti (reti commerciali e correnti migratorie così come comunanze culturali). Ma solo dalla metà del XIX secolo si giunse a una connessione sistematica, all’integrazione globale delle società, in ragione della sovrapposizione di «due macroprocessi reciprocamente dipendenti» (Charles Tilly) del mondo moderno: la formazione e la diffusione del sistema degli Stati nazionali e la creazione di un meccanismo universale di mercati e di accumulazione di capitale.
Si può parlare di una nuova fase della globalizzazione dal 1990? Conrad mette in discussione questa ipotesi, sottolineando come, in generale, una storia della globalizzazione non dovrebbe essere una narrazione lineare della sempre più grande connessione del mondo.
Altro aspetto fondamentale: la globalizzazione come prospettiva. Nel XIX secolo la globalizzazione ha presupposto la diffusione di norme euro-americane, in condizioni di colonialismo e di estensione universale dello Stato nazionale. All’interno di questo paradigma le differenze culturali erano state gerarchizzate e disposte in scala temporale: la connessione del modernizzazione complessiva e di un’omogeneizzazione graduale. Dal tardo XX secolo, sostiene Dirlik, ciò è mutato: la differenza culturale non appariva più come arretratezza, ma era concepita come alternativa a concetti eurocentrici o, meglio, universali. La globalizzazione e l’insistenza sull’ autonomia culturale andavano di pari passo. E ancora: l’aumento d’interazione globale addirittura rafforzava e produceva specificità culturali. Invece di una temporalizzazione della differenza, nel senso della costruzione di diversi gradi di sviluppo, il mondo globale del XXI secolo ha vissuto addirittura uno spatial turn. Progetti di modernità culturalmente diversi e concorrenti potevano dunque essere pensati come esistenti fianco a fianco contemporaneamente.
Asia e Europa
Perché l’Europa? In che cosa consisteva il Sonderweg (“la via speciale”) europeo? È davvero esistito? Nella lunga discussione su questo tema, si possono distinguere essenzialmente tre posizioni. La prima rimandava a Marx e poneva in primo piano la questione dei modi di produzione. In opposizione a ciò, gli storici che si orientavano all’opera di Weber insistevano sui fattori culturali e istituzionali. Sia l’approccio classicamente marxista che quello weberiano privilegiano, secondo Conrand, modelli esplicativi endogeni e si limitano a una narrativa che spiega l’ascesa dell’Europa da sé stessa, internalisticamente.
A partire dai tardi anni Novanta è stata pubblicata una serie di lavori che hanno spostato il terreno sul quale era stata condotta questa discussione in maniera sostanziale. Conrad passa in rassegna i contributi revisionistici della cosiddetta California School (l’espressione designa storici come Pomeranz, Wong, Frank) che hanno proposto una spiegazione della dinamica dell’economia inglese non più endogena e non basata su lunghe continuità culturali e istituzionali. Al centro di questa lettura la prospettiva comparata, lo sguardo dalla Cina, l’accentuazione di interazioni transregionali, l’attenzione alle origini politiche della rivoluzione industriale e l’enfatizzazione di fattori casualmente coincidenti (conjunctural foctors).
Early modernities
In generale si tratta di capire quale significato possa essere attribuito, nel passaggio al mondo moderno, alle diverse risorse culturali di società non occidentali.
Gli approcci più interessanti della early modernity si riferiscono a un periodo dell’età moderna, che durò all’incirca dal 1450 al 1800, un’epoca durante la quale si costituirono le forze e le strutture che produssero trasformazioni in collegamento tra di loro, ma per nulla identiche, che poi sfociarono nel mondo del XIX secolo: solo nell’ambito dell’integrazione imperialistica e capitalistica del mondo dopo il 1800 esse furono gradualmente incorporate negli ampi processi che plasmarono il mondo moderno.
La più estesa argomentazione della early modernity è stata sinora formulata per la Cina e in generale per altri paesi asiatici (India e Giappone) Le critiche I progetti di storia mondiale e globale non sono stati esenti da critiche e obiezioni, anche se le riserve, in fondo, non hanno messo in discussione in modo radicale tale approccio. Nell’illustrare i principali limiti della ricerca di storia globale, l’autore vuole dare un contributo costruttivo per l’approfondimento di questa prospettiva.
La riserva metodologica
Gli storici globali non si basano su fonti primarie ma sono vincolati del tutto alla letteratura secondaria. Del resto questa è anche la situazione delle opere generali di storia nazionale che si basano su una visione d’insieme dei risultati di ricerche “locali”.
La strumentazione concettuale
Le nozioni/concetti con cui si scrive la storia delle connessioni globali sono quelle/i dela “zavorra” eurocentrica: feudalesimo, nazione, religione…? Non c’è il rischio di omologare concettualmente situazioni diverse, e di appiattire differenze e particolarità? Il concetto di globalizzazione rischia di essere un macroconcetto poco utilizzabile in contesti specifici che presentano dinamiche diverse.
La finalizzazione teleologica Le prospettive storico-globali corrono il rischio di costruire una genealogia dell’attuale processo di globalizzazione come svolgimento quasi inevitabile e naturale.
La storia e la connessione globale limitate alle sole relazioni con l’Europa
L’esempio è quello della storia dell’India che sarebbe stata liberata dalla stagnazione solo con il colonialismo, mentre già in epoca precoloniale intratteneva rapporti economici e culturali importanti con l’Africa, l’area araba e il Sud-Est asiatico.
La ricerca storica globale secondo Conrad deve affrontare una serie di questioni e evitare alcuni pericoli per poter sviluppare un proficuo dialogo critico al suo interno: il rischio di sostituire l’eurocentrismo con il sinocentrismo (come nel libro ReOrient di Frank); la sopravvalutazione dei fattori esterni, assegnando particolare valore al contesto spaziale nella spiegazione di eventi e processi; la sopravvalutazione delle connessioni, dei punti di contatto trascurando le particolarità; la feticizzazione della mobilità; la marginalizzazione degli approcci che soprattutto negli anni Ottanta hanno messo in evidenza l’importanza delle dimensioni storico-culturali e di storia del genere del passato; la tentazione di dimenticare che la storia globale è pur sempre una prospettiva per gettare un nuovo sguardo sul passato, non semplicemente un oggetto che esiste senza problemi.
Conrand insiste, come abbiamo già detto sulla pluralizzazione della storia globale e la “posizionalità” di ogni lettura del passato globale. E cita lo studioso della letteratura S. Krishan che mette in evidenza i meccanismi linguistici e narrativi attraverso i quali il mondo viene creato come unità connessa e interdipendente:
«Nelle discussioni recenti sulla globalizzazione viene tacitamente accettato che l’aggettivo “globale” si rivolga a un processo empirico, che ha luogo “lì fuori” nel mondo. [ … ] Al contrario io parto dal presupposto che “globale” descriva un modo della tematizzazione, o un modo di occuparsi del mondo». La lingua del globale suggerisce una trasparenza, un accesso diretto a un processo da osservare empiricamente: in effetti, però, si tratta di un modo che riassume diversi fenomeni in un comune discorso e così lo rende controllabile. Esso non rimanda al mondo in sé, ma alle condizioni e alle implicazioni dei modi istituzionalizzati per mezzo dei quali i diversi terreni e popoli di questo mondo vengono resi leggibili all’interno di un’unica cornice» (…). Il globale rappresenta la prospettiva dominante dalla quale il mondo viene prodotto come rappresentabile e controllabile». (p. 79).
[Notas]1 S. Conrad, Storia globale. Un’introduzione, Roma, Carocci, 2015, p.18.
2 “Per fare un esempio, si può osservare il Kulturkampf in Baviera nel XIX secolo da un punto di vista di storia locale, con una problematizzazione storico-culturale o di storia di genere, o come parte della storia tedesca. Però lo si può anche collocare in maniera storicoglobale e intendere come espressione dei contrasti tra lo Stato liberale e le Chiese, che furono condotti nel XIX secolo in molte parti del mondo: in tutta Europa, ma anche in America Latina o in Giappone”. Ibidem, p. 20.
3 “Il crash della borsa di Vienna nel 1873 ebbe un’ importanza differente dalle crisi economiche del 1929 e 2008, perché il grado di collegamento dell’economia mondiale, ma anche l’intreccio mediatico degli anni intorno al 1870, non aveva ancora raggiunto la stessa densità che in seguito”. Idem.
Ernesto Pirillo
[IF]“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930 – CUNHA (Tempo)
CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930. Campinas: Unicamp, 2016. Coleção Históri@ Illustrada, Resenha de BRASIL, Eric. “Muitos caminhos até chegar ao samba”. Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.
Quantos gêneros musicais podem ser tão identificados a uma nacionalidade quanto o samba no Brasil? O próprio termo samba tem remetido ao país nos mais variados lugares do mundo desde meados do século XX. Samba, Brasil, brasilidade, juntamente com carnaval, futebol e sensualidade, têm comumente andado lado a lado no imaginário global. Meios de comunicação, senso comum, as mais variadas produções artísticas e intelectuais sedimentaram tais associações ao longo do último século. A própria atuação, performance, memória e práticas culturais de sambistas por décadas vêm valorizando e ressignificando as relações entre o gênero musical e a ideia de nação.
Essa construção tornou-se tão forte e eficaz com o avançar do século XX que mesmo a produção acadêmica sobre a história do samba e seus agentes recorrentemente corroborou de forma acrítica seu caráter de símbolo nacional. Outras vezes silenciou seus conflitos e disputas internas, fortalecendo a percepção da história do samba como unívoca e que teria trilhado um caminho linear desde o período da escravidão até os dias atuais. A exceção mais comum dessa leitura harmoniosa dos caminhos do samba esteve nos debates sobre sua origem, local de nascimento “autêntico”: Rio ou Bahia? Morro ou asfalto? Zona portuária ou Estácio?
O novo livro de Maria Clementina Pereira Cunha, “Não está sopa”: samba e sambistas no Rio de janeiro, de 1890 a 1930 busca justamente enfrentar toda essa cultura histórica que tendeu a simplificar e homogeneizar a história do gênero e de seus agentes. Realmente, não é sopa enfrentar um tema tão arraigado no senso comum e nas afetividades populares brasileiras. Mas a autora não foge à briga, e seu livro é um ótimo exemplo da constante necessidade de analisarmos sentidos, possibilidades, aspirações, projetos, rivalidades, tensões, conflitos e alianças costurados na experiência urbana por homens e mulheres que precisaram dialogar e enfrentar sujeitos e grupos que defendiam perspectivas distintas.
Em “‘Não está sopa’”, a autora executa uma verdadeira aula de como realizar uma história social da cultura. Seu objetivo não é simplesmente caracterizar formas culturais, tipos de instrumento, danças ou ritmos, nem mesmo narrar fatos curiosos sobre cada personagem que frequentou rodas de samba. Muito pelo contrário, o objetivo central é compreender os sentidos criados e as escolhas feitas pelos sujeitos sociais que participaram dessas rodas. A análise recai sobre a experiência social de cada um deles, sempre levando em consideração contatos, redes, estratégias e caminhos, não apenas no momento da performance cultural, mas principalmente no restante do ano – nas disputas por emprego e moradia, nas relações familiares e religiosas, no conflituoso convívio com as forças policiais e autoridades republicanas. Nas palavras da autora, o foco está na
[…] vida cotidiana dos participantes e frequentadores dessas rodas [de samba], suas percepções e comportamentos em circunstâncias determinadas. E, naturalmente, nas escolhas, nas disputas, nos valores compartilhados entre os vários grupos, nas relações entre esses indivíduos especiais e a multidão de anônimos que conviviam nos bares e cafés, cortiços, terreiros ou, eventualmente, nas cadeias. (p. 86)O carnaval, as rodas de samba, as letras, as músicas e os instrumentos são portas de entrada para encontrarmos personagens complexos e historicamente relevantes para nosso entendimento, tanto da história do gênero quanto da própria vida cotidiana dos trabalhadores pobres da cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.
O recorte cronológico em si já demonstra a preocupação da autora com as diferenças mais do que com os consensos, com a diversidade mais do que com a homogeneidade. Esse período foi escolhido justamente por permitir o estudo das variadas possibilidades estéticas, artísticas, musicais que se chocavam nas ruas da capital federal. Estudar o período entre a última década do século XIX e as três primeiras do século XX permite, segundo Cunha, compreender o processo liderado por “indivíduos pobres, em sua maioria negros, sem o glamour que a posteridade lhes atribui” (p. 12), composto por uma musicalidade variada que só depois de algumas décadas levaria ao “samba moderno”.
Para tal, as fontes foram reunidas em mais de 10 anos de pesquisa. A autora explica que seu método principal consistiu em confrontar os processos criminais com os dados biográficos dos sujeitos. Esse método é complementado pela análise de crônicas, literatura, jornais, depoimentos, músicas e imagens (p. 13).
Os dois últimos tipos de fontes citadas, músicas e imagens, são fundamentais no desenvolver do livro, tanto por seu carácter analítico quanto por possibilitar ao leitor um relance vívido da análise histórica que vem sendo construída por Cunha. O livro, por ser em formato digital (Epub-2 ou Epub-3), vem recheado de quase duas centenas de imagens, que podem ser abertas e contempladas pelo leitor, e por mais de 40 gravações originais, muitas delas nas vozes dos próprios personagens cujas trajetórias são analisadas nos quatro capítulos.
Esses recursos audiovisuais transformam a leitura em uma experiência agradável e complexa, ajudando na imersão do leitor na temática estudada. Tais recursos são bem explorados pela autora – cada imagem e música se encaixam no texto, sempre inseridas em momentos que contribuem para a leitura e a compreensão dos argumentos do livro, e não apenas como exemplos ilustrativos. Como fica claro logo na introdução, a autora escolhe reduzir o número de citações e referências bibliográficas, o que torna o texto mais dinâmico – mesmo que dificulte a identificação de alguns debates e críticas presentes no texto.
O livro apresenta quatro capítulos, além da introdução, de fácil leitura. O Capítulo 1, “Uma questão de berço” (p. 18), tem como objetivo principal questionar as “origens” mais comuns atribuídas ao samba. Caracteriza com maestria que os debates sobre a origem do samba são estéreis e pouco, ou nada, têm a oferecer para o entendimento do gênero e de seus agentes; consegue deixar claro para os leitores que os debates acerca do lugar de “nascimento” do samba falam muito das disputas entre grupos coevos, e que é importante pensarmos justamente sobre os motivos que levaram a tais “origens” serem defendidas por determinados grupos. Busca também um debate sobre o termo “Pequena África”, cunhado por Heitor dos Prazeres, e como a história social pode relativizar seu uso. Por meio de fontes policiais, judiciais e de censos, busca caracterizar a região em sua multiplicidade, e não apenas como um espaço negro.
O Capítulo 2, “Gente da lira” (p. 54), analisa as relações entre a atuação policial e a diversidade racial, os padrões demográficos e habitacionais das áreas centrais do Rio de Janeiro, especialmente na freguesia de Santana. Desenvolve mais detalhadamente a análise da região popularmente conhecida como “Pequena África”, comprovando ser um espaço muito mais variado e complexo do que a expressão de Heitor dos Prazeres denotaria. Ao analisar a demografia, os crimes e a ação policial em Santana, a autora é capaz de compreender os padrões e motivos de prisão, os espaços de moradias, convívio e rivalidade. Conclui que, em Santana, a ação policial esteve voltada para o controle social, mais do que para a repressão a crimes, como assassinatos e roubos (p. 59), revelando a preocupação das forças republicanas em manter essas regiões sob o signo da “ordem”.
Os Capítulos 3, “Gente de fora” (p. 94), e 4, “Da gema” (p. 150), apresentam estruturas e estratégias semelhantes e são os melhores do livro. Ambos têm como objetivo analisar experiências de sujeitos ligados ao samba por suas relações com a polícia e a justiça, assim como caracterizar as redes, alianças, rivalidades dos grupos nos quais estão inseridos e com os quais se opõem.
No terceiro, a análise recai sobre os sujeitos ligados aos candomblés da região de Santana, da zona portuária, bastante identificados com migrantes do Nordeste, especificamente da Bahia. A autora realiza importante estudo sobre esse grupo, o impacto de sua presença, seu tamanho e as redes de sociabilidade por ele construídas nas ruas de Santana. Cunha consegue evidenciar que tal grupo não constituía uma comunidade ou elite à parte dos demais trabalhadores da região; que não foi demograficamente superior a outros tantos grupos de migrantes e cariocas. Dedica-se, ademais, ao estudo dos centros religiosos e de sua importância na formação de conexões entre esses indivíduos, assim como do papel das mulheres na formação dos vínculos identitários e na ampliação e preservação de espaços de sociabilidade e proteção.
Na parte final do mesmo capítulo, realiza alguns estudos de caso de membros ilustres da comunidade “baiana” por meio de processos criminais, buscando compreender os caminhos e as estratégias costuradas por esses indivíduos ao se relacionarem com a polícia e as autoridades republicanas. Conclui resumindo os motivos que levaram à constituição de uma ideia quase mítica dessa comunidade baiana como foco irradiador de uma cultura popular carioca nos anos 1900 e 1910.
O quarto capítulo faz movimento bastante semelhante ao anterior, mas altera o espaço e os sujeitos: a área estudada é a região do Estácio, com a zona do Mangue e do meretrício; os casos estudados são protagonizados pelos “malandros” sambistas da região do morro de São Carlos. Busca marcar claramente as diferenças com a região estudada no Capítulo 3: o Estácio seria caracterizado por uma pobreza maior, mais repressão policial, sofreria com o impacto da região do Mangue e sua zona do meretrício com suas mazelas. Logo, conclui Cunha, o samba e o carnaval seriam os únicos espaços identitários aos quais seria possível se agarrar, visto que, nessa área, as casas religiosas, como os candomblés, e as redes de solidariedade, como as costuradas pelos descendentes dos migrantes baianos, não teriam conseguido se consolidar com tanta força como em Santana. Todavia, tais constatações podem ser relativizadas e tornadas complexas com novas pesquisas sobre a região e a influência de outros grupos, especialmente os migrantes e seus descendentes do Vale do Paraíba fluminense, de Minas Gerais e de São Paulo (Abreu e Dantas, s.d.; Abreu, Agostini e Hebe, 2016; Barbosa, 2015; Costa, 2015).
Com esse breve sumário dos capítulos, fica evidente os muitos acertos ao longo das mais de 200 páginas de seu novo livro. Autora experiente da história social da cultura,2 Cunha defende acertadamente que “o carnaval e as rodas de samba podem ser um prato cheio para perceber, em um plano mais geral, [a] multiplicidade” nessa história. Em seu estudo, podemos aprender “sobre os limites, escolhas e alternativas que se ofereciam àqueles homens e mulheres que cantavam, dançavam ou se divertiam em torno do som de violas, cavaquinhos, pandeiros, tambores […] revelando suas formas de reivindicar e se dar a público, seus projetos e aspirações” (p. 11).
Seu foco está na multiplicidade de agentes; seu esforço é compreender os diferentes sentidos elaborados pelos variados grupos sociais; a importância dada aos contatos entre os trabalhadores urbanos com as forças republicanas – polícia, justiça, políticos -, intelectuais e jornalistas; o estudo de trajetórias individuais e a caracterização dos grupos e de suas rivalidades internas. Elementos que representam uma enorme contribuição, tanto para a história do samba quanto para a história da cidade do Rio como um todo, principalmente para o período da Primeira República, que por muito tempo foi relegado a segundo plano pela historiografia.3
Um ponto nevrálgico do livro é a questão racial. Por um lado, está constantemente presente nas fontes; por outro, o leitor fica com a percepção de que uma análise mais detalhada sobre racismos e racialização poderia ter suscitado novos questionamentos ao longo de “’Não tá sopa’”. Nas palavras de Cunha:
Ainda que a racialização das relações sociais e o racismo explícito das elites republicanas impregnassem o dia a dia dos trabalhadores da cidade, os espaços gestados pelos antigos escravos, especialmente aqueles relacionados ao carnaval ou a outras formas de lazer urbano, já encontravam novos parceiros em sua construção. Análises das formas de sociabilidade dos trabalhadores cariocas nesse período evidenciaram que os grupos que se organizaram para a festa e a folia – onde frequentemente os negros tinham a maioria, mas raramente a exclusividade – tiveram um grande peso nesse processo e figuraram entre aqueles que sofreram maior controle ou foram objeto das mais duras iniciativas no dia a dia da polícia local. (p. 10)
Apesar desse parágrafo indicando a importância da questão racial na configuração das rodas de samba como espaço de autonomia protagonizados por homens e mulheres negros, as escolhas teóricas da autora se voltam mais para as dimensões sociais dos trabalhadores da cidade. Apesar de muitas fontes e personagens colocarem essa questão em evidência, e Cunha apontá-las para o leitor, o peso do racismo na história do samba ainda fica em aberto.
Sobre o tema, após afirmar que a palavra samba estivera associada a sociedades carnavalescas e dançantes de trabalhadores “de várias procedências e cores” desde o século XIX (p. 11), a autora afirma:
Ainda assim, é necessário enfatizar que a absoluta maioria dos sambistas que vamos encontrar nas páginas seguintes, no papel de protagonistas dessa história, é constituída por descendentes de escravos. Impossível ignorar essa marca, inscrita na cor de suas peles e nas memórias aprendidas de seus pais e avós. Isso não significa, entretanto, que o samba possa ser tomado de antemão como uma manifestação exclusiva da “raça” ou de uma cultura própria desses setores – e, muito menos, como prática unívoca e isenta de conflitos. (p. 11)
A autora faz um contraponto, talvez muito rígido, ao deixar subentendido que a única possibilidade de pensar a importância da questão racial na formação do samba é a defesa de uma cultura negra essencializada e unívoca. Critica acertadamente interpretações que, carregadas de viés ideológico e político, fariam uma leitura do samba como exemplo de uma cultura negra imóvel. Contudo, essa não é a única forma de se trabalhar com tal perspectiva. Há uma vasta bibliografia sobre identidade, cultura e questões raciais que vêm, por décadas, criticando essa interpretação essencializada de cultura negra – Paul Gilroy (2000), Stuart Hall (2003), Mintz e Price (2003), Matthias Röhrig Assunção (2005) e Kim Butler (1998), apenas para citar alguns exemplos – e propondo interpretações que levem em consideração as inovações, invenções, ressignificações que não impedem tanto os sujeitos históricos quanto os estudiosos de pensar sobre identidades e culturas negras em contextos como o Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.4
Ou seja, a multiplicidade defendida e comprovada pela autora na história do samba não inviabilizaria pensar simultaneamente a racialização, o racismo e o antirracismo a partir das mesmas fontes. Como a análise de Cunha valoriza e comprova as trocas e diversidades na história do samba e a importâncias delas para as experiências cotidianas dos trabalhadores cariocas, debates sobre crioulização, diáspora africana e Atlântico Negro podem suscitar novas perguntas e possibilidades sobre o mesmo tema em novas pesquisas.
Os principais exemplos dessa questão são encontrados nos Capítulos 1 e 2. Em ambos, Cunha se dedica a entender a região da “Pequena África” como um espaço de grande heterogeneidade racial, o que fica evidente com as fontes e análises apresentadas. Entretanto, ela não deixa de notar que há uma “racialização do perigo”: “ainda que os brancos constituíssem a maioria da população, o contingente de presos negro e pardos era proporcionalmente bem maior que sua presença demográfica” (p. 61).
Segundo ela, as diferenças vividas no cotidiano da região obrigaram seus moradores
[…] a engendrar formas de diálogo permanente, produzindo novas identidades, reafirmando laços antigos ou inventando tradições […]. A despeito do racismo que levava descendentes de escravos com mais facilidade que brancos às cadeias das delegacias ou à casa de detenção, o que as evidências policiais revelam é, antes que tudo, a intensa mistura e a convivência entre trabalhadores brancos e negros, de diferentes origens nacionais, no enfrentamento de dificuldades da vida diária. (p. 61; grifo nosso)Esse último parágrafo tende a minimizar um componente crucial na vida desses homens e mulheres negros que formaram a grande maioria dos sujeitos estudados por Cunha no livro: o racismo diário, que impactava (e ainda impacta) as possibilidades, horizontes de expectativa e mesmo a vida e morte de imensa parcela da população carioca. Pesquisas recentes vêm buscando justamente pensar as tensões raciais na cidade ao longo da Primeira República, e sem dúvida têm bastante a dialogar com os argumentos de Cunha.5
Uma questão delicada está presente na escrita do Capítulo 4, “Da gema” (p. 150). Ao lermos as trajetórias de “malandros” da região do Estácio, especificamente as histórias de Baiaco e Brancura, nos deparamos com casos policiais gravíssimos, envolvendo estupro, lenocínio, entre outras formas de violência desses homens contra mulheres nas ruas da cidade. São casos extremamente graves, como navalhadas no rosto de prostitutas e um evento de possível estupro coletivo. Ao lê-los, me senti um tanto incomodado com uma escrita leve e corriqueira que tratou tais atos de violência como “peripécias” (p. 166) ou acontecimentos “rocambolescos” (p. 171). Obviamente, não cabe ao historiador realizar juízos de valor anacrônicos e pessoais sobre os sujeitos em questão. Contudo, talvez fosse preciso um cuidado maior com a escrita – principalmente pela trajetória da autora em trabalhar questões de gênero ao longo da carreira – para evitar o que pode soar como complacência com as atitudes misóginas desses sujeitos históricos – mesmo que não seja o que a autora gostaria de transmitir.
Ao final, o livro se mostra uma importante contribuição para compreendermos as experiências cotidianas de trabalhadores homens e mulheres, majoritariamente negros, na vida cultural, social e política da então capital federal. Também nos possibilita compreender os caminhos do protagonismo desses sujeitos na consolidação do samba como gênero musical entre as décadas de 1920 e 1930, em um processo iniciado ainda no século XIX. Cunha, pioneira no estudo de práticas culturais pelo arcabouço da história social, desvela a multiplicidade de agentes envolvidos nesses caminhos. Uma heterogeneidade tão intensa que, sem dúvida, suscitará novas perguntas e pesquisas no afã de desvendar novos sentidos dessa história plural.
Referências
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2Autora de obra fundamental sobre o carnaval carioca do mesmo período (Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001) e de outros estudos reconhecidamente importantes sobre a temática.
3Sobre as novas pesquisas que buscam analisar novos aspectos durante a Primeira República, ver Abreu e Gomes (s.d.), Dantas (2010) e Brasil (2016b).
4Perspectiva que venho colocando em prática em pesquisas recentes. Ver Brasil (2016a e 2016b).
5Alberto (2011), Silva (2015), Domingues (2014), Hertzman (2013), Brasil (2016b), Abreu, Agostini e Mattos (2016), Barbosa (2015) e Costa (2015).
Eric Brasil – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus dos Malês – São Francisco do Conde (Ba) – Brasil. E-mail: profericbrasil@unilab.edu.br.
Hacia otra historia de América: nuevas miradas sobre el cambio cultural y las relaciones interétnicas – FEDERICO (RBH)
FEDERICO, Navarrete Linares. Hacia otra historia de América: nuevas miradas sobre el cambio cultural y las relaciones interétnicas. México: Universidad Nacional Autónoma de México (Instituto de Investigaciones Históricas), 2015. 178p. Resenha de: KALIL, Luis Guilherme Assis. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.
Pensemos em um membro de uma comunidade indígena do centro da Nova Espanha no século XVI. Ele poderia ter identidades culturais e de gênero, praticar determinado ofício, ser cristão e, no campo das identidades étnicas, estar associado a seu “barrio” e comunidade além de ser vassalo da Coroa espanhola. Esse exemplo hipotético analisado por Federico Navarrete Linares revela muitos dos temas abordados em sua obra, associados, principalmente, aos conceitos de alteridade e identidade.
Nos dois ensaios que compõem a obra,2 o professor da UNAM apresenta um amplo panorama das reflexões associadas a esses conceitos dentro da história do continente americano, bem como propõe caminhos de interpretação. Com esse intuito, Navarrete amplia os recortes temporal e geográfico em sua análise, adotando uma perspectiva continental ao longo de mais de cinco séculos, sob o argumento de que, a despeito das especificidades, existiriam muitas convergências entre as trajetórias históricas dos países americanos, como o pertencimento a um “sistema comum” centrado no mundo Atlântico.3 Da mesma forma, todos teriam se organizado após a independência dentro do marco das novas ideias liberais, o que o leva a defender a importância de uma perspectiva compartilhada – mais do que comparada – da história da América.
Em seu primeiro ensaio – “El cambio cultural en las sociedades amerindias: una nueva perspectiva” -, Navarrete analisa os diferentes tipos de relações culturais estabelecidas pelos ameríndios a partir dos primeiros contatos com o Velho Mundo, passando pelas múltiplas formas de resistência, alianças e lutas por direitos. O historiador inicia o texto analisando as formas em que os índios foram concebidos como objetos de conhecimento e dominação e os consequentes projetos de transformação cultural desenvolvidos. Entre os séculos XVI e XVII, a dimensão religiosa teria sido o foco principal de atenção dos europeus acerca das culturas ameríndias. Dessa forma, a transformação cultural dos considerados “bárbaros” e “pagãos” passaria, necessariamente, pela conversão. No século XVIII, com a ascensão das ideias ilustradas e do conceito de civilização, a religião teria perdido espaço para a educação como estratégia de incorporação dos indígenas. Uma nova mudança teria ocorrido a partir da segunda metade do século XIX, com a crescente hegemonia do pensamento científico associada ao evolucionismo biológico e cultural e a ideais positivistas. Nesse período de consolidação dos Estados nacionais, teriam surgido dois modelos de atuação diante da “raça” indígena: as políticas de mestiçagem, adotadas em países como Brasil e México, e de segregação estrita, presentes nos Estados Unidos e na Guatemala.
No século XX, Navarrete identifica o surgimento de outro projeto de interpretação e atuação sobre as culturas ameríndias: a teoria da aculturação, que reforça a pluralidade cultural e teria se institucionalizado mediante políticas que buscavam facilitar a integração final das culturas indígenas menos avançadas à cultura nacional. Nas últimas décadas, outras teorias teriam ganhado força, como as abordagens que destacam a resistência indígena diante dos europeus e as continuidades culturais com o período pré-hispânico, as interpretações multiculturais (associadas a diferentes formas de organização indígena que visam reforçar seu papel como atores políticos) e os projetos baseados em conceitos como o de hibridação e mestiçagem, que negam a existência de identidades ou culturas “puras”.4
Navarrete enfatiza que todas essas propostas não se limitaram ao campo intelectual, estabelecendo estreitas relações com as políticas de dominação e transformação cultural estabelecidas nos últimos cinco séculos. Além disso, seriam marcadas por forte conteúdo moral, baseado em concepções universalistas de verdade e sobre o curso da história. Mas o autor também ressalta que todas elas encontraram entraves e limitações, relacionados às divergências existentes entre os missionários, funcionários da Coroa ou dos Estados independentes e às formas de resistência, adaptação e criação por parte dos ameríndios.
Ao final, o autor substitui o caráter descritivo e analítico por uma abordagem propositiva, visando apresentar “un marco alternativo de comprensión de las transformaciones culturales de las sociedades amerindias” (p.15). Com base no conceito de rizoma proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, Navarrete propõe uma abordagem das trocas culturais que prescinde de premissas como a unidade das culturas e a existência de fronteiras claras entre elas, além de colocar em xeque a ideia de que a “entrada de elementos exógenos debe provocar necesariamente una transformación en el conjunto de la cultura de un grupo y, sobre todo, en sus identidades culturales y étnicas y que el valor identitario de los rasgos externos está determinado por su origen” (p.47). Adotando essa perspectiva, o autor problematiza visões que abordam a conversão ao cristianismo ou a adoção do idioma espanhol como rupturas irreversíveis, apontando o conceito de etnogênese5 como importante ferramenta de interpretação para ressaltar a capacidade de invenção, renovação e redefinição cultural e étnica por parte dos indígenas, bem como superar perspectivas que veem as trocas culturais como um “jogo de soma zero”, onde a adoção de um elemento cultural ou identitário externo significaria necessariamente a perda de outro elemento indígena, gerando uma dissolução de sua identidade étnica (p.81-82).
No segundo ensaio, “Estados-nación y grupos étnicos en la América independiente, una historia compartida”, Navarrete concentra suas atenções no período pós-independência com base nas questões que envolvem a construção de identidades dentro dos Estados nacionais. Com a proposta de ressaltar que as definições das diferenças entre grupos humanos são produto de circunstâncias históricas e sociais de cada sociedade (não o reflexo de uma realidade biológica, racial ou cultural), o autor apresenta um panorama da dinâmica dos “regimes das relações interétnicas”, ressaltando os aspectos comuns a todo o continente bem como algumas especificidades nacionais.
O primeiro regime abordado é o “estamentário”, presente em países que conservaram durante parte de sua história independente a categorização étnica e a exploração do trabalho forçado, como a escravidão africana nos Estados Unidos e no Brasil e a tributação de indígenas bolivianos, peruanos e guatemaltecos. Em seguida, viriam os “regimes liberais discriminatórios”, implantados em quase todo o continente durante o século XIX e caracterizados por assumir a concepção liberal de cidadania universal e igualitária ao mesmo tempo que excluía amplos setores da população, formando o que Navarrete denomina como uma “cidadania étnica”. Os regimes “integradores” teriam surgido no século XX em países como México, Argentina e Brasil com uma perspectiva da nação como unidade racial, muitas vezes baseada na mestiçagem. Por fim, o historiador analisa os “regimes multiculturais”, surgidos na América do Norte a partir da década de 1960 e que teriam se espalhado pelo continente com a premissa da nação como um conjunto de grupos distintos cujos direitos deveriam ser reconhecidos e protegidos. Para o autor, esse novo modelo mantém e institucionaliza as diferenças entre uma maioria hegemônica e as minorias definidas como diferentes, além de conceber as identidades culturais e étnicas dos grupos minoritários como uma realidade quase inamovível.
Em ambos os ensaios, podemos observar que Navarrete se preocupa em ressaltar o caráter fluido, múltiplo e histórico das culturas e identidades, em detrimento das abordagens que as imobilizam e essencializam. Outro aspecto comum é a busca por definir e sistematizar conceitos, projetos de transformação cultural e regimes de relações interétnicas tendo como premissa um recorte continental (ainda que dedique atenção às especificidades nacionais). Dessa forma, o autor aproxima a proibição do consumo de chicha na Colômbia, a perseguição à capoeira no Brasil e as leis Jim Crow nos Estados Unidos como práticas discriminatórias associadas a regimes liberais (p.134-135). Como apontado por Berenice Alcántar Rojas na introdução do livro, essa característica se revela como uma das principais virtudes, mas, simultaneamente, uma limitação da obra (p.12). Nesse mesmo sentido, a identificação de grandes movimentos, projetos ou regimes ao longo dos séculos sugere uma linearidade combatida pelo próprio autor.
Contudo, ao final, esta obra se apresenta como importante contribuição que aprofunda conceitos e questões fundamentais não só às pesquisas acerca da História das Américas, mas também a debates que ocupam espaços centrais na política e na cultura brasileira e de outros países americanos, como as políticas de ações afirmativas e as demarcações de terras para grupos indígenas e comunidade quilombolas, que ganham novos contornos quando analisadas sob uma abordagem continental.
Notas
2 Disponível gratuitamente em: http://www.historicas.unam.mx/publicaciones/catalogo/ficha?id=633.
3 Navarrete faz referência nesse trecho à abordagem de “sistema-mundo” trabalhada por Immanuel Wallerstein, apontando seu caráter “eurocêntrico”, que impediria maior compreensão das complexidades dos espaços “periféricos” (p.70 e 101).
4 O autor identifica duas vertentes associadas a essa perspectiva. A seguida por autores como Serge Gruzinski e Néstor García Canclini, em que a expansão ocidental é vista como marco do início do processo de hibridização e mestiçagem; e outra, apontada por Navarrete como mais interessante, a qual assume que as culturas têm sido híbridas e mestiças desde sempre (p.37-38).
5 Navarrete remete a origem desse conceito à antropologia russa e afirma que estudiosos como Cynthia Radding e Jonathan Hill o utilizaram para analisar o continente americano: “Aunque estos autores lo utilizan exclusivamente para explicar la adaptación de pueblos indígenas a la dominación europea, me parece que puede ser empleado de manera más amplia para todos los procesos de conformación de identidades étnicas” (p.97).
Luis Guilherme Assis Kalil – 1 Professor adjunto A-1 de História da América Colonial e América Independente no século XIX da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). Doutor em História cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E-mail: lgkalil@yahoo.com.br.
[IF]
Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship – CASTILHO (RBH)
CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2016. 264p. Resenha de: SOUZA, Felipe Azevedo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.
Eis um livro notável para os interessados nas mais recentes produções da História Política, área que vem sendo revisitada com publicações que trazem novas possibilidades de interpretação ao que, até recentemente, resumia-se às tramas partidárias e de gabinete. No caso do estudo de Celso Castilho, há a intenção de evidenciar como as jornadas abolicionistas foram, pouco a pouco, moldando o campo político institucional em um movimento de fora para dentro. Das ruas e dos teatros para os parlamentos, em dinâmicas que envolviam parcelas da sociedade tradicionalmente alijadas do sistema político formal, mediante um enredo no qual se destacam as vozes e os atos de mulheres, escravizados e libertos em meio ao coro difuso que grassou progressivamente durante as duas décadas de ativismo que antecederam o 13 de maio de 1888. Como o autor enfatiza na conclusão, “o abolicionismo fomentou a ‘política de massas’ em nível nacional”, e o objetivo da obra é justamente orientar a trajetória desse movimento em meio ao que chamou de “longa história da democracia no Brasil” (p.192).
Com a atenção voltada para a apresentação detalhada das táticas e estratégias que remodelaram as formas de manifestação e a pauta contenciosa do debate público mediante uma abordagem processualista, desfilam em suas páginas as diversas fases do movimento em um quadro a quadro que parte dos primeiros debates em torno da Lei do Ventre Livre e se estende até a disputa de memória no pós-1888. O exame desse panorama histórico repleto de manifestações e associações que envolviam milhares de pessoas é o que fundamenta a tese de que o sucesso do movimento só foi possível dado o amplo engajamento popular, granjeado com um variado repertório de mobilização política.
Esses aspectos evidenciam um fluxo de ideias alinhadas ao pensamento democrático que dava lastro conceitual ao movimento, o que de certa maneira rompe com a ideia reducionista de que o sistema político brasileiro da época era operado unicamente por um padrão de práticas que se distendiam em um círculo vicioso, limitado a reproduzir clientelismo e corrupção. Nesse aspecto o livro acabou por adicionar complexidade ao tema, mostrando que iniciativas democráticas podiam florescer mesmo em contextos políticos tradicionalmente compreendidos em torno de práticas autoritárias e arcaicas.
O livro explora o processo de mudança histórica entre o fim da década de 1860, quando os debates sobre abolição ainda encontravam resistência em meio ao establishment imperial, e meados da década de 1880, fase em que o tema se tornou a pauta mais importante dos debates nacionais. A narrativa acompanha a paulatina difusão do movimento abolicionista a partir dos debates na imprensa, da formação de clubes e sociedades, bem como as reações gestadas por essa expansão em meio a setores de proprietários de escravos, que, de maneira análoga, também passaram a se organizar, promovendo eventos e utilizando metodicamente a opinião pública por intermédio de folhas políticas.
Ainda que boa parte da pesquisa gire em torno de eventos ocorridos entre Pernambuco e Ceará, a obra faz uma análise circunstanciada das pautas e debates nacionais, tomando para isso eventuais consultas a fontes primárias do governo e mantendo estreito diálogo com ampla produção historiográfica sobre o tema. O caráter interativo das sociedades abolicionistas e o intercâmbio constante de seus membros expandem ainda mais o recorte espacial. O movimento tinha um grau de articulação complexo e não passa despercebida à análise a capacidade dos abolicionistas em repercutir fatos e estratégias ocorridos nas mais diversas províncias. A seção na qual Castilho discute o 25 de março cearense, trazendo novas perspectivas que colocam em questão a justificativa clássica de que a abolição naquela província derivou meramente de aspectos econômicos decorrentes da seca de 1877-1878, é representativa de como a preocupação do autor está mais voltada à questão da cidadania política do que a particularismos da história local.
No entanto, a escolha por escrever essa história principalmente a partir de Pernambuco não aconteceu em vão. Foi provavelmente naquela província que a luta dos abolicionistas mais fomentou debates em torno da ampliação da cidadania política e da participação popular, questão que se expressava com grande intensidade durante as eleições. Durante a década de 1880, abolicionistas vinculados ao partido liberal fizeram de suas candidaturas plataformas para que o abolicionismo tomasse a política e para que esta ganhasse as ruas, até mesmo em manifestações dirigidas aos operários, artistas, trabalhadores do comércio, caixeiros e trabalhadores do mercado, entre outros. Joaquim Nabuco e José Mariano tornaram-se os porta-vozes da causa e o fizeram com base em estratégias de divulgação que iam desde sarais em clubes, passando por eventos no Teatro Santa Isabel, até os famosos meetings, em eventos que reuniam milhares de espectadores de “todas as camadas da sociedade” (como registraram os jornais da época).
As eleições gerais da década de 1880 são analisadas uma a uma pelo autor, que explorou as disputas para mensurar a intensidade com que a pauta abolicionista se espraiava pelo terreno da política. E de fato, aqueles pleitos não eram percebidos pelos contemporâneos como uma contenda entre liberais e conservadores, mas entre abolicionistas e escravocratas. Eram projetos em disputa e, sendo assim, acabavam por preencher uma lacuna persistente nas eleições oitocentistas: davam sentido social e programático às eleições.
O projeto de política popular dos abolicionistas motivou forte reação por parte dos republicanos, que em conluio com os conservadores passaram a adotar expedientes de criminalização e de racialização como forma de deslegitimar a participação da população pobre e de cor, em um esboço do que viria a se concretizar como o projeto de cidadania política excludente que se tornou uma das dimensões mais marcantes do período pós-abolição.
Em oposição aos discursos que marginalizavam a atuação da população negra e que compreendiam escravizados e libertos em uma esfera de classificação pré-política e reativa, a perspectiva de Celso Castilho os situa como parte fundamental do movimento. Ao longo do livro encadeiam-se casos em que escravizados tomaram a frente do processo para conquistar suas alforrias ou articular suas próprias fugas do cativeiro, ações que eram facilitadas, ou até mesmo instrumentalizadas com fins de propaganda, pelo movimento abolicionista. Essas interações substanciam o argumento do livro ao demonstrar que mesmo em engenhos distantes dos centros urbanos as lutas dos abolicionistas ecoavam e fomentavam os desejos por liberdade, dando a ver o amplo alcance de circulação dos ideais políticos e de cidadania propalados pelo grupo.
Uma das novidades trazidas pelas novas maneiras de organização e manifestação engendradas pelos abolicionistas foi a inclusão das mulheres no mundo predominantemente masculino da política e da opinião pública. O acompanhamento dessa inserção é um dos pontos altos do livro. O envolvimento que começou em fins da década de 1870, com a presença constante de mulheres em atividades públicas do movimento como bazares, passeatas e peças de teatro, ganhou vigor em meados da década seguinte com a criação de sociedades formadas exclusivamente por mulheres. Associadas à premissa de que eram naturalmente caridosas, elas representavam a face filantrópica da causa e portavam-se como senhoras respeitáveis, mães, esposas e “guardiãs do lar”. Ainda que sob uma identidade de gênero tradicional, essas mulheres conseguiram romper as barreiras do mundo político e tiveram atuação bastante enérgica no movimento – estiveram à frente, por exemplo, dos comitês de liberação de bairros em Recife e lograram grande sucesso na popularização do abolicionismo.
A mais famosa dessas associações, a Ave Libertas, foi, por alguns anos, a sociedade que mais conseguiu promover alforrias na cidade. Aliás, o levantamento das muitas sociedades e suas composições é bem explorado no livro, quesito que explicita especialmente a pesquisa pormenorizada desenvolvida por Celso Castilho, que computou estimativas sobre a quantidade de liberdades conquistadas por essas sociedades em comparação com os fundos de emancipação provinciais em uma série de tabelas. Os números levantados pelo autor são certamente uma ótima contribuição para o acompanhamento progressivo da ação do movimento civil em libertar escravos, montante muito superior ao atingido pelos fundos de emancipação organizados pelos governos provinciais.
Ainda assim, com a chegada da abolição, como a última parte do livro ressalta, os líderes (homens) dessas associações acabaram sendo os mais homenageados. Mesmo que nos dias imediatamente posteriores ao 13 de maio alguns jornais tenham comemorado a abolição como uma conquista coletiva e popular, a memória que se perpetuou sobre o abolicionismo foi pouco a pouco resumindo-se a um panegírico de estadistas e figuras proeminentes. Essa memória que se começou a criar já no dia 14 de maio de 1888 ia batizando passeios públicos com nomes de figurões da política e celebrava a vitória abolicionista, ao passo que olvidava cada vez mais o papel que os escravizados e libertos desempenharam no movimento e, mais que isso, acabaram por negligenciar os debates sobre a inserção dos negros na nova ordem social.
Ao seu fim, o livro demarca a distância entre a forma com que o abolicionismo era percebido em sua vigência e a maneira como foi lembrado por muito tempo. Essa perspectiva é alcançada com sucesso ao combinar análises sobre a cultura política com os debates sobre abolicionismo, em uma simbiose onde um tema acabou por iluminar aspectos de outro, revelando nuances de um pensamento democrático em estado embrionário (e que foi vigorosamente combatido) por muito tempo ignorado pela historiografia. Nesse aspecto, o variado elenco de temas presentes em Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship é tanto uma injeção de ânimo para a revisão de temáticas em torno da cidadania política no Império, quanto uma inspiração para que historiadores e historiadoras olhem com mais cuidado para a atuação e o engajamento de setores tradicionalmente alijados dos direitos políticos.
Felipe Azevedo Souza – Doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista Fapesp. Campinas, SP, Brasil. E-mail: felipeazv.souza@gmail.com.
[IF]Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador – SILVA (RBH)
SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2016. 416p. Resenha de: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.
Quando falamos do trabalho doméstico no Brasil, devemos ter em mente uma instituição sólida, antiga, perene em nossa sociedade. Trabalho pesado, tradicionalmente exercido por mulheres pobres, muitas vezes negras, sujeito a regras incertas e subjetivas que, na intimidade das casas de família, podem proteger da insegurança das ruas e, ao mesmo tempo, oprimir de maneira brutal as trabalhadoras.1 Conviver com a possibilidade onipresente de humilhação, violência e abuso sexual é o cotidiano de milhares de trabalhadoras que vivem nesse universo complexo, escorregadio, avesso à regulamentação. Essa instituição, ainda tão presente no Brasil do século XXI, tem história; uma importante parte dela, situada entre as últimas décadas da escravidão legal no país e a primeira do século XX, é contada pelo historiador Maciel Silva.
Com cuidado e sensibilidade, o autor narra experiências de trabalhadas domésticas em duas grandes capitais brasileiras, Salvador e Recife, com base em pesquisa densa e rigor interpretativo. O autor trata do período compreendido entre as décadas de 1870, quando libertas, escravas e mulheres livres pobres eram recrutadas para as tarefas de “portas a dentro”, como se dizia então, e 1910, escolhido como marco em função da consolidação de diversas reformas urbanas no país, e consequente mudança nos hábitos, ritmos de vida e na dinâmica do trabalho doméstico. Originalmente apresentado como tese de doutorado em História Social na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o livro é um estudo importantíssimo para o tema.
Ao marcar o início do seu estudo na década de 1870, o autor vincula a situação das trabalhadoras domésticas à organização do trabalho que viria com o fim da escravidão, inevitável com a promulgação da lei de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre. Sem dúvida, como afirma Silva, aquela lei alterou a percepção sobre o trabalho doméstico livre, uma vez que traria, com os contratos, mudanças nas regras de trabalho, nos horários, na moradia das domésticas – não mais necessariamente fixa na casa dos patrões -, nas expectativas, aliás, de ambas as partes. O contexto dos anos 1870 seria, então, um marco para pensar a formação da classe, já que o autor analisa trabalhadoras livres e libertas em ação como domésticas bem antes do marco oficial do fim da escravidão.
Impossível separar as origens do trabalho doméstico do ambiente da escravidão em sociedades onde essa forma de exploração do trabalho grassou por tantos séculos; para Silva, entretanto, se a escravidão marca o trabalho doméstico, e muitas das lutas das trabalhadoras domésticas livres e libertas foram forjadas nas lutas por autonomia dentro da escravidão, ela não define a classe das domésticas, isso é, não se encontra a classe na escrava doméstica. Isso porque Maciel Silva busca – e aqui tratamos de uma parte central de seu livro – explicar a “formação da classe das trabalhadoras domésticas no Brasil”, classe que, para o autor, só teria se formado na experiência da liberdade, ainda que precária, daquelas trabalhadoras. Inspirado em uma leitura perspicaz de E. P. Thompson, Silva enfatiza bem mais a formação aqui, isto é, prefere pensar em processo histórico, conflitos e heterogeneidade para lidar com o conceito de classe, recorrendo à experiência dos sujeitos mais do que à fixidez de uma categoria preestabelecida.
Escravas, portanto, não fariam parte da classe vislumbrada pelo autor. Silva pretende, com essa premissa, fugir dos estereótipos tanto da “mãe-preta”, a generosa escrava que cuidava dos meninos brancos, quanto da “Negra Fulô”, a mucama bela e sedutora, que tantas vezes, na literatura e nas análises de intelectuais, apareceram na caracterização da trabalhadora doméstica, inviabilizando sua análise enquanto protagonistas de suas próprias histórias. Os estereótipos já explicariam e reduziriam suas vidas à condição de passividade, vítimas de um sistema inescapável. Assim, o esforço do autor se dá no sentido de definir as trabalhadoras domésticas como uma classe marcada por lutas contra a exploração, por direitos, e também em tratar dos conflitos no interior da classe.
Se definir essa classe sem incluir as trabalhadoras escravas que viviam dentro das casas resolve o problema de lidar com as diversas especificidades legais das trabalhadoras naquela condição, nem por isso o autor se livra de outro problema teórico: lidar com uma “classe de domésticas” dentro da classe trabalhadora. Esta não parece ser uma preocupação de Maciel Silva, que não entra no debate sobre ofícios e classe, evitando enfrentar a questão. Sua opção para comprovar a tese da formação da classe das trabalhadoras domésticas é partir para a análise, ao invés da discussão teórica sobre classe; para isso, traz uma pesquisa monumental e uma interpretação sofisticada de fontes, revelando as trabalhadoras em movimento. Constrói, dessa maneira, uma história humana, em que mulheres livres e libertas lutam, atuam com solidariedade contra os patrões em alguns momentos e com disputas entre si em outros, sofrem estupros e outras violências, enfrentam acusações de furto, recorrem à fofoca, se ajudam, e também competem entre si. Lidam com noções de honra, fidelidade, gratidão, proteção, bondade, zelo e liberdade, entre outras, específicas daquela sociedade, e, ao fazê-lo, agem como classe, da mesma forma como seus patrões e patroas também o fazem.
Embora a classe seja a noção central a partir da qual o autor quer pensar a experiência das trabalhadoras domésticas, gênero e raça estão contempladas em sua análise. Sem buscar uma solução fácil, Silva busca os momentos em que o gênero se sobrepõe à classe ou mesmo à raça, mostrando que a realidade é bem mais complexa do que as categorias que usamos para tentar entendê-la. Se é verdade que as trabalhadoras eram majoritariamente negras, também havia não negras entre elas. Em alguns momentos, a pobreza e o fato de serem mulheres marcava mais a posição das domésticas do que a própria raça. Novamente, com riqueza de fontes, cuidado analítico e grande capacidade narrativa, vão surgindo Marias, Creuzas, Donatas, Theodoras e tantas outras meninas e mulheres, com suas histórias e maneiras de lidar com os problemas, resistir, viver.
Merece destaque especial o capítulo em que o autor utiliza romances, memórias, contos e outros textos ficcionais como fontes para a história social. Com base na invenção de literatos baianos e pernambucanos sobre quem eram as domésticas, Silva recupera, com maestria na escrita, muito das sensibilidades da época estudada. Em textos que revelam muito mais a visão de mundo dos senhores do que qualquer realidade sobre as trabalhadoras, o historiador captou medos, angústias, violência e sutilezas das relações paternalistas entre criadas e patrões, marcada por conflitos. Porém, é no capítulo em que analisa os processos criminais que esses conflitos aparecem com todas as cores da violência do mundo real. Em acusações de furtos, agressões físicas, ataques à honra, Maciel Silva vai descortinando aos leitores a experiência de defloramentos e estupros, violência física e verbal, humilhações e precariedade que marcaram a vida das trabalhadoras, permeadas também por solidariedades, redes de apoio na vizinhança, fofocas e outras formas de aproximação – e, às vezes, competição – entre elas. Ao longo do texto, o talento de escritor aparece e enriquece a interpretação do historiador. O resultado é um universo doloroso e complexo que surge, tirando da invisibilidade tantas mulheres que viveram essas histórias.
Um grande esforço de comparação entre as duas grandes capitais caracteriza os capítulos iniciais do livro; a falta de documentação equivalente nas duas cidades, porém, faz Salvador aparecer bem mais que o Recife. Para completar o estudo, Silva faz uma análise cuidadosa da legislação desse universo de trabalho e dos contratos que passam a regulá-lo. Acompanha também trajetórias de jovens saídas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia para trabalhar como domésticas em casas de tradicionais famílias baianas – uma rica documentação que nos últimos anos vem sendo utilizada com mais atenção por historiadores. Se na primeira parte do livro o esforço maior é o de situar o leitor nos contextos específicos de Salvador e Recife e nas imagens construídas na literatura sobre as domésticas e seu universo, nessa segunda parte o autor se preocupa em resgatar a experiência das trabalhadoras.
Ao reconstruir trajetórias cheias de conflitos intensos, como nos casos das expostas da Santa Casa e suas experiências infelizes nas casas dos patrões, Silva defende o argumento de que a instabilidade e violência do universo da escravidão e as solidariedades estabelecidas entre as trabalhadores colocaram em xeque, em diversas situações, o paternalismo vigente, construindo possibilidades de vida para as trabalhadoras, ainda que em condições desiguais e precárias. Sem cair em heroísmos ou simplificações binárias, o autor interpreta as relações de poder daquele mundo, mostrando sua complexidade e as dificuldades em regulamentar um trabalho que é tão pautado pela subjetividade das relações que se estabelecem na intimidade das casas.
Um tema tão atual e importante remete, necessariamente, à luta das trabalhadoras domésticas nas últimas décadas da nossa história por cidadania, direitos, respeito, dignidade no trabalho e na vida. São temas recuperados pelo autor no desfecho do livro, embora se afaste de qualquer tentativa de linearidade na interpretação da luta daquelas trabalhadoras. Em tempos sombrios como os que enfrentamos, em que os direitos dos trabalhadores são tão duramente ameaçados, o livro de Maciel Silva é ainda mais necessário, recolocando problemas fundamentais na nossa sociedade que se pretende moderna e é tão barbaramente marcada por valores arcaicos e desumanos. Este livro nos faz pensar na força do trabalho doméstico no Brasil, nesse modo de mandar, de incluir em casa sem incluir de fato, de tratar “bem” sem tratar como igual, de marcar o lugar de classe e a situação de privilégio de um e a de dependência e humilhação de outros. Tantas incongruências e contradições, o ir e vir da constituição da classe, são revelados com primor neste livro imprescindível.
Referências
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. [ Links ]
Notas
1 Refiro-me aqui ao binômio proteção e obediência, conforme o trabalho doméstico foi caracterizado em um livro já clássico sobre o assunto, da historiadora Sandra Graham. As criadas, sendo trabalhadoras obedientes, receberiam proteção de seus senhores, vivendo na intimidade dos lares, longe dos perigos e da imprevisibilidade das ruas. A autora mostra, porém, que esses significados convencionais eram ambíguos: a casa podia ser o lugar da injustiça para os criados, assim como a rua poderia significar liberdade, longe do controle e vigilância dos patrões. Ver GRAHAM, 1992, p.16.
Gabriela dos Reis Sampaio – Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: grsampaio@hotmail.com.
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300 años: masonerías y masones, 1717-2017 – ESQUIVEL et al (REHM)
ESQUIVEL, Ricardo Martínez; POZUELO, Yván; ARAGÓN, Rogelio (Ed). 300 años: masonerías y masones, 1717-2017. Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. Resenha de: SÁNCHEZ, José-Leonardo Ruiz. Revista de Estudios Históricos de la Masonería. San Pedro, Montes de Oca, v.9 n.1 May./Dec. 2017.
Con el título de Migraciones sale a la luz el primero de los cinco volúmenes que, con ocasión del tercer centenario del nacimiento de la masonería especulativa, constituirán la colección sobre la historia de dicha institución en la que se insertan, además de este, otros volúmenes dedicados a los Silencios, las Artes, la Exclusión y el Cosmopolitismo. Su edición ha sido fruto de la actividad desplegada por la red de investigadores en su mayoría agrupados en torno a la Revista de Estudios Históricos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña (REHMLAC+) y la han impulsado comprendiendo la necesidad de luchar contra los mitos y leyendas que se cernían sobre la historia de esta organización, provenientes tanto de quienes la aprecian y están interesados en ella como de sus detractores. En este primer volumen los autores de los distintos trabajos abordan no solo la realidad de la masonería en esa nueva Europa que surge alrededor de la revolución francesa y la nueva América que a partir de entonces se independiza, sino que también describe cómo las redes masónicas de entonces fueron un componente clave de sociabilidad, de migración de ideas, que cimentó los fundamentos de esta nueva realidad por ambos continentes y que permite reconstruir y explicar el devenir histórico posterior.
El primero de los ocho trabajos de que consta el volumen está realizado por el profesor Ferrer Benimeli, fundador del CEHME y en la actualidad su Presidente de Honor; como es bien sabido fue pionero en abordar la temática desde la perspectiva europea y americana, con una dilatadísima producción historiográfica a sus espaldas contribuyendo, con rigor académico, a desmontar en su obra los estereotipos antimasónicos existentes hasta la fecha. En esta ocasión ha centrado su trabajo cronológicamente en el período que va desde las Cortes de Cádiz hasta la independencia de México, en el tránsito del antiguo al nuevo régimen, mostrando la utopía y realidad del liberalismo masónico, cuyo protagonismo hoy se replantea y está en gran parte por demostrar. El autor, haciendo uso de un prolijo conocimiento de los textos del momento a uno y otro lado del Atlántico, muestra cómo y cuándo se prefabricó ese pretendido protagonismo de la masonería; o la importancia que se le atribuyó a ciertos personajes de los que no sabemos con certeza si realmente fueron masones, realidad que se constata en una literatura similar, tanto en la metrópoli como en México, donde también se asocian con los independentistas como Hidalgo. Todo ello no deja de sorprender cuando, lo que sí queda claro, es que las Cortes de Cádiz prohibieron la masonería en los dominios de la Corona española.
Eduardo Torres-Cuevas, director de la Biblioteca Nacional de Cuba “José Martí”, impulsor en el ámbito latinoamericano y caribeño de los estudios sobre la masonería al poner en marcha en 2007 la primera red académica de investigadores sobre la temática, además de gran conocedor de la historia de Cuba, se extiende sobre la instalación de la orden en la Isla y el valor que tuvo para la formación y desarrollo del país. Tras establecer distintas etapas, de la primera de ellas -correspondiente al siglo XVIII- informa de los planes ingleses para fijar logias en la Isla dentro de un plan para el control de La Habana; durante su ocupación por los ingleses, algunos de ellos eran masones, pero nunca criollos. En realidad, los primeros talleres existentes en Cuba a partir de 1798 no lo fueron por influencia de la Gran Logia Unida de Inglaterra sino, paradójicamente, en relación con el Gran Oriente de Francia; el hecho está en relación con el traslado a la mayor de las Antillas de numerosos franceses tras el levantamiento de esclavos en Santo Domingo, incorporándose a los trabajos -ahora sí- algunos criollos y españoles; la primera logia creada en Cuba, en 1804, lo hizo con patente de la Gran Logia de Pensilvania, emigrando en su mayoría tras el movimiento anti galo con la guerra de la independencia. Algo más tarde se constituirían en la Isla los dos cuerpos masónicos, yorkinos y escoceses: los primeros, con connotaciones liberales, formado por criollos, pretendieron influir en el movimiento libertador de México y Cuba; y los segundos, vinculados al Gran Oriente de Francia, mayoritariamente oficiales y comerciantes españoles. Tras un periodo de inactividad, desde comienzos de la década de 1830 hasta 1857 (entonces los cubanos entraron en instituciones masónicas extranjeras, de Estados Unidos, México y Francia), nació la Gran Logia Colón (sin conexión con España, donde no existía masonería) y el Gran Oriente de Cuba y las Antillas (de escaso recorrido, aunque fue en ella donde se gestó el movimiento independentista de 1868) si bien la verdadera reconstitución de la masonería cubana comenzó a partir de esa última fecha, apoyada por los cuerpos masónicos tanto de Estados Unidos como de España, sin que hubiese interferencias en lo político. Esta última masonería influyó en el pensamiento cubano pues buena parte de la intelectualidad, tanto autonomista como independentista, eran masones; tras la primera guerra muchos marcharon del país para sostener desde fuera la lucha por la independencia y se instalaron en cuerpos masónicos extranjeros, entre ellos José Martí. No obstante, el autor indica cómo el movimiento independentista de 1895-1898 no estuvo asociado a cuerpo masónico alguno aunque sí lo fueran sus tres principales figuras (Martí, Gómez y Maceo). Concluye apuntando que la masonería de Cuba contribuyó al desarrollo de las conciencias nacionales y patrióticas así como la cívica individual.
Por su parte Éric Saunier, se extiende sobre el espacio caribeño al plantearlo como enclave estratégico para comprender la masonería francesa y la lucha por el poder entre París y las provincias. Su estudio está centrado en el período cronológico que va desde finales del siglo XVIII a los años de los movimientos independentistas en América latina. Pone en relación la constitución de la masonería caribeña en la lucha de poder entre los altos grados de la de Santo Domingo a finales del XVIII y el control de la vida masónica cubana a comienzos del XIX; sitúa esa masonería caribeña en el contexto del combate entre obediencias francesas y anglosajonas en la zona; insiste en la necesidad de impulsar los estudios sobre las personas y las redes sociales para reconstruir la vida de los iniciados; y los pone en relación con el comercio establecido entre el gran puerto colonial de la Bretaña francesa de El Havre y el área del Caribe, especialmente con Santo Domingo y Cuba, que considera vital para explicar la pronta irrupción de la masonería en el Caribe, que pudo influir en las revoluciones de Portugal y Brasil de los años veinte y treinta.
Interesante el trabajo de Ricardo Martínez Esquivel, profesor de la Universidad de Costa Rica, director de REHMLAC+ y por tanto miembro de una de las mejores revistas académicas sobre este fenómeno. Siguiendo la estela marcada por Miguel Guzmán-Stein añade una visión totalizadora de la cuestión al entender que hablar de la masonería es, también, hablar de toda la sociedad. Su trabajo se centra en el presbítero católico Francisco Calvo, organizador de la primera logia en Costa Rica y alma del Centro Masónico Centro Americano (1865-1876) quien estuvo inmerso -a pesar de su condición eclesiástica- en distintos proyectos civilistas, de promoción de las libertades e inmerso entre la intelectualidad costarricense del momento, buena parte iniciada en la masonería, a cuyo desarrollo no fue ajena la fundación de la Universidad de Santo Tomás. A partir de ahí el autor se centra tanto en la actividad masónica como antimasónica centroamericana, que en Costa Rica tuvo un desarrollo tardío, y que en su opinión tuvo que ver más con un carácter asociativo que propiamente masónico, en el que participaron los ordenados como él, posiblemente más en relación con lo que era la tradición anglosajona que la latina. Cuando esta última se hizo más preponderante, tuvo que abjurar de su condición con lo que se inició el declive y cierre de todas las logias en 1876. Su proyecto regional pudo darse por concluido en 1899 cuando comenzaron a surgir las grandes logias nacionales centroamericanas.
La masonería en la amplia geografía mexicana durante el período de su independencia es el objeto de análisis de María Eugenia Vázquez Semadeni, de la Universidad de California en Los Ángeles, especialista en la historia de su país. La autora comienza su trabajo cuestionando la credibilidad de la historia realizada por los propios masones, imposible de contrastar por las escasas fuentes primarias existentes, razón por la que deben ser utilizadas con espíritu crítico. Se extiende a continuación en el establecimiento de las logias del rito York en las costas del seno mexicano, con autorización de la Gran Logia de Luisiana entre 1816 y 1820, que al poco se incorporaron al rito escoces. Debieron ser estos los primeros talleres y fueron fruto de las relaciones comerciales entre Nueva Orleans y las colonias españolas y francesas de la Indias Occidentales en el Caribe. Su desarrollo en Luisiana debió tener lugar con ocasión de la revuelta de esclavos de Santo Domingo cuando el territorio, tras el breve dominio francés, fue adquirido por los norteamericanos. De ahí, partieron las iniciativas para su instalación en Nueva España, primero en Veracruz, luego en Campeche y otros lugares. Sus componentes estaban de una u otra manera forma vinculados a la marina siendo comerciantes o militares de la armada. Y aunque algunos actuaron en política, su nacimiento no fue necesariamente con ese fin si bien una investigación más profunda, con nuevos fondos documentales, pudiera arrojar más luz.
Por su parte Dévrig Mollès, doctorado en Francia y director científico del Archivo de la Gran Logia de Argentina, analiza las relaciones entre feminismo, librepensamiento y masonería entre Europa y América en el cambio de siglo del XIX al XX. Y para ello traza la implantación de las organizaciones masónicas nacionales en Argentina, Brasil, Uruguay y Chile, que brotaron de aluvión con la presencia de exiliados franceses, británicos, italianos, españoles y portugueses preguntándose, al mismo tiempo, si los talleres pudieron ser el espacio de lucha cultural para las primeras generaciones feministas argentinas. A su modo de ver, las primeras mujeres en logias bonaerenses estuvieron vinculadas desde mediados del siglo XIX al librepensamiento; hace alusión expresa al caso de Brasil, mucho más tardío que el argentino. Refiere en tal sentido la presencia de Belén de Sárraga, discípula de Odón de Buen, en el XIII Congreso Internacional de Librepensamiento celebrado en Buenos Aires en 1906, en representación de la logia Virtud de Málaga, quien participó en la difusión del feminismo por distintos países hispanoamericanos y se erigió en símbolo de la nueva mujer latinoamericana.
Los orígenes y primer desarrollo de la masonería en Chile durante el siglo XIX son planteados por Felipe Santiago del Solar, de la París Diderot-París 7. La ausencia de fuentes fiables, la destrucción de los archivos de la Gran Logia de Chile a comienzos del siglo XX, la dispersión de las fuentes y el carácter no académico de la producción masonológica constituyen en su opinión los principales problemas para su estudio. En este caso, la difusión de la masonería está marcada por su escaso intercambio intercultural con Europa, condicionado por su situación geográfica y la legalidad comercial impuesta desde la metrópoli en el siglo XVIII, situación que cambiaría en algo a comienzos del siglo XIX lo que se tradujo entonces en la presencia de algún masón extranjero en la zona y poco más. Como primer dato cierto de la existencia de un taller cita la logia Lautaro existente entre 1817 y 1820, que vendría a ser parte de un proyecto cuyo objetivo último pudiera ser el derrocamiento del Virreinato del Perú. Ya en los años veinte, pudo tener algún desarrollo mayor en relación con las élites militares de países emergentes como Venezuela y Colombia, siendo la presencia extranjera en ellos importante. En realidad, es desde mediados del XIX cuando se inició el establecimiento de talleres, en un momento de impulso asociativo y de movilización popular, promovido por comerciantes y artesanos extranjeros de origen europeo no hispano y norteamericanos, instalados en los centros comerciales nacionales e internacionales del Pacífico. Fue así el caso de Valparaíso, por franceses, vinculado al Gran Oriente de Francia, pero también de otros promovidos por norteamericanos, argentinos y otros. Así hasta la formación de la Gran Logia de Chile en 1862, al margen del Gran Oriente de Francia. Este proceso se desarrolló de una manera discontinua hasta el inicio del siglo XX cuando el número de talleres rondaba la treintena.
Por último Guillermo de los Reyes Heredia, historiador mexicano afincado en la Universidad de Houston, se introduce en el papel que juega el asociacionismo -también el masónico- en el seno de la sociedad civil estadounidense. En tal sentido y a pesar de su independencia, intenta monopolizar el poder, dirigir en todos órdenes la vida económica, política y cultural; y desde este territorio intentará de expandirse por otros lugares con el mismo fin. Más adelante se extiende sobre la importancia que tiene la orden en Estados Unidos como organización fraternal.
Nos encontramos pues ante una interesante obra colectiva en la que se nos muestra las interinfluencias, las migraciones, de todo tipo (de los mitos, de las obediencias de distintas nacionalidades, de las personas) que vino a caracterizar la puesta en marcha de la masonería en la América que se independiza de su metrópoli europea a comienzos del siglo XIX. La masonología, como ciencia, está de enhorabuena y es de justicia felicitar a los autores que han aportado sus trabajos para la ocasión.
José-Leonardo Ruiz Sánchez – Catedrático de Historia Contemporánea de la Universidad de Sevilla. Presidente del Centro de Estudios Históricos de la Masonería Española. E-mail: leonardo@us.es
Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung – HONNETH (K)
HONNETH, A. Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung. Berlim: Suhrkamp, 2015. 168 p. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Kriterion vol.58 no.137 Belo Horizonte Mayo/Aug. 2017
Referindo-se à sua tentativa de renovação da teoria crítica da sociedade a partir de uma teoria do reconhecimento, os mais precipitados críticos de Axel Honneth costumam caricaturá-lo como um teórico que, em face do sempre crescente enrijecimento das relações sociais de dominação no mundo contemporâneo e da imensa dificuldade de retomar de maneira promissora a sua crítica, prescreve tão somente que deveríamos “nos reconhecer mais”. Ocorre que cada nova obra de Honneth parece jogar mais água no moinho de tais críticos e tornar essa caricatura cada vez mais realista.
Em outubro de 2015, foi publicado pela Suhrkamp seu mais recente opúsculo, “Die Idee des Sozialismus”, uma tentativa, como reza o subtítulo, de atualização da ideia de socialismo, ideia envelhecida, para Honneth, desde o momento em que perdeu o amparo histórico que encontrava nas sociedades ocidentais de economia industrial do século XIX. Honneth esforça-se por mostrar que a ideia é velha, por certo, mas não caduca. Para isso, no entanto, precisa retraçar seus contornos com tal inventividade que, ao cabo, não lhe assusta que poucos dos “partidários” do socialismo estariam prontos para reconhecê-lo em sua nova imagem (p. 163). Mas Honneth não acredita estar desfigurando, mas apenas depurando de contingências históricas e trazendo a ideia a um nível de abstração mais elevado. A expectativa, por paradoxal que pareça, é que, nessa nova forma altamente abstrata e quiçá irreconhecível, a ideia ganhe força motivacional, alcance novamente a “virulência” que teria perdido (p. 20).
O novo livro é admitidamente motivado pela recepção do livro anterior, “O Direito da Liberdade”, recentemente traduzido para o português.1 Numa resposta aos debatedores de um simpósio sobre o livro realizado em Londres em maio de 2014, Honneth relata seu estranhamento em se ver reconhecido, após “O Direito da Liberdade”, não como um hegeliano de esquerda, como entende a si próprio, mas como “um daqueles hegelianos de direita dos quais eu nunca tive problemas em explicitamente me afastar”.2 O livro de 2011, uma atualização bastante direta das “Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito” para o mundo contemporâneo, que, contra o espírito hegeliano, trata a tripartição de esferas sociais do livro de Hegel como um esquema formal passível de ser aplicado como que do exterior a uma sociedade incomparavelmente mais complexa, foi recebido por parte da crítica como uma virada de orientação de Honneth em direção a uma perspectiva mais conservadora ou não afinada com os objetivos de uma teoria crítica da sociedade.3 Ao partir da premissa de método (em sua assim chamada reconstrução normativa) de que uma teoria crítica da sociedade precisaria ancorar-se apenas nos valores superiores aos quais a integração social remete sempre já como sua condição de possibilidade, Honneth expôs-se à acusação justa de ter se colocado do ponto de vista da mera reprodução do estado de coisas existente. Assim, o novo opúsculo é escrito em parte como um esclarecimento ou uma tentativa de desvincular-se de tal imagem e de filiar-se a um mais progressista revidierter Sozialismus, um “socialismo revisado”. O primeiro passo será a busca da ideia do socialismo no momento mesmo de seu nascimento, para, num procedimento contraditório que vai à origem para negá-la, desembaraçar a ideia não apenas das distorções que teria vindo a sofrer, mas também já de seus Geburtsfehler, de suas, digamos, malformações congênitas.
A ideia de socialismo nasce, para Honneth, como consequência do mal-estar da impossibilidade da efetivação simultânea dos três ideais da Revolução Francesa tão logo ela se completa. Na medida em que a forma individualista de liberdade da recém-instaurada esfera do mercado capitalista se põe no caminho tanto da efetivação da igualdade material e não apenas jurídico-formal quanto da fraternidade ou da solidariedade, levando ao risco da anomia, à efetiva pauperização e aos consequentes sentimentos de aviltamento, vergonha e injustiça da parte dos trabalhadores e suas famílias, surge o socialismo, ou antes, sua ideia, como uma “reação normativa” (p. 27). Como já espera o leitor a ele familiarizado, Honneth quer enfatizar o caráter moral, e não apenas econômico-utilitário do socialismo. Os primeiros socialistas, os denominados socialistas utópicos (alcunha que Honneth evita), teriam todos concebido a futura forma comum, não privada, da propriedade não como um fim em si, mas como um pressuposto para fins morais já estabelecidos – que poderiam, portanto, ser perseguidos por outros meios por um socialismo revisado. Na medida em que, para os primeiros socialistas, o egoísmo privado instaurado no mercado, fundado por sua vez na propriedade privada dos meios de produção, é fonte da incompatibilidade constatada entre os três princípios da Revolução de 1789, cabe superá-lo numa nova concepção de liberdade, não compreendida mais como a limitação recíproca que permite a mera compatibilização externa das vontades individuais, mas como a complementação mútua e internamente vinculada das vontades, em que a realização das finalidades de um indivíduo é vista por todos como condição para a realização de suas respectivas finalidades. Honneth apenas reencontra, em suma, sua noção de liberdade social como já reconstruída em “O Direito da Liberdade”, noção que ali estrutura as esferas de “eticidade democrática” (a dos “relacionamentos pessoais”, a da “ação numa economia mercado” e a da “formação democrática da vontade”).4 A ideia de socialismo, como grafado na contracapa do livro, seria, de fato e propriamente, a ideia de liberdade social. O primeiro dos erros dos socialistas seria tê-la tentado efetivar apenas em uma das três esferas socialmente diferenciadas na modernidade nas quais ela já estaria inscrita, em detrimento das outras duas. Ela seria, todavia, mais ampla do que os primeiros socialistas teriam percebido. Os três ideais da referida revolução burguesa compatibilizar-se-iam na noção de liberdade social; e o socialismo, que não é senão o movimento cujo objetivo é sua realização, seria, assim, uma “crítica imanente” do capitalismo (p. 33), isto é, no sentido de Honneth: uma busca de realização de suas promessas não cumpridas.
O próximo passo de Honneth é mostrar de que modo o espírito das sociedades industriais do século XIX teria contaminado a ideia central de liberdade social com certas “ficções da ciência” (p. 101), desveladas na era de um dito capitalismo pós-industrial. No entanto, o socialismo cujas características são recusadas por Honneth é, de fato, um “cachorro morto”, para o qual dificilmente se encontrariam defensores, mesmo no mais ortodoxo dos partidos comunistas. Sua refutação não apenas é supérflua, como cumpre na argumentação o papel pouco leal de deixar na penumbra todo o pensamento socialista (ou, mais amplamente, o de inspiração marxiana em geral) que igualmente recusa os pressupostos aduzidos, ou, quando os aceita, oferece justificações razoáveis e não consideradas por Honneth. São três os pressupostos do socialismo na era industrial repelidos por Honneth: a) a centralidade da esfera econômica, a consequente recusa da gramática dos direitos na luta social e o déficit democrático do movimento; b) a vinculação reflexiva da teoria a um portador, o proletariado, cujos interesses objetivos representados são presumidos sem verificação empírica; e c) a concepção determinista de história como um processo regido por leis e para o qual a ação livre humana é indiferente. Não cabe aqui discutir nenhum dos três “descaminhos” do socialismo pintado por Honneth, aliás, correspondente, de fato, a uma concepção outrora existente e que os assumia de modo enfático. O que importa é o que essas três recusas dizem sobre Honneth, pois ele as faz para a cada vez assumir uma posição diametralmente oposta. Em primeiro lugar, ad a) o autor considera absolutamente irrenunciável em quaisquer condições futuras ou imagináveis o recurso ao código do direito, aplicável coercitivamente pelo Estado. Direitos subjetivos são, para Honneth, uma conquista histórica inultrapassável e definitiva, que em nenhuma condição poderá se tornar obsoleta. Em segundo lugar, ad b) Honneth veda-se metodologicamente a imputação de quaisquer interesses objetivos a indivíduos ou grupos sociais; isso significa, por um lado, que apenas devem valer como interesses aqueles verificados empiricamente por declaração do agente e, por outro lado e mais importante, que, por princípio, os agentes não podem estar enganados acerca dos próprios interesses (ou seja, não existem ilusões socialmente necessárias). Por fim, ad c) o processo histórico como pensado por Honneth não é influenciado por tendências materiais, mesmo que fracas; o avanço técnico não condiciona de nenhum modo o desenvolvimento moral. Este último é tomado por um fato, possui autonomia e é impulsionado por sua própria força, uma tendência espontânea interna às próprias relações intersubjetivas pela progressiva eliminação de seus bloqueios e coerções de toda espécie (mesmo que essa tendência histórica afirmada dogmaticamente por Honneth, com ajuda de Dewey (p. 100), carregue um ônus metafísico tanto maior do que aquela que constituiria a crença dos socialistas).
Com isso, chega-se ao terceiro passo, propriamente propositivo, da argumentação do opúsculo. Sublimada de seus acidentes, a ideia de socialismo não seria senão a ideia de liberdade social, que precisa ser atualizada para as condições sociais do século XXI. A palavra socialismo ganha agora um sentido totalmente novo, mas não inesperado para o leitor de Honneth. O socialismo não é agora senão a realização do social, o “tornar-se social da sociedade” (p. 89). A formulação causa espécie caso não se compreenda o sentido do adjetivo em Honneth,5 que aparece plenamente explícito no novo opúsculo. O social é um conceito normativo para Honneth, ou antes, descritivo-normativo, pois designa não um dever-ser externo, mas a normatividade estruturante da sociedade (p. 105). A sociedade é social, “no sentido pleno da palavra” (p. 166), quando as relações de reconhecimento recíproco estão plenamente desenvolvidas, sem bloqueios à comunicação, em todas as esferas de ação por elas estruturadas. Apenas a sociedade socialista de Honneth é uma tal “sociedade social”.
Mas como alcançá-la? Honneth não se preocupa em apontar quais são os obstáculos sistemáticos que se opõem à realização da liberdade social, mas antes delega a tarefa de sua superação a um “experimentalismo histórico”. Em razão de sua ontologia social normativista, Honneth é incapaz de apontar causas materiais para as patologias sociais e desenvolvimentos normativos desviantes que constata. Apesar de contarem de saída com um empuxo transcendental em direção à emancipação, as lutas por reconhecimento não a alcançam, e isso, em Honneth, como que por mero acaso: deveria acontecer, mas não acontece.6 O mundo social de Honneth é frouxamente estruturado: ainda aqui, a concepção marxiana de capitalismo como uma totalidade, na qual certas determinações estão interna e logicamente interligadas, é recusada em prol de uma afirmação vazia e implausível de que o mercado capitalista não é mais do que um agregado de componentes absolutamente díspares e artificialmente conjuntados (pp. 91 e 109-110). Assim, a solução “experimentalista” de Honneth tampouco chega a surpreender. Experimentar novas configurações sociais a fim de romper barreiras e obstáculos à comunicação e à inclusão de novos atores em esferas de liberdade social é algo que está à disposição dos atores para Honneth, que desconsidera o fato de que justamente tais barreiras e obstáculos impedem tal experimentalismo de ter algum sucesso significativo. Em todo caso, apoiado na ideia mecânico-naturalista e ao mesmo tempo especulativa de John Dewey de que, em todos os âmbitos da realidade (do físico-químico ao social, passando pelo biológico e pelo psíquico), o aumento do volume das interações entre os seus elementos (no caso do âmbito social, os indivíduos) leva à efetivação de potenciais ali já existentes (no caso, à efetivação da liberdade social), Honneth considera que apenas o contínuo experimentalismo, isto é, a repetida variação das formas de interação pode progressivamente levar ao socialismo.
Assim, é marcante que Honneth não se pergunte, por exemplo, por que o capitalismo precisa necessária e logicamente engendrar sua crescente financeirização, mas antes proponha impotentemente que experimentemos um mercado não financeirizado; que afirme a incompatibilidade normativa entre, de um lado, as noções de mérito ou de recompensa do desempenho diferencial que estrutura o mercado e, de outro, os ganhos nele obtidos por meio da especulação financeira, sem se perguntar que tipo de processo material leva a que uma tal contradição real possa subsistir (pp. 108-109). O horizonte da crítica de Honneth, seu “end in view” (Dewey) é uma pouco definida noção de “socialismo de mercado”, pelo que não se deve entender, como de costume, algo como o sistema econômico vigente na China contemporânea (de resto, obviamente capitalista), mas simplesmente uma economia estruturada pelo mercado (que conta em qualquer caso como uma esfera de eticidade, i.é., de liberdade social) e que não seja, ao mesmo tempo, capitalista, se é que isso é conceitual e empiricamente possível. Honneth não deseja sequer definir de antemão se seu “socialismo de mercado” deverá se estruturar como um livre mercado (à la Smith), como uma “associação de produtores livres” (Marx) ou como uma espécie de capitalismo de Estado, desde que, em qualquer destas configurações, esteja garantida a realização recíproca e complementar dos fins individuais, como prescreve a liberdade social, na ação econômica (pp. 94-95). Não lhe parece um passo necessário investigar se sua liberdade social é de fato compatível com qualquer destas três formas de organização econômica.
Por fim, a ideia do socialismo revisado determina ainda a efetivação da liberdade social não apenas na esfera econômica, mas nas outras duas esferas de eticidade hegeliana atualizadas por Honneth em “O Direito da Liberdade”. Não apenas no mercado, mas no âmbito das relações pessoais íntimas e no das relações políticas é preciso fazer valer o mesmo princípio de complementação mútua das liberdades. Para Honneth, os primeiros socialistas, localizados num momento de desenvolvimento histórico ainda incipiente, não foram capazes de notar o movimento de diferenciação funcional em esferas de ação distintas na modernidade (embora seja curioso que Honneth apenas replique, em contraposição, uma diferenciação social mínima constatada por Hegel numa Prússia ainda semifeudal). A acusação é obviamente injusta, na medida em que, por exemplo, a elaboração teórica já do jovem Marx tem início justamente a partir de uma reconceituação da diferenciação moderna entre Estado e sociedade civil-burguesa em Hegel. Em todo caso, é porque ou não teriam notado essa diferenciação funcional ou não a teriam apreendido como um objetivo a ser alcançado, isto é, como uma injunção pela busca da efetiva autonomização tanto das relações privadas quanto das relações políticas em relação à sobredeterminação econômica, que os primeiros socialistas teriam apreendido o socialismo apenas como uma forma de governo e não, como quer Honneth, como uma abrangente forma de vida.
Na mesma réplica aos debatedores do supracitado simpósio de Londres sobre “O Direito da Liberdade”, Honneth oferece uma surpreendente releitura da tese de Hegel sobre o fim da história. Questionado por Jörg Schaub acerca da impossibilidade por parte do método da reconstrução normativa de dar conta de revoluções normativas, isto é, de abalos fundamentais na própria estrutura normativa da sociedade,7 Honneth recorre à abominada tese hegeliana, a fim de aceitar a objeção e insistir sobriamente em sua posição.
E se Hegel não quisesse realmente avançar a estranha e certamente falsa ideia de que, com o começo da era da subjetividade institucionalizada, as lutas sociais teriam chegado a um fim, mas antes estivesse avançando o argumento distinto e mais fraco de que somos completamente incapazes de imaginar um futuro no qual o princípio da subjetividade livre é substituído por um princípio superior, mais elevado? A fala sobre o ‘fim da história’ significaria então que temos uma boa razão para eliminar a possibilidade de uma ‘revolução’ na estrutura normativa da sociedade; e que, na medida em que as lutas e os amargos conflitos ao redor da implementação correta de nossos princípios modernos fundamentais possam continuar, eles não excederão o horizonte normativo da sociedade moderna.8
Mais do que seu mestre Habermas, que defende até razoavelmente que ainda nos movemos no horizonte da modernidade,9 Honneth acredita que nunca o iremos ultrapassar, mas apenas realizar progressivamente os seus potenciais. Se é verdade, com e contra Honneth, que os movimentos socialistas de toda espécie visaram e ainda visam uma superação do capitalismo não apenas como estrutura de distribuição material, mas sobretudo como horizonte ético-normativo (basta pensar n’ “A Questão Judaica” ou na “Crítica ao Programa de Gotha”), então o socialismo de Honneth, como mal consegue disfarçar, não passa, em qualquer de suas versões, de um derrotismo resignado. Se, segundo um de seus historiadores, o traço teórico marcante da assim chamada Escola de Frankfurt foi a sua impressionante capacidade de “imaginação dialética”, a falta, ou antes, a renúncia à imaginação por parte de seu atual representante oficial, que termina até na adesão à tese da inultrapassabilidade da estrutura normativa da modernidade, justifica o seu crescente reconhecimento não como representante desta tradição, mas, malgré lui, como legítimo herdeiro dos velhos hegelianos.
Notas
1HONNETH, A. “O direito da liberdade”. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
2HONNETH, A. “Rejoinder”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, p. 205, 2015.
3Para citar alguns exemplos: HEINS, V. “Zwischen Habermas und Burke: Axel Honneths Kritikstil in Das Recht der Freiheit”. In: ROMERO, J. (ed.). Immanente Kritik heute: Grundlagen und Aktualität eines sozialphilosophischen Begriffs. Bielefeld: transcript, 2014, pp. 143-156; MOHAN, R. “Normative Reconstruktion und Kritik: Die Subsumtion der Gesellschaftsanalyse unter die Gerechtigkeitstheorie bei Axel Honneth”. Zeitschrift für kritische Sozialtheorie und Philosophie, Vol. 2, Nr. 1, pp. 34-66, 2015; SCHAUB, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions: Normative reconstruction as method of critical theory”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, pp. 107-130, 2015; WILDING, A. “The problem with normative reconstruction”. In: 6th International Critical Theory Conference. Comunicação, Roma, Itália, maio de 2013. Disponível em: https://www.academia.edu/5115504/The_Problem_With_Normative_Reconstruction. Acesso em 3 de agosto de 2016.
4HONNETH, A. “O direito da liberdade”, op. cit.
5Cf. DE CAUX, L. Ph. “Contorno e limites do conceito do social em Axel Honneth”. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Vol. 3, Nr. 1, pp. 28-48, 2015.
6DE CAUX, L. Ph. “Um mundo que, por acaso, não é como deveria ser: crítica e explicação em Axel Honneth”. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 2017 (no prelo).
7SCHAUBE, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions”, op. cit.
8HONNETH, A. “Rejoinder”, op. cit., p. 209.
9HABERMAS, J. “O discurso filosófico da modernidade: doze lições”. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Luiz Philipe de Caux – UFMG. luizphilipedecaux@gmail.com
Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution | Julia Gaffield
Em Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution, Julia Gaffield enfatiza a importância de inserir o processo de independência do Haiti no mundo Atlântico, levando em conta suas dimensões políticas, econômicas e diplomáticas no início do século XIX. Ao abordar as relações do Haiti independente com a comunidade internacional do período, com ênfase nas relações com o Império Britânico, Gaffield lança mão do conceito de “estratos de soberania”, emprestado de Lauren Benton (A Search for Sovereignty: Law and Geography in European Empires, 1400-1900, 2004). Mas, enquanto Benton o utiliza para analisar relações entre impérios, Gaffield estende sua aplicabilidade para o estudo do caso haitiano no cenário internacional:
Enquanto o trabalho de Benton foca nos diferentes estratos entre impérios, o caso haitiano demonstra que esses estratos também eram importantes no contexto internacional. O reconhecimento não oficial não culminou em um isolamento diplomático, ocorrendo, inclusive, reconhecimento temporário da independência haitiana pela França. Além disso, esses estratos são visíveis não apenas na diplomacia, mas também nas relações comerciais. Governos estrangeiros estavam visando estender o reconhecimento econômico ao Haiti, ao mesmo passo que retinham seu reconhecimento diplomático (p.13).
Dessa perspectiva, Gaffield enquadra a história do Haiti como a de um país que, embora parcialmente aceito na arena internacional por sua relevância comercial, sofreu profundamente com o fato de não ter sido diplomaticamente reconhecido no início do século XIX por ter fundado sua independência sobre uma revolução de escravos bem-sucedida, desafiando, portanto, as estruturas do escravismo no mundo atlântico.
No primeiro capítulo da obra, a autora nos traz a questão das tentativas do império francês de isolar o Haiti independente no cenário atlântico, reivindicando autoridade legal sobre aquele território, que supostamente atravessava uma situação temporária e que em breve retornaria à jurisdição francesa. A proclamação de independência, assinada por Jean-Jacques Dessalines em 19 de novembro de 1803, continha lacunas que permitiram que os franceses continuassem reivindicando sua autoridade legal sobre o Haiti e visassem apoio no cenário internacional para isolá-lo. A intenção da França em reassumir eventualmente o controle da colônia motivava-se, de acordo com Gaffield, pelo fato de que os franceses “se preocupavam com um espraiamento revolucionário em suas colônias remanescentes no Caribe – Martinica, Guadalupe, e Guiana; visavam também prevenir o monopólio britânico nos mercados coloniais; e almejavam revitalizar o comércio francês no Atlântico” (p. 20).
Dessa perspectiva, proibir o comércio britânico com o Haiti era central para impedir que Londres alcançasse seus desígnios de controlar os mercados atlânticos. Para tanto, os agentes fiscalizadores franceses centraram suas ações nas ilhas de Curaçao e St. Thomas, sob jurisdição batava e dinamarquesa, respectivamente, que eram pontos de partida esseciais para a atividade comercial estrangeira com o Haiti. Embora Paris arrancase das metrópoles europeias a proibição do comércio com o Haiti, a França não possuía meios de patrulhar efecientemente o Mar do Caribe, o que, na prática, permitiu a continuação do intercâmbio entre mercadores estrangeiros estabelecidos em Curaçao e St. Thomas e hatianos. A pressão dos agentes franceses sobre essas ilhas findou quando, em 1807, o império britânico assumiu o controle de ambas. As leis do comércio ultramarino britânico (Navigation Acts) confirmaram as suspeitas francesas sobre os planos geopolíticos de Londres para o Novo Mundo: enquanto elas proibiam o comércio das Antilhas britânicas com o estrangeiro, abriam uma honrosa exceção para o Haiti, evidenciando que o que estava em questão para Westminster era incorporar a ex-colônia francesa às redes de comércio de seu sistema colonial.
Os capítulos 2 e 5 tratam das relações internacionais do Haiti, principalmente com o império britânico. No segundo, Gaffield traz importantes assertivas acerca da limitação do direito de propriedade a brancos, com exceção de poucos imigrantes que arribaram na ilha no período, política esta que será seguida pela proibição de proprietários absenteístas. Abordando os desígnios britânicos em relação ao Haiti, afirma a autora que Londres tentava absorver o território em seu imperialismo. Contudo, nesse capítulo, as questões diretas que envolviam o comércio haitiano com o restante do mundo atlântico relacionam-se não com a Grã-Bretanha, mas sim com outros territórios americanos: a proibição do comércio por parte dos Estados Unidos e também das ilhas de Curaçao e St. Thomas. Por meio dessa restrição no mercado internacional, encontravam os britânicos caminho livre para a efetivação de seus objetivos. O capítulo 5, por sua vez, trata em especial dos anos de 1807 a 1810, época marcada pela guerra civil que dividiu a ilha entre o Norte, comandado por Henry Christophe, e o Oeste e o Sul, governados por Alexandre Pétion, bem como pela limitação das relações econômicas com diversos países do espaço atlântico. Gaffield trabalha com as tentativas daqueles dois governantes de assinar, com o Império Britânico, tratados econômicos de caráter similar àquele negado por Dessalines em 1804 em relação à Jamaica. A historiadora salienta também que nesse período os mecanismos do chamado “império informal” – conceito utlizado para explicar as relações de poder assimétricas entre um Estado mais forte e um mais fraco, em que o primeiro estabelece controle político sobre o segundo sem exercer domínio formal de fato – característico do mundo pós colonial, sobretudo na América Latina, começaram a se delinear nas políticas econômicas entre o Haiti e o império britânico. Gaffield discorre ainda durante o capítulo sobre os elementos que contribuíram para o sucesso da independência da antiga colônia francesa, afirmando que as relações econômicas no mundo atlântico, sobretudo com os britânicos, apesar de seu papel importante, não teriam sido as únicas responsáveis. Em conjunto com esse fator externo, a rígida militarização implantada pelos governantes da nova nação, em detrimento dos direitos individuais, foi um elemento crucial para o sucesso da emancipação.
No capítulo 3, a autora trata dos múltiplos “estratos de soberania” da independência haitiana por meio da análise de quatro julgamentos envolvendo navios mercantes pelo departamento da marinha britânica, capturados e sentenciados em dois momentos distintos (dois em 1804 e os outros em 1806). Aqui, Gaffield mostra questões relativas ao status ambíguo do Haiti no espaço atlântico, já que nos primeiros casos a ilha foi considerada uma colônia francesa e, portanto, proibida de comerciar, e nos últimos um reconhecimento temporário da soberania foi concedido, já que o comércio exercido com os haitianos não foi julgado ilegal. Tal mudança de atitude britânica, segundo a historiadora, deve-se às tentativas cada vez mais assíduas de estabelecimento de acordos econômicos entre as duas nações, mesmo que a recognição diplomática ainda não fosse uma realidade. Nesse sentido, Gaffield afirma que o reconhecimento da soberania temporária “permitiu que tanto britânicos como negociantes estrangeiros tivessem acesso aos benefícios financeiros disponíveis por causa da independência de fato da ilha em relação à França” (p. 114).
No capítulo 4, a autora aborda a relação dos Estados Unidos com o Haiti, e aqui mais uma vez as trocas comerciais entre as duas nações, bem como a tentativa de estabelecimento de acordos formais entre os governos, servem de exemplo para mostrar o lugar significativo que a ex-colônia ocupava no mundo atlântico. Mesmo com a proibição do comércio de 1806 a 1810 envolvendo os dois países, assunto igualmente tratado neste capítulo, as transações mercantis entre eles mostram-se valorosas já nos primeiros dois anos de independência haitiana, e logo retornam com a expiração do decreto de Thomas Jefferson responsável pela proibição das trocas comerciais com o Haiti. Apesar disso, assim como ocorreu no império britânico, os benefícios econômicos daqui advindos não implicaram reconhecimento diplomático do novo país americano, o qual só ocorreria em 1862, malgrado tais benefícios terem grande influência nas discussões do Congresso americano sobre a suspensão das trocas comerciais ocorridas entre 1804 e 1806.
A produção historiográfica focada no século XIX haitiano é recente, e o trabalho de Gaffield mostra-se importante não apenas pela análise lúcida das conexões estabelecidas entre a ilha e o mundo atlântico, mas também por contribuir para o próprio entendimento da situação interna do país nos primeiros anos de sua independência. Mas, como a historiografia em geral vem mostrando há décadas, o estudo da independência do Haiti no início do século XIX é essencial também para a compreensão das dinâmicas do mundo ocidental do período. Situada no ínterim marcado por transformações de caráter político, econômico e social, sua independência se ajusta cronologicamente às transformações que moldaram o mundo moderno. Obras magistrais que abordam as agitações e mudanças do período do ponto de vista de uma grande angular, como os clássicos The Age of the Democratic Revolution (1959 – 1964), de R. R. Palmer, e The Age of Revolution, 1789-1848 (1963), de Eric Hobsbawm, centraram suas análises no mundo europeu e nos Estados Unidos da América, excluindo o Haiti (bem como, poderíamos dizer, o Brasil). O livro de Gaffield, portanto, insere-se num panorama de renovação desse campo.
As fontes para a realização de um estudo como o de Gaffield são encontradas principalmente nas línguas francesa e inglesa. Apesar de se concentrar inicialmente nos arquivos francese e haitianos, a historiadora também percorreu arquivos nos Estados Unidos Inglaterra, Jamaica e Dinamarca a fim de reconstituir o conjunto das ligações atlânticas do Haiti e, assim, superar o estreito círculo da história nacional. A própria natureza desses documentos, divididos entre debates do Congresso norte-americano, correspondências diplomáticas e de comerciantes e registros de tribunais, espalhadas por vários territórios atlânticos, só reforça a ideia do não isolamento do Haiti no período analisado.
Gaffield, assim, nos traz à tona a desenvoltura do processo formativo do Haiti em sincronia com outros quadrantes do mundo atlântico. Segunda nação independente do continente americano, formada por ex-escravos, com uma população composta em sua esmagadora maioria por negros, e ainda importante economicamente apesar do relativo declínio após o início de seu processo revolucionário (1791), o Haiti fez convergirem para si os olhos das duas principais potências do período, os impérios britânico e francês, além dos EUA. Sua notabilidade internacional possuía raízes econômicas e políticas. Enquanto a ex-colônia oferecia oportunidades comerciais relevantes aos grandes atores internacionais do período, ela também inpirava temores por ter nascido de um movimento revolucionário de escravos que, se tomado como exemplo, poderia levar ao desmoronamento do escravismo colonial nas Américas. Como sugere Gaffield neste breve, porém iluminador trabalho, o Haiti, isolado pela comunidade ocidental devido aos temores que inspirava, mas fortemente integrado a ela por outras vias, parece, desde suas origens até nossos dias, ter como destino pôr a nu os paradoxos do capitalismo.
Isabela Rodrigues de Souza – Estudante de graduação em História na Universidade de São Paulo.
João Gabriel Covolan Silva – Estudante de graduação em História na Universidade de São Paulo.
GAFFIELD, Julia. Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2015. Resenha de: SOUZA, Isabela Rodrigues de; SILVA, João Gabriel Covolan. Formação do Haiti no mundo atlântico do século XIX. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 359-364, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]
Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina | José Carlos Chiaramonte e Carlos Marichal
Em 1860, a província de Buenos Aires encontrava-se separada das outras com as quais havia formado o Vice-Reino do Rio da Prata e mergulhada em debates acerca de se, e como, deveria realizar uma reintegração nacional. Um editorial do periódico El Nacional, de propriedade de Bartolomé Mitre, tratou de colocar em pauta a questão do nome que assumiria o país resultante dessa reunião. O autor antecipa seus críticos: embora pudesse parecer impossível recorrer à “questão de nomes” sem “cair na trivialidade”, ela envolvia “outra questão de honra e de vergonha”.
É de momentos como este que Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina se nutre. O livro, publicado em português pela primeira vez este ano pela Hucitec e originalmente em espanhol em 2008 pela Editora Sulamericana, aposta na importância que os nomes assumiram em tais momentos, para usá-los como novos pontos de observação da história das nações. Dezesseis nomes hoje reivindicados por países e regiões da América Latina são examinados em dezessete artigos de autores diferentes, dois deles dedicados ao México. O conjunto da obra apresenta mais altos que baixos e tem na coerência com seus pressupostos uma característica da qual deriva duas de suas qualidades mais interessantes.
A primeira é uma relação de reforço mútuo entre a História aqui praticada e o aparato teórico que lhe sustenta, calcado na ideia de nação como artefato cultural. A importância disso para o trabalho aqui realizado fica evidente em alguns textos. A pesquisa de José Carlos Chiaramonte1 sobre os termos Argentina, Províncias Unidas do Rio da Prata e Confederação Argentina se beneficia imensamente da compreensão de nação como entidade circunstancialmente construída. O mesmo pode ser dito sobre o trabalho de Ana Frega, da Universidad de la República (Uruguai), sobre o par oriental/uruguaio, que, interrogado por essa lente, revela o retrato de uma identidade nacional fraturada, cindida originalmente pelas diferentes reações ao movimento juntista de 1810 esboçadas pelo governo de Montevideo e pelos habitantes do restante da banda oriental do rio Uruguai. Ambos os casos apresentam conflitos que, lidos a partir da noção essencializada da nação, perderiam importância. Seus resultados já estariam determinados de antemão pelo presente. A história dos nomes assim alimentada se restringiria a uma história da revelação do nome, da vitória do nome atual. A nação inventada liberta os eventos passados de destinos inexoráveis e dá voz aos diferentes projetos apresentados nas instâncias de discussão destas questões. Os nomes deixam de ser sinas e tornam-se símbolos, prenhes de expectativas e desejos; suas histórias deixam de ser a narrativa de suas descobertas e convertem-se em reflexões acerca de seus usos. A abordagem assim concebida, por sua vez, transforma-se em importante testemunha contra uma representação reificada da nação ao possibilitar uma indexação de eventos que confirmam a natureza histórica da nação. A imbricação entre a história aqui praticada e a teoria que lhe dá substância se revela recíproca. O estudo de Pablo Buchbinder, da Universidad de Buenos Aires, sobre Paraguai é emblemático disso, pois captura na indecisão em estabelecer-se como república ou província as dificuldades de autodeterminação enfrentadas por uma individualidade próxima o bastante a Buenos Aires para estar em sua esfera de influência, mas distinta o suficiente para não ser por ela absorvida.
A aglomeração das várias histórias nacionais no espaço de experiência latino-americano é o segundo ponto de interesse decorrente do pressuposto teórico da nação como construção. A justaposição dos casos individuais confere ao livro muito de sua força explicativa e permite que os casos específicos elucidem uns aos outros. A construção de si passa pelo reconhecimento do outro; histórias como as aqui escritas precisam necessariamente superar as fronteiras nacionais, com as quais seus objetos nem sempre coincidiram.
Alguns nomes se prestam mais que outros para exemplificar essas relações transnacionais. Os assumidos pelas repúblicas construídas no antigo território da Gran Colombia estão entre os mais úteis para sublinhar o papel do outro na definição de si. Venezuela foi, de acordo com Dora Dávila Mendoza, da Universidad Católica Andrés Bello (Caracas), uma identidade em cuja construção a percepção de si esteve informada pela presença do outro. A indeterminação histórica da formação de um território venezuelano, em mais de uma ocasião englobado por outros nomes (designado, por um momento, como parte do vice-reino de Nova Granada; e, em outro, como componente da Gran Colombia) orientou parte significativa da produção historiográfica do país.
Aimer Granados, do México, dá conta de como o pensamento político de Bolívar expressava-se exemplarmente no nome Colombia, que engendrava um projeto de superação das identidades locais através da grande pátria americana. A Gran Colombia foi o corolário desse desejo, um projeto de nação que incluía os atuais territórios de Equador, Venezuela e Colômbia. Mesmo após seu esfacelamento o nome persistiu, herdado pelo antigo vice-reino de Nova Granada; se a república que hoje existe neste antigo território herda seu nome do sonho falido de Bolívar é porque houve um esforço consciente por parte de uma elite para inventar uma tradição. O autor relata que, no momento da emancipação, o termo Nova Granada possuía mais potencial aglutinador que o termo sobrevivente.
A influência da alteridade na formação da individualidade nacional segue relevante, mas de forma surpreendente, na história por trás do nome adotado pela outra entidade política que surgiria com a derrocada da Gran Colombia. Ana Buriano, do Instituto Mora, México, relata como Equador, que foi um nome usado para se referir ao território após as missões científicas francesas de 1736 destinadas a estabelecer a forma exata da Terra, significou a possibilidade de consenso entre as rivais Guayaquil, Quito e Cuenca. Historicamente neutro, o nome permitiu que o território construísse sua identidade sem que uma das partes se impusesse sobre a outra.
O caso mais emblemático da presença da alteridade na formação do eu nacional, porém, está nos artigos dedicados aos países que compartilham a ilha de São Domingos. O historiador porto-riquenho Pedro L. San Miguel defende que o nome República Dominicana representa uma ruptura com os governos de Espanha e Haiti, de quem a comunidade esteve próxima em outros momentos. Abandonando o São Domingos colonial, a nação se marcava como república independente e, ao mesmo tempo, evocava o antigo nome espanhol como forma de se diferenciar do vizinho, tônica forte na construção de sua identidade. O passado do nome Haiti, que para os taino, habitantes originais, significava toda a ilha, foi questionado no marco desse desejo de oposição. Quisqueya foi a alternativa encontrada pelos dominicanos, chegando a constar do hino nacional, embora seja considerado exemplo de revisionismo politicamente enviesado.
Interessantemente, Guy Pierre, professor de História Econômica da Universidad Autónoma (México), dirá que as fontes não permitem afirmar que a ilha se chamava Ayiti, embora exista um virtual consenso sobre o assunto. Mais importante para ele, porém, são os conteúdos de futuro e passado que podemos depreender do batismo. Dessalines, ao escolher o nome taino, expressava uma ruptura com a Saint Domingue escravista e apontava para um porvir de liberdade, significado informado também pela referência ao momento pré-colombiano, e, portanto, anterior ao cativeiro.
Os nomes e os batismos foram, no pós-independência latino-americano, ferramentas comumente usadas para marcar novos começos. Jesús Aguilar, da Pontifícia Católica do Peru, nos traz um exemplo capaz de mostrar que os nomes não servem somente para fundar novas eras. O termo Peru, mantido na passagem do vice-reino à república independente, é lido aqui como expressão do desejo de continuidade, o que nos demonstra como elites locais encontraram valor justamente no caráter inercial da palavra. O termo se confundia com o momento da colônia. Seu conteúdo temporal sugere um futuro idêntico ao passado, alimentado pela memória de levantes de nativos.
O tema indígena é um dos principais enfoques dos trabalhos dedicados aos termos Bolívia e México. O trabalho de Esther Aillón, da Universidad de San Andrés (Bolívia), faz astutas observações acerca da existência de uma identidade organizada ao redor do imaginário inca que conferiu capacidade de atuação e espaço de pertencimento a um setor da população não contemplado no projeto nacional boliviano. Uma das contribuições da história dos nomes para o estudo das identidades é a possibilidade de mapearmos o arraigamento destas a partir da verificação da adoção daqueles. É por este mecanismo que a autora demonstra a importância da experiência da Guerra do Chaco (1932-1935) para que uma integração fosse observada.
O caso mexicano é notadamente distinto, pois o mesmo dispositivo nos mostra que, em vez de marginalizada, a memória do passado pré-colombiano foi um eixo aglutinador. É único também no contexto da obra, que lhe dedica dois artigos, suficientemente distintos para que ambos tenham contribuições a oferecer. Dorothy Tanck de Estrada parte da reação crioula a uma crítica do século XVIII, feita à vida intelectual mexicana – palavra aqui entendida em seu sentido original, referente à cidade do México – e inicia uma reflexão acerca da expansão das fronteiras do termo a partir daí. O trabalho de Alfredo Ávila, da Universidad Autónoma, por sua vez, evidencia a natureza histórica da atual composição territorial do país. Sua tese assenta na percepção de que os mesmos nomes foram, por diversas razões, compartilhados por regiões diferentes. México engendrava tanto a cidade capital do vice-reino quanto a região sob sua influência. Nova Espanha, por sua vez, tinha tantas formas quanto tinha facetas a soberania do vice-rei. Estava definida pelo alcance de sua autoridade, que era variável nas diferentes esferas em que ele a exercia.
Similar à Gran Colombia até onde também representa uma resposta agregadora à emergência das soberanias locais, o nome Centroamerica nos é apresentado pela costa-riquenha Margarita Silva Hernández como conceito histórico-político, diferenciando-se de América Central, que designa um espaço geográfico. A autora nos traz a importância de um na composição do outro, o que integrou as características de seu espaço no caráter de sua identidade. Para ela, o feitio de istmo significou a compreensão do território como passagem. Entre o mundo inca e o asteca. Entre o Atlântico e o Pacífico.
O estudo dedicado a Chile é outro que olha para a influência de uma percepção do espaço na formação da nação e de sua organização política. Visto primeiro como ermo e hostil, e depois como “cópia feliz do Éden”, o território entre os Andes e o Pacífico, limitado ao norte pelo Atacama, teve desde os primeiros momentos da emancipação quem quisesse dar forma política às suas fronteiras geográficas. A realidade do nome como ponto nodal permite que Rafael Baeza, da PUC do Chile, reúna na mesma narrativa esta dimensão, características da identidade do país, visto como estável e ordenado, e a da política, percebida como autoritária e centralista.
José Murilo de Carvalho, o brasileiro convidado para a coleção, tira também proveito do caráter do nome como espaço de encontros e sugere, na interação das imagens religiosas (Ilha de Vera Cruz; Terra de Santa Cruz), exóticas (Terra dos Papagaios), econômicas (Brasil), temporais (mundus novus; realização do império futuro português), a formação de uma identidade ressentida de seu passado. Os nomes se prestam a revelar essa mágoa; a prevalência do nome de uma madeira vulgar e o abandono dos que faziam referência à religião é vista como causa da decadência do país. Similarmente, a tentativa de encontrar na mítica Hi-Brazil, ilha fantástica do imaginário europeu medieval, uma nova raiz para o nome da nação, é, segundo o autor, declaradamente um esforço para estabelecer uma origem “mais agradável ao espírito e ao coração dos brasileiros”.
Os artigos dedicados a Puerto Rico e Cuba desenvolvem descrições bem embasadas de trajetórias interessantes – Rafael Rojas, do Centro de Investigación y Docencias Económicas (México) nos descreve as diferenças de pertencimento entre pátria e nação para o caso cubano e como uma deu lugar à outra. As porto-riquenhas Laura Náter e Mabel Rodriguez Centeno falam sobre as peculiaridades de uma identidade desenvolvida numa unidade política como Puerto Rico, descrita aqui como uma nação sem Estado. As autoras fazem também uma avaliação dos significados de resistência que as diferenças entre Porto Rico e Puerto Rico (bem como entre porto-riquenho e puerto-riquenho) engendrou. O artigo revela desafios específicos à tradução de uma obra desta natureza, que requer atenção a diferenças importantes entre terminologias por vezes similares. O trabalho de tradução de João Ribeiro demonstra sensibilidade nesse quesito e preserva os termos originais quando substituí-los constituiria prejuízo para o texto.
Embora o livro contenha certa desigualdade qualitativa entre os capítulos, o que é habitual em obras coletivas, Criar a Nação revisita temas fundamentais de maneira provocante e deixa a porta aberta para que o leitor encontre paralelos e contrastes capazes de sugerir novas discussões.
Numa famosa passagem de Romeu e Julieta em que reflete sobre a desimportância das palavras diante da realidade ontológica das coisas, a protagonista imagina que uma rosa não teria um perfume diferente se tivesse outro nome. O trecho aparece como epígrafe em Criar a Nação, retoricamente apresentado para que sua premissa seja desmontada. A própria narrativa de Shakespeare desmentiria Julieta, afinal, vítima que foi da história do nome de sua família. Agregamos que o que diferencia “Capuleto” de “rosa” é o conteúdo histórico do primeiro. Existem nomes que integram categorias e nomes que marcam individualidades. Criar a Nação apresenta um caso convincente da importância destes últimos para o historiador: como possibilitadores de projetos, como facetas de identidades, como vestígios por estudar.
Pedro Henrique Falcão Sette – Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
CHIARAMONTE, José Carlos; MARICHAL, Carlos; GRANADOS, Aimer (Orgs). Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina. Trad. João Ribeiro. São Paulo: Hucitec, 2017. Resenha de: SETTE, Pedro Henrique Falcão. As nações e seus nomes: invenção de entidades e identidades nas emancipações latino-americanas. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 365-371, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]
Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926) | Lúcia Helena Oliveira Silva
Paulistas afrodescendentes é o esperado fruto da tese de doutoramento de Lúcia Helena Oliveira Silva, defendida no ano de 2001, e se insere no contexto de consolidação do pós-Abolição como um campo autônomo de investigação historiográfica. Informado pela historiografia social da escravidão e do processo de abolição do trabalho escravo no Brasil, o estudo desvenda os caminhos que ex-escravos e seus descendentes trilharam ao buscar melhores condições de vida e ampliação da cidadania e conferir significados próprios à liberdade durante os anos posteriores à Abolição.
Desde os anos 1980 a historiografia social brasileira procura associar o tema das relações raciais com o problema gerado pelas tentativas de controle social da classe trabalhadora. A historiografia social do trabalho enquadrou essa especificidade do Brasil republicano com a compreensão das mais diversas esferas da vida cotidiana dos sujeitos. A perspectiva tem sua explicação no fato de que a questão do controle social, quando abordada pelo viés da experiência cotidiana da classe trabalhadora, ressalta o caráter da disputa política presente na vida cotidiana dos agentes sociais. Historiadoras(es) do pós-Abolição brasileiro têm percebido que a luta por cidadania da população negra também pode ser assimilada quando analisada à luz das práticas sociais dos sujeitos em seus dia a dia, e não só da realização de movimentos de reivindicação (Sidney Chalhoub, “Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque”).
Desse modo, Paulistas afrodescendentes é um livro que fornece ao leitor importante imersão no panorama teórico por que o campo acadêmico do pós-Abolição brasileiro passou entre os anos 1990 e 2000. Nele está presente o viés metodológico que privilegia as visões da liberdade que os sujeitos mobilizam para elaborar estratégias de garantir a manutenção de suas vidas no mundo após o fim do cativeiro.
O texto de Lúcia Helena Oliveira Silva revela os anos iniciais da República como um período recheado de expectativas orientadas pelos padrões socioculturais do mundo escravista do século 19, mas também engendradas pelas novas condicionantes sociais no Brasil após a abolição. A autora segue a tendência, muito presente na historiografia desde o fim da década de 1990, de demonstrar que a relação de negros com a sociedade pós-escravista foi marcada por numerosas redefinições, todas elas pautadas em concepções de cor que tenderam a se transformar com o passar do tempo, fosse para negros ou para brancos – como apontou o estudo de Hebe Mattos, Das Cores do Silencio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (1995).
Sendo assim, juntando-se a uma historiografia que começou a assumir as visões da última geração de escravos brasileiros como um problema histórico importante, a historiadora não se limita a atestar a marginalização dos ex-escravizados no mercado de trabalho. Oliveira Silva interpreta as estratégias de resistência de uma parcela da população negra paulista, acompanhando suas trajetórias e seus desejos de protagonizar uma vida mais justa frente ao convívio intenso que tiveram que ter com imigrantes, poder público e as economias de lugares como o estado de São Paulo e a cidade do Rio de Janeiro.
Protagonizar uma vida com melhores condições econômicas e com a efetividade do direito à cidadania não poderia deixar de levar em conta toda uma experiência acumulada durante os anos do cativeiro. Portanto, o racismo, somado à falta de acesso à propriedade e ao mercado formal de trabalho, contribuiu para a escolha da migração como solução por parte dos ex-escravizados e seus descendentes. Mobilidade territorial, nesse contexto, significou, para muitas mulheres e muitos homens, tomar as rédeas de suas vidas e lutar por mais direitos. Oliveira Silva propõe a noção de redes de solidariedade e de trajetórias para apreender o horizonte de experiências que a população negra de migrantes paulistas teve de lidar para resistir ao racismo pós 1888.
O debate sobre mobilidade territorial e migração no pós-Abolição tem importância historiográfica. Inspiradas por uma historiografia norte-americana que entende que migrar foi uma dimensão crucial da noção de liberdade, Ana Lugão e Hebe Mattos sugerem que o exercício da liberdade de movimentação do ex-cativo significou uma possibilidade de realizar rotas que poderiam proporcionar melhorias na condição de vida (O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas, 2004). Migrar traduzia a necessidade dos agentes históricos de constituir família, obter moradia e trabalho em locais onde as redes de solidariedade amenizassem a experiência do racismo.
A publicação do livro de Lúcia Helena Silva contribui para o cenário da historiografia nacional, tendo em vista os diálogos que seu texto estabelece com as gerações posteriores de historiadores. Esse texto pertence a um grupo que soube enfrentar o problema com as fontes que os temas relacionados ao pós-Abolição apresentam. Para acessar a experiência histórica dos ex-cativos, os historiadores dependem de documentação que só parcialmente comunica a cor dos indivíduos negros. A maior parte costuma ocultar a cor das pessoas envolvidas. De maneira muito habilidosa, Silva analisa os livros de registros de presos da Casa de Detenção da Corte (posteriormente denominada de Distrito Federal) que, por ser uma fonte policial, em muitos casos apresenta a cor dos presos, além de evidenciar o seus locais de emigração. Desse modo, a autora traça um quadro geral sobre os locais de habitação e os locais por onde os migrantes negros paulistas circularam e viveram na cidade do Rio de Janeiro.
Mas os livros de registro deixam de fora aspectos da rotina daqueles personagens. Como alternativa metodológica, Silva usa processos criminais e cíveis para captar os padrões de sociabilidade dos habitantes das regiões estudadas (p. 140). Enquanto os livros da Casa de Detenção fornecem indícios quantitativos sobre a repressão aos negros na cidade carioca, os processos delineiam um caminho qualitativo para a análise das experiências de negras naquela cidade.
A utilização de processo-crime também contribui para a coleta de evidências acerca das condições de vida, trabalho, lazer e religiosidade da população negra. Servindo-se de relatos orais, periódicos da grande imprensa, anuário estatístico e imprensa negra, a autora mescla informações de diferente natureza para delinear o quadro de racismo e de situações adversas que negros tiveram que enfrentar.
Quanto à periodização, a autora esclarece que “partimos de 1888, data da Abolição, e concluímos com 1926, data que marca o fechamento do jornal Getulino e o momento em que o item cor deixa de ser preenchido na documentação da Casa de Detenção” (p. 28).
Antes da análise dos capítulos, cumpre levantar questões metodológicas que nortearam os caminhos investigativos da autora. O caráter empírico da abordagem micro-histórica possibilitou a problematização de práticas sociais no pós-1888. Em alguma medida, para a historiografia do pós-Abolição brasileiro, o método da redução de escala foi a saída encontrada para cumprir com o objetivo de organizar e explicar a sociedade no seu período. Portanto, Lúcia Helena Silva opta pela investigação das trajetórias de sujeitos como uma maneira de se aproximar dos tipos de experiência que o novo mundo republicano possibilitou à população negra. A redução de escala, ao nível das trajetórias individuais ou coletivas, dos conflitos cotidianos, é importante instrumento metodológico para a captação das contradições, dos limites e das escolhas que os indivíduos fazem (Giovanni Levi, “Sobre Micro-História.” In: BURKE, Peter (Org). A Escrita da História: novas perspectivas, 1992.).
Com base nessas premissas metodológicas, Lúcia Silva argumenta que negros enfrentaram fortes dificuldades no Estado de São Paulo devido à mescla de características e estereótipos dos tempos escravistas e à perseguição policial e judicial. A escolha pela migração para lugares onde a vida poderia ser melhor foi uma consequência direta das condições sociais, culturais e econômicas que minavam as oportunidades que negros poderiam ter em São Paulo.
Desse modo, o primeiro capítulo analisa a experiência de vida de afrodescendentes paulistas no campo e na cidade no estado de São Paulo. Aproveitando-se de um processo-crime, de depoimentos orais, artigos da imprensa negra e da imprensa paulista, a autora investiga as sociabilidades e as relações de trabalho da comunidade negra focando nas relações raciais (p. 33). A população negra em São Paulo teve sua experiência social demarcada por conflitos raciais que, pautados em estereótipos grosseiros, acabaram por moldar posturas sociais, policiais e judiciais que forjaram mecanismos de discriminação contra pretos e de pardos. Fugindo da simples interpretação da exclusão, Lúcia Silva sugere que, se o negro sofreu com um processo de afastamento dos direitos à cidadania, isso não se deu sem conflito e sem contestação. Graças à sua capacidade de estabelecer laços de solidariedade, os negros puderam enfrentar o preconceito de cor e a violência das relações raciais (p. 46).
Mas num estado onde a política de branqueamento teve grande êxito e as teorias racialistas pautavam os rumos das práticas policiais e jurídicas, ser trabalhador negro não parecia coisa simples. Em São Paulo houve clara orientação política pela escolha de estrangeiros para a ocupação dos postos de trabalho. No campo, os imigrantes foram escolhidos para se submeter ao regime de colonato. Mas, e esse é um dos primeiros estudos a apontar para o fato, o negro também participou dessa prática de produção agrícola. Estudos recentes têm comprovado que houve uma considerável participação negra nas práticas de colonato dentro das fazendas paulistas (Karl Monsma, “Vantagens de imigrantes e desvantagens de negros : emprego, propriedade, estrutura familiar e alfabetização depois da abolição no oeste paulista”, Dados, v. 53, n. 3, 2010).
Ainda assim, na cidade ou nos campos de São Paulo o grande contingente imigrante e o racismo contaram para a exclusão do negro dos postos de trabalho e para a não consolidação de seus direitos de cidadania. Essa parcela da população sofreu com a precariedade e com a inconstância no trabalho (p.78-79). É dentro desse contexto que a possibilidade de migração apareceu como forma de efetivação de interpretações de liberdade. O segundo capítulo do livro trata da experiência de migração como uma das possibilidades de vivenciar a liberdade por parte dos libertos ao lhes dar uma visão de mundo mais larga e autônoma. A cidade do Rio de Janeiro foi um espaço aglutinador, onde migrantes negros e naturais dessa região tiveram como inventar suas próprias maneiras de sobrevivência. Era uma cidade com uma vida cultural negra muito rica, que distou da cultura da “elite da belle époque” (p.99-100). Não obstante, e mesmo com todas as possibilidades urbanas cariocas , com toda a expectativa dos ex-escravos e seus descendentes, ser pobre num período de grande esforço para o controle das ações e das ocupações populares representou lutar constantemente contra a saga reformadora da cidade do Rio de Janeiro (p. 105-117).
Mas o Rio de Janeiro ofereceu melhores possibilidades de formação de laços de amizade e de solidariedade que serviram como estratégia para burlar todo assédio do poder público (p.122-123). Mesmo com a forte perseguição policial e com uma reforma urbana que visava afastar o negro e o pobre do centro da cidade, a presença de manifestações religiosas afrodescendentes é um indício de que, com base nesses espaços de solidariedade e lazer, a comunidade negra transformou o território urbano em um campo de batalha política, onde houve constante negociação entre a cidade que se queria “civilizada” e a cidade “africana” (p.127). Dessa forma, Lúcia Silva enxerga o Rio de Janeiro como um campo de disputa mais favorável do que foi o estado de São Paulo. Podia-se estabelecer alianças – inclusive com a classe dominante – e estratégias de manutenção da vida cotidiana (p.127-128).
Por fim, no terceiro e último capitulo Lúcia Helena Oliveira Silva examina as relações entre migrantes paulistas e os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, observando como se deu sua interação durante a transformação do espaço social e físico da cidade. A historiadora enfoca nas vivências cotidianas de migrantes negros, mulheres e homens, afirmando que existiram alguns sujeitos que galgaram espaços em profissões relativamente estáveis e de boa remuneração. Eles conseguiram comprar casas, terrenos e alfabetizar-se, o que demonstra que migrar poderia ser uma maneira de mudança (p.146-147). Se é verdade que migrantes negros paulistas escolheram a cidade do Rio de Janeiro por estarem em busca de melhores condições de vida, e que lá estabeleceram laços socais que tornavam o dia a dia mais leve, também é verdade que tiveram que optar por moradias precárias para ficar perto das regiões que mais empregavam. A vida em cortiços era revestida de diversos conflitos que irrompiam quando os limites de privacidade e de convívio eram ultrapassados. É importante perceber que mulheres negras (migrantes aí incluídas) sofreram, repetidamente, com os padrões morais que deslegitimavam a forma de vida dessas agentes que, pelo caráter de suas profissões, deveriam ocupar espaços que se queriam masculinos.
Graças ao uso das ferramentas metodológicas da micro-história, Lúcia Silva oferece em Paulistas Afrodescendentes no Rio de Janeiro um rico quadro de experiências subjetivas dos negros que escolheram migrar de São Paulo para o Rio de Janeiro como uma estratégia possível de luta pela cidadania. É um estudo altamente recomendável para os interessados na construção social da liberdade no Brasil do fim do século 19.
Fábio Dantas Rocha – Possui graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (2014). Atualmente é membro do conselho editorial da Editora Palácio e analista de produção e difusão do conhecimento da Fundação Perseu Abramo. Mestrado em andamento na Universidade Federal de São Paulo.
SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926). São Paulo: Humanitas, 2016. Resenha de: ROCHA, Fábio Dantas. O caminho para Pasárgada: negros paulistas no Rio de Janeiro do pós-Abolição. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 352-358, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]
Entre vaqueiros e fidalgos: sociedade, política e educação no Piauí (1820-1850) – SOUSA NETO (HU)
SOUSA NETO, M. de. 2013. Entre vaqueiros e fidalgos: sociedade, política e educação no Piauí (1820-1850). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2013. 336 p. Resenha de: FONTINELES FILHO, Pedro Pio. Entre a fé, a política e a educação: Padre Marcos e traços da história do Piauí, na primeira metade do século XIX. História Unisinos 21(2):278-281, Maio/Agosto 2017.
Marcelo de Sousa Neto é um importante historiador da nova e consolidada geração de historiadores piauienses, levando-se em consideração a periodização proposta pela historiadora Teresinha Queiroz (2006) sobre a historiografia piauiense. Dentre seus muitos trabalhos de pesquisa, o que mais se destaca, sem dúvida, é Entre Vaqueiros e Fidalgos. Trabalho de excelente lavra, fruto de sua tese de Doutorado, concluída na Universidade Federal de Pernambuco.
Foi publicado após vencer, em primeiro lugar, o Concurso Novos Escritores, na categoria Realidade Histórica, da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, da cidade de Teresina, Piauí. O mesmo texto havia sido escolhido pelo Colegiado da Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, para ser publicado pela editora daquela instituição, mas preferiu fazer a publicação pela Fundação Cultural, como mais uma demonstração de sua ligação com o Piauí. Os comentários contidos no Prefácio, na orelha e na quarta-capa do livro, escritos por renomados historiadores, atestam a qualidade e a profundidade da obra, que amplia os horizontes da história do Piauí do século XIX, em suas dimensões sociais, políticas, econômicas, educacionais e culturais.
Ao tomar a figura de Padre Marcos, Sousa Neto demonstra a habilidade na construção da narrativa histórica, pois liga a trajetória do sujeito em amálgama com a história da sociedade, considerando as nuances de espacialidades e temporalidades. Nesse sentido, a obra é desenvolvida nos lastros da proposta de uma biografia histórica, que toma o sujeito como uma forma de compreender as intrigas e ranhuras que constituíram a sociedade piauiense e brasileira no período oitocentista. Para tal empreitada, o autor faz diálogo teórico-metodológico com autores especialistas na discussão sobre sujeito, sociedade e biografia. Realiza isso sem perder de vista as discussões sobre tempo e temporalidade, entendendo que o sujeito deve ser percebido em suas interrelações entre o micro e o macro, entre o passado e o presente. A estrutura de organização do livro revela, também, a astúcia do autor, não somente como pesquisador, mas como exímio escritor, pois torna a leitura técnica mais acessível, inclusive para o público não especializado ou acadêmico. Está dividido em seis capítulos, distribuídos em três partes temáticas, ou melhor dizendo, eixos temáticos: A Serviço de Deus e dos Homens; Entre o Gado e as Letras: a instrução escolar no Piauí; e Nos Bastidores do Poder: Política e Família no Piauí do Século XIX. Na primeira parte, encontram-se os dois primeiros capítulos. O primeiro, intitulado “Entre o (Re)Criado e o Esquecido”, aborda aspectos do caráter lacunar da História, enfatizando a memória, no que se refere ao lembrar e ao esquecer. Ao clamar as reflexões sobre memória, o autor chama atenção para o fato de que a inscrição do Padre Marcos de Araújo da Costa está cravada na figura de “benemérito educador”. As suas identidades de atuação política e social encontram-se, na historiografia piauiense, esquecidas, ou, pelo menos, colocadas em um plano de pouca expressividade. Segundo Sousa Neto, isso se deu em decorrência do lugar social daqueles que produziram uma memória escrita, que centra e concentra seus olhares sobre um “Padre educador”, muito embora haja um caudaloso mar documental que falem do “Padre político” e do “Padre religioso”. O estranhamento inicial se dá em decorrência de que, ao se falar de um Padre, a priori, se esperaria uma memória escrita com destaque para o viés religioso. Tentando compreender esses “esquecimentos” ou “silenciamentos”, o historiador aponta o botânico inglês, George Gardner, que teria sido o primeiro a escrever sobre o Padre Marcos. Gardner foi o único memorialista e historiador a conviver com o Padre Marcos, pois teria visitado, em 1939, a fazenda de Boa Esperança, onde também funcionava a escola de mesmo nome, de propriedade do Padre. Escola essa que se firmava, “para toda a Província, como a principal escola de Primeiras Letras e de Instrução Secundária” (p. 40). Ao falar dessa visita, Sousa Neto aproveita para traçar o panorama da situação econômica e, principalmente, na Instrução Pública da Província, que passava por uma severa crise. O autor, assim, considera o botânico como o primeiro biógrafo do padre, minimizando “sua atuação como artífice político e como religioso, ressaltando apenas sua importância como educador” (p. 38). Assim, criou-se uma espécie de “tradição” historiográfica, na qual os escritos posteriores tomavam as informações fornecidas por Gardner e as reproduziam ou as endossavam. Sousa Neto, então, afirma que essa memória escrita e narrada “cria um espaço de ficção que, mais que descrever, realiza um golpe, um movimento que (re)cria o sujeito como ‘benemérito educador’, renascido entre o lembrado e o esquecido” (p. 38). No lastro dessa memória escrita sobre Padre Marcos, Sousa Neto destaca atuação de Fernando Lopes Sobrinho, José de Arimatéia Tito Filho, Antonio Reinaldo Soares Filho, Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco, Joaquim Raimundo Ferreira Chaves, Marcos de Araújo Costa Ferro, Odilon Nunes, Francisco Augusto Pereira da Costa, Itamar Brito, Celso Pinheiro Filho, Wilson Carvalho Gonçalves, José Patrício Franco e Cid de Castro Dias. Dentre todos os seus biógrafos, segundo Sousa Neto, apenas Lopes Sobrinho e Castelo Branco teriam dedicado obras completas ao Padre Marcos. Os demais mencionam o Padre de forma secundária e periférica, mas todos enfatizando a atuação do Padre na perspectiva educacional, seguindo a memória escrita iniciada por Gardner. Ir além dessa “tradição” escrita sobre o Padre Marcos, como educador, não seria difícil, como afirma Sousa Neto. Para ele, “basta, para tanto, acompanhar alguns registros em documentação preservada no APEPI, mesmo que de forma não organizada” (p. 46). Assim, o historiador destaca suas atuações em funções públicas, como a vice-presidência do Conselho de Governo da Província e vice-presidência da Província, membro do Conselho Geral da Província, a presidência da Câmara de Jaicós, dentre outras ocupações, em diferentes anos e situações, de 1924 a 1950, quando veio a falecer.
No capítulo 2, “Padre Marcos e seu sacerdócio sagrado e profano”, o autor amplia as reflexões de que “Como membro de uma importante rede familiar, Padre Marcos destacou-se em diversos espaços do cenário sócio-político piauiense. Entretanto, suas ações como sacerdote são, indubitavelmente, as menos discutidas” (p. 53). Descendente de influente grupo familiar piauiense, Padre Marcos teria transitado por diversos e diferentes espaços sociais e políticos do Piauí, mas a sua atitude de homem mais reservado seria, segundo Sousa Neto, uma das razões que dificultam mapear a sua trajetória para além da memória escrita inaugurada por Gardner. Para o historiador, para compreender a sua atuação no sacerdócio é indispensável que se observe e se analise a própria atuação do catolicismo e da religiosidade no Brasil, com suas estruturas, ligações, conflitos, disputas de poder e os aspectos do padroado. É somente no tópico “De Reza e de Política: Padre Marcos e seu sacerdócio”, ainda do segundo capítulo, que Sousa Neto traça as primeiras linhas do que seria da biografia propriamente dita do Padre. Ele apresenta o ano de nascimento do padre, 1778, mencionando seu avô materno, bem como seu pai e sua mãe. Dá destaque para a atuação política de seu pai, Marcos Francisco, que teria ocupado cargos importantes na Capitania. Nesse sentido, afirma que “Filho de pais cuja atuação política e social já se destacava, Padre Marcos herda bens e prestígio que soube multiplicar, sabendo valer-se de sua condição de “homem das letras” e “homem do Sagrado”, agregando elementos de ordem econômica e política à sua atuação sacerdotal, que, por sua vez, resultou em novos proveitos para si e para o grupo familiar ao qual pertencia” (p. 66). O autor ainda discute sobre as discordâncias entre os biógrafos acerca da formação sacerdotal do padre, notadamente sobre a realização do curso de formação em Coimbra, Portugal, ou no Seminário, em Olinda. Sousa Neto fala que há registros relativos à permanência do padre em ambos espaços, concluindo que “a atuação em um espaço não exclui a participação no outro”, diferente de como sugeriam os outros autores. O autor aproveita a ocasião para discutir sobre o papel do Seminário de Olinda, inaugurado em 1800, seguindo os moldes do Iluminismo português. O Seminário, então, assumiu importante tarefa, além das funções religiosas, na formação educacional no Brasil, pois “constituiu-se na primeira instituição de ensino do Brasil a possuir uma estrutura escolar em que as matérias apresentavam uma sequência lógica, trabalhadas de acordo com um plano de ensino previamente estabelecido, em cursos que possuíam uma duração determinada e com alunos agrupados em classes, procurando ainda reunir em seu plano de estudos, o ensino clássico e moderno” (p. 71).
Isso possibilitou, em larga medida, a formação dos filhos dos grupos dirigentes, a formação ideal e necessária para o ingresso nas universidades europeias. E é nesse Seminário que Padre Marcos teria se matriculado. O autor chama a atenção para o fato de que os sacerdotes no Brasil e no Piauí do século XIX eram mal remunerados, o que lhes levava à busca de outras formas de complemento no sustento. No Piauí, os sacerdotes se afastavam do sacerdócio, “dedicados aos cuidados com suas fazendas de gado” (p. 81). Padre Marcos era um desses “padres fazendeiros”, mas, como afirma o pesquisador, não se afastou de suas obrigações sacerdotais. Ordenou-se Padre em Coimbra, no ano de 1805, retornando ao Brasil naquele mesmo ano, para Recife. Teria ido, também, para o Rio Grande do Norte, depois Oeiras e se mudou definitivamente para a fazenda Boa Esperança, em 1820. Nesse mesmo capítulo, Sousa Neto ainda destaca o trabalho de Padre Marcos nas construções arquitetônicas, com ênfase na capela de Santo Antônio, na fazendo de Boa Esperança, e a igreja matriz de Jaicós. Além dos aspectos de se inscrever por meio dessas obras, Padre Marcos teria atuado no sacerdócio, movendo-se, também, pelo sonho da criação de um Bispado no Piauí, sendo “o seu maior sonho e com certeza a sua maior decepção sacerdotal, em virtude da veemente recusa que impediu a sua criação” (p. 111).
No capítulo 3, “Entre o Gado e as Letras: a instrução escolar no Piauí”, Sousa Neto ressalta que discutir a instrução formal no Brasil do período colonial e imperial, mesmo diante do crescente número de pesquisas acadêmicas, ainda é um grande desafio, sobretudo por causa da escassez das fontes documentais. Ao falar dos “trôpegos passos”, diferente do que se costuma esperar de uma região na qual a oferta do ensino formal não era uma prioridade para grande parcela da população, o autor assevera que “a documentação consultada pôs em destaque a preocupação governamental com as chamadas Aulas Públicas” (p. 120), que começou a ter maior relevância no início do século XIX. Os baixos salários pagos ao magistério, contudo, constituiu-se em um dos entraves para a instrução pública, não só no Piauí, mas em outras províncias, levando-os a se dedicarem a outras atividades, inclusive o magistério particular. Como enfatiza Sousa Neto, a baixa remuneração fazia “parte de uma conjuntura política e econômica, na qual, com um discurso contraditório, os gestores da Instrução reconheciam a importância social do trabalho dos professores, mas, por outro lado, isso não correspondia a ações para melhor qualifica-los e remunerá-los” (p. 136).
Assim, o autor comenta inúmeras leis e decretos que impactaram nos rumos da Instrução Pública, que versavam sobre remuneração, oferta de cadeiras e currículos. É nesse cenário que a escola de Boa Esperança “distinguiu-se no cenário piauiense, atraindo o interesse de muitos pais e alunos, despertando uma forte demanda por vagas” (p. 171). Em relação a Padre Marcos, o autor diz que “a história da Escola toca e se confunde com a história do Padre” (p. 174), ao passo que discutir um implica transitar pela história do outro, pois a Escola “é tomada com um dos pontos de contato e de troca entre o indivíduo e o coletivo” (p. 174).
Dessa maneira, no capítulo 4, “Mão de ferro em luva de pelica: Padre Marcos e sua escola”, trata especificamente da escola de Boa Esperança e como ela se tornou referência de Instrução no Piauí, sendo “considerada a primeira instituição de instrução formal a funcionar efetivamente no Piauí” (p. 173). O autor afirma que, mesmo a parte da população mais interessada nas atividades de subsistência, a escola tornou-se a “mais importante e bem sucedida experiência educacional no Piauí, até a primeira metade do século XIX, tendo seus reflexos ultrapassando as fronteiras da Província e da própria educação, ajudando a formar boa parte de seu corpo dirigente e marcando significativamente a história local” (p. 173). Mesmo nos momentos em que assume funções na vida política, sobretudo a partir de 1824, quando assume a Vice-presidência da Província, suas ausências não comprometeram o funcionamento ininterrupto da Escola, até mesmo porque utilizou monitores, que eram os alunos mais avançados, para o acompanhamento dos alunos iniciantes. Outro aspecto da Escola, que permitiu o seu funcionamento durante as ausências de Padre Marcos, foi o formato de internato, ofertando, também, um ensino prático ligado às atividades mais desenvolvidas na região, notadamente as das fazendas.
No capítulo 5, “Nos bastidores do poder: política e família no Piauí do século XIX”, Sousa Neto analisa que as muitas facetas de Padre Marcos, como “clérigo, fazendeiro, intelectual, educador, político” (p. 219) devem ser compreendidas no seio das redes de poder nas quais ele estava imerso. Isso é pertinente, pois Padre Marcos foi “herdeiro político da elite dirigente do Centro-Sul piauiense, constituída a partir das redes familiares, que se alicerçavam” (p. 219) nas bases do parentesco e favores mútuos. Nesse sentido, o autor faz uma acurada discussão teórica e metodológica sobre a produção historiográfica pautada nas relações entre família, sociedade, política, economia e poder. A partir disso, traça o panorama das redes familiares, Estado e patrimônio no Brasil e no Piauí, do século XIX. Por esse viés, “Padre Marcos representou, assim, sujeito dos mais importantes nas relações de poder no Norte do Império, expressivo representante das redes familiares do Centro-Sul piauiense” (p. 246). Segundo o pesquisador, “o sucesso da escola de Boa Esperança deveu- -se, em muito, ao prestígio desfrutado por seu idealizador e à sua condição de mantenedora da ordem social vigente, ao oferecer aos jovens uma educação apropriada aos interesses dos grupos familiares da elite da época” (p. 247).
No capítulo 6, “Tempo de Semear; Tempo de Colher”, o autor menciona as diversas manifestações a favor da Independência, que ferviam por todo o Brasil e, também, no Piauí, sobretudo nas vilas de Parnaíba e Oeiras.
A Insurreição de 1817 atingiu, além de Pernambuco, as capitanias da Bahia, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Piauí. Nessa última o movimento “não ganhou maiores contornos nem firmou raízes” (p. 253), muito embora tenha havido um envolvimento concreto. Durante esse movimento de insurreição, conforme Sousa Neto, o Padre Marcos teria ficado afastado, pois não era de interesse de seu grupo familiar aderir à Insurreição, visto que, “de maneira geral, não havia entre os grupos familiares que compunham a elite piauiense, o desejo de ruptura com Portugal” (p. 254). As reverberações da Insurreição foram sentidas em momento posterior, com a agitação causada pela Revolução do Porto, em 1820. No Piauí, a inquietação se deu no ano de 1821, principalmente em Oeiras e nas vilas de Parnaíba e Campo Maior. Esse estado de agitação se prolongou durante todo o ano de 1822, cujo “projeto vitorioso de Independência foi o das elites locais, formadas a partir de influentes grupos familiares e que já faziam parte da administração provincial” (p. 266). E, no período, Padre Marcos “firmou-se como o grande articulador dos grupos familiares do Centro-Sul piauiense e da adesão da capital à Independência do Brasil” (p. 274). Para endossar seus argumentos de que Padre Marcos detinha muita influência, o historiador também fez análises de correspondências trocadas entre clérigos contemporâneos do Padre. Segundo Sousa Neto, “percebe-se que os argumentos usados por Padre Marcos foram tomados em consideração mais por seu prestígio pessoal”, em suas tentativas de intervir contra movimentos de insurreição. O respeito que o Padre possuía era de tamanha envergadura que a sua casa, “na fazenda de Boa Esperança, funcionou muitas vezes como ‘tribunal’, no qual muitas contendas políticas ou desavenças pessoais foram resolvidas” (p. 294).
Em Entre Vaqueiros e Fidalgos, Sousa Neto inscreve sua marca na historiografia como astuto pesquisador de História, desbravando as trilhas dos pensares e fazeres de uma temporalidade e de uma espacialidade circunscritas nos vários “entre” que engendram a construção de sua narrativa, contemplando os limiares entre o sujeito e a sociedade, bem como entre a história, a religião, a política e a educação.
O historiador Marcelo de Sousa Neto, de forma corajosa e competente, conseguiu construir uma narrativa esclarecedora sobre a história do Piauí e Brasil do século XIX, tomando as aproximações entre Padre Marcos e o seu período. Ele teceu “uma imagem que procurar recuperar, na narrativa, o macro através da poeira de acontecimentos minúsculos” (p. 315), com o intuito de demonstrar que, “por meio de uma trajetória individual, como as singularidades relacionam-se e podem expressar as regularidades coletivas” (p. 315). Assim, como ressalta o próprio autor, “o fato é que não era possível ignorar as páginas da história do Piauí que Padre Marcos ajudou a escrever e que continuam sendo reescritas” (p. 313) e relidas, reinterpretadas. E Entre Vaqueiros e Fidalgos é um indício provocador para novas reflexões sobre a história e a historiografia brasileira do século XIX.
Referências
QUEIROZ, T. de J.M. 2006. Historiografia piauiense. In: T. de J.M.
QUEIROZ, Do singular ao plural. Recife, Edições Bagaço, p. 141-170.
Pedro Pio Fontineles Filho – Universidade Estadual do Piauí. Campus Clóvis Moura. Rua Des. Berilo Mota, s/n, Dirceu Arcoverde I, 64001-280, Teresina, PI, Brasil. E-mail: ppio26@hotmail.com.
The World the Civil War Made | Gregory P. Downs e Kate Masur
A discussão sobre as consequências da Guerra Civil constitui campo central dos debates sobre a extensão da cidadania e a ampliação da ação estatal naquela república. Essa circunstância imprime forte demanda por originalidade aos trabalhos publicados pelas novas gerações, especialmente naquilo que toca à natureza do Estado que emergiu daquela contenda. Esse movimento implica tanto a escolha de novos temas, quanto a revisão dos cânones centrais da tradição anterior. Os trabalhos mais recentes buscam superar o que ficou conhecido como “a narrativa da liberdade”.[1] O que vem sendo contestado por essas pesquisas é uma forma de descrever o conflito e suas consequências a partir das transformações que levaram à emancipação dos escravos, a aprovação de três emendas que universalizaram a cidadania e o crescimento vertiginoso do poder de intervenção do Estado Nacional. A história seria muito bonita se tivesse terminado por aí, mas os caminhos tomados pela política dos Estados Unidos mostraram-se pouco promissores em termos das aspirações por integração racial e extensão da cidadania que marcaram os anos imediatamente posteriores ao final do conflito.
As abordagens que agora são criticadas operaram sobre a dicotomia escravidão/liberdade, na qual a Guerra atuaria como o grande vetor dessas transformações. Essa visão, que sobressaiu nos últimos cinquenta anos, derivou do impulso pelos direitos civis, que galvanizou o país com os movimentos de contestação do status quo, o combate à segregação racial e as lutas por inclusão social envolvendo negros, mulheres, índios e outras minorias. A percepção de que o país que ajudou a derrotar o nazi-fascismo discriminava parcelas expressivas da sua própria população causava desconforto na opinião pública. Essa sensação, potencializada pelos traumas da guerra fria, estimulou gerações de historiadores a mergulharem numa época em que foi possível pensar a construção de uma sociedade multiétnica tendo por base a ação de um Estado nacional de caráter reformista. Um período da história dos Estados Unidos durante o qual capitalismo e reforma social pareceram caminhar unidos.
A era da Guerra Civil passou a ser vista como uma janela de oportunidades durante a qual reformas importantes entraram em execução, destacando-se a emancipação de quase quatro milhões de pessoas e a destruição do sistema de plantation no Sul. Nesse contexto, a atuação do Estado nacional e de suas organizações, principalmente o Exército, foi associada a ações positivas que transformaram o caráter da cidadania norte-americana mediante a sua nacionalização e a redução da autoridade dos estados ou do poder das elites locais. A experiência da guerra teria sido positiva, sobretudo pela destruição da influência da oligarquia sulista, que exercia uma atuação reacionária na organização nacional tanto pelos obstáculos internos que ela criava quanto por seu projeto de expandir o escravismo no plano internacional. A derrota do Sul levou a um fortalecimento sem precedentes das prerrogativas do Estado Nacional, desacorrentado das amarras que limitavam suas ações no período pré-guerra. O Estado, segundo essa visão, tornou-se não apenas o propulsor do desenvolvimento econômico, mas a principal arena de defesa da expansão dos direitos, tendo como sua principal ferramenta a atuação de um Exército vencedor. Emblemático dessa posição é o livro de Eric Foner, que redefiniu a “revolução inacabada” como central para as mudanças nos padrões de comportamento da população frente ao Estado nacional. O trabalho de Foner reavaliou o processo de reconstrução do Sul dos Estados Unidos após a vitória da União como um momento significativo de mudanças, ressaltando a aliança entre o Partido Republicano, o Exército e os libertos, no contexto daquilo que Lincoln denominou como “O renascimento da liberdade”.[2]
As críticas atuais partem geralmente da percepção de que persiste a discriminação, que penaliza minorias e imigrantes. Da constatação de que promessas reformistas dos movimentos pelos direitos civis não se cumpriram. Da persistência de um processo de marginalização de amplos setores da sociedade norte-americana, a despeito de anos de políticas de ação afirmativa. Da comprovação de que essa situação é apoiada por setores da população. E da constatação das limitações do Estado que surgiu no pós-guerra. A pauta aqui enfatiza as continuidades, preocupando-se em entender os elementos que possibilitaram a manutenção das estruturas elitistas que permaneceram ativas no mundo criado pela Guerra. Esse movimento de revisão do revisionismo foi denominado pela historiadora israelense Yael A. Sternhell como “The Antiwar Turn”.[3
]A coletânea de treze textos organizada por Downs e Masur vincula-se ao movimento de reconsideração que contesta o legado libertário da Guerra. Ela resultou de uma conferência realizada na Pennsylvania State University sob o título “New Directions in Reconstruction”. Trata-se de uma visão mais cética da herança do conflito, atenta às injustiças e arbitrariedades que permaneceram ou mesmo se expandiram como resultado das forças que a vitória da União ajudou a deslanchar. Mas principalmente descrente dos efeitos benéficos da relação entre reformismo e capitalismo na história da nação. Ela cobre principalmente o período da chamada Reconstrução (1863-1876), quando as lideranças do Partido Republicano estabeleceram os parâmetros da operação do sistema político e do acesso aos direitos básicos nas diferentes regiões. Trata-se do projeto de reestruturação do Sul após a derrota, quando o partido Republicano e o Exército se associaram aos libertos e aos grupos pró-União numa tentativa de transformar as relações de trabalho expandindo direitos e realizando outras reformas tendentes a erradicar os fundamentos da sociedade escravista. Trata-se de uma revisão pela base, com o claro intuito de reformular o entendimento das consequências do conflito para diferentes setores, com ênfase nas experiências das minorias: índios, mulheres negras, coolies, mexicanos e outros grupos cujas identidades permaneceram subalternas no mundo que a Guerra Civil ajudou a criar. Como Steven Hahn destacou na conclusão “a principal tarefa daquilo que costumeiramente denominamos como ‘Reconstrução (…) foi a reorganização da economia política dos Estados Unidos, definindo o curso daquilo que se tornaria a próxima reconstrução – não nos anos de 1950 e 1960, mas através da reconstrução corporativa da América, na década de 1890” (340).
A crítica dirigida à Reconstrução fica evidente já na introdução, quando os organizadores sugerem que “a ideia é dispensável”. Essa sugestão deriva da persuasão de que a “Reconstrução” não proveu “a estrutura mais adequada para o entendimento do sentido das várias histórias dos Estados Unidos no pós-guerra” (4). O ponto reaparece com intensidade variável em diversos capítulos subsequentes ainda que alguns mantenham uma abordagem mais tradicional ao tratar de temas como o terror e a agressão sexual. Kidada E. Williams enfoca como os Afro-Americanos lidaram com o trauma dos ataques noturnos, praticados por organizações paramilitares como a Klu Klux Klan. Esses ataques visavam à eliminação ou a neutralização das lideranças negras que lutavam por igualdade de oportunidades entre as raças. Trata-se de um levantamento dos depoimentos prestados aos agentes da Secretaria dos Libertos (Freedmen’s Bureau) que expõem as representações do terror que estes indivíduos suportaram e os traumas decorrentes da violência e das injúrias recebidas, num contexto definido como “sofrimento social” (161). Numa linha semelhante, Crystal N. Feimster discute como a experiência da Guerra e da ratificação da 14ª emenda renovaram os esforços das mulheres negras no sentido de determinar quando e com quem consentiriam ter relações sexuais. Essa movimentação ocorreu contra uma cultura do estupro que era comum tanto aos senhores sulistas quanto aos soldados do exército da União. A despeito dos avanços obtidos após o final da Guerra, a retirada das tropas colocou em risco novamente a integridade física das mulheres negras, demonstrando a limitação do governo federal para protegê-las de uma tradição estupradora e intimidante, que persistiu no assim chamado “novo sul”. Ao expor como a herança da escravidão continuou a influenciar a economia política norte-americana, essas historiadoras contestam a noção de que a transição da escravidão para a liberdade tenha sido tão profunda como Eric Foner e outros gostariam. O continuum de violência contra os negros, se alongado do campo para as cidades, levanta questões traumáticas a respeito da narrativa da Guerra Civil e do período subsequente a sua conclusão, sugerindo que o mundo que a Guerra Civil criou permaneceu imerso em concepções de cidadania muito pouco igualitárias.
O legado da Reconstrução, agora enfocado como miragem, é igualmente minimizado no artigo de K. Stephen Prince, que trata da forma como as fotografias das ruínas das cidades sulistas foram recebidas pela opinião pública do Norte. Antes mesmo do fim da guerra a disseminação de exposições fotográficas retratando a destruição das principais cidades sulistas fortaleceu um senso de irreversibilidade histórica entre as audiências nortistas. As imagens de ruínas eram relacionadas à promessa de um Sul renascido (114), misturando-se tanto com a concepção de uma justa punição à rebelião quanto com o fim daquela sociedade tal como havia existido até então (114). Nesse sentido, a catástrofe confederada era vista como “produtiva, construtiva e necessária” (123). No entanto, essa interpretação ignorava que as lideranças sulistas não haviam aceitado sua condição como permanente. Um velho ditado sustenta que “o sul perdeu a guerra, mas venceu a paz”. Ele indica, entre outras coisas, que a mentalidade sulista foi menos atingida pela derrota que a realidade física de suas cidades. Consequentemente, a amargura da porção branca da população sulista fermentou intenções muito diferentes daquelas que os fotógrafos pensavam registrar. Intenções que favoreciam comportamentos, ideologias e estruturas sociais que antecediam à guerra. A permanência dessas atitudes ressalta o que o autor define como a “teimosa tenacidade do passado” (129).
Ainda no campo das crenças e representações, Luke E. Harlow demonstra como a chamada contrarrevolução sulista, baseada na manutenção da supremacia racial branca, derivou em grande medida da manutenção de uma moral cristã que antecedia à eclosão da rebelião. Esse padrão era sustentado pelos ramos sulistas das igrejas Batista, Metodista e Presbiteriana, que aturam como uma força coerente e que continuam a plasmar a cultura política da região. Elas constituíram o que o autor denomina como “uma teologia da escravidão” (151) em oposição aos ideais milenaristas que prevaleciam nos ramos nortistas das mesmas denominações. A busca de elementos de sustentação do passado escravista e a análise da sua persistência constituem pontos fortes dos artigos aqui analisados, especialmente quando lidam com questões relacionadas à memória e as comemorações do pós-guerra.
O principal alvo dos autores, no entanto, não é a propriamente a Reconstrução, mas o conceito de Leviatan Ianque, desenvolvido pelo sociólogo Richard Bensel no final dos anos 80 do século passado.[4] A visão de um Estado nacional revigorado, emergindo do período da guerra com a força de um vitorioso mandato sangrento foi central para a corrente conhecida como “American Development”. A ratificação do Homestead Act, o apoio à industrialização, o controle da atividade monetária constituem etapas importantes da aceleração do processo de formação do Estado, em cumprimento de uma agenda que datava do período Federalista. Os organizadores e a maioria dos autores de The World the Civil War Made criticam esse entendimento da autoridade esposada pelo governo federal. Eles enfatizam a vulnerabilidade dessa estrutura frente a soberanias locais e sua dificuldade para impor a autoridade longe dos centros urbanos.
Em geral, os artigos desta coletânea definem o Estado do pós-guerra através do conceito de “Stockade State” ou Estado de Paliçada. Essa estrutura seria constituída por uma coleção de postos avançados, espalhados pelo território, poderosos apenas dentro de limites geográficos estreitos. Essas composições encontravam-se vulneráveis tanto à ação de centros de poder alternativos, como ao movimento de indivíduos que viviam além de qualquer autoridade pública. A ênfase, portanto, encontra-se na fraqueza relativa do Estado Nacional que emergiu da vitória da União, destacando-se sua incapacidade para incorporar grupos minoritários a uma concepção mais abrangente da cidadania, bem como sua inaptidão para gerenciar os conflitos que emergiram na esteira da guerra. O ponto encontra seu paroxismo no trabalho de Laura F. Edwards, que sustenta que “nem o governo federal e nem mesmo os governos estaduais controlavam a lei e a governança nos Estados Unidos oitocentistas” (28).
Outros capítulos apresentam uma descrição dramática dos conflitos a respeito das formas de trabalho compulsório que se mantiveram após o fim da escravidão. Para Stacey L. Smith as lutas centrais do pós-guerra visavam ao mapeamento dos limites coativos no intuito de determinar como o governo Federal interviria para restringir o poder coercitivo de empregadores, corporações e estados. Analisando as situações da peonagem indígena e da exploração dos coolies, a autora demonstra como o governo republicano foi capaz de confrontar com sucesso a assertiva “de que a servidão indígena poderia ser benéfica” (52), ainda que soluções para a questão da peonagem viessem a ser estabelecidas de maneira lenta e conflituosa. Simultaneamente, a defesa da autonomia individual e da mobilidade ascendente, pedras basilares do credo liberal, levou os mesmos republicanos a baterem-se pela exclusão dos imigrantes chineses. Isso se deu a partir do entendimento de que os coolies, como eram pejorativamente chamados, seriam servis e dependentes num nível que excluiria sua assimilação como trabalhadores livres.
The World the Civil War Made apresenta o poder público como uma estrutura sitiada por forças locais, por funcionários ineptos, por questões constitucionais, todos atuando como limitadores da capacidade estatal de agir com alguma autonomia num cenário de tensões e incertezas. Nesse cenário, a violência assume papel central na narrativa, praticada com liberalidade frente à incapacidade do Estado para atuar com força na periferia da sociedade. Nas palavras dos editores: “{P}erguntamos se a cidadania, os direitos individuais, e a autoridade federal definiram a era” (14). A resposta certamente é negativa. As situações da persistência da peonagem e da exploração continuada dos imigrantes coolies evidenciam os limites da ação do Governo Federal frente a forças locais e costumes de exploração do trabalho, que pareceriam arraigados nas paisagens do Novo México e da Califórnia. Demonstram também que muitas das concepções ideológicas dos republicanos eram insuficientes para lidar com o grau de complexidade das realidades da fronteira oeste daquela república.
Outro lado da mesma crítica refere-se aos efeitos perversos das forças que a guerra deslanchou. Assim, o mesmo Estado que estimulou um desenvolvimento capitalista acelerado mostrou-se cada vez mais insensível frente à questão indígena. Stephen Kantrowitz em seu estudo sobre os índios Ho-chuck observa que as leis e emendas que referendaram a cidadania em escala nacional pretendiam que os nativos abraçassem uma matriz de valores e comportamentos que incluíam os princípios da propriedade privada e os hábitos da colonização, da orientação para o mercado e do lar patriarcal. Para Kantrowitz a experiência dos Ho-Chunks sugere que “a luta pelo significado da cidadania e a política de civilização coercitiva se entrecruzaram” (77). A partir da condição de rivais na disputa pelo uso do solo norte-americano, as tribos indígenas representaram um desafio direto à ideia do solo livre. A política de paz do presidente Grant procurou destribalizar os índios, substituindo sua vida comunal e a posse coletiva das terras por um sistema agrícola patriarcal. Dessa forma, “o conceito de cidadania funcionou como uma ferramenta disciplinar do Estado, não como um caminho para a cidadania indígena” (99).
Em seu capítulo sobre os paradoxos da política indígena, C. Joseph Genetin-Pilawa dissocia os conflitos envolvendo os nativos da trajetória da Reconstrução. O autor entende que o otimismo expresso na criação do Office of Indian Affairs declinou devido a mudanças de concepção entre os próprios legisladores. Estes deixaram de entender a soberania como pilar da política indígena, cedendo à política de colonização que afetava profundamente a capacidade de sobrevivência daquelas comunidades. Nesse sentido, a débâcle da soberania indígena sobre suas terras não resultou do terror ou da intimidação política, como no Sul, mas da ação de forças econômicas e migratórias que o governo Federal não quis ou não pôde controlar. O papel do exército também foi diferente. Se no Sul a instituição envolveu-se na reforma do sistema político contra uma oligarquia branca agressiva, sua atuação no Oeste foi bastante diferente. Ali o exército atacou sistematicamente as comunidades indígenas como forma de erodir sua soberania, tornado-se “um agente poderoso da política de colonização” (194). Sem o Exército, a política de remoção indígena que prevaleceu no final do século XIX seria impossível.
Barbara Krauthamer oferece um dos textos mais originais e provocativos da coletânea. Ela analisa a situação das nações indígenas, muitas das quais possuíam escravos e aliaram-se ao Sul durante a Guerra. O capítulo analisa o tratado de 1866, firmado entre o governo Federal e as nações Choctaw/Chicasaw. O tratado emancipou os escravos negros dos indígenas, simultaneamente afetando a soberania indígena sobre suas terras. Ao invés de alinhar-se às análises que consideraram a pressão antiescravista como um instrumento do avanço colonizador, a autora propõe entendê-lo como “ilustrativo do escopo complexo, contraditório e continental da Reconstrução” (242).
Dois capítulos parecem destoar da proposta do livro. Andrew Zimmerman tenta combinar uma analogia da tradição historiográfica marxista nos EUA aos escritos de Marx e Engels sobre a Guerra Civil. Através da análise da participação de exilados alemães nas forças da União o autor critica o conceito de Revolução Burguesa, que parte da tradição marxista associou ao legado da guerra. Zimmerman afirma que a própria dinâmica da Guerra mudou o conceito de revolução, influenciando os escritos posteriores de Marx e Engels. Trata-se de texto exploratório, crítico aos trabalhos que mais recentemente procuraram encontrar vínculos entre as revoluções europeias de 1848 e a liderança republicana nos EUA. O capítulo também reforça o conceito de agência, a partir da reconsideração da luta dos escravos, considerados atores centrais do proposto processo revolucionário. Aqui inexiste discussão sobre a Reconstrução ou sobre o caráter do Estado emergindo da Guerra, mas uma tentativa isolada e sofisticada de conectar o mundo da Guerra a uma perspectiva internacionalista.
A discussão de Amy Dru Sanley sobre os efeitos do Civil Right Act (1875) na política de direitos humanos demonstra os efeitos positivos da política da Reconstrução, ao considerar essa medida como precursora da criação de uma esfera dos direitos humanos. Essa ação infere que a linguagem dos direitos humanos nasceu naquele contexto, representando um divisor de águas tanto para o fim da escravidão como para a emergência dos discursos sobre reforma social, a partir da disputa sobre o direito ao divertimento. O artigo parte de um processo movido por um negro contra a segregação nos teatros. O direito ao lazer, visto como uma atividade menos relevante, fornece o ponto de partida para uma discussão crítica em relação à historiografia sobre direitos humanos. Trata-se de um dos mais imaginativos capítulos da coletânea, ainda que ele não se alinhe diretamente à discussão sobre a natureza do Estado proposta pelos organizadores.
A introdução, os doze capítulos subsequentes e a conclusão expõem as ambiguidades do mundo que a Guerra criou, enfatizando realidades complexas e multifaceadas. Assim, mais que um era de esperanças e promessas de liberdade, os trabalhos aqui expostos delineiam uma sociedade marcada pela violência e pela persistência de comportamentos tradicionais, estimulados por diferentes aglomerações de poderes locais. Eles descortinam uma agenda de pesquisas que permitirá ao leitor brasileiro situar-se a respeito das abordagens mais recentes sobre a História dos Estados Unidos durante a segunda metade do século XIX.
A distribuição dos artigos poderia ter obedecido a alguma forma de subdivisão temática que ordenasse por assunto. Essa organização tornaria a leitura mais agradável, reforçando a continuidade e facilitando a compreensão sobre as diferenças de concepção entre os colaboradores. Por outro lado, algumas vezes a uniformidade parece um pouco forçada sobre os textos, apesar dos esforços de vários autores para alinharem seus trabalhos aos conceitos-chave do livro. É compreensível que assim seja, já que um dos objetivos dos organizadores é o de entender “{C}omo as mudanças {proporcionadas pela guerra} ecoaram nas vidas das pessoas comuns e das comunidades”. Mas é preciso levar em conta o fato de que nem todos os autores parecem estar lendo por uma mesma cartilha analítica, apesar das referências trocadas entre vários dos capítulos. Ou seja, a coesão analítica nem sempre é consistente, circunstância que pode ser comprovada pela dificuldade para romper com a própria periodização da Reconstrução. Além disso, um pouco mais de uniformidade no tratamento de certos termos seria bem vinda. Os conceitos de Governo Federal, Estado Federal, Governo Central poderiam ter sido padronizados. Mas esse é um problema menor, que futuras reedições deverão corrigir. No geral, ainda cabe refletir até que ponto essas abordagens desautorizam ou complementam os estudos anteriores, particularmente no que diz respeito à longa tradição analítica sobre state building proporcionada pelos trabalhos da Sociologia Histórica, cuja ausência nesta coletânea é completa.[5] O estudo do Estado constitui uma espécie de caixa de pandora que uma vez aberta precisa ser enfrentada na sua totalidade. Assim, pode-se dizer que os estudos dessa coletânea apresentam propostas inovadoras e interpretações alternativas à grande narrativa da liberdade propondo novas direções para os estudos sobre a Guerra Civil e suas consequências. Portanto, eles abrem um caminho, mas ainda é cedo ainda para saber se um novo paradigma está sendo estabelecido.
Notas
1. A esse respeito ver, Caroline Emberton, “Unwriting the Freedom Narrative: A Review Essay”. In The Journal of Southern History, Volume LXXXII, no. 2, maio de 2016, pp.377-394.
2. Foner, Reconstruction: America´s Unfinished Revolution. Nova Iorque, Harper & Row, 1988; Lincoln, “The Gettysburg Address” In Harold C. Syrett (org.), Documentos Históricos dos Estados Unidos, p. 221.
3. Yael A. Sternhell, “Revisionism Reinvented: The Antiwar Turn in Civil War Scholarship,” Journal of the Civil War Era 3 (junho de 2013), pp. 239-256.
4. Richard Franklin Bensel, Yankee Leviathan: The Origins of Central State Authority in America, 1859-1877. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
5. Para uma coletânea sobre o debate ver, Peter Evans, Dietrich Rueschmeyer & Theda Skocpol, Bringing the State Back In. Cambridge, Cambridge University Press, 1985.
Vitor Izecksohn – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFF, Niterói – RJ, Brasil. E-mail: vizecksohn@gmail.com
DOWNS, Gregory P; MASUR, Kate. The World the Civil War Made. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2015. Resenha de: IZECKSOHN, Vitor. Guerra Civil nos Estados Unidos: novo balanço da Reconstrução. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 346-355, jan./abr., 2017.
Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império | Marta Amoroso
Conheçamos o projeto de uma fazenda ideal, imaginada por um francês no Brasil durante a primeira metade do século XIX. O sujeito pensou-a cercada por um cenário paradisíaco na Serra da Mantiqueira, interior de Minas Gerais. Seria uma fazenda produtiva e assentada em terras férteis. Para viabilizar tal prosperidade, o francês acreditava ser possível manter índios e negros em paz, submissos a ele e trabalhando de maneira eficiente. Os africanos escravizados, a benevolência de seu senhor faria que eles se portassem de maneira cordata, retribuindo com dedicação ao trabalho. Já os índios, estes deveriam ser atraídos com presentes. Uma vez que se tornassem aliados, o caminho para sua submissão seria a catequese (p. 38-39). Esse foi um projeto idílico de Auguste de Saint-Hilaire, botânico que viajou por diversas partes do Brasil entre 1816 e 1822, coletando milhares de espécies vegetais e animais, escrevendo relatos. Seus textos são alguns dos mais preciosos escritos sobre o Brasil no século XIX. Apresentam elementos não só sobre a fauna, a flora e a geografia do território, mas também sobre as populações dos sertões do Brasil, incluindo os povos indígenas das várias províncias que conheceu.
O projeto idílico da fazenda Saint-Hilaire, nunca realizado, era apenas uma miragem, uma idealização de como controlar a natureza submetendo-a aos interesses da ciência e do desenvolvimento econômico. Dentro dessa visão, alguns cientistas como ele acreditavam que os povos ameríndios representavam um estágio de degeneração da espécie humana e que cabia aos povos europeus encontrar caminhos para os “civilizar”.
A passagem descrita acima é uma das preciosidades apresentadas e analisadas neste novo trabalho de Marta Amoroso, publicado em 2014 e lançado em 2015 pela editora Terceiro Nome. Com base em arquivos sediados em diferentes países, em especial a documentação da Ordem Menor dos Frades Capuchinhos, de orientação franciscana, sediada no Rio de Janeiro (Arquivo da Custódia dos Padres Capuchinhos no Rio de Janeiro), – Amoroso escreveu uma importante contribuição aos estudos sobre os índios do século XIX. Utilizando-se das ferramentas teóricas da Antropologia, relendo os estudos clássicos de Telêmaco Borba e Curt Ninuemdaju sobre os Guarani no início do século XX, a autora visa não só descrever as políticas de Estado e os dilemas que os freis enfrentaram nos interiores do Brasil, principalmente no Paraná, mas problematizar como os coletivos indígenas (termo up to date entre os etnólogos para se referir aos grupos indígenas) se inseriram nos aldeamentos.
Os aldeamentos no Império do Brasil foram um novo-velho modelo de controle dos índios. A política das aldeias sob controle dos brancos no XIX pode ser lida no sentido de uma reedição, uma espécie de mescla de referências jesuíticas e pombalinas do período colonial. Ao mesmo tempo, traz as novidades de um Estado nacional que buscava controlar as populações do território que pretendia como seu, dinamizando a economia dessas regiões dentro da lógica produtiva do capitalismo. Além disso, a autora mapeia os fundamentos científicos que embasaram as ações dos viajantes europeus ao Brasil no XIX, das concepções dos padres capuchinhos e das formas como os diferentes grupos indígenas traduziam e se inseriam nas novas situações.
Marta Amoroso é antropóloga, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Defendeu o seu mestrado na Unicamp, sob orientação de Roberto Cardoso de Oliveira, estudando o povo Mura na Amazônia no século XVIII. No doutorado, na USP, sob orientação de Manuela Carneiro da Cunha, fez uma etnografia do aldeamento São Pedro de Alcântara (1855-1895), onde viveram populações Guarani, Kaiowá e Kaingang na província do Paraná. Ingressou na USP como docente no ano de 2000. Desde então vem integrando importantes grupos de pesquisa, orientando pesquisadores e produzindo uma série de artigos e coletâneas centrados nos temas da Etnologia Indígena, História dos Índios no Brasil e estudos sobre os Mura na Amazônia. É uma das pesquisadoras principais do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) na USP, coordenado por Dominique Gallois.
A tese de doutorado de Marta Amoroso, “Catequese e evasão. Etnografia do aldeamento indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895)”, defendida na USP em 1998 é um estudo denso que articula dados de arquivos e levantamentos quantitativos por meio de uma refinada leitura etnográfica. Amoroso, ao longo de sua obra e especialmente em sua tese de doutorado, resolve muito bem a leitura dos dados etnográficos sobre as sociedades indígenas, conseguindo fazer esses dados serem compreendidos dentro do contexto em que foram gerados. Realizar esse tipo de análise com méritos tanto no campo da História como na Antropologia, à maneira de Manuela Carneiro da Cunha e Nádia Farage, é algo raro e merece ser celebrado.[1]
No entanto, a tese de doutorado de Marta Amoroso permanece inédita, pois o livro não é a tese, avisa a autora logo na introdução. Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império é uma síntese dos estudos realizados nos últimos 20 anos pela autora. É certo que esses estudos se iniciam na tese, mas transcendem a ela. O presente livro, dividido em três partes, se propõe permitir uma melhor compreensão dos aspectos que cercaram seu objeto inicial, a experiência do aldeamento São Pedro de Alcântara no Paraná e os relatos do frei capuchinho Timotheo de Castelnuovo. É importante registrar que a não publicação da tese configura-se numa grande perda, pois ela é quase inacessível, estando disponível apenas para empréstimo físico na Biblioteca Florestan Fernandes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O banco de teses online da universidade não possui a tese de Amoroso em seu catálogo, visto que ela foi defendida antes de a USP implantar seu acervo digital de acesso universal.
Voltemos ao livro. A primeira parte, “Explorando a Mata Atlântica”, é composta pelos capítulos “O mal-estar de Guido Marlière” e “Dos Andes e Amazônia, rumo ao crânio botocudo”. Discute os princípios científicos que respaldaram a atuação de muitos viajantes estrangeiros atraídos para o Brasil depois da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. É nessa parte que está situada a análise da “fazenda imaginária” de Saint-Hilaire, mencionada no início desta resenha.
Já a segunda parte, “Propondo a catequese e civilização”, integrada pelos capítulos “Das selvas ao solo ubérrimo” “Descontinuidades”, aparece como um ensaio antropológico. Aqui a autora utiliza o conceito de “equivocações controladas”, de Eduardo Viveiros de Castro, para pensar desencontros e traduções dentro e fora dos aldeamentos entre os diversos coletivos indígenas, capuchinhos, escravos negros, imigrantes e demais moradores do entorno.
A terceira e última parte, “Construindo o aldeamento indígena”, que contém os capítulos “Ficções em frei Timotheo de Castelnuovo”; “Lavoura (s)” e “Um kiki-koi para Arepquembe”, é identificada pela própria autora como uma releitura de sua tese.
Como já mencionado, há várias passagens riquíssimas no livro. Destaco aqui o capítulo intitulado “Um kiki-koi para Arepquembe”, em que Amoroso apresenta a forma como os Kaingang aldeados, mesmo já convertidos ao cristianismo, conseguem retomar um ritual funerário típico de seu grupo, o kiki-koi, para enterrar o cacique Manoel Arepquembe, assassinado em 1872. Uma das grandezas do capítulo está nas relações que a autora estabelece entre as doenças mortais que atingiram diversas vezes os índios dos aldeamentos e de seu entorno e as releituras das mitologias de fim de mundo entre os Guarani e Kaiowá. Outro aspecto analisado é que o modelo de missão do século XIX eliminou uma estratégia fundamental dos jesuítas no período colonial, que era a tradução das línguas indígenas. No Oitocentos, isso resultou no fato de que os freis Timotheo de Castelnuovo e Luís de Cimitille tinham muito menos elementos para descrever e compreender os rituais funerários Kaingang do que os missionários de séculos anteriores tiveram em relação às etnias com as quais conviveram.
Para o historiador Carlos Zeron, que escreve a orelha do livro, o trabalho de Amoroso prima justamente pelas “pontes” que estabelece com outros períodos históricos. De um lado, o modelo de catequese capuchinha é obrigado a dialogar com a tradição colonial jesuítica, que vigeu no Brasil durante cerca de 200 anos. De outro, a realidade dos indígenas no Brasil de hoje é tributária de ações de avanço sobre os territórios indígenas no século XIX.
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no prefácio do livro, destaca por sua vez as peculiaridades do Brasil do século XIX. Tratava-se de um território que, ainda sob o domínio português, se abriu aos interesses de artistas e cientistas europeus convidados pelo príncipe-regente João VI e que culminou com uma política de civilização e catequese de índios a partir de 1845, a qual também previa a vinda de estrangeiros, desta vez padres, sob controle do Estado para se efetivar.
O livro de Amoroso possui uma característica relevante, menos de conteúdo e mais de forma, que eu gostaria de apontar nesta resenha. É uma reflexão que nos ajuda a pensar a eficácia dos formatos aos quais destinamos nossas pesquisas acadêmicas. Por uma série de motivos profissionais e pessoais, podemos deixar de publicar, em formato de livro, as teses e dissertações que produzimos. O que não significa que sejamos pouco produtivos. Ao contrário, desenvolvemos uma série de pesquisas, obtemos financiamento, realizamos trabalhos de campo, vamos a arquivos fora do país, participamos de congressos em diversas partes do mundo. As pesquisas são ricas, como no caso de Marta Amoroso, as análises refinadas, os resultados promissores. No entanto, a exigência de uma produtividade acadêmica que nos remete a uma escala de produção industrial obriga-nos a realizar muito, porém muito fragmentado. Papers em congressos, conferências e comunicações, artigos com número de palavras e páginas estritamente controlado. Com isso, os textos que produzimos, pelos limites impostos pelo tempo e espaço, não conseguem aprofundar os assuntos, muitas vezes são pinceladas a respeito de uma pesquisa maior. A pergunta é: quando, em nosso meio, conseguimos dar a conhecer essa pesquisa maior tanto em tamanho quanto em grau de aprofundamento?
Assim, quando Amoroso opta por publicar um livro que é uma coletânea de artigos, acaba trazendo resultados panorâmicos inconclusos. O leitor fica com muitas indagações que foram mais bem respondidas em outros artigos e na própria tese da autora. Uma das questões, por exemplo, refere-se às articulações e arranjos políticos que estiveram por trás da vinda dos missionários capuchinhos ao Brasil, medida efetivada com a lei de 1845 (Decreto 426 de 24/07/1845). Em artigo publicado em 2006 a autora arriscou uma hipótese, bastante plausível, envolvendo o casamento do imperador Pedro II com a princesa Teresa Cristina, de Nápoles, em 1843, demonstrando que a aliança matrimonial tinha também sentido político e estratégico. Daí concluirmos, seguindo os passos da autora, não ser por acaso a vinda de trabalhadores imigrantes italianos e padres capuchinhos ao Brasil a partir da segunda metade do Oitocentos.[2]
A despeito da ressalva, é evidente que o livro releva grandes achados. No capítulo 4, por exemplo, a autora inicia uma discussão sobre os termos da legislação indigenista do Império e seus desdobramentos. Amoroso nos mostra que os aldeamentos do período significariam uma “descontinuidade” em relação às ações missionárias cristãs. Para a autora, a política dos aldeamentos do Império (1845-1889) trouxe o conceito de tutela do Estado aos índios e, ao mesmo tempo, propôs que seu direito à terra estivesse atrelado ao grau de “selvageria” (p. 76). Dentro dessa lógica, os antigos aldeados não teriam mais direito de permanecer nas missões. Os Guarani-Kaiowá rapidamente aprenderam a jogar dentro desse esquema: se necessário, antigos aldeados “vestiam-se de selvagens” para poder entrar nos novos aldeamentos que se iam fundando (p. 78-80).
No Capítulo 2, Amoroso mostra que o príncipe alemão Maximiliamo Wied-Neuwied, após uma convivência intensa entre os Botocudos, subverteu o binômio tupi-tapuia no século XIX, ao afirmar que os “botocudos” com os quais conviveu eram tão amistosos quanto os tupis do passado. A despeito dessa interpretação mais progressista, os cientistas no período se pautavam nos pressupostos da nascente antropologia física, que postulava os princípios da degeneração das espécies da América, crendo que os botocudos se assemelhariam aos animais, pois não tinham chefia, uma liderança como os andinos (p. 43-8).
Já no capítulo 6, Amoroso mostra uma das formas através das quais os franciscanos tiveram êxito no programa de catequese: com a montagem de uma destilaria de aguardente no aldeamento de São Pedro de Alcântara em 1870. O assunto não foi propagandeado, na verdade seguiu oculto no meio da documentação da Ordem Menor (no Arquivo da Custódia dos Padres Capuchinhos do Rio de Janeiro), visto que o consumo de bebidas alcoólicas entre os índios foi sempre uma prática condenada pela religião católica, o que obviamente não evitou o seu uso, especialmente de bebidas fermentadas e utilizadas nos rituais indígenas. No caso da cachaça, seu consumo esteve sempre relacionado aos danos que causava às populações indígenas, daí o ocultamento do tema (p. 160-1).
Por fim, Amoroso traz novos aportes para que os especialistas enfrentem uma antiga polêmica. Trata-se da afirmação de Manuela Carneiro da Cunha, escrita no começo dos anos de 1990, de que “questão indígena no século XIX era uma questão de terras”:
A “questão indígena”, no século XIX, deixou de ser uma questão de mão-de-obra, para se converter essencialmente numa questão de terras. Há variações regionais, é claro: na Amazônia, onde a penúria de capitais locais não permitiu a importação de escravos africanos, o trabalho indígena continuou sendo fundamental, e foi reaviventado no fim do século, com a exploração da balata, da borracha e do caucho. No Mato Grosso e no Paraná, ou mesmo em Minas Gerais e no Espírito Santo, as rotas fluviais a serem descobertas e consolidadas exigiram a submissão dos índios da região. Mas se se pode arriscar falar “em geral” de um século inteiro e do Brasil como um todo, a tônica foi, no século XIX, a conquista de espaço. Em áreas de índios ditos então “bravios”, tentava-se controlá-los, controlando-os em aldeamentos, “desinfestavam-se” assim os sertões. Nas áreas de ocupação colonial antiga, tentavam-se ao contrário extinguir os aldeamentos, liberando as terras para os moradores. Essas diferenças regionais nada mais eram, portanto, do que duas etapas de um mesmo processo de expropriação. [3]
Amoroso demonstra em seu livro que o projeto dos aldeamentos no Paraná a partir da segunda metade do XIX não tinha por objetivo engajar trabalhadores em atividades de interesse do Império, mas retirar os índios de terras e caminhos estratégicos, abrindo espaço para que chegassem outros trabalhadores, como os imigrantes europeus, considerados mais lucrativos no sistema capitalista. Nisso a afirmação de Cunha casa-se com os dados levantados aqui. De todo modo, a análise de Cunha assenta numa generalidade que o próprio trabalho de Amoroso permite contradizer ao exibir inúmeros episódios em que os índios trabalhavam para além dos aldeamentos, especialmente quando já eram considerados “civilizados” e empregavam-se como “camaradas” contratados por jornadas pelos fazendeiros paulistas (p. 173). Além disso, o problema do texto clássico de Manuela Carneiro da Cunha é afirmar isso para o século XIX como um todo, quando estudos mais recentes sobre a primeira metade daquele século vêm mostrando a importância dos índios como mão de obra em várias partes do território brasileiro.[4]
Outro dado importante, que instiga o leitor a compreender melhor, mas que a autora não fornece maiores dados no livro, ao contrário do que faz na tese, é sobre a presença de população de negros nos aldeamentos e em seu entorno. Esse dado gera perguntas no leitor sobre como se dava essa convivência, que papel ocupavam os negros nesse contexto. Na tese de 1998 é possível descobrir alguns dados mais sobre essas populações que, no entanto, não são explicados no livro. Assim, a presença de africanos e afrodescendentes nos aldeamentos esteve relacionada ao envio de trabalhadores especializados, como ferreiros, marceneiros etc. para trabalhar na Fábrica de Ferro de Ipanema em Sorocaba na década de 1850. Não eram necessariamente libertos, mas estavam na condição de “tutela”, sofrendo ainda castigos físicos conforme as vontades de seus senhores.[5]
Em síntese, os estudos de Marta Amoroso, em seu conjunto, são de uma qualidade ímpar, de grande importância tanto no campo da História quanto da Antropologia, principalmente na intersecção entre elas. A única coisa a lamentar é que o livro foi muito curto perto dos dados que a autora levantou ao longo das últimas duas décadas.
Notas
1. CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Fapesp/SMC, 1992 (como organizadora e autora de um dos capítulos); _____ (org.). Legislação indigenista no século XIX. Uma compilação (1808-1889). São Paulo: Comissão Pró-Índio/Edusp, 1992; FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões. Os Povos Indígenas no Rio Branco e a Colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra ANPOCS, 1991.
2. AMOROSO, Marta. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposição no século XIX. Revista de História 154 (1º, 2006), 119-150 p. 128-30. Disponível em http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/19024/21087 Último acesso em 07/04/2017. Outros estudos que poderiam ajudar a problematizar a questão: SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial. Volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012
3. CUNHA, Manuela Carneiro da. Prólogo. In: ____ (org). Legislação indigenista no século XIX. Op. Cit., p. 4
4. Alguns trabalhos mais recentes, no campo da história sobre os índios, abordaram a participação indígena também no trabalho no Brasil império: COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na guerra: Políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Tese de Doutorado. Campinas: IFCH, 2016; LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café? A resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016; MACHADO, André Roberto de. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). 1. ed. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2010; MOREIRA, Vania Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012; SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Op. cit.; XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil. Trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese de Doutorado. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 2015.
5. AMOROSO, Marta. Catequese e evasão. Etnografia do aldeamento indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutorado em Antropologia. São Paulo: FFLCH-USP, 1998, p. 130-2.
Fernanda Sposito – Pesquisadora de Pós-Doutorado em História na Unifesp. Bolsista FAPESP. E-mail: fifaspo@yahoo.com.br
AMOROSO, Marta. Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império. São Paulo: Terceiro Nome, 2014. Resenha de: SPOSITO, Fernanda. Além do sertão: indígenas no Brasil do século XIX. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 343-351, maio/ago., 2017.
Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas – SILVA et al (RHHE)
SILVA, Alexandra lima da; ORLANDO, Evelyn de Almeida; DANTAS, Maria José. Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015. Resenha de: VARELLA, Jacqueline de Albuquerque. Mulheres viajantes: olhares femininos sobre a educação. Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, Brasil, v. 1, n. 2, p. 304-311, maio/agosto de 2017.
O livro organizado por Alexandra Lima da Silva, Evelyn de Almeida Orlando e Maria José Dantas tem como objetivo lançar novos olhares sobre a temática das mulheres viajantes e a historiografia da educação. São questões que problematizam a trajetória dessas mulheres: “Como viajavam? Para quê? Quais os desdobramentos das viagens nas trajetórias dessas mulheres? Qual a dimensão educativa presente nas mulheres em trânsito?” (p. 9).
Estão reunidos trabalhos de pesquisadores brasileiros e de outras nacionalidades sobre a atuação de mulheres que romperam barreiras geográficas, legitimando a ação feminina em diferentes aspectos da sociedade. Os autores trazem novas pistas sobre as experiências educativas dessas mulheres através de suas viagens. Ao contrário dos homens, quase sempre precisavam de justificativas e apoio para a realização destes deslocamentos. O livro “Mulheres em trânsito” apresenta investigações a respeito das especificidades que envolviam o universo das mulheres viajantes de acordo com os capítulos descritos a seguir.
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“Viajeras y educación femenina en el siglo XIX”, de Sara Beatriz Guardia, aborda a luta pelo direito feminino à educação no Peru, pelas trajetórias das intelectuais Mercedes Cabello de Carbonera e Clorinda Matto de Turner. A autora mergulha no contexto político e social perua-no do século XIX, período onde novos discursos e análises sociais davam, gradativamente, maior visibilidade à mulher.
A intelectualidade peruana, num processo de mudança de mentalidade, teve homens de letras como Manoel Gonzales Prada, que denunciava a abusiva autoridade da Igreja Católica. Prada discursa em favor da educação laica como uma ferramenta, um caminho, para emancipação feminina no Peru. Eram mulheres dominadas pelos dogmas católicos e pelo cerceamento da Igreja.
Pode-se mencionar algumas revistas que foram fundadas por mulheres (ou que as tinham como colaboradoras), como El Album, por Jua-na Manoela Corriti e Carolina Freire de Jaimes, e a Revista Semanal pa-ra el Bello Sexo (1874-1875), com a colaboração de Juana Manuela Lazo de Elespuru, Mercedes Cabello de Carbonera, entre outras escritoras. Guardia destaca a viagem realizada por Clorida Matto à Europa, que também viajou ao Brasil e fala sobre suas impressões do Rio de Janeiro e de sua visita á Coelho Netto.
“Mujeres en misión: la participación femenina en las misiones protestantes de América del Sur”, que tem Paula Seiguer na sua autoria, aborda a temática das viajantes desde uma perspectiva religiosa. Caracterizam-se por mulheres que viajam em missão religiosa no contexto protestante. Essas mulheres viajavam acompanhadas de figuras masculinas, seus maridos, que em alguns casos faziam parte da conjuntura da Igreja ao qual pertenciam. O intuito dessas viagens era de expandir o movimento protestante, evangelizar através da assistência aos mais necessitados, na tentativa de alcançar, em especial, a população indígena.
Este grupo de mulheres possuía uma justificativa para essas viagens que se inscrevia desde uma lógica patriarcal, encaixando-se no modelo feminino burguês do século XIX. O texto traz os aspectos das viagens de mulheres como Mary Bridges e Alice Wood.
“Encuentros con un mundo rural: história de una maestra errante”, de Blanca Susana Veja, põe em foco a biografia da professora mexicana Petra Hernandez Martínez, professora viajante e atuante na zona rural de San Luiz Potosí, no México. A partir da história de vida de Petra Martínez, surgem questões sobre viagens pedagógicas, educação rural (as demandas e especificidades geográficas, culturais e pedagógicas) e formação de professores no contexto histórico rural mexicano de meados do século XX. Fotografias, documento de identificação, documento profissional da professora e relatos de viagens são algumas das fontes utilizadas para a pesquisa, que abarcam a infância e as experiências da maestra dentro e fora do espaço escolar.
Ana Maria Magaldi e Maria João Mogarro, por sua vez, analisam os estudos biográficos na história da educação em “Mulheres de letras e educação feminina no espaço luso-brasileiro: ligações em torno da infância nos escritos de Júlia Lopes de Almeida e Emília de Souza Costa”. As autoras abordam as redes de sociabilidade e a ligação entre as duas intelectuais, assim como as similaridades de ideais entre elas, levando em consideração o contexto político-social português e brasileiro no início do século xx.
A viagem realizada por Emilia de Souza Costa ao Brasil, para conferência no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, é destacada no texto. A conferência intitulada “Mulher” destinava-se às mães e possuía a temática da educação infantil na sua centralidade. O texto destaca ainda a ação excepcional das duas mulheres num contexto social onde a figura masculina predominava no campo literário. Destaca-se a ascensão destas mulheres na produção de uma literatura voltada ao público feminino, escritas por mulheres e destinada a mulheres, tendo foco a educação feminina, a relação mãe e filho, e a educação infantil e higienista.
“Itinerários de uma professora em fins do século XIX”, de Carla Chamon, analisa a trajetória da professora Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e sua viagem feita aos Estados Unidos. Nascida em Minas Gerais, mas atuante no norte fluminense quando se muda ainda menina, Maria Guilhermina possuía uma característica diferenciada em relação às mulheres criadas no século XIX, no Brasil. Incentivada pela família, segue ainda jovem os passos de sua mãe, fundadora do Colégio de Instrução Feminina, em Vassouras, Rio de Janeiro. Guilhermina não se casou, nem teve filhos, mas foi “professora, tradutora, escritora, conferencista, parecerista de congressos e diretora de escolas” (p. 61). Participou da fundação do Colégio Andrade, no Rio de Janeiro.
A autora traça a trajetória da educadora a partir de suas viagens e dos vestígios de seu trabalho pedagógico em jornais do período. Destaca a viagem feita aos Estados Unidos, o abandono da religião católica e sua relação com os missionários e educadores presbiterianos. As viagens da professora e seus itinerários caracterizam sua busca por novos métodos educacionais e sua tentativa de fundar, no Brasil, um jardim de infância. Tem como modelo o método intuitivo e, posteriormente, os modelos da Educação Nova.
“Literatura de viajante: Chiara Lubich, uma professora italiana no Brasil”, de Maria José Dantas, analisar a biografia da supracitada professora, utilizando-se de diferentes fontes, como diários, livros e cartas, desde a perspectiva da história da educação. Num primeiro momento, Maria José Dantas contextualiza aspectos da vida de Chiara no cenário político e social da Itália do fim da primeira metade do século XX. Destaca a trajetória escolar da professora, seus estudos numa escola católica, a dificuldade financeira da família e sua formação como professora, na cidade de Trento.
Segundo a autora, “a educação na Itália, neste período, era caracterizada pela reforma do ministro Giovanni Gentile e pelas propostas metodológicas de Maria Montessori, que sublimou a experiência sensório motora das crianças e Maria Bochetti Alberti, responsável por instituir a escola serena” (p. 128). O texto aborda ainda as mudanças vividas por Chiara por conta dos bombardeios à sua cidade, durante a Segunda Guerra Mundial. A atuação junto aos frades Capuchinhos marca a trajetória social e religiosa da professora, com a fundação do movimento chamado Falcolano, que se difundiu no mundo todo, incluindo o Brasil. Chiara viajou ao Brasil por duas vezes, sendo uma vez em Recife e outra, já no fim de sua vida, em São Paulo, promovendo o movimento Falcolano no Brasil e a educação católica.
Em “As viagens da advogada e professora Maria Rita Soares de Andrade (1904-1998): vivências formativas em busca da emancipação feminina”, Anamaria Freitas lança seu olhar para as correspondências trocadas entre a advogada, professora e feminista Maria Rita Soares de Andrade, Bertha Lutz, Carmem Portinho e Maria Luiza Bittencourt. Destaca a luta feminista pela emancipação feminina no Brasil, o preconceito e a repercussão em jornais sergipanos e cariocas sobre as discussões feministas.
Sergipana, Maria Rita de Andrade formou-se em Direito, tendo uma trajetória marcadas por lutas e emancipação, diferente da maioria das mulheres sergipanas no início do século XX. “Andava pelos cafés, espaços predominantemente masculinos, em Aracajú, nas décadas de 1920 e 1930. Costumava viajar sozinha” (p. 144). As cartas, organizadas cuidadosamente pela autora, traz à luz as redes de sociabilidade entre essas mulheres, evidenciando seus trabalhos, conferências, discursos e estratégias de luta, como a reivindicação do direito feminino ao voto, na década de 1930.
“Um olhar feminino sobre Mato Grosso (1897-1899)”, de Carolina Lima, interpreta a trajetória da escritora viajante Maria de Carmo de Melo Rego, em viagem realizada à Cuiabá. A partir da rota traçada em viagem de navio pelo Rio da Prata, Maria de Carmo Rego deixou registros do seu olhar em cada lugar que passou, e descreve sua relação com a cultura mato-grossense e indígena naquela região. Foi casada com o presidente da província o Coronel Francisco Rafael de Mello Rego.
Através de um mapa ilustrativo da viagem, organizado pela autora e mostrando as cidades visitadas por Maria do Carmo e seu marido, podemos analisar o itinerário com início no Rio de Janeiro, seguindo por São Paulo, Rio Grande do Sul, Uruguai, algumas cidades da Argentina, Paraguai, Bolívia, e Mato Grosso. A escritora fez apontamentos em suas cartas durante a viagem ao Mato Grosso, descrevendo as casas e suas arquiteturas, a cidade de Cuiabá, o contato com as mulheres indígenas e as mulheres escravizadas.
Em “Quase tudo: educação entre música e emoções nas viagens da pianista Magdalena Tagliaferro”, Ednardo Monti apresenta as viagens da pianista a partir dos estudos sobre a escrita biográfica, autobiográfica e escritas de viagens. O autor apresenta um panorama da vida de Magdalena Tagliaferro, pondo em foco a influência que ela recebeu de seus pais franceses para a música, assim como sua formação ao longo da vida adulta. Uma trajetória de constantes viagens e amor pela música, pelo Brasil e suas memórias afetivas sobre a França. Ednardo mergulha nas memórias da pianista, suas redes de sociabilidades, os estudos no conservatório Nacional de Música de Paris e a contribuição musical e pedagógica da pianista para o ensino de música no Brasil.
“Montserrat Sanuy: la introducción de la aplicación del método Orff en escuelas de España en los años 60”, de Maria de Rosário Rodri-guez, tem como foco a trajetória da musicista desta professora catalã. Destaca a educação recebida por Monserrrat, seu contato desde criança com a música, as viagens realizadas à Espanha, França e Alemanha. Na Alemanha, a professora estudou no Institut Orff, que se apresentou como um divisor de águas na sua vida profissional e nas suas contribuições pedagógicas e metodológicas para o ensino de música nas escolas da Espanha.
Junto ao reconhecido músico e professor Carl Orff, a musicista insere uma metodologia que vê “la música como algo natural, que todos los niños pueden hacer con facilidad porque lo llevan dentro, y que se aprovecha para desarrollar un laboro educativo integral, centrada en el leguaje, em la creación colectiva y en la felicidad” (p. 203). Monserrat obteve destaque no rádio e na televisão, apresentando uma nova perspectiva de ensino de música na Espanha.
O texto de Evelyn Orlando, “Quando o mundo cabe na bagagem às experiências de formação e distinção de Maria Junqueira Schimidt no cenário educacional brasileiro”, apresenta a trajetória intelectual e profissional da educadora supracitada, com foco nas suas diversas atuações no campo educacional. Ao longo de sua vida, a educadora fez diversas viagens, realizando seus estudos no Instituto Santa Úrsula, na Suíça francesa. De família católica, Schimidt destacou-se, inicialmente, como professora no Colégio Jacobina, no Rio de Janeiro, e como professora e diretora do Colégio Amaro Cavalcanti, considerando-se que em 1933 poucas eram as educadoras que conseguiam ocupar um cargo de gestão em espaços escolares.
Schmidt também foi orientadora escolar e participou como membro da Comissão Nacional do Livro Didático. Ao longo de sua vida, realizou parcerias com Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto e Aracy Freire. Parcerias essas que resultaram em diversas viagens pedagógicas aos Estados Unidos, em meados dos anos 1930.
Em “Histórias cruzadas? Mulheres viajantes e o ensino da educação”, Alexandra Lima da Silva problematiza histórias de mulheres viajantes que foram silenciadas, trazendo novos olhares e perspectivas para as temáticas sobre viagens e viajantes no âmbito da história da educação. Destaca as histórias de três viajantes: Amanda Berry Smith, negra e lavadeira, que saiu dos Estados Unidos como missionária para os continentes africano, europeu e asiático; Ina Von Binzer, alemã que viajou ao Brasil para dar aulas e ser preceptora de crianças da elite brasileira durante o período Imperial; e Leonowens, uma mulher indiana, naturalizada inglesa, que viajou à Ásia, tornando-se professora dos filhos do rei no Sião.
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O livro “Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas” contribui de forma significativa para a historiografia da educação, trazendo em sua composição pesquisas de qualidade que privilegiaram diferentes e amplas fontes. Os autores reunidos nesse livro lançam seus olhares sobre diários de viagens, escritas biográficas, escritas (auto)biográficas e sobre periódicos, além de outras fontes citadas ao longo da resenha. O livro contribui para dar visibilidade a trajetórias muitas vezes esquecidas, ou mesmo silenciadas.
Mais que recomendada a sua leitura, o livro “Mulheres em trânsito” reúne trabalhos consolidados de pesquisadores do Brasil, do México, da Espanha, do Peru e da Argentina que tratam sobre a atuação feminina em contextos geográficos, sociais e históricos distintos. No entanto, quando reunidos e lidos no seu conjunto, ressignificam a identidade e a atuação destas mulheres que, por diferentes motivos, podem ser consideradas pioneiras em suas respectivas práticas pedagógicas viajantes.
Jacqueline de Albuquerque Varella – Mestranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). E-mail: jacquevarella@gmail.com.
Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884) – FERRONATO (RBHE)
FERRONATO, C. J. Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884). Aracaju, SE: Edise, 2014. Resenha de: MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. ‘GLORIOSO TEMPLO DE SABEDORIA’: O Lyceu Provincial e a Instrução Secundária na Parahyba do Norte. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 17, n. 2 (45), p. 277-282, abr./jun. 2017.
O Lyceu Provincial e a instrução secundária na Parahyba do Norte. Esta é a temática central abordada pelo historiador Cristiano Ferronato no livro Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884), publicado em 2014, pela Universidade de Tiradentes e pela Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe. A obra é fruto de sua tese de doutoramento realizada junto ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, defendida em 2012. Atualmente, Ferronato atua como professor do curso de licenciatura em História e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes – SE. Nos últimos anos, realiza pesquisas sobre instrução no Nordeste oitocentista.
O livro que chega ao grande público discute as configurações da instrução secundária na então Província da Parahyba do Norte desde a oferta de aulas avulsas, enfatizando esse processo histórico do ensino liceal. Em 1836, foi criado o Lyceu Provincial da Parahyba do Norte, instituição de ensino secundário longeva, um precioso artefato da memória educacional paraibana que carrega consigo uma força de preservação, de interação e de germinação, representado pela elite provincial, ao longo do século XIX, como um ‘glorioso templo de sabedoria’1. A instituição carecia de um trabalho de fôlego, e Cristiano Ferronato nos brindou com este estudo que abrange 48 anos, visto que delineou seu recorte entre os anos de 1836, com a criação do Lyceu, e 1884, quando este foi transformado em Escola Normal. Nesse processo, além do ensino liceal, o autor discute as aulas avulsas públicas e particulares na Província. O livro é composto de cinco capítulos e nele, a partir das primeiras páginas, sentimo-nos convidados a bater à porta e entrar nesse universo instrucional, morada de tantas histórias.
‘Um tempo, um espaço e um objeto’. Neste capítulo inicial, o autor enfoca as questões teórico-metodológicas e, com base nelas, aponta a trajetória percorrida para a realização da pesquisa. Fiel à sua formação,estabelece um diálogo rico com o núcleo documental, composto por leis, regulamentos, decretos, correspondências, dados estatísticos, listas de alunos, programas de ensino, jornais, manuscritos, dentre outros, com destaque para os relatórios e falas dos presidentes de Província direcionados à Assembleia Legislativa. Respaldado pelos aportes teóricos e metodológicos de uma abordagem cultural, explora de forma fecunda o fenômeno da escolarização secundária, com o auxílio de formulações elaboradas por Bourdieu, como as noções de ‘configuração, representação’ e ‘poder simbólico’. Realiza também um maduro investimento no mapeamento dos estudos liceais no Brasil e em Portugal e na interlocução com a historiografia.Em consonância com a abordagem de Dolhnikoff, alavanca as elites locais à condição de elites políticas, partícipes de um ‘arranjo institucional’, que considera resultado das negociações entre as elites de diversas regiões da nova nação. Tal arranjo foi concretizado nas reformas liberais da década de 1830 e não foi modificado com a revisão conservadora dos anos de 1840, que não anulou a autonomia provincial. Ao tornar visível essa dimensão política, Ferronato traz à tona a complexidade das relações entre centro e regiões, no processo de construção do Estado nacional e nas experiências de escolarização secundária estudadas.
As primeiras configurações do ensino secundário, com suas aulas avulsas públicas e particulares e com a criação do Lyceu Provincial, são discutidas a partir do segundo capítulo. Problematizando esse processo,o autor aponta algumas análises importantes acerca do ensino superior no Brasil, mencionando a fundação dos primeiros cursos, a exemplo de Direito em São Paulo e Recife em 1827. Destaca também a influência da educação coimbrã na formação jurídica homogênea da geração inicial de administradores da nação recém-independente. Com a criação dos primeiros cursos no Brasil, ficava a cargo dessas instituições a formação da elite que ocuparia cargos na burocracia imperial. Nesse contexto, a constituição de instituições de ensino secundário era importante, pois auxiliaria na formação da elite local para atuar no aparato burocrático provincial.
Inicialmente, as aulas avulsas compunham o ensino secundário e eram denominadas pelo conteúdo a ser ministrado, ou seja, aulas de latim, de retórica. De acordo com Ferronato, com a criação do ensino liceal, houve uma organização, reunião ou complementação das aulas isoladas. Na província em questão, as referidas aulas funcionavam nas principais vilas e cidades, a exemplo das vilas de Sousa e Pombal, nas casas dos próprios professores. Os relatórios de presidentes da Província ou diretores da instrução pública contêm dados mais abundantes sobre o número de alunos matriculados e sobre os gastos para o seu funcionamento, não explicitando o cotidiano de funcionamento das mesmas.
Para Ferronato, a institucionalização do Lyceu Provincial influenciou a criação, em 1849, da Diretoria da Instrução Pública, uma vez que transformações se efetivaram com sua instalação, o funcionamento das aulas, sua localização, a utilização de relatórios etc. No entanto, essa nova forma de organização escolar coexistiu com a anterior até 1877, ano de extinção das aulas avulsas. Nessa convivência, o ensino liceal representaria o poder da capital, a Cidade da Parahyba, e a modernização do ensino secundário; já a outra modalidade de ensino, seria encabeçada pelo poder local, vista como uma organização tradicional. As aulas particulares, afirma o autor, funcionaram reservadamente na Província. É interessante destacar a relevância de trabalhar com as aulas avulsas públicas e particulares, especialmente por serem restritos os estudos sobre essa forma educativa.Vale ressaltar a riqueza dos organogramas e quadros sobre a Diretoria da Instrução Pública;sobre as aulas avulsas de latim em vilas e cidades da Província;sobre os alunos matriculados;os mapas de despesas com a instrução secundária;os salários dos professores, entre outros,estruturados ao longo do capítulo.
No livro, duas temporalidades ganham contorno com base na visão do autor. A primeira abrange a criação do Lyceu ocorrida em 1836, sua estruturação e sua consolidação, destacando-se os estatutos, elaborados em 1837 e 1846, e a tentativa de sua equiparação com o Colégio Pedro II. Essa fase estende-se até o ano de 1873, quando foi publicado o Decreto nº 5429, a partir do qual um processo de centralização do ensino marcaria o declínio e fim das aulas avulsas públicas no interior da Província. De 1873 a 1884, uma segunda fase se estruturaria, com um significativo aumento do número de alunos matriculados e com o fim de exames gerais de preparatórios nas províncias, em 1877. Um ciclo se findaria com a sua transformação em Escola Normal. Com a restauração da instituição, em 1885, passou a se denominar Lyceu Paraibano.
A ascensão do ensino liceal no Brasil é o foco do terceiro capítulo, no qual o autor examina diversos traços desse ensino no Império, mostrando que ele seria integrante de um projeto civilizatório mais amplo. Fazendo jus à memória da instituição em discussão,ele recua ao ano de 1831, com a criação do Curso de Humanidades, uma espécie de embrião da estruturação do ensino secundário. Um destaque é dado ao Ato Adicional de 1834, quando foi colocada nas mãos do governo provincial uma série de atribuições tributárias, coercitivas e legislativas, o que proporcionou a descentralização na gestão da instrução e impulsionou na Província o desenvolvimento do ensino liceal. O autor aborda também as discussões sobre os exames preparatórios no Brasil e na Parahyba do Norte como mecanismo de acesso ao ensino superior e, no tocante aos objetivos formativos dos liceus, um debate entre ensino técnico e estudos humanísticos.
Uma parcela da historiografia amalgamou uma representação sobre o Imperial Colégio Pedro II, criado em 1837, apresentando-o como uma instituição modelo para o ensino secundário no Brasil. Estruturando sua problematização, a partir do Lyceu Provincial da Parahyba do Norte, Cristiano Ferronato apresenta outra leitura dessa imagem. Ele identifica, com os programas de ensino, que a instituição não seguiu integralmente o modelo proposto pela Corte.
Nos capítulos finais entra em cena o ‘glorioso templo de sabedoria’, criado para formar a elite dirigente da Província. Inserida no movimento da Cidade da Parahyba e instalada no conjunto arquitetônico jesuítico, a instituição enfrentou inicialmente problemas decorrentes da falta de recursos financeiros, estiagens prolongadas, epidemias, poucos matriculados e ausência de prédio próprio. Apesar dos entraves iniciais, o Lyceu conseguiu se solidificar e tornou-se símbolo da instrução secundária. Com base em um levantamento dos livros que compunham a biblioteca da instituição, o autor confirma a perspectiva propedêutica, já que o acervo era composto por obras de filosofia, retórica, latim, entre outras. Com os agentes envolvidos nessa ação educativa, alunos, professores, autoridades e funcionários em geral, Cristiano Ferronato vai finalizando seu estudo. Descortina um espaço disciplinador, a íntima relação com o ensino das aulas avulsas e, dialogando com os estatutos do Lyceu, apresenta-nos as principais normatizações e atribuições propostas para o funcionamento cotidiano da instituição, com regulamentações sobre matrícula, exames, férias, premiações, deveres dos funcionários, dentre outras questões.
Felizardo Toscano de Brito, Manoel Pedro Cardoso Vieira, Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, Manrique Victor de Lima, Fr. Fructuosoda Soledade Sigismundo, Antonio da Cruz Cordeiro, Pe. José Ignácio de Brito Machado, Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, foram alguns dos professores que fizeram história na instituição e a partir dela. Um corpo docente composto por religiosos, advogados, médicos, literatos e por homens ligados à imprensa figura entre tantos outros nomes arrolados pelo autor. São eles os responsáveis pela instrução de parte da mocidade paraibana, isto é, os filhos da elite econômica e política da Província e também alguns membros de grupos intermediários, como chama a atenção Ferronato, os quais ocupavam cargos como presidentes de Província, deputados, diretores da instrução pública, professores do Lyceu, médicos da Santa Casa de Misericórdia e outras funções, como visto nos itinerários traçados no livro. Aí temos exemplificado o papel que lhes foi conferido ao adentrar essa casa liceal.
Estes são alguns aspectos que, analisados ao longo do livro, consolidam a abordagem inovadora apresentada. O autor abandona análises generalistas sobre a instrução no Brasil do Oitocentos, apresentada sob o signo da falta, e traz para o palco o processo educativo como uma prática social e histórica.A História da Educação, que tem passado por um prodigioso desenvolvimento, ganha, com a escritade Cristiano Ferronato, mais um trabalho que contribui de maneira criativa e fecunda para a reflexão sobre as configurações da instrução secundária na Parahyba oitocentista. Apresentando-nos um cenário rico, complexo, inovador, o autor aponta caminhos que estão descortinando esse universo instrucional. As diversas qualidades do livro, aliadas a uma escrita atraente e instigante que suspende percepções simplificadas em favor de uma compreensão que atrela a escolarização secundária a um jogo social mais amplo, indicam-nos uma obra indispensável para os leitores interessados na história das instituições educativas no Brasil.
Nayana Rodrigues Cordeiro Mariano – Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, Brasil.
Tratados de paz en las pampas. Los ranqueles y su devenir político (1850-1880) | Graciana Pérez Zavala
A pesar de que una de las prioridades de la elite dirigente argentina en la tarea de edificar el Estado Nacional era asegurar las fronteras y construir la imagen de una unidad geopolítica – a partir de la visualización de cierto espacio como “territorio nacional” –, los conflictos internos y externos que conmovían los proyectos de acción política y control estatal durante la segunda mitad del siglo XIX hacían que la administración central no estuviera en condiciones de disputar el territorio a las poblaciones indígenas de Chaco, Pampa y Patagonia. En esos espacios, por entonces denominados eufemísticamente como “fronteras interiores”, el dominio blanco se mantuvo débil e impugnado durante mucho tiempo por las diversas parcialidades indígenas, las cuales debieron recurrir a múltiples estrategias políticas y étnicas para denunciar la pérdida de sus territorios y recursos. De ahí que la violencia interétnica fuera un componente sustancial de los vínculos sociopolíticos entre las sociedades indígenas y el Estado republicano, invisibilizando otros modos posibles de interacción. Sin embargo, algunas recientes investigaciones –en las que el diálogo entre la Antropología y la Historia tuvo un rol significativo– han comenzado a mostrar que en ese mismo período los postergados y/o frustrados proyectos de expansión y ocupación territorial del Estado convivieron con la actividad diplomática llevada a cabo por gobierno con las principales agrupaciones nativas. Y, en tal dirección, el libro Tratados de paz en las pampas. Los ranqueles y su devenir político (1850-1880) de la historiadora argentina Graciana Pérez Zavala, constituye un claro ejemplo de esas novedosas investigaciones centradas en el análisis de la política de los tratados de paz establecidos por el Estado argentino con el amplio espectro de los agrupamientos indígenas de Pampa y Patagonia. Leia Mais
La frontera sur de Buenos Aires en la larga duración – Victoria Pedrotta e Sol Lantieri
Victoria Pedrotta /norbertomollo.blogspot /
Desde la perspectiva de los estudios de frontera, este libro tiene la particularidad de integrar un diverso conjunto de miradas, que de forma separada e independiente, se han venido desarrollando en relación al estudio de los distintos procesos que tuvieron lugar en la frontera sur de la Provincia de Buenos Aires, particularmente en la zona comprendida por los actuales partidos de Azul, Tapalqué y Olavarría. Gracias a la iniciativa allá por el 2013 de las directoras del libro, Victoria Pedrotta y Sol Lanteri, la obra es fruto de un estrecho trabajo de colaboración entre especialistas provenientes de la antropología social, la arqueología y la historia.
El libro se compone de siete capítulos, para cuya articulación las directoras pensaron en dos ejes temáticos, espacio y territorio, abordados desde una perspectiva multidisciplinar y de larga duración. De este modo, se fijó como propósito general del texto la puesta al día de las investigaciones sobre los procesos de construcción del espacio y el territorio de la frontera sur bonaerense desde tiempos prehispánicos hasta la actualidad. Como veremos a continuación, a través de los sucesivos capítulos el lector podrá interiorizarse en los cambios, las continuidades, los actores sociales, sus prácticas y en la multiplicidad de representaciones de dichos procesos.
El Capítulo 1 “El uso del espacio, la movilidad y los territorios en grupos cazadores-recolectores pre-hispánicos del centro de los pastizales pampeanos” escrito por Pablo G. Messineo, inaugura la obra con un exhaustivo análisis y discusión crítica de la información arqueológica relativa al uso del espacio, la movilidad y los territorios a lo largo del tiempo, por parte de las poblaciones cazadoras-recolectoras en el centro de los pastizales pampeanos. Uno de los aportes más importantes que ofrece este capítulo es, precisamente, la perspectiva espacialmente amplia y de larga duración con la que el autor presenta y discute la evidencia arqueológica.
De este modo, Messineo evalúa las estrategias de los grupos humanos en función de los tres ejes de discusión propuestos al comienzo del capítulo. Para ello considera distintos modelos –económicos, sociales e ideológicos- para dar cuenta de la territorialidad, abarcando desde el Holoceno temprano hasta el período post-contacto y sin perder nunca de vista los cambios resultantes de la dinámica paleoambiental. El enfoque del autor contempla así las tres etapas cronológicas en las que se segmenta el Holoceno, empleando múltiples líneas de evidencia recuperadas a lo largo del tiempo mediante investigaciones arqueológicas en los partidos de Olavarría, Azul y Tapalqué, sumando a esto los contextos de áreas adyacentes.
Victoria Pedrotta en el Capítulo 2 “Recursos, espacio y territorio en las sierras del Cayrú (siglos XVI-XIX, región pampeana argentina)” examina y discute en profundidad la territorialidad y las formas en que ocuparon el espacio las poblaciones indígenas e hispano-criollas de la región pampeana.
Desde un enfoque holístico, la autora presta especial atención a los cambios ecológicos, económicos, sociales y simbólicos resultantes de la introducción de los recursos faunísticos y vegetales por parte de los europeos desde el siglo XVI en adelante. Su área de estudio comprende las denominadas sierras del Cayrú -topónimo que se remonta a mediados del siglo XVIII- y cuya ubicación corresponde al extremo occidental del Sistema serrano de Tandilia (Provincia de Buenos Aires). Es significativo señalar la importancia estratégica que esta área tuvo en las rutas de circulación y en las redes de intercambio y comercio interétnico a lo largo del tiempo. Subrayamos asimismo, la elección de la perspectiva geográfica para definir y abordar los conceptos de territorio y territorialidad, enfatizando el carácter complejo, dinámico y relacional de los mismos. Desde un punto de vista metodológico, es destacable la multiplicidad de fuentes de evidencia de las que se vale la autora para abordar su problemática de investigación. En este sentido, a través de un riguroso y exhaustivo análisis, Pedrotta confronta críticamente variados registros documentales, que incluyen distintos tipos de fuentes escritas así como cartográficas.
Este abordaje se completa a partir del análisis de la diversa evidencia arqueológica disponible para el área de estudio. La articulación entre el enfoque teórico y la perspectiva metodológica seleccionados, imprimen una complejidad y una riqueza indispensables al análisis realizado por la autora y permiten comprender los procesos experimentados y representados por las sociedades indígenas e hispano-criollas en el centro de la Provincia de Buenos Aires.
En el Capítulo 3 “Colonización oficial en la frontera. Azul en el siglo XIX”, Sol Lanteri analiza en detalle las condiciones y los mecanismos implementados, en principio por el gobierno rosista, para poner en práctica la colonización, poblamiento y defensa del actual partido de Azul, sin dejar de discutir los cambios y continuidades de dichas políticas hasta fines del siglo XIX. Como bien señala la autora la expansión hacia el sur de la campaña bonaerense tuvo por finalidad consolidar el dominio del Estado provincial y articular las tierras en un modelo productivo de carácter predominantemente ganadero.
Para llevar adelante su análisis, Lanteri considera de forma conjunta las primeras trazas del pueblo y ejido, el área rural y la política de relaciones interétnicas en el marco del “Negocio Pacífico” con los indígenas. En el caso particular de Azul, como en otras áreas, implicó negociaciones para reubicar las tolderías de los “Indios Amigos” en otras zonas y fomentar la colonización criolla, aunque especialmente allí los grupos catrieleros tuvieron un largo arraigo territorial. Se destaca la claridad de la autora para analizar cómo fue este complejo proceso de territorialización y colonización interna.
Así, Lanteri describe la peculiar modalidad de distribución de la tierras fiscales mediante las denominadas “donaciones condicionadas” de suertes de estancias, sin perder de vista el marco normativo, la praxis social y los derechos de propiedad en la mediana duración.
Laura Carolina Belloni en el Capítulo 4 “La política indígena del Estado de Buenos Aires en la frontera sur. Azul y Tapalqué entre 1852 y 1862”, ofrece, a partir de un acercamiento micro-regional, un análisis de las políticas de fronteras e indígenas desarrolladas en la dinámica y conflictiva década que va desde la caída de Juan Manuel Rosas (1852) hasta la asunción al poder nacional de Bartolomé Mitre (1862). A través de la aguda mirada de la autora es posible entrever los vaivenes de las políticas y las relaciones entre el Estado de Buenos Aires y los grupos indígenas en las áreas de Azul y Tapalqué. De este modo, con gran precisión, Belloni expone las marchas y las contramarchas asociadas al manejo de las fronteras, expresadas en la oscilación entre el fracaso de políticas militares ofensivas y la concertación a regañadientes de tratados pacíficos con los indígenas y sus caciques principales, como Catriel, Cachul, Calfucurá y Yanquetruz, entre otros. Si una cosa queda clara a partir del análisis, es la incompetencia del Estado de Buenos Aires, luego de la caída de Rosas, para manejar las relaciones de poder con las parcialidades indígenas. En ello no solo tuvo que ver la subestimación del poder de choque de los indígenas, sino también la inexperiencia de los funcionarios para el trato con éstos y la escasez de fuerzas militares, así como de suministros y armamento para las mismas.
El Capítulo 5 “La Pampa del Siglo XIX vista desde el camino de los chilenos” elaborado por Julio Merlo y María del Carmen Langiano, viene a ser un complemento perfecto del capítulo anterior, por cuanto los autores ofrecen al lector una detallada síntesis de las investigaciones arqueológicas en una serie de fuertes y fortines en la Provincia de Buenos Aires. Creados durante las variables condiciones políticas en el siglo XIX, una de las particularidades de estos asentamientos de carácter predominantemente militar, es que se encontraban situados en el “Camino de los indios a las salinas” o “Camino de los chilenos”, entre otras denominaciones dadas al camino que unía las tierras al sur del río Salado con los pasos bajos de Chile. De este modo, los sitios arqueológicos analizados corresponden a: Fuerte Blanca Grande, Localidad El Perdido, Fortín Arroyo Corto, Fuerte Lavalle Sur, Fortín La Parva, Fortín Fe y Fuerte San Martín.
Dado que todos ellos se situaron en sectores del espacio previamente ocupados por pueblos originarios, los autores evalúan, a partir del registro histórico y arqueológico, los cambios –ambientales, sociales y materiales- producidos en el paisaje fronterizo pampeano bonaerense, así como en las relaciones interétnicas a medida que el estado argentino iba avanzando y apropiándose del territorio indígena. En todos los casos de estudio, Merlo y Langiano dan cuenta del abordaje metodológico y los resultados principales del análisis de múltiples líneas de evidencia arqueológica.
Carlos A. Paz, Ludmila D. Adad y Alicia G. Villafañe presentan un giro temático en el Capítulo 6 en relación a los apartados anteriores. Dicho capítulo se titula “Culturas del trabajo y cambios territoriales. El rescate de la memoria histórica como estrategia de recuperación de las formas de vida, oficios y tradiciones técnicas de la minería del Partido de Olavarría”, tiene como propósito general describir y contextualizar el desarrollo de la producción minera –cal y cemento principalmente- en las Sierras de Olavarría. Para ello, los autores adoptan un enfoque multidisciplinario donde se integran las miradas de la antropología, la historia y el patrimonio con el objeto de comprender los cambios paisajísticos, productivos y sociales en el área de estudio a lo largo de 140 años. Es destacable el desarrollo del abordaje teórico y los conceptos de territorio y paisaje cultural, empleados para aprehender desde lo social, lo económico y lo simbólico las particularidades asociadas al desarrollo de la actividad minera en Olavarría desde 1870 hasta el presente, actividad que habría sido introducida de la mano de inmigrantes europeos, italianos principalmente. Como bien lo establecen los autores, el paisaje minero fue fundamental en el proceso de construcción identitaria de la localidad.
Finalmente, la obra concluye con el Capítulo 7 “Des-historias del centro bonaerense” de Ariel Gravano, quien desde una perspectiva histórica-antropológica pone en evidencia las maneras en las que el pasado, el presente y el futuro se imbrican en la construcción de los imaginarios identitarios propios de los actuales centros urbanos de la región central de la Provincia de Buenos Aires. El autor pone el eje de discusión en “lo regional” y reflexiona acerca de la funcionalidad de las idealizaciones hegemónicas sobre el pasado y el futuro en el presente, donde la homogeneidad y la integración prevalecen por encima de la heterogeneidad y las contradicciones históricas, culturales, económicas y políticas. Con una profunda agudeza analítica y de la mano de Canal-Feijóo, Gravano pone al descubierto, entre otras cosas, los dispositivos discursivos y representacionales empleados para distorsionar, desplazar y negar del pasado regional a los actores indígenas y sus prácticas, en pos de anclar los orígenes de la región central bonaerense en la “civilización urbana”. En este proceso de des-historización y de re-invención del pasado, es donde la épica de frontera adquiere mayor fuerza, asentando sus cimientos en un imaginario que naturaliza y legitima la avanzada eurocriolla en un “desierto” imaginado, fundamento medular de la construcción del moderno Estado-Nación argentino.
Para finalizar esta Reseña, creo importante señalar que si uno es un lector –ya sea especialista o no- ávido de conocimientos sobre los procesos ocurridos en la frontera sur de la Provincia de Buenos Aires, entonces la lectura de esta obra resulta indispensable en tanto fuente de consulta sobre el pasado regional de un área clave a lo largo del tiempo, tanto para las poblaciones indígenas como para las europeas y criollas de nuestro país. Sin temor a equivocarme, me atrevo a asegurar que este libro habría sido motivo de orgullo para el querido maestro Raúl Mandrini (1943-2015).
Silvana Buscaglia – Instituto Multidisciplinario de Historia y Ciencias Humanas (IMHICIHU), CONICET. Saavedra 15, 5° piso (1083) Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. E-mail: silvana_buscaglia@yahoo.com.ar
PEDROTTA, Victoria; LANTERI, Sol (Dir.). La frontera sur de Buenos Aires en la larga duración. Una perspectiva multidisciplinar. La Plata: Asociación Amigos del Archivo Histórico de la Provincia de Buenos Aires, 2015. 315p. Resenha de: BUSCAGLIA, Silvana. Arqueología, Buenos Aires, v.23, n.1, p.141-143, enero-abril, 2017. Acessar publicação original
[IF]A Lei da Guerra: Direito Internacional e Conflito Armado – BAYERS (MB-P)
BAYERS, Michael. A Lei da Guerra: Direito Internacional e Conflito Armado. Rio de Janeiro: Record, 2007, 263 p. Resenha de: PINTO, Jairo Francisco. A Carta das Nações Unidas e a soberania dos Estados nacionais. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.
A Lei da Guerra – Direito Internacional e Conflito Armado é uma obra que trata do nível de comprometimento legal exercido pelas nações envolvidas em conflito armado, menciona as fontes das leis do direito internacional e resgata conflitos pretéritos, a fim de demonstrar o funcionamento efetivo dessas leis.
Nesse contexto, a fim de garanti r a paz no mundo por meio do bom relacionamento entre os países; em outubro de 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU). Naquele momento, após a segunda guerra mundial, com um saldo de milhões de mortos, representantes de cinquenta países reuniram-se em São Francisco, na Califórnia — EUA, e criaram uma nova Organização Internacional para, em suas palavras, “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. (BAYERS, 2007, p.197) Essa obra, embora apresente um conteúdo bastante técnico e específico, apresenta linguagem completamente didática e de fácil entendimento tanto para os leigos .quanto para os profissionais do mundo jurídico. Assim, viabiliza aos seus leitores uma compreensão das leis que governam o uso da força nas questões internacionais, a partir de análises de acontecimentos históricos recentes no contexto da política e do direito globais.
Em uma abordagem com foco em estudos de caso citações de fatos inerentes à lei da guerra desde o século XIX até os dia atuais, BAYERS posiciona o leitor de modo a refletir e entender os motivos promotores da fragilidade experimentada pelo Conselho de Segurança (CS) da ONU, no que tange ao cumprimento de seu propósito maior: o dispositivo central da carta da ONU no artigo 2, parágrafo 4:
Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os propósitos das Nações Unidas”. (BAYERS, 2007, p.198 e 199)
Ao analisar vários conflitos armados ocorridos pós-criação da ONU, como Intervenções no Kosovo e no Afeganistão em 1999/2001 e a guerra no Iraque em 2003, envolvendo diretamente os Estados Unidos da América (EUA) e outras potências aliadas, verificam-se momentos recorrentes de violação da principal atribuição do CS: a autorização do emprego da força contra qualquer nação.
Diante disso, o mundo teve conhecimento de um festival de abusos que vão desde desrespeitos aos direitos de civis e de prisioneiros de guerra, até arranjos políticos para viabilizar a concretização dos objetivos da nação mais poderosa envolvida no conflito. Desse modo, chega-se à conclusão inequívoca de que o direito relativo ao uso da força é realmente politizado, como formulou muito bem o filósofo militar Cari. von Clausewitz, segundo o qual “a guerra é a continuação da política por o ut r os me io s ” . (BAYERS, 2007, p.12) Ainda nesse sentido, o autor sinaliza para a constante criação de doutrinas, por parte das grandes potências, versando sobre legítima defesa, intervenção humanitária, intervenção em defesa da democracia e legítima defesa preventiva, a fim de tentar justificar suas ações sem a autorização do CS.
Em síntese, o autor, com muita propriedade, argumenta acerca da inobservância do cumprimento às leis da guerra estabelecidas pela Carta da ONU. Isso demonstra que potências econômicas e militares intitulam-se JUÍZES DO MUNDO (grifo meu). Tudo para atender aos seus próprios interesses, principalmente os EUA que, com suas Forças militares estacionadas em mais de 140 países estão envolvidos, direta ou indiretamente, em praticamente todos os conflitos existentes no mundo.
Infere-se, então, que tais atitudes devem servir como subsídios a serem utilizados em qualquer estudo sobre Estratégia Nacional de Defesa , já que a prática da diplomacia é ignorada em muitos casos.
Jairo Francisco Pinto
1808 – Como Uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil – GOMES (MB-P)
GOMES, Laurentino. 1808 – Como Uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. 2 ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. 408p. Resenha de: NASCIMENTO, Aline Botelho do. A vinda da Família Real para o Brasil e a Independência. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.
O livro conta à história de D. João VI, que sendo ameaçado pelas invasões de Napoleão Bonaparte, por não ter cumprido o Bloqueio Continental com a Inglaterra, foge para a sua maior colônia na época, o Brasil, para onde a Família Real transferiu a sede do governo Português, fato nunca antes visto na história conforme afirma autor.
Em 1807, Napoleão Bonaparte era o senhor absoluto da Europa. Seus exércitos tinham destronado reis e rainhas do continente europeu, numa sucessão de vitórias brilhantes e surpreendentes. Só não haviam conseguido dominar a Inglaterra. Napoleão resolveu tentar a Guerra Econômica, decretando o bloqueio continental, uma medida que previa o fechamento dos portos dos Estados Europeus aos produtos britânicos. Suas ordens foram obedecidas por todos os países exceto Portugal.
- João VI rei de Portugal tinha duas opções a escolher: a primeira era ceder às pressões de Napoleão e aderir ao bloqueio continental; a segunda, aceitar a oferta dos ingleses e embarcar juntamente com sua corte para o Brasil. Caso o Príncipe Regente aderisse a proposta de Napoleão, os ingleses não somente bombardeariam e sequestrariam a frota portuguesa como muito provavelmente tomariam suas colônias ultramarinas.
Ainda que o plano de fuga para o Brasil fosse antigo, a viagem foi decidida às pressas. Além disso, fatores naturais atrapalharam bastante a viagem, que não foi fácil. No plano de viagem havia um ponto de encontro onde navios poderiam ser reparados. Esse ponto era a ilha de Cabo-Verde, no qual as embarcações danificadas atracariam; após o retorno, deveriam seguir viagem rumo ao Rio de Janeiro, mas aportaram em Salvador, na Bahia, de onde partiram enfim para o Rio de Janeiro.
Com a chegada ao Rio de Janeiro, a primeira providência tomada pela Família Real Portuguesa foi a abertura dos Portos às “nações amigas”, especificamente a Inglaterra. Houve, também, a criação de uma escola superior de Medicina, outra de técnicas agrícolas, um laboratório de estudos e análises químicas e a Academia Real Militar.
A Família Real estabeleceu ainda algumas instituições no país, tais como: Gazeta do Rio de Janeiro, o Supremo Conselho Militar e de Justiça, a Intendência Geral de Polícia da Corte, o Conselho de Fazendo e o Corpo da Guarda Real, a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional e o Jardim Botânico.
Porém, Houve também, períodos conturbados, tais como revoltas de cunhos separatistas, abolicionistas, entre outras, que exigiram o tratamento por parte da Família Real, o que devidamente debeladas, ajudaram a manter a unidade nacional central mais forte, delineando o Brasil próximo da forma como conhecemos.
Com revoltas acontecendo também em Portugal, na cidade do Porto, em 1820, D. João foi obrigado a retornar a Portugal, deixando a administração do Brasil a cargo de seu filho D. Pedro. Entretanto, para desespero de D. Pedro, quando D. João partiu para Portugal, raspou os cofres do Banco do Brasil e levou embora o que ainda restava do tesouro real que havia trazido com a “fuga” para a colônia em 1808.
A D. Pedro coube a tarefa de unificar o país, e torná-lo independente de Portugal, já que seu próprio pai, acatando deliberações da Corte portuguesa, tornava as exigências à colônia muito mais duras.
O Jornalista Laurentino Gomes, neste livro, retrata, de forma bem amigável ao leitor, a vinda e a permanência da Família Real portuguesa, e sua Corte, em 1808, e como influenciaram a vida no Brasil, culminando com a Independência em 1822. É certo que graças aos fatos que ocasionaram a mudança da corte para as terras tupiniquins o futuro do país foi mudado significativamente.
Aline Botelho do Nascimento – Primeiro-Tenente da Marinha do Brasil
A invenção da paz: da República Cristã do duque de Sully à Federação das Nações de Simón Bolivar | Germán A. de la Reza
A invenção da paz: da República Cristã do duque de Sully à Federação das Nações de Simón Bolívar é um estudo historiográfico cujo escopo é a investigação da tradição intelectual abarcada pelos diferentes projetos concebidos para a criação de confederações interestatais. De modo sumário, pode-se definir o livro como um estudo de História das Ideias, cujo enfoque se atém à recuperação do fio condutor existente entre os diversos pensadores que deram atenção à questão da criação de ligas confederadas na história do ocidente e sua penetração e difusão no âmbito da América Latina. O autor do livro, o pesquisador mexicano Germán A. de la Reza, é doutor em Filosofia e História pela Universidade Toulouse Le Mirail e figura como referência quando o assunto em pauta são ideias confederativas no contexto latino-americano, o que é notável pelo título de seus principais trabalhos, dentre os quais é possível destacar Les nouveaux défis de l’intégration en Amérique Latine, El Congreso de Panamá y otros ensayos de integración latinoamericana en el siglo XIX e El ciclo confederativo: historia de la integración latinoamericana en el siglo XIX.
Publicado originalmente pela editora Siglo XXI, A invenção da paz é o primeiro livro de Reza editado no Brasil e tem a virtude de apresentar ao público um eficiente panorama do processo de transmissão e recepção do pensamento confederativo nos mais diversos contextos históricos, desde Filipe II da Macedônia até Simón Bolívar, passando por diferentes nomes ligados ao pensamento anfictiônico, tanto aqueles de maior circulação, como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, como outros mais desconhecidos, como Émeric Crucé e Cecílio del Valle. Leia Mais
Fé, Guerra e Escravidão: Uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898) | Patrícia Santos
Em sua obra, Patricia Teixeira Santos abre caminhos para uma abordagem comparativa da história do Sudão ao analisar as relações entre cristãos e muçulmanos na região que compreende as atuais regiões do Sudão e do Sudão do Sul, focando nos alcances que os contatos entre diferentes grupos – que serão discutidos mais adiante – possibilitaram ou dificultaram. Para tanto, utiliza como fontes cartas e relatos de missionários católicos durante o período em que foram prisioneiros do governo da Mahdiyya. Santos contribui, com seu trabalho sobre fins do século XIX, para as perspectivas de análise das atuais discrepâncias e conflitos da região, objeto de interesse deste trabalho.
Santos escolhe o período da Mahdiyya (compreendido entre 1881 e 1898) como recorte temporal, porque o vê como um complexo cruzamento de universos histórico-culturais e como um momento de articulação de diferentes realidades políticas. Como sugere o título de sua obra, os caminhos pelos quais a discussão do governo do mahdi perpassa, são: fé, guerra e escravidão, aspectos estes considerados importantes para analisar a história do Sudão e a relevância desses três temas para suas questões políticas atuais. A autora coloca o mahdismo no caso sudanês como um movimento messiânico social e político, centrado na construção de uma ordem política e social baseada no poder carismático do seu líder (o mahdi). É importante observar o período deste Estado mahdista como significativo devido à sua continuidade na constituição do Estado nacional sudanês, pela permanência de formas de governabilidade, de redefinição de identidades e de redistribuição de poder e prestígio.
A região que hoje pertence ao Sudão e ao Sudão do Sul possui inúmeras “camadas” em sua história, tornando-se de uma enorme complexidade. Portanto, entendemos que para melhor compreendê-la hoje, é preciso compreender também as diversas formas que assumiu e assume. Assim, dos processos de migração árabe para a região, que tiveram maior intensidade durante o século XIV, percebemos o início de uma intensa interação entre as culturas e religiões muçulmanas e as sociedades cristãs sudanesas (Ibrahim, 2010, pp. 77-98), que viriam a refletir imensamente nas questões políticas futuras. Já nas primeiras décadas do século XIX, guerras locais e instabilidade política deram abertura para a incursão de Muhammad Ali, então vice-rei do Egito, que objetivava anexar o Sudão aos seus territórios. Patricia Teixeira Santos sugere, em seu primeiro capítulo, que Muhammad Ali teria se aproximado – em diferentes aspectos, como religião, economia e formas de poder – da França e de outras potências europeias, na tentativa de atingir uma autonomia inédita do Egito em relação aos impérios europeus. (2013: 34). Para Eve Powell (apud Santos, 2013: 36), esse momento de dominação egípcia tentou rearranjar o Sudão e dar à região uma nova cara, vendo o Sudão como uma colônia dentro de um projeto mais amplo de ações imperiais tentadas pelo Egito, que seriam suprimidas mais adiante. Com isso, o Sudão sofreu o primeiro período daquilo que se aproxima de uma forma de dominação colonial, com a imposição de um governo “turco-egípcio forte e de autoridade soberana e incontestada, pelo direito de conquista”, chamado de Turkiyya, compreendido entre 1821 e o início da década de 1880 (Mamdani, 2009).
Segundo Ibrahim, a intervenção turca modificou a sociedade sudanesa tradicional, suscitando descontentamento, mas por si só não conseguiu reverter ou reorganizar suas estruturas. Para este autor, seria somente com o mahdi que os sudaneses poderiam se rebelar em massa, dando lugar a um Sudão independente, que logo enfrentaria o imperialismo britânico. Ainda segundo Ibrahim, no sul, ataques de captura de escravos, pilhagens e rapinas prosseguiram de qualquer forma, tornando o que era uma estrutura de domínio socioeconômico em “uma estrutura de domínio racial que deu lugar a uma ideologia de resistência racial entre os africanos do Sudão Meridional” (2010: 433-444).
A partir do exposto por Ibrahim, é possível voltar ao texto de Santos a fim de estabelecer algumas conexões e distanciamentos a respeito do período inicial da Mahdiyya no Sudão. A autora lembra a distinção através da categoria de raça durante o domínio dos povos sudaneses pelos egípcios (estes se referiam àqueles como abd, que significa escravo/negro, ou núbio), iniciando um processo de diferenciação que segregava, produzindo um discurso de superioridade em relação ao “outro” construído (2013: 39). As distinções raciais, segundo a autora, eram feitas com base na cor da pele, no comportamento sexual e nas atitudes religiosas. Esse processo de submissão, marcado pela diferenciação racial, criou também a submissão em relação ao trabalho, onde as populações não muçulmanas eram coagidas ao trabalho na lavoura de exportação, gerando nas populações e lideranças locais um forte sentimento de descontentamento e revolta, como apontou também Ibrahim.
É nesse contexto que se estabelece, em 1881, o mahdi no Sudão. Santos lembra a busca de alianças do mahdi com os povos não muçulmanos em torno de um inimigo comum, que seria o domínio otomano-egípcio. No mesmo sentido de Ibrahim, Santos afirma que a estruturação do movimento mahdista, capitaneado por Muhammad Ahmad, criou um espaço de interação entre os povos sudaneses, fazendo convergir diferentes conflitos que, acompanhado da fragilidade do domínio otomano-egípcio, resultou em ações integradoras entre as diferentes populações. Desta forma, percebe-se que os grupos étnicos [2] são fundamentais para os processos destacados. Os relatos dos missionários, assim como os dados etnográficos de Evans-Pritchard citados por Santos, que viam os “nativos” ora como “belicosos e não confiáveis”, ora como “atrevidos e guerreiros” (Santos: 77), apontam para a ideia que a autora lança no início do texto, a de que a empresa colonial não tinha certeza dos rumos para os quais seguia, assim como para a noção de que o domínio colonial não era inexorável [3]. Santos aponta para a importância dessas populações locais nos processos de resistência e de luta, como por exemplo o papel dos nuer nas reações contra as razias otomano-egípcias, a proximidade maior dos povos dinkas com os missionários católicos, as redes de solidariedade que se estabelecia entre esses últimos contra outros povos, entre outras (Santos: 82-99).
Santos relembra os estudos de D. H. Johnson para afirmar a necessidade de se redimensionar o papel dos líderes religiosos sudaneses, a fim de analisar como conseguiram possibilitar a inserção e sobrevivência dos grupos nas três principais experiências políticas, religiosas e econômicas de controle sobre as populações, quais sejam: o domínio otomano, a Mahdiyya e o condomínio anglo-egípcio (2013: 84). É interessante pensar esses diálogos como uma forma de fugir à ideia generalizante de fundamentalismo, dando espaço às especificidades da região [4]. Santos afirma que as identidades étnicas e as relações de poder e de ocupação da terra ganharam diversas significações diante dos processos de interação, acomodação, sujeição e dos enquadramentos que foram realizados para a sobrevivência em contextos de grande interferência política como os aqui elencados. Assim, a escravidão pode ser vista como um elemento de convergência entre esses povos, a exemplo disso, a união dos dinka e shilluk contra os baggara, traficantes de escravos nômades (Santos, 2013: 87-88).
Ainda nesse sentido, o que se observa hoje ao se estudar as estruturas políticas sudanesas pode ter como uma das primeiras manifestações, de acordo com a autora, as zeribas [5] , que estabeleceram ou reforçaram fronteiras entre diferentes povos do sul do Sudão, concorrendo amplamente com as missões cristãs, que buscavam agrupar os grupos étnicos, principalmente os dinka, em torno do projeto civilizatório católico, que acabou por se desfazer devido à maior adesão desses povos à Madiyya, pelo forte caráter de pregação que o mahdi conseguiu estabelecer entre os povos não muçulmanos (Santos, 2013: 88) [6].
As divergências entre grupos religiosos, analisadas por grande parte da historiografia acerca da história do Sudão, também são analisadas por Patrícia Teixeira Santos. Parte dos grupos nuer e nuba recusavam o islamismo, uma vez que os baggara eram muçulmanos. De tal maneira, inicia-se o processo de consolidação de uma oposição, reforçada pelo missionarismo em sua prática cotidiana e em seus relatos, que é a de “povos negros” versus “povos islamizados”, levada adiante pelo domínio colonial anglo-egípcio (período entre 1898 e a independência do Sudão, ocorrida no início de 1956) e estendida até os dias de hoje [7]. De acordo com Mamdani, os processos de violência no Sudão atual, a exemplo do genocídio desenrolado durante os conflitos, têm como ponto de origem esse legado colonial de divisão em “tribos”. Outro motivo apontado pela autora, no decorrer do último capítulo, para o reforço dessa oposição pautada em conceitos de raça é o fato de que, durante o condomínio anglo-egípcio, oficiais de origem otomana, egípcia e do norte do Sudão ganharam postos comerciais e de “repressão ao tráfico” na província de Cordofan, ao mesmo tempo em que apoiavam o comércio escravista, gerando um aparato que potencializava o comércio de escravos. Além disso, lembra a campanha de combate à escravidão realizada por militares e agentes consulares europeus, que culpabilizava a figura do traficante “árabe muçulmano” como responsável por todas as questões relacionadas ao tráfico e à dominação dos povos africanos, ignorando a aparição, nas fontes, de personagens europeus – representantes oficiais ou não-oficiais da administração colonial – ligados ao tráfico.
Patrícia Teixeira Santos reforça, em sua conclusão, que dentro do contexto de transformações pelo qual passou o Sudão no período da Mahdiyya, sufis e cristãos europeus católicos conseguiram encontrar seu lugar em meio às disputas e interseções entre religião e economia no sul do Sudão. Essas interações se criavam de forma bastante porosa, permitindo movimentações e buscas de diferentes possibilidades, principalmente na negociação com o domínio otomano-egípcio (2013: 297). De qualquer maneira, a autora considera importante analisar o período do mahdi como um momento que conseguiu congregar e estabelecer uma série de relações entre diferentes grupos, como traficantes, povos nômades, ordens sufis e grandes comerciantes do Sudão, levando à constituição de um Estado que produziu ele mesmo essas diferentes categorias de sujeitos, que influenciavam na dinâmica da sociedade sudanesa. Isso possibilitou a integração de diversos elementos da experiência religiosa na política, ou seja, na criação de um estado islâmico, que levou à produção de “novas concepções a respeito de fronteiras, do sagrado e da assimilação e reelaboração de experiências políticas e culturais europeias”. Essas questões apontam, de acordo com Santos, para a singularidade do mahdi e à longevidade desse Estado (2013: 299). Cabe ressaltar, a fim de conclusão, a importância que as discussões provocadas pelo estudo de Patrícia Teixeira Santos podem adquirir para além das análises dos conflitos sudaneses e sul sudaneses, podendo ser utilizado para novos trabalhos quem pensem vieses mais globais, que engendram discussões envolvendo tradição e modernidade, ou o fundamentalismo atual, por exemplo. Estes temas aparecem, vez ou outra, com maior intensidade, principalmente quando retratados a partir de perspectivas engessadas, construídas fora do eixo sul-mundo, tornando necessárias novas análises, para as quais Patrícia Santos nos serve de exemplo.
Notas
2. Santos se refere às populações de origem dinka, nuer, shilluk, niam niam, nuba e bari (2013: 77), cuja discussão não cabe na proposta deste trabalho. Para aprofundar os estudos sobre grupos étnicos, suas definições e a forma como se explicam suas fronteiras, ver Barth. BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, pp. 25-67.
3. Para uma leitura sobre as intenções coloniais e suas políticas criadas nas colônias, ver COOPER, F. Repertorios imperiales y mitos del colonialismo moderno. In: Imperios: una nueva visión de la Historia universal. Barcelona, Crítica, 2011, pp. 391-446.
4. Mahmood Mamdani também se insere nessa discussão ao afirmar o erro das divisões coloniais, que categorizavam as populações sudanesas em grupos baseados na questão religiosa e de terra.
5. As zeribas eram fortificações utilizadas inicialmente para o estoque do marfim sudanês que seria levado para o Egito. Porém, com o aumento do tráfico de escravos, passaram a servir de local de pouso para os escravos, e com o rendimento desse negócio, os traficantes passaram a submeter as populações próximas aos impostos e ao trabalho nas zeribas (Santos, 2013: 87-88).
6. A autora destaca a relativa emergência das zeribas, as disputas regionais por mercado e poder e a deserção de soldados das tropas otomano-egípcias como fundamentais para uma maior adesão ao mahdi, que conseguiu criar uma nova forma de organização social, a fim de suplantar os laços entre otomanos, egípcios e outros povos do Sudão.
7. Com o acesso às fontes missionárias, no final do século XIX, destaca-se o uso de “categorias como “bárbaro”, “ansar”, “negro”, “árabe”, “branco”, criando novas e singulares enunciações que marcaram o processo genealógico do racismo que as práticas normatizadoras da administração anglo-egípcia incorporaram e reforçaram a fim de construir uma ordem, através da gestão de uma hierarquia de distinções raciais baseadas em pressupostos biológicos, religiosos e “civilizacionais” (Santos, 2013: 303). A Igreja, cumprindo seu papel como mediadora desses processos, cria, dentro do espaço da educação, a possibilidade de hierarquizar as diferentes populações do Sudão nas categorias supracitadas – às populações negras “não árabes” foram delegados os trabalhos manuais e agrícolas, e aos muçulmanos e cristãos do norte a integração na administração colonial, inserindo essa forma de controle na lógica do domínio colonial (Santos, 2013: passim). A partir disso, pode-se pensar como essas categorias, estáticas e em grande parte pautadas em definições racistas, são utilizadas até hoje, para definir e “entender” as diferentes formas de relações políticas e sociais no Sudão e no Sudão do Sul. Na obra citada anteriormente, Mamdani (2009: 06) cita o processo que chama de “racialização” realizado pela empresa colonial no Sudão, ao qual se pode responsabilizar o quadro da violência atual, que colocava a oposição entre “árabes de pele clara violentando negros africanos”, resultando na criação de oposições entre o que o autor chama de “identidades tribais”.
Referência
BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.
COOPER, F. Repertorios imperiales y mitos del colonialismo moderno. In: Imperios: una nueva visión de la Historia universal. Barcelona, Crítica, 2011.
IBRAHIM, H. Iniciativas e resistência africanas no nordeste da África. In: BOAHEN, A (org.). História Geral da África, vol. VII. São Paulo: Editora Ática, 2010.
MAMDANI, M. Saviours and Survivors: Darfur, Politics and the War on Terror. Cidade do Cabo: HSRC Press, 2009.
Suellen Carolyne Precinotto – Atualmente mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Graduanda na UFPR quando a resenha foi aceita.
SANTOS, Patrícia. Fé, Guerra e Escravidão: Uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898). São Paulo: Fap-Unifesp, 2013. Resenha de: PRECINOTTO, Suellen Carolyne. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.1, p.115-123, 2017. Acessar publicação original [DR]
Candidata a la corona. La infanta Carlota Joaquina en el laberinto de las revoluciones hispano-americanas | Marcela Ternavasio
En el centro Carlota Joaquina. Dos nombres, una mujer. Una mujer entre dos casas reales, Borbón y Braganza, entre dos proyectos imperiales, el portugués y el español, entre dos siglos, el XVIII y el XIX, entre dos continentes, América y Europa. Una mujer central para entender los procesos políticos que tuvieron lugar en Hispanoamérica durante las cuatro primeras décadas del siglo XIX. Esa centralidad es el punto de partida que la historiadora argentina Marcela Ternavasio utiliza para tirar de varios hilos que permiten un extraordinario acercamiento a una figura que, como la autora reconoce, resulta hasta la fecha sumamente polémica.
Ternavasio aborda al personaje pero no con pretensiones biográficas, sino con intención de mostrar los innumerables proyectos políticos en los que Carlota Joaquina se vio involucrada y el rol que ocuparon sus emisarios, mensajeros, defensores y detractores. La autora discute con las interpretaciones que consideraron a los planes carlotistas como proyectos extravagantes y con poca incidencia dentro de las alternativas abiertas por la crisis monárquica. Por el contrario, insiste en que pese a que las estrategias desarrolladas por Carlota Joaquina y por su círculo cercano, no gozaron de apoyos para imponerse en toda su dimensión su despliegue impactó en las disputas del período y repercutió en los posicionamientos que adoptaron distintos actores. Leia Mais
Perspectivas sobre o Brasil Império | Escrita da História | 2017
Dando sequência a edição anterior, dedicada às elites e instituições no Brasil Império, a Revista Escrita da História tem a satisfação de publicar o presente número, que reúne trabalhos com múltiplas perspectivas sobre o oitocentos no Brasil. Trafegando por temas diversos como os embates conceituais do período, as relações entre província e centro, a construção do Estado, a administração e a justiça, e a escravidão, o dossiê perpassa por todo o século XIX, levantando inúmeras questões e problemas, bem como oferecendo muitos caminhos de investigação.
O texto que abre o dossiê, de Jônatas Roque Mendes Gomes, mestre em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), trata das discussões sobre o conceito de “cidadão” na Assembléa Geral Constituinte e Legislativa de 1823. Com o objetivo de entender os usos deste conceito-chave no centro do poder político do Império, o autor retoma as discussões acerca do conceito desde os finais do século XVIII, demonstrando as suas diversas “camadas de significados”, que se entrecruzavam nas formulações dos constituintes de 1823. Através da análise das mobilizações conceituais, o autor vislumbra como os atores políticos e sociais do período pretendiam dar forma para a construção e organização do Estado e da Nação brasileira então em formação. Leia Mais
Males do Sertão: Alimentação, saúde e doenças em Goiás no século XIX | Sônia Maria Magalhães
A relevância do papel da alimentação no surgimento de doenças na província de Goiás no século XIX é o principal objetivo de Sônia Maria de Magalhães [1] em Males do Sertão: Alimentação, saúde e doenças em Goiás no século XIX, cujo livro é resultado de sua tese de doutorado defendida na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca, em 2004.
A autora busca evidenciar que o cotidiano da população goiana não passou por mudanças significativas na passagem do século XVIII para o XIX. Em uma narrativa convidativa à leitura, surge um panorama social, econômico e epidemiológico de Goiás durante o século XIX. O livro se compõe em três partes: “O problema alimentar e as doenças reinantes no Brasil”, “Alimentação e enfermidades em Goiás” e “Assistentes, saúde e agentes a serviço da cura”. Leia Mais
Regionalismo, Liberalismo y Rebelión. Copiapó en la Guerra Civil de 1859 – FERNANDEZ ABARA (RHYG)
FERNANDEZ ABARA, Joaquín. Regionalismo, Liberalismo y Rebelión. Copiapó en la Guerra Civil de 1859. Santiago de Chile: Escuela de Historia Universidad Finis Terrae, RIL Editores, 2016. 317p. Resenha de: MOLINA JARA, Jorge. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.37, p.219-222, 2017.
Chile, desde que se constituye como una República independiente y tras las primeras luchas en torno a la forma que debía tener el Estado, se caracterizó por un fuerte presidencialismo y el predominio de la ciudad de Santiago sobre otras localidades del país. A pesar de que en algunos periodos históricos el eje del poder institucional y territorial pretendió moverse, esta situación se ha mantenido hasta nuestros días. En el año 2016, se inició en nuestro país un proceso de discusión sobre el cambio constitucional, reflotando con fuerza entre los participantes, la idea de una asamblea constituyente, la necesidad de descentralizar y avanzar en una regionalización auténtica.1 Esta mirada evidenció una latente percepción de postergación de las regiones, por una institucionalidad que favorecería a la zona central, particularmente a Santiago.
Ese mismo año, el historiador Joaquín Fernández Abara publica el libro que comentamos, donde analiza un momento de inflexión del Chile decimonónico y que la historiografía no ha abordado en profundidad: el reclamo regionalista contra el Ejecutivo (asentado en Santiago), que se expresó en el levantamiento copiapino de 1859. El texto, de 317 páginas, secuenciadas en una introducción, cuatro capítulos, más las conclusiones, bibliografía y un anexo documental, recoge las investigaciones de Fernández desarrolladas en la última década en torno a esta problemática y amparadas en su tesis de magíster en la Universidad Católica. Leia Mais
Atlas histórico de las divisiones político-administrativas de Chile, 1810-1940 – SAGREDO BAEZA et al (RHYG)
SAGREDO BAEZA, Rafael; GONZÁLEZ LEIVA, José Ignacio; COMPAN RODRÍGUEZ, José. Atlas histórico de las divisiones político-administrativas de Chile, 1810-1940. Santiago de Chile: Instituto Geográfico Militar, Pontificia Universidad Católica de Chile, Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos, 2016. 334p. Resenha de: ARAYA, Mariel Rubio. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.36, p.197-199, 2017.
Se da por hecho que historia, geografía y cartografía van de la mano pero pocas veces dialogan con tanta claridad como en el libro que hoy comentamos. Es más, nos aventuramos a decir que esta es la primera ocasión en que lo hacen en la magnitud de esta obra.
En este atlas, producto del trabajo de Rafael Sagredo, José Ignacio González y José Compan, se recorre la historia de Chile republicano a través de una nueva óptica, dando luces sobre el proceso de construcción del Estado y la nación, desde el ocaso de la Colonia hasta mediados del siglo XX. A través de los 197 mapas podemos ver no solo la expansión o contracción territorial de Chile desde el punto de vista geográfico, sino que nos da las herramientas para analizar las motivaciones políticas que hubo tras cada límite trazado en el papel y que más de una vez nos obligaron a dialogar o enfrentar a nuestros países vecinos. Leia Mais
O socialismo utópico – BUBER (Ph)
BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: perspectiva, 2007.Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Philósophos, Goiânia, v. 22, n.1, p.249-264, jan./jun., 2017.
O livro, elaborado em doze capítulos, começa examinando o legado intelectual daqueles pensadores que os marxistas chamavam de socialistas utópicos. Seguem-se as análises das propostas de Gustav Landauer, Karl Marx e Vladimir Ilitch Lênin para a reforma da sociedade. Nos antepenúltimo e penúltimo capítulos Buber comentou a criação do Estado de Israel e as dificuldades do seu tempo. No último capítulo o autor exporá sistematicamente as próprias ideias sobre os mecanismos de mudança na sociedade e a forma de socialismo que lhe parece mais adequada. Então criticará os rumos históricos do socialismo marxista, contrapondo a experiência soviética à que estava se realizando na terra de Israel.
No capítulo inicial, o autor considera as razões pelas quais os marxistas denominaram seus predecessores de utópicos. A razão fundamental, esclarece, é que eles queriam a reorganização da sociedade mantendo a mesma sociedade, mesmo sem saber exatamente que sociedade surgiria com a expansão do proletariado. Buber esclarece o essencial da análise marxista (p. 10): “Foi a impossibilidade de compreender e dominar o problema do proletariado que deu azo ao aparecimento desses sistemas, que só poderiam ser imaginários, fantásticos e utópicos e que, no fundo, propunham a abolição de uma diferença de classes que estava apenas começando a processar-se e que, um dia, iria provocar a transformação geral da sociedade”. A crítica a esses socialistas foi desenvolvida especialmente no Manifesto Comunista. Seu autor, o filósofo e sociólogo Karl Marx (1818-1883), pretendia dar tratamento científico à reorganização da sociedade, pois os precursores do socialismo não lhe pareciam conscientes do desenvolvimento e dos problemas da sociedade industrial.
Segue-se o estudo dos chamados socialistas utópicos. O socialismo como proposta teórica, Buber sintetiza, é o anseio pelo justo, (p. 18): “anseio que se experimenta na visão religiosa ou filosófica, como revelação ou ideia e que, por sua essência, não pode se realizar no indivíduo, mas somente na comunidade humana”. E o justo tanto na ordem religiosa – a escatologia teológica ou filosófica, possui um sentido realista, realiza-se na sociedade. Há duas formas de escatologia, explica Buber (p. 21): “uma profética, que faz depender a preparação da redenção […] da força da resolução de todo homem a que se dirija; uma apocalíptica, para a qual o processo de redenção foi fixado desde a eternidade com todos os pormenores, com suas datas e prazos, e para cuja realização os homens servem apenas de instrumento”.
O pensamento escatológico se tornou, depois da Revolução Francesa, uma utopia. Por força da laicidade do pensamento iluminista, a crença ou redenção do homem ficou restrita à construção de uma sociedade justa nascida do esforço humano. Encontrando-se nessa perspectiva moderna e próxima do iluminismo, Marx e seu parceiro Friedrich Engels (1820-1895) explicam que os socialistas utópicos pretendem reorganizar a sociedade valendo-se da razão e dos esforços do homem. Para Buber, enquanto os socialistas chamados utópicos assumiam a escatologia profética, o pensamento de Marx e Engels, tornou-se prevalentemente, mesmo que não exclusivamente, articulador de uma escatologia apocalíptica. Além disso, o marxismo incorporou, mesmo negando que o fizesse, uma fé secreta na utopia, que os marxistas apenas enxergam nos socialistas que os antecederam. Na revisão do sentido dessas formas primeiras de socialismo denominadas utópicas, Buber identifica um esforço de renovação da sociedade pela superação da solidão na alma e pelo máximo de autonomia comunitária.
Essa solidão é própria, ele aponta, de uma sociedade de massas em sentido próximo ao indicado pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) (p. 25): “a sociedade é amorfa, invertebrada, pobre de estrutura”.
O terceiro capítulo retoma a questão do socialismo utópico e aprofunda as teorias de Claude Henry de Rouvroy, filósofo e Conde de Saint-Simon (1760-1825), François Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo e economista francês e de Robert Owen (1771-1858), reformista social e considerado um dos fundadores do socialismo.
Esses homens esperam ver surgir uma sociedade socialista não no futuro, mas no seu tempo. Os socialistas utópicos, para Buber, poderiam ser agrupados em dois grupos, um que antecede a geração e ao trabalho de Marx e Engels e outro contemporâneo. No primeiro grupo, Buber destaca a contribuição desses três socialistas começando pelo Conde de Saint Simon, defensor de uma sociedade dirigida por industriais e trabalhadores. Saint Simon sabia que uma sociedade que não caminhasse para a unidade, mas permanecesse dividida em duas classes teria sempre uma dirigente e outra dirigida. Por sua vez, Fourier julgava haver descoberto o segredo da associação social e de uma sociedade constituída com base nela, contra a herança da Revolução Francesa que era contrária tanto a associação como ao sindicato. Para Fourier, somente a associação entre as pessoas resolveria os problemas do Estado, pois representa a união dos interesses. Com a organização, os trabalhadores assalariados se transformariam em associados, alcançando um novo patamar de evolução social. Esse pensamento influencia a formação de cooperativas, mas devido à suas limitações, o socialismo utópico somente pode incorporá-lo, superando-o. Uma terceira formulação foi a de Robert Owen para quem uma autêntica comunidade não viria da propriedade comum, (p. 33): “mas de uma igualdade de direitos e facilidades”. Ele pretendia modificar as relações entre governantes e governados. Essa dicotomia permanecerá enquanto o homem estiver separado numa organização social que não favorece relações autênticas. As relações verdadeiras, assim lhe parece, viriam de dentro das comunidades e renovariam as formas de organização social existentes. Temos em síntese, Saint Simon que espera construir uma sociedade unitária para superar a dualidade; Fourier para quem isso somente seria possível em pequenas comunidades que busquem o próprio sustento e Owen que pensa que a mudança deveria ocorrer tanto nas pequenas células como nas grandes, sendo que a justiça na sociedade total somente ocorreria se começasse em suas células menores. Temos assim três formas complementares de socialismo utópico.
Segue-se o capítulo dedicado ao filósofo e economista francês Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) para quem o socialismo, avalia Buber, promoveria o desenvolvimento da sociedade no cumprimento do seu destino. Proudhon retomou os princípios essenciais das teorias anteriores e as reconstruiu.
Não assumiu o determinismo hegeliano, mas entendeu que a razão orienta a História para a liberdade, devendo o homem apenas respeitar as leis da História. Ao contrário de Hegel, que concebeu uma dialética triádica da negação da negação ou da síntese dos opostos, Proudhon espera realizar uma síntese de todas as contradições. O problema que enfrenta é que nenhum princípio que pudesse nascer dessa síntese consegue abarcar e explicar toda uma época. No espaço político, Proudhon desconfia de toda centralização, manifestando sua preferência pelos costumes comunais. Como os grupos que formam as nações não são geralmente ouvidos tenta-se escutar os indivíduos, mas é necessário, para fazê-lo, criar um princípio de organização.
O futuro da sociedade depende de se entender o trabalho como financiador da empresa e da sua coletivização.
Desse entendimento depende o futuro dos trabalhadores, trabalharem todos uns para os outros e não todos para o proprietário. Quanto a centralização, política esta devia ser evitada, pois ele não a diferencia do centralismo absolutista.
Então pode-se dizer que Proudhon desejava, como Saint Simon, a reestruturação da sociedade, mas não queria que ela viesse de cima. O problema de suas teses é que elas não explicam se as novas unidades sociais conservariam os princípios geradores das unidades antigas e se seriam suficientes para promover a nova sociedade que ele espera ver surgir.
Depois de Proudhon, Buber examina as teses centrais do geógrafo russo Piotr Kropotkin (1842-1921) que pretende renovar o legado desse último. Kropotkin substitui as antinomias sociais do seu antecessor por uma luta pela existência e colaboração mútua. Quanto a sua ideia de Estado, ele a identifica com a tese centralista e seu enfoque não é a proteção contra o terror generalizado, ou a luta de todos contra todos (Hobbes), mas a proteção que oferece às comunidades que o integram. Sua crítica não é propriamente contra o Estado, mas contra a máquina do Estado centralista moderno. O problema da tese de Kropotkin é que ela não diferencia o Estado prepotente que nasce da máquina centralizadora e o Estado legítimo e necessário, protetor das comunidades que o formam. O certo é que o Estado legítimo tanto convive com a liberdade dos indivíduos como jamais chega a constituir-se definitivamente. De Proudhon, Kropotkin recupera a tese de que a transformação da sociedade somente viria com a Revolução e considera que a Revolução produziu o fenômeno político da centralização, mas não se deu conta que, no âmbito social, a Revolução é um fator desagregador e não de união. E então Buber comenta o que considera o ponto frágil de seu pensamento. Ele tem consciência de que seu projeto não se realizaria dentro de um Estado como o que existia em seu tempo, mas espera promover uma reforma na sociedade que começasse naqueles dias e não num futuro distante.
O capítulo 6 é dedicado ao exame das teses de seu amigo Gustav Landauer (1870-1919). Landauer percebeu que o Estado não é uma instituição que possa ser destruído pela revolução social, pois é (p. 63) “uma situação, uma relação entre os homens, um modo dos homens se conduzirem uns aos outros”. Para destruí-lo seria necessário criar novas formas de relação social que Landauer supõe possa estar no povo. Não se trata de uma categoria nova, mas da reformulação de comunidades que já existem nos Estados. Eis o essencial do seu pensamento (p. 67): “aqui se põe a descoberto a verdadeira relação entre nação e socialismo: a semelhança dos conacionais quanto à maneira de ser, linguagem, patrimônio de tradições, memória de um destino comum, constante predisposição para uma existência comunitária e, tão somente edificando essa existência, é que os povos podem ser reconstituídos”. O grande risco de pretender que as revoluções sociais modifiquem fundamentalmente os Estados é que eles não favorecerão sua própria destruição e as forças revolucionárias serão cooptadas pelas correntes políticas nele presentes. Acompanhando Proudhon e Kropotkin, Landauer entende que os ideais socialistas não podem se limitar ao que foi pensado numa geração.
Comenta Buber (p. 75): “o socialismo é uma criação contínua da comunidade dentro do gênero humano, na medida e na forma em que as condições momentâneas permitam que ele seja desejado e realizado”.
O capítulo seguinte é dedicado ao estudo das propostas cooperativistas. O método marxista que denominou de utópicos aos socialistas que o precederam, classificou as propostas cooperativistas de românticas, ou fora da realidade.
William King (1787-1865) médico inglês espera transformar as instituições sociais, valendo-se dos princípios do cristianismo. Para King, o trabalho é a base da organização social e ele está nas mãos dos trabalhadores. Ao se unirem os trabalhadores poderão adquirir os instrumentos de que necessitam para trabalhar, bem como a terra que necessitam para produzir. E as relações entre os homens nessa nova organização social nasceriam nessas cooperativas que, para King, traduzem a forma autêntica das relações humanas. Essas cooperativas são a base de uma realidade socialista que teria origem (p. 84): “com a criação de pequenas realidades socialistas em constante fusão e expansão”.
Embora essa trajetória não tenha se verificado, as cooperativas, especialmente as de consumo, se espalharam pela Europa. Outro defensor desse modelo de produção foi o francês Benjamin Buchez (1776-1860) que pensou, no seu país, a criação e expansão de cooperativas de produção.
Ele percebeu os riscos inerentes ao modelo cooperativista na medida em que os sócios fundadores podiam contratar empregados e funcionarem como capitalistas. É difícil superar a tentação de contratar pessoas para trabalhar para si. Para evitar esse encaminhamento na organização Buchez sugere medidas corretivas nas cooperativas como a incorporação dos empregados como novos cooperados e a necessidade de anualmente abrir a entidade a novos sócios.
Segue-se a proposta de Karl Marx de renovação social, tema do oitavo capítulo. Buber recorda que o socialismo utópico trabalha com a hipótese de que (p. 104): “uma sociedade profundamente estruturada poderá substituir ao Estado”. Essa seria a sociedade autêntica, formada em parte pelas comunidades já existentes e dentro de uma perspectiva temporal na qual as mudanças seriam as possíveis já naqueles dias. Buber considera que Marx pretende algo próximo aos socialistas utópicos, eliminar o Estado em geral, não apenas o Estado das classes. Se esse propósito era semelhante ao dos socialistas utópicos, Marx, diversamente, espera fazer isso (p. 107): “através de meios políticos, mediante um puro suicídio, por assim dizer, do princípio político”.
Ao propor que o proletariado vencedor do processo revolucionário tomasse conta do espaço político, fica-nos a dúvida de se não surgiria nesse grupo vencedor uma nova divisão social. Sem traçar uma linha clara sobre os limites do poder, o risco desse processo é gerar não uma disputa entre classes, mas entre indivíduos ou grupos. A partir de 1858, Marx começa a duvidar de que uma revolução socialista pudesse ser realizada numa escala mundial e mesmo se triunfaria na Europa. Nesse contexto, aproxima-se da ideia de uma reestruturação da sociedade, ainda que não aderisse a ela completamente. Considera a possibilidade de as cooperativas crescerem superando a ordem capitalista.
Porém, nos revela, no Manifesto Comunista, que essas pequenas experiências socialistas estavam fadadas ao fracasso.
E surge então um problema: como seria possível eliminar imediatamente o poder do Estado, antes mesmo de concluída a revolução se o processo revolucionário é ele mesmo autoritário? Parece a Buber, considerando o que escreve Engels em 1866, que a valorização das cooperativas era um pretexto. As cooperativas teriam, no marxismo, apenas função auxiliar no processo revolucionário. Portanto, o marxismo, conclui Buber, (p. 124): “não se empenhou em dar forma à nova existência social do homem”.
O capítulo nove é dedicado à herança soviética das ideias de Marx e Engels, pela análise das teses de Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924). O caráter utópico dos socialistas antecessores a Marx parece estar em tentarem pensar os rumos do processo revolucionário. Marx nada diz disso. A contradição entre afirmar o princípio político ao invés do social, numa realidade que mantém o sistema político, foi disfarçada, por Lênin, com a tese de que o processo ainda estava em curso. E Lênin admite não saber o que surgiria com a extinção do Estado. Engels defendera a tese de (p.128): “que o Estado desaparecerá em consequência da futura revolução social, porque as funções públicas não serão mais políticas, mas administrativas”. E Lênin passou a falar do fim do Estado, mas ele, como Marx, não sabia como estruturar a sociedade depois da Revolução. Se destruir o Estado era o objetivo, ele não sabia contudo, como e nem quando isso seria possível. Ele explica que se refere aos resíduos burgueses presentes no Estado porque (p. 130): “o Estado, como poder especial de repressão, é indispensável”.
Lênin adota, então, posição oposta à pretendida por Marx e Engels. A partir dessa tese, Lênin e os bolchevistas, consideraram os soviets não órgãos de controle do governo, mas o próprio governo. A evolução do processo revolucionário mostra que Lênin irá apostar na crescente centralização do poder (p. 152): “de centros de produção governamentais e repartições governamentais um mecanismo de instituições de produção e consumo burocraticamente dirigidas e engatadas a uma engrenagem”. De um lado, admitia Lênin, a descentralização das cooperativas e de outro defendia a centralização das decisões, o que é uma incongruência traduzida pela avaliação crítica (p. 153): “quadratura do círculo”.
O capítulo X traz a experiência socialista em Israel. Essa experiência teve sucesso porque a união no novo país se baseou na construção de uma vida comunitária. Isso não se fez sem dificuldades, mas parecia alternativa mais bem sucedida que a experiência soviética. Ele explica (p. 162): “é a colônia cooperativa hebraica da Terra de Israel, com suas diferentes formas”. Apesar das dificuldades seu sucesso se explica: primeiro pela ausência de uma doutrina que a organizasse, sua evolução foi resposta aos problemas da vida real e da necessidade de trabalho dos produtores rurais.
Quando muito houve uma razão espiritual que os aproximou, mas que não afetou o caráter maleável da organização (p. 163): “as doutrinas bíblicas da justiça social”. Segundo: essas associações se formaram no espírito estabelecido no novo país, onde a elite dos precursores (halutzim) pensou o país como uma colônia comunitária. Assim os grupos comunitários não se fechavam em si mesmos, mas eram partes de uma comunidade nacional. Terceiro: a necessidade desses grupos comunitários (p. 164): “não só educasse para a autêntica vida comunitária aqueles que se incorporavam, mas que, também, exercesse uma influência construtiva e estruturadora sobre a periferia da sociedade”.
Embora colônia comunitária exercesse forte poder de atração, suas organizações eram ainda insuficientes para unificar a grande quantidade de pessoas que afluíam para a Terra de Israel. E a chegada desses novos moradores chamou atenção da elite de precursores que os aproximavam do destino comum. Aí se explicita a noção de comunidade autêntica para Buber. Ela (p. 166): “não precisa ser composta de homens que se façam constantemente companhia, deve ser constituída de homens, justamente como companheiros, sejam mutuamente receptivos e bem dispostos. Comunidade autêntica é aquela que, todos os aspectos de sua existência, possui potencialmente, o caráter de comunidade”.
Além do mais, essas pequenas comunidades de produtores possuíam força para resistir às tendências centralizadoras que pretendiam encerrá-las ou dividi-las. O problema foi que com o passar do tempo foi-se perdendo o sentido comunitário e apesar de colônias mais ricas ajudarem as mais pobres, a solidariedade diminuiu. Apesar dessas dificuldades, concluiu Buber, ao lado de Moscou, que é um dos polos do socialismo contemporâneo (p. 171): “atrevo- me a denominar o outro polo de Jerusalém”.
O penúltimo capítulo examina a crise que se estabeleceu depois da Primeira Grande Guerra. Não era a crise de um sistema da vida social, mas de todos e com sérias consequências. Buber escreveu (p. 173): “E, nessa crise, o que está em jogo é a própria existência do homem sobre a terra”.
Sobre o progresso humano, diz que não é uma avenida plana, mas uma marcha entre crises que se sucedem. Em seguida, Buber esclarece que a construção da vida social é a grande marca da presença humana no planeta e que ela, na modernidade, se acomodou ao Estado. O social ficou, pois, na dependência do político. O que fazer para enfrentar essa situação? Para Buber, o perigo a ser enfrentado era (p.177): “um centralismo planetário ilimitado que devore toda comunidade livre. Tudo depende de que o trabalho de cultivo da terra não seja entregue a um princípio político.” Perigo porque, para ele, o propósito da vida humana é a construção de uma comunidade autêntica o que equivale a uma organização (p. 178): “de conteúdo absolutamente comunitário”. Esse projeto não atende a um plano pré-concebido, mas à capacidade de responder aos problemas que a vida trouxer. E aqui se chega ao ponto central de sua tese, mesmo sem haver uma teoria definitiva que contemple o grande projeto de criação de uma comunidade autêntica, ela somente se forma em torno a um núcleo aglutinador. Ele explica a importância desse núcleo (p.180): “A gênese da comunidade só pode ser compreendida, quando se considera que seus membros têm uma relação comum com o centro e que essa relação é superior a todas as demais; o círculo é traçado pelos raios, não pelos pontos periféricos”. Esse centro, para o filósofo, é uma transparência para o divino. Há quem diga que a vida moderna não mais se organizará em torno desse centro, como era no passado. Contudo, contrapõe Buber, consiste nessa articulação entorno ao núcleo aglutinador e nas relações comunitárias menores inseridas em maiores, a melhor estratégia para enfrentar a crise. Ele concluiu (p. 183): “o ponto essencial é que o processo de formação de comunidades persista nas relações das comunidades entre si. Somente uma comunidade de comunidades poderá ser qualificada como ente comunitário”.
O capítulo final aprofunda o problema da subordinação da sociedade ao Estado. A formação de uma sociedade depende (p. 186): “dos homens encontrarem um estado de intervinculação ou que se unam entre si e, assim formando uma união já existente ou a ser fundada, criem uma sociedade”.
Ao olhar a evolução dos grupos humanos, Buber comenta a confusão entre os princípios social e político na antiguidade. No mundo grego, por exemplo, (p. 188): “ainda que nos seja dito, expressamente, que o homem foi criado não apenas para a comunidade política, mas também para a doméstica, ainda assim a polis é a consumação da koinonia (companherismo, participação, compartilhamento).
O mundo romano não ultrapassa essa deficiência de entendimento (p. 189): “para Cícero, não só o Estado é uma sociedade, mas simplesmente, uma societas vivium.” A Idade Média também não melhorou tal compreensão, pois entendeu a comunidade humana inserida numa unidade: Igreja ou Estado universal. O mundo moderno, com a formação do Estado Nacional, principia com a anulação da sociedade. Na formulação de Hobbes (p. 192): “o Estado que alcançou a perfeição eliminará também o último resquício de sociedade. Tal Estado perfeito chegou bem próximo daquele que atualmente denominamos de totalitário”.
A construção de uma ideia de sociedade, à parte do Estado, emerge da Revolução Francesa, mas a sociedade que surge é a burguesa. As tentativas de aprofundar a distinção entre os sistemas social e político podem ser encontradas em Saint Simon e Hegel. Esse último entende faltar, no Estado do seu tempo, o que é necessário para a formação de uma autêntica comunidade (p. 195): “legítima cooperação, solidariedade, auxílio mútuo, camaradagem fiel e entusiasmo ativo”. Essas teorias estiveram no limiar da construção da Sociologia, que somente surgiria com Marx e Lorenz von Stein, mas ambos ao considerarem a nova realidade social, a sociedade burguesa, afastaram-se dos esforços dos seus antecessores. Em Marx, o Estado é um instrumento da classe burguesa em defesa de seus interesses.
Por isso, ele espera substituí-lo por um outro Estado que faça surgir uma sociedade sem classes e depois se dissolva nela. Portanto, o grande problema da Sociologia é encontrar formas de relação entre os princípios social e político.
O que Buber entende necessário para dar efetividade ao propósito humano de construir uma comunidade autêntica é o estabelecimento (p. 197): “de uma sociedade de uma comunidade de povo, que não é composta de indivíduos, mas de sociedades e não, como achava Comte, apenas de famílias”. Esse projeto enfrenta obstáculo no medo que cada povo tem de seus vizinhos. O resultado é que (p. 199): “o princípio político em relação ao social é sempre mais forte”.
Daí que o enfrentamento da crise contemporânea passa pela construção de uma sociedade com relativa autonomia das comunidades locais e regionais. Assim, a maior força da comunidade economicamente e culturalmente produtiva, passa pelo fortalecimento das organizações sociais face ao poder político. Essa é a proposta de Buber para o enfrentamento da crise humana que o socialismo tentou resolver. Este livro esclarece as posições de Buber sobre o socialismo.
Explica porque as soluções socialistas, que foram desqualificadas pelos marxistas como utópicas e românticas, contêm uma melhor compreensão da dicotomia entre o social e o político. Tais propostas também lhe parecem melhor concebidas do que as de Marx e Engels, isto é, propõem a afirmação da Sociedade ante o Estado. Buber rejeita a visão apocalíptica da história, que Marx laicizou em sua teoria da História. Ele ainda procurou dissociar essa visão apocalíptica que enxerga no socialismo marxista da tradição judaica. Para ele, o essencial da tradição judaica é que os caminhos da história, dependem da ação dos homens que, com liberdade, contribuem para os planos de Deus. Nos socialismos denominados utópicos, além do respeito ao empenho pessoal, estão os melhores elementos para tratar a questão social que emerge da sociedade burguesa. Autores como Saint Simon e Fourier não projetam a solução do problema social no futuro, mas o enfrentam no seu tempo, na concretitude do aqui e agora, encaminhamento da questão que lhe parece mais adequada que as propostas do socialismo marxista.
A perspectiva buberiana de existência humana, bastante próxima das posições da fenomenologia existencial explica o essencial da crítica ao marxismo. Suas teses filosóficas estão descritas na sua filosofia do diálogo e especialmente no clássico Eu e Tu. São essas ideias que formam o pano de fundo das reflexões propostas nesse livro. O livro nos coloca também diante do fato de que a construção da Terra de Israel representa uma alternativa de efetivação do socialismo com maiores chances de sucesso do que o socialismo soviético. Assim ele avalia porque esse socialismo encontra- se sustentado na visão de sociedade e fé ensinada pelos profetas judeus. O socialismo, tal como o filósofo vê surgir em Israel, parece-lhe expressar o projeto humano de construir uma comunidade autêntica. As razões que elenca são coerentes a visão de existência da fenomenologia existencial.
Uma tal comunidade tem um centro irradiador que a unifica e é formada de comunidades livres, de pessoas livres, responsáveis pelo destino de suas vidas, que se associam em comunidades maiores igualmente livres. A construção de uma comunidade autêntica é o lado exterior da aspiração ao divino que ultrapassa a existência temporal e são sua forma de reconhecer a transcendência. Ela expressa o propósito de se aproximar de Deus e realizar tal projeto pautado no código mosaico e no reino de justiça anunciado pelos profetas que é a base dos modelos éticos prevalentes no ocidente.
Referências
BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: Perspectiva, 2007.
José Mauricio de Carvalho – Professor do Instituto Presidente Tancredo de Almeida Neves (IPTAN), São João Del Rei, MG, Brasil. E-mail: semauriciodecarvalho@gmail.com
Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de junho de 1835 | Ricardo Pirola
Resenhista
Douglas Guimarães Leite – Universidade Federal Fluminense. E-mail: douglas.leite@gmail.com Leia Mais
A invenção dos direitos humanos: uma história | Lynn Hunt
A autora de A invenção dos direitos humanos, Lynn Avery Hunt, nasceu em 1945 no Panamá e cresceu no estado de Minnesota nos Estados Unidos da América. Atualmente, leciona História europeia na Universidade da Califórnia e utiliza os pressupostos da História Cultural em suas produções acadêmicas.
Vinculada à História Cultural, em A invenção dos direitos humanos Lynn Hunt salienta a importância de abordar as transformações das mentes individuais ao trabalhar os processos históricos. Sendo assim, nos capítulos iniciais do livro a autora busca elucidar as novas formas de compreensão de mundo surgidas no século XVIII que possibilitaram a construção de pressupostos como os presentes na Declaração de Independência Americana (1776) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
A Declaração de Independência dos Estados Unidos, ao se desfazer da subordinação política para com a Coroa Britânica, fez uso das idéias iluministas ao declarar verdades auto-evidentes como igualdade de todos os homens e seus direitos inalienáveis: “Vida, liberdade e busca da felicidade”. Já a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi adiante e traçou que todos os homens são iguais perante a lei e que todos possuem o mesmo direito independente de sua origem ou nascimento. Pressupôs-se, então, a tolerância religiosa e a liberdade, além da autonomia e da independência dos homens.
Para as declarações, os direitos eram universais e iam além de classe, cor ou religião. No ato da escrita, já se partia da idéia de auto-evidência dos direitos, o que aponta para uma mudança radical nos pensamentos ao longo do século XVIII e insere uma problemática: se os direitos são auto-evidentes por que precisam ser declarados? Ao responder a essa questão Hunt salienta que a construção dos direitos é contínua.
As declarações são a materialização das discussões que haviam interpelado o século XVIII e rompiam com a estrutura tradicional de sociedade. Um novo contrato social foi forjado, centrado nas relações entre os próprios homens sem contar com o intermédio religioso: era o fim do absolutismo e a desconstrução do Direito Divino dos Reis de Jacques Bossuet. O fundamento de toda a autoridade se deslocou de uma estrutura religiosa para uma estrutura humana interior: o novo acordo social se dava entre um homem autônomo e outros indivíduos igualmente autônomos.
A montagem dessa nova estrutura só é possível devido a uma nova visão do homem: agora visto como alguém livre que tem domínio de si, que pode tomar decisões por si e viver em sociedade. A autonomia individual nada mais é do que a aposta na maturidade dos indivíduos. A partir dessa nova visão, nasce-se uma nova vertente educacional: modelada pelas influências de Locke e Rousseau, a teoria educacional deixa de focar na obediência reforçada pelo castigo para o cultivo cuidadoso da razão para formar esse novo homem crítico e independente.
Paralelo a isso, nasce-se uma nova visão de corpo. O corpo passa a ser algo de domínio privado, individual e não mais como algo pertencente ao corpus social ou religioso. Os corpos também se tornaram autônomos, invioláveis, senhores de si e individualizados.
Como um importante mecanismo de transformação, Hunt aponta a popularização dos chamados romances epistolares. As cartas enviadas pelas protagonistas abordam as emoções humanas para todos os leitores. As lutas de Clarissa e Pâmela, criadas por Richardson, além das questões de Júlia, escrita por Rousseau, fizeram com que os leitores reconhecessem que todos tem seus sonhos, almejam tomar suas próprias decisões e dirigir a própria vida. O desenvolvimento de um sentimento de empatia tornou possível a construção de pressupostos básicos como a autonomia, a liberdade e a independência, além da igualdade.
Outro exemplo de transformação social ocorrida no século XVIII foi a campanha contra a tortura. Hunt cita o caso Callas como disparador de um processo que espelhou a nova visão de corpo na sociedade francesa do século XVIII. Para Hunt, ler relatos de tortura ou romances epistolares causou “mudanças cerebrais” que voltaram para o social como uma nova forma de organização.
Houve uma queda na visão do pecado original, na qual todos são pecadores e duvidosos, para a ascensão do modelo de homem rousseauniano que aposta na bondade de cada indivíduo. Essa concepção, aliada ao novo conceito de corpo, agora dentro do limite privado, formulou um posterior novo código penal que gradualmente aboliu a tortura e deu ênfase à ressocialização do indivíduo. O corpo já não era punível com a dor para vingar o social e estabelecer um exemplo ao restante da população. O corpo agora era privado e o foco se tornou a honra social do indivíduo.
Após abordar as transformações que tornaram possíveis as declarações, Lynn Hunt se ateve às aplicações e ao processo de formação das sociedades ao tentarem aplicar esses direitos. Uma assertiva importante que a autora faz nesse capítulo é que declarar é um ato político de alteração da soberania: esta passou a ser nacional, pautada no contrato entre homens iguais perante a lei, sem intermédio da religião. Declarar significava consolidar o processo de mudanças que vinham ocorrendo ao longo do século.
Mesmo dizendo que naquele momento os direitos já eram auto-evidentes, os deputados criaram algo inteiramente novo que era a justificatição de um governo a partir de sua capacidade de garantir os direitos universais. Entretanto, nessa fase encontram-se os problemas inerentes a aplicação desses conceitos generalistas: declarar os direitos universais significava conceder direitos políticos às mais variadas minorias, e proclamar a liberdade colocava em cheque a escravidão colonial.
A partir daí muitos direitos específicos começaram a vir à tona na esteira: liberdade de culto aos protestantes significava direito religioso também aos judeus, bem como participação política; o mesmo acontecia com algumas profissões, além da situação das mulheres, defendida de maneira inovadora por Condorcet e Olympe de Gouges. Os direitos foram sendo concedidos gradualmente, a liberdade religiosa e os direitos políticos iguais às minorias religiosas foram concedidos no prazo de dois anos, bem como a libertação dos escravos.
A discussão da universalidade dos direitos foi caindo ao longo do século XIX. Alguns grupos assumiram as lutas políticas do século seguinte às declarações como os trabalhadores e as mulheres. O nacionalismo foi um protagonista importante da luta por direitos ao longo do século XIX, os pressupostos franceses internacionalizados pela expansão napoleônica surtiram o efeito inverso.
Após a dominação que caracterizou o período napoleônico, nos territórios ocupados se criou uma aversão a tudo que viesse dos franceses em detrimento do que simbolizasse uma identidade nacional. Com o tempo o nacionalismo foi tomando características defensivas e passou a ser xenófobo e racista, baseando-se cada vez mais em inferências de caráter étnico.
Teorias da etnicidade representaram um enorme retrocesso ao ideal de igualdade pois partiam para determinação biológicas da diferença, montando hierarquias e justificando a subordinação, e, por conseguinte, o colonialismo. Houve uma falência do novo modelo educacional, visto que dentro da nova ideologia social só algumas raças poderiam chegar à civilização rompendo também com o ideal de universalidade.
O ápice dessa visão nacionalista e racista foi a Segunda Guerra mundial, que com os milhões de civis mortos representou a falência dos direitos humanos, principalmente com os seis milhões de mortos por intolerância religiosa e discurso de raça. As estatísticas assombrosas e o julgamento de Nuremberg trouxeram à tona a necessidade de um compromisso internacional com os direitos humanos.
Apesar de reconhecimento da urgência desse compromisso, foi preciso estimular as potências aliadas a assinar a Declaração dos Direitos Humanos, visto que havia um receio de perder colônias e áreas de influência. Sendo assim, a Declaração de 1948 só foi assinada porque deixava claro que a Organização das Nações Unidas (ONU), ali criada, não influenciaria nos assuntos internos de cada país. Ao longo do tempo, as Organizações Não-Governamentais foram mais importantes para a manutenção dos direitos humanos ao redor do mundo do que a própria ONU.
A discussão acerca dos direitos humanos feita por Hunt termina por ressaltar o quão paradoxal é esse tópico, além da dificuldade de conter “atos bárbaros” até os dias atuais. Hunt (2009, p. 214) fala de “gêmeos malignos” trazidos pela noção de direitos universais: “A reivindicação de direitos universais iguais e naturais estimulava o crescimento de novas e às vezes até fanáticas ideologias da diferença”. Há uma cascata contínua de direitos repleta de paradoxos como o direito da mãe ao aborto ou o direito do feto ao nascimento.
Para Hunt, a noção de “direitos do homem”, bem como a própria Revolução Francesa, abriu espaço para essa discussão, conflito e mudanças. A promessa de direitos pode ser negada, suprimida ou simplesmente não cumprida, entretanto jamais morre.
Anny Barcelos Mazioli – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo. E-mail: anny.mazioli@hotmail.com.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 288p. Resenha de: MAZIOLI, Anny Barcelos. Um panorama da história dos direitos humanos: uma construção necessária. Revista Ágora. Vitória, n.25, p.142-145, 2017. Acessar publicação original [IF].
Velas ao Mar – U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos | Mary Anne Junqueira
O livro de Mary Anne Junqueira, produto de sua tese de livre-docência no Departamento de História da Universidade de São Paulo, é um relato expressivo da U.S. Exploring Expedition (1838-1842) chefiada pelo capitão Charles Wilkes da Marinha norte-americana. Segundo a autora, esta viagem teve pouca repercussão nos anos subsequentes, fato que talvez explique a razão da restrita historiografia sobre esta empreitada. O motivo desse “esquecimento” poderia estar no caráter explosivo e violento de Wilkes para com sua tripulação, que teve que encarar uma corte marcial quando voltou aos Estados Unidos. Só a narrativa dos acontecimentos ligados aquela expedição vale a leitura do livro de Mary Anne Junqueira. Cabe registrar o ótimo capítulo que explora a vida dos marinheiros a bordo, ricamente ilustrado, dando voz a um setor comumente negligenciado pelas narrativas históricas. Leia Mais
Lugares e Memória do Século XX / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017
O presente número da Revista Clio se inicia com os textos reunidos no Dossiê “Lugares e Memória da Cultura” organizado pelos Professores Antônio Paulo Rezende (UFPE) e Augusto Neves (UNINABUCO). Seu objetivo é reunir artigos que analisem historicamente as relações culturais, destacando a sua temporalidade e como elas influenciam na construção do poder na sociedade ao longo do século XX.
No primeiro texto, Janaína Cardoso de Mello toma como objeto de estudo as representações do poder régio ilustrado a partir das relações entre arquitetura, mobiliário e história no âmbito da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Na sequência, Luciana Penna-Franca aborda a cena cultural do teatro amador carioca no final do século XIX e início do XX a partir das publicações de “assuntos teatrais” nos periódicos do Rio de Janeiro, observando sua influência na vivências artísticas e no cotidiano da cidade.
O terceiro texto do dossiê foi elaborado por Aldo José Morais Silva a partir dos debates sobre a escolha de um hino para a cidade de Feira de Santana (BA) entre o final do século XIX e o início do XX. O artigo enfoca as razões das escolhas e como elas representavam as expectativas da sociedade local em relação à sua autoimagem. A partir dos escritos de Manuel Quirino e à luz das concepções propostas por Nora, Morse e Spivak, Bruno Pinheiro analisa os lugares de memória na fase do pósabolição em Salvador (BA).
O quinto texto da coletânea especial enfoca a organização sindical dos trabalhadores em São Paulo. Alzira Lobo de Arruda Campos, Marília Gomes Ghizzi Godoy e Rafael Lopes Souza discutem as conexões e antagonismos entre as influências teóricas europeias e as características históricas do Brasil no processo de construção das organizações de luta em defesa dos trabalhadores.
O sexto texto é foi escrito por Márcio Rogério Olivato Pozzer e analisa o papel histórico das políticas públicas de patrimônio cultural para os museus no México ao longo do século XX, mas precisamente a partir da Revolução Mexicana de 1910. O dossiê, neste número, se encerra com o texto de Carolina C. de Souza Martins e Elio de Jesus Pantoja Alves sobre a experiência de pais e mães de santo no Terreiro do Egito, no Maranhão, na busca pela ancestralidade numa região do município de São Luís que desde os anos 1980 vem sendo ameaçada pela expansão do complexo portuário da capital maranhense.
Para além dos artigos que compõem o dossiê, o presente número da Revista Clio veicula também mais cinco artigos livres e duas resenhas. O primeiro artigo livre foi escrito por Anne Karolline Campos Mendonça e se intitula “As mulheres sem nome: o desenvolvimento de argumentos jurídicos baseados no estatuto feminino. Comarca das Alagoas – Capitania de Pernambuco (1716-1765)”. Nele a autora analisa como as elites coloniais faziam valer seus interesses se apropriando do discurso jurídico sobre aqueles que eram considerados inferiores, no caso específico, sobre as mulheres. Avançamos então para o século XIX, com um estudo sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul intitulado “As Companhias Colonizadoras no processo da imigração italiana em territorialidades do Vale do Taquari / Rio Grande do Sul”, apresentado por Janaine Trombini, Luís Fernando da Silva Laroque e Ana Paula Castoldi, com especial atenção para a atuação das firmas Bastos & Companhia, Cia Colonizadora Rio-Grandense e Tchener & Cia, que existiram do final do século XIX até meados da década de 1920.
Gabriela Fernandes de Siqueira é a autora do terceiro artigo livre veiculado neste número e intitulado “A questão da salubridade em Natal nas primeiras décadas do século XX na ótica dos periódicos A República e Diário do Natal”. Para elaborar seu texto, a autora utilizou, além dos periódicos citados, outras fontes tais como mensagens de governadores, leis e decretos municipais e estaduais. O artigo enfoca as contradições do processo de modernização e aplicação de medidas de higiene na capital do Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do século XX. No quarto artigo da série, nos deparamos com a história de um trabalhador tentando fazer valer seus direitos mediante uma ação na Justiça do Trabalho em 1965. Trata-se dos resultados da pesquisa realizada por Márcio Ananias Ferreira Vilela e Marcelo Goés Tavares no acervo de processos trabalhistas conservados na Universidade Federal de Pernambuco. O artigo se intitula “A peleja de João Amaro: um trabalhador rural na luta por direitos (Pernambuco, anos 1960)”. O quinto artigo livre foi escrito por Lourival dos Santos, se intitula “Por uma história do negro no sul do Mato Grosso: história oral de quilombolas de Mato Grosso do Sul e a (re)invenção da tradição africana no cerrado brasileiro”. O texto aborda uma das mais candentes questões da atualidade no Brasil. O autor analisa a oposição surgida entre o Instituto Histórico do Mato Grosso do Sul e a Fundação Palmares sobre a identificação de comunidade quilombolas naquele estado, na primeira década do atual século.
Fechando o presente número, Clio veicula uma resenha, escrita por Wallas Jefferson de Lima e enfoca o livro As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual, escrito por Faramerz Dabhoiwala e publicado no Brasil pela Editora Globo, em 2013, com a tradução de Rafael Mantovani.
A Equipe Editorial da Revista Clio agradece a todos os autores, pareceristas, revisores e colaboradores que contribuíram para a preparação deste número e deseja uma boa leitura.
George F. Cabral de Souza
Antônio Paulo Rezende
Augusto Neves
Rômulo Nascimento
George Cabral – Editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: georgecabral@yahoo.com
Antônio Paulo Rezende – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: cielo77@uol.com.br
Augusto Neves – Organizador do Dossiê. Professor da Faculdade Uninabuco. E-mail: augustonev@gmail.com
Rômulo Nascimento – Vice- editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: romuloxavier7@hotmail.com
CABRAL, George; REZENDE, Antônio Paulo; NEVES, Augusto; NASCIMENTO, Rômulo. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.2, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]
Sob Três Bandeiras: Anarquismo e imaginação anticolonial | Benedict Anderson
Como muito bem indicado por Mônica Dias Martins, no prefácio da edição brasileira do livro Sob Três Bandeiras de Benedict Anderson, ele “representa certa mudança no paradigma de como se estudam os nacionalismos” (p.15). Isso parece correto na medida em que é possível observar que ele desenvolveu uma análise que perpassa um conjunto de dados muito bem apresentados e analisados. Anderson se distancia, por exemplo, da clássica escrita de Hobsbawm, sobre os nacionalismos, já que não se ancora em dados não referenciados ou pouco referenciados em fontes, mas que desenvolve uma análise ampla que atravessa espaços continentais e não se restringe à preponderância dos problemas europeus. Seu trabalho não é original em relação à temática porque, anteriormente, já havia escrito Comunidades imaginadas, seu texto de referência sobre o nacionalismo, assim como Nação e consciência nacional, todavia é original ao vincular o anarquismo e a imaginação anticolonial ao que ele chamou de “Era da globalização primitiva”.
Cuba, China, Japão, Espanha, Estados Unidos, Filipinas, França, são alguns dos países que integram essa tensa “Era”. Anderson demonstrou, principalmente a partir de dois autores, Isabelo de los Reyes e José Rizal, como se configurou o levante em prol da independência das Filipinas em relação à Espanha e como as ideias transitaram pelo mundo no sentido de encontrar formas de estruturação da sociedade, distintas das que, até então, estavam vigentes, sob rédeas do capitalismo ocidental. Daí o sentido do subtítulo Anarquismo e imaginação anticolonial. Leia Mais
De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850 | Mathias R¨hring Assunção
A publicação do livro De caboclos a Bem-te-vis em 2015 deve ser saudada, antes de tudo, por trazer ao público, 25 anos depois, o texto completo, atualizado e traduzido de um dos estudos mais utilizados pela historiografia maranhense dedicada às pesquisas situadas no século 19, embora o alcance e a atualidade do texto não se restrinjam ao Maranhão nem ao Oitocentos.
Até então, a tese defendida em 1990 na Freie Universität Berlin e publicada, em 1993, com o título Pflanzer, Sklaven und Kleinbauern in der brasilianischen Provinz Maranhão, 1800-1850 (Fazendeiros, escravos e camponeses na província brasileira do Maranhão, 1800-1850), circulara em versões não publicadas, ou de modo fragmentado, em relevantes artigos acadêmicos e capítulos de coletâneas1.
Evidentemente, a publicação é impregnada pelas marcas do tempo em que o texto original foi produzido e, por isso, traz vigorosos debates acadêmicos comuns na década de 1990: a existência e a conformação de um campesinato no Brasil; um sistema escravista e suas variáveis; o plantation e o convívio com outras formas de produção. Tempo esse que convive com questões sempre contemporâneas, especialmente no estado do Maranhão, marcado por um processo contínuo de concentração fundiária, desapropriação de terras comunais e luta pela legalização/manutenção de territórios quilombolas.
Dentre os méritos que emergem do texto, talvez o mais significativo e (ainda) original esteja na proposta de explorar formas não escravistas de trabalho em uma das mais escravistas províncias do Império do Brasil. Tal opção não significou o desprezo pela análise da sociedade escravista; ao colocar em xeque a ideia de monocultura escravista algodoeira, propôs o debate sobre a diversidade dos meios de produção que conviveram/conflitaram com aquela estrutura, oferecendo ao leitor o resultado de uma pesquisa de fôlego sobre a sociedade maranhense.
Nas palavras do autor:
A tese central defendida ao longo das páginas que seguem é que a economia escravista de plantation – apesar de sua implantação tardia – caracterizou-se no Maranhão pelo desenvolvimento de uma economia camponesa relativamente importante, diferenciada e autônoma, sobretudo quando comparada a outras regiões brasileiras onde também predominou a grande lavoura escravista. Apesar de um segmento da economia camponesa assumir uma função complementar à economia de plantation, o antagonismo estrutural entre os dois setores está na base do conflito entre os fazendeiros escravistas e os camponeses, chamados e autodenominados caboclos desde aquela época. Este antagonismo foi a pré-condição para a eclosão da Balaiada (p.21, grifos meus).
A transcrição é longa, mas indispensável por evidenciar o principal pressuposto metodológico que orienta o argumento de Assunção: a perspectiva de uma história comparada à procura das diferenças que caracterizariam a sociedade maranhense, tornando-a capaz de produzir as condições para a emergência do movimento que ficou conhecido como Balaiada.
Confessadamente, o autor propusera-se analisar originalmente uma história da resistência popular maranhense que na Balaiada encontrara o seu ápice2. Ao longo da pesquisa, deslocara o foco para uma “análise das estruturas que levaram ao conflito” (p. 12).
Tais estruturas são apresentadas com base em quadros fartamente subsidiados pela rica documentação que orienta a pesquisa, dá solidez ao texto e serve como referência para a elaboração de dezenas de mapas, gráficos e tabelas, oferecidos pelo autor aos seus leitores (p.411-472). Paisagem; população; luta pela terra; economia e sociedade; estruturas de poder e processo político sucedem-se e imbricam-se, conduzindo o leitor à Balaiada, reservada ao último item do último capítulo (p. 352-366).
Ao longo desse percurso, o autor constrói um quadro com o que definiu como excepcionalidades da ocupação do território maranhense. Esse quadro seria composto por uma série de elementos, a saber: a) às vésperas da Independência, a população ainda se concentrava no núcleo inicial da colonização, com incipiente inserção no centro sul da capitania (p.60); b) a população indígena, arredia ao domínio português, era superior à população colonial (p.60); c) forte predominância de escravos da Guiné na região de plantation (p.72)3; d) menor predomínio da escravidão masculina (p.92-93); e) extensos territórios, nas imediações das zonas de plantation, escapavam ao controle das autoridades (p.106); f) a média de escravos por propriedade era inferior às existentes no engenho açucareiro (p.180); g) presença pouco significativa de uma classe média baixa, branca e escravista, capaz de cooperar com a estabilidade do sistema (p.234); h) parte da população livre, inclusive fazendeiros de médio porte, era hostil ao governo (p.311).
Pari passu, Assunção constrói outro quadro, centrado na região do Maranhão Oriental, especialmente o Vale do Parnaíba, palco principal da Balaiada. Para a região o pesquisador identificou elementos como a presença significativa de migrantes nordestinos (p.134); o número elevado de propriedades em que o dono não residia na freguesia (p.135); a importância dos proprietários médios e de uma “classe média rural” (p. 137-138); o mercado de terras ainda incipiente e predominância de formas não privadas de uso da terra (p.139-141).
Haveria assim, na região, uma concentração de camponeses e de fazendeiros voltados para o mercado interno, cujos interesses se chocariam com aqueles defendidos por negociantes e proprietários envolvidos na economia algodoeira. Razões políticas, historicizadas pelo autor a partir da Independência, teriam criado condições objetivas para a eclosão do conflito. Segundo Assunção, elas se acumulam no tempo. Desde de a Independência era recorrentes as queixas de políticos da região do Parnaíba pela não participação no governo da província – manifestações favoráveis à divisão da província foram relativamente comuns até o final da década de 1830 (p.317). Na década de 1830 se intensificou a histórica denúncia da exploração fiscal provincial por parte do governo central (p.279), a montagem da Guarda Nacional desencadeou resistência ao seu alistamento e, por fim, o sistema de prefeituras, introduzido no Maranhão em 1838, concentrou em São Luís a distribuição dos cargos mais lucrativos no interior da província (p.294). Como se vê, as reformas implementadas pela Regência teriam provocado ou agravado o desequilíbrio de poder entre as elites locais, regionais e nacionais (p. 302).
Contudo, se a motivação inicial da pesquisa foi a Balaiada, ou a análise das estruturas que levaram ao conflito, os resultados ultrapassaram extraordinariamente esses intentos. De Caboclos a Bem-te-Vis é leitura obrigatória para os pesquisadores dedicados às primeiras décadas do século 19. Mais ainda, é leitura obrigatória também aos interessados em compreender as estruturas econômicas, políticas e sociais do estado do Maranhão, outrora grande exportador de produtos primários, e que ontem como hoje preserva o gene da desigualdade social, da violência contra as populações mais pobres e do clientelismo político.
Notas
1. Como exemplos, cito: Quilombos maranhenses. In: João José Reis; Flávio dos Santos Gomes. (Orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, v. 1, p. 433-466; Exportação, mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão, 1800-1850. Estudos Sociedade e Agricultura (UFRJ), 2000, v. 14, p. 32-71; e Miguel Bruce e os horrores da anarquia no Maranhão, 1822-27. In: István Jancsó. (Org.). Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, v. 1, p. 345-378.
2. O próprio título do livro em português revela esse intuito. De um modo geral, as populações camponesas do Maranhão eram reconhecidas como “caboclos”; já os “bem-te-vis” eram os membros do partido liberal no Maranhão, origem de algumas reivindicações incorporadas pelos revoltosos, que passaram a ser reconhecidos, também, como “bem-te-vis”. De Caboclos a Bem-te-Vis transparece o percurso dessas populações até o momento de eclosão do conflito. Em 1988, antes, portanto, da defesa da tese, o autor publicou o livro A guerra dos bem-te-vis. A Balaiada na memória oral, reeditado em 2008 (São Luís: Edufma, Coleção Humanidades, v. 6).
3. Para essa excepcionalidade, o autor apenas observa que suas implicações foram pouco estudadas até aquele momento.
Marcelo Cheche Galves – Universidade Estadual do Maranhão, Maranhão – MA, Brasil. E-mail: marcelochecheppg@gmail.com
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão nas primeiras décadas do Oitocentos: condições para a eclosão da Balaiada. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 356-359, jan./abr., 2017.
Slave Emancipation and Transformations in Brazilian political citizenship | Celso Thomas Castilho
O livro de Celso Castilho apresenta uma abordagem pouco convencional e inovadora da abolição brasileira. Centrada na província de Pernambuco, com particular ênfase no Recife, uma das cidades onde o abolicionismo mais floresceu, a análise percorre do final da década de 1860 até os anos subsequentes à abolição, fornecendo um quadro de reflexões históricas e historiográficas de grande importância para todo o Brasil.
Castilho analisa a abolição à luz das disputas políticas geradas no seio do movimento da emancipação escrava e de sua inter-relação com práticas de cidadania efetivadas no devir histórico. Assim, o estudioso concebe a crise da escravidão como um ponto de entrada para a compreensão do problema da cidadania política brasileira, algo que extravasa a marcação temporal do século 19. Para atingir esse objetivo, o historiador escrutinou dois jornais de grande circulação no Recife, ações de liberdade, peças teatrais, correspondências privadas e coleções inéditas de documentos remanescentes de associações abolicionistas.
Munido dessas fontes, Castilho mapeia a “fermentação política” entre o final da década de 1860 e a aprovação da Lei do Ventre Livre, marcada pela intensa participação popular em manifestações a favor da abolição, que se expressaram na criação de associações, na celebração de cerimônias de manumissão, na ocupação do espaço público e em encenações de peças teatrais. Segundo Celso Castilho, nada disso tolhia a autoridade dominial e, por esta razão, essas ações foram toleradas pelos proprietários de escravos. A tolerância, todavia, mudou com a aprovação da Lei de 1871, que concedeu aos escravos novas prerrogativas legais para a obtenção de liberdade. Desse momento até a abolição, em 1888, senhores e abolicionistas mantiveram-se em severa oposição e tentaram determinar os termos do fim do cativeiro, algo que ecoou no período pós-emancipação.
Dois grupos antagônicos em oposição por conta do encaminhamento da questão servil? Até aqui, nada de novo. A inovação do trabalho de Castilho consiste no espaço dado ao embate entre os abolicionistas pernambucanos e os senhores de escravos daquela região, que, contrariamente ao que já se pensou, resistiram, como muito bem mostra o autor, até os últimos momentos na defesa da manutenção da ordem escravista. No desenvolvimento do livro, salta aos olhos do leitor a dinâmica de lutas políticas em torno da emancipação, ocorrida no Recife, que colocou em embate grupos sociais pró-emancipação e pró-escravidão. Uma das consequências desse tipo de análise para a compreensão histórica é o reconhecimento de que o fim da escravidão brasileira não foi um processo pacífico, mas sim fortemente marcado por um duríssimo conflito ideológico e social. De fato, essa noção atravessa todo o livro e faz com que seu autor lance luz não apenas sobre a mobilização dos abolicionistas, mas igualmente sobre a ação dos proprietários de escravos, algo ainda pouco desvelado pela historiografia brasileira.
É na relação conflituosa entre defesa e condenação do escravismo que Castilho consegue retirar elementos capazes de demonstrar que, nos últimos vinte anos do Império, houve transformações de fundo na cidadania política brasileira. As estratégias de manifestação dos abolicionistas, ao tomarem as ruas ou levarem o problema da escravidão para palcos de teatro, atraíam os diversos estratos da sociedade (inclusive libertos e mulheres), e não apenas uma restrita parcela dela. Desse modo torna-se possível constatar que o movimento abolicionista teve um forte caráter popular e, ao permitir o engajamento político do povo, mudou o exercício da cidadania política no Brasil. Desde jovens estudantes (alguns inclusive começaram sua carreira política na defesa da abolição) até antigos escravos, todos passaram a ter uma chance de participar nos rumos políticos e sociais do país. Tal prática política extrapolava muito as condições necessárias para o exercício do voto e as limitadas perspectivas de ascensão social e aquisição de direitos civis garantidas aos africanos libertos e aos seus filhos pela Constituição de 1824.
A agência escrava ocupa igualmente um lugar de relevo no livro. Ao perquirir os arquivos remanescentes do Clube Abolicionista e da Nova Emancipadora, associações abolicionistas do Recife, o historiador constatou que os escravos tiveram intensa participação no processo de emancipação. Por meio do pecúlio, oficializado desde 1871, os cativos contribuíam sobremaneira com o valor corresponde à compra de sua liberdade. Com efeito, os escravos tipicamente manumitidos pela primeira associação, as mulheres, chegavam a custear quase 70% do valor de suas alforrias. Além disso, os escravos, também na sua maioria as mulheres, peticionavam ao governo pela sua liberdade ou pediam empréstimos para comprá-la.
A açucarocracia escravista também se organizou, mas sem a participação dos setores populares da sociedade. De modo a defender seus interesses, em 1872, criou a Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco, “a primeira vez que os fazendeiros se mobilizaram politicamente como ‘fazendeiros’”. Contudo, vale mencionar que, possivelmente, essa não foi a primeira mobilização dos fazendeiros pernambucos enquanto grupo político. Em 1871, seguindo de perto seus pares do Vale do Paraíba, que enviaram representações ao parlamento imperial contra o ventre livre, os senhores de Pernambuco também endereçaram ao legislativo, pela via peticionária, sua oposição à emancipação escrava. Os proprietários pernambucanos chegaram a organizar dois Congressos Agrícolas, em 1878 e 1884, para discutirem os rumos econômicos da região. No primeiro, inclusive, a grande preocupação foi em como utilizar o trabalho dos ingênuos.
Ligando a análise regional à macropolítica imperial, Celso Castilho ainda demonstra como a abolição da província do Ceará, em 1884, impactou tanto o movimento abolicionista quanto os senhores de Pernambuco. No primeiro caso, houve um adensamento da participação popular e, no segundo, uma maior organização e um repensar da ação dos proprietários de escravos. De fato, foi nesse contexto que surgiu a primeira associação exclusivamente feminina, a Ave Libertas, e que as fileiras do partido republicano engrossaram. Mas não apenas: o auxílio a fugas de escravos para o Ceará, que já tinha áreas libertas desde 1883, tornou-se uma realidade premente. Tudo isso teve grande repercussão nas eleições, também em 1884, dos deputados ao Parlamento. Realmente, os candidatos manejaram do inicio ao fim da campanha os temas emancipacionistas.
Na esteira dos acontecimentos na província vizinha, os proprietários de escravos passaram a se organizar em clubes agrícolas e estruturam o segundo Congresso Agrícola do Recife. Nele, a grande preocupação dos senhores foi evitar que o radicalismo cearense se enraizasse em Pernambuco. Assim, eles se dedicaram a diminuir publicamente a importância do movimento cearense de tal forma a subvalorizar a participação popular. Na lógica dos senhores de engenho de Pernambuco, o abolicionismo havia se tornado um delírio.
Num salto qualitativo de análise, que nos permite a compreensão geral do livro, Celso Castilho demonstra que a abolição, cada vez mais intensa e com maior participação popular no decorrer da década de 1880, também animou as preocupações políticas dos fazendeiros quanto à manutenção da ordem social. Em Pernambuco isso se deu, sobretudo, por conta da ação do Clube Cupim, que até 1888 auxiliou na fuga de escravos em direção ao Ceará . A aceleração da abolição, que ocorria na frente de seus olhos, implicava a erosão da secular influência política dos senhores de engenho pernambucanos. Reavaliando as suas estratégias, os fazendeiros da região passaram a anunciar, no final de 1887, manumissões condicionais aos seus escravos, isto é, os cativos teriam a liberdade garantida mediante a prestação de serviços aos senhores durante certo intervalo de tempo.
A tentativa, por parte açucarocracia, de manutenção da ordem era apenas um prelúdio da ação que eles tomariam no pós-emancipação. A antiga elite escravista, junto aos setores republicanos, ao encetarem o golpe que culminou com a proclamação da República, construiu uma narrativa própria da abolição em que evocaram o caráter parlamentar do fim da escravidão e evitaram a memória do engajamento político popular. Não permitir que uma ampla participação do povo, agora adensado pelos escravos libertos em 1888, interferisse novamente nos destinos do país passou a ser o mote desse grupo. Assim, a construção da memória da abolição teve um intenso caráter ideológico e pautou a reformulação da estrutura política brasileira no advento da República. Nas palavras de um contemporâneo, dirigidas na última eleição do Império a um adversário que se opunha à participação popular na política: “Ele sempre tolerou a escravidão e agora ele quer uma ditadura sobre o branco proletário e sobre o descendente do escravizado, porque isso de governo não é para todos, mas só para quem é fidalgo, rico, e ainda hoje tem saudades dos bons e bucólicos tempos das senzalas e dos eitos para os quais quer fazer a pátria voltar” (p.189).
Por fim, vale salientar a falta de um exame mais detido acerca da economia e da demografia açucareira da província pernambucana na segunda metade dos oitocentos. Castilho não menciona que, a despeito da concorrência cubana, as exportações pernambucanas de açúcar mais do que dobraram entre 1860 e 1880. Assim, apesar de não representar o primeiro produto da pauta exportadora do Império, a importância da produção açucareira e, portanto, de seus produtores não era desprezível naquele momento. No que diz respeito à mão de obra empregada na produção de açúcar em Pernambuco, que mesclava livres e escravos, o historiador, a despeito de citar alguns dados demográficos, não fornece ao leitor qual a proporção do braço escravo em relação ao livre. Algumas estimativas sugerem que, em 1872, havia cinco trabalhadores livres para cada escravizado nas plantations açucareiras da região. Dado o avanço abolicionista na década de 1880, essa proporção favorável aos livres certamente aumentou. Já se argumentou, inclusive, que, em virtude do avanço do trabalho livre, a abolição praticamente não afetou a produção daquela província. Esses dados, sugerindo que a Pernambuco do final do século XIX tinha uma pujante economia com o concurso cada vez menor do trabalho escravo, reforçariam a conclusão de Castilho de que a elite agrária da região, mais do que lutar contra o fim da escravidão, tinha um projeto de manutenção da ordem que o movimento abolicionista colocava em perigo.
Bruno da Fonseca Miranda – Departamento de História da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: bruno.fonseca.miranda@gmail.com
CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian political citizenship. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2016. Resenha de: MIRANDA, Bruno da Fonseca. Novas perspectivas para o estudo da abolição brasileira: cidadania e ação senhorial. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 360-365, jan./abr., 2017.
A Morte da Tradição. A Ordem do Carmo e os Escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889) | Sandra Rita Molina
Ao longo das últimas três décadas, historiadores trataram o tema da escravidão com perspectivas que rediscutiram a atuação dos cativos dentro do regime escravista brasileiro, lançando luz sobre os diversos episódios em que a agência escrava se revelou crucial para entender o cotidiano, as formas de resistência e as vitórias (ou derrotas) desses personagens nos processos históricos do período colonial ou do Império do Brasil. Além do próprio ineditismo de tal abordagem, essa nova visão historiográfica desconstruiu a visão de que os escravos eram personagens sem vontade e totalmente submissos às vontades senhoriais.
Dentro dessa abordagem, autores como Maria Helena Machado, Sidney Chalhoub, Silvia Hunold Lara, Robert Slenes, Jaime Rodrigues, Beatriz Mamigonian, Keila Grinberg e Ricardo Salles, entre outros, descrevem como personagens subalternos atuavam em suas realidades, demonstrando um grande conhecimento de sua condição, abrindo a possibilidade de confrontá-la e, em muitos casos, reconstruí-la conforme suas vontades. Estamos falando de marinheiros, cativos urbanos, escravos de ganho, forros e famílias que ao longo de suas vidas construíram sua própria história. É dentro desse grupo de autores que Sandra Rita Molina se insere com uma obra baseada em extensa pesquisa.
Ao contrário dos outros autores citados, Sandra Rita Molina nos apresenta um mundo diferente e, até aqui, pouquíssimo analisado pela historiografia brasileira, que é a realidade dos escravos das ordens regulares, mais especificamente, dos escravos pertencentes aos Carmelitas Calçados. Esse novo mundo é explorado através das “relações desenvolvidas entre os frades e seus escravos em meio a um contexto de repressão legislativa empreendida pelo Estado Imperial” (p. 22). Dessa forma, a autora apresenta ao longo de seu trabalho uma tentativa de aproximação dos debates historiográficos sobre o abolicionismo e o debate em torno das relações entre Estado e Igreja, examinando qual é o lugar do clero regular dentro da esfera política e quais foram as alianças realizadas nesse processo.
Como não poderia deixar de ser, além do forte diálogo com a historiografia em torno da condição escrava e do abolicionismo, Molina apresenta grande contribuição para o debate em torno da questão da Igreja no Brasil ao contradizer a visão de que a Igreja era um espaço homogêneo e sem rupturas, uma instituição pura e injustiçada pelos desmandos do poder temporal. Molina também apresenta uma leitura alternativa às interpretações historiográficas do CEHILA (Centro de Estudos da História da Igreja na América Latina) e até mesmo com de pesquisas acadêmicas recentes. Ao contrário da maioria dos estudos disponíveis, a autora reconstitui o mundo das ordens regulares focando não apenas na perseguição da igreja pelo Estado e a consequente submissão eclesiástica aos decretos imperiais, mas sim nas relações, barganhas e atitudes cotidianas dos frades da Ordem com as diversas instâncias do Império, da própria Igreja e com a comunidade leiga.
Molina apresenta seu argumento em quatro capítulos bem estruturados e que impressionam pelo minucioso trabalho de pesquisa. O primeiro capítulo (“O mundo entre os muros do convento”) nos apresenta um importante panorama da vida dentro do claustro e da vivência com a sociedade que orbitava em torno desses prédios. O panorama permite que o leitor apreenda as estratégias religiosas para construir resistência às pressões externas, manter privilégios e governar a ordem como um todo. A relação das ordens regulares com o Estado Imperial sobressai no capítulo. Molina faz todo um percurso expositivo para que o leitor entenda a situação dessas ordens no século 19, apontando as diversas medidas que a Coroa tomou para a supressão das instituições religiosas, com um interesse especial para as que detinham grandes patrimônios, como o caso dos próprios Carmelitas Calçados e dos Beneditinos. Apesar da perseguição, são notórias as estratégias das ordens para fugir à investida, utilizando algumas vezes a própria estrutura e o discurso do Estado Imperial a seu favor (p. 88).
O capítulo 2 (“Uma Gomorra na Corte. Como o Estado imperial deveria agir com o clero regular?”) apresenta o outro lado da história, a perspectiva do Império no processo de supressão das ordens. Ao longo desse capítulo, o leitor se depara constantemente com as diversas revisões da legislação e das decisões políticas do Estado para conseguir seu objetivo máximo, que é a tomada do patrimônio das ordens regulares. As estratégias são as mais variadas. Incluem denúncias de desmoralização do clero, visto que para o Governo Imperial “a decadência e a ineficiência testemunharam que as Ordens traíram um pacto tradicional entre o Estado e estas Corporações, que previa atuação de benevolência e educação religiosa da população” (p. 120); e até medidas de controle dos bens dessas instituições, através de listagens, censos e regras para a celebração de contratos sobre esses bens. O capítulo também permite que o leitor tenha visão ampla sobre os bens eclesiásticos. Além dos imóveis conventuais e dos imóveis dentro dos centros urbanos, os maiores bens carmelitas eram as fazendas e os escravos sob sua tutela. Para protegê-los, garantindo que o Império não os incorporassem, os religiosos empregavam estratagemas como a realização de contratos de arrendamento das propriedades rurais e dos respectivos escravos.
O capítulo 3 (“Honestas estratégias: o Carmo reorganizando seu patrimônio em função da sua sobrevivência”) nos faz mergulhar ainda mais nas ações dos religiosos para conseguir a manutenção dos bens da ordem, seus privilégios e, consequentemente, a sobrevivência de um modo de viver. Nesse capítulo, aparece um elemento crucial na resistência dos religiosos às investidas do Estado imperial: a comunidade leiga. Desde o período colonial, as ordens religiosas gozaram de grande prestígio frente à comunidade leiga, não sendo incomum o fato de Câmaras Municipais solicitarem a instalação de conventos de franciscanos, carmelitas ou beneditinos em suas respectivas cidades. O cenário não muda ao longo do 19. Mesmo perante todos os problemas relacionados às medidas restritivas do Império e, em alguns setores, as constantes críticas à moralidade do clero regular, a cumplicidade entre leigos e clérigos é ferramenta poderosa para os frades. As relações, porém, eram de via dupla. No jogo de apoio recíproco, proprietários leigos acabavam recebendo o benefício de celebrar contratos com as ordens e usufruir das propriedades ou dos cativos da Santa.
O capítulo 4 (“Frades feitores e os escravos da Santa”) centra a sua discussão na relação dos frades com os cativos. Os momentos de convivência pacífica entre uns e outros eram frutos de várias concessões aos cativos por meio de práticas cotidianas que chegavam a ignorar os ordenamentos do Capítulo Provincial (p. 265). Um exemplo notável do espaço de autonomia concedido aos escravos é o caso de fazendas como a de Capão Alto em Castro no Paraná. Referências apontam que “essa fazenda ficou mais de setenta anos sob a administração direta e livre dos escravos” (p. 272/273). Obviamente, a autonomia se dava após “longos períodos de construção de cumplicidade em um mesmo espaço” (p. 266).
A autonomia dos cativos podia ser afetada com arrendamentos, cada vez mais comuns, devido a contexto de repressão à Ordem somada à carência de braços na lavoura depois do fim do tráfico negreiro transatlântico. Nesse contexto, a autora traz outra importante contribuição para a historiografia acerca da escravidão, especificamente ao pensarmos nas estratégias empreendidas pelos cativos para conseguirem fazer valer seus interesses. Alguns autores, como Lucilene Reginaldo e Antônia Aparecida Quintão, que tratam sobre a religiosidade negra e abordam em suas obras a questão da relação com os santos patronos das irmandades religiosas, apontam que eram comuns os irmãos dessas associações criarem uma aproximação ao nível de parentesco com o patrono. No caso dos escravos da Santa, essa lógica reaparece, mas transformada devido aos interesses dos cativos. Dentro de suas experiências, “incorporaram a ideia de que os frades eram apenas uma espécie de feitores e de qualquer decisão afetando seu cotidiano, deveria partir diretamente de sua senhora, que, no caso, era uma Santa” (p. 277), conseguindo dessa forma um forte argumento frente à opinião pública para conseguir seus objetivos. Do outro lado desse jogo, os frades detinham interesse em manter uma relação amistosa com seus cativos, pois essa era uma forma consistente de fruir seus privilégios tanto dentro como fora dos conventos. “Este processo colocou em muitos momentos escravos e senhores do mesmo lado, procurando impedir o fim do mundo que conheciam”, observa Molina nas considerações finais de seu trabalho.
A morte da tradição traz elementos complexos que contribuem para as diversas correntes da historiografia brasileira sobre a escravidão e igreja no Império do Brasil. O livro não apenas se soma à narrativa da história social que entende os escravos como personagens cujas lutas são peça-chave no quebra-cabeça que é o escravismo no Brasil. Explorando tópicos como autonomia escrava, estratégias clericais para manutenção de privilégios e ramificações das relações sociais de ambos os grupos, A morte da tradição ilumina o mundo clerical de uma maneira que as macro-análises da relação Estado-Igreja não conseguem capturar.
Rafael José Barbi – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Guarulhos – SP, Brasil. E-mail: rafael_barbi@hotmail.com
MOLINA, Sandra Rita. A Morte da Tradição. A Ordem do Carmo e os Escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889). Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2016. Resenha de: BARBI, Rafael José. Catolicismo, escravidão e a resistência ao Império: Um outro olhar. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 366-370, jan./abr., 2017.
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No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres | Jaime Rodrigues
Esta resenha começa com uma advertência, figura literária comum (como os modernistas tão bem sabem) em obras de autores pós-tridentinos, que a incluíam essencialmente para se exonerarem de responsabilidades, ao sustentarem a sua boa ortodoxia e ao afastarem de si e da sua obra todas as suspeitas de heresias religiosas ou políticas que pudessem fazer tremer trono e altar.
A minha humilde advertência não se rege pelas necessidades políticas ou religiosas, mas pela honestidade intelectual. A resenha que se segue é de autor cujo trabalho se centra no estudo da história religiosa nas vertentes institucional, cultural e das mentalidades, pelo que se afasta do perfil conhecido do nosso caríssimo Jaime Rodrigues.
Aproxima-nos a dedicação ao Atlântico enquanto espaço histórico de análise, e o interesse dedicado aos povos africanos (afinal tivemos por denominador comum a pertença ao Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto) e ao seu papel neste mundo definido pela língua portuguesa. A minha leitura é pois de alguém que, não sendo especialista nas áreas trabalhadas, está no entanto familiarizado com tema e com o autor e como tal atreve-se (humildemente) a resenhar. Perdoe o leitor (e o próprio autor) as limitações e as falhas de tal processo.
O primeiro contacto pessoal que tive com o autor de No Mar e em Terra – História e Cultura de trabalhadores escravos e livres foi no ano de 2013, quando de uma conferência que este proferiu na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Jaime Rodrigues teve então o ensejo de nos deliciar com a apresentação do seu projeto de pesquisa sobre a marinhagem escrava e liberta nos navios Atlânticos dos séculos 18 e 19.
Recordo não apenas o entusiasmo do palestrante sobre o tema que então o ocupava, mas também o daqueles que tivemos o privilégio de o ouvir dissertar, mesmo os que vindos de outras áreas de investigação (como eu próprio) e que rapidamente foram contagiados pelo interesse e novidade do que era apresentado. Jaime Rodrigues demonstrou a importância da pesquisa para um melhor conhecimento da marinhagem atlântica lusófona, em particular o papel quase ignorado dos escravos e libertos e das questões complexas que se lhes punham no tabuado dos navios portugueses que cruzavam o Mar Oceano.
Ao modernista que o ouvia foi difícil não ouvir o apelo de uma pesquisa que procurava recuperar o papel dos africanos neste universo tão particular e que foi elemento estrutural num Estado com características talassocráticas como o era o português da Época Moderna. Particularmente fez-me recordar, como ressonância longínqua, as linhas de Rui de Pina em que descreve a chegada de Diogo Cão ao reino do Congo e de como “…os negros da terra se fiavam delle, e seguramente entravam, já nos navios…” que os trariam a Portugal e à corte de D. João II. Dura ironia certamente.
Três anos passados sobre tal apresentação, e ao folhear o mais recente fruto do trabalho de Jaime Rodrigues (aquele que aqui se tenta resenhar), tive a felicidade de reencontrar (como capítulo terceiro do livro) o tema daquela apresentação de projeto, agora já convertido num produto final. O capítulo, antecedido por um sólido trabalho de enquadramento e de problematização, oferece ao atual leitor as mesmas premissas que nos tinham sido apresentadas em 2013 e a que se juntam agora os passos de pesquisa, os dados por ela coligidos e que sustentam a validade e a importância das conclusões.
O rigor científico e a erudição do trabalho do autor, não apenas neste como nos demais capítulos do livro, e que são naturalmente apanágio de um investigador e docente que conta com uma trajetória sólida e reconhecida, são o garante da qualidade do que nos é oferecido.
Como o prefácio de João José Reis e a própria apresentação do autor esclarecem, No Mar e em Terra é uma coletânea de diferentes artigos produzidos ao longo dos anos e dos quais resultam os sete capítulos da obra. Procurou o autor reunir num só volume trabalhos que andariam dispersos mas cuja afinidade de temas aconselhava a congregar, com toda a coerência, num único volume. Como já o prefaciador salienta, a atualização de bibliografias e a reflexão paralela que Jaime Rodrigues faz sobre a validade dos resultados do seu trabalho à luz da mais recente pesquisa histórica colocam-nos perante um livro que não apenas reúne como atualiza a pesquisa que o autor vem desenvolvendo ao longo do seu percurso profissional.
Com um arco temporal de abordagem que vai do século inicial da expansão marítima portuguesa até ao ainda muito próximo século 19, estes trabalhos encontram o seu fio condutor comum na geografia atlântica e no enfoque nas questões sociais geradas em torno das questões do trabalho (no mar ou em terra) e do papel e lugar dos escravos e libertos africanos neste mundo Atlântico lusófono.
Desde meados do passado século que as historiografias portuguesa e brasileira (e não só) têm dedicado um olhar cada vez mais interessado e aprofundado à importância econômica e social do mundo Atlântico português. O campo tem-se revelado vasto e fértil, as abordagens são múltiplas e vão-se renovando sistematicamente. Ultrapassadas as tradicionais abordagens de história essencialmente política, cujas vicissitudes do devir histórico faziam acentuar as diferenças, tornou-se possível aos acadêmicos compreender a importância dos elementos comuns.
Este é aliás o postulado do autor, bastante notório na introdução ao 2º capítulo, onde sustenta precisamente que uma análise histórica que tenha por foco o Atlântico não deve simplesmente fechar-se na experiência histórica dos homens do norte Atlântico (como fará a historiografia anglo-saxônica) mas perceber o que no conjunto dos territórios mediados por este oceano é elemento comum e pode ser analisado como tal.
Trabalho de um historiador representante de uma academia situada no sul Atlântico, como o Brasil geograficamente se situa e culturalmente se entende (pelo menos de um modo geral), a pesquisa de Jaime Rodrigues evita a tentação de centrar geográfica e humanamente a pesquisa na “sua” metade do Oceano.
Ainda que correndo o grave risco de cair em anacronia, seria interessante equacionar o entendimento que Jaime Rodrigues (bem como os historiadores que partilham do seu entendimento) tem do mundo Atlântico, como uma geografia histórica que é unida, e não separada, pelo oceano, com a visão que a civilização Romana tinha do mar Mediterrânico, o de um mar que mais não era que uma plataforma distribuidora que unia os limites do mundo latino que o rodeavam, e não a fronteira líquida em que se converteu a partir do século 7 e da expansão do mundo islâmico.
A amplitude da perspectiva na abordagem histórica, que também é perceptível na internacionalização do autor (já mencionei a sua participação num centro de investigação ligado à Universidade do Porto), é reforçada pelas fontes e pela bibliografia que utiliza na elaboração dos diversos trabalhos que formam este livro.
Será o caso da utilização que Jaime Rodrigues faz dos fundos dos arquivos históricos portugueses, onde trabalha com documentação que lhe permite contribuir para uma melhor percepção desse espaço Atlântico que é o cenário da sua pesquisa, e que se nos apresenta como um saudável desafio à própria academia portuguesa para que aprofunde os estudos sobre a questão laboral dos africanos nos contextos do mundo lusófono Atlântico.
É uma forma de acentuar o diálogo enriquecedor que o autor já mantém com os investigadores e os centros de investigação portugueses, onde as pesquisas focadas no universo marítimo estão em crescimento, nomeadamente – no que à Universidade do Porto e ao seu Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) respeita – com pesquisas em torno dos estudos dos portos e das comunidades marítimas, ou das redes comerciais dos primeiros séculos da modernidade, em que o comércio transatlântico tem um papel nada desprezível.
Também uma rápida leitura da listagem bibliográfica utilizada permite alargar esta compreensão do diálogo e inserção internacional do autor, ao colocar-nos perante bibliografia ampla e significativa para os temas abordados (aliás, como já mencionado, foi especialmente atualizada para esta edição), com uma notória e expressiva presença de bibliografia portuguesa e anglo-saxônica da mais recente produção.
Salienta-se o entendimento preciso que o autor tem sobre o universo que trabalha, bem como a diversidade e relevância das fontes e bibliografia que utiliza, para acentuar o fato de esta obra não ser de interesse circunscrito e localizado. Jaime Rodrigues organizou esta sua coletânea de textos numa gradação variável de perspectivas de âmbito geográfico e cronológico que nos permitem, sob a mesma linha de entendimento, ver diferentes graus de abordagem.
O autor aborda desde pesquisa que poderemos designar como de história local e regional (o estudo centrado na Fábrica de Ipanema, no capítulo sexto), ou com uma natureza temporal muito precisa (como o estudo sobre os escravos que tentaram obter a sua liberdade por recurso à Constituinte Brasileira de 1823, capítulo quarto), a estudos bastante mais dilatados no espaço e no tempo.
Com uma orgânica que segue inteiramente o plasmado no título, o livro pode-se dividir entre os capítulos que situam a sua análise no Mar Atlântico (os três primeiros capítulos) e os que a situam em Terra (capítulos quarto a sétimo).
O primeiro conjunto de artigos que supra se menciona apresenta três diferentes abordagens ao universo dos marinheiros Atlânticos e a questões culturais, materiais e laborais que se desenvolviam em alto-mar.
O primeiro capítulo introduz um interessante estudo no domínio da cultura marítima criada pelos marinheiros Atlânticos, que se apresentam como criadores, promotores e conservadores de patrimônio imaterial, num estudo dedicado aos ritos de passagem do equador, analisados entre os séculos 16 e 20, com testemunhos de autores oriundos das mais diversas nações que cruzam o mar Atlântico.
O capítulo sequente introduz-nos a uma das questões materiais mais relevantes na vida marítima, com consequências diretas na própria sobrevivência dos mareantes: Jaime Rodrigues oferece-nos um estudo sobre a relação entre alimentação e saúde a bordo dos navios que cruzavam o Atlântico, erguido sobre a análise cruzada das descrições de viajantes europeus e dados recolhidos em arquivos portugueses.
Salienta-se, num tema já tratado anteriormente pelo autor na sua tese doutoral e que agora retoma, a sua abordagem (no ponto III) à questão do conhecimento empírico gerado pela experiência de mar, uma verdadeira cultura prática marítima colocada ao serviço da preservação física dos homens do mar (nomeadamente no tratamento do escorbuto), e a importância desse conhecimento contra o qual se levantava a desconfiança dos oficiais médicos. Uma experiência aliás que transpunha para a alimentação a bordo todo o conhecimento novo que se obtinha de alimentos desconhecidos dos europeus pré-modernos e que as viagens de navegação Atlântica somaram à sua cultura material.
O terceiro capítulo, fruto da pesquisa que se menciona no início desta resenha, encerra o conjunto de trabalhos especificamente dedicados ao universo marítimo, cedendo passo aos trabalhos “terrestres”, conjunto de quatro trabalhos que têm por elo comum os trabalhadores escravos e libertos.
O capítulo quarto introduz-nos às tentativas de escravos de obterem a sua liberdade por recurso à primeira constituinte brasileira, cuja memória o autor recupera dos fundos do arquivo parlamentar. Demonstra materialmente como a retórica que acompanhou a emancipação política do Brasil teve eco entre a população escrava, que do recurso ao judicial e às novas autoridades políticas procurou obter a sua liberdade, anseio que soçobra ante o primado (próprio de um regime liberal) do direito à propriedade.
Se o quinto capítulo analisa e contextualiza criticamente a proposta teórica apresentada por um acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, logo nos primeiros anos desta instituição, em que defende a substituição da mão de obra escrava africana (que advoga incivilizável e até fonte de barbarização) por indígenas brasileiros “civilizados”; já o sexto capítulo vai no sentido oposto, passando dos debates teóricos sobre a natureza do trabalhador escravo africano à materialidade da situação do trabalhador africano livre em contexto industrial.
Com um artigo sobre os africanos que alcançavam a liberdade quando compreendidos na lei de 1831 que proibia o tráfico de escravos para o Brasil, Jaime Rodrigues analisa como a adoção de uma prática comum em estados com tradição histórica de escravatura, de colocar homens livres na condição de trabalhadores forçados, se desenvolve na fábrica de ferro de Ipanema, em São Paulo, análise que insere numa aprofundada contextualização e que termina urgindo por maiores pesquisas sobre o tema.
O último artigo desta coletânea avança numa direção diferente, e apresenta uma reflexão diacrônica sobre o modo como o preconceito contra África e os africanos assumiu um importante papel na construção de um discurso historicamente duradouro que atribui ao continente e aos seus filhos, muitas vezes transportados forçadamente e na pior das condições, a condição de fonte epidêmica, uma leitura que Jaime Rodrigues situa inicialmente no presente, para recuar nos séculos e demonstrar a sua constância.
Reunindo textos publicados entre 1995 e 2013, esta coletânea encontra um fio condutor que nos conduz à reflexão da importância comum do mundo Atlântico, e do papel que na sua construção tiveram os africanos, escravos e livres, e de como esse papel foi sendo acompanhado de incríveis demonstrações de preconceito e processos de subalternização; reflexão que o autor situa muito bem entre os trabalhos produzidos por esta área de pesquisa em constante expansão.
Ao mesmo tempo que nos apresenta os resultados do seu competentíssimo esforço, Jaime Rodrigues apresenta novas interrogações e apresenta linhas possíveis de pesquisa que apenas nos faz desejar que prossiga, sem mais demoras, o seu trabalho.
Nuno de Pinho Falcão – Universidade do Porto, Porto, Portugal. E-mail: nusfal@hotmail.com
RODRIGUES, JAIME. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: FALCÃO, Nuno de Pinho. O Mar que nos une: trabalho, escravos e libertos no Atlântico Moderno e Contemporâneo. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 371-376, jan./abr., 2017.
What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography | Arthur Alfaix Assis
What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, escrito pelo historiador Arthur Alfaix Assis, é fruto de seu trabalho de doutoramento na Universidade de Witten/Herdecke, na Alemanha. O autor por ele pesquisado, Johann Gustav Bernhard Droysen, um dos grandes nomes da historiografia alemã do século XIX, nasceu no dia 6 de julho de 1808, na pequena vila de Treptow, na Pomerânia, e faleceu em 1884, em Berlim. Criador da Escola Prussiana, estabeleceu referências metodológicas, teóricas e estruturais para a pesquisa em história. Em princípio, com algum respaldo na teoria hegeliana, posteriormente, diferenciando-se claramente desta, submetendo todo material das fontes a exames críticos e filológicos, no senso estrito dos termos. Dentre suas obras, destacam-se História de Alexandre, o Grande, publicada em 1833, que veio posteriormente a fazer parte do livro História do Helenismo, composto por dois volumes, tendo sido o primeiro deles publicado em 1836; História da Política Prussiana, composta por catorze volumes, publicados entre 1855 e 1886, e finalmente, Historik, livro em que apresenta os parâmetros e sistematização da pesquisa e do estudo históricos, e posteriormente, Grundriss der Historik, um resumo explicativo do trabalho anterior de imensa importância, no qual se expõem todos os níveis de procedimentos metodológicos da história enquanto disciplina e enquanto ciência, apresentando de maneira ordenada as diferentes formas de operação historiográfica, a saber: a heurística – Heuristik; a crítica das fontes – Kritik; a interpretação – Interpretation; e a exposição histórica – Topik ou Darstellung. Forma-se, assim, uma valiosa articulação entre metodologia e sistematização histórica, introduzindo no meio científico a ideia da função antropológica da história, excluindo definitivamente qualquer relação com aspectos teológicos. Leia Mais
HEARTFIELD, J. The British and Foreign Anti-Slavery Society (RH-USP)
HEARTFIELD, James. The British and Foreign Anti-Slavery Society, 1838- 1956. A history. Oxford: Oxford University Press, 2016. xii + 486p. Resenha de: RÉ, Henrique. Uma história da Britsh and foreign anti-slavery Society: A instituição que internacionalizou o antiescravismo britânico. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Em agosto de 1833, o Parlamento da Grã-Bretanha aprovou a lei que emancipou os escravos das colônias das Índias Ocidentais, do Canadá, da Colônia do Cabo e das Ilhas Maurício. (Essa lei não eliminou a escravidão do Império britânico, como alguns abolicionistas insistiram: ainda restavam os escravos das Índias Orientais, cujo número estimado superava todo o conjunto de escravos das regiões do Novo Mundo).1 A lei de 1833 entrou em vigor a partir de 1º de agosto de 1834; contudo, ela não tornou os ex-escravos imediatamente livres. Eles teriam que passar por um período de “aprendizado” para que se acostumassem à sua nova condição – na verdade, tratava-se da regulamentação do trabalho forçado, com o objetivo de prolongá-lo por mais alguns anos. O “aprendizado” demonstrou ser um equívoco: ele desagradou aos abolicionistas, às autoridades coloniais, aos fazendeiros e, obviamente, aos aprendizes que, em muitos casos, viram sua situação piorar ainda mais. Diante da comoção pública e dos vários casos de abusos cometidos pelos fazendeiros e pelas autoridades coloniais, o Parlamento britânico resolveu reduzir os anos de prestação de serviço dos aprendizes. Em algumas ilhas, as próprias assembleias locais se encarregaram de acabar com o aprendizado antes mesmo da decisão do Parlamento britânico chegar às colônias. Assim, em 1º de agosto de 1838, o sol se levantou sobre o Caribe trazendo uma liberdade um pouco mais pura para os negros britânicos, e todos os aprendizes foram considerados livres.2
Inegavelmente, a campanha antiescravista britânica, iniciada na década de 1780, alcançou um triunfo quase completo. Mas alguns grupos abolicionistas não ficaram satisfeitos com a indenização de vinte milhões de libras concedida pelo Estado britânico aos fazendeiros. Eles julgaram que a concessão da indenização somente seria legítima se a propriedade fosse legal, condição que não poderia ser aplicada à escravidão de seres humanos. Nas fileiras antiescravistas também havia indivíduos que não estavam contentes com a perspectiva de encerrar a campanha abolicionista. Eles desejavam levar a luta contra o tráfico e a escravidão para outras partes do mundo, numa cruzada mundial. Mas, nesse momento, as instituições antiescravistas britânicas existentes não estavam capacitadas para desempenhar esse novo papel.
A alternativa consistia, portanto, em criar uma nova entidade, que tivesse capilaridade por toda a Grã-Bretanha, mas que também contasse com auxílio e inserção internacional. Entretanto, em decorrência da existência de inúmeros grupos abolicionistas, cada um defendendo posições e métodos diferentes, mais uma vez o movimento antiescravista britânico se viu dividido quanto às medidas a serem adotadas e à forma de implantá-las.
No final dos anos 1830, surgiram então duas entidades com pretensões de liderar a cruzada antiescravista mundial. Todavia, conforme um dos fundadores declarou, elas não eram rivais: como tinham focos diferentes, elas se complementavam.3
Thomas Fowell Buxton, um dos líderes abolicionistas mais reconhecidos e ativos naquele momento, vinha elaborando desde meados dos anos 1830 um projeto de colonização da África. A ideia consistia em estabelecer fazendas no continente africano para que servissem de modelo de desenvolvimento e desencorajassem os habitantes de participar do tráfico de escravos. Segundo Buxton, era necessário atuar para conter o tráfico de escravos, pois somente assim a escravidão poderia ser efetivamente eliminada. A instituição criada por Buxton, a Society for the Extinction of the Slave Trade and for the Civilization of Africa, organizou uma expedição ao rio Níger com o objetivo de implantar as fazendas, mas os integrantes da expedição foram assolados provavelmente pela malária, e o projeto de Buxton tornou-se uma tragédia. A Sociedade teve uma vida efêmera e foi dissolvida em 1843.
Outro grupo de abolicionistas, liderado por Joseph Sturge, um quacre de Birmingham, também vinha se organizando desde meados da década de 1830 para criar uma nova entidade, capaz de encabeçar a internacionalização do movimento abolicionista. Depois de várias reuniões no início do ano, surge em abril de 1839 a British and Foreign Anti-Slavery Society (BFASS), que existe até hoje ainda que com outro nome e, assim, é considerada a mais longeva instituição defensora dos direitos humanos.
Diferentemente da instituição de Buxton, a BFASS focou sua luta preferencialmente no combate à escravidão. Seus integrantes entendiam que, diante dos lucros do tráfico de escravos, de nada adiantaria combatê-lo diretamente, pois os traficantes sempre encontrariam uma forma de burlar qualquer tipo de bloqueio que lhes fosse imposto. Nessa perspectiva, combater a escravidão seria mais promissor, pois, uma vez eliminada a demanda, a oferta também seria extinta. Outra diferença da BFASS em relação a algumas sociedades abolicionistas anteriores era sua ênfase no imediatismo. Ela não via com bons olhos as medidas gradualistas para acabar com a escravidão e considerava que as vias institucionais eram os canais adequados para o avanço da causa antiescravista.
Tal como a maioria das sociedades antiescravistas anteriores, a BFASS era comandada por quacres – o grupo religioso que seguramente esteve mais envolvido nas ações antiescravistas britânicas desde o final do século XVIII. Embora a BFASS fosse uma entidade de caráter civil, onde qualquer um poderia participar desde que contribuísse com uma pequena quantia, os quacres eram os principais responsáveis pela sua manutenção financeira, e, por isso, tinham o poder de definir sua orientação ideológica e suas diretrizes. Como os quacres eram defensores fervorosos do pacifismo, a BFASS jamais endossou qualquer atividade antiescravista que utilizasse as armas ou a força, nem apoiou qualquer proposta de intervenção antiescravista que pudesse gerar derramamento de sangue.
O livro de James Heartfield traça a história dessa instituição desde sua origem, em 1839, até sua última troca de nome em 1956. O recorte temporal da obra é bastante preciso. Por setenta anos, a BFASS atuou prioritariamente como uma entidade preocupada com o escravismo, mas tal preocupação foi assumindo outros contornos a partir do final do século XIX, especialmente em decorrência da colonização da África pelas potências europeias. Em 1909, a BFASS se fundiu com a Aborigines’ Protection Society e transformou-se em Anti-Slavery and Aborigines’ Protection Society. Depois das duas guerras mundiais, ainda que a questão escravista fosse um assunto de extrema relevância, o início da luta contra o colonialismo na África e as discussões acerca da igualdade de direitos entre negros e brancos levaram a Sociedade a procurar “seus apoiadores para uma possível troca de nome, ‘que express[ass]e mais corretamente a extensão de suas atividades’” (p. 421). Em 1956, ela assumiu sua designação atual: Anti-Slavery Society for the Protection of Human Rights. No início do século XX, ela já havia atuado em várias ocasiões na Liga das Nações; depois da criação da ONU, a Sociedade continuou atuando como uma espécie de órgão consultivo.
Embora outros trabalhos já tivessem tratado da história da BFASS, nenhum o fez com tamanha abrangência. Em geral, as obras anteriores eram compilações de seus “feitos” (por vezes, uma espécie de prestação de contas organizada pela própria entidade), ou obras historiográficas que abordavam a participação da BFASS no movimento antiescravista britânico ou em contextos específicos.4 Enfim, é a primeira vez que surge uma obra exclusivamente voltada para a história dessa instituição e abrangendo todo o período no qual ela se dedicou prioritariamente à causa do antiescravismo.
Obviamente, como o próprio subtítulo do livro esclarece, trata-se de “uma história” dentre as inúmeras possíveis, especialmente quando se leva em consideração que o recorte temporal abarca um período de aproximadamente cento e vinte anos, no qual a instituição se envolveu em diversos assuntos em várias regiões do mundo, e respondeu de formas variadas aos desafios que se apresentavam.
Heartfield adotou uma forma expositiva que privilegia os temas principais nos quais a BFASS esteve envolvida, trabalhando-os separadamente em cada um dos capítulos. A narrativa segue uma sequência em que, na primeira parte do livro, são abordados os temas referentes à escravidão nas Américas; na segunda, a escravidão na África; e, na terceira, o trabalho contratado nas colônias das Índias Ocidentais e da África, e o posicionamento da Sociedade no período entre-guerras. Ao mesmo tempo em que essa estratégia expositiva permitiu maior leveza no tratamento dos assuntos, também dificultou o aprofundamento em alguns deles, como foi o caso do envolvimento da BFASS na escravidão cubana e brasileira ou na diplomacia britânica que atuou contra o tráfico de escravos. Tornou-se praticamente impossível abordar de maneira mais circunstanciada a forma como a Sociedade lidou com essas situações no decorrer das décadas em que esteve envolvida nestes casos.
Outro mérito do livro foi acompanhar a transformação da atuação da BFASS, que atendia às mudanças que ocorriam nas formas de trabalho – da escravidão nas Américas e na África para o trabalho contratado dos chineses e indianos nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania, em áreas não necessariamente sob domínio britânico. A Sociedade combatia a utilização dessa forma de trabalho, mas apresentava como um dos motivos para recusá-lo a imoralidade dos trabalhadores: em muitos casos, alegava a BFASS, tratava-se de prostitutas, homossexuais e viciados de péssimo caráter (p. 341-2).
Contudo, a linha mestra que organiza toda a narrativa, ainda que em vários momentos não esteja claramente exposta, é uma sugerida interação entre a BFASS e o governo britânico. O autor evidencia essa perspectiva já a partir da primeira página da obra: “(…) a Sociedade ajudou a estabelecer os fundamentos de uma sociedade civil esclarecida; mas ao mesmo tempo esteve intimamente ligada ao Estado, baseou-se em relatórios oficiais, elaborou propostas de diretrizes e até engendrou a criação de um departamento antiescravista paralelo dentro do governo”. A atuação da BFASS também teria transformado concomitantemente o antiescravismo num mecanismo de projeção governamental britânica (p. 1).
Essa tensão perpassa toda a obra, e o autor teve méritos em demonstrar como a BFASS, ao apoiar a diplomacia contra o tráfico de escravos, ajudou indiretamente a estabelecer uma espécie de tutoria sobre os países que participavam dos tratados ou acordos bilaterais com a Grã-Bretanha para acabar com esse comércio e, consequentemente, difundir mais amplamente os interesses britânicos. Da mesma forma, a retórica antiescravista tornou-se um ingrediente do pacote ideológico que justificou a subjugação dos povos coloniais africanos a partir da década de 1870: paradoxalmente, a retórica abolicionista já continha as sementes do império (p. 75 e 229).
É certo que a BFASS se esforçou para impor certa diretriz abolicionista à política internacional britânica, mas é difícil conceber que ela dispunha de força suficiente para fazê-lo. Em 1841, sua pressão sobre o governo para que ministros, cônsules e agentes no exterior não negociassem escravos foi bem sucedida. Palmerston, então ministro do Foreign Office, enviou uma circular a todas as representações britânicas no exterior para que adotassem essa resolução, que havia sido elaborada pelo primeiro Congresso Antiescravista Mundial, organizado pela BFASS, em Londres, em meados de 1840.5 Não é difícil perceber, entretanto, que tal medida tinha pouca capacidade de influenciar os destinos da escravidão nos países escravistas. Tratava-se mais de uma questão de moralidade.
Portanto, o autor parece exagerar um pouco a interação entre a BFASS e o governo britânico. Se a Sociedade utilizava os relatórios consulares para elaborar seus estudos e matérias sobre o tráfico e a escravidão, ela também obtinha dados de outras fontes; por exemplo, de seus correspondentes no exterior, ou do caso extremo em que enviou uma missão secreta ao Brasil para coletar informações sobre a situação do tráfico e da escravidão.6 A utilização dos relatórios consulares não era exclusividade da BFASS, pois eles eram ansiosamente lidos em Madri, Havana e Rio de Janeiro, e o governo brasileiro chegou a utilizá-los como dados oficiais.7
Ainda que a BFASS também tivesse acesso às autoridades governamentais e tentasse influenciar politicamente as diretrizes antiescravistas do Estado britânico, isso em geral ocorria por meio de lobby parlamentar. A Sociedade procurava os parlamentares simpáticos à causa e os orientava sobre a maneira de proceder, de acordo com aquilo que julgava mais adequado para determinada questão. Nesses casos, provavelmente, o máximo que ela conseguiu foi a adesão de um ou outro parlamentar mais recalcitrante ou a flexibilização de algumas posturas mais conservadoras. Em muitas ocasiões, a BFASS viu seu pleito ser vencido nos gabinetes ou nas votações, como ocorreu, por exemplo, na anexação do Texas, no Tratado Webster-Ashburton, na questão da equalização dos impostos do açúcar e na repressão ao tráfico brasileiro no início da década de 1850. Como um historiador salientou, os abolicionistas muitas vezes tentaram confrontar a exploração escravista em qualquer país a partir de táticas de natureza moral, religiosa e pacífica, mas isso proporcionava uma base relativamente pequena para interferir nas diretrizes do Estado britânico. Além disso, desde a fundação da BFASS, alguns de seus principais membros ganharam a reputação de idealistas irresponsáveis.8
Seguramente, a difusão dos interesses comerciais, diplomáticos e políticos da Grã-Bretanha foi beneficiada pela retórica antiescravista tanto na metrópole quanto no exterior, dentro ou fora do Império britânico. Entretanto, são muito bem conhecidas pela historiografia as divergências entre o Comitê da BFASS e as autoridades políticas e militares britânicas. Em várias ocasiões, as decisões da Sociedade desagradaram os estadistas britânicos e, principalmente, os comandantes militares responsáveis pelo esquadrão naval estacionado na costa africana e americana.9 Portanto, supor uma interação entre a BFASS e o Estado britânico, como se a entidade antiescravista estivesse “intimamente ligada ao Estado”, é um ponto de vista que talvez precise ser relativizado.
Outro ponto que merece ser mencionado na obra de Heartfield – mais pela ausência do que pela presença – é a participação dos negros no próprio processo de emancipação ou, para usar um termo horrível, mas bastante utilizado hoje em dia, a “agência escrava”. É o próprio autor que afirma:
A escravidão é um ato belicoso e a mão-de-obra forçada estava sempre disposta a resistir e, muitas vezes, a se revoltar. As revoltas de escravos eram dispendiosas em termos de tropas e gastos militares e onerosas em matéria de prestígio para os governos europeus. Tão importante quanto o movimento de emancipação na Inglaterra era a recusa constante dos próprios escravos de não se deixar escravizar (p. 17).
Embora o capítulo 1 apresente um item chamado “Revoltas escravas”, em que é mencionado o protagonismo dos escravos no processo de abolição de alguns países, infelizmente, o autor não dedicou outros momentos para compreender por que a BFASS sempre declinou de qualquer participação direta dos ex-escravos na luta contra a escravidão nas colônias ou em outros países.
É certo que Joseph Sturge, o fundador da BFASS, e outros abolicionistas se dedicaram pessoalmente a empreendimentos nas colônias para a educação dos ex-escravos e para o estabelecimento de pequenas propriedades, mas não há registros de que a BFASS tenha aceitado ou incentivado a participação dos escravos e ex-escravos na luta abolicionista nas colônias britânicas. Essa recusa, provavelmente, não decorria exclusivamente de seu pacifismo, mas da maneira como entendia que a emancipação devia ser conduzida: sempre de forma ordeira, preservando o status quo e pela via legislativa. Qualquer ato que pudesse vir a prejudicar a produção e a economia ou que se desviasse dos padrões sociais britânicos deveria ser desprezado. Uma vez que o autor se preocupou em mencionar o tema da revolta escrava, ele poderia ter investigado um pouco mais a relação da BFASS com o protagonismo negro.
A BFASS e o Brasil
Embora seja correto afirmar que a abolição brasileira “nunca foi a principal prioridade da Sociedade” (p. 189), desde a sua fundação, a BFASS expressou preocupação com o tráfico e a escravidão brasileira, tanto que em seu Estatuto o nome do Brasil aparece ao lado dos Estados Unidos, do Texas e de Cuba como os locais para onde a Sociedade deveria dirigir seus esforços.10 Mas a preocupação da BFASS com o Brasil não esteve apenas formulada em seu Estatuto. Desde o início da década de 1840 até a abolição da escravidão brasileira, em 1888, a Sociedade realizou esforços para combater o escravismo no Brasil. A historiografia já documentou a relação entre Joaquim Nabuco e a BFASS na década de 1880; também já é conhecida a missão organizada secretamente pela BFASS no início da década de 1840 para investigar as condições da escravidão no país; do mesmo modo, são conhecidas as petições que a BFASS e outras sociedades antiescravistas auxiliares da Grã-Bretanha (ligadas à BFASS) enviaram ao imperador e às autoridades governamentais brasileiras, pressionando primeiramente pelo fim do tráfico e depois pelo término da escravidão.11
Infelizmente, nesse ponto, o livro de Heartfield é bastante sucinto e apresenta alguns equívocos. Todo o envolvimento da BFASS com Brasil e Cuba é abordado num único capítulo de pouco mais de vinte páginas. Tratando especificamente do caso brasileiro, pode-se afirmar que Heartfield se limitou a comentar alguns aspectos do Bill Aberdeen, do envolvimento do capital britânico em atividades escravistas brasileiras e de algumas petições contra a escravidão enviadas ao Brasil.
Além dos erros na grafia de alguns nomes, Heartfield se equivoca quando diz que “o líder da Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos na década de 1870 era Joaquim Nabuco” (p. 194). Além dessa Sociedade nunca ter existido no Brasil, Joaquim Nabuco, no início da década de 1870, estava concluindo seu curso de Direito no Recife e logo depois viajaria para a Europa, onde passaria anos em estado de “lazaronismo intelectual”, como ele próprio reconheceu.12 Logo depois, graças aos contatos paternos, assumiria cargos diplomáticos nos Estados Unidos e na Inglaterra. Somente após a morte do pai e de sua eleição para a Câmara dos Deputados, em 1878, Nabuco se manifestaria no ano seguinte publicamente contra a escravidão.
Outro sério equívoco da obra de Heartfield foi afirmar que “a Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, foi proclamada em nome do Príncipe Imperial Regente, Rodrigo Augusta [sic] da Silva” (p. 195). O autor estava se referindo ao senador Rodrigo Silva, que na época ocupava ao mesmo tempo os ministérios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e dos Negócios Estrangeiros, e foi o autor do projeto da referida lei.
São nos equívocos sobre o Brasil, provavelmente, que se manifesta mais claramente uma das deficiências dessa obra. Heartfield realizou uma ampla pesquisa sobre a BFASS, que abarcou quase cento e vinte anos de atuação de uma instituição que possuía capilaridade em várias regiões do mundo. Esse é um mérito que deve ser reconhecido. Porém, talvez devido às dificuldades de lidar com outras línguas, o autor se limitou somente à historiografia de origem anglo-saxã. E, no caso das fontes provenientes da BFASS, ele se limitou basicamente ao material impresso, em especial o Anti-Slavery Reporter, que era o periódico da Sociedade, e os Annual Reports. Heartfield não utilizou nenhuma vez sequer a correspondência trocada entre os membros do Comitê da BFASS e os correspondentes no exterior, tombada pela Rhodes House Library de Oxford, que guarda precioso material que não pôde ser publicado na época.
A análise dessa correspondência talvez permitisse que o autor percebesse a ambivalência do posicionamento da BFASS.13 A Sociedade desejava a extinção da escravidão por meio de métodos pacíficos, legais e economicamente viáveis, sempre de acordo com as concepções britânicas de liberdade e da organização liberal da economia. Entretanto, a BFASS tinha dificuldades para perceber ou aceitar que esses padrões sociais e econômicos dificilmente poderiam ser implantados sem ferir muitas crenças liberais. Em outras palavras, a BFASS não conseguia explicar como o fim da escravidão nas Índias Ocidentais levou ao colapso da produção açucareira, nem como a aplicação das diretrizes do livre-comércio ao tráfico de escravos geraria um salto grandioso desse comércio ou como o livre-comércio do açúcar favorecia a escravidão em Cuba e no Brasil.
Referências
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1TEMPERLEY, Howard. British antislavery, 1833-1870. Columbia: University of South Carolina Press, 1972, p. 94.
2HUZZEY, Richard. Freedom burning. Anti-slavery and empire in Victorian Britain. Ithaca: Cornell Uni versity Press, 2012, p. 10-11.
3HUZZEY, Richard, op. cit., p. 67.
4Ver, por exemplo, A chronological summary of the work of the British & Foreign Anti-Slavery Society during the nineteenth century (1839-1900). Londres: Offices of the Society, 1901; HARRIS, John. A century of emancipation. Londres: Kennikat Press, 1971. Harris foi secretário da Anti-Slavery and Aborigines’ Protection Society a partir de 1910; a primeira edição de seu livro ocorreu em 1933; TEMPERLEY, Howard, op. cit.; HUZZEY, Richard, op. cit.
5Ver, por exemplo, as correspondências de Palmerston aos representantes consulares britânicos no Brasil em FO 84/326, National Archives, Londres.
6Sobre a missão enviada ao Brasil, ver RÉ, Henrique Antonio. “Missão nos Brasis”: a BFASS e a organização de uma missão abolicionista secreta ao Brasil no início da década de 1840. Revista de História, n. 174, São Paulo, jan.-jun. 2016, p. 69-100.
7ELTIS, David. Economic growth and the end of the transatlantic slave trade. Nova York: Oxford University Press, 1987, p. 112.
8HUZZEY, Richard, op. cit., p. 67-8; TURLEY, David. Anti-slavery activists and officials: “influence”, lobbying and the slave trade, 1807–1850. In: HAMILTON, Keith & SALMON, Patrick. Slavery, diplomacy and empire. Britain and the suppression of the slave trade, 1807-1975. Londres: Sussex Academic Press, 2013, p. 88-90.
9Ver, por exemplo, o episódio em que Charles Fitzgerald, um tenente da Marinha Real, foi proibido por Sturge de se pronunciar no Congresso Antiescravista Mundial de 1840, pois ele se opunha ao “princípio pacífico” do referido congresso. HUZZEY, Richard, op. cit., p. 14.
10British and Foreign Anti-Slavery Society for the abolition of slavery and slave-trade throughout the world. Address. Londres: Johnston and Barrett, s.d. [1839?], p. 2.
11BETHELL, Leslie & CARVALHO, José Murilo de (org.). Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos. Correspondência, 1880-1905. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008; ROCHA, Antonio Penalves. Abolicionistas brasileiros e ingleses. A coligação entre Joaquim Nabuco e a British and Foreign Anti-Slavery Society (1880-1902). São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
12NABUCO, Joaquim. Minha formação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 173.
13Sobre a questão da ambivalência do posicionamento dos abolicionistas, ver ELTIS, David, op. cit., especialmente o capítulo 7.
Henrique Antonio Ré – Pós-doutorando no Departamento de História, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: henrique.re@usp.br.
Da Itália ao Brasil: processos educativos e formativos, séculos 19 e 20 / Revista História da Educação / 2017
No ano de 2015 comemoramos os 140 anos de história da colonização italiana no Estado do Rio Grande do Sul. Tal momento ofereceu a oportunidade de retomarmos com maior ímpeto um campo de estudo que há algum tempo é fonte de interesse de historiadores italianos e brasileiros. A oportunidade permitiu pensar de modo sistemático e orgânico aspectos menos conhecidos e estudados e que estão relacionados com o fenômeno: as experiências e os fatores que caracterizaram e acompanharam os processos de educação, de formação e cultura dos imigrantes italianos no Estado e no Brasil nos séculos 19 e 20.
As migrações são consideradas um dos acontecimentos mais relevantes da recente história contemporânea e expressa os movimentos de caráter transnacional que marcam os últimos dois séculos. As dinâmicas de caráter mais educativo, que acompanharam esses processos, representam um espaço de pesquisa que se demonstra muito fértil e pelo qual verificamos como foram desenvolvidas as sociedades multiculturais contemporâneas. Aos historiadores da educação cabe reconhecer que, nos últimos dois decênios, não manifestaram um grande interesse pelos processos educativos entre imigrantes e minorias étnicas (Myers, 2009).
As comemorações ligadas aos 140 anos da colonização italiana no estado do Rio Grande do Sul permitiram constituir uma retomada da reflexão historiográfica em torno da experiência histórica da imigração italiana no Brasil. A cooperação entre historiadores da educação brasileiros e italianos foi proposta como metodologia de trabalho, capaz de fecundar pesquisas já iniciadas. O contato entre as diversas experiências historiográficas constitui um caminho interessante para acrescentar conhecimentos e aprofundamentos analíticos a um âmbito histórico que ainda está por ser explorado, seja no contexto histórico italiano, seja no brasileiro.
Os estudos conduzidos pelo grupo de pesquisa História da Educação, Imigração e Memória – Grupheim – tem gerado a necessidade de promover questionamentos de pesquisa mais aprofundados e que permitam construir análises atentas à complexidade dos processos educativos dos grupos de imigrantes italianos, alemães e poloneses a partir da metade do século 19. Nos últimos anos investigações específicas foram desenvolvidas no âmbito das experiências da escolarização italiana, como em São Paulo, sendo pioneiro o estudo de Mimesse (2014), além de Franchini (2015). Os da área colonial italiana no Rio Grande do Sul, caso do estudo de Luchese (2015), Luchese; Rech (2014). Da colônia Colombo, no Paraná, os estudos de Maschio (2014, 2015). No Espírito Santo o estudo de Simões e Franco (2014), em Santa Catarina, a pesquisa de Otto (2014) e de Virtuoso (2008). Estudos sobre as escolas entre imigrantes italianos em Minas Gerais foram realizados por Rodrigues (2014), bem como no Rio de Janeiro por Pagani (2014). No conjunto esses estudos lançam luz sobre as diversas formas pelas quais a escolarização foi sendo constituída pelas iniciativas étnicas italianas, na configuração do fenômeno migratório nos diferentes estados brasileiros.
O processo da imigração italiana nos Estados de Minas Gerais e São Paulo, por exemplo, foram muito diferentes daqueles vivenciados no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina, seja pela dimensão quantitativa, seja pela qualitativa. Os contextos locais produziram escolhas diferenciadas nos processos de escolarização. Nos Estados cujos núcleos coloniais não tiveram maioria italiana as orientações de alguns grupos dirigentes eram favoráveis à institucionalização de escolas mistas, atendendo italianos e descendentes e, também, os brasileiros. Características diversas são daquelas escolas localizadas em núcleos em que os imigrantes italianos foram predominantes.
Recentemente historiadores da educação começaram a demonstrar maior interesse sobre os processos educativos e identitários que tem inspirado algumas iniciativas ligadas à escolarização dos italianos e descendentes no Brasil. Também nesse caso é relevante destacar que, nos anos 1990, a proposta de prestar maior atenção aos processos educativos dos imigrantes durante os séculos 19 e 20 produziu algumas publicações sobre os países de destino da América do Sul e Estados Unidos, caso de Ambrosoli (1995) e Rosoli (1999). Algumas investigações ofereceram um primeiro quadro geral, sintético das políticas adotadas pelo governo italiano na promoção da escolarização dos italianos emigrados, caso de Salvetti (2002) e Ciampi (1998). Em outros casos os estudos foram desenvolvidos de modo mais aprofundado, mesmo que limitados a uma fase ou período específico, às orientações e às intervenções adotadas em nível ministerial para o lançamento de políticas em defesa da italianidade, caso de Pretelli (2010) e Barausse (2016).
Dentre as pesquisas ligadas às associações chamadas para empenhar-se na difusão da instrução e da cultura italiana, seja de caráter laico ou religioso, consta a Associação de inspiração laica Dante Alighieri, estudada por Salvetti (1995), a Associação Nacional para socorrer imigrantes e missionários italianos no mundo e a Italica Gens, conforme Confessore (1987) e Rosoli (1990).
Ainda temos uma ou outra pesquisa esporádica de casos, como a que aprofundou um estudo específico sobre o Instituto Médio Ítalo-Brasileiro Dante Alighieri (Dell´Aira, 2011). Recentemente, enfim, a atenção está nas culturas escolares e, de modo particular, nos livros didáticos e de texto que foram utilizados nas experiências escolares étnicas, caso dos estudos de Barausse (2015, 2016) e Luchese (2016), dentre outros.
Os artigos reunidos nesse dossiê não têm a intenção de serem estudos exaustivos no que diz respeito ao âmbito da investigação sobre as relações entre imigração italiana e educação, mas, buscam estimular a compreensão da necessidade de uma maior articulação dos caminhos investigativos e também do aprofundamento do que, até o presente momento, foi realizado. Com tal intento, as contribuições de Barausse, Maschio, Mimesse, Ascenzi, Luchese e Sani refletem os campos de pesquisa que podem ser, posteriormente, enriquecidos.
Já são alguns decênios que o estudioso italiano do fenômeno migratório Gianfausto Rosoli (1999) havia solicitado uma maior atenção da historiografia na identificação dos níveis de alfabetismo das populações de imigrantes, sua chegada aos países de destino e seus percursos de escolarização, em especial, atentando para como os imigrantes promoveram processos de alfabetização para os próprios filhos. Naquela ocasião, Rosoli (1999) apresentava a hipótese de que a imigração haveria alavacado, entre populações mais atrasadas, um processo de superação do analfabetismo presente entre muitos imigrantes. O estudioso documentou como os emigrantes solicitaram às suas famílias de origem que enviassem as crianças para a escola para dar-lhes melhores condições para enfrentar os desafios da integração nos países de recepção. Ao mesmo tempo, evidenciou que, para manter o contato com os lugares de proveniência, os imigrantes aprendiam a ler e a escrever.
As pesquisas desenvolvidas no decurso dos últimos anos por Luchese (2015) têm confirmado as intuições de Rosoli (1999), contrapondo o que alguns estudiosos no curso dos anos 1980 haviam formulado e tem lançando luz ao modo como os imigrantes agiram a favor de uma crescente demanda por instrução. Estamos, no entanto, ainda distantes da identificação de um mapa que consiga dar conta das múltiplas experiências de alfabetização e escolarização no Brasil. De todo modo a população imigrada deu valor aos processos de escolarização. Não estamos ainda em condições de definir quais e quantos os tipos de escola foram destinados aos filhos de imigrantes e aos seus descendentes, ou mesmo aos adultos, que tipo de escola e de educação foram predispostas para adultos imigrantes. Em tal direção é necessário considerar a presença de uma larga variedade de agências e atores destinados a promover a escola com base étnica: escolas rurais comunitárias, escolas urbanas e aquelas ligadas às associações de mútuo socorro, professores privados pagos pelas famílias, escolas paroquiais e também confessionais, escolas coloniais distintas com um vínculo muito próximo das autoridades consulares, escolas subsidiadas pelos Estados ou municípios. No conjunto, revelam o papel complexo da atuação consular, das instituições de caráter religioso, das autoridades locais e das famílias na promoção de processos educativos entre imigrantes e descentes.
A variedade de iniciativas nos impele a definir melhor a natureza e, em primeiro lugar, a distinguir entre as intervenções de caráter institucional e aquelas da sociedade civil que são a base para o desenvolvimento das formas de escolarização dos emigrados e imigrantes.
O artigo de Barausse, Focolari di educazione nazionale e di sentimento pátrio: le scuole italiane nel Rio Grande do Sul durante gli anni della colonizzazione di fine Ottocento (1875-1898), presta atenção ao primeiro movimento de escolas elementares étnicas com base nas fontes consulares utilizadas parcialmente pela historiografia da educação brasileira. Trata-se de uma primeira reconstrução que de um lado demonstra a heterogeneidade de características das escolas organizadas, a maior parte delas subsidiadas pelo governo italiano, a diversidade curricular e também de professores que atuaram. Ao lado do associacionismo mutualístico nos núcleos coloniais ou de imigração mais consistentes, muitos outros professores operaram nas áreas periféricas e isoladas das colônias para garantir instrução e educação, mediante as crescentes demandas.
O autor põe em evidência as estratégias e a mentalidade de uma parte consistente da diplomacia italiana estabelecida no Brasil meridional e a perspectiva que animava os cônsules para quem a escola não foi considerada apenas um veículo de alfabetização, mas também uma das principais agências de civilização e nacionalização: chamas de educação nacional, como definiu o subsecretário de Estado ao Ministério das Relações Exteriores italiano. A afirmativa consistia em uma tentativa de solicitar aos cônsules um empenho maior para fomentar a italianidade, contendo as forças de assimilação das autoridades políticas brasileiras, segundo uma perspectiva de defesa da laicidade do ensino, sem, no entanto, fechar-se às exigências de colaboração que poderiam surgir com parte do clero italiano estabelecido junto às comunidades de imigrantes.
O artigo de Maschio e Mimesse, Entraves no ensino da língua portuguesa nas escolas italianas privadas curitibanas e paulistanas (1883-1907), aborda a especificidade das características de algumas das múltiplas escolas italianas instituídas no Estado do Paraná e de São Paulo, bem com as problemáticas da nacionalização do ensino que seguiram um calendário diverso e que, no caso paulista, foi condicionada pela criação de um corpo de inspetores. Se as escolas no contexto paulista, segundo as duas autoras, eram subsidiadas pelo governo italiano e não atenderam às disposições de obrigatoriedade previstas pelo Estado, em virtude da fragilidade da rede de escolas públicas, no caso paranaense de Curitiba as escolas foram vinculadas às associações de mútuo socorro e receberam o subsídio do governo, mesmo tendo desconsiderado as disposições previstas nas normativas estaduais. Apresentam a análise das relações do corpo de inspetores que tinha como tarefa monitorar a aplicação de leis e regulamentos introduzidos em diversos momentos nos dois Estados e com a finalidade de ampliar as escolas públicas elementares no contexto paranaense e paulista. As duas autoras fazem emergir não apenas as condições de precariedade das escolas privadas italianas, mas a relutância em introduzir o ensino da língua portuguesa no currículo escolar, suscitando reações negativas nos inspetores.
As insatisfações e as tensões geradas entre as autoridades escolares brasileiras constituem o reflexo das consequências do duplo processo de nacionalização que submeteram os imigrantes. As consequências dos processos de nacionalização reverberam também em outro plano, aquele das práticas e dos saberes escolares. Sobre essas temáticas os artigos de Ascenzi e Luchese aprofundam a análise sobre um dos pontos mais interessantes do debate historiográfico atual na história da educação: os livros escolares.
O contexto no qual fazem referência é marcado pela experiência do fascismo na Itália e a crise da República Velha, seguida da Era Vargas no Brasil. Data desse período a difusão, nas escolas elementares italianas do Brasil, as leituras de Luigi Bertelli e Clementina Bagagli. O artigo de Ascenzi, Per l’educazione patriottica e nazionale degli italiani all’estero: l’edizione postuma del libro di lettura O Patria mia di Luigi Bertelli (Vamba) e la sua diffusione in Brasile, se concentra na reconstrução da gênese, dos conteúdos e dos endereços ideológicos e culturais e, a particular riqueza editorial registrada também no Brasil de um dos mais importantes e longevos livros de leitura para as escolas italianas no exterior entre as duas guerras mundiais: o Patria mia. A obra póstuma do célebre escritor para a infância Luigi Bertelli, melhor conhecido da vasta plateia de pequenos leitores, sobretudo como diretor do periódico semanal Il Giornalino della Domenica, com o pseudônimo de Vamba [1]. A estudiosa italiana refere à configuração da obra nacionalista de Vamba, a qual, após o advento do regime fascista na Itália, foi submetida, por desejo do editor florentino Bemporad, a uma espécie de fascistização do conteúdo. Ascenzi recorda que como a obra não foi a preferida pelo regime, na metade dos anos 1930, mediante a vasta difusão registrada, por exemplo, nas escolas italianas no Brasil, se decidiu por substituí-la por textos ideológica e politicamente mais sintonizados com os endereços do totalitarismo fascista.
O artigo de Luchese, intitulado Da Itália ao Brasil: indícios da produção, circulação e consumo de livros de leitura (1875-1945), mapeia o contexto da imigração italiana e dos processos de escolarização no âmbito brasileiro e do Rio Grande do Sul, para em seguida tratar da produção e circulação dos livros e alguns outros materiais didáticos produzidos e enviados pelo governo italiano para sinalizar sobre as possibilidades de consumo de tais livros. O percurso da análise atenta, em especial, para a coleção de livros de leitura organizados por Clementina Bagagli e que, nos registros de nacionalização, foram um dos estopins que justificaram o fechamento das escolas italianas no Rio Grande do Sul, em 1938.
Para além das intervenções de caráter institucional do governo italiano ou brasileiro, pelo texto de Roberto Sani Tra esigenze pastorali e impegno per la preservazione dell’identità nazionale: la Santa Sede e l’emigrazione italiana all’estero tra Otto e Novecento, podemos compreender os processos que orientaram um outro projeto institucional, o religioso. A contribuição de Sani analisa o percurso da Igreja Católica com relação ao fenômeno imigratório e, com rica documentação, apresenta as mudanças que, após as dificuldades iniciais em enfrentar a emigração de massas produziu, no interior da Igreja, novas orientações durante os pontificados de Leão XIII e de Pio X em matéria de assistência e pastoral dos emigrados para o exterior. Sani aprofunda e ilustra o percurso por meio das solicitações das autoridades eclesiásticas italianas, como Bonomelli e Scalabrini, mas também de alguns componentes do episcopado europeu e americano, sinalizando para o crescimento das obras de assistência e a tendência de centralização do governo no cuidado pastoral dos emigrantes.
O artigo introduz a complexidade que acompanhou o processo de resistência eclesiástica, seja em nível italiano ou aquele do episcopado brasileiro. Sani documenta, pois, que as dificuldades e resistências foram amadurecidas no interior do episcopado e induziram Pio X a sinalizar a uma crescente centralização das funções e das competências relativas à criação de uma pluralidade de instituições e iniciativas práticas para a assistência dos imigrantes. É no interior deste quadro que nasce a associação como a obra Bonomelli e a Federação Itálica Gens, junto com iniciativas dos comitês para a emigração no contexto nacional de partida e o nascimento da seção para emigração no interior da Sagrada Congregação Consistorial para a composição de um instituto de formação para o recrutamento e formação espiritual do clero, destinado à animação da vida religiosa das comunidades de imigrantes. Iniciativas destinadas a serem integradas ou suprimidas nos decênios sucessivos à Primeira Guerra Mundial, sob o pontificado de Pio XI, por novos organismos como o Prelado para a emigração italiana ou suprimidas pela Igreja para evitar a instrumentalização dos regimes totalitários.
No conjunto de artigos que compõem este dossiê desejamos que os leitores percebam a potencialidade e as brechas a serem pesquisadas na relação entre processos migratórios e práticas educativas, ultrapassando fronteiras nacionais e pensando-se em histórias conectadas, portanto, um calidoscópio de temas a serem investigados pelos historiadores da educação.
Nota do editor
1. ver ASCENZI, Anna; PATRIZI, Elisabetta. A missão educativa da geração intemediária em tempo de guerra: textos para a escola e para a juventude de Luigi Bertelli entre 1914 e 1918. Hist. Educ. (Online), Porto Alegre: Asphe, v. 20, n. 50, 2016, p. 193-218.
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Alberto Barausse – Professor do Departamento de Ciências Humanísticas, Sociais e da Educação da Universitá degli Studi del Molise, onde lidera o Centro di documentazione e ricerca sulla Storia delle Istituzioni scolastiche, del libro per la scuola e della letteratura per l’infanzia e o Museo della scuola e dell’educazione popolare. Professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: barausse@unimol.it
Terciane Ângela Luchese – Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Caxias do Sul. Lidera o Grupo de Pesquisa História da Educação, Imigração e Memória – Grupheim. E-mail: taluches@ucs.br
BARAUSSE, Alberto; LUCHESE, Terciane Ângela. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 21, n. 51, Jan / abr, 2017. Acessar publicação original [DR]
Flores, votos e balas – ALONSO (RH-SP) Tornando-se livre – MACHADO e CASTILHO (RH-USP)
ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868 – 1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 529p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T.; CASTILHO, Celso Thomas(org.). Tornando-se livre. Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 480p. Resenha de: SALLES, Ricardo. A abolição revisitada: entre continuidades e rupturas. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
O objetivo dessa resenha é apresentar, nos limites desse formato, uma apreciação crítica de duas obras recentes que recolocaram, em termos gerais, a abolição da escravidão no Brasil como tema de peso da história e da historiografia brasileiras.
A abolição da escravidão foi um fato central da história brasileira. Comparável à Independência, à Proclamação da República e à Revolução de 1930. Na verdade, nenhum destes três últimos eventos teve semelhante impacto transformador da vida social. A Abolição destruiu uma instituição e uma prática centenárias que moldaram a história, a sociedade, a política e a cultura brasileiras. A escravidão moldou a colônia por praticamente três séculos, mas também esteve na base da construção do Estado e da nação por 80 anos – se tomarmos como marco dessa construção a vinda da família real em 1808 – e, mesmo depois de mais de um século de sua extinção, ainda lança seus efeitos sobre os dias de hoje. Na época de sua abolição, a escravidão ainda estava no centro dos interesses da classe dominante do Império e, apesar do relato estabelecido em contrário, há muito desmentido pela historiografia, não era vista como um obstáculo central pelos novos grupos de proprietários rurais que emergiam no oeste paulista. Com tudo isso, é evidente que o processo histórico de derrubada – a Abolição – também deva merecer uma grande atenção por parte de historiadores. O que foi a Abolição? Quando começou? Foi um movimento conscientemente deflagrado? Por quem? Quando? Com quais objetivos mais específicos, além do genérico fim da escravidão? Quais seus êxitos e fracassos? Quais foram suas principais fases? Quem foram seus principais sujeitos históricos? Qual seu legado?
Muitas dessas perguntas foram formuladas nas décadas que se seguiram à Abolição e à Proclamação da República. Com a consolidação da República oligárquica e sua crise dos anos 1920, essas perguntas sobre a abolição diluíram-se em questionamentos mais abrangentes sobre a formação do Brasil e, eventualmente, sobre o lugar da escravidão em geral nessa formação. No final dos anos 1960 e início da década seguinte, contudo, as perguntas sobre a abolição voltaram a ser formuladas por historiadores, em especial por dois brasilianistas. São de 1972 as duas grandes histórias da abolição brasileira: The destruction of Brazilian slavery, de Robert Conrad, publicada em português em 1975, com o título de Os últimos anos da escravatura no Brasil, e The abolition of slavery in Brazil, de Robert Toplin, infelizmente, nunca traduzido. Em 1988, por ocasião do centenário da Abolição, Emilia Viotti da Costa que, em 1966, havia publicado Da senzala à colônia, trabalho mais abrangente sobre a escravidão e sua crise no século XIX, publicou A Abolição, pequeno livro de síntese e divulgação.
Tais obras, entretanto, não frutificaram. É certo que, desde os anos de 1980, com a multiplicação dos programas de pós-graduação, particularmente em História, uma quantidade imensa de dissertações de mestrado e teses de doutorado foi produzida sobre o assunto, muitas delas ganhando, posteriormente, a forma de livros. A maioria esmagadora dessas investigações foi e continua sendo de caráter monográfico, sobre aspectos particulares da escravidão ou mesmo sobre o evento de sua abolição, nesta ou naquela região, sob este ou aquele ponto de vista. Tais abordagens são muito importantes e ajudam a levantar novas questões, esclarecer temas e aspectos negligenciados. O lugar e o papel das lutas de escravos e libertos no processo de abolição foram a dimensão mais ressaltada em contraposição a uma historiografia mais estrutural da escravidão e da abolição, mais característica da década de 1960.
As duas obras aqui resenhadas buscam escapar dessa fragmentação historiográfica e só por isso já seriam muito bem-vindas. O livro de Ângela Alonso – Flores, votos e balas – é explicitamente uma síntese histórica e uma interpretação de conjunto. Por isso servirá como eixo desta resenha. Tornando-se livres é uma coletânea organizada por Maria Helena P. T. Machado e Celso Thomas Castilho que, em parte, baseia-se e tem como ponto de partida a mesma fragmentação temática acima apontada. Entretanto, em seu título e em alguns capítulos específicos busca também uma interpretação abrangente, ainda que não uma síntese, dos acontecimentos que marcaram a abolição da escravidão no Brasil. Por isso, serão estes os capítulos e a tese expressada pelo título da obra que serão avaliados com vagar nessa resenha.1
Tornando-se livre, de uma maneira geral, ressalta o papel do escravo – e também do liberto – como elemento ativo na sociedade escravista e, eventualmente, na moldagem de um clima de deslegitimação da escravidão, que se pode perceber principalmente a partir da segunda metade da década de 1860. É verdade que essa deslegitimação foi proveniente de eventos mais amplos, que não foram deflagrados pela participação ativa dos cativos e que não merecem uma atenção maior por parte dos autores da obra. Em primeiro lugar, foi efeito do desfecho da Guerra da Secessão (1861-1865) e da consequente percepção, por parte do imperador e de alguns de seus estadistas, de que o Brasil estava agora isolado no cenário internacional como nação escravista. Em segundo lugar, cabe ressaltar que a libertação de escravos para seu recrutamento para a guerra com o Paraguai tornou evidente a fragilidade das bases sociais do Império, em época de crescente mobilização nacionalista. Mesmo assim, o pleno significado desses eventos é incompleto caso não se leve em conta o lugar e o papel dos escravos, libertos e suas lutas naquela sociedade, e é principalmente disso que os 21 capítulos da obra tratam. O livro é dividido em quatro partes. A primeira – “Disputando liberdades” – aborda as lutas de “homens e mulheres escravos, libertos e libertandos em busca da aquisição da liberdade”, problematizando “os horizontes dessa almejada liberdade no contexto da escravidão e de seu afrouxamento na segunda metade do século XIX, sobretudo a partir de 1870” (p. 13). A segunda parte – “Disputando liberdades: histórias de mulheres com seus filhos” – retoma o tema “do acesso à liberdade e à autonomia,” enfocando o papel das escravas e libertandas como mulheres e mães (p. 14). Os capítulos da terceira parte – “Mobilização: dimensões e prática” – abordam a questão dos movimentos emancipacionistas e abolicionistas da segunda metade do século XIX e do pós-abolição, com o objetivo “de aproximar a movimentação em torno da abolição aos movimentos sociais deste período e dos seguintes, propondo elos e continuidades” (idem). A última parte – “Abolição em dimensão transnacional” – reúne textos que refletem sobre a “questão ainda pouco explorada por nossa historiografia, que é a dimensão internacional e atlântica do processo da abolição da escravatura no Brasil” (p. 15).
Já no que diz respeito a Flores, votos e balas, seu ponto forte é o destaque dado ao papel dos ativistas abolicionistas na formação, estruturação, desenvolvimento e direção do abolicionismo em quatro conjunturas que a autora distingue no movimento pela abolição: a conjuntura pré-Lei do Ventre Livre, a partir de meados da década de 1860; a ascensão do partido Liberal em 1878; o gabinete Dantas, de junho 1884 a maio do ano seguinte; e o gabinete Cotegipe, de 1885 a 1888. Essas diferentes conjunturas, por sua vez, corresponderiam a três fases do abolicionismo brasileiro expressas no título do livro, que operou inicialmente no espaço público: momento das flores, na esfera político-institucional; momento dos votos; e, na clandestinidade, momento das balas (p. 19).
Tanto Flores, votos e balas quanto a maior parte dos capítulos de Tornando-se livres acentuam as continuidades entre o que seriam lutas, movimentos e iniciativas abolicionistas ou contra a escravidão antes de 1879, especialmente a partir da metade da década de 1860, e depois dessa data. Este ano (1879) é tomado por muitos, entre eles o autor dessa resenha, como marco inicial do movimento abolicionista, em contraposição ao que se convencionou chamar de emancipacionismo. Foi nele que o deputado liberal Jerônimo Sodré proferiu seu discurso no Parlamento demandando a abolição, pura e simplesmente, da escravidão. A demanda ecoava, é certo, outras vozes na imprensa e na sociedade civil que se manifestavam pelo mesmo objetivo. Contudo, as iniciativas e lutas anteriores que de alguma forma golpearam a escravidão, como a proibição efetiva do tráfico internacional de escravos, a lei de 28 de setembro de 1871, que declarou livre o ventre da mulher escrava, a ação de associações civis que promoviam a alforria de cativos, as ações judiciais impetradas pela libertação de escravos – as ações de liberdade – e as próprias lutas e revoltas de escravos, tanto individuais quanto coletivas, não haviam, até então, colocado explicitamente no horizonte político imediato a questão da abolição. Esta era vislumbrada em futuro não predizível e seria conseguida de uma forma ou de outra, pelo acúmulo de efeitos dessas leis, das ações de alforria e liberdade, das lutas e revoltas escravas. O discurso de Sodré desdobrou-se imediatamente em apoios e, em um crescendo, ganhou mais nitidez – abolição imediata e sem indenizações – transformando-se em um movimento político e social que resultaria vitorioso nove anos mais tarde.
Entretanto, nenhuma das duas obras coloca grande ênfase nessa novidade. Essa é a tese explícita de Flores, votos e balas e é também a tese esgrimida em mais de um dos capítulos de Tornando-se livres. Para ambos os livros, haveria uma continuidade entre antes e depois de 1879. Ângela Alonso assinala que essa continuidade existiria entre o que ela designa como abolicionismo de elite, característico das décadas de 1860 e 1870, e abolicionismo como movimento social, marca da década de 1880. A corroboração da tese vem pelo acompanhamento de algumas lideranças abolicionistas com atuação expressiva nos dois momentos, entre eles e principalmente, André Rebouças, mas também, como veremos abaixo, Abílio César Borges, educador e ativista abolicionista de segunda grandeza, se é que assim se pode considerá-lo.
Em Tornando-se livres, como colocado na apresentação do volume assinada pelos organizadores, a continuidade seria dada pelas experiências de busca de liberdade. Essas experiências, muitas vezes precárias e provisórias, principalmente na segunda metade do século XIX, “fizeram parte de um grande esforço social que redundou no processo de abolição” e que ainda se estendeu ao período da pós-abolição (p. 11-12). Para os autores, mesmo que as lutas de escravos, libertos e libertandos e os movimentos sociais da abolição não tenham andado sempre juntos, “a movimentação da abolição deve ser compreendida em sua ligação profunda com a realidade das senzalas e dos esforços dos escravos e dos pobres em geral de se livrarem do cativeiro e suas mazelas” (p. 14-15). No primeiro capítulo, intitulado “Da abolição ao pós-emancipação: ensaiando alguns caminhos para outros percursos”, assinado por Flávio Gomes e Maria Helena P. T. Machado e que funciona como uma espécie de direção geral da obra, essa perspectiva fica ainda mais explicitada. O capítulo visa destacar as possibilidades de se estabelecer as conexões analíticas entre expectativas e percepções de liberdade e autonomia por parte de escravos, roceiros, quilombolas e forros, antes e depois da abolição. Os anseios de escravos e libertos “em busca de autonomia e liberdade” integrariam um amplo movimento social que circundou a abolição no Brasil. Assim, os autores querem apontar as possíveis conexões analíticas “entre movimentos abolicionistas e atuação de escravos, libertandos e libertos, como partes integrantes de um amplo movimento social e político de superação da escravidão” (p. 20). Reconhecendo que a palavra “abolicionismo” adquiriu uso mais extensivo na década de 1880, em detrimento de “emancipacionismo”, mais comum até aquele momento, os estudos sobre a abolição teriam supervalorizado esse momento, assim como os espaços urbanos, os debates parlamentares e a imprensa. Os estudos sobre escravidão, abolição e pós-emancipação sofreriam, até hoje, de uma segmentação, resultando em narrativas lineares desses fenômenos. No caso específico da abolição, essas narrativas reduziriam em demasia os recortes e os atores, “aprisionando suas análises no espaço urbano e na última década da escravidão” (p. 19-20).
Tal perspectiva tem o mérito de salientar a importância do contexto das lutas e atuações sociais de escravos, libertos e livres para a compreensão mais geral do momento abolicionista. Mas a afirmação permanece em um plano genérico. Lutas e atuações de escravos, libertos e livres sempre existiram na sociedade escravista brasileira, tanto ao longo da história colonial quanto no decorrer da história imperial. Em que momento e como essas lutas e atuações influíram ou incidiram na formação de um movimento abolicionista? Toda a busca por liberdade, em uma sociedade escravista como a brasileira que comportava a alforria e a inserção social, econômica, cultural, jurídica e política do liberto, integrava “um amplo movimento social e político de superação da escravidão”? A permanência e a força históricas da escravidão brasileira atestam que não. Em que momento, por quais razões e como a liberdade deixou de ser uma condição individual de não ser mais escravo, e de eventualmente poder mesmo usufruir do direito de ser proprietário de escravos, para se tornar uma condição social, jurídica e política frontalmente contraposta à existência de qualquer escravidão? Inversamente, é preciso esclarecer como as lutas políticas abolicionistas ressignificaram, condensando, repercutindo, amplificando, as lutas de escravos, livres e libertos. Essa é uma questão de fundo que não pode ser enfrentada somente pela multiplicação e enumeração de “casos” de embates particulares entre senhores e o Estado, de um lado, e escravos, libertos e livres, de outro. Da mesma forma, se o movimento abolicionista não pode ser completamente seccionado das propostas anteriores, genericamente designadas como emancipacionismo, de abolição em um futuro incerto, de forma gradual e preservando os direitos de propriedade, não pode, tampouco, ser confundido com elas. O preço é uma diluição da singularidade da luta abolicionista, ao mesmo tempo em que não fica claro em que, e se é que, “as expectativas e percepções de liberdade e autonomia” da população escrava, liberta e livre seria diferente, no período da abolição, das expectativas de liberdade e autonomia que tinham antes.
Flores, votos e balas dá grande ênfase à movimentação abolicionista. Em uma nota à apresentação do livro, Ângela Alonso explicita o que ele traz de novidade em relação a uma longa série de obras anteriores sobre a abolição da escravidão no Brasil: uma visão de conjunto da mobilização abolicionista, considerando a dinâmica intra e extraparlamentar, a partir de sua periodização própria, salientando quatro conjunturas. Em termos metodológicos, seu levantamento sistemático das associações abolicionistas e eventos de mobilização a partir de notícias de imprensa também é original. Finalmente, haveria ainda o papel destacado por ela conferido à organização política do “contramovimento”, em oposição aos abolicionistas, que teria um papel importante “para a intelecção das estratégias abolicionista” (p. 373-4). No decorrer do livro, as lutas escravas só aparecem na conjuntura de acirramento do movimento abolicionista, no penúltimo capítulo, quando a autora, seguindo definição de sua principal referência teórica, o sociólogo norte-americano Charles Tilly, vê o ano de 1887 como uma situação revolucionária. Se é verdade que, neste ano, a situação desandou de vez, com a desorganização da produção e o caos social instaurado pelas fugas e rebeliões escravas, muitas delas incentivadas ou acobertadas pelos abolicionistas, é fato também que agitações entre escravos, variando dos casos de rebeldia individual, fugas, assassinatos de proprietários e seus feitores e capatazes a fugas e movimentações coletivas, intensificavam-se desde pelo menos 1882.
Aqui, a crítica a ser feita é quase inversa àquela em relação a Tornando-se livres. O papel de escravos e libertos na luta contra a escravidão surge quase como um subproduto do movimento abolicionista. Essas lutas não têm passado, tradições e condicionamentos socioeconômicos e culturais particulares, tanto aqueles inseridos em sua longa duração, remontando ao período colonial, quanto aqueles mais específicos, característicos de sua reconfiguração e expansão no período imperial. Ângela Alonso detém-se sobre a escravidão do XIX, mas o faz em busca dos fundamentos de uma retórica de defesa da escravidão que remontaria, por sua vez, a linhagens de defesa da instituição identificadas por David Brion Davis no pensamento ocidental. Aqui a escravidão não teria as mesmas características de racialização presentes na sociedade estadunidense. Em uma “sociedade aristocrática, a estratificação estamental garantia a ordem sem exigir argumentos raciais explícitos, embora nem por isso ausentes” (p. 57-8), e “era a base de um estilo de vida, compartilhado por todo o estamento senhorial, cujos eflúvios se espalhavam pela sociedade em círculos concêntricos, como pedra na água” (p. 53). Essa situação, por sua vez, propiciava uma argumentação de defesa da escravidão caracterizada pela autora como “escravismo de circunstância”, uma defesa enrustida, não racializada e justificada pelas condições específicas da economia nacional (p. 56 e ss.).
Essa linha de defesa da escravidão teve como campeão Paulino José Soares de Sousa, filho homônimo do visconde do Uruguai. Não há espaço aqui para debater essa ideia de escravismo de circunstância, fundamentado em uma sociedade aristocrática e estamental. É fato que a defesa da escravidão no Brasil seguiu uma linha de argumentação principal que a considerava um mal necessário, uma necessidade histórica, prescindindo ou minimizando sua defesa moral ou abrigada em razões raciais, tidas então como científicas. Já o argumento de que essa linha de defesa correspondia a uma sociedade estamental e aristocrática parece mais problemático. A aristocracia brasileira era meritocrática e não hereditária, não correspondendo, assim, a uma sociedade estamental. Por outro lado, uma linha de defesa mais pragmática que programática da escravidão era mais adequada ao caráter elástico da escravidão brasileira, como notou Joaquim Nabuco em O abolicionismo. A escravidão aqui estava presente em todos os cantos do território nacional, tanto no campo quanto nas cidades. Era um privilégio que podia se estender, e muitas vezes se estendia, a pequenos proprietários rurais e a setores médios e remediados nas cidades. Era um privilégio de brancos, mas podia abarcar – e às vezes abarcava – mestiços e negros, dos quais muitos tinham acabado de adquirir sua própria liberdade.
Flores, votos e balas compartilha a tese da continuidade entre o abolicionismo em sua fase do que se convencionou chamar de emancipacionismo e sua fase propriamente abolicionista, ainda que não calcada, como em Tornando-se livres, nas lutas de escravos e libertos. Ela assinala, é certo, a incidência dessas lutas, mas somente a partir de 1883 e sob o estímulo direto do movimento abolicionista, que então ingressava em sua fase de “balas”. Para Ângela Alonso, essa continuidade viria pela indistinção entre as propostas emancipacionistas e aquelas abolicionistas, corroborada pelo protagonismo de determinadas lideranças em ambos os momentos. Para tanto, ela acompanha as figuras de André Rebouças, um dos “papas” da luta pela abolição, e o menos conhecido educador Abílio César Borges. A tese é problemática. É verdade que Rebouças já batalhava pela abolição, mais como um objetivo vago, a ser alcançado por reformas, antes mesmo do movimento abolicionista ganhar seu contorno de luta pela abolição imediata, o que ocorreu a partir de 1879. Entretanto, essa continuidade do personagem não autoriza a interpretação da continuidade do movimento. A partir de 1879, Rebouças lançou-se resolutamente na luta pela abolição imediata e sem indenizações, distinguindo – assim como outros abolicionistas – essa nova luta das bandeiras emancipacionistas de abolição gradual que haviam culminado na lei de 1871. No final da década de 1870, estava claro que o emancipacionismo era insuficiente, com o fim da escravidão previsto para um futuro distante e indeterminado, além de deixar intacto o poder da “landocracia”, termo que ele utilizava para designar o poder dos grandes senhores de escravos e de terras que deveria ser quebrado. Rebouças era o mesmo, mas suas opiniões e práticas haviam mudado radicalmente.
No caso de Abílio Borges, enxergar neste personagem continuidades em uma pretensa cruzada abolicionista é ainda mais complicado. É verdade que ele considerava que a escravidão deveria ser extinta a bem do futuro da nação, e também que foi um dos fundadores, em 1869, da Sociedade Libertadora Sete de Setembro na Bahia. Entretanto, no capítulo do livro Tornando-se livres, de Ricardo Tadeu Caires Silva, que trata da mesma Sociedade Libertadora Sete de Setembro, ficamos conhecendo como pensava o dr. Abílio Borges. Em carta de 1870 a um correligionário, ele considerava que a substituição do trabalho escravo pela via da colonização só seria feita muito lentamente, por meio de uma lei do ventre livre. Os que tivessem nascido escravos que se sujeitassem à lei do seu destino, “porque a libertação em massa, além de não ser um bem para os próprios escravos, seria para o Brasil um mal imenso e de consequências funestíssimas” (citação à p. 304). Nada mais distante do ideário abolicionista que começa a ser construído em 1879, pregando a abolição imediata, sem indenizações, acompanhada pela destruição da “obra da escravidão”, com a distribuição de terras para os antigos escravos e seus descendentes e a tributação do latifúndio. Do ponto de vista das “formas de luta”, se é que assim se pode chamar as ações de compras de alforrias por sociedades emancipadoras, a mudança também foi radical. A atuação dessas sociedades e de novas que surgiram continuou, mas estas passaram a conviver com outras manifestações, ações e entidades, essas sim de luta, que demandavam a abolição imediata, e que acobertavam – quando não promoviam – fugas de escravos.
Essa radicalidade e essa novidade do movimento abolicionista são percebidas e valorizadas por Cláudia Santos em seu capítulo de Tornando-se livre, intitulado “Na rua, nos jornais e na tribuna: a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro antes e depois da abolição”. A partir da década de 1880, teria surgido um novo ativismo político conflitante com as estruturas dominantes do Império. A Confederação Abolicionista, fundada em 1883, teve um protagonismo destacado na conformação deste novo ativismo. De modo mais amplo, o movimento abolicionista foi um marco desse processo “não apenas porque foi determinante para a extinção da escravatura, mas porque organizou um novo tipo de atuação política, estruturada em torno da participação dos setores populares, da imprensa, das associações e dos meetings” (p. 338).
A importância das associações no abolicionismo é dos pontos centrais da argumentação de Ângela Alonso. Para a autora, haveria uma constante e crescente fundação de sociedades emancipadoras entre 1850 e 1888. Essa constatação é feita pelo levantamento na imprensa, no que é um dos pontos fortes de seu livro. De modo distinto de Cláudia Santos, esse fenômeno seria uma outra indicação da continuidade da mobilização pela abolição ao longo desse extenso período. É certo que a multiplicação de associações beneficentes e corporativas, e não apenas das destinadas a promover emancipação de cativos, foi uma característica geral da segunda metade do nosso século XIX. Entretanto, pelos próprios dados levantados, o que se nota é que, até 1869, a fundação dessas entidades foi esporádica. Fundaram-se duas em 1850 e outra em 1852. Apenas em 1857 uma nova associação foi fundada, assim como em 1859, 1860, 1864 e 1867. Somente em 1869 esse patamar deu um salto, com a fundação de sete associações emancipadoras, seguidas por 11 no ano seguinte. O número voltou a cair na sequência: cinco em 1871, três em 1872, uma por ano em 1873, 1874, 1877 e 1878. Em 1879, o número subiu com a fundação de três entidades, dando um salto nos quatro anos seguintes: 10 em 1880, 23 em 1881, 19 em 1882, e 103 em 1883! Não sabemos quais as diferenças de propósito entre essas diversas associações e se alguma mudança significativa pode ser percebida a esse respeito a partir de um dado momento. O que, no entanto, transparece desses dados é uma clara mudança de patamar na mobilização que corresponde a determinados momentos da conjuntura política. Assim, as associações surgiram no ambiente de discussão da abolição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850. Patinaram na média de menos que uma associação por ano até 1868. Em 1869, quando se dava a discussão sobre a emancipação do ventre da mulher escrava no contexto da guerra do Paraguai e da pós-abolição nos Estados Unidos, houve um salto de patamar na quantidade de associações fundadas. Esse número, entretanto, minguou nos anos seguintes, até 1879, quando voltou a subir. Esse minguar parece corroborar a tese já defendida por alguns abolicionistas e corroborada por historiadores de hoje de que a Lei do Ventre Livre apaziguou o que poderia ter sido um incipiente movimento abolicionista no Brasil. A fundação de 10 associações em 1880 indica, claramente, a propagação do movimento abolicionista, e não mais apenas pela emancipação por ações individuais, de caráter privado ou associativo, dentro dos parâmetros definidos pela lei de 28 de setembro de 1871. Em 1883, como se leu acima, o movimento abolicionista simplesmente explodiu, com a fundação de mais de uma centena associações.
Tornando-se livres e Flores, voto e balas são, em certa medida, obras complementares; a primeira enfatizando as lutas populares de libertos e escravos, a segunda, o movimento abolicionista como movimento social de caráter político. Essa é, no entanto, uma complementaridade por justaposição. Importante, sem dúvida, mas que ainda não compõe uma narrativa que mostre como, a partir de quando principalmente e em que medida as resistências e lutas escravas, o movimento social abolicionista e o movimento político se interpenetraram. A partir de perspectivas que, em larga medida, isolam essas dimensões, os dois livros propõem-se a realizar uma interpretação da Abolição. De forma mais explícita e integrada no caso de Flores, votos e balas, obra autoral, e como norte interpretativo mais geral, que guiou a organização do trabalho e a escolha dos autores em Tornando-se livres. Nesse sentido, são um grande passo na direção de ampliar as discussões sobre o significado da Abolição. As críticas aqui expostas não apontam falhas nas obras consideradas; são críticas de interpretação. Dessa forma, vêm no sentido de enriquecer o debate que Flores, votos e balas e Tornando-se livres, em boa hora, reabrem.
1Essa escolha não implica em qualquer juízo de valor sobre a qualidade dos capítulos omitidos, apenas a avaliação, evidentemente sempre sujeita a contestações, de que esses capítulos são menos sujeitos à comparação aqui proposta entre as duas obras.
Ricardo Salles – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: ricardohsalles@gmail.com.
SUMMERHILL, W. R. Inglorious revolution (RH-USP)
SUMMERHILL, William Roderick. Inglorious revolution: political institutions, sovereign debt and financial underdevelopment in imperial Brazil. New Haven: Yale University Press, 2015. Resenha de: MIRANDA, José Augusto Ribas. Da rua Direita à Lombard Steet: Império do Brasil e subdesenvolvimento financeiro. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Lançado em 2015, a obra de Summerhill é um raio x de quase um século de atividade financeira e da formação do mercado de capitais no Brasil. Autor de Order against progress,1 lançado em 2003, Summerhill atua com profundo conhecimento sobre a história do Brasil imperial e grande desenvoltura para com os aspectos econômicos e financeiros do período.
Inglorious revolution possui duas grandes contribuições para a historiografia do Brasil imperial e para a própria história financeira do século 19.
A primeira grande contribuição é o tratamento intensivo e extensivo que Summerhill dispensa para os dados da atividade financeira e bancária do Brasil entre 1822 e 1889. Não se limitando a coletar os dados das fontes oficiais brasileiras e britânicas, o autor realizou um intenso trabalho de checagem cruzada de dados, no intuito de oferecer um conjunto de dados mais refinado e menos distorcido. Contando com os extensos trabalhos prévios de Liberato Carrera2 e Maria Barbara Levy,3 Summerhill reconstruiu a trajetória financeira do Império por meio de um conjunto de dados bem elaborado, indispensável para o pesquisador da temática.
A segunda e mais pertinente contribuição foi a grande pergunta do trabalho. Por que o Império do Brasil, que possuía uma trajetória exemplar no mercado de capitais interno e externo, não conseguiu criar um mercado de capitais privado dinâmico, propulsor do desenvolvimento manufatureiro e industrial, como assistido nas economias industriais do Atlântico norte?
A pergunta de Summerhill tem um ponto de partida claro. Em Constitutions and commitment: the evolution of institutions governing public choice in seventeenth-century England,4 North e Weingast analisam a consolidação da dívida pública inglesa após a revolução gloriosa de 1688 e os efeitos da limitação constitucional ao poder do soberano na formação do mercado de capitais britânico, o mais importante até inícios do século 20. Partindo desse trabalho, o autor se propõe a pergunta: Por que o Brasil, que alcançou um estágio similar ao inglês, e único na América Latina, de cometimento com sua dívida pública, não conseguiu desenvolver um mercado de capitais dinâmico no setor privado?
O Brasil foi um caso de sucesso na América Latina tendo em vista a condução de sua dívida pública. Para além da boa reputação construída em Londres, onde contratou 19 empréstimos entre 1824 e 1889, o Império conseguiu fazer bom uso de seus credores internos, principalmente a partir da abolição do tráfico de escravos em 1850. Boa parte da dívida pública imperial foi contratada nas praças comerciais do Rio de Janeiro, onde fazendeiros e capitalistas encontraram nas apólices e títulos do Tesouro um investimento rentável e seguro. A credibilidade construída ao longo do período de vida do Império rendeu-lhe bons frutos. A partir de meados do século 19, o Império possuía condições de contratar empréstimos competitivos, oferecendo baixo risco aos investidores nacionais e estrangeiros. Todavia, o setor bancário foi submetido a um forte controle estatal, e a abertura de empresas de sociedade anônima encontrou muitas dificuldades em canalizar o capital doméstico, em um curso natural de alocação dos recursos para os setores produtivos.
O livro é dividido em oito capítulos. Nos primeiros quatro capítulos, o autor dedica-se a analisar a construção da credibilidade do Império nos mercados financeiros. Tanto em Lombard street quanto na rua Direita, a política de cometimento do Império em cumprir os serviços da dívida legaram ao país um histórico positivo e condições competitivas para contratar novos empréstimos. A constituição de 1824 legou ao Estado imperial mecanismos de controle sobre a dívida pública, uma vez que empréstimos nacionais e estrangeiros só poderiam ser contratados mediante aprovação da Câmara dos Deputados. Com o voto censitário, os deputados respondiam diretamente aos seus eleitores no tocante aos cuidados para o serviço da dívida. Esse eleitorado, composto por fazendeiros e homens de cabedais, era justamente o detentor das apólices e títulos de curto prazo da dívida pública, tornando o serviço da dívida algo necessariamente conectado com a formação das instituições políticas do Império, em especial no Segundo Reinado. No tocante à dívida externa, nos momentos de necessidade do erário imperial, acorrer a Londres para buscar empréstimos a preços competitivos fornecia mecanismos alternativos para contornar o crônico déficit orçamentário do Império, evitando aumentos de impostos e, acima de tudo, a emissão de papel moeda pelo Banco do Brasil, que poderia resultar em um intenso processo inflacionário, erodindo o retorno dos papéis nacionais pagos em mil reis, armazenados nas escrivaninhas e cofres da elite imperial.
Esse entrelaçamento de interesses entre o serviço das dívidas interna e externa por meio do arranjo político da monarquia constitucional brasileira dotou o Império de uma trajetória ímpar no continente quanto à credibilidade e à força de um mercado de capitais internos voltados para alimentar o voraz erário imperial.
A segunda parte do livro aborda os motivos pelos quais essa mesma solidez institucional que transformou o Brasil em um dos melhores pagadores do século 19 falhou em fomentar um mercado de capitais apto ao desenvolvimento de um setor privado pujante e competitivo como nas economias industriais do Atlântico norte.
Summerhill coloca como central a dificuldade em se criarem empresas de capital aberto para canalizar recursos em prol de atividades produtivas, a luta eterna do empreendedor Irineu Evangelista de Souza, o visconde de Mauá. Apesar do novo código comercial de 1850 já prever a formação de empresas em sociedade anônima e sociedade comandita com ações, os entraves para a abertura dessas empresas tornavam a tarefa um tortuoso caminho. O código de 1850 fora reformado em 1860 com a exigência de aprovação na Câmara, no Senado e no Conselho de Estado para abertura de empresas de sociedade anônima. Essas exigências tornaram a abertura dessas empresas uma tarefa muito mais política de lobby parlamentar do que uma simples ação administrativa, como na Grã Bretanha após a aprovação do Joint Stock Act e do Limited Liability Act de 1854 e 1855.
Com esse intenso sufoco burocrático, os bancos também sofreram grandes limitações para operar no Brasil. Conhecidos como agentes catalisadores do desenvolvimento industrial no Atlântico norte por sua capacidade de canalizar recursos e oferecer investimentos atrativos, os bancos no Brasil ficaram à sombra do gigantismo do Banco do Brasil, considerado uma ferramenta de estabilização monetária às mãos do ministro da Fazenda.
Aqui reside a resposta à pergunta inicial do livro. Summerhill aponta dois grandes motivos para o gargalo burocrático imposto à iniciativa privada do Império ante tão favorável quadro das finanças públicas. O primeiro deles era justamente o desenvolvimento adequado do mercado de capitais internos. Essa disponibilidade de capitais no país, em especial após o fim do tráfico de escravos, foi canalizada com maestria pelo Estado imperial para suas apólices e títulos de curto prazo. De fato, durante o Império, boa parte da dívida pública era composta por empréstimos nacionais, capital este que deveria ser redimensionado para os cofres públicos em detrimento do setor privado. As dificuldades impostas na abertura de empresas em sociedade anônima e novos bancos tornavam as respeitáveis apólices do Tesouro imperial um investimento muito mais atrativo e seguro para o fazendeiro e o rentista. O segundo motivo seria uma necessidade do Império em controlar quais áreas e quais empresas deveriam receber novos investimentos com permissões de funcionamento. Assim, o establishment imperial poderia dar prioridade a projetos de maior interesse político das classes atreladas ao gabinete, como ferrovias específicas e mesmo o todo poderoso Banco do Brasil.
A obra de Summerhill oferece respostas de peso para perguntas fundamentais na história e no presente econômico no Brasil. Por que o país falhou em gerar uma classe empreendedora e não conseguiu canalizar os vastos recursos presentes no país para projetos produtivos? A força analítica em Inglorious revolution, todavia, quando exposta em carne viva, pode afastar os leitores menos acostumados às profundezas da análise estatística. O livro encerra com dois apêndices com dados estatísticos trabalhados à exaustão, difíceis de serem depreendidos por leitores menos experientes. As análises de credit-risk e de retorno esperado e efetuado dos empréstimos (ex ante e ex post) também demandam maior entendimento de análise estatística por parte do leitor.
Apesar de certas partes de duro entendimento, os pontos fundamentais de Inglorious revolution são claros e assertivos. Summerhill conseguiu trazer um estudo profundo sobre questões primordiais na história econômica do Brasil, utilizando seu passado imperial como caso, captando as contradições entre a grande obra das finanças do Império e a sua maior falha.
Referências
CARREIRA, Liberato de Castro. Historia financeira e orçamentária do Império do Brazil desde a sua fundação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. [ Links ]
LEVY, Maria Bárbara. The Brazilian public debt – domestic and foreign 1824-1913. In: LIEHR, Reinhard (ed.). La deuda pública en América Latina en perspectiva histórica. [The public debt in Latin America in historical perspective]. Frankfurt am Main; Madri: Vervuert ; Iberoamericana, 1995, p. 209-256. [ Links ]
LEVY, Maria Bárbara & ANDRADE, Ana Maria Ribeiro. El sector financiero y el desarrollo bancario en Río de Janeiro (1850-1888). In: TEDDE DE LORCA, Pedro & MARICHAL, Carlos (org.). La formación de los bancos centrales en España y América Latina : (siglos XIX y XX). Madri: Banco de España, Servicio de Estudios, 1994, p. 61-83. (Estudios de historia económica ; …). [ Links ]
NORTH, Douglass Cecil & WEINGAST, Barry R. Constitutions and commitment: the evolution of institutions governing public choice in seventeenth-century England. In: ALSTON, Lee J.; EGGERTSSON, Thrainn; NORTH, Douglass C. (ed.). Empirical studies in institutional change. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. [ Links ]
SUMMERHILL, William Roderick. Inglorious revolution: political institutions, sovereign debt and financial underdevelopment in Imperial Brazil. New Haven: Yale University Press, 2015. [ Links ]
__________. Order against progress: government, foreign investment, and railroads in Brazil, 1854 – 1913. Stanford: Stanford Univ. Press, 2003. [ Links ]
1SUMMERHILL, William Roderick. Order against progress: government, foreign investment and railroads in Brazil, 1854 – 1913. Stanford: Stanford Univ. Press, 2003.
2CARREIRA, Liberato de Castro. Historia financeira e orçament á ria do Império do Brazil desde a sua fundação . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
3LEVY, Maria Bárbara. The Brazilian public debt – domestic and foreign 1824-1913. In: LIEHR, Reinhard (ed.). La deuda pública en América Latina en perspectiva histórica [The public debt in Latin America in historical perspective]. Frankfurt am Main; Madri: Vervuert; Iberoamericana, 1995, p. 209-256; LEVY, Maria Bárbara & ANDRADE, Ana Maria Ribeiro. El sector financiero y el desarrollo bancario en Río de Janeiro (1850-1888). In: TEDDE DE LORCA, Pedro & MARICHAL, Carlos (org.). La formación de los bancos centrales en España y América Latina : (siglos XIX y XX). Madri: Banco de España, Servicio de Estudios, 1994, p. 61–83.
4NORTH, Douglass Cecil & WEINGAST, Barry R. Constitutions and commitment: the evolution of institutions governing public choice in seventeenth-century England. In: ALSTON, Lee J.; EGGERTSSON, Thrainn; NORTH, Douglass C. (ed.). Empirical studies in institutional change. Cam bridge: Cambridge University Press, 1996.
José Augusto Ribas Miranda – Mestre e Doutor em História pela Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail:joseribas50@hotmail.com.
Um editor no império: Francisco de Paula Brito (1809-1861) | Rodrigo Camargo Godoi
Este retrato de corpo inteiro de Francisco de Paula Brito que Rodrigo Camargo de Godoi nos proporciona ilumina aspectos sociais, culturais e políticos da sociedade brasileira do século XIX. No bem-sucedido esforço de estabelecer a genealogia de Paula Brito, o livro recua ao século XVIII nos fornecendo informações relevantes sobre casamentos entre pessoas livres de cor e sua inserção em determinado substrato da população por meio de suas ocupações: o avô, ourives e capitão; o pai, carpinteiro e senhor de pequeno engenho; o primo, livreiro e encadernador. Figuram também mulheres, como a bisavó escrava que ganhara a liberdade depois de ter tido um filho com seu senhor e que, aos 40 anos, vivia de “sua própria obra”. Se, nesse caso específico, não é clara a ocupação, o fato de ter sido alfabetizado pela irmã e de uma de suas filhas ter se tornado professora, inserem Paula Brito em um estrato social modesto no qual, como demonstra Godoi, havia plena consciência do papel da educação como estratégia de inserção no mundo, inclusive para as mulheres. Leia Mais
El Caso Morillo: crimen/locura y subjetividad en la España de la Restauración | Ricardo Campos
Com certa frequência alguns casos de violência acabam tomando os meios de comunicação e comovendo a sociedade de modo a desencadear novas ou velhas polêmicas. Muitas vezes, o caso atinge proporções maiores e passa a ser discutido também nos meios acadêmicos, no ambiente familiar e nos mais diversos ambientes. Diferentes sujeitos, partindo de diferentes esferas da sociedade, apresentam seu ponto de vista a fim de rotular o autor do crime: Seria ele um louco? Um desfavorecido socialmente? Um herói? Ou simplesmente uma pessoa má? Leia Mais
Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina – MARTÍNEZ-PINZÓN; URIARTE (A-RAA)
MARTÍNEZ-PINZÓN, Felipe; URIARTE, Javier (Editores). Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2016. Resenha de: JARAMILLO, Camilo. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.27, jan./abr. 2017.
“En el principio fue la guerra y todo en América Latina tiene la marca de esa experiencia bélica fundacional, el big-bang que habría hecho posible la independencia, naciones, realidades políticas, [y] soberanías” (p. 88). Esta certera oración, escrita por Álvaro Kaempfer en la colección de ensayos que este texto reseña, es la idea estructural del reciente libro editado por Felipe Martínez-Pinzón y Javier Uriarte, Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Aunque informado por discusiones políticas e históricas, Entre el humo y la niebla busca reflexionar, sobre todo, y como su título lo dice, acerca del campo de las representaciones culturales y las maneras en las que estas han pensado y teorizado la guerra y, de paso, reforzado o desestabilizado lo que se entiende por ella. Al enfocarse en la literatura, la fotografía u otras formas de prácticas culturales, el libro llena un vacío en la producción académica latinoamericana, a la vez que extiende el diálogo con otras publicaciones de algunos de los autores también incluidos en la colección de ensayos, como los de Julieta Vitullo, Martín Kohan y Sebastián Díaz-Duhalde1. Uno de los hallazgos fundamentales del libro está en trascender la idea de la guerra como acto político e histórico y preguntar, como lo hacen los editores, “de qué hablamos cuando hablamos de guerra” (p. 24). Así, pensada a partir de sus representaciones culturales, la guerra se revela como una maquinaria cultural que moviliza las maneras en las que se entienden y construyen los espacios: la guerra, nos convence este libro, es un acto de espacialización. Estas representaciones permiten entender la guerra como una maquinaria y “epistemología estatal” (p. 11), y pensar las continuidades y similitudes entre los actos de hacer la guerra y constituir el Estado. Pero, sobre todo, y este es uno de los puntos neurálgicos del libro, se revela la guerra como laboratorio de representación y de ficción que lleva a los límites al lenguaje, a la forma y a sus significados: nos presenta la guerra como una “tecnología discursiva” (p. 5). Al hacer todo esto, Entre el humo y la niebla señala un corpus de representaciones culturales sobre la guerra y consolida un inicio para pensar el tema como eje de la cultura del continente.
El punto de partida es, más que la definición, la discusión de la indefinición del concepto de guerra y la delimitación de lo que se entiende por ella. Los editores parten de la idea de esta como “práctica militar y discursiva que da forma a la existencia/inexistencia del Estado-Nación moderno” (p. 12) y proponen “pensar la guerra como manera de entender las dinámicas de poder que constituyen el Estado, y que espacializan la geografía imaginada de las naciones y las regiones que componen América Latina” (p. 26). Este posicionamiento sobre lo que se entiende por guerra se amplía y complica a lo largo de los catorce ensayos mediante una reflexión sobre la cercanía de la guerra con la idea de la revolución (ver, por ejemplo, los ensayos de Juan Pablo Dabove y Wladimir Márquez-Jiménez incluidos en el libro), y se problematiza con reflexiones sobre esa nueva forma de hacer guerra como “condición permanente” (p. 10) entre Estados y sujetos en conflicto continuo, como es el ejemplo que expone el ensayo de João Camillo Penna sobre las favelas de Río de Janeiro. A través del recorrido de los ensayos presentes en la edición queda en evidencia la variedad de formas en las que la guerra se ha manifestado en Latinoamérica y, de ahí, su dificultad para teorizarla. A propósito de esto, Entre el humo y la niebla, aunque no la contesta, prepara el terreno para una pregunta por la transformación radical de la idea de guerra en los Estados neoliberales contemporáneos (y la transformación de la idea de Estado como tal) atravesados, en el caso particular de Colombia y México, por la guerra contra el narcotráfico.
Frente a la relación entre la guerra y el Estado, los editores se preguntan “si hacer estado es hacer la guerra” (p. 23) y señalan el acto bélico como una de las maneras más emblemáticas de visibilidad y praxis de este. Pensando en las maneras en las que se visibiliza y teoriza la guerra, cabe resaltar el ensayo de Álvaro Kaempfer, “El crimen de la guerra, de J. B. Alberdi: ‘Sólo en defensa de la vida se puede quitar la vida'”, que ofrece un análisis de cómo esta, constituida como excepción, termina, sin embargo, volviéndose la “matriz política, económica, social y cultural” del continente (p. 86). El ensayo, a través de un análisis del discurso político de Alberdi, identifica uno de los posibles precedentes para pensar la guerra desde y para Latinoamérica. Extendiendo la reflexión sobre el estado de excepción como categoría constitutiva del poder del Estado, aparece y reaparece a lo largo de los ensayos la teorización de la guerra alrededor de las teorías de biopolítica y excepcionalidad de Giorgio Agamben, resaltadas a partir de estudios sobre la animalidad y sobre criaturas umbrales que señalan los límites entre el ser social y el ser animal (ver, por ejemplo, los ensayos de Gabriel Giorgi y Fermín A. Rodríguez). Las reflexiones de Entre el humo y la niebla invitan a pensar la guerra como mecanismo para constituir, garantizar, manipular y abusar el pacto social entre el Estado y el ciudadano, y revelar así su contradictoria operación desde la normatividad y la prevalencia de sus, sólo en apariencia, momentos de excepción. La literatura se presenta entonces, ante esto, como índice de denuncia y reflexión sobre esta contradicción.
La guerra es también una cuestión de espacio: “Guerrear es […] reconocer, mirar, distinguir, ubicarse en el espacio, en ocasiones para apropiarlo, en otras para destruirlo, a veces para ‘liberarlo’, o para volverlo mapeable, legible” (p. 14). No en vano, la geografía es un conocimiento que resulta del ejercicio de “guerrear”, verbo que “crea el mismo espacio que quiere conquistar” (p. 15). En relación con esto, Martín Kohan analiza en su ensayo que la guerra -el texto sobre la guerra- se convierte, sobre todo, en una experiencia en y sobre el espacio; la guerra se transforma en un asunto inaudito de percepción, distancia, movilidad, visibilidad e invisibilidad, en donde la expresión de pronto encima articula la acción como experiencia y entendimiento del espacio y la (im)posibilidad de ver o no en él. En la lectura que hace Kohan de La guerra al malón (1907) y de Conquista a la Pampa (1935, póstumo) del comandante Manuel Prado, la guerra no es una experiencia bélica sino un factor que determina la representación de la Pampa y la negociación con esta. Por otra parte, en “La potencia bélica del clima: representaciones de la Amazonía en la Guerra con Perú (1932-1934)”, Felipe Martínez-Pinzón piensa la guerra como una práctica que se ejerce contra el espacio mismo. Así, la guerra aparece como mecanismo de integración de la selva al imaginario y a la economía de la nación, y como recuperación de un espacio-tiempo que amenaza con corroerlo todo. Guerrear es así, también, ordenar y rescatar. Del ensayo de Martínez-Pinzón hay que resaltar la inclusión y el análisis de una mirada poco frecuente en la literatura, aquella que se da desde el avión. También como maquinaria de guerra, el avión posibilita otra manera de relacionarse y dominar el espacio. Contrario al de pronto encima que analiza Kohen, el avión es una manera de hacer, de ver y de espaciar la guerra desde la distancia, una distancia que ayuda a obnubilar y desaparecer la ética que se pone en juego en la guerra. (Para más sobre la relación entre guerra y espacio, ver el ensayo de Kari Soriano Salkjelsvik incluido en el libro).
La guerra es también maquinaria de tiempo: aparece, por ejemplo, en la emergencia de las ruinas tras la guerra de Canudos, que analiza Javier Uriarte; en las fotografías que son índice de muerte, en el ensayo de Sebastián J. Díaz-Duhalde, o en el tiempo corroedor de la selva que se contrasta con el tiempo productivo de la nación, y hasta en el de pronto encima que trabaja Kohen. Pero si bien Entre el humo y la niebla deja claro que la guerra es cuestión de espacio, deja abiertas preguntas sobre la guerra como un mecanismo que impone, produce u oculta ciertas temporalidades. Cabría preguntarse, entonces, por cuál es la temporalidad de la guerra y por el tipo de temporalidades que impone. En el discurso de la nación, la guerra hace parte de la puntuación de la Historia, y, junto con sus formas de ejercitar poder y de crear espacios y geografías, impone una narrativa de tiempo en aquello que Benjamin llama “a homogeneous, empty time” (2014, 261). Visto así, la guerra produce y participa de una cierta idea (hegeliana) del tiempo como Historia, de la cual habría que generar una distancia crítica. Por otra parte, el trauma de la guerra se recuerda, no sólo en la conmemoración del museo, como lo analiza M. Consuelo Figueroa G. en su ensayo sobre la celebración de guerras en Chile, sino como memoria traumática que se personaliza, se revive, se recuenta, se negocia, y en su proceso se fragmenta en la temporalidad del yo.
Pero más allá de la reflexión sobre el Estado, el espacio o el tiempo, el epicentro del libro está en lo que, imitando las palabras de los editores, la guerra le hace al lenguaje. Uno de los más sólidos aportes del libro radica en la propuesta de la guerra como mecanismo de reflexión sobre la representación y como laboratorio de producción literaria. Como explican los editores, la guerra, “a la vez que produce lenguaje y es producida por el lenguaje, lo trastoca, lo cambia, transformando a quienes nombra o deja de nombrar” (p. 25). En otras palabras, la guerra nos acerca al límite del lenguaje y de la representación, a “su indecibilidad e inestabilidad” (p. 25). Es por eso que la guerra, como tal, casi no está. Está su antes, su después, su espera o su mientras tanto, pero no la guerra en su bulla y su acción. De ahí, entonces, que la guerra sea aquello que está entre el humo y la niebla, en esas zonas difusas que la guerra quiere aclarar, y entre esos humos que deja la batalla: “el Estado concibe la guerra como una disipación de zonas de niebla que distorsionan su mirada al permanecer impenetradas por ella” (p. 8). Pero a su vez, “el humo […] es también la huella, el trauma, el conjunto de los discursos que acompañan y suceden al conflicto” (p. 9).
A los límites del lenguaje y de lo indecible nos lleva el ensayo de Javier Uriarte sobre Os sertões (1902) de Euclides da Cunha, incluido en Entre el humo y la niebla. En su lectura sobre los acontecimientos de Canudos, en Brasil (1897), la guerra emerge como una lucha con el lenguaje y la imposibilidad de este de decir, de dar cuenta de. Dice el autor:
Creo que el logro más importante de Os sertões no radica en las férreas certezas del narrador, sino en el derrumbe de las mismas. Se trata de la textualización de una incomprensión: es el dejar de reconocerse o el reconocerse como otro, como incapaz de entender del todo, el desnudar la guerra como imposibilidad de la mirada. Al mismo tiempo que hace presente este límite y reconoce la insuficiencia de la mirada del narrador, Os sertões presenta la lucha de este último con su propia capacidad de decir. Es en gran medida un libro sobre el propio lenguaje llevado a sus límites máximos, en lucha consigo mismo. (p. 139)
En la narrativa cultural de Brasil, la guerra de Canudos marca un antes y un después. El texto de da Cunha desestabiliza y redefine la manera en la que la nación se piensa en el siglo XX. Es, se puede decir, el temprano antecedente sine qua non del modernismo brasilero y la redefinición de su identidad poscolonial moderna. Al identificar la guerra como un momento en el que el lenguaje entra en crisis, Uriarte apunta, aunque no lo diga, a la guerra como el momento en el que se forja la reinvención del lenguaje del Brasil moderno. Esto, más que organizar la historiografía literaria de Brasil, alerta sobre el poder de la guerra de desmantelar y reinventar un lenguaje para el Estado, la nación y su identidad. En otras palabras, la guerra es laboratorio de la nación y de su lenguaje. Esto también lo extiende el ensayo de Roberto Vechi incluido en el libro.
A los límites del lenguaje y de la voz también nos lleva el ensayo de Gabriel Giorgi, “La rebelión de los animales: cultura y biopolítica”. En su lectura de la voz animal -la voz y su sentido distinguen y conceden el reconocimiento político del cuerpo-, Giorgi nos lleva a un análisis del lenguaje en la guerra por partida doble. Por un lado, su enfoque vuelve al animal y a su voz para complicar las fronteras de la inscripción política y de la soberanía, y por otro, reflexiona sobre la cualidad del lenguaje en la guerra y los límites de su decibilidad. En otras palabras, nos lleva a pensar en el aullido de guerra y su in/constancia como lenguaje de la batalla y en la batalla. Dice Giorgi que:
[…] en los textos de las rebeliones animales, ese espacio de incertidumbre en torno a lo oral es una zona poblada de ruidos, aullidos, gruñidos, que marca el límite no ya entre el lenguaje y no lenguaje, sino el umbral de la virtualidad del sentido; del sentido como inmanencia, como pura potencialidad. La pregunta ahí no es ¿quién habla? o ¿quién tiene derecho a hablar? sino, más bien, ¿qué es hablar? o ¿qué constituye un enunciado? (p. 210)La guerra, pues, se presenta como momento de rearticulación de la voz, el lenguaje, y rearticulación de las políticas que determinan su legibilidad y sentido.
Me interesa resaltar el ensayo de Sebastián J. Díaz-Duhalde, “‘Cámara bélica’: escritura e imágenes fotográficas en las crónicas del Coronel Palleja sobre el Paraguay”. Este ensayo introduce la cultura visual como parte fundamental del corpus de representaciones culturales sobre la guerra. Como rastro de la muerte, la fotografía visibiliza la guerra sólo cuando esta ya no está; aparece, como dice el autor del ensayo, “como un resto” (p. 64). Es decir, aunque la hace visible, al registrar eso que ya no está presente, la ubica de nuevo en el humo y en una ambigua categoría temporal. Por otra parte, el ensayo de Díaz-Duhalde extiende la reflexión sobre los límites de la representación al proponer que en los escritos del coronel Pallejas, la fotografía entra a renovar y transformar el discurso narrativo, generando un “nuevo sistema representacional” (p. 74) en el que el lenguaje “echa mano de procedimientos fotográficos para ‘hacer visible’ la guerra” (p. 69); de nuevo, la guerra como laboratorio de una literatura que busca salirse de sus convenciones. En relación con la cultura visual y el campo de los estudios interdisciplinares, habría que notar la ausencia en el libro de estudios sobre la guerra en el cine. Películas como La hamaca paraguaya de Paz Encina (2008), sobre la guerra del Chaco; La sirga de William Vega (2013), sobre el conflicto armado colombiano, o incluso Tropa de élite de José Padilha (2007), sobre las favelas de Río de Janeiro, son algunos ejemplos de producciones fílmicas que en los últimos diez años han pensado la guerra, la violencia y la nación en formas similares a las que los ensayos de Entre el humo y la niebla elaboran críticas del tema. Queda la pregunta abierta: ¿cómo ha aparecido la guerra en el cine latinoamericano?
Los aciertos de Entre el humo y la niebla son muchos. El libro está informado por, y a la vez extiende, debates contemporáneos relacionados con la soberanía del Estado y sus límites, la biopolítica, los estudios animales y, en general, sus reflexiones sobre el rol de la literatura y los estudios literarios para darles continuación o interrupción a los aconteceres políticos del continente. La capacidad de la literatura como herramienta que obliga a generar una distancia crítica frente a la guerra, y de paso, también, frente a los discursos nacionalistas se ve con claridad en el ensayo de Julieta Vitullo sobre la guerra de las Malvinas (de 1982) incluido en Entre el humo y la niebla: “La guerra contenida: Malvinas en la literatura argentina más reciente”. Vitullo afirma, por ejemplo, que “la ficción se impuso como interrupción de los discursos sociales y mediáticos sobre la guerra, constituyéndose como saber específico, con estatuto y reglas propias” (p. 272). El libro, editado por Felipe Martínez-Pinzón y Javier Uriarte, identifica un corpus de producciones corporales y consolida un campo de estudio amplio, sólido y relevante. El libro expone y desarrolla aquello que indica Vitullo: las representaciones culturales se constituyen como un saber específico que nos obliga a generar una distancia crítica respecto al fenómeno de la guerra y sus consecuencias. El libro es, pues, un punto de partida clave para el campo de estudios que inaugura.
Notas
1Me refiero a los libros Islas imaginadas: la guerra de las Malvinas en la literatura y el cine argentinos (2012) de Julieta Vitullo, El país de la guerra (2015) de Martín Kohan y La última guerra: cultura visual de la guerra contra el Paraguay (2015) de Sebastián Díaz-Duhalde
Referencias
Benjamin, Walter. 2014. “Theses on the Philosophy of History”. En Illuminations: Essays and Reflections, 253-267. Nueva York: Schocken Books. [ Links ]
Díaz Duhalde-Sebastián. 2015. La Última Guerra. Cultura Visual de la Guerra contra Paraguay. Buenos Aires y Barcelona: Sans Soleil Ediciones. [ Links ]
Kohan,-Martín. 2014. El país de la guerra. Buenos Aires: Eterna Cadencia. [ Links ]
Martínez Pinzón -Felipe y Javier Uriarte, eds. 2016. Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana. [ Links ]
Vitullo-Julieta. 2012. Islas imaginadasLa Guerra de Malvinas en la literatura y el cine argentinos. Buenos Aires: Corregidor [ Links ]
Camilo Jaramillo – Profesor de Spanish and Latin American Literature, Universidad de Wyoming. Entre sus últimas publicaciones están: “Green Hells: Monstrous Vegetations in 20th-Century Representations of Amazonia”. En Plant Horror: Approaches to the Monstrous Vegetal in Fiction and Film, editado por Angela Tenga y Dawn Keetley, 91-109. Palgrave Macmillan, 2017. camilojaramilloc@gmail.com
[IF]Filogênese na metapsicologia freudiana – CORRÊA (C-FA)
CORRÊA, Fernanda Silveira. Filogênese na metapsicologia freudiana. Campinas: Editora Unicamp, 2015. Resenha: SILVEIRA, Léa. Freud e o peso do gelo. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.22, n.1, jan./jun., 2017.
Su, straniero, ti sbianca la paura!
E ti senti perduto!
Su, straniero, il gelo che dà foco,
che cos’è?
(Turandot, ópera de G. Puccini, libreto de G. Adami e R. Simoni)
Conhecemos bem a advertência com que V. Goldschmidt encerra seu ensaio sobre o tempo na interpretação de sistemas filosóficos, aquela que se refere ao recurso a textos póstumos no estudo da história da filosofia. Para se situar no tempo lógico e assim pretender alcançar o movimento e a estrutura do pensamento, o intérprete deve privilegiar a “obra assumida” e se precaver contra o perigo de camuflar a obra publicada a partir de argumentos apenas manuscritos. “Notas preparatórias, onde o pensamento se experimenta e se lança sem ainda determinarse”, ele escreve, “são léxeis sem crença e, filosoficamente, irresponsáveis; elas não podem prevalecer contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la, ou coroá-la, e desse modo, falseá-la” (Goldschmidt, 1970, p.147). Ora, nenhum preceito poderia talvez ser mais equivocado, em termos de método de leitura, quando se trata de ler Freud. Se bem que seja controversa a possibilidade de aplicação de uma metodologia estrutural stricto sensu à obra freudiana, certo é que, concordando-se ou não com tal possibilidade, ninguém negaria hoje a importância de se considerar o famoso Projeto de uma psicologia, seja qual for o viés de leitura que se imprima ao lugar dessa consideração, para a compreensão do pensamento de Freud. Quer se trate de traçar a gênese dos conceitos da metapsicologia, de recuperar o movimento pelo qual Freud direcionou seus esforços iniciais para conferir inteligibilidade à neurose, ou mesmo de compreender algumas das diretrizes implicadas em sua ontologia do psíquico, nenhuma dessas discussões filosóficas maiores relativas à psicanálise poderia hoje, é seguro dizer, passar ao largo desse rascunho de 1895, descoberto na correspondência endereçada a W. Fliess e publicado pela primeira vez apenas em 1950, mais de dez anos após a morte de Freud. Muito provavelmente essa afirmação seja tomada como algo bastante trivial. O que talvez não seja trivial ou muito veiculado é que temos desde 1985 acesso a um segundo rascunho póstumo de Freud (1987). Ou, à guisa de afirmação menos inflada, talvez não seja muito conhecido o alcance do conteúdo desse segundo rascunho em sua obra, o que coloca, por si só, uma questão curiosa e bem legítima: será que há algo nele que incomoda os leitores de Freud? Conteria ele elementos de um pensamento que não se quer reconhecer como freudiano? Não pretendo responder a essa pergunta aqui, mas fato é que não é comum ver as pesquisas sobre a teoria freudiana, mesmo aquelas empreendidas no âmbito da filosofia, enfrentarem a tão espinhosa hipótese filogenética exposta sistematicamente neste que seria o décimo segundo artigo metapsicológico, mas presente de um modo mais ou menos fragmentado ao longo de toda a obra.
Insisto no ponto. Freud é um pensador célebre, entre tantas coisas, por ter escrito obras ousadas. Apesar disso, por vezes nos esquecemos do que deve ter sido, para um neurologista formado no século XIX no modelo anátomo-patológico da Universidade de Viena, publicar um livro voltado para a defesa da existência de um sentido nos sonhos e para a apresentação de um método que permitiria alcançá-lo. Ou, para alguém que tentava instaurar e consolidar um novo campo de saber e de prática, apresentar em 1905 não apenas uma defesa da existência da sexualidade infantil (o que já não era original), mas a defesa de que as características dessa sexualidade seriam distintas da sexualidade adulta, sustentando que os comportamentos sexuais desviantes – chamados à época “perversos”, listados e classificados na Psychopathia sexualis, de Krafft-Ebing 1 – seriam, não uma degenerescência, mas nossa condição de partida. O que dizer então da defesa de que a origem da cultura residiria no assassinato do pai de agrupamentos humanos arcaicos e, por essa via, de que o sentimento de culpa estaria instalado no cerne daquilo que somos hoje e desde sempre como civilização? Reconhecido o caráter prima facie insólito destas e de tantas outras formulações freudianas, esse reconhecimento não nos impede de dizer que aquela dentre as teses de Freud que tem todos os pré-requisitos para ser qualificada com o virtuosismo desse apanágio, o da ousadia, e que está profundamente vinculada a esta última pergunta (sobre a origem da cultura), permanece pouco debatida.
A hipótese filogenética é todavia onipresente em sua obra, como uma espécie de novelo cujo fio poderia nos ajudar a sair do labirinto ou fazer com que nos percamos ainda mais nele.
Isso não significa, obviamente, que não haja uma bibliografia relevante sobre o tema. Ela apenas não deixa de soar marginal quando temos em vista o vigor e a amplitude da pesquisa que se faz sobre a psicanálise freudiana. No próprio momento em que o rascunho veio à luz, I. Grubrich-Simitis, que o descobriu 2, transcreveu e editou, o fez ser acompanhado de um importante ensaio (1985), mais de apresentação e contextualização do que de interpretação. Em datas anteriores à descoberta do manuscrito, J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1988) dedicaram à questão das fantasias originárias, que é uma questão vinculada à hipótese filogenética, um comentário que está no centro de toda uma compreensão da reflexão freudiana e F. Sulloway (1992) trouxe um encaminhamento que se distancia bastante da leitura dos psicanalistas franceses numa tentativa de fortalecer a defesa de que Freud seria, antes de tudo, um biólogo. Entre nós, o texto de L. R. Monzani (1991) é um elemento incontornável do debate e o monumental Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan (1985), apresenta elementos e análises que convergem para a tese de que a hipótese filogenética deve ser compreendida, antes de mais nada, como uma fantasia de Freud, fantasia que seria, de seu ponto de vista, prescindível para a teoria psicanalítica.
Mas a nenhum desses textos pode ser atribuído o objetivo de explorá-la até o fim e de uma maneira interna – isto é, considerando-se as premissas e as elaborações que encontramos na própria pena de Freud. Esse é, a meu ver, o principal mérito do livro A filogênese na metapsicologia freudiana : a autora, Fernanda Silveira Corrêa, enfrenta essa questão e o faz até extrair as últimas consequências das teses assumidas por Freud a esse respeito, sem deixar de vinculá-las a um contexto teórico mais vasto.
O que é a hipótese filogenética? Grosso modo, trata-se do lugar para onde converge a ideia de que as neuroses testemunham o desenvolvimento psíquico da espécie humana, ou, da raiz e fundamento, para emprestar uma expressão do breve ensaio sobre Totem e tabu de G. Lebrun, da seguinte ideia: “o primitivo é o arquivista do original, o neuropata é o seu hermeneuta ” (Lebrun, 1983, p.98). No manuscrito encontrado em 1983, ela é chamada a responder pela origem da fixação da libido, a qual constitui uma disposição que contribui decisivamente para a determinação da neurose. Ocorre que Freud sustenta que essa fixação tanto pode ser contingente, resultante de uma história específica e individual, quanto inata. A necessidade de considerar a possibilidade de a fixação ser inata pode ser compreendida lendo-se outro texto de Freud, que é o relato do caso clínico do Homem dos Lobos. Tratase ali, entre outras coisas, da tentativa de sustentar que o coito entre os pais fora observado pela criança, tentativa que Freud arremata com um non liquet ao qual se sucede a afirmação de que ela, a observação, caso não tenha tido lugar na vida do indivíduo, foi, certamente, herdada3 Mas, então, indaga-se Freud, se a fixação pode ser inata, seria porventura possível perguntar-se pelo modo como ela se constitui exatamente como herança? Por motivos que precisariam ser considerados em outro lugar, Freud quer mostrar que o próprio inato é adquirido – se não pelo indivíduo, então pela espécie. Eis como ele apresenta esse ponto:
Onde se leva em consideração o elemento constitucional de fixação não se afasta o adquirido: ele retroage para um passado ainda mais remoto, já que se pode justamente afirmar que disposições herdadas são restos de aquisições dos antepassados. Com isso, chega-se ao problema da disposição filogenética atrás da individual, ou ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às suas disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as disposições recentes derivadas de vivências próprias (Freud, 1987, p.71).
Partindo dessa ideia, ele tenta estabelecer um paralelo entre duas séries, que são a sequência cronológica conforme a qual as neuroses surgem na vida individual (algumas eclodem caracteristicamente na primeira infância, outras na puberdade, por exemplo) e uma sequência filogenética que instalaria aquelas fixações constitutivas das disposições e que, por sua vez, seria dividida em duas gerações de indivíduos: uma que teria vivido o advento da 4 era glacial e outra posterior que teria se organizado psiquicamente por referência ao pai opressor da horda primitiva. Seriam tais os momentos desta sequência filogenética: 1a era glacial que interrompe a convivência amistosa com o meio ambiente, produzindo-se a angústia; 2a limitação da procriação decorrente da escassez de alimentos; 3o desenvolvimento da inteligência e da linguagem e a convergência dessas novas capacidades para o pai opressor; 4a efetiva castração dos filhos pelo pai; 5o estabelecimento de um laço erótico homossexual entre os filhos que teriam conseguido escapar ao domínio paterno; 6o assassinato do pai. Esses acontecimentos, vividos por nossos antepassados mais distantes, teriam sido transmitidos, como traços de memória (Freud, 2008, p.96), ao longo das gerações (sem que se encontrem, aliás, nem em Darwin nem tampouco em Lamarck, argumentos em favor da possibilidade dessa herança). Nossa neurose de cada dia seria o signo mais palpável dessa improvável transmissão.
- S. Corrêa mostra em seu livro que Freud associa aspectos centrais de sua teoria às heranças filogenéticas, tais como a vinculação entre prazer sexual e angústia, o caráter perverso-polimorfo da sexualidade humana, a erotização da dor e a disposição libidinal passivo-masoquista, o amor homossexual e o narcisismo masculino, a disposição para a mania e a melancolia. A serviço dessa investigação, a análise de cada fase filogenética exige que a autora confronte o rascunho com diversos outros textos de Freud dedicados às problemáticas que são centralizadas a cada vez, o que resulta na argumentação geral de que ele é coerente com o restante da obra, ou, dito de outro modo, de que o manuscrito não está nela como um corpo estranho. No desenvolvimento dessa conexão, a autora constrói diversas soluções próprias, que transcendem a letra de Freud sem transcenderem o espírito de seu pensamento. Vale-se em muitos momentos para isso de uma aproximação entre Freud e Nietzsche. É interessante acompanhar o modo pelo qual ela recorre à perspectiva genealógica para pensar a tensão entre a psicologia do pai primitivo e a da segunda geração, situando a psicologia dos filhos, estruturante da vida coletiva, como uma psicologia de ressentidos.
Destaco outro feito importante alcançado pelo livro de F. Corrêa. Além de indicar consistentemente a relevância do manuscrito sobre a filogênese para a compreensão de teses freudianas centrais, ele traça um vínculo teórico entre este rascunho e aquele outro de 1895, o rascunho do Projeto…
O caminho que permite à autora fazer isso passa pelo seguinte. Para sustentar que no ser humano a libido se transforma em angústia conforme um processo que, em larga medida, barra a satisfação sexual, será necessário, do ponto de vista da teoria do aparelho psíquico, supor um caminho de esforço de retomada da própria possibilidade dessa satisfação.
Quando Freud monta no Projeto…
um aparelho determinado empiricamente pelas próprias representações, isso corresponderia a uma forma de pensar o que poderia ser esse caminho, considerando-se que ele não pode ser determinado a partir de uma dimensão biológica da qual a sexualidade humana exatamente se afastou. O livro de F. S. Corrêa encontra uma articulação engenhosa – tanto mais que em 1895 a sexualidade infantil não está presente no horizonte teórico de Freud – entre, de um lado, esse processo de passagem de uma sexualidade passiva (pré-humana) que seria dada biologicamente e uma sexualidade objeto de uma construção representacional, e, de outro lado, o processo de construção ontogenética do aparelho psíquico que está no centro das preocupações do Projeto…
e que é um processo de acordo com o qual a alucinação (passiva) envolvida nas vivências originárias de satisfação e de dor deve ceder espaço para a ação. Escreve a autora, nesse sentido:
Freud então supõe duas coisas: um aparelho, por um lado, determinado por suas experiências de satisfação, passivo, no sentido de que se satisfaz com suas marcas das experiências; por outro, que tem de resgatar sua atividade, agora, não mais determinada pela ação biológica, mas pelas próprias representações. (Corrêa, 2015, p.148)
A percepção dessas relações permite à autora enveredar seu comentário para a exploração das semelhanças entre as duas fases da “história” 5 filogenética e as teorias da vivência de satisfação e da vivência de dor, bem como as consequências de se projetar retroativamente a sexualidade infantil perversa – e então o próprio conceito de fantasia – sobre as teses do Projeto…
Tudo isso lhe permite problematizar uma leitura mais convencional da teoria freudiana da cultura (muito pautada em O mal-estar na cultura ) na medida em que temos aí elementos para compreender que, para Freud, não é a cultura que conduz à inibição da sexualidade infantil, mas o contrário: “é a inibição da sexualidade infantil que propicia a energia para a civilização” (Corrêa, 2015, p.150). Essa inibição é pensada como algo determinado filogeneticamente. Isso significa que, na perspectiva freudiana, o ato sexual genital só é possível do ponto de vista psíquico como resultado da incidência dos poderes reativos (herdados) da vergonha e da repugnância. Sem eles, a sexualidade humana – na medida em que se encontrasse um caminho, para nós hoje insondável, para a reprodução da espécie – teria permanecido perversa polimorfa, tal como exigido pela era glacial.
Não apenas a inibição da sexualidade infantil teria origem filogenética, mas a própria sexualidade infantil em sua peculiaridade. Na primeira fase da sequência filogenética, explica a autora, a era glacial dá origem à angústia de anseio.6 “O eu, ameaçado em sua existência (…) absteve-se do investimento dos objetos sexuais e transformou a libido sexual em angústia, temendo ainda mais o real. Não se trata de uma perda do objeto, mas sim da abstenção do investimento deste” (Corrêa, 2015, p.110). Freud se referiria aqui, desse modo, a uma perda que seria anterior à própria vivência de satisfação e diria respeito a uma ruptura inaugural do ser humano com a função sexual biológica, estabelecendo-se um laço intrínseco entre pulsão 7 sexual e angústia. Essa ruptura inicial, filogenética, teria condicionado as fases subsequentes na história da espécie e possibilitado o próprio desenvolvimento psíquico, aí incluída a inscrição psíquica de objetos aos quais a libido viria se vincular. O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma ruptura radical com a ideia de instinto. Mas a autora afirma que, por ter dado lugar a novas formações, a disposição produzida nos tempos glaciais teria se tornado permanente e, de uma disposição temporária, então contextualizada na era glacial, teria se tornado uma disposição herdada: o afastamento da ordem biológica “possibilitou novas formações (…) que serão descritas nas próximas fases da história filogenética, e que, por isso, de temporário se tornou permanente, se tornou disposição herdada, inata, presente em todos os seres humanos.” (Corrêa, 2015, p.125). A meu ver, isso parece trazer três dificuldades: 1Ora, o fato de x dar lugar a y não constitui, por si só, argumento para a defesa da permanência de x. Certamente, a construção é feita de modo retroativo: se as neuroses são tais e tais, as disposições que se tornaram permanentes foram estas.
Mas o raciocínio de Freud não parece fornecer uma justificativa para a transformação de algo temporário em algo permanente. 2Em se assumindo os pressupostos que Freud assumiu, por que a herança não teria, por sua vez, se alterado ao longo da própria história da espécie? Por que as disposições teriam permanecido as mesmas ao longo de dezenas de milhares de anos? Especialmente, por que teriam permanecido as mesmas após o término da glaciação? 3-A tese da herança não retorna à biologia? Como a herança poderia, ela mesma, não ser um fato biológico? Aquilo que se tratava aqui de alijar não retorna na posição mesma de fundamento? Se toda a questão é o afastamento da sexualidade humana da biologia, a hipótese filogenética não acaba exigindo um retorno a ela? Tudo indica que nos deparamos, ademais, com um jogo de recuos na argumentação de Freud. Se as disposições são herdadas, se todas elas estão presentes em todos os indivíduos divergindo entre eles apenas por uma questão de intensidade, se é a intensidade que, por sua vez, determina a escolha da neurose, obviamente torna-se necessário perguntar o que determinaria a intensidade da disposição.
Lebrun sugere em sua leitura, aliás também inspirada em Nietzsche, que a repetição da filogênese pela ontogênese – “herdada” por Freud de E. Haeckel e então traduzida pelo primeiro para disposições libidinais e traços psíquicos – nunca passa, na reflexão do psicanalista, de um pressuposto, por maior que seja sua potência heurística. Um pressuposto que precisa ser explicitado enquanto tal. Porque reconhecê-lo assim nos permite bem situar uma questão como a seguinte: em que medida a hipótese filogenética freudiana (assim como a argumentação de Totem e tabu ) constitui uma estratégia pretensa e explicitamente natural e tacitamente metafísica para a reprodução desse paralelo constitutivo da história do Ocidente entre, de um lado, masculino, pensamento e cultura, e de outro lado, feminino, afeto e natureza? Freud não opera aqui de fato, como sustenta Lebrun, uma sobreposição entre valores sócioculturais e normas vitais? Todos os pontos aqui ligeiramente levantados convocam a uma reflexão filosófica sobre a obra de Freud (e com ela). Sua discussão exige uma leitura adequada do rascunho do décimo segundo artigo metapsicológico. Para tal tarefa, encontramos, de uma maneira muito viva, elementos cruciais no livro de F. S. Corrêa, livro que contribui com brilho para a continuidade de uma tradição brasileira de estudos localizados na interseção entre filosofia e psicanálise. Ele é ferramenta sofisticada da qual o leitor brasileiro pode se valer, de modo privilegiado, para medir por si mesmo o peso que Freud atribui ao gelo na determinação e na compreensão dos fenômenos psíquicos.
Notas
1 Obra publicada em 1886.
2 Em 1983, na correspondência de Freud com S. Ferenczi, que foi quem sugeriu inicialmente os pressupostos da hipótese filogenética
3 Lemos: “As cenas de observação do ato sexual entre os pais, de sedução na infância e de ameaça de castração são indubitavelmente patrimônio herdado, herança filogenética, mas podem também ser aquisição da vivência individual. (…) O que vemos na história primitiva da neurose é que a criança recorre a essa vivência filogenética quando sua própria vivência não basta. Ela preenche as lacunas da verdade individual com verdade pré-histórica, põe a experiência dos ancestrais no lugar da própria experiência” (Freud, 2010, pp.129-30).
4 Freud parece supor apenas uma.
5 O início do livro traz uma discussão voltada para justificar a escolha de caracterizar a hipótese filogenética como história, em vez de mito.
6 É a tradução da autora para Sehnsuchtangst.
7 F. S. Corrêa prefere “impulso” para verter Trieb, embora empregue por vezes o adjetivo “pulsional
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Léa Silveira – Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais. E-mail: lea@dch.ufla.br
Mitos Papais: política e imaginação na história – RUST (RBH)
RUST, Leandro Duarte. Mitos Papais: política e imaginação na história. Petrópolis: Vozes, 2015. 248p. Resenha de: BOVO, Claudia Regina. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.
Eis uma obra provocativa. Essa é a primeira constatação sobre Mitos Papais, trabalho que articula a análise histórico-historiográfica do poder pontifício com suas interpretações “mitológicas”, intepretações estas que ainda sustentam calorosos debates sobre qual deve ser o papel político do papado. Ah, a política! Sim, mais uma vez a política. Essa arte da negociação, área tão negativamente avaliada nos nossos dias, é o campo sobre o qual Leandro Duarte Rust se debruça para trazer a um público não acadêmico a construção histórica dos mitos em torno da atuação papal. A abertura do texto já marca o tom desafiador da proposta: “Mito ou realidade?”. Ao superar a dicotomia rasa que definiu vulgarmente o mito e as mitologias como a falsificação do real, Rust marca a abertura do seu texto reconhecendo outro modo de defini-los. Inspirado por Joseph Campbell, para quem a mitologia soava como poesia, Rust define os mitos como meio de se conhecer as relações políticas, forma de interpretar a política e também como maneira de expressá-la.
Essas experiências de significado são, nada mais nada menos, do que pistas para descortinar as potencialidades humanas, rastros da experiência humana no tempo, algo que se aplica ao que somos e explica como somos. Não há lugar para invenção, não há lugar para a desrazão, os mitos nos envolvem porque são um mecanismo de interpretação da experiência humana. Portanto, a ideia do livro não é simplesmente desconstruí-los, mas aprender com eles. Tirar deles o conhecimento que nos qualifica enquanto seres políticos. É importante reiterar que o objeto de análise aqui não está restrito ao papado, mas é extensivo à política e às suas diversas formas de negociação, conflito e acordo. Os Mitos Papais não poderiam ser melhor substância para exemplificar o exercício de análise proposto.
Com narrativa envolvente e cadenciada, o livro apresenta cinco mitos que ajudaram a estabelecer e a manter o papado romano no centro dos debates políticos da Contemporaneidade. Chamamos de contemporânea a leitura sobre a experiência política pontifícia do final do século XIX até os dias atuais. Desde a busca pela ossada de seu fundador – Pedro – ao silêncio pontifical durante o genocídio judaico promovido pelos nazistas, os mitos escolhidos por Leandro Rust aguçam a curiosidade de qualquer leitor ávido por história e, principalmente, ensinam como a historização das narrativas pode ajudar a instrumentalizar as consciências históricas contemporâneas. Um caminho investigativo que ajuda a nos aventurarmos pela complexidade das experiências históricas papais.
Interessado em aprender com os mitos, com a leitura histórica que eles fomentam, Leandro Rust trata no primeiro capítulo da empresa incentivada pelo papa Pio XII para encontrar, sob o solo da basílica de São João de Latrão, os restos mortais do apóstolo Pedro. Rust se pergunta “por que, a certa altura da vida contemporânea, a tradição religiosa deixou de saciar a certeza a respeito da realidade histórica do fundador da Igreja Romana?” (p.67). Em outras palavras, por que justamente durante os conturbados anos da década de 1940 houve o impulso a essa saga arqueológica para provar a existência das relíquias e da tumba de Pedro? A resposta segue esta lógica: só o discurso de fé não era mais suficiente. Era preciso uma prova material, com atestado científico, para legitimar a saga fundadora de Pedro. A narrativa do autor nos leva a atestar o papel dos mitos na política e a condição indelével do apelo à renovação cristã – Renovatio Christiana.
A saga lançada por Pio XII em busca da tumba de Pedro atuou como remédio para as políticas de secularização que havia algumas décadas esvaziavam as fileiras dos bancos católicos, resultando na atualização do discurso católico às demandas racionais da modernidade. Por meio da verificação científica de sua materialidade santa – o encontro com a tumba de Pedro – o catolicismo demonstrava sua base inequívoca. Conforme apresenta o autor, “o reencontro com o primeiro papa seria a prova de que o Vaticano tinha saída para superar os abismos que os homens cavam entre si e uni-los em uma harmonia palpável. Poucas instituições poderiam oferecer uma resposta tão contundente para populações mergulhadas em traumas e incertezas” (p.72).
Não é por acaso que o mesmo Pio XII que abre com destaque os Mitos Papais seja o mesmo personagem discutido no último capítulo do livro. Visto por alguns como o estandarte da modernização da Igreja Apostólica Romana e por outros como o “papa de Hitler”, a disputa pela memória coletiva de sua atuação pontifícia ainda está aberta. Santo dos católicos e algoz dos semitas, essa emblemática dicotomia sobrevive como mitos políticos de uma mesma experiência humana. Herói e vilão são interpretações conflitantes que figuram lado a lado quando se fala sobre a atuação política do papa Pio XII. Daí nossa insistência em definir a proposta deste livro como provocativa e desafiadora. Como demostra Rust, a luta pela memória a ser preservada sobre Pio XII tem início logo depois de sua morte. De peça de teatro que o ridicularizava ao boom literário dos anos 1990 que ora o criticou ora o valorizou, Pio XII representa o fardo dos Mitos Políticos. Ao mesmo tempo que se opõem, ambas versões se complementam. Dito de outra forma, ambas versões são expressões do modo de se pensar e se fazer política contemporaneamente, elas estão embasadas na premissa da divisão dicotômica das disputas políticas, da divisão partidária da vida social. Aventurar-se por esses mitos que envolvem a figura de Pio XII é ter a mais clara exposição das nossas relações políticas e de como não estamos alheios a elas.
Em tempos de impeachment, de estandartes e histerias coletivas que atribuem à política as mazelas do mundo, o mito aparece como meio de descortinar nossas práticas políticas, de compreendê-las. Enquanto meio de interpretação legítimo para conhecer as relações políticas o mito tira do senso comum, ou melhor, devolve a ele a necessidade de avaliação constante das expressões narrativas com as quais compactuamos, dessas razões práticas às quais, enquanto grupos sociais, recorremos “para justificar e legitimar nossos interesses”. Sim, nós fazemos isso; conscientemente ou não, fazemos.
Portanto, como bem advoga Rust, o mito político não é uma inverdade, mas uma narrativa que idealiza o passado para legitimar ou desacreditar um regime de poder. Uma chave de leitura do mundo que nos orienta a tomar posicionamentos – políticos, por sinal – nas disputas pelo poder. Cientes do que a leitura deste livro pode provocar, é preciso reconhecer: não há melhor maneira de escancarar a utilidade do conhecimento histórico e político. Ainda mais em tempos nos quais se dão amplas discussões da política pública educacional, cujo cerne é a ideia já batida de renovação: a Base Nacional Curricular Comum, a Base Comum para Formação Docente, a PEC da Escola sem Partido, a Medida Provisória do Ensino Médio. Nesse sentido, o livro de Leandro Duarte Rust nos desafia a olhar para dentro de nós mesmos, para aquilo que usamos como definição das coisas, e nos força a reavaliar, a reconhecer a historicidade de nossas razões práticas. A História, a Política, o Papado e a Idade Média não soam como perfumaria curricular. Pelo contrário, desses imaginários diversos, dessas mitologias pseudodespretensiosas, retiramos muitas interpretações que ainda respondem aos nossos interesses mais vorazes. Contextualizá-las ainda se faz necessário. Falar sobre elas é mais urgente do que nunca!
Claudia Regina Bovo – Departamento de História, Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Uberaba, MG, Brasil. E-mail: claudia@historia.uftm.edu.br.
[IF]Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (RBH)
SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Ed. Unicamp, 2016. 272p. Resenha de: VITO, Christian G. de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.
Há muito tempo a história do trabalho é escrita exclusivamente sob as perspectivas do trabalho assalariado, da “proletarização” (ou mudança para o trabalho assalariado) e das organizações de trabalhadores assalariados. Enquanto esses aspectos têm sido confundidos com “modernidade” e com o surgimento e expansão do capitalismo, a escravidão e outras relações de trabalho forçado têm sido marginalizadas como “atrasadas” e não-capitalistas. Neste livro convincente e bem escrito, Robério S. Souza subverte essas abordagens tradicionais e mostra uma história do trabalho mais inclusiva, baseada em novas conceituações. O autor aborda a construção da ferrovia Bahia and San Francisco Railway no período de 1858 a 1863, mas em vez de vê-la como um símbolo da modernidade tecnológica, de investimentos estrangeiros “progressistas” e do trabalho livre, ele aponta para a compatibilidade do capitalismo com o trabalho forçado, indica múltiplas imbricações entre o capital britânico e os universos da escravidão, e destaca a presença de escravos na força de trabalho, contrariando os regulamentos da legislação imperial de 1852. Da mesma forma, o autor aborda os trabalhadores migrantes europeus – especialmente os “italianos” -, mas, em vez de corroborar a narrativa padrão de que eles seriam vetores de mão de obra livre qualificada, traz à baila a precariedade de sua liberdade e a compara com a dos “nacionais livres” e com as condições dos escravizados. Em termos mais gerais, Souza insiste na complexidade da composição da força de trabalho, em vez de buscar os trabalhadores assalariados ideais típicos dentro dela: dessa perspectiva, ele consegue abordar as relações concretas entre os trabalhadores permeando as condições legais e as relações de trabalho e apontando para as suas experiências e momentos de solidariedade compartilhados, bem como os conflitos que surgiram entre eles.
Esses argumentos fundamentais são brilhantemente apresentados na introdução, a estrutura do livro é bem projetada e o estilo mescla bem panoramas quantitativos precisos, momentos de reflexão e descrições detalhadas de eventos e biografias individuais. Os três primeiros capítulos informam o leitor sobre o mundo dos “senhores dos trilhos” e sua conexão com a economia escravista da província da Bahia (cap. 1), esboçam a “demografia social” da força de trabalho da ferrovia (cap. 2) e, em seguida, abordam a reconstrução da materialidade das tarefas, incluindo detalhes das obras em cada uma das cinco seções diferentes em que o canteiro de obras foi dividido (cap. 3). Os dois últimos capítulos focalizam, em detalhe, a agência e as experiências dos trabalhadores. O Capítulo 4 centra-se naqueles que migraram para o Brasil provenientes do Reino da Sardenha, descreve a greve que organizaram em 1859 e discute suas conexões mais amplas com as mobilizações de outros trabalhadores (incluindo os escravos) e as práticas de repressão e controle social implementadas pelas autoridades. O capítulo 5 examina de perto a multidão aparentemente desconexa e desordenada que compunha a força de trabalho e aborda as “lógicas internas que forjaram ou dificultaram a experiência e o processo de conformação de identidades” (p.34-35). Acompanhando o texto, um mapa histórico permite visualizar os territórios atravessados pela ferrovia (p.116), e 19 belas fotografias históricas – a maioria delas da Coleção Vignoles do Instituto de Engenheiros Civis de Londres – fazem que os trabalhadores, as localidades e as obras adquiram concretude para os leitores. De fato, em vez de serem apenas um suporte visual passivo, especialmente no capítulo 3, as fotografias são diretamente integradas e discutidas no texto. A maior parte das fontes primárias é extraída de várias seções do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) e inclui a correspondência entre várias autoridades, listas de passageiros que entraram no porto da Bahia e documentos produzidos pela polícia e pelas autoridades portuárias que se revelaram fundamentais para a compreensão tanto da dinâmica do controle social quanto da vida dos trabalhadores como indivíduos.
Como seu livro anterior sobre os emaranhados das relações de trabalho na Bahia no período imediatamente seguinte à abolição da escravidão, este trabalho mais recente de Souza está profundamente inserido na nova e revolucionária historiografia brasileira sobre o trabalho.1 O autor reconhece especialmente a sua dívida intelectual às obras de Sidney Chalhoub e Henrique Espada Lima (p.30). Ainda assim, precisamente por causa da qualidade deste livro, poder-se-ia esperar também um diálogo mais amplo do autor com as obras internacionais que abordam contextos comparáveis e questões relacionadas. Esse diálogo poderia ter fortalecido a sua interpretação em vários pontos e, simultaneamente, realçado o impacto deste volume para uma comunidade acadêmica maior. Por exemplo, os estudos sobre a força de trabalho igualmente complexa, mas montada de forma diferente, empregada na construção das ferrovias cubanas antes da abolição da escravidão na ilha caribenha (1880) poderiam ter fornecido referências comparativas úteis sobre a questão-chave da conexão entre liberdade e não-liberdade.2 Ao mesmo tempo, o livro de Souza é um complemento significativo às investigações recentes na História do Trabalho nos transportes, com as quais ele compartilha a crítica aos “binários padronizados entre coerção e liberdade” e para as quais contribui indiretamente expandindo o foco do “trabalho no transporte” para o trabalho que construiu as infraestruturas do transporte.3 A obra é também uma contribuição preciosa para a renovação da história da migração italiana do século XIX e início do século XX, para além das limitações dos estudos tradicionais que tendem a ver os trabalhadores italianos isolados do resto da força de trabalho e, particularmente, fora do trabalho forçado. Por sua vez, a nova abordagem acadêmica sobre a diáspora italiana, com a consciência da importância das conexões translocais e da pesquisa arquivística em múltiplos locais, poderia ter respaldado a sugestão de Souza sobre a relação entre as demandas dos trabalhadores sardos no Brasil e a turbulência política na Itália às vésperas da unificação nacional (p.188-190).4
Em um nível diferente, o argumento central do autor sobre a compatibilidade entre o capitalismo e o trabalho não-livre ecoa, entre outras, as descobertas do estudo pioneiro de Alex Lichtenstein sobre a economia política do trabalho de prisioneiros no período pós-emancipação do Sul dos Estados Unidos e as de um recente volume sobre trabalho forçado após a escravidão, organizado por Marcel van der Linden e Magaly Rodríguez García.5 De maneira mais geral, o argumento de Souza sobre as fronteiras fluidas entre liberdade e não-liberdade coincide com a questão-chave do longo debate sobre o trabalho livre e não-livre e também está alinhado com a reconceituação da classe operária proposta pelos estudiosos da História Global do trabalho, apontando para a necessidade de ir além do foco padrão sobre o trabalho assalariado, passando a estudar todos os tipos de relações trabalhistas que foram imbricadas no processo de mercantilização do trabalho.6 Finalmente, e de forma semelhante a outras obras brasileiras sobre a história do trabalho, os capítulos 4 e 5, em especial, mostram a importância do estudo simultâneo das relações de trabalho e da agência e organização dos trabalhadores – uma combinação que tem sido particularmente rara na História Global do trabalho até agora. De fato, a adoção do conceito de “experiência” – explicitamente tomado de empréstimo a E. P. Thompson – fornece a Souza uma ferramenta para adentrar a questão da formação contraditória da identidade de classe entre os trabalhadores que estavam “juntos, mas não misturados” (p.237) e, assim, frequentemente presos entre a unidade e a divisão em fronteiras nacionais, étnicas e legais.
Essas imbricações entre o trabalho de Souza e a historiografia do trabalho mais ampla ressaltam seu potencial para intervir em debates ainda maiores, beneficiando-se dela, ao mesmo tempo, em alguns pontos interpretativos. De modo algum essas observações críticas ofuscam os méritos deste livro. Na realidade, este volume é um daqueles preciosos estudos empíricos que podem inspirar e moldar pesquisas em outros locais e épocas, para além do seu tópico específico e do seu escopo cronológico. Por essa razão, traduções múltiplas deste livro são altamente desejáveis.
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Notas
1 SOUZA, 2011. Ver esp.: CHALHOUB, 1990; LIMA, 2005; CHALHOUB, 2012; FORTES et al., 2013.
2Por exemplo: OOSTINDIE, 1984; FADRAGAS, 1998.
3 BELLUCCI et al., 2014. Citação da Introdução dos editores, p.5.
5 LICHTENSTEIN, 1996; LINDEN; RODRÍGUEZ GARCÍA, 2016.
6 BRASS; LINDEN, 1997; LINDEN, 2010.
Christian G. de. Vito – Research Associate, University of Leicester; Lecturer, Utrecht University. Utrecht University, Department of History and Art History. Utrecht, The Netherlands. E-mail: c.g.devito@uu.nl.
[IF]Escuela y métodos pedagógicos en clave de gubernamentalidad liberal: Colombia, 1821-1946 – ECHEVERRI ÁLVAREZ (RBHE)
ECHEVERRI ÁLVAREZ, J. C. (2015). Escuela y métodos pedagógicos en clave de gubernamentalidad liberal: Colombia, 1821-1946. Medellín: UPB, 2015. Resenha de: VÉLEZ, Beatriz Elena López; VELÉZ, Raul Alberto Mora. Escuela y métodos pedagógicos en clave de gubernamentalidad liberal. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 3 (42), p. 420-426, out./dez. 2016.
El libro de Echeverri es una investigación histórica y, como todo trabajo histórico, tiene como objeto el presente: las preguntas se formulan en relación con problemáticas que aquejan nuestro propio tiempo: problemáticas en torno a las cuales se recurre al pasado para examinar las condiciones de su emergencia, los procesos de su desarrollo en el tiempo y las características de su actual vigencia. Una historia que permite desentrañar algunos de los mecanismos mediante los cuales llegamos a ser lo que actualmente somos en los marcos de la educación y de la escuela.
El libro se divide en tres apartados. El primero presenta la problemática, los referentes conceptuales y la metodología de trabajo; el segundo, muestra las primeras concreciones de la construcción de la libertad liberal en la nueva república: la independencia, la emergencia de la constitución y, en ella, de la escuela misma; el tercer apartado, despliega los métodos pedagógicos en clave de construcción de la Gubernamentalidad liberal.
Un simple diagnóstico muestra que la escuela ha dejado de ser el espacio fundado por sociedades disciplinarias en un tiempo que, según Gilles Deleuze, dejó de ser el nuestro: ya no la caracteriza la máquina disciplinaria para el control minucioso sobre los cuerpos, los tiempos y los espacios con el propósito de lograr la sumisión de los cuerpos y de las mentes. La educación gira hacia el niño como centro del proceso formativo: constante proyecto político que amplía cada vez más sus derechos que los hace cada vez más protegidos, libres y autónomos pero más violentos e indisciplinados en una sociedad que parecieran confundir autoridad y autonomía en la relación que establece con sus niños y jóvenes.
La escuela deviene escenario de conflicto, violencia, falta de autoridad y, recientemente, de bullyng o matoneo. Para enfrentar esos problemas se multiplican las demandas para democratizar la escuela, lograr mayores cuotas de libertad y de autonomía y superar el fardo disciplinario del siglo XIX. Pero el autor pregunta ¿y si esa libertad que se invoca, antes que el mecanismo para solucionar los problemas actuales de la escuela, fuera el elemento subyacente que históricamente les ha dado emergencia y desarrollo?
La escuela, aunque conflictiva, indisciplinada y violenta, no carece de gobierno. Por el contrario, estos fenómenos objetivan un poder en el cual a la ampliación de derechos le son correlativos fenómenos, aparentemente perversos, pero en realidad estrategias de gobierno de la población. El autor plantea que la característica histórica de la escuela no es el autoritarismo de los maestros, la rigidez de los saberes o los rezagos de la máquina disciplinaria del siglo XIX, sino el concepto de libertad que circula socialmente para producir tipos específicos de experiencias y de prácticas de libertad en la escuela. En síntesis, la libertad fundamental para comprender la escuela del presente desde la perspectiva de las formas imperantes de poder liberal.
La libertad se reconoce como base para emprender una genealogía de los regímenes actuales de gobierno, porque la libertad se refiere a la estructuración del Estado moderno en el cual se ha desplegado un tipo de libertad, cierta manera de comprenderla, de ejercerla y de relacionarnos como sujetos libres. Libertad es materiales, técnicas y prácticas gubernamentales de gobierno de la población que tienen concreciones específicas en la escuela; y esta escuela es uno de los principales dispositivos para su construcción constante. El libro pregunta por las condiciones históricas de constitución y desarrollo de la escuela en el marco de la ‘gubernamentalidad liberal’. Por eso, el autor considera que pensar los problemas actuales de la educación, antes que reiteradas invocaciones por más democracia, libertad y autonomía, debe establecer cuál ha sido el papel de la libertad en el devenir histórico de la escuela desde la conformación del Estado nacional.
A esta inquietante pregunta le da una novedosa respuesta con los trabajos de Michel Foucault en torno a la Gubernamentalidad libera. Libertad es el elemento básico de la forma del poder liberal. La gubernamentalidad liberal se refiere al conjunto de instituciones, procedimientos, cálculos y tácticas que, por dar emergencia al Estado moderno, permitían ejercer una forma de gobierno cuyo blanco principal era la población, su forma mayor de saber la economía política y su instrumento técnico esencial, las políticas de ‘seguridad’. En fin, los tipos de racionalidad mediante los cuales se buscaban dirigir la conducta de los hombres a través de la administración del Estado.
La libertad es una construcción consciente utilizada como instrumento mediante el cual se regulan estrategias y técnicas de gobierno al mismo tiempo que con estas se intenta producir cada vez más libertad. En la modernidad, y hasta hoy, la libertad ha sido tanto el objetivo de gobierno como su instrumento constante; y la escuela uno de los dispositivos de su construcción constante. El gobierno no trata de imponer una ley, trata de disponer las cosas y utilizar las leyes como tácticas, es decir, por una serie de medios trata alcanzar algún fin previsto. En síntesis, gobierno es la práctica de conducir conductas con base en la libertad de los sujetos. La escuela es el dispositivo que articula la institucionalidad, los saberes y las personas para lograr una economía en la conducción de las conductas de las personas.
El autor se vale de este constructo foucaultiano como rejilla para mirar la historia de la escuela, así la libertad se construye y queda plasmada en diferentes registros que dan cuenta de los espacios fácticos de libertad: la legalidad nacional e institucional, los saberes y prácticas en las cuales los estudiantes adquieren cada vez mayor visibilidad y participación; Al mismo tiempo, la idea de libertad comienza a convertirse en construcción subjetiva, en una apropiación individual en el terreno de los imaginarios y de las concepciones: manipulación ideológica que produce la conducción de las conductas y es rastreable, por ejemplo, en conceptos reiterados y dispersos tales como autonomía, aprendizaje, conciencia, y la reiteración sin descanso de la misma palabra libertad, por ejemplo.
Echeverri utiliza dos categorías para explicar la producción constante de la libertad: ‘horizontalización de las relaciones’ y ‘el viaje hacia el sí mismo’. La primera muestra la manera mediante la cual los estudiantes adquieren, en el terreno de los derechos, de los saberes y de las prácticas, mayor visibilidad y participación en la escuela y la sociedad; al mismo tiempo, cómo los maestros son obligados a abandonar sus posiciones centradas en la dignidad de la función, para ganar autoridad por otras vías más ‘pedagógicas’. En la escuela se van horizontalizando las dignidades, por ejemplo, en las luchas contra el castigo, en las prescripciones de la pedagogía, en las reflexiones sobre la naturaleza y derechos de los niños de los diferentes saberes.
La otra categoría es ‘el viaje hacia el sí mismo’. La libertad no es solamente una expresión externa en el marco de la ley, es, mejor, una experiencia personal, un imaginario, una forma natural de estar en sociedad y de relacionarse con uno mismo, con el otro y con lo otro. Por eso, en la escuela se emprende, por vía de los métodos pedagógicos un camino hacia el interior de las personas, hacia su consciencia y opinión, para que cada quien se sienta cada vez más libre y en condición de exigir cada vez mayor libertad. El viaje hacia el sí mismo es el trabajo ideológico mediante el cual la idea de libertad se introyecta en cada individuo hasta convertirla en una forma normal y necesaria de estar en sociedad.
Hasta aquí el libro deja claro el problema, los referentes teóricos y la metodología que emplea. Con el segundo apartado, ‘Concreciones de la libertad en la Gubernamentalidad liberal: independencia, constitución y escuela’, el autor se interna en las formas republicanas de producción de la libertad liberal en lo que actualmente es Colombia: lo hace a partir de lo que el autor considera las primeras concreciones de libertad que, al mismo tiempo, son instrumentos para su construcción constante: la independencia, la constitución y la escuela. En esos elementos se muestra de qué manera la libertad comienza a tomar el espacio de la escritura, de la enseñanza, de la institucionalidad, de los discursos y de las acciones; en otras palabras, el libro muestra cómo la libertad se convierte en una regularidad discursiva; por esa vía, y por los senderos de la ley, se va transformando en un imaginario colectivo y en una forma de estar en sociedad.
Con este precedente pasa al cuarto apartado, es decir: ‘La libertad en cuatro modelos pedagógicos’. Estos modelos, tratados como métodos pedagógicos, sirven de hilo conductor para atravesar desde el siglo XIX hasta las primeras décadas del XX con base en la construcción constante de la libertad en la escuela. Los métodos pedagógicos le permiten a Echeverri ilustrar los modos en que la escuela hacía vivir la experiencia de la libertad tanto como concreción en el marco de los derechos y de las normas como en el marco de la construcción de la subjetividad. Método lancasteriano, método pestalozziano, Pedagogía Católica y Escuela Activa hicieron parte de un proceso de superposición y de relevos pedagógicos mediante los cuales se ha ido construyendo la libertad de manera cada vez más exhaustiva, según las necesidades de gobierno de la población que el poder liberal demanda como su condición de vigencia constante.
El método lancastariano es particularmente importante demostrar cómo un dispositivo de la construcción de la libertad por cuanto, contrariamente, en Colombia ha hecho carrera imágenes de un sistema disciplinario en el erróneo sentido de encierro, castigos infamantes y verticalidad autoritaria: máquina para lograr la sumisión de los cuerpos y de las mentes. Por lo contrario, el método lancasteriano encierra para hacer que las castas, sumisas al fundamento divino del poder, se acostumbren a la libertad e igualdad de la ley constitucional. Un método que, por primera vez, muestra que la posición en la institución y la sociedad dependen del progreso individual en competencia constante con los otros inmediatos, de la libertad individual.
El texto del profesor Echeverri es enfático en este punto, ¿cómo puede un sistema pedagógico buscar la sumisión de la población como fundamento del gobierno? No, la sumisión era precisamente lo que tenía que ser superado mediante la construcción fáctica e imaginaria de la libertad como forma de estar en la nueva sociedad democrática. El método lancasteriano sienta las bases, todavía de manera precaria y externa, para la construcción constante de la libertad, es decir, mediante la fórmula todavía vigente de otorgar derechos desde arriba para que se demande cada vez mayor libertad desde abajo para mantener la vigencia de la forma del poder liberal.
Pero la libertad requiere mucho más que mecanismos externos de ejercicio efectivo. Necesita convertirse en un imaginario que permanezca incuestionable individual y grupalmente, así las condiciones sociales parezcan negar la posibilidad de su concreción. Por ello, el modelo Pestalozziano, relevo histórico del lancasteriano, inicia el largo caminho hacia ‘el sí mismo’. Esto es, un modelo pedagógico que supera la tiranía del método externo para enseñarlo todo, y se adentra en la mente para reconocer los mecanismos del aprendizaje individual. La libertad allí no es solo una expresión del derecho con consecuencias sociales de igualdad, competencia y éxito, sino una forma de sentirse ‘uno mismo: lógicas que’ promueven experiencias personales de libertad e impelen a exigir cada vez mayores cuotas de libertad hasta convertirlas en sujetos.
En el apartado siguiente, se discute una posible impugnación a la hipótesis general: que la pedagogía católica transitaba a contrapelo de las ideas del liberalismo y la modernidad en general. El libro muestra que la Gubernamentalidad liberal no es un asunto de liberales y de conservadores, sino una forma general del poder en la cual, inclusive la oposición fragmentada del clero en Colombia, más que un freno definitivo a la Gubernamentalidad, fue un obstáculo que fuerza mayor empeño en las transformaciones. Por eso, concluye el autor, también la pedagogía católica es un dispositivo de la construcción de la libertad liberal aunque por un camino apenas diferente: una libertad con base moral en la religión católica.
La escuela activa, último modelo abordado en el libro, reconoce que no hace un aporte en el estudio de este modelo en Colombia, solo toma trabajos clásicos en la literatura educativa del país, para documentar la hipótesis de la construcción constante de la libertad liberal por vía educativa y pedagógica. En ella, el viaje hacia el sí mismo sigue su camino cada vez de manera más exhaustiva y en conjunción con más refinadas concreciones de libertad en la sociedad, el derecho y los saberes científicos. Es un camino por el cual se llega a las conclusiones que se presienten: el trabajo podría abarcar todo el siglo XX, inclusive lo que va del XXI, para mostrar que esa libertad, tecnología del yo, es una función de la escuela. Tanto así, que los niños y los jóvenes en la escuela han llevado esa libertad al extremo de horizontalizar las relaciones con los adultos, padres y maestros, y hacer visible en ella lo impensado: conflicto, violencia, falta de autoridad. Por eso, advierte el autor, para comprender esas problemáticas escolares quizás el camino no es invocar más democracia, sino reconocer el papel histórico que la construcción de la libertad liberal ha representado para que la escuela haya llegado a ser lo que es actualmente.
Estamos ante un libro de historia con profundas consecuencias educativas y pedagógicas. Libro novedoso que no debe ser abordado como novedad, interés pasajero, sino como un hito latinoamericano de reflexión. ¿Qué tipo de construcción subjetiva de la libertad produce efectos perversos en la escuela como falta de autoridad, apatía, individualismo, conflicto, violencia, por ejemplo?, ¿qué formas del poder horizontalizan las relaciones entre quienes deben agenciar la ley y los que deben ser ingresados a la cultura? El libro es un guiño para pensar detenidamente las concepciones de niños y de jóvenes que porta la sociedad y, tal vez, al reconocerlo nos daríamos cuenta de que la escuela es lo que hemos hecho de ella en las lógicas del liberalismo.
Beatriz Elena López Vélez – Decana Escuela de Educación y Pedagogía. Universidad Pontificia Bolivariana. Medellín, Colombia. Historiadora, Magister en Educación, Candidata a Doctora en Filosofía. E-mail: beatriz.lopez@upb.edu.com
Raul Alberto Mora Vélez – Universidade de Illinois, Ph.D. em Educação. E-mail: raul.mora@upb.edu.com
Les musulmans dans l’histoire de l’Europe. t. 1. Une intégration invisible / Jocelyne Dakhlia e Vincent
Cet ouvrage collectif ambitieux et novateur interroge, dans un premier tome, « une intégration invisible » des musulmans en Europe occidentale entre le xive siècle et le début du xixe siècle, avant de mettre en exergue, dans un second tome, les dynamiques intégratrices qui animent les sociétés de cet « entre-deux » qu’est l’espace méditerranéen. Les deux volumes partagent la même ambition d’éclairer les débats contemporains sur l’Europe, sa définition, ses contours, ainsi que ses relations avec l’islam et le monde de l’Islam. Alors que la question de la candidature de la Turquie à l’Union européenne ou le projet de l’« Euroméditerranée » ont suscité les passions et interrogé la notion même d’Europe, ces deux volumes offrent de nouvelles perspectives pour mieux remettre en cause la vision réductrice de deux mondes qui s’affrontent et dont les échanges, faits uniquement d’emprunts culturels ou de traités diplomatiques, n’auraient été que sporadiques, voire anecdotiques, avant les expériences coloniales du xixe siècle.
Aussi les deux volumes entendent-ils réviser un certain nombre de topoi pour mieux « restituer de la chair » (t. 1, p. 22) à l’histoire des relations de l’Europe occidentale avec l’islam. Il s’agit de battre en brèche la supposée ignorance islamique de l’Europe de la fin du Moyen Âge à l’époque moderne pour réévaluer des circulations méditerranéennes bien antérieures aux confrontations coloniales. Cette étude des circulations délaisse logiquement l’Europe sous domination ottomane pour privilégier les régions de frontière et les espaces de commerce, à savoir la Méditerranée, la façade atlantique ainsi que la frontière de l’empire des Habsbourg avec l’empire ottoman. L’introduction du premier tome propose un cadre méthodologique et théorique stimulant dans la perspective d’une histoire nécessairement connectée. Elle pose les termes de la réflexion et ses gageures, notamment la difficile identification des musulmans dans les sources, tout en s’interrogeant sur les raisons qui ont poussé l’historiographie à négliger les musulmans présents en Europe lors de la période couverte, jusqu’à les rendre quasiment « invisibles ».
Tout en s’appuyant sur la bibliographie la plus récente, le premier tome explore, de la côte Atlantique du Portugal jusqu’à Vienne, en passant par la France et la Grande-Bretagne, les circulations des musulmans ainsi que la nature de leur intégration sociale, voire sociétale, dans ces espaces. C’est à la recherche des formes d’accommodement à l’islam et aux musulmans, en dépit de contextes souvent conflictuels, que les chercheurs construisent leur apport, dans un souci historiographique et méthodologique constant. Selon cette perspective, la première partie est consacrée à un état des lieux de la présence musulmane en Europe, avant d’en tenter une reconstruction historiographique pour en proposer finalement une lecture dynamique. Au fil des contributions, c’est tout un monde de marchands, de serviteurs, d’esclaves, de diplomates, d’artisans ou de soldats, parfois convertis au christianisme, qui émerge pour sortir de l’ombre historiographique.
Le lecteur comprend que, selon les contextes, des stratégies de dissimulation ont pu être mises en place par les musulmans eux-mêmes tandis que les sociétés d’accueil ont parfois préféré se montrer indifférentes à une telle présence qui, parfois considérée comme banale, explique le silence des sources. Les chapitres proposent différents éclairages sur cet objet complexe, alternant entre des approches micro-historiques de groupes d’individus relativement réduits et l’exploration de présences plus massives. Le service des sœurs Ayche et Fatma à la cour de Catherine de Médicis permet à Frédéric Hitzel de réfuter le préjugé selon lequel l’empire ottoman n’aurait jamais « fourni aucun élément de population intéressant » au royaume de France (p. 33). Les itinéraires étudiés par Simona Cerutti d’un tailleur anatolien à Turin ou par Emanuele Colombo du fils du roi de Fez entré dans la Compagnie de Jésus mettent en lumière la question délicate de la frontière religieuse dans le processus d’intégration individuelle dans les sociétés d’accueil. Dans le cas de Livourne analysé par Guillaume Calafat et Cesare Santus, cette intégration, à la fois considérable et bien visible, a donné lieu à des interactions multiples dans la société portuaire cosmopolite. Ces différentes approches trouvent leur unité dans une commune réflexion sur les sources, leur analyse et leurs limites, ainsi que sur la possibilité d’y identifier des « musulmans » et leurs réseaux.
Le second tome est consacré à une étude renouvelée des passages et contacts en Méditerranée. Cet ouvrage dresse un état des lieux bibliographique, historiographique et épistémologique complet et actualisé sur la Méditerranée comme objet historiographique. Faruk Tabak en avait résumé la disparition dans le champ des études historiques [1]. L’inclusion de travaux en anglais, allemand, italien, espagnol, bosniaque, portugais, français, turc autorise une approche connectée stimulante. Dans l’esprit des areas studies, l’espace méditerranéen n’est pas pensé à travers une indéfinissable unité culturelle, politique, anthropologique ou sociale mais comme un espace de « l’entre-deux » connecté. Au-delà de la Méditerranée « homogène », selon les approches braudéliennes, ou « divisée », selon celles privilégiant le choc des civilisations, cette vaste enquête interroge ces « Méditerranées multiples » que l’on trouve chez Sanjay Subrahmanyam ou David Abulafia.
De la Méditerranée ottomane, européenne et maghrébine en passant par la Méditerranée insulaire, l’espace se dilate jusqu’à un au-delà méditerranéen incluant les colonies portugaises en Guinée. L’étude d’António de Almeida Mendes sur les Blancs de Guinée fait le trait d’union entre espaces méditerranéen et atlantique. Un espace également imbriqué, comme le montrent les présides ibériques au Maghreb et les possessions vénitiennes en Méditerranée islamique, et innervé par un vaste système d’interactions et de parcours.
Un concept clé et fructueux a été retenu dans ce second volume pour problématiser les liens tissés entre les différentes sociétés méditerranéennes, celui de « l’entre-deux ». Il permet de dépasser l’opposition entre une approche irénique et une approche conflictuelle des modalités d’interactions interculturelles ou intersociétales. Une réhabilitation du conflit est suggérée en l’interprétant non pas comme une fracture absolue mais comme une ligne de front et d’alliance, liée à la complexité des mouvements d’une rive à l’autre, où certains sont appelés à vivre un jour de l’autre côté. Wolfgang Kaiser démontre que le rachat des captifs faisait partie de l’ordinaire et non de l’extraordinaire dans la pratique du commerce méditerranéen. Islamiques ou européennes, musulmanes ou chrétiennes, les sociétés méditerranéennes sont traversées par des dynamiques d’exclusion et d’inclusion, de rupture et d’innovation, de rapports de force, d’ouverture et d’assimilation de l’altérité. Mathieu Grenet étudie l’exemple diasporique des sujets ottomans « Grecs de nation » tandis que Natalia Muchnik propose une étude commune des diasporas morisques et marranes pour montrer leur forte hétérogénéité sociale et religieuse.
L’entre-deux introduit un espace tiers, voire une culture et une altérité tierces encouragées par des acteurs qui jouent le rôle de véritables passeurs ou médiateurs entre cultures et langues. G. Calafat s’intéresse ainsi au rôle des interprètes de la diplomatie à Alger dans les années 1670-1680, même s’il n’est pas possible d’établir un idéal-type du médiateur interculturel. Étudier les formes d’interaction entre les sociétés islamiques et celles d’Europe occidentale suppose toutefois la singularisation de l’espace méditerranéen, trop souvent lu à l’aune du schème de conquête conceptualisé dans des contextes américains et hérité du modèle colonial atlantique. L’intercirculation séculaire en Méditerranée rend structurellement impensable une « première rencontre » ou un choc et, par conséquent, la reprise du concept de métissage, favorisant le rapport d’équivalence entre vaincus ou dominés et colonisés.
La question de l’islamophobie et de l’islamophilie savante est également posée concernant les passages de l’Islam en Europe, encore peu étudiés. Daniel Hershenzon souligne la fabrique de la Méditerranée jusque dans l’historiographie à travers la propagande chrétienne de la captivité. Il suggère une histoire connectée des formes de captivité et d’esclavage des musulmans en Europe et des chrétiens à l’intérieur de l’empire ottoman en montrant que les deux systèmes étaient étroitement reliés et interdépendants par le jeu des négociations. Il reconstitue de fait un cadre méditerranéen et non national, privilégié par le champ bourgeonnant des études sur la captivité, pour restituer les liens que la captivité a tissés entre le Maghreb et l’empire des Habsbourg.
L’entre-deux est lui-même invité à être dépassé ou nuancé par trois éléments : « espace liminaire ou hors lieu », il ne figure pas toujours comme un trait d’union entre deux sociétés mais parfois comme un espace plein et neutralisé, propre à la négociation. Il peut aussi s’agir d’un espace syncrétique modelé par des individus ou des groupes sans pour autant créer un tiers espace. Enfin, l’entre-deux n’est pas un monde en soi, un « middle-ground », du fait de l’état transitoire des processus d’intégration et d’assimilation, en recomposition permanente. Au-delà des phénomènes de porosité ou de transfert, un continuum véritable peut parfois émerger sans pour autant abolir les possibles adversités. Jocelyne Dakhlia l’illustre à travers le cas remarquable de Thomas-Osman Arcos. Chrétien renié et converti à l’islam, vivant à Tunis, membre de la République des Lettres, il plaide la possibilité d’être à la fois français et musulman tout en niant son acculturation tunisienne, pourtant bien fondée. M’hamed Oualdi étudie quant à lui l’économie générale de la mobilité des mamelouks des beys de Tunis entre le xviie et le xixe siècle.
Le brassage des cultures dans l’espace méditerranéen ne doit pas occulter les continuités culturelles entre toutes ces sociétés. C’est précisément cette familiarité structurelle qui explique l’aptitude des passeurs de frontières à maîtriser si rapidement les codes d’une société autre. Ce second volume invite donc, à travers de nombreuses études stimulantes, à repenser les sociétés méditerranéennes et les rapports entre l’Europe musulmane et chrétienne, islamique et occidentale.
Clarisse Roche
DAKHLIA, Jocelyne; VINCENT, Vincent (dir.). Les musulmans dans l’histoire de l’Europe, t. 1, Une intégration invisible. Paris: Albin Michel, 2011. 646p. Resenha de: ROCHE, Clarisse. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].
L’histoire des Juifs. Trouver les mots. De 1000 avant notre ère à 1492 / Simon Shama
En lisant cette Histoire des Juifs de Simon Schama, on est à la fois ébloui et irrité. Plus on progresse dans la lecture, plus l’admiration et l’irritation vont croissant. C’est d’abord l’admiration qui domine. Pour la stupéfiante performance de l’auteur. L’ouvrage, écrit en marge de la préparation d’une série télévisée, couvre quinze cents ans d’histoire, puisqu’il va des origines bibliques à 1492, année de l’expulsion des Juifs d’Espagne (un second volume devrait suivre, courant de 1492 à l’époque contemporaine). S. Schama n’a travaillé qu’à ses tout débuts sur des aspects de l’histoire juive et si le savoir qu’il met ici en œuvre est pour une large part de seconde main, il a effectué et assimilé des lectures d’une étendue proprement gigantesque.
Pour la période biblique et l’interprétation des données archéologiques, un sujet de débats passionnés en particulier depuis une quarantaine d’années, il s’est adressé à des spécialistes reconnus et a tracé sa voie – une voie moyenne, entre la parfaite confiance dans le récit biblique et le postulat de sa totale a-historicité. Surtout, pour les périodes postérieures, depuis l’Antiquité gréco-romaine, avant et après la destruction du Temple de Jérusalem en l’an 70, jusqu’à l’histoire des Juifs dans l’Europe du Moyen Âge tardif, en passant par le monde juif en terre d’islam, l’auteur a consulté les travaux de recherche les plus récents et les plus novateurs. L’information bibliographique, signalée dans les notes, n’est nullement ornementale : le texte principal s’appuie tout au long sur les dernières publications qui comptent, dont, soupçonne-t-on, les spécialistes, dans les différents domaines, n’ont pas eux-mêmes toujours su saisir ce qui fait leur surcroît d’utilité.
Schama donne un texte très enlevé, mais, comme on pouvait s’y attendre, il est à son meilleur dans les deux exercices où l’on sait qu’il excelle, et d’abord dans l’usage des archives visuelles et des données matérielles. Ainsi fait-il merveille lorsqu’il introduit l’exposé portant sur les déchirements internes de la société juive et les circonstances de la révolte des Maccabées par une description évocatrice du palais édifié, à l’est du Jourdain, par Hyrcan, petit-fils d’un Tobiah connu grâce aussi bien à ce que dit de lui Flavius Josèphe qu’à la documentation laissée par un intendant du ministre des finances de l’Égypte ptolémaïque, et représentant d’un milieu juif particulièrement hellénisé. Ou lorsque, pour montrer l’ouverture sur les cultures environnantes, aux iieet iiie siècles de l’ère chrétienne, du judaïsme diasporique mais aussi palestinien, S. Schama mobilise le témoignage des peintures murales de la synagogue de Doura-Europos en Syrie orientale et celui des mosaïques et des restes architecturaux de Sepphoris en Galilée. Ou encore lorsque, afin de souligner la prospérité des Juifs d’Égypte, ou en tout cas de certains d’entre eux, à l’époque, entre xe et xiie siècle, qu’éclairent les documents découverts dans la gueniza (la remise) d’une synagogue du Vieux Caire, il décrit les garde-robes que nous font connaître les papiers publiés et analysés par Shlomo-Dov Goitein et par Yedida Stillman.
L’ouvrage se distingue ensuite dans la façon qu’a S. Schama de faire du récit l’élément même dans lequel se coule une analyse. Le morceau le plus réussi à cet égard est peut-être la mise en perspective de la condition des Juifs, à la fois solide et précaire, dans l’Angleterre des années 1240-1270, à travers le récit d’une vie, celle d’une femme d’affaires avisée, Licoricia de Winchester. Les grincheux diront que l’auteur emprunte sa documentation à une monographie récente [1] [2] Certes. Encore fallait-il savoir, à partir de celle-ci, à la fois brosser un tableau et conduire une démonstration.
chama fait preuve, en chaque chapitre, d’une remarquable capacité à synthétiser les résultats de la recherche, la clarté de la discussion et sa densité faisant bon ménage. J’ai eu à plusieurs reprises le sentiment, en cours de lecture, que, sur telle ou telle question abordée, et sur laquelle j’ai eu moi-même à consulter une abondante littérature, je n’avais jamais lu de présentation ramassée aussi pénétrante, qui sache dégager ce qui compte, et permette de comprendre mieux ou autrement un épisode que je croyais bien connaître. Il faut espérer que la traduction française de l’ouvrage trouvera de nombreux lecteurs, et qu’en particulier un lectorat universitaire saura reconnaître qu’il dispose là d’une « histoire des Juifs » saisie dans toute son ampleur chronologique, qui cumule les avantages, puisqu’elle est exposée selon les critères de l’histoire savante, qu’elle est parfaitement accessible et présente en même temps toute garantie de fiabilité.
Mais l’irritation ? C’est qu’on ne voit aucune des questions fortes que l’histoire des Juifs appelle, on ne dit pas tranchées, mais seulement posées. Pour fil conducteur, S. Schama a pris le thème de la puissance des « mots » : les mots, c’est-à-dire l’exégèse d’une parole tenue pour révélée, et la réinvention constante du sens attribué à son dépôt (d’où le sous-titre : « Trouver les mots »). Ce sont ces mots, nous dit-on, qui donnent la clé d’une pérennité. Peu importe que la proposition ne pèche pas par excès d’originalité. L’ennui est surtout que, sur ces « mots », l’auteur n’est pas à son affaire. À propos de la littérature talmudique et midrashique, il reprend un discours rebattu, et qu’on espérait définitivement remisé, sur un fatras parcouru d’étranges lueurs. Il s’enthousiasme, en revanche, pour Moïse Maïmonide, sans que perce une véritable familiarité avec l’œuvre et ses problèmes. Il suffit à S. Schama de savoir que Maïmonide a tenté de réconcilier l’intérieur et l’extérieur, l’étude du donné révélé et la réflexion philosophique à l’horizon de l’universel, l’ancrage dans l’intime d’une culture et l’ouverture à des questionnements qui s’adressent à tout homme, par-delà les appartenances spécifiques, sur fond de raison partagée ; et de conspuer les adversaires de Maïmonide, obscurantistes obtus.
On ne nourrit pas nécessairement des préférences et des détestations différentes. Mais ces développements rappellent, par la combinaison de la fadeur de la pensée et du lyrisme du ton, un discours apologétique largement diffusé, au moins dans certains courants du judaïsme des lendemains de l’Émancipation. Il s’agit, aujourd’hui comme hier ou avant-hier, de montrer comment l’influence du judaïsme a profité à l’avancement de la rationalité, comment les deux causes, celle de l’identité juive et celle du progrès moderne, se rejoignent naturellement. Et si le texte atteste une baisse de tension et une dérive vers la banalité, non seulement à propos de Maïmonide (qu’à titre exceptionnel S. Schama professe admirer), mais chaque fois qu’il est question des évolutions intellectuelles et religieuses, c’est que « les mots », l’auteur non seulement les connaît mal (il n’a pour bagage que des souvenirs d’enfance et des lectures récentes peut-être pressées), mais, assez manifestement, ressent pour eux peu d’appétence, et qu’ils suscitent chez lui, d’emblée, le malaise plutôt que la curiosité.
Au point d’avoir, face à l’empire des mots, érigé un contre-modèle : celui que lui offre la vie des soldats juifs en poste à la garnison de l’île d’Éléphantine, à Assouan, que nous font apercevoir, pour l’époque de la domination perse en Égypte, des papyrus en araméen découverts à la fin du xixe siècle. L’auteur ouvre son livre sur l’existence au quotidien, longtemps sans histoires, de cette colonie aux coutumes si éloignées de celles qui prévalaient dans l’Israël biblique (ne serait-ce que parce que ces soldats ont érigé un temple, et ignoré ainsi la prescription deutéronomique qui réserve l’exclusivité du culte au Temple de Jérusalem).
De ce que lui apprennent les documents, qui portent sur la vie familiale et les transferts de biens, S. Schama tire cette leçon : « Comme dans tant d’autres sociétés juives implantées parmi les Gentils, la judéité d’Éléphantine était prosaïque, cosmopolite, vernaculaire (araméenne) plutôt qu’hébraïque, obsédée par la loi et la propriété, attentive à l’argent et soucieuse de la mode, très préoccupée par la conclusion des mariages et les ruptures, le soin des enfants, les subtilités de la hiérarchie sociale, sans oublier les délices et les fardeaux du calendrier rituel juif. Par ailleurs, elle ne semble pas avoir été particulièrement livresque. […] C’est le côté suburbain, ordinaire, de tout cela qui, l’espace d’un instant, paraît absolument merveilleux – un peu d’histoire juive sans martyrs ni sages, sans tourment philosophique, le Tout-Puissant grincheux pas très en vue ; un lieu d’une heureuse banalité, très préoccupé par les conflits de propriété, l’habillement, les mariages et les fêtes […] un temps et un monde innocents du roman de la souffrance » (p. 39).
Il est arrivé à Gershom Scholem de moquer une historiographie juive qui dépeignait parfois les patriarches bibliques comme de braves bourgmestres de Rhénanie [3]. Puis-je prendre exemple sur lui pour exprimer des doutes sur une caractérisation des « sociétés juives implantées parmi les Gentils » qui propose de promener d’une époque à l’autre l’histoire de réussite et les préoccupations typiques d’une upper middle class suburbaine ? On a dénoncé, d’ailleurs très injustement, une historiographie juive du xixe siècle trop souvent organisée autour du diptyque souffrances/élévation spirituelle, misère et grandeur. On conçoit que, en période post-moderne où les causes quelles qu’elles soient ne font ni vivre ni mourir, il paraisse judicieux d’écarter le passé de souffrances et de substituer aux récits trop inspirés le prosaïsme de l’épanouissement personnel. Et, après avoir dit sa détestation de l’histoire lacrymale, de réintroduire le malheur pour réagir contre les excès d’un discours devenu rituel de dénonciation de ce type d’histoire, mais surtout pour mieux souligner la présence continue d’une faculté éminemment contemporaine : le rebond, la résilience. Cela revient à remplacer des anachronismes ridicules par d’autres anachronismes ridicules, et à mener l’œuvre apologétique par d’autres moyens. L’entreprise peut au demeurant rencontrer l’adhésion : le livre se transformera alors en livre-cadeau, offert à des enfants qui ne le liront pas par des parents qui ne le liront pas non plus, puisqu’ils ne ressentiront pas le besoin de légitimer par des précédents historiques l’existence suburbaine d’aujourd’hui. Ce serait dommage : voilà un livre qui, malgré ces faiblesses essentielles, est une manière de chef-d’œuvre.
Notes
1. Faruk Tabak, The Waning of the Mediterranean, 1550-1870: A Geohistorical Approach, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2008.
2. Suzanne Bartlet, Licoricia of Winchester: Marriage, Motherhood and Murder in the Medieval Anglo-Jewish Community, Londres, Vallentine Mitchell, 2009.
3. Gershom Scholem, « Réflexions sur les études juives », no thématique « Gershom Scholem », Cahiers de l’Herne, 92, 2009, p. 133-145, ici p. 143
Maurice Kriegel
SHAMA, Simon. L’histoire des Juifs. Trouver les mots. De 1000 avant notre ère à 1492. Trad. par P. E. Dauzat, Paris, Fayard, [2013] 2016. 506p. Resenha de: KRIEGEL, Maurice. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].
O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862) – CARATI (HU)
CARATTI, J.M.. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2013. 454 p. Resenha de: VOGT, Debora Regina. Os limites da fronteira na posse dos cativos após o fim da escravidão no Uruguai. História Unisinos n.20 n.3 – setembro/dezembro de 2016.
A história do cotidiano, das disputas internas que muitas vezes não estão claras nos documentos, durante muito tempo passou alheia à historiografia. Interessava-nos a história global, das estruturas do sistema e do movimento maior que a tudo envolvia. O fenômeno da micro-história demonstra a mudança de visão sobre o passado. Nesse sentido, não é mais somente a grande estrutura que nos interessa, mas os indivíduos que fazem parte do jogo e que sentido eles deram para os contextos em que viveram. O Menocchio2, de Carlos Ginzburg, tornou-se inspiração para muitos personagens que desvendam uma faceta historiográfica que há algum tempo era desconhecida.
No entanto, é preciso salientar que o acesso a esses “homens e mulheres comuns” em geral não ocorre por suas falas autorais. Nós os encontramos nos documentos da justiça, no julgamento da Inquisição – caso de Menocchio – ou em outras fontes em que suas falas aparecem como testemunhos. Isso não invalida essa narrativa, mas demonstra a busca por esses sujeitos, que, por não representarem a elite letrada, muitas vezes estiveram distantes da historiografia.
Essas histórias são excepcionais ao mesmo tempo em que são normais, ou seja, ao mesmo tempo em que têm seus dramas particulares, também são coletivas, já que compartilham experiências com inúmeros indivíduos contemporâneos. No caso da pesquisa em questão, os indivíduos compartilharam a vida fronteiriça, sofrendo os impactos das relações do império com o Prata, especialmente o Uruguai.
Tais fenômenos estiveram presentes também na historiografia sobre a escravidão, e o livro de Jônatas Caratti se insere nessa linha. Assim, autores como Azevedo (2006), Grinberg (2006) e Pena (2006) são exemplos na visão do escravo como personagem, que tem desejos, voz e luta também por sua liberdade. Esses trabalhos analisam, por exemplo, a atuação de advogados abolicionistas nos pleitos através das ações de liberdade, de manutenção da liberdade e da reescravização.
Nesse contexto, são analisadas as disputas, acomodações e transformações da vida escrava e suas diversas formas de luta pela liberdade. Da mesma forma como Menocchio, os personagens em geral nos falam indiretamente através das fontes – a fala dos escravos é terceirizada –, mas nem por isso são perdidas, já que são capazes de demonstrar as lutas cotidianas e as possibilidades de liberdade no mundo atlântico.
Além dos mencionados, Paulo Moreira (2003, 2007), João José Reis (Reis e Silva, 1989), Márcio Soares (2009) e Hebe Matos (1995) são outros historiadores que problematizam o papel do escravo, as disputas envolvidas nas leis abolicionistas e as noções de propriedade e direito.
Entre a visão de concessão e conquista escrava é de se destacar o papel da alforria como veículo de disputas entre os senhores “homens de bem” e os escravos. Essa luta pela liberdade, representada pela busca da alforria, é a inspiração do livro e resume o objetivo do livro, sendo o país fronteiriço “o solo da liberdade”. Os dois personagens do livro escrito por Jônatas Caratti, embora crianças ainda são representativos dessa conjuntura que, dentro do sistema preestabelecido, busca os espaços possíveis de negociação, conciliação e até luta jurídica.
Desta forma, Jônatas Marques Caratti, em sua dissertação de mestrado, transformada em livro – O solo da liberdade – percorre o caminho da micro-história, procurando apresentar as relações, disputas e esperanças de liberdade na sociedade escravista brasileira. Seu ponto de partida são as leis abolicionistas uruguaias e seu impacto na região de fronteira no Rio Grande do Sul. No território de fronteira, senhores e escravos negociam e tomam parte do jogo de relações e acordos em busca de seus objetivos.
O historiador elege dois personagens, representativos em suas fontes, e, através deles, procura mostrar o contexto social e a luta pela liberdade dos negros escravizados. Faustina e Anacleto são duas crianças que desde cedo conhecem a escravidão e, embora talvez não soubessem, são também reflexos dessa sociedade que, escravocrata, convive de forma muito próxima com o vizinho Uruguai, que havia colocado fim à escravidão, transformando a região pós-fronteira no “solo da liberdade”. É importante destacar que as trajetórias tornaram-se excepcionais pela quantidade de fontes documentais encontradas, o que permitiu que se produzisse uma narrativa verossímil e plausível para os sujeitos; já quanto a outros, não revelados pela documentação, jamais teremos conhecimento de sua existência. De acordo com Jônatas, os dois processos lhe chamaram inicialmente atenção pela quantidade de anexos e por tratarem de questões mais amplas que somente o tráfico de escravos na fronteira, demonstrando a vida social que se estabelecia dentro dessa dinâmica.
É importante destacar que a reflexão sobre crianças escravas é, de certo modo, ainda recente na historiografia. A própria ausência de fontes e o descaso com que eram tratadas, muitas vezes, fazem com que a pesquisa e análise de suas condições sejam ainda incipientes. Além disso, a mortalidade infantil era alta, fazendo com que muitos não chegassem à vida adulta3. Desta forma, a própria possibilidade de refletir sobre a situação de duas crianças escravas torna o trabalho instigante e aberto a novas reflexões.
O livro une pesquisa séria de um historiador que escreve com rigor e ética com a vida pessoal de alguém que também vive na fronteira, já que, hoje, Jônatas é professor na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).
No final do livro há um diário de bordo, escrito de forma pessoal, com o relato de suas caminhadas pela região sul do estado e os encontros com sua pesquisa, as esperanças e os desafios de um historiador. Por meio de uma narrativa cativante, Jônatas permite ao leitor caminhar com ele, perceber suas escolhas, as limitações apresentadas pelas próprias fontes e as descobertas no caminho rico e intrigante que é a pesquisa histórica.
Os personagens escolhidos pelo pesquisador são exemplos de situações que ocorriam de forma expressiva no período analisado. A escravização de sujeitos que podiam ser considerados livres foi comum nesse período. Sendo assim, a importância de Anacleto e Faustina não se restringe à situação em que viveram, mas mostra o contexto social da época e propicia perceber as lutas pela liberdade e as formas como os acordos e arranjos ocorriam.
Esse horizonte, de certa forma ainda novo na historiografia, dá vida e complexidade a sujeitos que em nossos documentos se restringiam a números de escravizados. No texto de Jônatas, eles estabelecem relações, sonham com a liberdade, juntam dinheiro para consegui-la, fazem acordos, são complexos e demonstram as formas como os indivíduos reagiram a situações em que eram colocados.
Uns dos principais documentos analisados por Jônatas, assim como outros historiadores, são os judiciais, são eles que mais fornecem informações ao pesquisador. Ali é possível perceber a visão não só dos personagens principais, mas quem presenciou o ocorrido e também os réus, que apresentavam sua própria defesa. Ou seja, demonstram a complexidade das relações dentro da sociedade escravista e quais os caminhos encontrados pelos que faziam parte desse contexto. Cada argumento é analisado pelo pesquisador, demonstrando a riqueza de detalhes da narrativa e aproximando-nos da visão desses sujeitos do passado. Documentos como esses, por sua vez, abundam nos arquivos, como afirma Paulo Roberto Moreira – orientador e autor da apresentação do livro – faltava, contudo, alguém que com atenção de debruçasse sobre essa documentação com questionamentos plausíveis e tecesse a narrativa historiográfica.
O livro, por sua temática e também pela metodologia do pesquisador, caminha em várias frentes, que vão do micro ao macro, abrindo várias formas de reflexão e interpretação. No texto, transparece tanto o contexto nacional como a realidade regional, com suas particularidades, transpassada pela fronteira. Além disso, aspectos políticos, econômicos e sociais são explorados, demonstrando a dinâmica das relações, no aspecto particular e global. Seus personagens foram escolhidos entre dezenas de outros, e, por meio deles, observamos a sociedade do oitocentos: foram eles as lentes escolhidas pelo autor em sua narrativa.
Faustina nasceu livre em Cerro Largo, no ano de 1843, filha da preta, descrita como “gorda e velha” da Costa da África, Joaquina Maria, que era de Jaguarão. Sua mãe havia fugido através da fronteira para o Uruguai e lá viveu como livre até o encontro com os que raptaram sua filha. No outro país, Joaquina Maria encontrou um companheiro, Joaquim Antônio, sendo Faustina fruto dessa união. A menina foi arrancada de seus pais em uma noite de 1852 por um homem chamado Manoel Noronha, que se descreveu nos depoimentos como “capitão do mato”, lavrador, Capitão da Guarda Nacional e agarrador de negros fugidos. Quando preso, ele apresentou ao júri uma lista com 266 cativos fugitivos que pretendia perseguir e devolver aos respectivos senhores, em troca de recompensa.
Anacleto, por sua vez, nasceu em Encruzilhada do Sul como propriedade de Antônio de Souza Escouto, até que este o enviou para trabalhar em sua fazenda em Tupambahé, Uruguai, por volta de 1858. É importante lembrar, no entanto, que por lá a abolição já havia ocorrido, ou seja, do outro lado Anacleto era um homem livre. O menino teria ido ao Uruguai com 7 anos, idade considerada como fim da infância e início da vida de trabalho, já que se vivessem até essa idade, as crianças escravas demonstravam sobreviver ao elevado índice de mortalidade infantil. No Uruguai, Anacleto foi carregado por dois homens e trazido de volta ao Brasil; em 1860, foi vendido como escravo.
A história de Jônatas tem enredo, personagens e acontecimentos. Seu relato nos envolve e nos aproxima dos personagens, fazendo-nos torcer pelo sucesso de suas empreitadas e a conquista da liberdade. Isso não significa que a narrativa seja simplificadora; pelo contrário, ela é complexa e demonstra o rigor da pesquisa com documentação produzida pelo autor.
Faustina e Anacleto foram levados como cativos a Jaguarão, local estratégico na fronteira do Império e ali foram vendidos como escravos. O capitão do mato Noronha legalizou a posse de Faustina, comprando-a da senhora de sua mãe. Noronha revendeu-a em Pelotas com lucro considerável, o qual posteriormente a vendeu ao Capitão José da Silva Pinheiro. O historiador demonstra, por meio de suas fontes, que a crença de que a sociedade era composta por grandes senhores de escravos em muitos casos não se sustenta. Assim, boa parte dos compradores tinham poucos escravos que eram, por vezes, dados como heranças a herdeiros, fazendo parte do patrimônio da família. No entanto, mesmo numa sociedade tão desigual para esses sujeitos, conseguimos perceber as possibilidades de ação e a luta constante pelo sonho da liberdade.
Anacleto transformou-se em Gregório e foi vendido a Francisca Gomes Porciúncula, que o adquiriu na ausência do marido, o português Manoel da Costa. “Dona Chiquinha” e “seu Maneca” foram cúmplices desse sequestro, comprando Anacleto mesmo sabendo que ele era roubado. “Seu Maneca” era funileiro e viajava pelos centros urbanos provinciais alugando seus serviços; assim, quando foi a Rio Grande, repassou Gregório ao negociante de escravos José Maria Maciel, que o vendeu para o charqueador Miguel Mathias Velho. Uma mistura de sorte com coincidência fez Anacleto visto por um tropeiro o reconheceu como filho de Marcela e escravo furtado de Escouto.
Após essas desventuras encontramos as autoridades públicas, o uso da lei, a procura pelos criminosos, suas justificativas e a forma como a sociedade escravocrata se organizava. Os que são chamados a depor apresentam suas escrituras de compra e venda e, na ausência delas, passa-se a suspeitar de crime de compra ou venda ilegal de cativos. Através do método comparativo usado por Jônatas, percebemos e reconhecemos as proximidades e diferenças entre os personagens escolhidos pelo pesquisador.
A trajetória de Faustina ocorreu no contexto do Tratado de Extradição de Criminosos e Devolução de Escravos, assinado em 1851 entre o Império Brasileiro e a República Oriental; por isso, contou com o apoio dos chefes políticos e de autoridades uruguaias. Como ela nasceu em Cerro Largo, o Estado a defendeu como um caso de soberania e resistência ao imperialismo brasileiro.
Seus sequestradores, no entanto, foram absolvidos, marca de uma sociedade que ainda não questionava a escravidão. Contudo, ela voltou para seus pais, diferentemente do que ocorreu com Anacleto. Os dois processos são semelhantes e demonstravam, segundo o professor, a possibilidade de uma análise de comparação. A própria sentença que os réus receberam era a mesma, baseada no art. 179 do Código Criminal de 1830: “reduzir pessoa livre à escravidão”. Os réus responderam pelo mesmo crime e as vítimas eram crianças entre 10 e 12 anos. Esses são dois movimentos que aproximam o leitor da sociedade escravocrata sul rio-grandense em suas relações com o Uruguai. No entanto, há diferenças entre os dois casos, e isso, de acordo com Jônatas (Caratti, 2013, p. 57), o instigou a estabelecer a narrativa de forma comparada. Relacionar as experiências foi um caminho frutífero e promissor para a história social não só para a região da fronteira, mas também para a compreensão do Brasil nesse momento.
Anacleto nasceu no Brasil, de ventre escravo, e trabalhou no Uruguai como cativo, mesmo após a abolição da escravidão nesse país. Nesse caso, o promotor do caso, Sebastião Rodrigues Barcell, usou a ideia de “solo livre”, ou seja, vivendo em Estado onde havia sido abolida a escravidão, Anacleto seria considerado livre. Contudo, não sabemos exatamente por que – e aqui está o ponto em que a própria documentação limita o pesquisador – ele aparece no inventário de seu senhor Escouto, em 1865, então com 15 anos de idade. Possivelmente parecesse radical aplicar a lei, já que havia dezenas de fazendeiros que estariam nessa situação, além do potencial subversivo dentro da escravaria local.
Tendo como base os dados que encontrou nos arquivos, o autor recria contextos, compõe cenários e imagina cenários plausíveis diante do que suas fontes demonstram sobre seus personagens. Todos eles, é importante salientar, produzidos com base em intensa pesquisa na documentação, cruzamento de fontes e de leituras realizadas pelo historiador. Não à toa, Jônatas compara seu texto a uma peça de teatro e nos agradecimentos refere-se a si mesmo como diretor: “[…] Qualquer tropeço do diretor, e o fracasso ou sucesso de sua peça, é de sua inteira responsabilidade […]” (Caratti, 2013, p. 12). Sua narrativa e análise é um múltiplo labirinto que se abre e se transforma, demonstrando as multifacetadas vivências dos indivíduos que fazem parte de sua peça.
São várias as metodologias utilizadas por Jônatas em seu texto, já que ele trabalha com fontes diversas.
Assim, encontramos reflexões sobre as alforrias, sobre o mundo do trabalho escravo – com dados de compra e venda e leitura de pesquisadores da área –, escolha dos padrinhos, tráfico de escravos e comércio de cativos.
A narrativa do professor é instigante por colocar um elemento que, muitas vezes, está ausente na historiografia: a imprevisibilidade. Ao mesmo tempo que Anacleto e Faustina tinham seus próprios objetivos, suas vidas se entrecruzam com a visão de outros, que relacionavam-se entre si e por vezes determinaram seu futuro. O indivíduo e a sociedade, representada pela vontade de vários, são também reflexões possíveis da trama apresentada pelo professor. Segundo o próprio historiador, sua metodologia, inspirada na micro-história, trata de questões “inesperadas” e também as analisa de forma “experimental”; além disso, seu objetivo é explorar as fontes e os dados encontrados, mesmo quando poucos (Caratti, 2013, p. 55).
Se a narrativa por vezes esfria os conflitos que eram inerentes ao momento em que foram narrados, podemos afirmar que na narrativa de Jônatas por vezes afloram paixões, já que ele nos aproxima, como poucos, dos personagens por ele tratados. Assim, quando Joaquina Maria foi levada para depor, estava em “estado de alienação” e “chamava por sua filha”. Faustina estava no rancho de seus pais, escondida em um barril, quando dois homens a levaram. Mesmo que a mãe afirmasse que juntava dinheiro para a compra de sua liberdade, os homens, num cálculo frio, raciocinaram que a menina daria mais lucro e suportaria mais a viagem que a mãe e resolveram levar a garota. O que sentia essa mãe? Como isso a alterou emocionalmente ao ponto de não conseguir depor? A aflição dessa mulher demonstra não só a rede de relações entre senhores e escravos, as tentativas de fuga, mas também a sensação de completa instabilidade vivida pelos cativos nesse contexto.
De um lado, os donos de escravos, que viam como fundamental a utilização de mão de obra escrava em suas estâncias no lado uruguaio. De outro, o medo de que os escravos usassem a lei a seu favor e garantissem sua própria liberdade. A descrição das trajetórias de Anacleto e Faustina procura elucidar essas questões, que são o eixo principal da pesquisa do historiador.
Essa reflexão sobre os personagens, seus anseios e desejos faz com que o trabalho de Jônatas se insira na historiografia recente sobre escravidão, que não os trata como “coisas” ou como engrenagens de uma estrutura. Eles têm nomes, desejos, sonhos e lutam pela liberdade diante das possibilidades apresentadas.
Anacleto e Faustina não foram vítimas de um crime comum, mas estiveram envolvidos em conflitos sobre posse de escravos, fronteira e limites do Estado. Passaram por Melo, Jaguarão, Pelotas, Encruzilhada, Tupambahé e Rio Grande. Assim, o limite da pesquisa de Jônatas não é local, mas temporal, procurando perceber as diversas interfaces que permeiam a vida dos protagonistas de suas tramas. No decorrer do livro, o autor nos leva a cada um desses lugares, com dados levantados dos arquivos e bibliografia especializada, apresentando um quadro social amplo da sociedade sul-rio-grandense. A mobilidade é uma constante em sua obra: “[…] Tropeiros tocando o gado pela fronteira, escravos fugindo estrategicamente em embarcações, juízes e delegados retirados e colocados em vilas, como se fossem peças de um jogo de xadrez: tudo indica que essa gente não vivia na monotonia” (Caratti, 2013, p. 64).
Tal como em uma peça teatral, acompanhamos os personagens na narrativa de Jônatas, envolvemo-nos com suas trajetórias e percebemos suas vidas como mostras de um tecido social. O historiador, desta forma, nos abre outras cortinas: da complexidade do social e da dinâmica das relações que se dão entre o micro e macro. Um livro instigante, que poderia ser filme e que mostra que é possível unir boa narrativa com rigor acadêmico.
Referências
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GINZBURG, C. 1987. O queijo e os vermes. São Paulo, Companhia das Letras, 256 p.
GOÉS, J.R.; FLORENTINO, M. 2002. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: M. DEL PRIORE (org.), História das crianças no Brasil. São Paulo, Contexto, p. 177-191.
GRINBERG, K. 2006. Reescravidão, direitos e justiça no Brasil do século XIX. In: S.H. LARA; J.M.N. MENDONÇA (org.), Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história social. Campinas, Editora Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, p. 4-13.
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MOREIRA, P.R.S. 2003. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto Alegre 1858-1888. Porto Alegre, EST, 358 p.
MOREIRA, P.R.S. 2007. Introdução. In: P.R.S. MOREIRA; T. TASSONI, Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre, EST, p. 7-15.
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REIS, J.J.; SILVA, E. 1989. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo, Companhia das Letras, 152 p.
SOARES, M. 2009. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750-c. 1830. Rio de Janeiro, Apicuri, 265 p.
Notas
2 Domenico Scandella ficou conhecido como Menocchio graças a Carlo Ginzburg, que procurou compreender o mundo do moleiro através dos arquivos da Inquisição. Seus ensinamentos renderam-lhe a qualificação de herege, sendo morto e torturado na fogueira (Ginzburg, 1987).
3 “Poucas crianças chegavam a ser adultos, sobretudo quando do incremento dos desembarques de africanos nos portos cariocas […] no intervalo entre o falecimento dos proprietários e a conclusão da partilha entre os herdeiros, os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos, dentre estes dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até os cinco anos” (Góes e Floretino, 2002, p. 180).
Debora Regina Vogt – Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Analista técnico educacional da rede SESI/SP. Av Paulista, 1313, 01311-923, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: vogt.deboraregina@gmail.com.
La nación imperial. Derechos, representación y ciudadanía en los imperios de Gran Bretaña, Francia, España y Estados Unidos (1750-1918) | Joseph M. Fradera
La gestación de La nación imperial, obra singular y monumental que consta de 1376 páginas repartidas en dos volúmenes, es fruto de un proceso de maduración que viene a ampliar el campo de acción de varios estudios que el historiador catalán Josep María Fradera ha realizado sobre el colonialismo español decimonónico, entre los que destacan Gobernar colonias (1999) y Colonias para después de un imperio (2005). En su nuevo libro, el autor ha decidido salir del ámbito estrictamente peninsular al comprobar la similitud entre las leyes especiales ideadas por Napoleón para las posesiones ultramarinas francesas a finales del siglo XVIII y el nuevo rumbo de los imperialismos europeos y norteamericano a lo largo del siglo XIX. Las fórmulas de especialidad que Fradera localiza en los principales imperios contemporáneos se verificarían hasta las descolonizaciones iniciadas en 1947 y – algo que queda fuera de los límites cronológicos del libro sin ceñir sus intenciones intelectuales – tendrían repercusiones hasta la actualidad.
Para llevar a cabo su investigación, Fradera cuestiona las categorías de los estudios coloniales y nacionales. En un cambio de escala analítica, el historiador desvela modalidades de concesión y restricción de derechos comunes a distintos imperios, más allá del enfoque clásico y circunscrito del Estado-nación [1]. Con todo, Fradera insiste en el hecho de que su trabajo no se debe comprender como un estudio de historia comparada en la acepción usual de la disciplina, ya que su propósito, como afirma, está menos “pensado para oscurecer las diferencias” que para “razonar las similitudes de casos muy diversos” (p. 1295). En este sentido, siempre vela por matizar las categorías generales de los imperios con las especificidades propias de los espacios considerados. Esta articulación entre lo macro y lo micro le permite centrar su análisis en las experiencias respectivas de los actores de la época [2].
En palabras de Josep M. Fradera, el giro historiográfico global actual “es en algún sentido una venganza contra la estrechez que impusieron las historias nacionales, el férreo brazo intelectual de la nación-estado” [3]. No es baladí indicar que Fradera, joven militante antifranquista, dio sus primeros pasos en la Universidad Autónoma de Barcelona a inicios de los años setenta, en el contexto de la revisión historiográfica alentada por las descolonizaciones posteriores a la Segunda Guerra Mundial [4]. Impregnado por este cambio epistemológico y por las aportaciones más recientes de la historia global, el nuevo estudio de Fradera propone un marco interpretativo que contempla los imperios en sus interrelaciones y supera la anticuada dicotomía entre metrópolis y colonias. Siguiendo a especialistas como C. A. Bayly, Jane Burbank, Frederick Cooper y Jürgen Osterhammel, el historiador catalán quiere demostrar que los imperios desempeñaron un papel activo en la fabricación y la evolución de la ciudadanía y de los derechos, siempre con la idea de denunciar los nacionalismos contemporáneos, así como los atajos teleológicos y esencialistas que pudieron generar en el plano historiográfico.
Más allá de sus orientaciones metodológicas – e intelectuales -, La nación imperial constituye una aportación de primera importancia al ser, que sepamos, el primer estudio redactado en castellano que brinda un abanico espacio-temporal de semejante trascendencia. Al cotejar los grandes imperios de Gran Bretaña, Francia, España y Estados Unidos entre 1750 y 1918 (con algunos apartados dedicados a Portugal y Brasil), el libro proporciona un análisis pormenorizado del proceso sinuoso que empieza con el advenimiento de la idea de libertad a raíz de las revoluciones atlánticas de finales del siglo XVIII y principios del XIX, hasta la consagración de la desigualdad a nivel mundial a lo largo de las centurias siguientes.
Uno de los designios centrales del libro es evidenciar el modo en que las tensiones que sacudieron los grandes imperios occidentales a raíz de la era revolucionaria desembocaron en la adopción de fórmulas de especialidad o de “constituciones duales”, esto es, constituciones que establecían marcos legislativos distintos para las metrópolis y las posesiones coloniales. Es más, Fradera considera la práctica de la especialidad “como la columna vertebral del desarrollo político de los imperios liberales” (p. XV). Según explica, el proceso revolucionario que arrancó con el carácter radical y universalista de la idea de libertad presente en la Declaración de Independencia de Estados Unidos de 1776 y en la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano francesa de 1789 conoció una involución notable en el siglo siguiente. La reconstrucción de los imperios tras las revoluciones supuso una delimitación cada vez más marcada en términos de representación entre metropolitanos – es decir, ciudadanos masculinos de pleno derecho – y ultramarinos, cuyos horizontes igualitarios se fueron desvaneciendo a medida que avanzó el ochocientos.
Fradera sostiene que el arduo equilibrio entre integración y diferenciación descansó sobre interrelaciones constantes entre metropolitanos y coloniales. Al comparar múltiples arenas imperiales, el autor muestra también que los paralelismos de ciertas políticas de especialidad respondieron a un fenómeno de emulación en las prácticas de gobierno colonial entre distintas potencias. Por otra parte, una perspectiva de longue durée le permite comprobar que los regímenes de excepción sobrevivieron al ocaso del mundo esclavista atlántico y se reinventaron con los códigos coloniales de la segunda mitad del siglo XIX para extenderse a territorios de África, Asia y Oceanía. El título del libro, al asociar dos conceptos que no se solían pensar como un todo, sugiere, en última instancia, que las transformaciones de los imperios fueron determinantes en la forja de las naciones modernas.
El libro está estructurado en cuatro partes organizadas cronológicamente. La parte liminar resalta el carácter recíproco de la construcción de la idea de libertad entre los mundos metropolitanos y ultramarinos en los imperios monárquicos francés, británico y español durante los siglos XVII y XVIII. Los derechos y la capacidad de representación no se idearon primero en los centros europeos para ser exportados luego a las periferias, sino que se fraguaron de forma simultánea. Este enfoque policéntrico servirá de base analítica para explicitar la estrecha relación entre colonialismo y liberalismo que se impondrá tras la crisis de los imperios monárquicos en el Atlántico.
“Promesas imposibles de cumplir (1780-1830)” es el título de la segunda parte del libro. Se centra en la quiebra de los imperios monárquicos y muestra cómo la adopción de nuevas pautas constitucionales para las colonias y el advenimiento de situaciones de especialidad en el marco republicano contrastaron con los valores radicales sustentados por las revoluciones liberales de la época.
La independencia de las Trece Colonias, pese a la igualdad de principio que conllevaba, no supuso una ruptura con los patrones socioculturales instaurados por los británicos en el continente americano. La joven república norteamericana circunscribió la ciudadanía a sus habitantes blancos y libres (valga la redundancia) y estableció una divisoria basada en el origen sociorracial y el género. Indios, esclavos, trabajadores contratados y mujeres no tenían cabida en la “República de propietarios”, aunque permanecían en el “Imperio de la Libertad”.
Para Gran Bretaña, la separación de las Trece Colonias marcó un cambio de era e implicó una serie de transformaciones que llevaron la potencia a extenderse más allá del mundo atlántico – donde le quedaban, sin embargo, posesiones importantes – para iniciar su swing to the East, esto es, el desplazamiento de su dominio colonial hacia el continente asiático y el Pacífico. La administración de situaciones diversas del Segundo Imperio, que ya no se resumía a la ecuación binaria del hiato entre connacionales y esclavos, implicó tomar medidas políticas para gobernar a poblaciones heterogéneas que vivían en territorios lejanos. Entre los ejes principales del gobierno imperial, cabe destacar el papel central otorgado a la figura del gobernador y la no representación de los coloniales en el parlamento de Westminster, si bien se toleraban formas de representación a nivel local.
En Francia, las enormes esperanzas igualitarias suscitadas en 1789 fueron canalizadas dos años después con la adopción de una Constitución que sancionaba la marginalidad de los coloniales y establecía raseros distintos para medir la cualidad de ciudadano. Establecer un régimen de excepción en los enclaves del Caribe francés permitía posponer la cuestión ardiente de la esclavitud – abolida y restablecida de forma inaudita – y mantener a raya a los descendientes de africanos, ya fuesen esclavos o libres. Se postergaría igualmente la idea de una representación de los coloniales en la metrópolis.
La fórmula de “constitución dual” inventada en Francia encontraría ecos en España y Portugal. Los dos países ibéricos promulgaron sus “constituciones imperiales” respectivas en 1812 y 1822, en un contexto explosivo marcado por el republicanismo igualitario y el ejemplo de la revolución haitiana. Mientras que la Constitución española de 1812 limitaba los derechos de las llamadas “castas pardas”, los constitucionalistas portugueses hicieron caso omiso de los orígenes africanos, pero, en cambio, excluyeron a los indios de la ciudadanía. Pese a sus diferencias, los casos españoles y portugueses guardan similitudes que tienen que ver con el fracaso de sus políticas liberales de corte inclusivo en los años 1820, y con el retroceso significativo en términos legislativos que desembocarían en el recurso a regímenes de excepción a partir de la década siguiente.
La tercera parte de La nación imperial, intitulada “Imperativos de igualdad, prácticas de desigualdad (1840-1880)”, versa sobre la expansión de los imperios liberales en las décadas centrales del siglo XIX, época marcada por la estabilización de las fórmulas de especialidad y de los regímenes duales.
El imperio victoriano tuvo que encarar situaciones conflictivas muy diversas en sus posesiones ultramarinas heterogéneas. La resolución del Gran Motín indio de 1857-1858 constituyó una crisis imperial de primer orden que permitió a Gran Bretaña demostrar su capacidad de gobierno en el marco de una sociedad compleja y de un territorio enorme que no se podía considerar como una mera colonia. La India británica era, en palabras de Fradera, “un imperio en el imperio” (p. 504) que carecía de la facultad para autogobernarse y que, por lo tanto, tenía que ser administrada y representada de manera transitoria por la East India Company. El caso de las West Indies era distinto en la medida en que aquellas se podían definir como colonias. La revuelta sociorracial de habitantes del pueblo jamaicano de Morant Bay en 1865 y la sangrienta represión a que dio lugar tuvieron un impacto considerable en la opinión pública británica, ocasionando nuevos cuestionamientos sobre los efectos reales de la abolición de la esclavitud y el rumbo de la política caribeña. Como consecuencia, el Colonial Office decidió suprimir la asamblea jamaicana y conferir a la isla el estatuto de Crown Colony, lo que constituía una regresión constitucional en toda regla. La conversión de la British North America en dominion de Canadá en 1867 se resolvió de manera más pacífica, aunque la población francófona y católica sufrió un proceso de aminoración frente a los anglófonos protestantes, mientras que los pueblos indios de los Grandes Lagos perdieron sus tierras ancestrales.
Los sucesos revolucionarios de 1848 en Francia volvieron a abrir pleitos que el golpe napoleónico de 1804 había postergado. Se decretó finalmente la abolición definitiva de la esclavitud, sin resolver satisfactoriamente la situación subordinada de los antiguos esclavos. La Segunda República también heredó un mundo colonial complejo. Fue a raíz de la toma de Argel en 1830 cuando la política colonial francesa comenzó a diferenciar las “viejas” de las “nuevas” colonias. Mientras que en las primeras las personas libres gozaban de derechos políticos y de representación relativos, las segundas – a imagen de Argelia, que estaría regida por ordenanzas reales – se apartaban del espectro legislativo. En el marco de este replanteamiento imperial, se procedió a una redefinición múltiple de la ciudadanía, que se medía, entre otras cosas, según la procedencia geográfica de cada uno: metropolitanos, habitantes de las “viejas” colonias y, al pie de la escala simbólica de los derechos, habitantes de las “nuevas” colonias.
En Estados Unidos, los términos de la ecuación se presentaban de forma algo distinta. En efecto, a diferencia de los imperios europeos, las fórmulas de especialidad se manifestaron en el interior de un espacio que se entiende comúnmente como “nacional”. Con todo, dinámicas internas fraccionaron profundamente el espacio y la sociedad de este “imperio sin imperialismo” (p. 659). La expansión de los Estados esclavistas en el seno del “imperio de la libertad” constituyó una paradoja que solo se resolvería – aunque no totalmente – con la guerra de Secesión. De hecho, la “institución peculiar”, como se la llamaba, ponía al descubierto la diversidad social, étnica y cultural de una población norteamericana escindida en grupos con o sin derechos variables. La expansión de la frontera esclavista no solo concernía a los esclavos, sino que afectaba a poblaciones indias desposeídas de sus tierras y recolocadas en beneficio de oleadas sucesivas de colonos norteamericanos procedentes del Este y de europeos.
El carácter del Segundo Imperio español se aclaró con la proclamación de una nueva Constitución en 1837, que precisaba en uno de sus artículos adicionales que “las provincias de ultramar serán gobernadas por leyes especiales”. A pesar de que dichas leyes nunca fueron plasmadas por escrito, quedan explícitas en la práctica del gobierno colonial. A años luz de las promesas igualitarias de las primeras Cortes de Cádiz, las nuevas orientaciones políticas para Cuba, Puerto Rico y Filipinas pueden resumirse en una serie de coordenadas fundamentales: la autoridad reforzada del capitán general, el silenciamiento de la sociedad civil, la expulsión de los diputados americanos y la política del “equilibrio de razas” (es decir, la manipulación de las divisiones sociorraciales y la defensa de los intereses esclavistas).
La cuarta y última parte del libro, que lleva por título “La desigualdad consagrada (1880-1918)”, coincide con la época conocida como el high imperialism. Sus páginas prestan especial atención al desarrollo y consolidación de enfoques de corte racialista. El hecho de que las ciencias sociales se hicieran eco de las clasificaciones raciales propias del desarrollo de los imperios a partir de la segunda mitad del ochocientos demostraba que el Derecho Natural del siglo anterior ya no estaba al orden del día.
El mayor imperio liberal de la época, Gran Bretaña, refleja muy bien la exacerbación de la divisoria racialista con respecto al Segundo Imperio. Los discursos que defendían la idea de razas jerarquizadas se nutrieron de los debates en torno a la representación de los coloniales e impregnaron los debates relativos al imperio. Tal fue el caso, por ejemplo, de Australia, donde se excluyó de los derechos a una población tasmana diezmada por la violencia directa e indirecta del proceso de colonización. Sin embargo, conviene no olvidar que los discursos racialistas actuaron como coartada de la demarcación entre sujetos y ciudadanos.
Argelia fue una pieza esencial del ajedrez político de la Tercera República, en particular, porque se convirtió en laboratorio para las legislaciones especiales del Imperio francés. El Régime de l’indigénat representó la quintaesencia del ordenamiento colonial galo. Este régimen de excepción dirigido inicialmente contra la población musulmana de Argelia fue el broche de oro jurídico de las fórmulas de especialidad republicana hasta tal punto que fue exportado al África francesa y a la mayoría de las posesiones del sudeste asiático y del Pacífico. Esta política de marginalización y de represión propia de la lógica imperial se tiñó de acusados acentos etnocentristas para justificar la “misión civilizadora” de Francia.
La Revolución Gloriosa de 1868 llevó el Gobierno español a mover ficha en sus tres colonias. Si la Constitución del año siguiente anunciaba reformas políticas para Cuba y Puerto Rico, las islas Filipinas quedaban sometidas a la continuidad de las famosas – e inéditas – “leyes especiales”. El ocaso del sistema esclavista explicaba en buena medida el cambio de rumbo colonialista en los dos enclaves antillanos, así como sus dinámicas propias. El archipiélago filipino pasó por un proceso de transformación económica, acompañado de reformas locales de alcance limitado y por una racialización política cada vez más intensa. Los fracasos ultramarinos de la España finisecular tendrían repercusiones en el espacio peninsular con la exacerbación de no pocos afanes de autogobierno a nivel regional.
Estados Unidos conoció serias alteraciones en su espacio interno tras la Guerra Civil. La reserva india, que emergió en el último tercio del siglo XIX, era un zona de aislamiento cuyos miembros no gozaban de derechos cívicos y a los se pretendía incluir en la comunidad de ciudadanos mediante políticas de asimilación. En este sentido, las reservas eran espacios de la especialidad republicana. La victoria de los unionistas distó mucho de significar la superación del problema esclavista y, sobre todo, de sus secuelas. El hecho de que el voto afroamericano se convirtiera en realidad en el mundo posterior a 1865 – conquista cuya trascendencia conviene no subestimar – no impidió que las elites políticas blancas siguieran llevando las riendas del poder, tanto en el Norte como en el Sur. En los antiguos Estados de la Confederación, ya no se trataba de mantener la esclavitud, sino de preservar la supremacía blanca. La segregación racial, que se puede asemejar a una práctica de colonialismo interno, contribuyó a instaurar situaciones de especialidad en las que los afroamericanos serían considerados como súbditos inferiores. En el ámbito externo, el fin de siglo sentó algunas de las bases futuras de este “imperio tardío” (p. 1276). Estados Unidos expandiría sus fronteras imperiales al ejercer su dominio sobre las antiguas colonias españolas y al formalizar el colonialismo que practicaba de hecho en Hawái y Panamá.
Resulta difícil restituir de forma tan sintética los mil y un matices delineados con una precisión a veces quirúrgica en los dos gruesos volúmenes que componen La nación imperial. La elegancia del estilo, la erudición del propósito y los objetivos colosales del libro – que se apoya en una extensa bibliografía plurilingüe – acarrean no pocas repeticiones. Pese a una edición cuidada, se echa en falta la presencia de un índice temático (además del onomástico) y de una bibliografía al final de la obra. Estos escollos, que incomodarán sin duda al lector en busca de informaciones y análisis sobre temas específicos, no cuestionan de modo alguno el hecho de que La nación imperial sea un trabajo muy importante y sin parangón.
Creemos que Josep María Fradera ha alcanzado su objetivo principal al mostrar, como indica en sus “reflexiones finales”, que “la crisis de las ‘monarquías compuestas’ (…) no condujo al Estado-nación sin más, sino a formas de Estado imperial que eran la suma de la comunidad nacional y las reglas de especialidad para aquellos que habitaban en los espacios coloniales” (p. 1291). Otra de las grandes lecciones del libro es que el etnocentrismo europeo no basta para explicitar el modo en que se articularon definiciones y jerarquizaciones cada vez más perceptibles de las poblaciones variopintas de imperios cuyas fronteras políticas, sociales y culturales fueron mucho más borrosas de lo que se suele pensar. El racismo biológico a secas nunca estuvo en el centro de las políticas imperiales, aunque pudo manifestarse puntualmente para justificar algunas de sus orientaciones. Lejos de responder a esquemas estrictamente dicotómicos, las lógicas imperiales, además de relaciones de poder evidentes, estuvieron condicionadas por una tensión permanente en cuyo marco la capacidad de representación – por limitada y asimétrica que fuese -, la sociedad civil y la opinión pública fueron decisivas. En última instancia, el largo recorrido por las historias imperiales invita a adoptar una mirada más crítica acerca de problemáticas tan actuales como el lugar ocupado por ciudadanos de segunda categoría en el interior de antiguos mundos coloniales que no han resuelto las cuestiones planteadas por el despertar de los nacionalismos, la inmigración de nuevo cuño y la construcción de apátridas modernos.
Notas
1. Al respecto, véase Jane Burbank y Frederick Cooper, “Empire, droits et citoyenneté, de 212 à 1946”, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 3/2008, pp. 495-531.
2. Sobre el valor heurístico del vaivén entre varias escalas de análisis puede consultarse el estudio de Romain Bertrand, “Historia global, historias conectadas: ¿un giro historiográfico?”, Prohistoria, 24/2015, pp. 3-20.
3. Josep M. Fradera, “Historia global: razones de un viaje sin retorno”, El Mundo, 04/6/2014 [http://www.elmundo.es/la-aventura-de-la-historia/2014/06/04/538ed57f268e3eb85a8b456e.html].
4. Jordi Amat, “Josep María Fradera y los estados imperiales”, La Vanguardia, 23/5/2015.
Karim Ghorbal – Institut Supérieur des Sciences Humaines de Tunis, Universitéde Tunis El Manar (Tunísia). E-mail: karim.ghorbal@issht.utm.tn
FRADERA, Joseph M. La nación imperial. Derechos, representación y ciudadanía en los imperios de Gran Bretaña, Francia, España y Estados Unidos (1750-1918). Barcelona: Edhasa, 2015. 2 vols. Resenha de: GHORBAL, Karim. Los imperios de la especialidad o los márgenes de la libertad y de la igualdad. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 287-295, set./dez., 2016.
Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos | Élisée Reclus
In every object, mountain, tree, and star – in every birth and life,
As part of each – evolv’d from each – meaning, behind the ostent,
A mystic cipher waits infolded.[1]
Walt Whitman, Shakspeare-Bacon Cipher. Leaves of grass
Em 1866, o geógrafo francês Élisée Reclus (1830-1905) publicou na prestigiada Revue des deux mondes um de seus textos mais conhecidos, Do sentimento da natureza nas sociedades modernas. O texto fez um enorme sucesso e influenciou uma geração de pensadores e escritores do período, abordando temas que permeariam os escritos e as ideias no século XIX. O artigo foi traduzido e publicado em português numa primeira edição em 2010 e agora saiu reimpresso pela Intermezzo e pela Edusp, com ótima tradução e projeto editorial de Plínio Augusto Coelho.
Élisée Reclus foi um dos maiores viajantes do século XIX. Numa época em que as ciências humanas ainda não haviam se dividido em especializações, ele foi, sobretudo, um humanista, um intelectual, um ensaísta. Andava pelo globo, pensando em diferentes problemas, vendo sociedades distintas, celebrando a natureza em contraste com o que dizia ser a dura vida das cidades. No texto que dá título ao livro, “Do sentimento da natureza nas sociedades modernas”, publicado em maio de 1866, é a montanha que domina a paisagem e sua escrita. Para ele, a montanha, ou a subida e a conquista da montanha, seria a metáfora perfeita para exprimir seus ideais de solidariedade, fraternidade e liberdade entre os povos.
Mais tarde, em sua extensa obra escrita, Reclus escreveria um livro inteiramente dedicado à montanha, História de uma montanha, de 1880. Nesse livro, as ideias sobre a montanha se misturam com antigas mitologias – a montanha evocando um arquétipo abstrato, quase uma pirâmide sagrada. A montanha fez parte do imaginário europeu do século XIX e muitos pensadores se debruçaram sobre o tema no período. O filósofo alemão Friederich Nietzsche (1844-1900), por exemplo, escreveu sobre as raízes de uma montanha mágica, o Olimpo, em seu primeiro livro, O nascimento de uma tragédia no espírito da música, publicado em 1872.[2] Nietzsche contrapôs a calma e a serenidade clássicas aos espíritos dionísicos da mística, da música, da dança e da embriaguez do vinho. A montanha, na verdade, estava no centro do mito fundador da cultura grega e assim ela aparece nos escritos e desenhos de vários pensadores e artistas ao longo do século XIX – como tema, como personagem, como símbolo, como desejo de aventura.
A imagem da montanha esteve presente também em pensamentos e livros matemáticos como foi o caso do astrônomo escocês Charles Piazzi-Smith (1819-1900), que na época publicou seu livro de grande sucesso A Grande Pirâmide: seus segredos e mistérios revelados. Piazzi-Smith fez uma teoria matemática para provar que a Pirâmide de Gizé guardava uma relação geométrica e matemática especial de medidas.[3] Ao citá-lo em seu estudo, Reclus faz referência a uma espécie de matemática sagrada contida na natureza e nas montanhas.[4]
Aquele que escala uma montanha não será entregue ao capricho dos elementos como o navegador aventurado nos mares; bem menos ainda como o viajante transportado por ferrovia, um simples pacote humano tarifado, etiquetado, controlado, depois expedido a hora fixa sob a vigilância de empregados uniformizados. Tocando o solo, ele retomou o uso de seus membros e de sua liberdade. Seu olho serve-lhe para evitar as pedras da senda, medir a profundidade dos precipícios, descobrir as saliências e a anfractuosidades que facilitarão a escalada dos paredões.[5]
A natureza foi um tema clássico durante o iluminismo do século XVIII. Ao voltar-se para esse tema no texto que dá título ao livro, Reclus estava evocando diversas ideias e filósofos, como Voltaire e Rousseau, mas recolocando-os num novo contexto, o de sua época, com a forte influência romântica. O poeta inglês lorde Byron (1788-1824), George Gordon, é citado diversas vezes em sua obra como exemplo de revolucionário por sua atuação na Grécia, bem como Giuseppe Garibaldi (1807-1882), e as guerras de unificação da Itália.[6]
Cidade e natureza, montanha e nacionalidade, sentimentos e geografia são ideias aparentemente distantes que se encontram tanto ao longo deste texto especificamente, e também em toda sua obra. Reclus escreveu suas impressões sobre a natureza e a sociedade, quase como se pintasse um quadro em que as pinceladas formam a paisagem se o quadro for visto de certa distância, um quadro impressionista. Na mesma época em que Reclus editou seu livro sobre a montanha, um de seus contemporâneos, o pintor Paul Cézanne (1839-1905), começou uma série de quadros sobre o Mont Saint-Victoire, na Provence. Se o geógrafo colocou o sentimento da natureza e o poder da montanha em livros, Cézanne traduziu esses sentimentos em quadros de paisagens.[7]
Reclus é um ícone para os geógrafos, estudado e publicado há muitas décadas – é uma espécie de pai fundador, ao lado de Vidal La Blache.[8] Sua influência é comparável à de Jules Michelet (1798-1874) para os historiadores, uma inspiração, um mito, um pensador profundo e genial para sua época. Os dois, Reclus e Michelet, provavelmente se conheceram já que uma irmã de Reclus se casou com um genro do historiador.[9]
Quando o texto sobre o sentimento da natureza saiu na Revue des deux mondes, Reclus começava seu período de maior prestígio intelectual, escrevendo para uma das mais influentes revistas do mundo.[10] Quarto filho de um professor e pastor calvinista nascido numa pequena cidade do interior da França, Sainte-Foy-la-Grande, Jean-Jacques Élisée Reclus teve vários irmãos igualmente influentes no século XIX, como etnógrafo Élie, o também geógrafo Onésime, o explorador Armand, o cirurgião Paul. Com o irmão Élie, que viria a ser seu parceiro intelectual, ele cursou dois anos na faculdade de teologia protestante de Montauban, quando desistiu de seguir os passos do pai. De lá partiu para Berlim, onde começou seus estudos de geografia e tornou-se rapidamente discípulo do geógrafo alemão Carl Ritter (1779-1859).
Eram os anos 1850 e a política fervia na França. Em 2 de dezembro de 1851, Luis Napoleão Bonaparte (1808-1873), sobrinho de Napoleão, dissolveu a Assembleia Nacional Francesa para estabelecer o Segundo Império. Sob o impacto dos acontecimentos e seduzido pelos ideais socialistas, Reclus voltou à França para se engajar na luta contra o império, pela república. A partir desse momento, o geógrafo passou a escrever com propósito político, para difundir seus saberes na tentativa de ilustrar o público e fazê-lo compreender os diversos problemas do globo. Para se entender o texto “Do sentimento da natureza nas sociedades modernas”, um dos mais conhecidos do geógrafo, é preciso compreender suas andanças pelo mundo. Além disso, é o texto inspirador dos ideais de viagens e viajantes do século XIX.
Exilado da França logo após o Segundo Império ter início, Reclus passou alguns anos em Londres – onde foi até a Irlanda, que o impressionou com a fome endêmica que, de 1847, ainda castigava o país. Em Londres ele trabalhou como professor, ganhando miseravelmente até que seguiu para a América como preceptor de uma família de fazendeiros ricos, dona de plantations, que seguia para a Nova Orleans, nos Estados Unidos. Na América do Norte, Reclus viveu por dois anos, entre 1853 e 1855, onde viu e escreveu sobre a escravidão.
Seus escritos sobre os Estados Unidos representam três textos do livro agora editado, “Da escravidão nos Estados Unidos: o código negro e os escravos” (1860), Da escravidão nos Estados Unidos: os plantadores e os abolicionistas” (1861) e “John Brown” (1867), os dois primeiros publicados na Revue e o último na revista La Coopération. A experiência dos anos em que viveu no sul do país foi marcante e Reclus tornou-se um ferrenho abolicionista.
É de se notar que os anos em que habitou a plantation foram de intensa discussão política e que, pouco depois, os Estados Unidos entrariam em conflito com a Guerra de Secessão (1861-1865), sendo que os textos foram publicados a quente, ou seja, com a guerra na iminência de começar e logo depois do início. O objetivo de Reclus era entender a guerra americana e apresentá-las para os leitores de todo o mundo, dada a enorme influência da Revue no mundo.
São os Estados Unidos que servem de parâmetro para que o geógrafo entenda a América do Sul e mais especialmente o Brasil. A comparação é uma constante, como podemos notar no artigo “As repúblicas da América do Sul, suas guerras e seu projeto de federação”, publicado na Revue de 1866. No texto, a comparação com a Guerra do Paraguai (1864-1870) é direta e o geógrafo faz a mesma análise de províncias do Sul versus províncias do Norte. Da mesma maneira, o texto foi escrito a quente, no calor dos acontecimentos, e também tentava dar uma visão geral para o leitor da geografia, do povo e dos acontecimentos que se desenrolavam.
Eliesée Reclus voltou à França em agosto de 1857, quando ele encontra o pensador anarquista Mikhail Bakunin (1814-1876), de quem se tornou amigo, ao lado de seu irmão Élie. Juntos fundariam a sociedade secreta Fraternité Internationale. Entre 1867 e 1868, Reclus publicou a obra que lhe daria reconhecimento internacional, La Terre, description des phénomènes de la vie du globe. Mais tarde, esse volume se transformaria na sua maior obra, Nouvelle Geógraphie Universalle.
O livro agora publicado traz um apanhado da obra de Reclus e, entre os textos escolhidos, está um de seus mais conhecidos escritos anarquistas póstumos, “A evolução, a revolução e o ideal anarquista”. Nele o geógrafo resume sua filosofia política em escritos que estabelecem estreita ligação entre natureza, sentimentos, política e filosofia de vida – o geógrafo era vegetariano.
Elisée Reclus esteve no Brasil em julho de 1893.[11] Na ocasião, ele deu uma conferência na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (que se transformaria na Sociedade Brasileira de Geografia), fundada em 1883, pelo então senador imperial Manuel Francisco Correia (1831-1905).[12] Já era teórico mundialmente conhecido e a Sociedade fez sessão especial no dia 18 de julho apenas para recebê-lo. Reclus visitava o país para recolher subsídios para o 19º volume de sua Nouvelle Geógraphie Universalle.
A vinda de Reclus para o Brasil foi organizada e patrocinada pela editora francesa Hachette e foi a última de suas grandes viagens pelo continente americano. O Brasil realmente aparece no 19º volume da Nouvelle Geógraphie Universalle – a Amazônia e seus rios dominam a escrita e ajudam a formar o imaginário da época sobre região, com comparações com outros grandes rios de civilizações distantes, como o Nilo, no Egito. Os textos sobre a região já estavam entre as preocupações do geógrafo, que poucos anos antes havia escrito “O Brasil e a colonização: a Bacia das Amazonas e os indígenas”, para a Revue de deux mondes em 15 de junho, e “As províncias do litoral, os negros e as colônias alemãs”, em 15 de julho, ambos em 1862. Os dois textos fazem parte do volume agora editado. Poucos anos depois, em 1899, o Brasil passou a ser o personagem principal de um livro totalmente dedicado ao país, Estados Unidos do Brasil: geografia, etnografia, estatística.[13]
A influência de Reclus sobre o pensamento brasileiro do período foi grande. O geógrafo fez parte de um grupo de pensadores e cientistas estrangeiros que pensaram sobre a nação e a nacionalidade. Wilma Peres da Costa já abordou a existência desse primeiro nacionalismo brasileiro composto por uma narrativa erudita europeia de intelectuais franceses que chegaram ao Brasil com a Missão Francesa. Pouco mais tarde, a influência de viajantes e escritos de estrangeiros sobre o d. Pedro II era significativa a ponto de moldar um determinado discurso de grande impacto nos pensadores brasileiros.[14]
A maneira como o Reclus foi lido e entendido pelos brasileiros fez parte desse movimento e moldou a maneira como os próprios brasileiros se viam. Inspirado pelo romantismo, Reclus escrevia sobre um país de natureza exuberante, marcado pelas chagas da escravidão. Joaquim Nabuco certamente leu o geógrafo, bem como Euclides da Cunha. Este, por exemplo, falou da importância de Reclus para sua obra em uma carta para Coelho Neto em 30 de junho de 1908, enquanto preparava seu livro nunca realizado sobre a Amazônia, Um paraíso perdido.[15]
Para os historiadores, Reclus, o geógrafo, abre muitas portas de análise e possibilidades de conhecimento. Viagens e viajantes são a primeira a mais óbvia porta para o estudo de Reclus – mas muitas outras se entreabrem ao longo do extenso volume agora publicado, como o das relações entre Brasil e Estados Unidos, a do nascimento da geografia e das diferentes áreas humanidades, da história das cidades, das publicações e da importância da Revue des deus mondes, da história do marxismo e do anarquismo.
Notas
1. Em cada montanha, árvore e estrela – em cada nascimento/ e vida/ integrando cada sentido/ e se desdobrando dele, por trás da/ manifestação/ uma cifra mística espera dobrada.
2. Bradbury, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 97-119.
3. Crease, Robert. A medida do mundo: a busca por um sistema universal de pesos e medidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 139-147. O astrônomo Piazzi-Smith fez sua teoria para se contrapor ao estabelecimento do sistema métrico francês. Foi seu livro que deu subsídios para que se criassem diversas sociedades antimétricas no século XIX.
4. Duarte Horta, Regina. “Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia libertária de Elisée Reclus”. Revista Brasileira de História, vol. 26, n. 51, janeiro-junho 2006. Consulta 21/07/2016. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000100002
5. Reclus, Élisée. Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos. São Paulo: Intermezzo/ Edusp, 2015, p. 52.
6. Clark, John P. e Martin, Camile. Anarchy, geography, modernity: the radical social thought of Elisée Reclus. Lanham: Lexington Books, 2004, p. 247.
7. Atanassoglou-Kallmyer, Nina. Cezanne and Provence: the painter in his culture. Chicago: Chicago University Press, 2003.
8. Ver, entre tantos outros livros sobre a história da geografia, a recente publicação de Larissa Alves de Lira. O Mediterrâneo de Vidal de La Blache. São Paulo: Alameda Editorial, 2015.
9. Atanassoglou-Kallmyer, Nina. Cezanne and Provence: the painter in his culture. Chicago: Chicago University Press, 2003, p. 284.
10. Na mesma época ele também passou a fazer guias de viagem para a editora Hachette, patrocinadora de muitas de suas viagens.
11. Cardoso, Luciene Carris. “A visita de Élisée Reclus à sociedade de geografia do Rio de Janeiro”. Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, vol. 1, n. 1, 2006 (ISSN 1980 – 9387). Consulta em 18/7/2016. (http://www.socbrasileiradegeografia.com.br/revista_sbg/luciene%20p%20c%20cardoso.html)
12. As diferenças e os conflitos entre a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foram explorados por Luciene Carris Cardoso no artigo “Notas sobre o papel da sociedade de geografia do Rio de Janeiro e sua contribuição sobre o saber geográfico no Brasil.” Revista Fenix de História e Estudos Culturais. Vol VII, ano 7, n.2. Consulta 19/7/2016. http://www.revistafenix.pro.br/PDF23/ARTIGO_12_LUCIENE_PEREIRA_CARRIS_CARDOSO_FENIX_MAIO_AGOSTO_2010.pdf
13. Reclus, Élisée. Estados Unidos do Brasil: geografia, etnografia, estatística. Tradução e breves notas de barão de F. Ramiz Galvão e anotações sobre o território contestado pelo barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899.
14. Costa, Wilma Peres. Narrativas de viagem no Brasil do século XIX: formação do Estado e trajetória intelectual. In: RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006
15. Nogueria, Nathália Sanglard de Almeida. Margear o outro: viagem, experiência e notas de Euclides da Cunha nos sertões baianos. Rio de Janeiro: tese de doutoramento, Universidade Federal Fluminense, 2013, p. 39.
Joana Monteleone – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo SP, Brasil. E-mail: joana@alamedaeditorial.com.br
RECLUS, Élisée. Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos. São Paulo: Intermezzo/Edusp, 2015. Resenha de: MONTELEONE, Joana. Elisée Reclus, o geógrafo impressionista. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 296-302, set./dez., 2016.
A Virtue for Courageous Minds: Moderation in French Political Thought 1748-1830 | Aurelian Craitu
Em A Virtue for Courageous Minds: Moderation in French Political Thought, 1748-1830, lançado em capa dura em 2012 e impresso em brochura três anos depois, o cientista político e historiador Aurelian Craiutu, professor da Universidade de Indiana, Estados Unidos, oferece aos leitores um livro desafiador e paradoxal.
Autor de vários textos sobre o liberalismo europeu dos séculos XVIII e XIX, dentre os quais se destaca seu livro de 2003 sobre os doutrinários franceses (Liberalism under Siege: The Political Thought of the French Doctrinaires ), Craiutu é tradutor e organizador de outros trabalhos sobre importantes pensadores liberais, tendo apresentado e traduzido para o inglês duas obras fundamentais para a doutrina liberal do século XIX, Considérations sur les principaux événements de la Révolution française , de Mme. De Stäel, e Histoire des origines du gouvernement représentatif, de François Guizot, além de ter ajudado a organizar dois livros sobre Tocqueville. O estudioso reuniu o vasto arsenal adquirido em mais de uma década e meia de estudos sobre a doutrina liberal para avançar a seguinte tese: a moderação é a quintessência da virtude política, um “arquipélago perdido” que historiadores e cientistas políticos ainda estão por descobrir (p. 1).
Dividido em duas partes – cada qual contendo três capítulos -, o livro oferece um estudo aprofundado de certos autores liberais francófonos que, exceção feita ao clássico e bastante conhecido Montesquieu, se destacaram no cenário público francês entre os momentos de crise do Antigo Regime e a Revolução de 1789, muito embora não tenham recebido a devida atenção da academia e do público em geral no passado como no presente. São eles, na ordem, os líderes monarchiens (monarquianos), designação pejorativa que os jacobinos atribuíram a um grupo heterogêneo de deputados da Assembleia Constituinte formado por Mounier, Malouet, Lally-Tollendal e Clermont-Tonnerre entre outros, e os quais se destacaram por defender o bicameralismo e o veto absoluto do monarca (capítulo 3); o banqueiro suíço Jacques Necker, o célebre ministro das Finanças de Luís XVI, cujas reflexões sobre a Revolução Francesa e a relação entre o Poder Executivo e os demais Poderes continuam largamente ignoradas até hoje (capítulo 4); Germaine Necker ou Mme. de Stäel, a filha de Necker e prolífica autora de artigos, panfletos e livros, além de importante ativista política nos quadros do Diretório e da Restauração (capítulo 5); o suíço Benjamin Constant (capítulo 6), parceiro afetivo, intelectual e político de Mme. de Stäel sobretudo nos períodos do Diretório e do Consulado e, como ela, autor igualmente prolífico – depois de Montesquieu, certamente o mais conhecido e estudado entre os elencados.
Além do prólogo, no qual expõe as justificativas e a metodologia da pesquisa, e do epílogo, no qual conclui com uma espécie de “decálogo” explicativo da moderação, o livro apresenta um esboço sobre o lugar ocupado pelo conceito de moderação no pensamento político ocidental, da antiguidade clássica e pensadores cristãos aos humanistas da época Moderna e filósofos franceses da Ilustração (capítulo 1), bem como um longo capítulo dedicado ao autor de O Espírito das Leis (1748), o barão de Montesquieu (segundo 2) – a meu ver o melhor do livro e, não por acaso, a pedra-angular da obra.
A escolha de Montesquieu como marco epistemológico inicial do estudo e da Revolução Francesa como tela de fundo do trabalho se justificam. O primeiro, pelo fato de haver delegado papel central à moderação política em sua grande obra, a qual teve o mérito de destacar os traços constitucionais, institucionais e legais da moderação para além das considerações de ordem ética sobre o caráter dos governantes ou dos legisladores. Ademais, as reflexões políticas de O Espírito das Leis e das produções dos demais autores ilustram os dois principais temas do livro de Craiutu: a moderação como conteúdo de uma agenda crítica e reformista do Antigo Regime; e as diversas tentativas de institucionalização da moderação política durante e após a Revolução de 1789, o eixo ou pano de fundo do livro. Inspirado no conceito de Sattelzeit (“tempo-sela”, tempo de aceleração histórica), cunhado por Reinhart Koselleck, e ecoando reflexões de François Furet acerca dos impactos da Revolução Francesa sobre a cultura política contemporânea, Craiutu justifica a centralidade daquele evento pelo fato de que “continuamos a viver num mundo democrático moldado e construído pelos ideais e princípios da Revolução Francesa” (p. 2).
É tendo por base as reflexões políticas de Montesquieu e de seus intérpretes envoltos no fenômeno revolucionário francês que Craiutu desdobra o que ele próprio designou como as quatro meta-narrativas do livro: I. a moderação abordada pelo aspecto político e institucional (e não como uma virtude pessoal ou individual), cujo propósito é salvaguardar não apenas a ordem, mas também a liberdade individual; II. a afinidade existente entre a moderação política e a complexidade institucional ou constitucional, conforme ilustraram Montesquieu por meio de seu conceito de “governo moderado”, os monarquianos com a defesa do bicameralismo e do veto absoluto, Necker mediante sua teoria da “soberania complexa” ou do “entrelaçamento dos poderes”, Mme. de Stäel com a sua busca de um “centro complexo” para consolidar a república termidoriana e Benjamin Constant em sua teoria do poder neutro; III. a moderação como a defesa sensata da liberdade, o que não se confunde com o conceito filosófico do juste milieu, pois a moderação pode se traduzir em atitudes tanto equilibradas como radicais de acordo com o contexto político; IV. por isso, a ação moderadora não pode ser analisada por meio do vocabulário político usual (direita ou esquerda), uma vez que possui conotações radicais ou conservadoras conforme o tempo e o espaço. Como bem destacou o autor no prólogo, há momentos em que as intenções moderadoras deixam de ser virtude e passam a significar fraqueza ou traição de princípios – poderíamos exemplificá-lo com o infame Pacto de Munique celebrado entre as potências europeias e a Alemanha nazista, que suscitou um célebre discurso de Churchill.
Na esteira do caráter elástico de seu tema, Craiutu optou por uma abordagem eclética na qual o contextualismo linguístico da Escola de Cambridge e a tradição historiográfica revisionista de Furet e seus discípulos (especialmente Lucien Jaume, destacado estudioso do liberalismo francês do século XIX) se articulam para dotar o livro de um caráter duplo. A Virtue for Courageous Mind pode ser lido ora como obra de filosofia política, ora como trabalho de história das ideias, dado o constante diálogo entre a análise textual e interpretação contextual.
Além das referências citadas acima, é possível identificar outras figuras importantes para o desenvolvimento da hipótese do autor, tais como Jonathan Israel, Judith Shklar, Norberto Bobbio e Isaiah Berlin. De acordo com Craiutu, cientistas sociais ignoram o conceito político da moderação por vários fatores, dentre os quais se destacam a persistência de uma tradição filosófica radical que associa a agenda moderada à defesa conservadora do status quo (de Marx a Israel); a tendência a enxergar na moderação um programa minimalista pautado pelo medo ou pela oposição aos extremos (provável alusão a Shklar e seu artigo ”Liberalism of fear”, de 1989); por fim, indo ao encontro de Bobbio e de Berlin, a visão dominante, não restrita à academia, que vincula a moderação à sagacidade de um determinado agente político, o qual, para conquistar seus objetivos, recorre a quaisquer tipos de compromissos ou manobras (o político encarado como um leão ou uma raposa).
Na contramão do insistente e vigoroso senso comum acerca do tema, Craiutu sustenta – inspirado numa citação do liberal-conservador Edmund Burke, de quem toma de empréstimo nada menos que o título do livro – que a moderação é “uma arrojada virtude para mentes corajosas” (p. 9). Ela não deve ser reduzida a mero meio-termo entre extremos nem tampouco representa sinônimo de pusilanimidade, hesitação ou cálculo cínico de realismo político. Com implicações institucionais e, segundo o autor, desempenhando um papel crucial na aquisição ou fortalecimento dos valores democráticos e liberais, a agenda moderada dos autores selecionados possui em comum pluralismo (de ideias, interesses e forças sociais), reformismo (reformas graduais em vez de rupturas revolucionárias) e tolerância (postura cética que reconhece limites humanos, especialmente para a ação política).
Antes de comentar o que, a meu ver, constitui o problema central do livro, a saber, a identidade das reflexões moderadas desses autores para a aquisição, manutenção e fortalecimento da democracia liberal (p. 9), gostaria de destacar alguns méritos da obra.
O primeiro ponto que saliento é, se não a originalidade, ao menos a correção no tratamento de um autor clássico como Montesquieu. Craiutu sugere que, mais do que propor um governo moderado fundado na separação dos poderes, equívoco reproduzido por incontáveis intérpretes, o que Montesquieu efetivamente sustentou foi uma teoria sobre a divisão dos poderes na qual o Executivo e o Legislativo exerciam controles recíprocos e moderavam as iniciativas de cada um – sua visão, no espírito da doutrina do equilíbrio de poder vigente na época e inspirada na constituição inglesa, pode ser traduzida na fórmula de que só um poder é capaz de controlar e regular outro poder, de modo que a estrita separação entre ambos daria margem a usurpações ou levaria à paralisia institucional. Nos quadros da Revolução Francesa, esse tópico da complexidade constitucional/institucional como condição sine qua non para a obtenção de um governo livre (moderado) se desenvolve nas obras dos monarquianos (bicameralismo e veto absoluto), de Necker (teoria do entrelaçamento dos poderes) e, sobretudo, de Benjamin Constant (teoria do poder neutro). Para demonstrá-lo, Craiutu procedeu a uma criteriosa pesquisa de fontes primárias (obras e discursos dos autores e de seus interlocutores, além de textos legais ou constitucionais) e secundárias (nas mais diversas línguas, do francês e inglês ao alemão), bem como a um erudito exercício de interpretação e reconstrução contextual. Do ponto de vista formal, os únicos senões correm por conta da omissão de um importante intérprete atual da obra de Benjamin Constant (Tzvetan Todorov), bem como da inusitada ausência de uma bibliografia no final do livro, o que dificulta a leitura de suas inúmeras e ilustrativas notas.
Craiutu foi feliz na escolha e no tratamento dos autores, na medida em que eles possuem um núcleo conceitual comum, a moderação vista sob o prisma da complexidade institucional, e defendem princípios filosóficos semelhantes: de Montesquieu a Constant, a mesma preocupação com a moderação das penas e com a absoluta liberdade de expressão; os benefícios do comércio; as garantias para a propriedade privada; o entendimento das desigualdades sociais como resultantes da fortuna ou do intelecto, numa visão otimista da meritocracia; o estabelecimento de pesos, contrapesos e divisões entre os poderes, o que é diferente da separação entre eles; a necessidade de um Judiciário independente do Legislativo e do Executivo; e a crítica às visões monistas ou absolutistas do poder que, da vontade geral de Rousseau às críticas de Paine ao governo misto da Inglaterra, redundaram na mera transferência do poder absoluto do monarca para o poder absoluto do Legislativo (como sabemos, trata-se de uma das principais teses de Furet sobre a Revolução Francesa).
Segundo Craiutu, o pensamento liberal, devido em grande medida à experiência da Revolução Francesa e do traumático período do Terror, teria passado por uma nítida evolução. Aos poucos seus autores teriam se preocupado menos com quem exerce a soberania (o monarca, uma maioria popular ou uma minoria abastada e ilustrada) e mais com a maneira em que a soberania é exercida, até concluírem que o que realmente importa é o estabelecimento de limites ao poder a fim de proteger os indivíduos da autoridade política – ainda que exercida em nome do povo, da nação, da vontade geral, ou sob a bandeira de ideais generosos e humanitários como a igualdade.
Exceção feita a Montesquieu, que não viveu a tempo de testemunhar a Revolução Francesa, os demais autores apresentaram diagnósticos lúcidos sobre as causas que conduziram à “derrapagem” daquele grande evento. Para além das já conhecidas interpretações liberais de Mme. de Stäel e Benjamin Constant para o período de 1789-1794 – as quais são de conhecimento dos iniciados na historiografia da Revolução Francesa -, Craiutu resgata as valiosas contribuições teóricas e balanços históricos dos monarquianos, especialmente Mounier (Recherches sur les causes qui ont empêché les Français de devenir libres, 1792), e de Necker, cujo panfleto De La Révolution Française, de 1796, não recebeu uma única edição sequer ao longo de mais de 200 anos!
A despeito de uma visão consolidada pelos próprios revolucionários franceses, dos jacobinos aos girondinos, que viam na retórica dos deputados monarquianos intenções aristocráticas ou conspiratórias a serviço da Corte, Craiutu reabilita esse grupo, sustentando, à guisa de Tocqueville, que os monarquianos eram dotados de um verdadeiro espírito revolucionário. Embora lutassem pelo estabelecimento de um governo moderado balizado por garantias constitucionais, eles seriam unânimes na oposição aos privilégios da nobreza. Craiutu sugere, após reconstruir as causas que levaram à derrota política dos monarquianos, que o Terror poderia ter sido evitado se as propostas de Mounier, Malouet, Clermont-Tonnerre, Lally-Tollendal & Cia. tivessem sido adotadas, observando que o projeto constitucional triunfante em 1814 e consolidado durante a Monarquia de Julho guardava estreitas afinidades com os diagnósticos políticos do grupo (p. 106).
Outro ponto alto do livro é o tratamento nada condescendente dispensado a figuras tão complexas quanto Mme. de Stäel e Benjamin Constant, as quais, sobretudo no período em que apoiaram o governo republicano do Diretório, sustentaram posições dificilmente classificáveis como moderadas ou liberais. Embora Craiutu tenha examinado bem os panfletos termidorianos da dupla e o crítico contexto de sua elaboração, ele poderia ter devotado um pouco mais de atenção à questão religiosa – como fez, por exemplo, Helena Rosenblatt em seu estudo sobre Constant, autora com a qual Craiutu dialoga frequentemente e concorda sobre a importância da religião para o pensamento político da dupla (p. 200).
Por fim, o autor conclui que as modernas democracias devem ser encaradas como formas mistas de governo representativo, não como simples expressões do “governo do povo”, e que a moderação política “pode promover ideais democráticos” (p. 248). Esta última afirmação nos coloca diante de um problema e de um paradoxo. Problema, porque apesar de os autores em destaque apoiarem a igualdade civil, todos defendiam uma ou mais cláusulas de exclusão (nível de renda, posses ou conhecimento formal) quando o assunto era a participação ativa dos cidadãos na política – o que, ademais, constituía a regra para os liberais da época, sendo Thomas Paine, referência bastante citada no livro, rara exceção no campo liberal do período. Diante dessa constatação, e levando-se em conta o meticuloso trabalho de reconstrução histórica de Craiutu, é uma pena que este importante detalhe tenha sido inexplorado. Por outro lado, e aqui adentramos o paradoxo, o autor acerta em cheio ao apontar a relevância dessa agenda moderada para os estudiosos dos regimes democráticos do presente, na medida em que estes, para além do sufrágio universal como fundamentação e método de funcionamento do sistema, baseiam-se no pluralismo, nos direitos individuais e nos direitos das minorias (vide Lucien Jaume, Le discours jacobin et la démocratie).
Antes de encerrar, caberia levantar uma questão: afinal de contas, o autor logra ou não convencer o leitor de que a moderação é a quintessência da virtude política? Com base no problema relatado acima, arrisco dizer que não. Por outro lado, concordo com Craiutu (e Burke) quando ele (s) afirma (m) que a moderação deve ser encarada como virtude para mentes corajosas. Ao contrário do que afirmou Nietzsche, e com base nas trágicas experiências do século XX, podemos concluir que coube justamente aos estadistas moderados reconstruir o mundo após o apocalipse de guerras e regimes tirânicos engendrados a partir da “mentalidade de rebanho”.
José Miguel Nanni Soares – Universidade de São Paulo, São Paulo SP, Brasil. E-mail: miguelnanni@uol.com.br
CRAIUTU, Aurelian. A Virtue for Courageous Minds: Moderation in French Political Thought 1748-1830. Princeton: Princeton University Press, 2015. Resenha de: SOARES, José Miguel Nanni. Revisitando um arquipélago quase esquecido. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 314-320, set./dez., 2016.
Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890) – FARIAS (RBH)
FARIAS, Juliana Barreto. Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Cidade, 2015. 295p. Resenha de: CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.
Antes de defender sua tese em 2012, Juliana Barreto Farias já era uma pesquisadora reconhecida, autora de trabalhos sólidos, tanto individualmente como em coautoria com historiadores renomados. A tese então defendida era fruto de uma pesquisa densa e bem sedimentada. Agora, expurgados os ranços que caracterizam as teses – aqueles que tornam a leitura pesada, difícil – e com alguns acréscimos bem situados, foi finalmente publicado esse importante estudo, que promete influenciar a literatura sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, particularmente sobre a presença de africanas minas no comércio a retalho.
A inspiração confessada da autora é uma fotografia de uma africana vendendo frutas e verduras numa bancada de mercado. É uma daquelas fotos de Marc Ferrez diante das quais os especialistas às vezes se lembram de que, talvez, já as tenham visto em algum lugar. Mas Juliana não se contentou com essa curiosidade, a estética vigorosa da “dama mercadora”, talvez Emília Soares do Patrocínio, a principal personagem do livro, uma africana liberta que deixou 30 contos de patrimônio inventariado e que alforriou outros 11 cativos. Dali em diante, fazendo uma ligação nominativa de fontes, percorrendo um rol considerável de documentos sobre o mercado, inventários, jornais, processos de divórcio e fontes paroquiais, a autora foi descobrindo outras pessoas, processos, histórias de vida, lendas urbanas, rumores e espaços, até que, finalmente, pôde apresentar aos leitores outro retrato, mais amplo, com mais profundidade e contextualização: o retrato do próprio mercado da Candelária, o “mercado do peixe”, na atual Praça XV de Novembro. Por intermédio desse trabalho denso e arguto entramos no cenário de muitas tramas que haviam caído em certo esquecimento da história urbana do Rio de Janeiro escravista. A foto daquela negra mina com uma urupema no colo inspirou a pesquisa, mas ela não é a única protagonista neste livro. O próprio mercado, que ganha vida, é o personagem principal deste importante estudo.
Inspirado no Les Halles de Paris, o mercado tinha absolutamente tudo de brasileiro, expressando os detalhes multiétnicos e as tensões que caracterizavam a vida social no Rio de Janeiro oitocentista. Nele percebe-se a dinâmica própria da escravidão na capital imperial, pois, a rigor, não se podia alugar banca de peixe a cativo, mas eles estavam lá o tempo todo, se não como vendedores independentes, com certeza, como prepostos. Em 1836, houve de fato uma queixa de que a posse de bancas havia sido concedida a escravos. Entre atritos, reclamações – até mesmo contra “pretos cativos atravessadores” – e rearranjos espaciais, a partir de 1844 só gente livre poderia ser locatária, embora seus cativos pudessem pernoitar no ambiente de trabalho. A autora crê, todavia, que os requerimentos iludiam à condição forra de muita gente, afinal de contas, salvo os “africanos livres”, não havia como essas pessoas com marcas de nação serem livres. Os minas eram os mais bem representados no mercado e, entre eles, havia uma distribuição entre os sexos bastante equitativa. As áreas internas, todavia, eram majoritariamente ocupadas por homens.
Apesar de muita confusão, greve até, em longo prazo houve uma razoável estabilidade entre os que se estabeleciam no mercado, pois a média de ocupação no mesmo local era de 15 a 20 anos. Era comum transferir a banca para gente da mesma família ou da mesma procedência, e, embora fosse possível ceder a posse e o uso do espaço, não se podia repassá-lo a terceiros por conta própria, sem interferência das autoridades competentes. Havia locatários ocupando mais de uma banca. José da Costa e Souza, ou José da Lenha, era tão onipresente nos negócios que, segundo um relatório de 1865, ficou também conhecido como “dono do mercado”. A trajetória de vida de alguns personagens, como Domingos José Sayão, um calabar forro, ilustra o tráfico de influência para se conseguir bancas. O fato de já estar lá trabalhando era importante para renovação, mas havia um jogo na Câmara Municipal envolvendo complexas relações patronais. E, nesse jogo burocrático e legal, as minas também eram protagonistas. Casavam-se, divorciavam-se, participavam de irmandades, querelavam e demandavam direitos nos termos da “lei do branco”.
Uma das partes mais ricas do livro é o estudo das posições relativas dos trabalhadores do mercado, desde os donos de banca até os cativos. À parte a condição servil, livre ou liberta de cada um, havia a cor da pele matizando as relações sociais. Entre os negros, os que não eram africanos aparentemente procuravam ressaltar esse dado nas petições. E eram muitos os africanos. A autora cita Holanda Cavalcanti, para quem bastava ir lá para vê-los ostentando suas marcas de nação. Os requerimentos, todavia, disfarçavam a condição dos requerentes forros, que não deviam ser poucos. Havia, entretanto, certa especialização naquela multidão. Os brasileiros dominavam a venda de pescados, os africanos concentravam-se na venda de legumes, verduras, aves e ovos. Os portugueses estavam em tudo, mas dominavam a venda de secos. Embora tenha encontrado até uma briga entre dezenas de ganhadores e 11 trabalhadores brancos do mercado, a autora não encontrou uma rivalidade permanente, inevitável entre portugueses e africanos, o que contraria o senso comum historiográfico. Os atritos eram muitos, mas cruzavam barreiras simplistas. A condição servil, livre ou liberta, a nacionalidade, a procedência e as relações patronais entrecruzavam-se marcando o cotidiano das relações de trabalho e convivência no mercado do peixe.
Empoderada pela riqueza que o comércio lhe proporcionou, Emília fez tudo o que poderia caber a uma africana liberta na capital imperial. Afirmou-se diante de outras mulheres e dos homens que cruzaram seu caminho. No comércio, liderava. Os homens que passaram por sua vida foram apenas coadjuvantes. Submersa numa sociedade que tentava conquistar, previsivelmente tornou-se senhora de escravos, e Juliana Barreto não encontrou evidências de que fosse melhor, mais generosa nas alforrias, do que as outras sinhás do seu tempo. Questões desse tipo – Como era ser escrava de uma africana liberta? Qual o significado do casamento cristão para as africanas cativas ou libertas? E o que significava ser uma “mina”, afinal de contas? – integram um rol de perguntas clássicas da historiografia brasileira para as quais este livro acrescenta novos elementos de discussão.
Embora com objeto bem delimitado, circunscrito no tempo e no espaço, este livro é também oportuno no momento presente, quando precisamos ampliar nossos horizontes de estudo, reabrir perspectivas comparadas. Nestes tempos de tantas e tantas teses a serem lidas, talvez já seja possível reavaliar tendências bem assentadas na historiografia. A escravidão no Rio de Janeiro das africanas retratadas neste importante livro precisa ser cotejada com aquela das africanas das Minas setecentistas, sobre as quais já existe sólida literatura, ou mesmo da Bahia e Pernambuco, revisitadas por estudos recentes. Aos poucos, os detalhes desse universo mais amplo da escravidão no Brasil oitocentista vão sendo desvelados por estudos densos, como este, que irão compor as futuras sínteses da vasta e rica historiografia brasileira sobre a escravidão.
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Ph.D. em História, University of Illinois System (UILLINOIS). Professor Titular de História, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, PE, Brasil. E-mail: marcus.carvalho.ufpe@hotmail.com
[IF]Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881) – MATA (RBH)
MATA, Iacy Maia. Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881). Campinas: Ed. Unicamp, 2015. 303p. Resenha de: CHIRA, Adriana. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.
O complicado relacionamento entre as pessoas de cor e os movimentos nacionalistas latino-americanos esteve no centro de um vasto conjunto de pesquisas historiográficas. Algumas das questões que os estudiosos enfrentaram foram estas: o que levou as pessoas de cor a participar nesses movimentos? Como os modelaram? E por que endossaram ideologias nacionalistas que celebravam a harmonia racial e que as elites brancas viriam a usar como meio para silenciar as reivindicações baseadas na raça? As pessoas de cor foram sendo cooptadas pelas elites brancas, ou conseguiram dar forma ao teor geral dos movimentos e das ideologias nacionalistas? Historiadores cubanos envolveram-se nessas discussões, muito embora Cuba tenha discrepado cronologicamente em comparação com outras colônias espanholas nas Américas, alcançando sua independência apenas em 1898. O paradoxo que faz de Cuba um tema particularmente interessante de pesquisa é por que o maior produtor de açúcar para o mercado global poderia abrigar um ideal nacionalista de fraternidade racial, no momento em que o racismo científico tornava-se o lastro ideológico para os segundos impérios europeus na Ásia e na África, e para as chamadas leis Jim Crow no sul dos Estados Unidos. Realizando rica pesquisa em arquivos cubanos e espanhóis e tecendo uma bela narrativa que coloca na frente e no centro as vozes e as ações das próprias pessoas de cor, Iacy Maia Mata oferece, em sua monografia, novas abordagens sobre essas questões.
Estudos anteriores sobre fraternidade racial em Cuba centraram o foco sobretudo na experiência militar durante a prolongada Guerra de Independência contra a Espanha (1868-1898). Estudiosos e intelectuais já desde José Martí argumentaram que o esprit de corps militar que se desenvolveu entre os rebeldes pró-independência através das linhas de segregação oficiais serviu como catalisador de ideologias radicais de inclusão nacional e racial. Mata, porém, sustenta que há indícios nos arquivos de uma cultura política popular em Santiago que parece ter preexistido à campanha militar de 1868. Introduzindo um novo recorte cronológico para a emergência de ideologias de igualdade racial em Cuba, Iacy Mata não está apenas oferecendo o relato mais completo. Ela também está sugerindo que a população de cor de Santiago havia considerado a igualdade antes mesmo de as elites liberais de pequenos proprietários na província vizinha de Puerto Príncipe terem iniciado a guerra de independência.
O objetivo de Iacy Mata é traçar as origens da cultura política popular de Santiago e explicar como, entre meados dos anos 1860 e o início da década de 1880, a população de cor local superou as divisões de status e criou laços e solidariedades que alcançaram sua expressão completa na ideia de uma raza de color unificada. A autora argumenta que essa visão particular de uma comunidade política centrada na raça estava alinhada com a causa nacionalista de uma Cuba livre. Como ela coloca adequada e incisivamente, as pessoas de cor de Santiago passaram, no começo da década de 1860, da condição de la clase de color, um rótulo oficial nelas fixado pelas autoridades coloniais espanholas, para a de la raza de color, termo que intelectuais e líderes políticos e militares de cor começaram a usar para se autoidentificar no início da década de 1880.
Ao longo da maior parte de sua existência colonial, Santiago de Cuba, província situada na extremidade leste da ilha, foi uma zona de fronteira colonial, ator marginal na política imperial e local de pouco investimento da agricultura de plantation em larga escala. Os refugiados da Revolução Haitiana que migraram para essa região por volta de 1803 ali introduziram plantações de café, muitas das quais faliram no começo da década de 1840. Até o final dos anos 1850, as principais fontes de renda locais eram a criação de gado, a plantação de café e tabaco e a mineração de cobre (que as autoridades concederam a uma companhia inglesa). Como resultado da localização de Santiago nas margens do domínio açucareiro, a pequena propriedade permaneceu ali muito mais comum do que na parte centro-oeste de Cuba. Além do mais, Santiago também se destacou entre as demais províncias cubanas pelo peso demográfico relativamente maior da população de cor. No começo dos anos 1860, muitos deles eram pequenos proprietários e alguns possuíam um pequeno número de escravos. Era essa população que começou a se mobilizar politicamente no início daquela década, argumenta a autora, em resposta aos acontecimentos econômicos locais e aos movimentos internacionais antiescravagistas.
Nos primeiros anos da década de 1860, o açúcar começou a deitar raízes mais profundas em Santiago e a produção de café voltou a se expandir ali. Como consequência, as plantações começaram a invadir áreas onde os pequenos proprietários ou arrendatários cultivavam tabaco, deixando a população de cor insatisfeita. Ademais, em meados da década, teriam chegado a Santiago notícias e rumores sobre a emancipação dos escravos no sul dos Estados Unidos. A população local também teria consciência, havia bastante tempo, dos protestos britânicos contra a escravidão e o comércio de escravos para o Império Espanhol (em razão da proximidade da Jamaica), bem como da reputação do Haiti como república construída a partir de uma bem-sucedida revolução de escravos. Fazendo uma leitura cuidadosa de registros criminais e judiciais, Iacy Mata recupera como essas notícias impactaram a vida cotidiana entre os escravos e a população de cor livre e o que fizeram com elas. Quer fosse a exibição sutil e irônica de uma bandeira haitiana, trazendo inscrita a palavra Esperança, quer fosse o uso de um vocabulário pró-republicano, antiescravidão e antidiscriminação, sustenta a autora, as conversas de natureza política se espalharam pela cidade e pelas áreas rurais antes de 1868.
As conversas políticas locais culminaram em uma série de conspirações que transpirou entre 1864 e 1868 na província de Santiago e em áreas adjacentes. Iacy Mata interpreta a evidência dessas conspirações cuidadosamente, identificando os objetivos e as alianças dos participantes que emergiam entre escravos, população de cor livre e brancos. Os desiderata incluíam uma república independente, o fim da escravidão e a igualdade de direitos no que diz respeito ao status de raça. Nos dois capítulos finais, a autora coloca em discussão que essas metas políticas receberiam maior articulação durante a Guerra de Independência, quando as pessoas de cor tentariam radicalizar a agenda principal da liderança branca liberal para incluir a igualdade política e a abolição imediata.
A monografia baseia-se em extensa pesquisa nos arquivos imperiais espanhóis (Arquivo Histórico Nacional, Arquivo Geral das Índias), bem como em fontes dos Arquivos Nacionais Cubanos e do Arquivo Histórico Provincial de Santiago de Cuba. Esses diferentes repositórios forneceram a Iacy Mata fontes que lhe permitiram deslocar-se entre diferentes percepções dos mesmos eventos ou processos: elite/subalterno, centro imperial (Madri)/elite política centrada no açúcar (Havana)/zona de fronteira cubana (Santiago). Adicionalmente, o trabalho de Iacy Mata mostra como o estudo de uma área de fronteira do Caribe pode ser importante para se entender o radicalismo político na região. Por muito tempo, os historiadores permaneceram focando as áreas produtoras de açúcar como os principais espaços onde a mudança social se deu. Embora seu trabalho tenha nos munido de ferramentas e abordagens analíticas indispensáveis, Iacy Mata sugere que é importante olhar para além dessas áreas se quisermos compreender a cultura política local.
A monografia também abre importantes caminhos para novas pesquisas. A unidade discursiva do termo raza de color esconde as complexas políticas e as fraturas existentes entre as pessoas de cor em Santiago que sobreviveram nos anos 1880 e moldariam a política clientelista nos primórdios da Cuba republicana. Seria fundamental considerar que as origens e os desdobramentos posteriores dessas fraturas estariam em Santiago. Em segundo lugar, o estudo de Iacy Mata alude à presença de aliados brancos liberais em Santiago, que, ocasionalmente, ajudaram os combatentes pela liberdade ou participaram de conspirações antiescravidão. A historiadora cubana Olga Portuondo Zúñiga explorou a história do liberalismo na parte ocidental da ilha, revelando um vibrante campo de ideias liberais que se mostravam, às vezes, contraditórias ou contraditórias em si mesmas. Puerto Príncipe e Bayamo foram terrenos particularmente férteis para o pensamento liberal, mas Santiago não esteve alheia a ele antes da Guerra de Independência (ver, por exemplo, o governo de Manuel Lorenzo nos anos 1830). Algumas dessas ideologias liberais podem também ter escoado através de redes que alcançaram ex-colônias latino-americanas depois da década de 1820 e a República Dominicana durante a Guerra da Restauração nos anos 1860. Estudar os ideais políticos da população de cor de Santiago em relação a essas outras correntes políticas, tanto internas quanto externas à ilha, parece ser um terreno especialmente importante para futuras pesquisas.
O trabalho de Iacy Mata é uma bela ilustração de como as ferramentas da história social e política podem capturar a dinâmica dos movimentos políticos populares. Assim sendo, eu o recomendo vivamente para os estudiosos interessados em sociedades escravistas e pós-escravistas e nos papéis que as pessoas de cor desempenharam no interior delas.
Adriana Chira – Ph.D., University of Michigan. Assistant Professor of Atlantic World History, Emory College of Arts and Sciences (USA). Emory College of Arts and Sciences. Atlanta, GA, USA. E-mail: adriana.chira@emory.edu.
[IF]O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro. Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860) | Renilson Rocha Ribeiro
Lo storico Renilson Rosa Ribeiro è attualmente professore dell’Universidade Federal do Mato Grosso, dove svolge i suoi incarichi accademici di docenza e ricerca nel campo della didattica della storia e della storia del Brasile ottocentesco. Anche se radicato con anima e cuore a Cuiabá, la formazione di Renilson R. Ribeiro è avvenuta a São Paulo, stato di nascita dell’autore, presso l’Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). L’opera intitolata O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro, pubblicata nel 2015, è il risultato della sua tesi di dottorato in storia culturale.
Il libro rappresenta prima di tutto un’opportunità di prendere contatto con il lavoro di questo promettente ricercatore, ma si tratta di una pietra miliare nella storiografia brasiliana sul periodo ottocentesco, soprattutto per ciò che riguarda gli studi sulla costruzione di una storia nazionale del XIX secolo coerente, in grado di conferire un significato storico leggittimatore a quello che era il neonato Stato nazionale monarchico brasiliano. L’opera tratta delle tappe fondanti della storiografia nazionale – fissate intorno alla figura di Francisco Adolfo de Varnhagen (São João de Ipanema 1816 – Viena 1878) e della sua opera História Geral do Brasil1–, del ruolo esercitato in questo processo dall’IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e del ruolo centrale che lo sviluppo di una narrazione storica del Brasile coloniale esercitò nella creazione del Brasile monarchico del Secondo Impero.
Il libro è diviso in tre capitoli, ciascuno contenente una propria tesi, che concorrono nella parte conclusiva ad un solo esito: l’invenzione storica del Brasile Colonia è parte di un progetto politico di costruzione dello Stato nazionale improntata sul modello del Secondo Regno. Il sottotitolo del libro Francisco Adolfo Varnhagen, o IHGB e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860) anticipa la struttura del testo proposta dall’autore.
Il primo capitolo, Invenções dos outros: as biografias de Varnhagen e a escrita da história do Brasil (1878-1978) presenta il processo di invenzione biografica di Varnhagen quale patrono della storia del Brasile e storico simbolo del progetto storiografico dell’IHGB, elaborato a partire dagli scritti biobibliografici realizzati tra il 1878, anno della morte di Varnhagen, e il 1978. Attira l’attenzione la strategia teorica e metodologica scelta dall’autore per affrontare la questione della biografia di Varnhagen: coerentemente con i suoi convincimenti teorici, Renilson R. Ribeiro non si propone di realizzare una nuova biografia di Varnhagen o di ricostruire il percorso storico del visconte di Porto Seguro, ma si lancia in qualcosa di più audace. Ispirato da Dominick LaCapra e dalla sua Nuova storia intellettuale2, l’autore analizza Varnhagen come un testo, ossia, mettendo in evidenza il modo in cui le biografie hanno costruito un Varnhagen-IHGB, al servizio di un progetto istituzionale volto a trasformare l’IHGB nella “Casa della Memoria Nazionale”.
In questa modo l’autore fugge dalla tentazione biografica di dare un’unica e coerente interpretazione della vita di colui di cui viene scritta la biografia; rifugge anche da una prospettiva storicistica che condurrebbe a un’esternalità al testo. La sua concezione del contesto si rifà in misura maggiore ad un’intertestualità articolata piuttosto che all’intento oggettivista di tracciare un panorama dei fatti al di fuori del testo, caratteristica che lo metterebbe in rotta di collisione con i suoi convincimenti teorici.
I documenti analizzati in questa prima sezione sono le biografie, i necrologi, gli encomi, le memorie e le prefazioni che miravano a esaltare Varnhagen e che fiorirono dopo la sua morte, nel 1878, all’interno della stessa rivista dell’IHGB. Renilson R. Ribeiro analizza come l’IHGB si appropriò della figura di Varnhagen per costruire una tradizione storiografica brasiliana. Realizzando reiteratamente biografie su Varnhagem e concedendogli il titolo di patrono della storia del Brasile, l’IHGB si poneva come istituzione autorevole e significativa nel processo di produzione della storia del Brasile. Fare di Varnhagen un eroe del pantheon degli artefici della storia del Brasile significava glorificare anche l’IHGB.
Nel primo capitolo, Varnhagen assurge al ruolo di oggetto costruito dai discorsi prodotti dall’IHGB e dagli intellettuali vicini a questa istituzione. Nel secondo capitolo, Varnhagen abbandona la condizione di oggetto delle rappresentazioni discorsive e diviene soggetto della sua storicità.
In Invenções de si: as cartas de Varnhagen e a escrita da história do Brasil, l’autore analizza le rappresentazioni che Varnhagen diede di sé, dell’IHGB, del ruolo dello storico, delle tensioni e delle dispute interne all’IHGB e dei testi storici. Renilson R. Ribeiro mostra un Varnhagen che rappresenta se stesso come un intellettuale di Stato e che vede nel processo di scrittura e pubblicazione della História geral do Brasil un incarico politico in favore dello Stato brasiliano e della monarchia.
L’autore mostra i retroscena delle scelte documentali, tematiche e cronologiche dell’opera di Varnhagen, così come la sua frustrazione di fronte alla ricezione silenziosa dell’opera da parte dei colleghi dell’IHGB. La strategia del testo permane evidenziando, per mezzo delle lettere, un Varnhagen in cerca di un riconoscimento che non ottenne in vita, ma solamente dopo la sua morte.
Qui sarebbe interessante rilevare che, mentre Varnhagen cercava di acquisire un controllo sulla costruzione di sé – o meglio, sulla base di come desiderava essere rappresentato – la sua memoria cominciò a essere utile all’IHGB per i propri interessi solamente nel momento in cui lui non ebbe più modo di controllare e influire su questo processo. A prescindere dal risentimento in vita per l’assenza di riconoscimento da parte dei suoi colleghi, l’eredità di Varnhagen si rafforzò in tal misura da rendere l’IHGB dipendente dalla sua memoria per legittimarsi come istituzione-autorità nell’edificazione della storia del Brasile. Per via del suo costante dialogo con la storiografia tradizionale sempre in cerca di tematiche, Varnahgen non è visto solo come un compilatore di documenti, ma come un intellettuale protagonista nel processo di scrittura della storia del Brasile. Per Renilson R. Ribeiro, il processo di ricerca e organizzazione dei documenti, di cui Varnhagen fu un uomo chiave, era zeppo di questioni storiografiche molto sentite nel Brasile del XIX secolo: «la scelta di cosa raccogliere, sistematizzare, archiviare e pubblicare ha dischiuso i sentieri che la narrazione storica desiderava tracciare»3.
Nel terzo capitolo del libro, Renilson R. Ribeiro analizza il processo di costruzione dell’intreccio cronologico e tematico dell’opera di Varnhagen alla luce del progetto di sapere-potere che l’opera si propone, cioè di costruire una narrazione in grado di stabilire un’identità essenzializzata e coerente della nazione con l’intento di delimitarla come un’entità univoca, omogenea e imprescindibile. In Inventando a Colônia “Coroada”: os enredos cronológicos e temáticos da Historia geral do Brazil (1854/1857) e o tempo Saquarema (1839-1860) Renilson R. Ribeiro, a partire dall’analisi dettagliata della prima edizione dell’opera História geral do Brasil, porta il lettore a stravolgere il passato coloniale brasiliano per accogliere la costruzione discorsiva elaborata da Varnhagen in funzione del progetto di fabbricazione della nazione come verità storiografica.
È tutto qui: un manuale su come inventare la nazione, fissare la sua identità, a partire dalla costruzione di una narrazione storica. Si tratta delle origini della nazione, dei suoi miti fondativi, della formazione del popolo, degli episodi simbolici, della scelta degli eroi rappresentativi – tra tanti altri elementi costituenti di questa narrazione – che fissano l’idea fondante del Brasile coloniale: una specie di infanzia della nazione, la cui inesorabile maturità, nella prospettiva varnhageniana, sarebbe stata lo Stato monarchico del Secondo Impero.
Renilson R. Ribeiro si propone di «fare la storia dell’emergere di un oggetto, di un sapere, di un tempo e di uno spazio di potere: il passato coloniale brasiliano»4. In questa triade, il passato stabilisce il campo d’azione del sapere in questione, la storia; il termine coloniale marca il periodo definito e, infine, l’aggettivo brasiliano punta alla progettazione di un territorio. All’interno di questa triade, il popolo è il soggetto e le sue azioni rappresentano gli episodi attraverso cui costruire una storia marcata dalla linearità e dalla continuità fino al processo di consolidamento come Stato indipendente.
L’origine della nazione fu così fissata nell’episodio della scoperta del Brasile, la formazione del popolo nel processo di descrizione delle tre razze (indios, neri e portoghesi), nel mito fondatore (l’invasione olandese) e, successivamente, nelle relazioni mai interrotte fino al conseguimento della maturità della nazione (indipendenza del Brasile).
La definizione della storia coloniale brasiliana a partire da questa trama narrativa fissata da Varnhagen si impose come modello e finì per essere riprodotta. Secondo Renilson R. Ribeiro, nei manuali scolastici e nei libri didattici di storia del Brasile elaborati fin dal secolo XIX e nel corso del XX secolo – nonostante presentino differenze teoriche, metodologiche e ideologiche – è possibile identificare la griglia cronologica e tematica stabilita da Varnhagen, a partire dalla narrazione della scoperta del Brasile da parte dei portoghesi, passando per il tema della formazione etnico-razziale del popolo brasiliano, il processo di conquista e il dominio coloniale, le invasioni olandesi e il processo che culmina con l’indipendenza del Brasile: «in larga misura digerirono l’idea della Colonia come culla del Brasile indipendente, o meglio, della storia come “biografia della nazione”»5.
Dunque, O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro è un libro che pone nuovamente una questione importante per coloro che lavorano per la produzione della conoscenza: da chi o da cosa è prodotta la conoscenza? A chi serve il mestiere di storico? Che tipo di relazioni gerarchiche di autorità legittima? A che tipo di relazioni di potere è indissolubilmente legato? Tra le diverse questioni affrontate da Renilson R. Ribeiro questa sembra essere fondamentale. Varnhagen era cosciente che il suo progetto di scrivere una storia del Brasile serviva una causa politica, ossia, aveva una chiara finalità: aiutare a impilare i mattoni dello Stato monarchico brasiliano fornendogli una storia dotata di costumi e di un’identità coerente. Il progetto di Varnhagen chiarisce le relazioni di sapere e potere che attraversano la produzione storiografica e getta luce anche sulla ricerca storica odierna e le sue conseguenze politiche per il tempo presente.
La varietà attuale dei temi di ricerca e degli approcci teorici che sono presenti nei corsi di laurea e negli istituti di ricerca, non fa della produzione storica e storiografica qualcosa di neutro rispetto ai progetti politici, siano essi istituzionali, partitici, associativi o personali. Urge più che mai una necessaria presa di posizione, una chiarezza intellettuale riguardo alle conseguenze della scrittura della storia.
Parafrasando una categoria gramsciana, ogni intellettuale è organicamente legato a un progetto di potere, ogni storia è compromessa nel servire come fonte di legittimità e autorità alle gerarchie che costituiscono relazioni di potere. Renilson R. Ribeiro ci mostra che Varnhagen scrisse la sua storia consapevole del progetto di potere che difendeva; questo ci porta a domandarci: i nostri attuali ricercatori, dottorandi e storici sanno quali cause stanno servendo le loro storie?
Notas
1 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de, História geral do Brasil. Antes da sua separacao e independencia de Portugal, 3 voll., Belo Horizonte-São Paulo, Itiatia – Editora de Universidade, 1981.
2 Cfr. LACAPRA, Dominick, Rethinking intellectual history. Texts, contexts, language, Ithaca- London, Cornell University Press, 1983.
3 RIBEIRO, Renilson Rosa, O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro: Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860), Cuiabá, Entrelinhas, 2015, p. 231.
4 Ibidem, p. 46. 5 Ibidem, p. 416.
Mairon Escorsi Valério si è addottorato in Storia culturale presso l’UNICAMP ed è professore associato dell’Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim/RS. I suoi studi vertono sulla storia contemporanea dell’America Latina e sulla didattica della storia. È autore del libro Entre a cruz e a foice: D. Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia (Jundiaí, Paco Editorial, 2012).
RIBEIRO, Renilson Rosa. O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro. Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860). [?]:Entrelinhas, 2015, 448 pp. Resenha de: VALÉRIO, Escorsi. Diacronie – Studi di Storia Contemporanea, n. 27, v. 3 2016.
Estado, nação e cidadania no oitocentos (1850-1889) -parte 2 / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2016
A Revista Clio abre este volume com a segunda parte do dossiê Estado, nação e cidadania no oitocentos (1850-1889), que versa sobre instituições, atores e processos políticos no Brasil império, no período de 1850 a 1889. Sua abordagem procura compreender o campo da política, ultrapassando as fronteiras restritas do Estado, em suas dimensões e articulações com a sociedade e a cultura. Também privilegia a atuação, individual e coletiva, de pessoas anônimas, para além da figura dos “grandes” lideres. Seu corte cronológico se estende da consolidação ao fim do estado imperial. Um período de afirmação do poder central sobre os locais, rearticulações políticas nas províncias, de férteis debates em torno da construção do estado. É o tempo compreendido entre o fim do tráfico e o da escravidão, assinalado ainda por movimentos sociais e políticos, como o abolicionista e o republicano. Cidadania, Estado, elites políticas, eleições, movimentos sociais são os principais temas que este dossiê se propõe a discutir.
Os dois primeiros artigos tratam do recrutamento e da Guarda Nacional no Ceará. O trabalho de Maria Regina Santos de Souza, A implacável surdez das autoridades do império: as súplicas dos veteranos da Guerra do Paraguai (1870-1889)analisa, no período posterior a Guerra do Paraguai, a (des)atenção do governo brasileiro com os direitos concedidos aos excombatentes, tais como pensões, empregos públicos, terras e compensação financeira. Souza mostra os problemas gerados para os veteranos. Parte significativa deles enfrentou a desorganização e a falta de conhecimento jurídico da burocracia do Estado. Este artigo aborda a luta dos veteranos do Ceará pelos direitos de guerra.
O artigo de Ana Sara Cortez Irffi, “O cidadão não encontra garantia senão na própria força” – Recrutamento, milícias privadas, quadrilhas de „cabras‟ e a propriedade privada (Cariri Cearense, século XIX), analisa o processo de construção do Estado brasileiro em meados do Oitocentos, o recrutamento para a Guarda Nacional e a formação de milícias privadas no sertão das chamadas províncias do Norte. A análise se volta às milícias surgidas a partir das relações estabelecidas dos senhores com agregados e moradores, mas também, no bojo desse processo, à formação de grupos alheios aos senhores que ficaram conhecidos como „quadrilhas de cabras‟.
Rafael Sancho Carvalho da Silva analisa os aspectos políticos do banditismo no sertão baiano em seu artigo Antonio José Guimarães: banditismo e disputas políticas no sertão baiano Oitocentista. Rafael discute a relação do banditismo com as disputas políticas no sertão baiano, usando o caso de Antonio José Guimarães que atuou entre 1849 e 1854 pelos sertões da Bahia e de Goiás. Mostra também que podemos analisar o banditismo como um fenômeno da história política.
Em seguida temos o artigo Práticas docentes no Recife e Olinda na segunda metade do século XIX de Dayana Raquel Pereira de Lima e Yan Soares Santos. Partindo da metodologia da microanálise, analisam as trajetórias e demandas dos membros da Sociedade Propagadora da Instrução Pública de 1872, e as petições feitas pelos professores aos poderes públicos dos principais expedientes práticos do trabalho docente. Mostram que a docência foi marcada por práticas individuais de cidadania, quando os professores desenvolviam estratégias pessoais, de acordo com privilégios conquistados ao longo da carreira, os quais, na prática, afastavam a possibilidade de constituírem uma identidade docente.
Os próximos três artigos se dedicam a história agrária do Brasil oitocentista. O artigo A política de acesso à terra no Brasil Imperial e a compra de terras devolutas no planalto da Província de Santa Catarina, de Paulo Pinheiro Machado e Flávia Paula Darossi, analisa a aplicação da Lei de Terras na Província de Santa Catarina, com ênfase no município de Lages. O estudo foi realizado com base em requerimentos de compra de terras devolutas, lavrados entre 1850 e 1889, previstos na legislação como a única forma legal de acesso à terra. Machado e Darossi mostram que, por tratar-se de uma fronteira agrícola e de povoamento em expansão, o planalto catarinense foi ocupado de diferentes maneiras – que ultrapassavam as disposições da própria Lei -, o que repercutiu em complexas estratégias de regulamentação da propriedade.
Em seguida Francivaldo Alves Nunes contribui ao Dossiê com o estudo da questão agrária na Amazônia em seu artigo Entre outras estratégias de controle e dominação: Estado, agricultura e colonização na Amazônia Oitocentista. Nunes analisa a relação entre os discursos construídos em torno da agricultura e colonização, caracterizados pela moralização da sociedade e a atuação do Estado imperial. Baseado em relatórios governamentais, mostra como esses valores, associados à atividade agrícola, exigiram do Estado um desempenho não apenas de manutenção da ordem, mas como instituição promotora de políticas que elevassem os hábitos das populações na Amazônia. A afirmação do Estado também se deu, no interior das províncias do Pará e Amazonas, através de ações revestidas de um discurso de promoção da ordem, da modernidade e da civilização.
O artigo Formação do ambiente rural sul-mato-grossense (1829-1892), de Maria do Carmo Brazil e Elaine Cancian, discute a organização da sociedade agropastoril nos campos sulinos de Mato Grosso. Partindo principalmente de relatos memorialísticos e inventários post-mortem, as autoras analisam o peso da pecuária nos municípios de Santana de Paranaíba, Rio Brilhante, Coxim, Corumbá, Campo Grande e Miranda,entre os anos de 1829 e 1892, na expansão da fronteira fundiária do centro-oeste brasileiro. Brazil e Cancian mostram a concentração fundiária, e a exclusão social nela inscrita e dela decorrente, e a montagem de um aparato político repressivo e autoritárioinscritos no processo de ocupação das terras sulmato-grossenses.
O Dossiê é encerrado com o artigo Índios / as, negros / as, mestiços / as, para além da paisagem amazônica: a construção de experiências locais em notas etnográficas da obra de Alfred Russel Wallace (1850-1852) de Victor R. L. Silva e José O. Aguiar. O artigo tece considerações sobre as viagens científicas no Brasil Imperial, com destaque para a trajetória de Alfred Russel Wallace pelos rios e matas equatoriais da Amazônia e para os mais variados encontros culturais que tiveram espaço nessa jornada coletora. Ganha relevo o destaque à descrição de índios / as, negro / as e mestiços / as na ótica do naturalista-viajante e a análise das características e recorrências de seu olhar tanto em sentido de continuidade quanto à base do pensamento oitocentista, quanto em sentido de ruptura, dissensão e criatividade.
A parte dedicada aos artigos livres conta, neste volume, com sete textos referentes à abordagens diversas no tempo e no espaço. O primeiro deles é de autoria de Grasiela Florêncio de Morais e enfoca as relações de subordinação e controle entre as autoridades do Recife e a população pobre da cidade no período 1830-1850. A autora aponta como os projetos de melhoramentos materiais redundavam na vigilância cotidiana das camadas despossuídas da capital pernambucana. Martha Victor Vieira discute em seu texto como a circulação de ideias liberais na imprensa da província de Goiás se insere no processo de consolidação da consciência nacional brasileira no período regencial. Gustavo Magno Barbosa Alencar também trabalha a década de 1830, mas sua abordagem se dirige para a província do Ceará. Utilizando os periódicos e manuscritos de época, o autor procura analisar as concepções do pensamento liberal com atenção para a compreensão dos usos do vocabulário político da época.
Continuando nos estudos sobre o século XIX, Thiago Broni de Mesquita e João Victor da Silva Furtado nos apresentam o processo de estabelecimento de prisões na província do Grão-Pará nos tempos da Cabanagem. Os autores discutem a criação das cadeias no contexto das medidas de coerção postas em prática pelas autoridades daquela província. De volta ao Ceará, nos deparamos no texto de Antônio José de Oliveira com a análise sobre o processo de invisibilização dos índios Kariri na historiografia que se dedicou ao estudo da segunda metade do século XIX naquela província.
Passando para o século XX, encontramos aqui dois textos relativos à história cultural de Pernambuco e Ceará. Lucas Victor Silva nos traz sua abordagem da atuação da Federação Carnavalesca Pernambucana durante os anos 1930. O autor aponta como essa instituição procurou controlar as manifestações carnavalescas no estado como forma de manifestar a coesão nacional em consonância com as aspirações políticas do regime pós-1930. Fechando o volume, contamos com o texto de Anderson de Sousa Silva sobre as políticas de cultura e artes nos anos 1960 no Ceará. O pesquisador reflete sobre as relações entre Estado e cultura e também dedica atenção ao processo de inserção do Ceará no panorama artístico brasileiro.
Os organizadores deste número da Revista Clio desejam que os estudos aqui publicados possam estimular debates e novas contribuições à historiografia brasileira.
Boa leitura!
Suzana Cavani Rosas e Cristiano Luís Christillino
Organizadores do Dossiê
George F. Cabral de Souza
Editor
Suzana Cavani Rosas – Organizadora do Dossiê. Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em História. E-mail: suzanacavani@uol.com.b
Cristiano Luís Christillino – Organizador do Dossiê. Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em História. E-mail: christillino@hotmail.com
George Felix Cabral – Editor da Revista. Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em História. Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: georgecabral@yahoo.com
ROSAS, Suzana Cavani; CHRISTILLINO, Cristiano Luís; CABRAL, George Felix. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.34, n.2, jul / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]
Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética – BARROS (Ph)
BARROS, Roberto. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética. Campinas: Editora Phi, 2016. Resenha de: MACHADO, Bruno Martins. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 2, p.351-359, jul./dez., 2016.
Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética, livro escrito pelo professor Roberto de Almeida Pereira de Barros da Universidade Federal do Pará (UFPA), publicado pela Editora Phi em 2016, é resultado de um rigoroso trabalho interpretativo.
Já na apresentação é possível vislumbrar essa situação, pois o professor Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) destaca o nível de aprofundamento da pesquisa que o leitor terá em mãos. Ele ressalta que o trabalho de Roberto Barros alçou um desenvolvimento continuado desde as investigações na graduação, passando pelo mestrado, pelo doutorado e chegando ao seu formato atual, balizado por pesquisas recentes conduzidas na UFPA e em importantes centros da Alemanha.
Composto por uma apresentação, uma introdução, quatro capítulos (I- “A perspectiva trágica”; II- “Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte”; III- “A fala poética em Assim falava Zaratustra”; IV- “O além-do-homem enquanto ideal estético”) aos quais se seguem as considerações finais, o livro tem o curso de suas divisões sustentado por duas linhas fundamentais. Elas foram extraídas do modo singular como Nietzsche, valendo-se de uma “compreensão valorativa inerente ao pensar” (p.18), empenhou seu “esforço filosófico” (p.18) para destacar o papel da “arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra o desafio apavorante do existir” (p.19).
A primeira linha gira em torno da concepção e consequências colocadas pelo conceito de além-do-homem. A escolha do conceito justifica-se pela sua centralidade tanto no modo como foi apresentado em Assim falava Zaratustra1, quanto na maneira como tomou forma no desenvolvimento da teoria nietzscheana. Para Roberto Barros, o conceito de além-do-homem exerce a função de “princípio atenuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos [de Zaratustra] trazem consigo” (p.18). No pensamento nietzscheano, a sua função geraria condições para que a gravidade trágica fosse incorporada à existência como uma perspectiva possível, ou seja, o conceito de além-do-homem abriria a possibilidade para que o peso da condição de verdade do conhecimento fosse transformando em um saber sobre a vida, abrindo as portas para uma “alegre ciência” (p.18).
Tais contornos proviriam de um continuado processo de maturação de pensamentos já expostos em O nascimento.da tragédia2. Nesse sentido, emblemáticas são as noções de dionisíaco, arte, tragédia, inspiração, verdade, conhecimento, função da história, vida, ciência. Concebendo, assim, uma espécie de dinamismo conceitual, é possível visualizar os traços que fomentam a segunda linha. Os aspectos extraídos da concepção de arte trágica defendida por Nietzsche em O nascimento seriam ressignificados em Humano, demasiado humano3, chegariam ao ápice em Zaratustra. Livro, este último, em que a arte se liga tanto à composição conceitual, quanto ao formato da obra, resultando em características específicas que lançam a filosofia nietzscheana para além da concepção de neutralidade do conhecimento típica dos modernos. A consequência extraída desse movimento aponta para o fato de que alguns problemas atribuídos à filosofia de Nietzsche, a exemplo de uma suposta falta de coerência lógico e semântica, poderiam ser resolvidos caso se observasse como a arte adquiriu uma posição de destaque no pensamento nietzscheano de maturidade.
Após esse primeiro panorama, proposto a partir das duas linhas citadas acima, é possível enunciar a ligação dos conceitos e das obras de acordo como foi apresentada pelo próprio Roberto Barros, certamente como umas das hipóteses centrais de seu livro: “ que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-do-homem poderia ser entendido como ensinamento preparatório ao anúncio da visão dionisíaca do mundo implícita no ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o ensinamento do além-do-homem pode ser retomado como a bela imagem apolínea, posta previamente como forma de consolo e meio de suportar o pensamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo” (p.136).
Passando a uma apresentação mais direta dos capítulos do livro, no primeiro, “A perspectiva trágica”, o autor evidencia que, ao escrever O nascimento, Nietzsche manteve em seu horizonte a intenção de expor aos seus contemporâneos uma “nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofrimento e da arte trágica dos gregos” (p.36). Seu propósito de mostrar que a compreensão da existência, com todas as suas possíveis desventuras e sofrimentos, poderia ser transfigurada em um “caráter estético afirmativo” (p.36), consistiria no sentido mais proeminente da arte trágica grega. Mas tal leitura só poderia ser efetivada desde que se olhasse para a proveniência dessa construção artística. O resultado foi a concepção da relação entre Apolo e Dionísio.
A interpretação dada por Roberto Barros para a leitura nietzscheana dos impulsos apolíneos e dionisíacos estrutura- se sobre uma percepção singular que servirá de lastro para os outros capítulos. Barros insere Nietzsche em uma tradição interpretativa que busca entender a arte grega “a partir de uma ‘interpretação’ naturalista” (p. 27). Um movimento que tem como representantes Winckelmann, Lessing, Herder, Goethe, Schiller e Hölderlin. Em todos eles, seria possível observar a tendência de “identificar uma forma natural de manifestação artística” (p.28). Considerando este aspecto, é possível entender um outro elemento que aumentaria a distância entre Nietzsche e os filólogos de sua época. Enquanto os últimos buscavam interpretar a arte grega como “uma mera forma de expressão artística” (p.32), Nietzsche considerava a arte grega como “manifestação dos impulsos artísticos naturais, procedentes da vontade, que, atuam no sentido de criar modos estéticos de representação do mundo, enquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência” (p.32).
Barros assinala que O nascimento atacou um problema não só dos filólogos, mas também de toda cultura de uma época: o massivo distanciamento da arte em relação aos problemas da existência. Tal diagnóstico, gerado pela excessiva “racionalização e moralização do sentido original da arte” (p. 44) decorreria, de acordo com Nietzsche, do desprezo pelas forças dionisíacas.
O dionisíaco seria um “impulso natural relacionado à inconsciência, ao esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico” (p.41). Uma força oposta à apolínea que, por sua vez, destaca-se pelo transbordamento de consciência, edificando- se sobre o princípio de individuação. Nesses termos é importante identificar a base sobre a qual Roberto Barros identifica a elaboração de O nascimento: o livro seria a análise da tragédia a partir da “manifestação natural dos instintos, responsáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da verdade da existência” (p.45). Também o ocaso da tragédia é lido por Barros como produto desmedido de um agente natural: o socratismo estético. Este empurra o homem para busca por clareza e moderação (aspirações apolíneas) através do emprego da racionalidade. Apropriando-se de todas as formas de conhecimento, através de uma suposta ideia de verdade, o socratismo torna-se a força hegemônica, destitui o dionisíaco. No lugar do desmedido, do insconsciente é instaurada a tirania da ciência com seus pressupostos de verdade alcançados a partir dos saberes conscientes. Ainda no primeiro capítulo, verifica-se o propósito do autor em mostrar conteúdos que denotam como as análises de Nietzsche já se erguiam sobre especulações extraídas da “relação entre saber e vida” (p.64).
No segundo capítulo, Barros passa pelas obras intermediárias de Nietzsche, seu foco é mostrar que a noção de arte adotada por Nietzsche em O nascimento sofreu um grande ajuste. Roberto indica a mudança como prenúncio à ideia da transvaloração dos valores, como se a nova mirada filosófica fomentasse uma nova concepção de arte. Tal mudança se iniciaria a partir de Humano, quando Nietzsche toma Wagner e Schopenhauer como inimigos declarados, pois eles representariam os “efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da religião cristã oposta ao dionisíaco” (p. 67). Nesse capítulo, o dionisíaco é apontado como: (i) modo de Nietzsche avançar contra as categorias de valor da tradição metafísica e cristã e (ii) forma de embelezamento artístico do viver. Desse modo, Roberto pretende mostrar que o dinonisíaco não sucumbe no chamado período intermediário da filosofia nietzscheana. Pelo contrário, ele persiste, passando por uma reconfiguração que se apoiaria na ressignificação da noção de arte, efetivada sobre uma também nova mirada da concepção de ciência.
Os capítulos terceiro e quarto articulam uma leitura em conjunto do pensamento de Nietzsche, não como um corpo sistemático, mas como um agrupamento de construções conceituais fluidas, que transmutam através da obra, e ressignificam em virtude da busca de uma forma possível de afirmar e elevar a vida.
Fundamental nesse percurso é a forma como Barros explora as noções de eterno retorno do mesmo, grande saúde, morte de deus, transvaloração dos valores, além-do-homem, dionisíaco e arte. O eterno retorno do mesmo, o pensamento mais abissal de Zaratustra, já é anunciado desde A gaia ciência, em último grau, o pensamento do eterno retorno manifesta “uma pluralidade de contextualizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais estéticas, cosmológicas” (p.103). Também denota uma experiência própria ao âmbito individual que se traduz psicofisiologicamente como afirmação ou negação da existência.
Frente ao eterno retorno, a grande saúde se mostra como “a capacidade de suportar os perigos e sofrimentos” (p.111) que a existência coloca ao homem e, mais ainda, o desejo de enfrentar tais condições para poder conseguir criar algo afirmativo. A morte de deus pode ser descrita como a face do niilismo que liberta o homem de seu apequenamento na moral, ela impulsiona o indivíduo para uma busca por superação. Esse o faz desde que consiga transvalorar os valores. Justamente aqui incide o alcance do conceito de além-do-homem, este é o símbolo da necessidade humana de superar a si mesmo, o termo estético com o qual o “ensinamento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa para a existência humana” (p.114). Sob tal configuração, o dionisíaco emerge como indicativo da crise dos fundamentos da tradição filosófico-científica e da religião – “ele é o ato decisivo de retorno da humanidade a si própria e que no autor faz carne e gênio” (p.114). A arte liga-se ao dionisíaco através da “postura heróica” (p.180) com a qual o homem entende a existência em sua tragicidade, empurrando-o em uma viagem épica movida pelo “desejo de conhecer com suas representações interpretativas” (p.180) as possíveis, novas e positivas valorizações da vida e da existência (cf. 180).
Destaca-se também a centralidade da tese sobre o renascimento do pensamento trágico na obra de Nietzsche.
Barros mostra como tal concepção ganha importantes traços a partir de A gaia ciência, a tragicidade inunda a filosofia com o ímpeto dionisíaco. Ela se traduz na aceitação incondicional da vida que é levada por Nietzsche a sua mais alta expressão através da escrita de Assim falava Zaratustra.
Uma obra onde o filósofo reconcilia seu pensamento com a natureza, a vida, o conhecimento, a arte e a afirmação de si.
O livro escrito por Roberto Barros é um trabalho robusto, no texto, obras e conceitos são articulados com coerência e originalidade mostrando um duplo caráter do pensamento nietzscheano – seu lado crítico e seu lado afirmativo.
Tudo isso realizado através de um claro fio condutor mantido do início ao fim da obra, a saber, a noção de além-do-homem. Enquanto trabalho interpretativo, restanos reafirmar o elogio escrito por Oswaldo Giacoia Júnior, para quem “o livro de Roberto A. P. Barros é um excelente guia de viagem para um fascinante percurso pela obra de um dos espíritos mais vigorosos de nossa tradição, tanto no rebelde ímpeto crítico-destrutivo quanto na extraordinária potência de criação e beleza”.
Notas
1 Doravante Zaratustra
2 Doravante O nascimento.
3 Doravante Humano.
Referências
BARROS, Roberto de A. P. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética.Campinas: Editora Phi, 2016, pp.198.
Bruno Martins Machado – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, SE, Brasil. E-mail: br.ma.machado@gmail.com
Laboratorios etnográficos (1880-1980) – OJEDA (RCA)
Jorge Pavez Ojeda. https://commons.wikimedia.org/
OJEDA, Jorge Pavez. Laboratorios etnográficos. Los Archivos de la Antropología em Chile (1880-1980). Santiago de Chile: Colección Sociología. Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2015. 598p. Resenha de ESPIRITO-SANTO, Diana. Revista Chilena de Antropología, n.34, p.111-114, jul./dec., 2016.
Este nuevo libro de Jorge Pavez, al igual que su anterior, Cartas mapuche, siglo XIX (2008), marca un hito en la reflexión, ahora sobre el quehacer antropológico en Chile y su vinculación con el devenir de los vínculos “interétnicos”, “coloniales”.
La entrada a esa historia es por medio de un concepto: el de “laboratorio etnográficos”. Este “permite significar la conjunción de varios agentes, procesos y prácticas” (leídos desde una perspectiva dialógica), insertos en una topología (“son territorios completos, sometidos a procesos de ocupación estatal y de colonización”), en una economía y, por último, en una “cierta anatomía”. Así,
Las inscripciones topológicas, las marcas de su economía y los informes de sus anatomía se encuentran en el archivo de su producción. El archivo mismo, el conjunto de las inscripciones textuales y visuales producidas en el laboratorio de los territorios indígenas, da cuenta de la “vida del laboratorio” colonial y de su economía política y libidinal (p.27).
El período que abarca esta historia es de un siglo: 1880-1980. Los laboratorios centrales, capitales, giran en torno a los “autores fundadores de narrativas etnológicas de la nación” (p.35): ellos son Rodolfo Lenz, Max Uhle, Martín Gusinde y Tomás Guevara. A cada uno de ellos Pavez le dedica uno o más capítulos.
Así estas “narrativas”, al ser leídas bajo el supuesto del paradigma dialógico (opuesto al paradigma iniciático), hace de los “padres fundadores” autores parciales, donde los co-autores han sido silenciados, marginados u omitidos. La gracia de la obra de Pavez es mostrar, entonces, al detalle y con precisión obsesiva, la co-autoría y las consecuencias que se derivan de esta desconstrucción.
Como no me es posible comentar todos estos laboratorios me voy a permitir encarar dos de ellos ligados a la Araucanía: el de Lenz y el de Guevara, para posteriormente abordar algunas ideas más generales a que apunta esta obra.
La “narrativa” de Lenz —con un substrato caracterizado como de “araucanismo neohumboltiano” (la lengua como representación externa del “genio de los pueblos”, p.76)— se vincula, en el “dispositivo etnográfico”, con dos mapuche Víctor Manuel Chiappa y, a través de él, con Kalvún. Este nexo ya había sido puesto de relieve por Gilberto Sánchez en 1992. Otro co-autor, Manuel Manquilef tendrá un lugar relevante en este laboratorio, como también en el de Guevara.
En esta relación triangulada se manifiesta la tensión entre ambos aparatos y sus paradigmas, por ejemplo a la lengua y la posibilidad de traductibilidad.
Lenz, fiel a su postura humboltiana, se preguntaresponde “¿Es posible traducir literalmente de una lengua a otra, cuando las dos son de estructuras enteramente distinta y representan grados de cultura enteramente diferentes? Creo que no es posible”.
La respuesta de Lenz es la que rescata Paves por su originalidad: “…todas las teorías lingüísticas generales han nacido exclusivamente en el terrenos de las lenguas indo-europeas […] la perspicacia de Lenz para acusar las limitaciones etnocéntricas de su ciencia… recuerda lo que Jacques Derrida apuntó como la tentación imperialista de una lengua semítica universal recogida en el mito de la torre de Babel” (p.108). Es evidente que dentro de esta perspectiva el lugar de Manquilef era más simétrico o igualitario, de allí el estímulo de Lenz a que se publicara su obra, bajo su autoría, en los Anales de la Universidad de Chile. Es notable el rescate que hace Pavez de la complejidad del juego de Manquilef en la traducción de su obra:
Pero al mismo tiempo que traduce diálogos a enunciaciones impersonales, también encubre o atenúa ciertos conceptos orientados a generar efectos diferentes en cada idioma y su público lector, especialmente cuando se trata de enunciar la relación de fuerza (política o militar) entre los pueblos que practican las lenguas en traducción. Así por ejemplo, una frase de su padre Fermín Trekamañ Manquilef, citada dos veces: “Afkilpe aukantun dunu, aukantun dunu meu, piam, yeneenolu ta che; que no se concluya el conocimiento del juego, pues por el, se dice, la gente fue invencible”.
Aukantu es más que nada la acción de luchar, que por supuesto está contenida en el juego de palin, que es un juego agonístico, pero que abarca muchos otros escenarios de competencia, y especialmente, la guerra.
Aflayai aukantun dungu, “que nunca se acabe el conocimiento de la lucha/combate/pelea/ guerra”, en un enunciado bastante subversivo, que traducido al juego se vuelve la alegoría secreta de un pueblo que tiene que estar preparado para defenderse” (p.111).
Así el laboratorio de Lenz es sensible, por su orientación, a la valoración positiva de la propuesta y práctica de Manquilef. También lo era, nos recuerda Pavez, de la tradición y el habla popular chileno, expresada en la revista del Folklore, en su diccionario etimológico y en la recopilación de la Lira Popular.
Aquí Pavez rescata la tensión de Lenz con la elite chilena que veía con horror y escándalo ese rescate de lo popular:
Salte un hoyo, le vi el coño Colorado como un demonio
Meto lo duro en lo rajao Lo meto seco y lo saco mojao
La experiencia de Lenz es que “en Chile parece faltar por completo, entre la gente ilustrada, ese amor y cariño al pueblo bajo, el cual, sin embargo… es la base eterna de la fuerza nacional”.
La tensión de este Laboratorio con el insigne Andrés Bello es rescatada por Pavez. Para el triple fundador –de la Gramática, del Código Civil y de la Universidad de Chile—la valoración positiva de habla del pueblo estaba lejos de su horizonte, su postura oligárquica era abierta. Lenz en cambio “apela ya no amar a la ley sino amar al pueblo y a la nación; a la “pasión por el orden” de Bello opone una pasión por la creación el descubrimiento, el cambio y la transformación” (p.162).
En síntesis, el laboratorio de Lenz mantiene “una relación con el pasado, con la nación y con el ‘valor de antigüedad’ que la élite chilena no comprendía… Como tuvo ocasión de señalar en varias oportunidades y con altos costos personales, la elite chilena no tenía vocación de integración nacional” (p.164).
113/ Laboratorios etnográficos. Los Archivos de la Antropología en Chile (1880-1980) Laboratorio de Guevara En primer lugar, Pavez aborda uno de los textos de Guevara que se ha sido desde los 80 una obra fundamental para los estudiosos de la sociedad mapuche y para el “nacionalismo mapuche”: Las últimas familias araucanas (publicada en los Anales en 1912) y la razón es que allí “La gran variedad de familias presentes permiten una visión de conjunto sobre lo que constituye el entramado de alianzas políticas y familias que estructuran la sociedad mapuche” (p.320). Pavez quiere corregir “varios errores de interpretación” (como la coautoría), para finalmente mostrar “cómo esta forma de escritura de la historia mapuche contribuyó a la formación del primer movimiento político mapuche en la época de la reducción” (p.321), así “la operación historiográfica y la operación política se entrelazan en su génesis” (p.352). Aquí Pavez retoma la hipótesis de lectura de Menard sobre este gabinete:
…sobre este tipo de gabinete se ejerce un control y se impone un ‘orden del discurso’ colonial, que va a implicar un arreduccionamiento de la escritura, mapuche, al igual como se arreduccionaban los linajes en los territorios conquistados. André Menard ha señalado esta metonimia de la condición reduccional, para enunciar la delimitación reductora que se despliega en el formato de doble columna en que se publican estos textos mapuches (p.354).
Permítanme la siguiente hipótesis sobre este gabinete etnográfico encabezado por Manquilef- Guevara en la producción de “las últimas familias”.
Estábamos de acuerdo en el pasado reciente con la afirmación que se trata de una “visión de conjunto de la sociedad mapuche”, no obstante, tuvimos que modificarla con nuestros estudios en el área huilliche y posteriormente en el área Arauco-Tirúa. Las últimas familias es el laboratorio de los nagche y wenteche, que se valieron de Guevara para hacernos creer que no había universo mapuche más allá de esa oposición (de allí que sea poco útil este texto para comprender las redes mapuches en la zona de Arauco-Tirúa y de sus vínculos con la zona de Malleco).
Volvamos a Guevara. El título de las “últimas familias” (no compartido por sus co-autores) es coherente con la propuesta historiográfica de Guevara: “
lla suponía… como toda escritura de la historia un rito fúnebre que permitiera superar el pasado, pero lo que él estaba enterrando es el pueblo mapuche en conjunto, dándole un término como sociedad y civilización (p.365).
Por supuesto, como nos dice Pavez, “Es difícil creer que los mapuches del gabinete guevariano pensaran lo mismo” (p.365). Menos que compartieran el “evolucionismo” de Guevara que los inferiorizaba.
Estamos también lejos de Lenz, para éste lo mapuche era un clave del substrato cultural nacional, pero compartía con Guevara el paradigma de la extinción.
Ambos laboratorios funcionan como oráculos trágicos de un fin ineluctable, no obstante, Las últimas familias tiene la virtud de poner el oráculo de los lonkos que lo niega “no se acabará el ser, la sabiduría, mapuche”. Este juego oracular es que la ha transformado a esa obra en una clave La disputa de Guevara con Charles Sadleir y la obra de los anglicanos en la Araucanía, le permite a Pavez precisar el nexo que tuvo la Misión Anglicana con el movimiento mapuche, pero también con el “valor del mestizaje para las empresas misioneras católicas y retomado por la ideología nacionalista chilena” (p.397). Hay ahí un puente entre Lenz y Sadleir ambos eran sensibles y críticos al mestizaje promovido por el nacionalismo, ya que para los anglicanos “la comunidad cristiana y económicamente productiva se traducía en una clara distinción étnica o “racial” en el plano sexual reproductivo” (p.397). Esta distinción llevó a Sadleir a identificarse con los mapuches (sobre todo con aquellos militantes de la Sociedad Caupolicán, de la cual el formó parte), gesto que molestaba a Guevara, a pesar de considerarse un “amigo de los araucanos”.
Por último, Pavez nos presenta la distinción de la postura con uno de los mayores teóricos de la “raza chilena”: Nicolás Palacio.
Se enfrentan así las diferentes formas del indigenismo de principios del siglo XX, que en el fondo son variaciones de un racialismo evolucionista: el elitismo nacionalista de Guevara en contra el nobilismo raciológico de Sadleir, el racismo nacionalista de Palacios en contra del cosmopolitismo cientificista de Lenz, el culturalismo pragmático de Manquilef en contra del sicologismo determinista de Guevara. En esta multiplicación de posiciones, 114/ Rolf Foerster resulta bastante evidente que entre la imagen dada por Guevara… de una raza derrotada, biológicamente decadente y en vías de extinción, y la imagen de una raza dignamente representada por dirigentes aristocráticos, vestidos con moderna elegancia y convencidos de la vigencia de su autoridad así como de una autonomía racial y política frente a la nación y al Estado chileno, los caciques encontrarán en el proyecto comunitaristas anglicano una alternativa de negociación más atractiva que la ofrecida por el proyecto mestizológico chileno (p.423).
Este resumen de dos de los laboratorios nos permite pasar ahora a cuestiones más generales que me gustaría tratar antes de finalizar.
Una precisión: el estudio de estos laboratorios no es una suerte de “síntesis comprensiva y global de la historia de la antropología en Chile” y “esto porque las condiciones mismas de posibilidad de la práctica y el archivo etnográficos no llevan a pensar una historia de la antropología, sino más bien a conocer cada laboratorio etnográfico” (p.27-28).
No obstante, Pavez nos ofrece inmediatamente una síntesis al señalar que en la “historia del archivo indigenista” hay unos “padres fundadores de la etnología chilena”, que como todos padres producen fascinación y rechazo. Ahora bien, para sorpresa, esos padres no son los jesuitas de los siglos XVII y XVIII (Valdivia-Ovalle-Rosales-Havestadt-Febres- Molina), sino los “padres de habla alemana” de las primeras décadas del siglo XX: Lenz, Uhle, Gusinde: “autores consistentes de una ‘revolución científica’ en Chile”. La tesis es que “La modernidad alemana, anclada en el romanticismo populista, buscará en la alteridad negada por las elites criollas los fundamentos para la renovación de un proyecto nacional chileno cuya modernización se hiciera cargo de las tradiciones vernaculares” (p.30).
Mi hipótesis es que Lenz y la etnología alemana es de algún modo una continuación (y una negación) del “laboratorio jesuita”, que dio, como unos de sus resultados, no sólo diccionarios y una buena etnografía mapuche-huilliche, sino también la construcción dialógica de la “política de los parlamentos”.
Mientras que el laboratorio de Guevara tiene como objetivo desmontar ese laboratorio para levantar uno acorde con la “pacificación” y el “sistema reduccional”, como primer paso en la disolución de lo mapuche en lo nacional, de ahí la tensión con Manquilef que es heredero del laboratorio parlamentario del siglo XVIII y del XIX (no deja de ser significativo que Pavez no rescate de forma significativa la labor parlamentaria de Manquilef en la Cámara de Diputados; como el laboratorio político de las organizaciones mapuches de los 80 que rescatan ese legado).
Pero volvamos a la síntesis: para Pavez “la segunda guerra mundial dará el golpe de gracia a la fundación de la etnología en Chile” (p.31). El golpe viene desde los Estados Unidos: “cuyos paradigmas tecnofuncionales parecían más libres de tradiciones ideológicas porque favorecían la autonomización disciplinaria y un alejamiento del debate social” (p.31).
La figura central de ese parricidio sería Ricardo Latcham (rescatado desde su tumba, muere en 1943, por Mostny) y también (otra sorpresa) Lipschutz.
Ambos habrían practicado un indigenismo que “no ponía en peligro la ‘unidad nacional’ de Chile, sino que promovía abiertamente (y desde la antropología física) la patrimonialización colonial republicana de los reductos vivos de la alteridad política y sociocultural” (p.31). Esta historia concluye: “en los años 50 y 60” donde los “padres” alemanes son reducidos a la condición de ‘figuras recesivas’” (p.31).
Rolf Foerster – Departamento de Antropología, Universidad de Chile. E-mail: rfoerste@uchile.cl.
[IF]
Corpos de ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735 – 1777) | Ana Paula Pereira Costa
Os trabalhos que tem como objeto de pesquisa os “militares” ou as “instituições militares” tem ganhado cada vez mais espaço no meio historiográfico brasileiro das últimas décadas, consolidando-se como um importante campo de estudos. Contudo, as análises sobre essa temática ainda sofre certa resistência por parte da comunidade acadêmica nacional. Alguns dos motivos que levam os pesquisadores a não enveredar por essa área estão relacionados com a intervenção e a participação dos membros dessas instituições na organização política do Estado brasileira ao longo de sua história republicana (como, por exemplo, o golpe de Estado que pôs fim ao regime monárquico imperial e proclamou a República em 1889; o período ditatorial varguista, também apoiado por setores das forças armadas, conhecido como “Estado Novo” e a recente experiência da Ditadura Civil-Militar de 1964-1985).
Também pode se relacionar a escassez de análises sobre esse objeto específico à compreensão que alguns historiadores ainda possuem em relação à chamada “História/Historiografia Militar”, cuja descrição é comumente associada a uma história factual, sem problemáticas, limitando-se apenas a descrever e narrar determinadas batalhas bem como a vida dos “grandes chefes militares”. Em suma, uma história que estaria relacionada com a chamada História Política praticada, sobretudo, ao longo do século XIX até meados do século XX. Leia Mais
El mito de la Argentina laica: catolicismo, política y Estado – MALLIMACI (AN)
MALLIMACI, Fortunado. El mito de la Argentina laica: catolicismo, política y Estado. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2015. Resenha de: QUADROS, Eduardo Gusmão de. O estado da fé: catolicismo e governo na história Argentina Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 491-496, jul. 2016.
Conhecer a história dos argentinos contribui para alargar a visão geralmente difundida da história do Brasil. Existe, afinal, uma série de processos políticos e econômicos que apresentam traços semelhantes, o que poderia ser ampliado, obviamente, para a história latino-americana como um todo. Isso é especialmente válido se o foco estiver em uma instituição internacional, como é o caso da Igreja Católica Romana.
Qualquer estudo sobre a história do catolicismo necessita articular esses dois aspectos: o global, gestado a partir do Vaticano, e o nacional ou local, onde a ação religiosa deve intervir respeitando os elementos condicionantes mantidos pelos atores sociais. No primeiro nível, a Igreja Católica apresenta-se como salvadora da humanidade, já que representa a ação do Deus criador dos céus e da terra; no segundo nível, é uma instituição política que atua como uma “nação” dentre outras, com o interesse de fortalecer seu domínio.
Ao enfrentar a questão do “mito da laicidade” na história da Argentina, Fortunato Mallimaci tem isso claro. Portanto, por toda a obra, sua análise percorre as vias de mão dupla entre a Europa e a América Latina, sem esquecer o modo como as camadas populares reagem às estratégias implantadas pelas elites, sejam elas políticas ou religiosas. O fundamento teórico-metodológico para integrar tais aspectos é de inspiração bourdieusiana, apesar de o autor indicar diversas vezes as reflexões de Ernst Troeltsch como suporte relevante.
O livro estrutura-se em seis capítulos. Eles podem ser lidos como hipótese de periodização, mas também podem ser formas de relação que a instituição eclesiástica católica estabelece com as demais esferas sociais. Assim, não é meta do autor realizar uma abordagem propriamente contextual, e o texto rompe com a confortável linearidade cronológica, uma decorrência da postura de considerar “,[…] el catolicismo como un lugar social donde se confrontan discursos competitivos y desiguales” (p. 66), preferindo intercambiar os marcos históricos com processos contemporâneos. Os limites entre o que estaria “fora” ou “dentro” da igreja são altamente questionáveis quando se quer entender seu papel na governamentabilidade: Un análisis sociológico sobre el catolicismo no puede abordar su sujeto de estudio si lo encierra en un universo puramente religioso. El fenómeno debe estar ligado a la sociedad que lo involucra y si esta se encuentra dividida, conflictuada, enfrentada, se pueden encontrar esos conflictos, con formas proprias, dentro del espacio de lo religioso, especialmente si se trata de un movimiento dominante y extensivo como es el catolicismo. Si esos conflictos se agudizn se puede ver cómo se generan estructuras intermedias y paralelas que un estudio de ese tipo no puede ignorar. Por esto, creemos necesario mostrar los procesos que relacionen estructuras, agentes y personas en el largo plazo (p. 66).
Nessa perspectiva, o capítulo inicial trata da mescla dos valores e símbolos católicos com as manifestações nacionais argentinas. O ideário de edificar uma religião civil perpassa o discurso das elites sócio-religiosas.
Mesmo que tenha sido declarada a laicidade estatal desde meados do século XIX, bem como da educação, o autor afirma que “[…] sin símbolos y sin sagrados no se consolidan las nuevas naciones” (p. 20).
A igreja católica não era tão forte, na época, para interferir diretamente nesse projeto, contudo havia uma crença difusa, sem demasiada fidelidade doutrinária ou ética, que unificava boa parte da população. O conflito com as ideias do positivismo foi tênue e já nos primórdios do século XX a igreja-mãe estava casada com o estado-pai (p. 33).
Nas décadas de vinte e trinta do mesmo século, as tendências integristas, totalizadoras, inspiradas na imagem do Cristo Rei, tornaram- se consolidadas. Os cristãos, nessa visão, precisavam lutar para estabelecer o domínio divino, e consequentemente da instituição que o representa, sobre todas as coisas. A oportunidade de atuação eficaz adveio de um fator extrarreligioso: a crise global do liberalismo ao final dos anos vinte. Dessa forma, o discurso católico passou a se colocar como uma terceira via entre o temido comunismo e os problemas da democracia burguesa. As duas fontes secularizadas de esperança perderam, naquele momento, boa parte de sua credibilidade social.
Cada vez mais a igreja assumiu a posição de ser o cimento que sustentava a sociedade argentina. O processo de diocesização, incrementado rapidamente nessas primeiras décadas do século, possibilitou a capilaridade necessária à expansão da “geografia católica” pelo território nacional. Há, entretanto, uma diferença sensível em relação ao catolicismo brasileiro nesse caso, pois a maioria do clero, inclusive o episcopado, era natural do próprio país (p. 94).
O capítulo terceiro demonstra a importância da Ação Católica para todo o período que se segue. Sua espiritualidade, de forte aspecto militar e integral, contribuiu efetivamente para incorporar ao seio da igreja católica setores sociais ainda desprezados, a exemplo dos jovens e das camadas empobrecidas. O autor ressalta que a recente ruptura teórico- metodológica, relativizando as dicotomias entre sagrado e profano ou oficial e popular, são importantes para que surjam novos estudos acerca desses sujeitos, geralmente invisibilizados na documentação. Esses estudos deveriam enfocar mais suas lógicas internas, os motivos de adesão e as estratégias simbólicas de legitimação constituídas (p. 109).
O grupo de militantes da Ação Católica partia do pressuposto de que existiria um déficit de catolicidade na configuração social e até entre os membros da igreja. Encampavam, então, a tarefa de cristianizar todas as instituições sociais, gerando um novo tipo de patriotismo católico em um contexto de fortes conflitos ideológicos. A comprovação dessa habilidade de produzir um novo consenso nacionalista foi o apoio dado ao vitorioso movimento golpista de 1943, com a posterior incorporação de muitos membros do laicato católico no aparato estatal.
Decorrente desse modelo de inserção social, o foco do autor nos três últimos capítulos da obra parte da análise do mundo do trabalho.
A afirmação deste na configuração política e religiosa ocorreu através da mescla de valores religiosos com o insurgente peronismo. Existem afinidades evidentes entre a forma de governo estabelecida por Perón e o catolicismo social moldado pela Ação Católica, mesmo que houvesse grupos discordantes que acusavam as ações ditatoriais do regime. Nesse momento de intensa politização do cristianismo, ou de sacralização do político, Jesus passou a encarnar “el primer justicialista” (p. 137).
Apesar de Perón ser militar de carreira, a militarização do catolicismo, com a consequente simbiose entre a igreja romana e as forças armadas, manifestou-se com maior intensidade na ditadura dos anos setenta. Mallimaci faz questão de denunciar o regime instaurado após o golpe de 1976 como um terrorismo de Estado com fundamento cívico-religioso-militar (p. 168). Verdade que o quinto capítulo busca demonstrar um período mais duradouro, que perpassa todos os golpes militares, e este provém do catolicismo de matiz integral propalado pelos militantes católicos. Tal herança nunca fora unívoca, é bom ressaltar, e o movimento antiperonista nutriu-se igualmente do imaginário cristão-militarizado para excomungar e expulsar Perón da Argentina.
O catolicismo integral e o peronismo serão objetos de disputa social no esforço coletivo de construir uma Argentina verdadeiramente católica. Dois movimentos são exemplares desse conflito de tradições.
De um lado, está o movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo, a experiência de messianismo utópico e popular mais importante do final da década de sessenta. Conforme o autor: La critica social y politica del Movimiento a la ditadura del momento fue respondida desde lo politico, lo social y lo cultural.
También hubo otra, teológica, política y religiosa, pronunciada por los sacerdotes católicos que formaban parte de ese gobierno militar. […] (Pero) En el Movimiento de Sacerdotes para el tercer Mundo se disociaba la memoria católica de la función legitimadora de las relaciones sociales hegemónicas y se las trasladaba a las clases subalternas primero y luego al movimiento político mayoritario en sectores populares (p. 192).
Do lado oposto, partindo da crítica teológica, política e religiosa, nessa ordem, estavam os capelães militares. Esse grupo, em texto divulgado na grande imprensa, denunciava seus companheiros de batina, como é demonstrado pelo autor quando este cita um documento gerado pelo Comando de Operações Navais, assinado pelo capelão Duilio Barbieri. Afirma-se nesse texto que: […] hay fundadas razones para creer que entre estos sacerdotes (para el tercer mundo) hay algunos que son activistas comunistas expresamente infiltrados ya desde el seminario, y que con esos sacerdotes estamos en el cero absoluto del espíritu (BARIBIERI, 1970 apud p. 193).
A tensão sócio-religiosa perdurou até a ditadura civil-militar implantada em 1976. A repressão violenta, utilizando inclusive grupos paramilitares, foi legitimada pela Conferência Episcopal Argentina.
Mallimaci chega a afirmar peremptoriamente que “[…] los golpes militares nunca recibieron la reprobación del cuerpo epsicopal, tanto en Argentina como en el resto de América Latina” (p. 194).
O leitor pode estar curioso para saber como o padre Jorge Bergoglio, atual Papa Francisco, se portou nessa conjuntura. A obra apresenta denúncias de que ele, enquanto superior dos Jesuítas, desprestigiou tanto sacerdotes quanto leigos ligados à Companhia de Jesus durante a perseguição governamental e eclesiástica. Estes eram aqueles que estavam inseridos exatamente nas lutas dos pobres. Ainda como provincial da Universidade do Salvador, vinculada à Companhia inaciana, padre Bergoglio participou da condecoração, concedida em 1977, ao almirante Emílio Massera, conhecido já na época por sequestrar, torturar e “fazer desaparecer” muitos membros do catolicismo (p. 200).
Esse tema do papa argentino retorna ao final do livro, quando este trata das reconfigurações recentes no campo religioso argentino.
O catolicismo integral ficou fragmentado com o impacto das redefinições democráticas no espaço público, bem como com o crescente pluralismo religioso. Ter um papa peronista (cf. p. 239) fortalece a relação simbiótica entre nação e fé católica. Assim, a laicidade permanecerá apenas no nível jurídico, como um mito social vigoroso nesse enviesado processo de reconhecimento da liberdade.
A obra aponta, destarte, para desafios fulcrais da democratização ainda recente na América Latina. Talvez o autor tenha, no intuito de demonstrar sua tese, ressaltado demasiadamente a continuidade da relação instituída entre catolicismo e governo, ou desprezado momentos em que a religião se distanciou do campo político, que é um princípio afirmado teoricamente (p. 149). Todavia, como se buscou indicar nesta resenha, o livro de Mallimaci está prenhe de intuições analíticas e metodológicas capazes de revigorar os estudos acerca dos atores religiosos, suas representações sociais, lógicas identitárias, pretensões legitimadoras e, sobretudo, crenças.
Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória.
Eduardo Gusmão de Quadros – Docente do PPG em História e em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Doutor em Historia pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: eduardo.hgs@hotmail.com.
Elites e instituições no Brasil Império | Escrita da História | 2016
No primeiro semestre de 2016 a Revista Escrita da História – REH publicou o dossiê intitulado “Elites e Instituições no Brasil Colonial”. Nesta nova edição, de número seis, damos sequência à discussão anterior, avançando sobre o período Imperial. Reunimos diferentes trabalhos que abordam, à sua maneira, os problemas envolvidos na organização institucional e na atuação política das elites imperiais no Brasil. Temos um fio aglutinador que perpassa os trabalhos que integram o dossiê. Trata-se da construção do Estado nacional no Brasil, problema que demanda respostas de diferentes níveis, tal como a diversidade de abordagens dos textos que compõem a presente edição.
José Augusto dos Santos Alves, doutor em História e Teoria das Ideias pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), analisa no artigo que abre o dossiê um documento pouco citado pela historiografia brasileira: as Cartas políticas de Americus. O autor aborda uma série de problemas propostos e discutidos nas Cartas políticas, avançando sobre temas de enorme relevância no início do XIX: opinião pública, constituição, delimitação dos poderes, publicidade, modernidade e/ou antigo regime, legitimidade, leis, liberdade de imprensa, em suma, o exercício do poder em toda sua complexidade. Segundo o próprio autor da carta, sua “teoria de governo”. Dessa forma, José Augusto permite ingressarmos no tema do dossiê por meio das discussões conceituais envoltas nos projetos políticos presentes na primeira metade do XIX no Brasil, projetos que de uma forma ou de outra afetavam as práticas e a organização institucional do país. Leia Mais
Introdução à Tragédia de Sófocles – NIETZSCHE (C-FA)
NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à Tragédia de Sófocles. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2014. Resenha de: SOUZA, Ronaldo Tadeu de Souza. A Estrutura Filológica da Tragédia Grega: a propósito da “ Introdução à tragédia de Sófocles ”de Nietzsche. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.21, n.2 jul./dez., 2016.
Karl Marx escreveu um dos pontos mais significativos de sua Introdução para a crítica da economia política que:
a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis (Marx, [1857] 1974, p.131).
É certo que devemos aceitar na sua completude a afirmação de Marx acerca do “prazer estético” que a arte grega nos oferece ainda em nossos dias, mas é certo também que devemos nos esforçar para negar Marx ao dizer-nos que a arte grega porta “modelos inacessíveis”. A questão aqui envolve a possibilidade ou não de compreendermos aquela que talvez tenha sido a principal expressão artística do mundo grego antigo, a saber: a tragédia. Quanto mais compreensíveis forem as obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mais estaremos em condições de acessarmos o estatuto da cultura grega clássica para a história das sociedades humanas.
Introdução à tragédia de Sófocles, de Nietzsche, recentemente publicado pela editora Martins Fontes (fim de 2014 / início de 2015), nos apresenta esta possibilidade. Assim, quais são os pontos a serem destacados no escrito introdutório de Nietzsche sobre o drama antigo? Uma observação inicial que é preciso ser feita sobre Introdução à tragédia de Sófocles é a respeito da edição do livro. É um trabalho cioso e esmerado que a erudição de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e André Luis Muniz Garcia apresenta aos leitores brasileiros – sobretudo na organização das notas explicativas que percorrem todo o texto de Nietzsche. André Luiz Muniz Garcia, referindo-se ao seu companheiro de tradução e preparação do texto, diz que o trabalho de Marcos Sinésio “é resultado de (…) profundo trabalho de tradução, mas também de pesquisa filosófica e filológica” (Garcia, [Apresentação] 2014, p.XV) que o erudito da Universidade Federal do Maranhão oferece ao nosso público. Em tempo de especialização e profissionalização empobrecedora da universidade, Marcos Sinésio desejou ofertar “tradução e comentários [que] chegassem às mãos não apenas do público acadêmico, mas, principalmente, do leitor não especializado, daquele [não iniciado em] pensamentoschave de nossa cultura” (idem, ibidem). Ao estilo de Fichte: a erudição, aqui, serve à humanidade 1.
Se o esforço de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e de André Luis Muniz Garcia foi o de empreender rigorosa pesquisa filológica na tradução de Introdução à tragédia de Sófocles, é porque o próprio estudo de Nietzsche emoldura-se pela filologia. Assim, mais do que um estudo introdutório sobre o sentido da tragédia no mundo grego antigo, e, mais especificamente, sobre a obra de Sófocles, o trabalho de Nietzsche nos apresenta a estruturação filológica da arte trágica. Resultado de um curso proferido por Nietzsche na Universidade da Basileia em 1870, Introdução à tragédia de Sófocles é composta por 20 lições nas quais o filósofo alemão expõe detalhadamente cada composição estética e narrativa que forma a estrutura filológica da tragédia na Grécia clássica. Ao longo das lições, Nietzsche analisa a configuração de significados que a tragédia procura representar na cultura grega antiga. Esta é uma das virtudes do estudo: posicionar os lineamentos narrativos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes com os momentos constitutivos do mundo da Grécia clássica. É claro que Nietzsche não faz trabalho de historiador arranjando linearmente os trágicos nos pontos mais sensíveis e de maior relevância daquela sociedade. Com efeito, a arte esquiliana, sofocleana e euripideana são perscrutadas como documentos literários que expressam as tensões sobre o sentido da vida e da existência de toda uma civilização. Não é ocasional e de menor importância o fato de Nietzsche iniciar seu curso comparando “a antiga forma da tragédia [com] a moderna” (Nietzsche, 2014, p.3), pois, para esta última, Édipo Rei “é pura e simplesmente uma má tragédia, porque nela a antinomia entre destino absoluto e culpa fica insolúvel” (idem, ibidem). O núcleo substantivo da tragédia antiga na leitura de Nietzsche é a oposição de ânimos que conformam o significado estético da narrativa; vale dizer, é aquilo sobre o que o homem grego procurou se equilibrar: “o sentimento de triunfo do homem justo, comedido e isento de paixão” (idem, p.5) com o “instinto [ hybris ] (…), o enigma no destino do indivíduo, a culpa sem consciência, o sofrimento imerecido [e] sua musa trágica [que leva à] idealidade da infelicidade” (idem, pp.7-8). É este núcleo que Nietzsche procura emoldurar com a estrutura filológica de suas lições. Quais são os aspectos mais significativos destas lições que compõem a Introdução à tragédia de Sófocles ?
Se hoje nós compreendemos todas as artes dramáticas como artes da visibilidade, do ver a performance de grupo de indivíduos inseridos em espaços construídos especialmente para isto, na sua origem a arte dramática, que emerge da tragédia grega, é a arte do ouvir. É a arte da palavra que se apresenta como característica primeva de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Assim, a “intuição íntima através da palavra induzindo à fantasia é o que vem primeiro, a visibilidade do quadro da fantasia na ação é algo mais tardio” (Nietzsche, 2014, p.10). Podemos perceber, deste modo, que um dos esforços de Nietzsche em seu curso é entender a tragédia antiga como símbolo do humor: da disposição de ânimo que tensiona a existência dos homens. Não é mero exercício de retórica a afirmação de Nietzsche acerca do fato de que a beleza da lírica, seus componentes filológicos sublimes, seja também a “expressão da dor diante da desarmonia entre mundo desejado e o real” (idem, ibidem). Ele procurou representar em suas lições sobre Sófocles na Basileia o sentimento existencial da cultura grega antiga. Mas vamos acompanhar o estudo introdutório nietzschiano um pouco mais nesta abordagem sobre a tragédia como arte do ânimo musicalizado.
O significado da tragédia concernente à linguagem da cultura grega surpreende àqueles educados na estética do idealismo pós-kantiano – aqui é o belo, a formação mesma da educação sentimental pela beleza que estrutura o entendimento da arte 2 ; em Nietzsche, é a filologia do instinto que deve ser compreendida na tragédia como um dos documentos constitutivos da cultura dos gregos. O que estes enfrentavam, e que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides procurou dramatizar pela lírica musical, era o sentir da vida como “elemento (…) perigoso (…) dos poderes mais perigosos da natureza” (Nietzsche, 2014, p.13) que fornece o suporte necessário para os gregos entenderem e, também apreciarem, que a transcendência se faz igualmente na existência terrificante (idem, ibidem). Diz Nietzsche:
Culpa e destino são apenas tais meios, (…) tais [ mekhanaí ]: o grego queria absoluta fuga para fora desse mundo da culpa e do mundo do destino: sua tragédia não consolava, algo como um mundo após a morte. Mas, momentaneamente, abriu-se ao grego a intuição de uma ordem das coisas inteiramente transfigurada (…) os atenienses fizeram isso abertamente quando não coroaram o Oedipus rex : eles ouviram tão somente os golpes de timbale, o selvagem circulozinho das Mênades, mas queriam também que Sófocles lhes dissesse que tinha visto Dioniso. O velho Sófocles exprimiu-se em Édipo em Colono (como Eurípides nas Bacantes ) sobre o elemento libertador-do-mundo da tragédia: Eurípides, com uma espécie de palinódia, na medida em que se deixou despedaçar como Penteu, como o sensato e racionalista opositor do culto de Dioniso (Nietzsche, 2014, pp.13-4).
Mas Nietzsche ainda insiste na musicalidade como elemento distintivo da tragédia grega. Esta é uma das contribuições de Introdução à tragédia de Sófocles para o entendimento desta arte tão particular – e da cultura que organizava o universo simbólico e filológico da Grécia antiga. Com efeito, “a tragédia [nasceu] da lírica musical das Dionisíacas” (idem, p.21), de sorte a estabelecer os lineamentos sentimentais de toda a subjetividade do povo grego. A tragédia como arte dionisíaca despertava nos populares um profundo sentimento de embriaguez musical possibilitando aos que a ouvissem a percepção plácida da transcendência. Importa dizer acerca das lições de Nietzsche sobre Ésquilo, Sófocles e Eurípides o caráter inteiramente popular da tragédia. Assim, a extensão da linguagem da lírica dramática “abrange a vida social” (idem, p.23) dos Gregos. E a “música popular subjetiva (…), a poesia popular da massa, nas fascinantes e demoníacas Dionisíacas (…), [a] impetuosa lírica das massas” (idem, p.24) irrompia na cena cultural como expressão do ímpeto de ânimo do homem grego na existência. Não foi fortuito que no “predomínio da reflexão e do socratismo, começa uma degeneração do dionisíaco na tragédia” 3 (idem, p.27).
Na sequência de seu curso na Universidade da Basileia, Nietzsche estuda com seus alunos (e nos oferece) dois elementos fundamentais na estrutura filológica da tragédia: “a construção do drama” e o “coro”. No que consiste a construção do drama na tragédia antiga? Pode-se dizer que, para a Introdução à tragédia de Sófocles, o edifício estético posto de pé por Sófocles e seus iguais objetivava à realização de “um ato” (idem, p.32); isto é, o drama grego potencializava o “ pathos [da] cena” (idem, ibidem), de modo que a construção daquele tinha como exigência a figuração do ato mesmo no curso da temporalidade existencial de quem a assistisse. Isto fica mais claro quando Nietzsche propõe em suas lições uma comparação entre a construção do drama moderno de Shakespeare e a tragédia de Ésquilo e Sófocles. O encadeamento da sequência no drama shakespeariano foi forjado para intensificar o movimento da fantasia; o que significa dizer que a linguagem da “tragédia” moderna necessitava para sua melhor exploração artística de espaço adequado no qual aquela pudesse ser representada. Por isso a configuração da cena “contém um palco mais elevado e menor; diante dele, degraus; ao lado, pilares; em cima, um balcão cujas escadas descem até o proscênio” (Nietzsche, 2014, p.33). Esta construção tensionava a fantasia (idem, p.34) de quem a assistisse como fatura do jogo entre o “palco” e seus “degraus”, entre as “escadas” e o “proscênio”, a “pausa” temporal (obrigando à atividade da fantasia) e os personagens que surgem dos “pilares” – é que tudo no drama de Shakespeare era para ser visto e depois imaginado. Em Ésquilo e Sófocles, a construção do drama buscava outros fins: aquela fantasia impulsionada pelas imagens “o grego não conhecia em sua tragédia” (idem, ibidem). Era a interiorização do pathos musical que o drama antigo objetivava; o que importava era (e é) o “ Tá apóskenês ” 4, o a partir da cena… Daí que a construção do drama antigo e, sobretudo, o sofocleano, estruturou-se pela disposição filológica do coro. De sorte que o efeito do cântico na tragédia conformava o “antagonismo” entre “o espectador idealizado (…) representante dos pontos de vista gerais” (idem, ibidem) e o coro dramáticolírico enquanto tal. Diz Nietzsche a esse respeito:
as canções do coro tinham que assumir um pathos interior: para não tornar a representação do coro inconsequente. Eurípides conduzia com consciência o coro em regiões sentimentais mais brandas e empregava também uma música mais suave em correspondência (…) Em Ésquilo e Sófocles, há por vezes incongruência entre o coro dos grandes cantica e os dos diálogos. A situação dos cantica é deslocada (…) o coro e a música coral já são (…) [ hedýsmata ] (Nietzsche, 2014, pp.34-5).
Assim, é no coro que podemos encontrar o real sentido da tragédia como documento cultural do mundo grego antigo. Nietzsche deixa entrever isto nos quatro pontos que estruturam a articulação interna da linguagem do coro. Ele, então, afirma que os pesquisadores devem atentar para os seguintes elementos: (1) o coro representa a construção filológica do novo momento do mundo antigo, ele é a expressão artística da apropriação pelo povo sensível dos negócios do palácio, ou seja, é como se o ânimo musical dos deuses se voltasse agora para o peito dos homens (Nietzsche, 2014, p.41) na intervenção do coro na estrutura da tragédia; (2) pode-se dizer com isto que com o coro a tragédia adquire aspectos reflexivos acerca dos conflitos da vida e do pensamento, de modo que a “liberdade lírica [com] todo o poder sensível do ritmo e da música” (idem, ibidem) presente no coro conduz à ação refletida, mas com “força poética” (idem, ibidem); (3) isto, inevitavelmente, de acordo com Nietzsche, faz do coro na arquitetura filológico-narrativa da tragédia o ponto de inflexão entre a simples exposição organizada de diálogos existenciais e a grandeza trágica; (4) quer dizer, o coro é a possibilidade de alcançar a exuberância dos afetos, é a capacidade que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides tem de transformar o “ânimo do espectador” (idem, ibidem) em um ensaio para a liberdade de e na ação existencial. Com efeito, “o coro é o idealizante da tragédia: sem ele, temos uma imitação naturalística da realidade [n]a tragédia, sem coro, (…) os homens falam e andam” (idem, p.42).
Nietzsche chega assim ao fim de sua Introdução à tragédia de Sófocles, e nós, deste breve ensaio. As leituras e hipóteses dele se voltam agora diretamente para a obra de Sófocles – o ponto mais elevado da tragédia antiga. Como Nietzsche procede aqui? A comparação no espaço mesmo da tragédia grega foi o procedimento utilizado por ele: o que Nietzsche pretende com isto é ressaltar os elementos distintivos das peças sofocleanas. Sendo a tragédia de Sófocles o ápice da arte dramática antiga, ela se posiciona a meio caminho entre o puro instinto esquiliano e a construção racionalizada – a destruição do instinto – de Eurípides. De sorte que em Sófocles “o pensamento é acrescido”, só que aqui “o pensamento está em harmonia com o instinto” (Nietzsche, 2014, p.63). Mas é na estruturação filológica que Sófocles se põe em patamar superior ao do drama de Ésquilo e Eurípedes. Assim, a obra do autor de Édipo Rei preconiza não certas unilateralidades que atravessam as peças de Ésquilo e de Eurípides, sobretudo acerca da interpretação (e utilização) da forma e do pensamento na fatura da tragédia – a grandeza artística de Sófocles foi dada pela unidade da forma com o pensamento, da fusão tensa e motivada pelo existencial e seu significado na cultura grega entre a feição exterior (a disposição enquanto tal das partes constitutivas da tragédia) e os momentos de reflexão do ser pela linguagem do drama (a irrupção decisiva, de acordo com Nietzsche, do coro…). A ocorrência deste posicionamento superior de Sófocles em face a Ésquilo e Eurípides se dá porque ele “ressuscita o ponto de vista do povo” (idem, p.68). Enquanto a tragédia esquiliana é épica e a euripideana socrática, o drama antigo em Sófocles representa a massa trágica, “o enigma na vida do homem”, quer dizer, o sentido da tragédia sofocleana é a transformação do sofrimento humano em algo “santificante” e virtuoso – é a busca do entendimento de que, uma vez o povo lançado na existência incerta e incomensurável, o sentido da vida frente ao destino, “o abismo infinito” (idem, ibidem), não resulta em culpa passiva, mas na musicalidade lírica da humanidade heroica. Terminemos com as próprias lições de Nietzsche:
agora, sabemos certamente que Sófocles no primeiro período imitava Ésquilo (…) A tragédia de Eurípides é a medida do pensamento ético-político-estético daquele tempo: em oposição ao instintivo desenvolvimento da arte mais antiga, que, com Sófocles nele, chega ao seu fim. Sófocles é a figura de transição; o pensamento movese ainda no caminho do impulso [ Trieb ], por isso ele é continuador de Ésquilo (…) [Pois] Sófocles havia comprimido a reflexão no coro, para purificar o poema dramático, (…) [para] distribuir felicidade e infelicidade [a]os povos, ou [a] humanidade [e as] pessoas individuais (Nietzsche, 2014, pp.74,76,79).
Por isso Sócrates não preferiu esta construção e estruturação filológica sofocleana. Sócrates como sábio de si mesmo e dos poucos: ele “assiste à tragédia de Eurípides.Sócrates o mais sábio junto com Eurípides” (idem, ibidem) preferiu a arte racionalizada e filosófica. É que com Eurípides, ao contrário de Sófocles, o autor trágico de Nietzsche por excelência, que a tragédia deixa de ser elemento “bombástico” (idem, p.80) na cultura grega antiga e passa a ser componente da ordem filosofante. Resta-nos aqui investigarmos (talvez na trilha de Marx), em que medida esta disputa trágicofilológica entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides ainda guarda beleza – e possibilidade de deleite e reflexão de nossa existência. Introdução à tragédia de Sófocles ora recebido pela nossa cultura pode ser a primeira lição sobre isto.
Notas
1 Sobre a relação entre a erudição (e os eruditos) e a humanidade, ver: Fichte, 2014.
2 Ver sobre o idealismo alemão e a arte: Werle, 2005 e Videira, 2009.
3 Gostaria de chamar a atenção do leitor para as páginas 27, 28, 29, 30 e 31 do livro que ora estamos estudando. As passagens que constam nestas páginas são de importância seminal para a compreensão ofertada por Nietzsche sobre a relação da arte trágica antiga com os cidadãos atenienses – entendendo estes como os populares da cidade.
4 Ver nota 79 em que consta a tradução da expressão e seu significado filosófico e filológico
Referências
FICHTE, J. G. (2014).O Destino do Erudito. São Paulo: Hedra.
MARX, K. (1974). Introdução à Crítica da Economia Política. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
Nietzsche, F. (2014). Introdução à Tragédia de Sófocles. São Paulo: Martins Fontes.
Videira, M. (2009). Resenha de Arte e Filosofia no Idealismo Alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé. São Paulo: Barcarolla, 2009.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, 14, pp.147-151
Werle, M. A. (2005). O Lugar de Kant na Fundamentação da Estética como Disciplina Filosófica. Revista Dois Pontos, 2 (2), pp.129-143.
Ronaldo Tadeu de Souza – Universidade de São Paulo. ronaldolais@yahoo.com.br
O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem – RIEGL (S-RH)
RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014 [1903]. 88 p. Resenha de: ROCHA, Mércia Parente; TINEM, Nelci. O culto moderno dos monumentos e o patrimônio arquitetônico. SÆCULUM – Revista de História [35]; João Pessoa, jul./dez. 2016.
Ao elaborarmos esta resenha da obra O Culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem, do historiador da arte austríaco Aloïs Riegl, publicada no início do século passado, em 1903, nos interessou a possibilidade de discutir quais os aspectos que a mantém, juntamente com a Teoria da restauração (1963) de Cesare Brandi, que veio à luz sessenta anos mais tarde, como as mais citadas no debate e na prática da conservação contemporânea do patrimônio arquitetônico, que hoje incorpora as obras da produção moderna do século XX, abarcando um campo interdisciplinar, que inclui entre outras disciplinas, a história, a estética, a filosofia e a própria arquitetura.
É, portanto, na perspectiva de darmos alguma contribuição para esse tema que este pequeno ensaio se coloca. Para tanto, tomaremos como referência duas traduções para a língua portuguesa, a primeira elaborada a partir da tradução francesa, por Elane Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini, em 2006, e a segunda, realizada por Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel, a partir do texto original em alemão, no ano de 20143.
Seu duplo vínculo, com a Universidade de Viena (reflexões teóricas) e com o Museu Austríaco de Artes Decorativas (intervenções práticas), lhe permitiu uma abordagem interdisciplinar teórico-prática da História da Arte (proporcionada pela formação no Instituto Austríaco de Pesquisas Históricas) e, ao mesmo tempo, uma compreensão das artes consideradas “decadentes” e a valorização das chamadas “artes menores”, ou seja, lhe permitiu uma visão ampla, diversificada e aberta da história das artes que redundou em uma ótica avançada e uma avaliação crítica dos valores das obras a serem conservadas.
[…] ele teve a audácia […] de negar, pelo menos em teoria, qualquer sistema normativo dos valores, de denunciar a noção de decadência, de renunciar à segregação entre a grande arte e as artes ditas menores.4
Assim como Teoria da restauração de Cesari Brandi5, O Culto moderno dos monumentos de Riegl busca estabelecer princípios operativos como forma de orientar a condução da política de conservação das instituições às quais estavam vinculados, fundamentando suas obras numa consistente relação entre teoria, História e prática, daí sua importância.
A razão da atualidade é clara, as reflexões propostas por Riegl são avançadas para um homem do século XIX, sob o domínio de uma concepção positivista da História.
Se, por um lado, defendia a “evolução” em direção ao progresso da história da arte, por outro, negava a existência de um valor de arte absoluto e advogava apenas um valor relativo e moderno6.
A obra desenvolve-se em três partes. Na primeira, o autor entende que sua tarefa é “definir a natureza do culto moderno dos monumentos, levando em consideração as mudanças ocorridas, com a comprovação de sua relação genética com as fases anteriores de evolução do culto dos monumentos”. A questão da evolução, para ele, era fundamental:
De acordo com os conceitos mais modernos, acrescentaremos a ideia mais ampla de que aquilo que foi não poderá voltar a ser nunca mais etudo o que foi forma o elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução ou, em outras palavras, tudo que tem uma sequência, supõe um antecedente e não poderia ter acontecido da forma como aconteceu se não tivesse sido antecedido por aquele elo anterior. O ponto-chave de todo conceito histórico moderno é formado pela noção de evolução.7
Apesar de fundamentar-se em uma visão evolutiva da história, própria do século XIX, o autor desenvolve uma noção de monumento baseada não mais em valores permanentes e objetivos como na Renascença, mas em valores assentados antes na significação, do que na forma, e determinados no presente, pelos sujeitos históricos.
Interessa a Riegl compreender não apenas como os significados são atribuídos aos monumentos, mas como se dá a recepção desses valores pela sociedade e quais as gradações sociais desse acesso (os especialistas, o apreciador de arte médio, as massas).
Entendia que, se até o século XIX prevalecia a tese de que existia um cânone artístico rígido, um ideal artístico objetivo e absoluto, o século XX teria abolido definitivamente essa pretensão da Antiguidade, emancipando todos os períodos conhecidos da arte com seu significado independente, sem abandonar a crença em um ideal artístico objetivo. Assim, a kunstwollen (a vontade artística de uma época), como princípio, admite que a manifestação artística possa assumir diferentes alternativas conforme o momento histórico, a população envolvida e o lugar geográfico.
Consequentemente, a definição do conceito de ‘valor da arte’ deve variar de acordo com a visão adotada. Conforme a mais antiga, uma obra possui um valor da arte, na medida em que responde às exigências de uma estética supostamente objetiva, mas jamais formulada até agora de maneira correta.
Segundo o conceito moderno, o valor da arte de um monumento é medido pelo modo como ele atende às exigências do querer moderno da arte, exigências essas que não foram formuladas claramente e que, a rigor, nunca o serão, pois mudam constantemente de sujeito para sujeito e de momento para momento.
Para nossa tarefa, torna-se uma condição importante esclarecer essa diferença quanto à essência do valor da arte, pois para a preservação dos monumentos, esse princípio orientador terá uma influência decisiva. Se não existe um valor da arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte de um monumento não é mais um valor de memória, mas um valor de atualidade.8
Riegl estabelece na sua teoria de valores uma taxonomia em que esses são agrupados em duas grandes categorias: os valores de memória, vinculados ao “aspecto não moderno do monumento” e os valores de atualidade, relacionados não mais à memória, mas às necessidades contemporâneas. E essas duas categorias são tratadas pelo autor nas duas partes finais do livro9.permanentes e objetivos como na Renascença, mas em valores assentados antes na significação, do que na forma, e determinados no presente, pelos sujeitos históricos.
Interessa a Riegl compreender não apenas como os significados são atribuídos aos monumentos, mas como se dá a recepção desses valores pela sociedade e quais as gradações sociais desse acesso (os especialistas, o apreciador de arte médio, as massas).
Entendia que, se até o século XIX prevalecia a tese de que existia um cânone artístico rígido, um ideal artístico objetivo e absoluto, o século XX teria abolido definitivamente essa pretensão da Antiguidade, emancipando todos os períodos conhecidos da arte com seu significado independente, sem abandonar a crença em um ideal artístico objetivo. Assim, a kunstwollen (a vontade artística de uma época), como princípio, admite que a manifestação artística possa assumir diferentes alternativas conforme o momento histórico, a população envolvida e o lugar geográfico.
Consequentemente, a definição do conceito de ‘valor da arte’ deve variar de acordo com a visão adotada. Conforme a mais antiga, uma obra possui um valor da arte, na medida em que responde às exigências de uma estética supostamente objetiva, mas jamais formulada até agora de maneira correta.
Segundo o conceito moderno, o valor da arte de um monumento é medido pelo modo como ele atende às exigências do querer moderno da arte, exigências essas que não foram formuladas claramente e que, a rigor, nunca o serão, pois mudam constantemente de sujeito para sujeito e de momento para momento.
Para nossa tarefa, torna-se uma condição importante esclarecer essa diferença quanto à essência do valor da arte, pois para a preservação dos monumentos, esse princípio orientador terá uma influência decisiva. Se não existe um valor da arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte de um monumento não é mais um valor de memória, mas um valor de atualidade.8 Riegl estabelece na sua teoria de valores uma taxonomia em que esses são agrupados em duas grandes categorias: os valores de memória, vinculados ao “aspecto não moderno do monumento” e os valores de atualidade, relacionados não mais à memória, mas às necessidades contemporâneas. E essas duas categorias são tratadas pelo autor nas duas partes finais do livro9.
Para Riegl, dentre os valores de memória (valor de antiguidade, valor histórico e valor de comemoração), o de antiguidade corresponde àquele que se estabelece no decorrer do tempo, através da ação destrutiva da natureza, que age de forma lenta e gradual sobre as obras, provocando sua dissolução e remetendo ao ciclo natural da vida de criação-destruição.
Para ele, o valor de antiguidade seria o mais acessível às massas, e, inevitavelmente, o mais abrangente a partir do século XX. A recepção do valor histórico, pelo contrário, requereria conhecimentos de história da arte e estaria assentada em bases científicas e não atingiria as massas.
O valor de antiguidade tem, portanto, a pretensão de influenciar as grandes massas e se sustenta sobre a possibilidade de incluí-las na mobilização pela defesa do patrimônio. Uma preocupação permanente, ainda hoje não resolvida, nos debates contemporâneos do século XXI.
Contrariando o pensamento de Riegl, a arquitetura moderna torna-se patrimônio ainda no século XX, antes mesmo do tempo ter lhe conferido valor de antiguidade.
Essa ausência de valor de antiguidade, possivelmente, é a principal razão da dificuldade do reconhecimento desse patrimônio pela sociedade em geral.
Por outro lado, essa novidade, impensável para o teórico na época, distancia o patrimônio moderno dos constantes conflitos que se estabelecem entre o valor de antiguidade e os demais valores memória, como entre esses e os valores de atualidade definidos por Riegl, ao menos, enquanto o tempo entre o patrimônio moderno e a sociedade que o reconheceu for tão próximo.
Segundo Riegl, diferentemente do valor de antiguidade, para os valores histórico e de comemoração, interessa a obra em sua forma original e intacta:
O valor histórico é tanto maior quanto mais puramente se revela o estado original e acabado do monumento, tal como se apresentava no momento de sua criação: para o valor histórico, as alterações e degradações parciais são perturbadoras […] Trata-se mais de conservar um documento o mais autêntico possível para a pesquisa futura dos historiadores da arte […] As destruições passadas, imputáveis aos agentes naturais, não podem ser anuladas e, do ponto de vista histórico, elas não devem também ser reparadas. Mas as destruições futuras, as que o valor de antiguidade não somente tolera, mas postula, são inúteis aos olhos do valor histórico […].10 […] o valor de rememoração intencional não reivindica menos para o monumento que a imortalidade, o eterno presente, a perenidade do estado original […] A restauração é, pois, o postulado de base dos monumentos intencionais […].11
O aspecto mais atual no discurso de Riegl é a forma como ele enxerga o valor de arte, sujeito a flutuações de época, e o valor de antiguidade que se baseia na subjetividade e é acessível a todas as classes (o valor mais democrático). Riegl desloca-se de uma visada objetiva para uma subjetiva – quase religiosa – aproximando-se de Ruskin, mas apenas nesse ponto.
Na terceira e última parte do texto, Riegl se debruça sobre os valores que, segundo o autor, respondem às necessidades da sociedade moderna tal qual a obra nova: nos seus aspectos funcionais, sensoriais e espirituais. A estes denomina valores de atualidade, subdividindo-os em duas outras categorias: o valor de uso e o valor de arte. Para esses valores de atualidade, assim como para o valor histórico e de comemoração, interessa a manutenção do estado original da obra.
No caso das obras que continuam sendo utilizadas, no entanto, o valor de uso não pode fazer nenhuma concessão ao valor de antiguidade: “para a maioria, um monumento ainda utilizado deve apresentar, mesmo em nossos dias, a aparência juvenil e robusta de suas origens e recusar as marcas de seu envelhecimento ou de suas fragilidades”12.
Por outro lado, os monumentos dotados de valor de arte, que respondem à exigência da moderna Kunstwollen, ou seja, que satisfazem à aspiração de vontade artística do momento comportam duas exigências: uma refere-se à forma conservada nas suas cores e integridade, denominada por Riegl como valor de novidade, e pode ser apreciada por qualquer indivíduo; a outra, que chama de valor relativo, apenas acessível aos que possuem cultura estética, refere-se à presença nas obras passadas de certas qualidades atuais. Em ambos a necessidade recai sobre a conservação integral do bem.
Considerando que toda obra do passado, em princípio, possui valor histórico, e tendo em conta a ausência do valor de antiguidade no patrimônio moderno, pode-se dizer que são os valores de atualidade que melhor caracterizaram esse patrimônio, portanto, a observação desses valores é fundamental para as intervenções no mesmo.
É importante, porém, esclarecermos que esse fato não autoriza intervenções que recusem toda e qualquer marca do passado. Riegl, ao tratar dos valores de atualidade destaca, por um lado, que poderão ser tolerados “certos sintomas de degradação” e, por outro, esclarece que não existe valor de arte eterno, apenas relativo e que, portanto, as exigências relacionadas a esse valor devem ser consideradas em relação ao valor histórico do monumento, de forma que o mesmo não perca seu caráter de documento.
A formulação teórica de Riegl pressupõe um conflito constante entre os diversos valores presentes nos monumentos e a necessidade de uma abordagem crítica para o enfrentamento do dilema que se estabelece na conservação, uma vez que coexistem em uma mesma obra valores antitéticos.
Segundo Françoise Choay, pela primeira vez na história da noção de monumento histórico e de suas aplicações, Riegl toma distância para:
[..] empreender o inventário dos valores não ditos e das significações não explícitas, subjacentes ao conceito de monumento histórico. De uma só vez, este perde sua pseudotransparência de dado objetivo. Torna-se o suporte opaco de valores históricos transitivos e contraditórios, de metas complexas e conflitivas. Riegl mostra que, no plano da teoria assim como no da prática, o dilema destruição/conservação não pode ser opção absoluta, o quê e o como da conservação não comportando jamais uma solução – justa e verdadeira –, mas soluções alternativas, de pertinência relativa.13
Acertadamente Fabris (2014) afirma que Riegl “antecipa algumas propostas do restauro crítico que foram transformadas em reflexão teórica por Brandi”, em exatos sessenta anos depois. Enfatizando essa perspectiva, na apresentação da edição brasileira da Teoria da Restauração, de 2004, traduzida por Beatriz Mugayar Kühl, Giovanni Carbonara afirma que a reflexão de Cesare Brandi “manifesta uma dívida implícita no que concerne à contribuição teórica de Aloïs Riegl”14. Por isso mesmo, Annateresa Fabris destaca, na introdução à tradução de 2014:
O que resta de seu legado nos dias de hoje? A ideia de que toda intervenção em um monumento não pode prescindir de um juízo crítico, já que o restauro caracteriza-se por ser uma ação sociocultural, a requerer ‘uma investigação preliminar sobre a natureza daquilo que se conserva, a fim de detectar na vasta gama das preexistências, os papéis específicos e as vocações de cada uma delas’. Desse modo, Riegl antecipa as propostas do restauro crítico formuladas no segundo pósguerra por profissionais como Roberto Pane, Renato Bonelli e Agnoldomenico Pica, e transformadas em reflexão teórica por Cesare Brandi.15
Pouco mais de um século após a elaboração da obra de Riegl, e seis décadas da obra de Brandi, é possível afirmar que nenhuma outra obra de tamanha consistência teórica para a conservação surgiu, apesar do alargamento não apenas cronológico e geográfico dos bens patrimoniais ocorrida, segundo Françoise Choay16, a partir da década de 1960 e da ampliação da noção de Patrimônio Cultural, incluindo os bens imateriais desde o final do século passado.
Somado a isso, alguns desafios enfrentados para a conservação do recente patrimônio moderno não encontram precedentes na práxis da conservação como: as novas possibilidades documentais trazidas com o acervo de projetos das obras, os grandes componentes e sua substituição integral, ou as especificidades espaciais dessa arquitetura, abrindo o campo de pesquisa e sugerindo não necessariamente a negação dessas teorias, mas sua revisão e ampliação17.
Ao contrário da questão material, a abordagem dos aspectos espaciais das obras de arquitetura nas teorias da conservação é incipiente e, consequentemente, sua importância tem sido pouco considerada na prática patrimonial.
Em Riegl, embora o valor de uso devesse estar intrinsicamente vinculado aos aspectos espaciais da obra de arquitetura como parte de seu valor artístico, é reduzido apenas à sua dimensão utilitária e, nesse sentido, o foco, para o autor, recai sobre os possíveis conflitos com o valor de antiguidade18.
O autor, ao tratar o valor de uso e o valor artístico como distintos, cria não apenas a possibilidade de conflito entre eles, como a prevalência do valor artístico sobre o de uso, aspecto que é reforçado, posteriormente, na Teoria da Restauração de Brandi.
Por outro lado, o princípio de integração entre espaços interiores e exteriores, inerente à arquitetura moderna, torna-se difícil de ser contemplado quando são entendidos como entidades separadas e estanques e quando há prevalência do espaço exterior, conforme aborda Brandi no capítulo destinado aos “Princípios para a Restauração dos Monumentos”. A diluição desses limites faz com que os dilemas espaciais já existentes na conservação da arquitetura fiquem mais evidentes ou agudos com o patrimônio moderno.
A configuração espacial moderna, ao estar em parte fundamentada nas teorias do espaço arquitetônico do final do século XIX e início do século XX19, coloca em questão a preponderância dada à materialidade nas práticas da conservação dessa arquitetura e aponta para a impossibilidade, ou ao menos a inadequação, de uma abordagem conservativa sem a devida importância que deve ser dada também aos seus aspectos espaciais.
Apesar de muito citadas, as obras de Riegl e Brandi ainda são pouco exploradas na utilização operacional e pouco aprofundadas nos debates e reflexões sobre a questão da conservação do patrimônio artístico ou arquitetônico.
Quais as razões para tão pouca atenção e discussão sobre o tema? As razões estarão no enfraquecimento das relações entre teoria, historia e prática? O problema estaria na crescente complexidade da sociedade contemporânea e na diversidade do corpo patrimonial que dificulta a abordagem teórica no tratamento desse patrimônio? Aprofundar o entendimento sobre essas obras a partir do olhar contemporâneo, como nos ensina Riegl, talvez seja o ponto de partida para a ampliação da discussão da conservação da arquitetura (não apenas moderna), da prática da conservação, bem como do papel das instituições patrimoniais na conservação desse patrimônio.
Notas
3 As duas traduções brasileiras do livro de Aloïs Riegl consultadas são: a primeira, feita a partir da edição francesa, Le culte moderne des monuments: son essence et sa genèse (Paris: Seuil, 1984), publicada pela Editora da Universidade Católica de Goiânia em 2006, e a segunda, feita a partir da edição original em alemão, Der moderne denkmalkultus: sein wesen und seine entstehung (Viena & Leipzig: W. Braumüller, 1903), publicada pela Editora Perspectiva em 2014.
4 ZERNER apud FABRIS, Annateresa. “Os valores do Monumento”. In: RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 19.
5 BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Tradução de Beatriz Mugayar Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004 [1963].
6 O moderno a que se refere Riegl pertence às transformações modernas do século XIX e não pode ser confundido com o termo utilizado quando nos referimos à produção moderna da arquitetura no século XX.
7 RIEGL, O culto moderno…, p. 32.
10 RIEGL, Aloïs. O culto dos monumentos: sua essência e sua gênese. Tradução da edição francesa por Elane Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini. Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006, p. 76-77.
11 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 85-86.
12 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 99.
13 CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo:
Estação Liberdade; Editora UNESP, 2001 [1992], p. 13-16.
14 CARBONARA, Giovanni. “Apresentação”. In: BRANDI, Teoria da restauração…, p. 9.
15 FABRIS, Annateresa. “Os valores do monumento”. In: RIEGL, O culto moderno…, p. 20-21.
16 CHOAY, A alegoria do Patrimônio…, passim.
17 ROCHA, Mércia Parente. Patrimônio arquitetônico moderno: do debate às intervenções. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2011.
18 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 38-39.
19 Sobre os trabalhos que ao final do século XIX introduzem na teoria da arquitetura o conceito de espaço, até então objeto de estudo em especial da filosofia, destacam-se aqueles elaborados pelos pesquisadores alemães August Schmarsow e Adolf Hildebrand, cujo pensamento está fundado numa visão da arquitetura a partir de seu interior.
Mércia Parente Rocha – Arquiteta, Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo do CESED/ FACISA em Campina Grande – PB.
Nelci Tinem -Arquiteta, Doutora em História da Arquitetura Urbana pela Universitat Politecnica de Catalunya. Professora Titular do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba.
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